Revista Brasileira de Literatura Comparada - 24

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REVISTA BRASILEIRA DE Literatura Comparada Belém 2014

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Revista Brasileira de Literatura Comparada, Volume 24 - Belém, 2014 - ISSN 0103-6963

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  • REVISTA

    BRASILEIRA

    DE

    Literatura

    Comparada

    Belm2014

  • Diretoria Abralic 2014-2015

    Presidente

    Vice-Presidente

    1 Secretria

    2 Secretria

    1 Tesoureira

    2 Tesoureiro

    Conselho

    Deliberativo

    Membros Titulares

    Membros Suplentes

    Germana Maria Arajo Sales (UFPA)

    Marl Tereza Furtado (UFPA)

    Conselho Editorial

    Tnia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (UFPA)

    Mayara Ribeiro Guimares (UFPA)

    Maria de Ftima do Nascimento (UFPA)

    Fernando Maus (UFPA)

    Marilene Weinhardt (UFPR)

    Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

    Antnio de Pdua Dias da Silva(UEPB)

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    Humberto Hermenegildo de Arajo(UFRN)

    Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Maria Helena Bonita, Raul Antelo, Silvano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.

    A B R A L I CCNPJ 91.343.350/0001-06Universidade Federal do Par ( UFPA)Instituto de Letras e Comunicao (ILC)Rua Augusto Corra, 1 - Guam

    Rua Augusto Corra, 1 - GuamCEP: 66075-110Belm PAE-mail: [email protected]

  • REVISTA

    BRASILEIRA

    DE

    Literatura

    Comparada

    ISSN 0103-6963

    Rev. Bras. Liter. Comp. Belm n.24 p. 1-196 2014

  • 2014 Associao Brasileira de Literatura ComparadaA Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)

    uma publicao semestral da Associao Brasileira de Literatura

    Comparada (Abralic), entidade civil de carter cultural que congrega

    professores universitrios, pesquisadores e estudiosos de Literatura

    Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poder ser

    reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem

    permisso por escrito.

    Editora Marl Tereza Furtado, Tnia Maria Pereira Sarmento-Pantoja

    Comisso editorial

    Editorao

    Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associao

    Brasileira de Literatura Comparada v.1, n.1 (1991) Belm: Abralic, 1991-

    v.1, n.24, 2014

    ISSN 0103-6963

    1. Literatura comparada Peridicos. I. AssociaoBrasileira de Literatura Comparada.

    CDD 809.005

    CDU 82.091 (05)

    Reviso

    Germana Maria Arajo Sales

    Marli Tereza Furtado

    Tnia Maria Pereira Sarmento-Pantoja

    Mayara Ribeiro Guimares

    Maria de Ftima do Nascimento

    Marli Tereza Furtado, Maria de Ftima do Nascimento

    Samantha Andrade de Arajo

  • Sumrio

    Apresentao

    Mrcio Seligmann-Silva 7

    Artigos

    Traduo potica xamanismo transversal: correspondncia entre

    Llansol e Baudelaire lvaro Faleiros

    Ecos do simbolismo- decadentismo no dirio carioca o Pas

    (1890- 1892)

    lvaro Santos Simes Junior

    Notas sobre a noo de "fronteira" de Boaventura de Sousa Santos e a

    trilogia Os filhos de Prspero, de Ruy Duarte de Carvalho. Anita Martins Rodrigues de Moraes 51

    O chamado elemento servil nos Estados Unidos da Amrica e no Brasil:

    dois momentos de representao literriaHugo Lenes Menezes

    Euclides da Cunha e banalidade do mal. Por uma literatura comparada s

    avessas Joo Cezar de Castro Rocha

    Vita brevis sobre imagens e paisagens da Amaznia: apassagem do geogrfico-poltico para o espao imagtico

    Lus Heleno Montoril del Castilo 95

    16

    33

    66

    78

  • Literatura e traduo: descontinuidades na fico do outro

    Mauricio Mendona Cardozo 108

    Traduzir o outro traduzindo a si prprio: Ana Cristina Csar e o exerccio

    tradutrio

    Mayara Ribeiro Guimares

    A Histria da Literatura pede passagem

    Regina Zilberman

    Escritas da vida: narrativas culturais Rosani rsula Ketzer Umbach

    A hora e vez de Augusto Matraga, entre a antropologia e aliteratura

    Slvio Augusto de Oliveira Holanda

    126

    142

    Normas da revista 192

    172

    159

  • 7

    Revista Brasileira de Literatura Comparada N24

    Fluxos e Correntes da Literatura Comparada

    Apresentao

    Mrcio Seligmann-Silva

    Na proposta dos organizadores deste nmero da Revista Brasileira de Literatura Comparada no. 24, consta que os artigos aqui reunidos devem incluir os desvios do mtodo e destacar o movimento de investigao de novos fluxos de sentido e lugar, prprio da Literatura Comparada, que propicie o acesso a novos modos de organizao do sensvel a partir das relaes entre a literatura e outros campos do saber. A proposta no poderia ser mais bem-vinda, j que no Brasil, mesmo aps quase trs dcadas da revoluo ocorridas nas Humanidades com o nascimento dos Estudos Culturais, nossos departamentos de Letras ainda se encontram por demais grafocntricos e submetidos ao cnone. A virada imagtica (pictorial turn) tampouco faz-se sentir de modo substancial em nossos cursos. Mas aqui e ali vemos pesquisas inter e transmiditicas, surpreendemos trabalhos que lanam mo de mtodos que entrecruzam autores e procedimentos que provm de diferentes reas, vemos a quebra do cnone e a abertura para outros discursos marginais, orais, imagticos e escritos, fertilizando assim a Literatura Comparada com novas ideias e objetos. Esses estudos devem ser incentivados e essa proposta da Comisso Organizadora do XIV Congresso da ABRALIC uma decorrncia desse fato. Ela est atuando enfaticamente para expandir esses novos estudos. Os ensaios aqui reunidos so, como no poderia ser diferente, muito heterogneos e apontam para diferentes estratgias de expanso e aprofundamento dos estudos na Literatura Comparada. Apresento aqui um resumo crtico de cada um deles, procurando destacar o lado positivo dos textos e as suas potencialidades. lvaro Faleiros, estudioso do em nosso contexto

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    importantssimo campo dos estudos da traduo, introduz o conceito de xamanismo transversal, do antroplogoEduardo Viveiro de Castro, para estudar a especificidadedas tradues que Maria Gabriela Llansol fez das Flores deMal de Baudelaire. Essas tradues no se deixariamreduzir conhecida dicotomia (lembremos de Jakobson)metonmia/metfora, que Faleiros repagina com Viveirode Castro na dicotomia sacrifcio/totemismo. Odesequilbrio perptuo entre os sistemas de foras esistemas de formas em que se articula, que marca essastradues, apontaria para a noo de xamanismotransversal, caracterizada, segundo Viveiro de Castro, pelacomunicao entre termos heterogneos. Essa propostade leitura de Faleiros muito promissora e valer a penasenfrentar agora uma abordagem terica especificamentevoltada para confrontar essa proposta de interpretao dasrelaes culturais na chave do xamanismo transversal comoutras propostas de leitura da operao tradutria, comoas de Walter Benjamin e de Haroldo de Campos (como sel em outros ensaios desse nmero). Nesse caso, os doistambm apostavam no desequilbrio e na insupervelheterogeneidade entre os dois pontos cardinais datransformao tradutria.

    J a contribuio da lvaro Santos Simes Junior trata sobretudo dos artigos dos correspondentes do jornal carioca O Pas, como Pinheiro Chagas e Xavier de Carvalho, e mostra como o simbolismo e o decadentismo entraram no Brasil em parte devido a esses artigos no incio dos anos 1890. O interesse no artigo, no contexto deste nmero, est em valorizar as abordagens mais filolgicas que permitem sempre, com novos materiais levantados, rever a histria da literatura. No por acaso temos falado tanto de arquivos ultimamente, em uma cultura como a nossa na qual a memria e seus dispositivos de arquivamento vem sendo remodelados de modo vertiginoso. A leitura triangular que o autor prope, cruzando Portugal, Brasil e Frana, particularmente interessante para se estabelecer o regime constante de trocas intercontinentais de ideias. Mais abaixo veremos que Regina Zilberman abordar tambm a necessidade de uma historiografia crtica da literatura, para alm das leituras lineares e antropomrficas herdadas

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    do romantismo.Anita Martins Rodrigues de Moraes prope em

    seu artigo um enfrentamento crtico, eu diria urgente, da noo de fronteira desenvolvida pelo socilogo Boaventura de Sousa Santos. A autora apresenta a construo desse conceito em Santos, associada nesse autor a uma crtica da razo imperialista ocidental. Santos deriva dessa crtica uma noo positiva de fronteira, que ele associa tanto ao que teria sido um tipo diverso de colonialismo praticado pelos portugueses, marcado por uma maior identificao e mistura com os colonizados, como tambm liga s culturas do sul. A partir de uma leitura da trilogia Os filhos de Prspero, do escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, na qual a noo de fronteira tambm desempenha um papel fundamental, Moraes leva a cabo uma importante crtica da tentativa da parte de Santos de edulcorar a violncia do colonialismo portugus. Moraes mostra como os conceitos podem e devem ser constantemente revistos criticamente luz de uma anlise mais detida das obras literrias. O dilogo com a Sociologia mostra-se aqui como uma via de duas mos: os Estudos Literrios podem contribuir de modo fundamental para a reviso crtica de conceitos dessa disciplina. Hugo Lenes Menezes apresenta o que chama de

    dilogo da obra A escrava Isaura , de Bernardo Guimares, com A cabana do pai Toms, de Harriet Beecher Stowe. Nessa conversa, vemos como cada obra a seu modo foi cmplice dos preconceitos racistas de sua poca, mesmo se a inteno panfletria abolicionista seja inegvel em Guimares. Digno de nota a observao acerca do funcionamento do dispositivo identificatrio na obra de Guimares: ele produz compaixo para com a escrava branca, mas no para com a negra, a mucama Rosa. Assim se reproduziam de modo quase corpreo e inconsciente os esteretipos raciais da poca (que, em parte ainda, so reproduzidos at hoje por Hollywood...). No artigo de Joo Cezar de Castro Rocha lemos um

    enftico plaidoyer a favor de uma literatura comparada s avessas. Com essa expresso, Rocha indica a necessidade

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    de aprendermos a ler no s, como temos feito h dcadas, as ressonncias, inspiraes e ecos, das literaturas produzidas nas metrpoles, sobre a brasileira, mas tambm no sentido contrrio. Afinal, tambm autores das metrpoles leram e inspiraram da nossa literatura. O ar circula globalmente, mesmo se o autor escreve em portugus e no hemisfrio sul! No texto, o autor lembra vrios casos de inspirao metropolitana a partir da obra Os sertes , de Euclides da Cunha. O importante tambm que circular nessas leituras apropriadoras implica tambm ler com novos olhos esse clssico nacional. Trata-se do jogo especular de aprender a se ver a partir dos olhos e da posio do outro. Por exemplo, com a leitura de ngel Rama percebemos, destaca Rocha, que Euclides teria dado forma ao dilema estrutural da constituio das sociedades latino-americanas. J na leitura que o autor faz do romance de Sndor Marai, Veredicto em Canudos , Rocha desperta para o fato de que a guerra de Canudos em Euclides uma verdadeira antecipao dos genocdios do sculo XX. Com razo ele vai a Hannah Arendt e recupera seu importante conceito de banalidade do mal para reler a obra euclidiana. Percebemos que toda a inscrio da violncia na literatura do sculo XX deve ser lida de modo sistmico, como parte de um movimento poltico globalizado, no qual elementos locais se somavam para determinar o desdobramento de uma violncia genocida.

    Euclides da Cunha tambm personagem central do artigo de Lus Heleno Montoril del Castilo. Esse trabalho prope-se a enfrentar o trabalho fascinante, mas no menos rduo, dada a sua dimenso, de esquadrinhar o processo de construo de imagem da Amaznia. Ele visa apresentar a imagem sublime, e inapanhvel , de uma Amaznia feita de sonhos, fices, descries (avant le regard e no avant la lettre ), medos e expectativas. O autor cita uma srie de autores que compe esse universo de inventores da Amaznia imaginria, espao de projees paradisacas e infernais, como Jean Soublin, R. Osterweis, Renaud Berton, M. Viale, Jrme Camut, Patrick Agot, Roger Chauveau, Oswald Ballarin, entre outros. Mas ele se dedica a apresentar duas obras: A jangada, de Jlio Verne e Judas-Ahsverus, de Euclides da Cunha. Deste ltimo,

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    destaco a citao que j anuncia o tema da imagologia antes mesmo de sua fundao: A massa de guas certo, sem par, capaz daquele terror a que se refere Wallace; mas como todos ns desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, merc das pginas singularmente lricas dos no sei quantos viajantes que desde Humboldt at hoje contemplaram a Hilia prodigiosa, com um espanto quase religioso sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior imagem subjetiva h longo tempo prefigurada. Nada mais a comentar!. O meu prprio trabalho, que apresentei aps simptico convite dos organizadores desse nmero, est dedicado ao tema da fotografia em Walter Benjamin. Com ele pretendi mostrar a importncia no apenas da reflexo, mais conhecida, do terico berlinense sobre essa mdia, sua histria e impacto na histria das ideias (para Benjamin, com a fotografia teramos simplesmente dado adeus tradio!), mas tambm quis iluminar o carter altamente terico das metforas fotogrficas em sua obra. Esse trabalho parte de uma pesquisa maior que tenho levado a cabo h alguns anos, dedicada fotografia, em sua interseco com a teoria literria, a teoria do trauma e a do testemunho. Ao propor no contexto deste nmero da Revista Brasileira de Literatura Comparada esse ensaio visei tambm incentivar os leitores desta revista a atentarem mais para essa frutfera rea de estudos, a saber, a comparao entre a fotografia e a literatura. Mauricio Mendona Cardozo aporta uma (auto) reflexo que poderamos chamar, sem pestanejar, de filosofia da traduo. Extremamente lcida. Ele enfrenta a questo do enigma da outridade que est no corao do ato tradutrio. Essa outridade nasce e funda a ipseidade. Com Borges, comentador de Averris, quem, por sua vez, comentou a Potica de Aristteles, sem nunca ter visto uma tragdia ou uma comdia, ele desdobra o paradoxo citando o autor argentino: Senti que Averris, querendo imaginar o que um drama sem ter suspeitado o que seja um teatro, no era mais absurdo que eu,querendo imaginar Averris [...]. Borges ficcionalizafazendo um comentrio, criando seu Averris; Averriscomenta tendo que imaginar o inimaginvel para ele, o

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    o teatro; Cardozo imagina essa cena em mise en abyme, na qual cada comentador, Averris, Borges eCardozo (e eu agora neste momento e o leitor melendo e interpretando) s existe na interface com ooutro.

    Comentar, traduzir (e criticar) so gestos que exigem a fico do outro, mas que resultam na construo (da fico) de ns mesmos. So exerccios de construo do eu pelo desvio atravs do outro: outro impossvel de se atingir, verdade, mas, vale dizer, o Eu, tampouco se atinge: a no ser via esse dilogo com o outro. Analisando as Galxias, de Haroldo de Campos, Cardozo nota que tambm essa obra marcada pela impossibilidade, pela descontinuidade constitutiva: entre suas palavras, partes e entre o texto e o leitor. Poderamos pensar tambm em uma intraduzibilidade performtica, daquele poeta que sempre buscou os textos mais intraduzveis para verter. (Mas Flusser e Anatol Rosenfeld, sempre bom lembrar, traduziram de modo muito criativo algumas pginas das Galxias.) A fragmentao performtica de Galxias seria uma performance do esfacelamento do eu. Como dizia Schlegel, em uma carta a seu irmo August, de 18.12.1797: Eu no posso dar nenhuma outra amostra de mim, de todo o meu eu, seno um tal sistema de fragmentos, pois eu mesmo sou isso. Nesse universo pulverizado, nessa nuvem de estrelas de galxias, no cabe mais se pensar a traduo como reproduo, mas apenas como parte do ritmo de sstole e distole do Universo em letras. E, com o poeta Rimbaud, devemos lembrar que Je est un autre, ou seja, o eu s se d no diferimento de si mesmo e pelapassagem pelo outro. Mendona estabelece essefato pela via da filosofia da traduo. Essa abordagem fundamental para se desconstruir a noo de identidade(estanque) que assombra os estudos de LiteraturaComparada. Tambm o texto de Mayara Guimaresbusca refletir sobre as aproximaes entre criao etraduo, desta feita a partir da poeta Ana Cristina Cesar.Guimares est interessada em entender as continuidadesentre traduo e criao potica. Ela quer observar comoo gesto tradutrio, para Ana C., uma continuao, ouum ponto de partida, da escrita potica, isto , como asvozes estrangeiras traduzidas por Ana C. repercutiram emsua prpria produo potica enquanto "intertexto".

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    Aqui serve de guia tambm a viso haroldiana da traduo como ato canibal de incorporao: a imitao torna-se usurpao, plagiotropia, semiose ilimitada, escrevia Haroldo. Mas Clarice Lispector, em suas reflexes sobre a traduo, tambm d pistas para Guimares entender a potica de Ana C. Afinal, para Clarice, traduo tanto um ato infinito (o que no deixa de remeter viso de Proust, da recordao como ato infinito) como tambm remete ao jogo cnico de mscaras: o tradutor, como o escritor, deve saber e poder trocar suas mscaras. A traduo seria tambm, recordo a partir de Paul e Man falando da autobiografia, prosopopeia, ou seja, jogo de mscaras, processo de dar vida ao outro, falar por e atravs desse outro: ventriloquia, escrita visceral. Guimares estuda o caso especfico da traduo do conto Bliss, de Katherine Mansfield, realizada por Ana C. Aqui vemos como essa traduo mantm um delicado equilbrio entre estrangeirizao e apropriao. Analisando criticamente a margem oposta dessa comemorao do hbrido, a contribuio de Regina Zilberman parte de um interessante paradoxo da nossa cultura das Letras brasileira. Tematizando a histria da literatura na sua tradio que remonta ao Iluminismo e sempre pagou dzimo ao nacionalismo, ela observa o seguinte: a posio que enfatiza a histria literria predomina em boa parte dos currculos de graduao, definindo-se pela nacionalidade do corpus literrio que aborda. Mas perde espao nos programas de ps-graduao, que privilegiam correntes associadas aos estudos comparados, culturais, ps-coloniais, de gnero ou de etnias, quando no so marcados por questionamentos vinculados filosofia, sociologia ou psicanlise. Essa esquizofrenia , de fato, caracterstica nossa. Ela reflete um conservadorismo e uma dificuldade de superar os paradigmas iluministas (repaginados pelo romantismo) e nacionalistas. A autora faz um exaustivo levantamento das histrias da literatura europeias e brasileiras e enfatiza a obra de Ferdinand Denis, Resumo de histria literria de de Portugal, seguido do Resumo de histria literria do Brasil , publicada em Paris em 1826. interessante observar como muitas das ideias (pertencentes a uma viso mais romntica, tradicional, eminentemente nacionalista) da obra de Denis, at hoje podem ser detectados em abordagens da nossa literatura, como o tema da cor local

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    na sua relao com o carter nacional. Essas ideias j haviam sido enfatizadas na primeira recepo, romntica, de Denis, como o caso que Zilberman cita, de Joaquim Norberto, em Modulaes poticas, que, entre outras prolas, arrola essa ontologia do prprio e da propriedade original pura: Sim, M. Ferdinand Denis tinha predito que o Brasil, que sentira a necessidade de adotar instituies diferentes das que lhe impusera a Europa, - que o Brasil conhecia tambm a necessidade de ir beber suas inspiraes poticas fonte que lhe verdadeiramente pertence. Essa ideia de pertencimento local, essa condenao ao que seria prprio at hoje o mote de muitas leituras interpretativas da literatura brasileira e tambm de muito do que escrito na chave da literatura neste pas. O artigo de Rosani Ursula Ketzer Umbach analisa de

    modo detido o tema das escritas de vida. Na primeira metade do trabalho, ela faz um levantamento dos estudos sobre o tema, destacando a tenso entre a noo estruturalista de morte do autor e a volta do autor e da referencialidade, capitaneada pelos estudos de testemunho e dos demais relatos advindos de situaes de violncia. Podemos deduzir de suas palavras que dos estudos da escrita de vida surgiram os estudos da escrita da sobrevivncia , lembrando que superstes tambm a figura da testemunha sobrevivente: ela a encarnao daquele que passou pela morte, que ao mesmo tempo necessita narr-la e sucumbe diante desse desafio. A segunda parte do estudo se dedica ao tema dos famosos dirios de Anne Frank. O impressionante nesse caso especfico justamente perceber como um dirio, que tratado por tericos da autobiografia como Philippe Lejeune como o grau zero da escrita factogrfica, e que Lejeune denomina de antifico, no caso do dirio de Anne Frank tem sido envolvido em uma srie de acusaes de manipulao e de falsificao da realidade, quer pela autora, quer pelos editores, a comear pelo pai de Anne Frank. O importante,a partir desse caso, notar como nos estudos de escritas de forte teor testemunhal o debate tradicional sobre a representao da histria pode ser deslocado para a questo dos limites da representao do trauma. Nessa perspectiva, podemos ainda ler muitos aspectos desse dirio ainda pouco iluminados.

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    Por fim, temos a contribuio de Slvio Augusto de Oliveira Holanda, que se debrua sobre a famosa narrativa de Sagarana , de Guimares Rosa, A hora e vez de Augusto Matraga. Sua leitura nos leva a reler em close reading o texto roseano, destacando a questo da violncia e as tenses do protagonista, que oscila entre a salvao e a tentao de se render lgica da vingana. Os estudos roseanos tm recebido uma srie de novas contribuies baseadas na introduo tanto de uma viso mais complexa do tema da violnica (que abordada a partir de autores como Rene Girard, de Freud, de Agamben, entre outros), como tambm, no caso de Slvio Augusto de Oliveira Holanda, de uma leitura antropolgica do texto de Rosa, inspirada em Roberto Da Matta. Assim a leitura de Rosa consegue romper criticamente com a priso terica de horizonte curto do regionalismo.

    Creio que essa apresentao j indica a riqueza e abertura desta reunio de ensaios. De algum modo ela um instantneo que registra o estado da arte de nossa disciplina. Digno de nota a forte presena dos estudos de traduo, area que tem se desenvolvido bastante na ltima dcada e meia e que tem aportado importantes contribuies para a Lieteratura Comparada de um modo geral.

  • 16

    Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias entre Llansol e Baudelaire

    lvaro Faleiros*

    RESUMO: O intuito deste artigo discutir a possibilidade do desenvolvimento de uma potica do traduzir que se debruce sobre a complexidade de alguns projetos tradutrios como o das tradues de Baudelaire feitas por Maria Gabriela Llansol. Para situar a discusso no contexto brasileiro, partimos de impasses colocados pelas poticas textuais hoje dominantes para, em seguida, por meio da noo de xamanismo transversal do antroplogo Eduardo Viveiros de Castro, propor instrumentos para interpretar essa complexidade em jogo. PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, antropologia, traduo, xamanismo, Baudelaire.

    RESUM: Au long de cet article on entame une discussion visant dvelopper une potique du traduire tourne vers la complexit de certains projets traductifs comme celui des traductions de Baudelaire faites par maria Gabriela Llansol. Pour situer la discussion, il a fallu dabord considrer certains impasses des potiques textuelles du traduire en vogue au Brsil pour, par la suite, partant de la notion de chamanisme transversale de lanthropologue Eduardo Viveiros de Castro, proposer des instruments pour linterprtation de cette complexit. MOTSCLS: littrature compare, anthropologie, traduction, chamanisme, Baudelaire.

    * Universidade de SoPaulo (USP)

    Como elaborar reflexo capaz de lidar com projetostradutrios nos quais os enunciados produzidos por aquele e por meio daquele que traduz criam uma complexa rede com as posies enunciativas que provm do texto fonte?

    Para parte daqueles que se interessam por traduo, a questo acima pode simplesmente ser

    evitada pelo estabelecimento de uma fronteira em que a a traduo se define por uma relao de identidade com o texto de partida. No caso, o parmetro para avaliar e validar uma traduo o seu grau de equivalncia em

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    relao ao texto de partida. A traduo com o mesmo valor, em geral, aquela que teria o mesmo contedo, ou, quando se trata de textos poticos (que nos interessam aqui), aqueles que por determinados critrios passariam a ter um grau maior de aderncia ao texto de partida.

    Impasses da equivalncia

    No Brasil, como apontamos em estudos anteriores (FALEIROS, 2012), h um conjunto importante de autores que desenvolvem abordagens nessa direo, como Mrio Laranjeira, por meio do conceito de significncia, Paulo Henriques Britto, por meio da noo de correspondncia, ou Paulo Vizioli que, por sua vez, desenvolve o termo re-criao. Essas abordagens, cada qual a sua maneira, propem um equilbrio dinmico entre a forma, o sentido e as caractersticas retricas do texto literrio e, desse modo, acabam apontando para a construo de uma identidade. Assim sendo, a presena de vozes estranhas ao texto fonte seria uma fonte de desequilbrio, pois significam uma intromisso; e, em princpio, um distanciamento em relao s caractersticas formais, semnticas ou retricas do texto de partida. Em seu artigo A traduo de poesia em lngua inglesa, Paulo Vizioli ilustra essa postura ao declarar...

    verdade que, s vezes, nos deparamos com tradues que, com justia (dependendo, claro, dos critrios adotados), so tidas pelos crticos como superiores aos prprios originais. E isso nos leva a concluir, numa contrapartida para a definio de Frost, que poesia tambm o que se ganha na traduo. Podemos dizer at que, de certa maneira, esse o conceito que muitos tradutores, em geral, poetas eles mesmos, parecem fazer do trabalho de verso. Para eles, o texto de partida somente um estmulo para a prpria inspirao; agem sobre ele com grande liberdade, atualizam-no, ajustam-noa seu mundo, amoldam-no sua sensibilidade. O resultado, mais que uma traduo, um poema original. Assim podemos considerar, por exemplo, as transposies que Salvatore Quasimodo fez dos lricos gregos, as famosas adaptaes de Ezra Pound e,

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 18

    talvez, em nosso pas, algumas das mais recentes tentativas de transcriao de Haroldo de Campos. (VIZIOLI, 1985, p.109-110).

    As hesitaes de um discurso pautado pela busca de relaes de identidade salta aos olhos nesse trecho de Vizioli. Primeiro, o autor comea chamando os resultados da reescrita em jogo de tradues e seus produtores de tradutores, para, na mesma frase, dizer que se trataria de verses. Em seguida, afirma que os tradutores atualizam o texto e o ajustam a seu mundo. No consigo imaginar traduo que, em alguma medida, no o faa; a diferena residindo numa questo de grau, cujo valor necessariamente marcado (historicamente, socialmente, ideologicamente, culturalmente, eticamente, esteticamente). Enfim, s ambguas aspas que envolvem os termos adaptaes e transcriaes (e que no se encontram nas transposies), soma-se o curioso pronome indefinido algumas que acompanha as mais recentes tentativas, isto , outras das tentativas de transcriao seriam, de fato, tradues? Quais seriam elas? Aquelas que melhor respeitassem a mtrica ou os eventuais esquemas rmicos? Aquelas que recuperassem as redes imagticas ou as caractersticas retricas do textos fonte?.

    Vizioli (1985, p.113-115), em seu texto, destaca primeiro o ritmo dizendo que no se pode aumentar arbitrariamente o nmero se slabas. Entretanto, como a lngua inglesa possui um nmero muito maior de monosslabos, e o tradutor deve se preocupar tambm com o aspecto semntico, ele fica nessa permanente necessidade de se escolher entre preservar o sentido em detrimento parcial do ritmo ou manter-se o ritmo, prejudicando um pouco o sentido. Entra-se, assim, numa espcie de matemtica potica que frequentemente se debate com outras questes retrico-formais. Por exemplo, em que medida, aumentar o nmero de slabas distanciaria formalmente o texto de sua forma equivalente no portugus, em outras palavras, em que medida pode se dizer que um dodecasslabo em portugus pode ser equivalente a um decasslabo em ingls? Eis o tipo de impasse que uma abordagem pautadapela equivalncia acaba produzindo.

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    As margens entre o que seria uma verso, uma adaptao ou uma traduo so tambm um impasse insolvel no interior de tal perspectiva. Se lemos a famosa quadra que abre o soneto Correspondances de Baudelaire:

    La Nature est un temple o des vivants piliers Laissent parfois sortir des confuses paroles;

    Lhomme y passe travers des forts de symboles Qui lobservent avec des regards familiers

    A Natureza um templo onde vivos pilares Deixam por vezes sair confusas palavras;

    L o homem passa atravs de florestas de smbolos Que o observam com olhares familiares.

    Se retomamos a mais reeditada traduo do poema no Brasil, leio:

    A Natureza um templo onde vivos pilares Deixam filtrar no raro inslitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. (BAUDELAIRE, 1985)

    Na primeira traduo no h aparentemente nada, ou quase nada, da mtrica e da rima do poema de Baudelaire, na segunda, a rima e a mtrica so impecveis. Mas, apesar do rigor formal, da equivalncia metro-rmica, retomando Vizioli h pouco citado, no seria possvel afirmar que, para Ivan Junqueira, o texto de partida somente um estmulo para a prpria inspirao? Que Junqueira age sobre ele com grande liberdade, atualiza-o, justa-o a seu mundo, amolda-o sua sensibilidade? No se trata de condenar o precioso trabalho de Junqueira, mas de apontar para o fato de que ele, ao traduzir Baudelaire, ou Vizioli ao, sistematicamente, transformar decasslabos ingleses em dodecasslabos, esto moldando o texto a sua sensibilidade, atribuindo-lhe valor; produzindo valncias,

    O que leio? Semanticamente, uma possibilidade :

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 20

    no necessariamente equivalncias. , inevitavelmente, um complexo enunciativo que entra em jogo, no qual o tradutor necessariamente atribui valor, faz escolhas e se situa diante do texto traduzido, acrescentando camadas interpretativas em funo do sistema de formas que adota. Esse breve exemplo ilustra a dificuldade de se

    estabelecer uma fronteira clara, quando se trata de reescrita potica, daquilo que seria traduo, adaptao ou imitao. Uma das dificuldades se deve ao fato de essas anlises terem dificuldade de lidar com a complexidade enunciativa que uma rescrita potica implica, levando, na maioria das vezes, a uma reduo dicotmica. Ou o tradutor consegue apagar-se e dar voz ao poema original, ou o tradutor se impe, desviando-se do original. Paulo Henriques Britto (2012, p.33) destaca que na problemtica distino entre a traduo literria e a criao literria existe uma extensa zona cinzenta, uma vez que, muitas vezes, o tradutor toma tantas liberdades em seu trabalho que a obra resultante pode e deve ser considerada um novo original. Chama ateno o fato de, segundo o prprio

    Britto, essa zona cinzenta ser extensa. Ou seja, encontra-se nela uma gama de possibilidades que, no limite, poderiam ir de casos como o de Ivan Junqueira rescrevendo Baudelaire, at a imitao de Homero por Virglio ou Joyce. Dentro desse amplo espectro, h casos interessantes, como, por exemplo, as tradues que a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol realizou de As Flores do Mal e Baudelaire. Nesse livro, publicado em edio bilngue, nota-se que boa parte dos poemas guarda alguma correspondncia visual com o texto de partida, com um mesmo nmero de estrofes e de versos, ainda que o metro e rima sejam raramente correspondentes. No possvel, aparentemente, depreender um projeto de traduo por parte de Llansol, pois, para cada texto baudelairiano, a poeta opta por um tipo de soluo.

    Em artigo publicado sobre a autora (FALEIROS, 2010a), notei, por exemplo, que, dentre os poemas traduzidos por Llansol, quatro Correspondances,

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    lIdal, A une passante, Les litanies de Satan foram apresentados pela prpria autora em duas verses. No poema Correspondances, que a primeira das "duplas"tradues", l-se, logo abaixo do ttulo [verso literal]. A segunda traduo, por sua vez, apresentada sem o ttulo e, acima dela, l-se [outra verso]. A primeira uma traduo semntica e, a segunda, uma retraduo cheia de deslocamentos (ver Anexo 01).

    Curioso que, se partssemos das definies, por exemplo, de Vizioli, nenhuma das duas corresponderia a uma traduo de fato . Numa entrevista concedida a Nbrega e Giani (1988), ele defende que existem trs tipos de traduo literria. Num dos extremos das trs haveria a traduo semntica, isto , a simples traduo do sentido das palavras. No outro extremo estaria a adaptao literria, atividade comum na Idade Mdia e no Renascimento como, por exemplo, as peas de Shakespeare ou as histrias de Chaucer. Vizioli observa que o resultado, muitas vezes de grande valor artstico, um poema totalmente novo e assinala que este tambm o caso das transcriaes que Haroldo de Campos fez de Goethe. O caminho do meio seria o que chama de re-criao, quando o tradutor procura, ao mesmo tempo, transpor o sentido global do texto e recriar as caractersticas sonoras do texto original. Os impasses desse tipo de postura, como vimos, no do conta da complexidade de uma proposta como a de Llansol. Em suas tradues, cada poema de Baudelaire implica uma, ou mais de uma, leitura, fazendo com que, por exemplo, o poema A une Charogne, traduzido por Um Corpo que apodrece, mimetize em sua forma a potica da decomposio ou com que o poema A une passante seja desmembrado em cenas, fazendo com que o leitor atente ais para cada detalhe que compe o instantneo. H tambm momentos em que Llansol opta por uma postura bem mais conservadora, como no poema Ao leitor, que abre o livro, e que ela traduz conservando as rimas, como se pode ler:

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 22

    Os alexandrinos perfeitos de Baudelaire so em parte desconstrudos, mas restam como ecos e a rima serve de armadura ao poema. Aparentemente, pois, tem-se a impresso de certa hesitao por parte da tradutora entre a adoo de um projeto em prosa e a manuteno das marcas formais. Ao me debruar uma primeira vez sobre essa complexidade, afirmei, informado por uma potica da identidade, que havia ficado com a sensao de que faltava a Llansol um projeto claro, pois ela ficava a meio caminho entre um Baudelaire mais prosaico e um Baudelaire mais clssico (FALEIROS, 2010a, p.120-121). Ainda em 2010, arrisquei uma segunda interpretao para o trabalho de Llansol, dessa vez mobilizando o conceito de reimaginao de Haroldo de Campos, reinterpretando-o (FALEIROS, 2010b). Essa reflexo, mesmo que lanasse luz sobre o complexo semitico em jogo nas reescritas de Llansol, no era capaz de acessar o imbricamento dos lugares de fala que seu projeto de reescrita produz. A sada para o impasse se deu, para mim, pela utilizao de um aparato conceitual da antropologia.

    O xamanismo transversal

    No artigo As flores de Llansol ou o poema contnuo (FALEIROS, 2014), desloco a discusso ao utilizar a noo de sacrifcio, interpretado como sistema de foras, conforme Eduardo Viveiro de Castro (2007). O ponto de partida foi a reinterpretao proposta pelo

    La sottise, l'erreur, le pch, la lsine, Occupent nos esprits et travaillent nos corps, Et nous alimentons nos aimables remords, Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

    A alma tomada por tolices e erros, no E pecados, que nos moldam os corpos, Alimentamos nossos queridos remorsos Como sem abrigos que estimam sua sujido

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    antroplogo dos conceitos de sacrifcio e de totemismo em Lvi-Strauss. Utilizando o aparato da lingustica, Viveiros de Castro (2007, p.89) comenta que o sacrifcio seria metonmico e o totemismo seria metafrico, sendo o primeiro um sistema tcnico de operaes, o segundo um sistema interpretativo de referncias, sendo assim, o primeiro da ordem da parole , o segundo, da langue . Ao desenvolver seus argumentos, Viveiros de Castro acrescenta que, diferentemente do totemismo, as transformaes sacrificiais.

    acionam relaes intensivas que modificam a natureza dos prprios termos, pois fazem passar algo entre eles: a transformao, aqui, menos uma permutao do que uma transduo (para usarmos o vocabulrio de Gilbert Simondon) ela lana mo de uma energtica do contnuo. Se o objetivo do totemismo estabelecer uma semelhana entre duas sries de diferenas dadas cada qual por seu lado, o propsito do sacrifcio diferenciar internamente dois polos pressupostos como auto-semelhantes, ao induzir/transduzir uma zona ou momento de indiscernibilidade.

    A passagem de Viveiros de Castro permitiu pensar (FALEIROS, 2014, p.137) o ato tradutrio de Llansol a partir de outra chave conceitual. Ao invs de tratar o poema como totem, ou seja, para retomar o prprio Viveiros de Castro, como um sistema de formas, concebi-o como sacrifcio, ou seja, como um sistema de foras. Assim, ao transduzir, ao induzir e diferenciar internamente dois polos, produzindo zonas e momentos de indiscernibilidade, como os deslocamentos da passante e do corpo que apodrece, compreendi que Llansol operava em continuidade metonmica, por dentro do poema. O resultado, por sua vez, seria que a tradutora, em sua reescrita, para alm da aparente descontinuidade, penetra nas entranhas do texto e, ondulatoriamente,

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 24

    lana mo de uma poderosa e concertante energtica do contnuo que reinstaura o sistema de foras que habita as Flores do Mal . Nessa anlise, contudo, no havia me dado conta do fato de que a dimenso sacrificial do ato no se contrapunha necessariamente dimenso totmica. Com efeito, a variao no modo de operar diante do texto faz com que Llansol ative o complexo envolvido na ao xamnica. Ou seja, ao analisar, nos estudos anteriores, por exemplo, o poema A une passante, concentrei-me nos processos envolvidos na reescrita cinematogrfica da segunda verso do poema e esqueci do fato de que havia tambm outra verso mais literal, assim como do fato de que as duas estavam acompanhadas do original. O mesmo vale para as reescritas do poema Correspondances, sobre a qual nos debruamos a seguir. Como comentamos acima, Llansol produz,

    na pgina dupla, uma triangulao entre o poema original e suas duas tradues. Na primeira delas, chamada de traduo literal pela prpria autora, l-se:

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    A literaridade da traduo, de fato, pode ser verificada na maioria dos versos da traduo. No h nada nela que se compare aos deslocamentos semnticos propostos por Ivan Junqueira, que transforma, por exemplo, as palavras confusas em inslitos enredos, ou ainda a floresta de smbolos em bosque de segredos. Entretanto, algumas escolhas j apontam para o processo de transformao em curso. No primeiro verso, uma simples inverso pilares vivos ao invs de vivos pilares evita uma rima, central na estruturao da

    La Nature est un temple o de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L'homme y passe travers des forts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers.

    Comme de longs chos qui de loin se confondent Dans une tnbreuse et profonde unit, Vaste comme la nuit et comme la clart, Les parfums, les couleurs et les sons se rpondent.

    II est des parfums frais comme des chairs d'enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

    Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

    A Natureza um templo de pilares vivos Que deixam, por vezes, sair palavras confusas, O homem por a passa, atravs de florestas de smbolos Que o observam com olhares familiares.

    Como longos ecos que, de longe, se confundem Numa tenebrosa e profunda unidade Vasta como a noite e como a claridade Os perfumes e as cores e os sons se respondem.

    Ele h os perfumes frescos como pele de criana. Doces obos e verdes como as pradarias ___ E outros corruptos, vivos e triunfantes.

    Contendo em expanso quimeras infinitas Como o mbar, o almscar, o benjoim e o incenso Que cantam o transporte do esprito e dos sentidos.

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 26

    estrofe de Baudelaire, com o verso conclusivo olhares familiares. Seu intuito seria deixar as palavras mais confusas? A confuso atinge, na traduo, a prpria organizao da primeira sentena, uma vez que, ao invs de optar por A Natureza um templo onde vivos pilares / Deixam por vezes sair palavras confusas;, Llansol produz uma mudana na sintaxe A Natureza um templo de pilares vivos / Que deixam, por vezes, sair palavras confusas ; mudana que atinge tambm a pontuao, provocando no leitor, inclusive, um estranhamento visual pelo modo como, no primeiro terceto, desenha o travesso. Modo este que se multiplica na outra verso que comentaremos mais adiante. O primeiro terceto, alis, na traduo, inicia-se como uma estrutura sinttica bizarra Ele h. A opo aqui por uma estrutura agramatical para traduzir a frmula impessoal de uso corrente il est, que literalmente significa simplesmente h. Nota-se, assim, a mobilizao do que chamei acima de sistema de foras contido na prpria imagtica do poema, isto , ao torcer a sintaxe em sua reescrita, Llansol faz com que o prprio poema performe a confuso das palavras, potencializando a confuso de ecos e expandindo as coisas infinitas (choses infinies). No parece acaso o fato de choses (coisas) ser o nico substantivo em todo o poema a no corresponder literalmente ao do poema de Baudelaire ao transformar a coisa em quimera a tradutora radicaliza o carter etreo das imagens, dissipando no ar seus cheiros. Ao longo desse gradual processo de apropriao, Llansol, contudo, no perde de vista o poema baudelariano. Ela move-se por dentro dele, tencionando, em sua traduo, tambm a forma do poema, pois, mesmo que no conserve mtrica e rima, a mancha do texto na pgina remete claramente ao soneto, tendncia formal que, alis, se radicaliza na outra verso, como se pode notar:

  • 27 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014

    Essa segunda verso atua na lgica do contnuo, mas por meio de um complexo movimento. possvel, sim, identificar claramente que se trata de uma reescrita do poema Correspondances de Baudelaire. A prpria forma soneto se impe de modo mais evidente do que na verso anterior, ainda que as rimas e a mtrica no equivalham formalmente ao poema de Baudelaire. O mesmo vale para um conjunto relevante de imagens as colunas, as palavras confusas, a floresta de smbolos, a confuso dos ecos, as correspondncias entre sons cores e odores, os perfumes, a pele das crianas, os obos E mesmo que a sintaxe opere de modo bastante distinto na traduo de Llansol, esse deslocamento retoma, em grande medida, as imagens centrais do poema.

    La Nature est un temple o de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L'homme y passe travers des forts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers. Comme de longs chos qui de loin se confondent Dans une tnbreuse et profonde unit, Vaste comme la nuit et comme la clart, Les parfums, les couleurs et les sons se rpondent.

    II est des parfums frais comme des chairs d'enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

    A Paisagem um Alpendre de colunas vivas Que soltam palavras confusas, mas nem sempre, Florestas de smbolos com olhos compacientes Observam o humano que por ali transita.

    Em ondas longas de ecos que se confundem distncia dum tenebroso e profundo H___ Vasto como a noite de uma imensa claridade___ Sons cores odores mutuamente sintonizam. Os perfumes, por exemplo. H-os inocentes Verde folha pele de menina com macios de obo ___ E outros h, sabidos, triunfantes e perversos

    Contendo em expanso quimeras infinitas Que celebram o esprito transeunte dos sentidos, Como o mbar, o incenso, o benjoim e outros ainda.

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 28

    Algumas escolhas, contudo, produzem deslocamentos semnticos importantes a Natureza torna-se Paisagem, assim como o Templo passa a ser Alpendre, num processo evidente de dessacralizao do lugar, dando-lhe mais concretude. O que se verifica, pois, a radicalizao do processo iniciado na dita verso literal, uma vez que, por exemplo, as coisas seguiram sendo quimeras O sonho em Llansol no , contudo, devaneio ou evaso, ele adere ao mundo sensvel, como se pode notar tambm no idiossincrtico uso do verbo haver. Na traduo de une tnbreuse et profonde unit por um tenebroso e profundo H___, o que se nota que a observao da paisagem em Llansol, diferentemente observao da natureza em Baudelaire, no permite uma profunda unidade, mas uma existncia, uma unidade que da ordem da experincia, e no de algum conceito abstrato de unidade. A outra verso retoma, assim, tanto imagens centrais que organizam o discurso Baudelariano, quanto potencializa enrgicas latentes no texto que j haviam sido mobilizadas na verso literal, presentificando-as, e fazendo com que a leitura seja necessariamente concertante, articulando, no mnimo, os trs textos. Uma anlise isolada dessa outra traduo, acompanhada, por exemplo, de uma comparao com a traduo de Ivan Junqueira, poderia levar a crer que se trata de mais uma traduo do poema, cujo valor esttico poderia ser medido por uma maior ou menor correspondncia em relao ao nmero e slabas, de recorrncias rmicas etc. A anlise at poderia se sofisticar e partir para a comparao do grau de alterao semntica entre as tradues e o original. Estaramos diante de questes como: mais grave transformar a Natureza em Paisagem ou a Floresta de smbolos em Bosque de segredos? Mergulharamos, novamente, na lgica do sacrifcio (das perdas), que em nada se confunde com a dinmica sacrificial aqui exposta. Uma anlise por meio do xamanismo transversal leva a outros caminhos que, em algum ponto, at podem retomar essa questo. Para embrenharmo-nos por essas sendas importante

    esclarecer o que entendemos aqui por ao xamnica. Renato Sztutman (2005, p.154), por exemplo, lembra que

  • 29 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014

    que o xamanismo no pode ser reduzido a uma instituio propriamente dita, tampouco a faculdades de certos indivduos excepcionais, pois, prossegue Sztutman, o xamanismo consiste mais num sistema de pensamento e ao, num sistema de comunicao e mediao. Esse sistema de comunicao e de mediao produz uma srie de operaes descritas por Viveiros de Castro (2007,p.102) da seguinte maneira

    As operaes xamnicas, se no se deixam reduzir a um jogo simblico de classificaes totmicas, tampouco so da mesma espcie que o contnuo fusional perseguido pelas interserialidades imaginrias do sacrifcio. Elas exemplificam uma terceira forma de relao, a comunicao entre termos heterogneos

    A heterogeneidade dos termos faz com que o sistema esteja em desequilbrio perptuo. O que est, pois, em jogo, explica Viveiros de Castro (ibidem), que as diferenas de potencial transformativo entre os seres so a razo de ser do xamanismo. O potencial transformativo produz, prossegue o antroplogo, uma sntese disjuntiva, da a transversalidade, ou ainda, a produo de uma conexo parcial. As Correspondncias provocadas pelas tradues de

    Llansol so dessa ordem. No caso especfico desse poema, ela identifica claramente matrizes significantes da correspondncia, a saber, a floresta de smbolos, as palavras confusas, o modo como ecoam, se respondem e se confundem perfumes, imagens e sons Em seu projeto de reescrita, primeiramente, as coisas passam a operar na lgica do onrico (quimeras) para, em seguida, formular um outro patamar de correspondncia, que a interpretao da Natureza como Paisagem" e do Templo como Alpendre. As implicaes desse tipo de sntese disjuntiva so distintas da transformao da floresta de smbolos em bosque de segredos. No caso de Junqueira, as razes de suas transformaes so evidentemente exteriores imagtica do poema de Baudelaire, uma vez que, ao invs de potencializar alguma energtica do texto, produzem uma

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 30

    horizontalidade esvaziada, uma vez que o deslocamento do smbolo imagem estruturante do poema projetado para a esfera do segredo aparentemente com o simples intuito de produzir uma singular rima perfeita. Enfim, em Llansol, a correspondncia pode ser

    entendida como a prpria razo de ser do desdobramento das tradues, sobretudo se levarmos em conta o fato de que este um dos primeiros poemas do livro de Baudelaire, livro traduzido na ntegra por Llansol. Este tambm um dos poemas-chave da prpria potica baudelariana e um dos poemas centrais na construo da potica simbolista posterior. Desse modo, ao lanar mo da multiplicao das tradues num mesmo volume, escolhendo esse poema como o primeiro a multiplicar-se, Llansol produz uma forma de relao que se aparenta s operaes xamnicas descritas por Viveiros de Castro por sua heterogeneidade e transversalidade; aqui entendidas como sntese disjuntiva em desequilbrio perptuo entre os sistemas de foras e sistemas de formas em que se articula. O resultado essa ao que comunica e medeia uma relao, na qual a matriz, que o prprio jogo das correspondncias, ativado, ecoando, em sintonia, distintas frequncias.

  • 31 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014

    ANEXOS 01

  • Traduo potica e xamanismo transversal: correspondncias... 32

    Referncias

    BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal. Traduo de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. _______. As Flores do mal. Traduo Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relgio dgua, 2003. BRITTO, Paulo Henriques. A traduo literria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2012. FALEIROS, lvaro. Maria Gabriela Llansol retradutora de Charles Baudelaire. Florianpolis, Cadernos de Traduo XXV, 2010a. _______. Na esfera da reimaginao. So Paulo, Cadernos de Literatura em Traduo 11, 2010b. _______. Traduzir o poema. So Paulo: Ateli, 2012. _______. As flores de Llansol ou o poema contnuo. In: Maria Carolina Fenati (org.). A partilha do incomum. Florianpolis: Edufsc, 2014. NBREGA, Thelma Mdice et Giana GIANI. Haroldo de Campos, Jos Paulo Paes e Paulo Vizioli falam sobre traduo. Trabalhos de Lingstica Aplicada, 11, 1988. SZTUTMAN, Renato. "Sobre a ao xamnica". In: Dominique Tilkin Gallois. (Org.). Redes de relaes nas Guianas. So Paulo: Humanitas/NHII, 2005. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Xamanismo transversal, Lvi-Strauss e a cosmopoltica amaznica. In: Rubem Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre (org). Lvi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: UFMG, 2007. VIZIOLI, Paulo. A traduo de poesia em lngua inglesa. Traduo & Comunicao, 2, p. 109-128, 1985.

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    Ecos do simbolismo-decadentismo no dirio carioca o Pas (1890-1892)

    Alvaro Santos Simes Junior

    RESUMO: A respeito da literatura europeia coetnea, os jornais brasileiros do final do sculo XIX traziam notcias e artigos diversos, assinados algumas vezes por correspondentes estabelecidos no Velho Continente, brasileiros ou estrangeiros. No jornal dirio O Pas, destacavam-se as colaboraes dos portugueses Pinheiro Chagas e Xavier de Carvalho, que em seus textos opinaram sobre o decadentismo-simbolismo portugus. A documentao recolhida na coleo do citado peridico, correspondente ao perodo de 1890 a 1892, permite vislumbrar como se deu no Brasil a divulgao e assimilao das novidades literrias europeias nos anos imediatamente anteriores publicao de Missal e Broquis, obras simbolistas de Cruz e Sousa, e possibilita tambm conhecer-se o choque geracional entre os novos, simpticos ao decadentismo-simbolismo, e os carraas, escritores de reputao consolidada e prximos do naturalismo e/ou do parnasianismo. PALAVRAS-CHAVE: Decadentismo; simbolismo; crtica literria, peridicos, O Pas.

    ABSTRACT: About the coeval European literature, there were in Brazilian newspapers at the end of the nineteenth century news and reviews, sometimes signed by Brazilian or foreign correspondents established in the Old Continent. In the daily newspaper O Pas , the collaboration of the Portuguese writers Pinheiro Chagas and Xavier de Carvalho had acquired great importance; they evaluated in his writings the Portuguese decadentism-symbolism. The documentation collected in the collection of the said journal, corresponding to the period from 1890 to 1892, provides a glimpse into what happened in dissemination and assimilation of European literary innovations in the years immediately preceding the publication of Missal and Broquis, symbolist works of Cruz e Sousa. The same texts allows one to know the generational clash between the new, friendly to decadentism-symbolism, and the olds, that had established reputation as writers and were next of naturalism and Parnassianism. KEYWORDS: Decadentism; symbolism; literary criticism, periodicals, O Pas.

    UNESP (Assis)/CNPq/FAPESP

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    Introduo

    Apresentam-se aqui resultados parciais de uma investigao a respeito da repercusso no Brasil do movimento decadentista-simbolista portugus, que, de 1890 a 1893, tornou-se assunto recorrente da imprensa peridica portuguesa.1 Pressupe-se que jornais e revistas da cidade do Rio de Janeiro, principal centro cultural do Brasil no final do sculo XIX, habitado por uma numerosa e influente colnia lusitana, no ficaram indiferentes novidade propalada, positiva ou negativamente, pela imprensa de Portugal. Justamente nesse perodo, Cruz e Sousa, primeiro simbolista brasileiro, preparava a publicao de Missal e Broquis, obras que saram luz em 1893. Reveste-se, portanto, de algum interesse examinar o posicionamento dos peridicos brasileiros quanto ao decadentismo-simbolismo.Nestas poucas pginas, analisam-se notcias, resenhas e crnicas literrias do matutino O Pas publicadas de 1890 a 1892.

    A Polmica dos novos

    Na dcada de 1890, um dos primeiros indcios de esforos para a renovao da literatura brasileira foi a polmica dos novos, que se reuniram nas redaes dos jornais Folha Popular, Novidades e Cidade do Rio e passaram a desafiar os escritores consagrados. Em O Pas, o primeiro a pronunciar-se sobre o grupo foi o humorista Busca-P (pseudnimo de Oscar Guanabarino), que em 9 de outubro de 1890 se referiu aos novos como uma pliade de gnios que no tm nomes por modstia, mas que meteram num chinelo Gonalves Dias, Alencar e outros idiotas que escreviam, verdade, mas que eram literatos que no sabiam escolher uma gravata nem deitar elegncia pela rua do Ouvidor (BUSCA-P, 9 out. 1890,p.1).

    Oscar Rosas, um dos mais atuantes dos novos , suscitou muita indignao ao criticar a terceira parte de um longo artigo que Slvio Romero vinha publicando na Gazeta de Notcias sobre A poesia brasileira contempornea. O objetivo do consagrado historiador da literatura brasileira

    ________________

    1 Com bolsa de ps-doutoramento da CAPES, realizou-se de setembro de 2010 a fevereiro de 2011 na Biblioteca Nacional, na Hemeroteca Municipal de Lisboa e outras instituies portuguesas grande levantamento acerca de notcias, resenhas, ensaios, caricaturas etc. acerca dos livros decadentistas simbolistas.

  • Ecos do simbolismo-decadentismo no dirio carioca o Pas.... 35

    seria o de definir o novo lirismo, ento representado no Brasil por Lus Murat e Olavo Bilac. Antes de debruar-se efetivamente sobre a obra desses poetas, Romero combateu em seu texto, publicado em 8 de outubro de 1890, a instrumentalizao da arte, isto , sua sujeio a teorias ou doutrinas polticas, religiosas ou filosficas. Seguindo a tendncia geral da arte, a nova lrica nacional no almejava ser doutrinria, nem moralizante (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1).

    Na Cidade do Rio , dirigida por Jos do Patrocnio, Oscar Rosas publicou em 9 de outubro de 1890 o artigo Velhos em que classificou de inutilidade crtica o artigo de Romero, a quem considerava ironicamente um bom pai de famlia, metido a sebo de falar de arte com uma esttica duvidosa, a Castilho, a Tobias Barreto. Rebaixando de tal forma o seu antagonista, Oscar Rosas no iria eximir-se de zombar de uma flagrante tautologia encontrada no texto que examinava: Como definio e arte, o Sr. Slvio d esta: Arte a arte , o que magnfico (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1). Sem deter-se longamente na anlise dos argumentos de Romero, o colaborador da Cidade do Rio condenou peremptoriamente o trabalho divulgado pela Gazeta de Notcias :

    ... nunca, at hoje, produziu [Romero] artigo que tanto desacreditasse um diletante de letras, um bom professor honesto, como esse que, ontem, sem estilo, sem forma e sem cousa alguma de equilbrio mental, injustamente, nos vem falar destas cousas. (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1)

    Em suas crticas ao medalho , o novo Oscar Rosas atribuiu os supostos equvocos de Romero tanto a inconscincia , por ser este vtima de leituras desencontradas feitas sem orientao, quanto a m-f : o homem falsificado, tanto em filosofia como em arte, cousa de que no entente, porque no a exerce e nunca provou conhec-la (ROSAS, 9 out. 1890, p. 1).

    A virulncia de Oscar Rosas em suas crticas pode parecer ratuita, mas Romero tinha espalhado em seu texto da Gazeta de Notcias algumas carapuas que bem poderiam servir para o novo jornalista. O crtico sergipano havia

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    mencionado os mirmides2 do Brasil, pobres medocres de inteligncia e de cultura, que s acreditam nos fatos e nas ideias quando se lhes atiram em cima palavras de escritores estrangeiros, e tambm os pacotilheiros de sensaborias que poderiam julgar a poesia como essencialmente doutrinria e moralizante. Romero atribua a estes as sovadas ideias na parvoeira da prosa potica ou nas intrujices da poesia prosaica (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1). Sendo muitos dos novos admiradores fervorosos dos poetas e tericos franceses daquele tempo (Mallarm, Verlaine, Moras, Gustave Khan, Ren Ghil etc.) e apreciadores ou mesmo cultivadores da prosa potica, uma das principais novidades introduzidas pelos decadentistas-simbolistas, a irreverncia do historiador da literatura brasileira deve ter desagradado profundamente Oscar Rosas e alguns de seus amigos. Em O Pas, na edio de 11 de outubro, Busca-P (pseudnimo de Oscar Guanabarino), com ironia, deu razo ao panfletrio da Cidade do Rio, subscrevendo suas crticas a Slvio Romero: no presta para nada, no sabe nada, no tem talento, no usa gravata chic, no tem elegncia, no digere o que l, no sabe o que diz, e no diz o que sabe. Sabia-se de antemo que o humorista tinha o crtico sergipano em alta conta e, com sua ironia, apenas evidenciava o despropsito do novo ao critic-lo. No casual, por isso, que Busca-P no mesmo texto questionasse Oscar Rosas a respeito do catlogo das produes dos novos (BUSCA-P, 11 out. 1890, p. 1), pois estes nada de significativo haviam publicado at ento, ao contrrio do que ocorria com o prolfico historiador da literatura brasileira.

    Em uma deciso inusitada, Oscar Rosas deu continuidade s suas crticas ao artigo de Slvio Romero em outro peridico, o vespertino Novidades. Tendo o crtico sergipano definido a arte como uma planta que brota em um terreno diverso daquele em que frutificam a virtude e o vcio, e planta que morre logo que querem mud-la para outro stio (ROMERO, 8 out. 1890, p. 1), Rosas pde dar-se o prazer de considerar tal definio pura retrica melosa de paspalhice e toleima. Treze anos mais novo do que o medalho da crtica nacional, o cronista das Novidades julgou-se apto e no direito de dar conselhos ao seu antagonista, insinuando mais uma vez que este era estranho ao mundo da arte:

    ___________2Ajudantes de cozinha.

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    Olhe, um homem que fiscal de bancos, professor, que tem de almoar, jantar e ceiar, que pratica a higiene e mais algumas necessidades da civilizao, que tem amigos a visitar, compras a fazer, etc., etc., perdoe-me Dr., no tem tempo de fazer arte, de cuidar dela e quem no faz isto no tem a sua amizade, no a entende.

    [...] o dr. Slvio deve lanar a vaidade pela porta a fora [sic] e tratar de ser um bom fiscal, seno nem uma nem outra cousa. (ROSAS, 11 out. 1890, p. 2)

    A irreverncia de Oscar Rosas desagradou tambm a Joo Ribeiro, cronista semanal de O Pas, que afetou no dar importncia s suas crticas: Esse diabo de novo sem ortografia e sem as suas primeiras letras conscientemente estudadas um dos melhores da legio, mas... nem mesmo entende o que l (RIBEIRO, 12 out. 1890, p. 1). Na sequncia da crnica, Ribeiro apresentou argumentos que comprovariam sua assero. A polmica dos novos ainda iria suscitar muitos comentrios e intervenes dos colaboradores dos peridicos cariocas. Nesse momento em que uma nova gerao procurava afirmar-se contra os escritores consagrados, Valentim Magalhes emitiu em O Pas um sinal de alarma contra uma suposta decadncia das letras nacionais: No surgem novos escritores e os antigos, isto , os que j estavam, vo perdendo a fora e o brilho, a prpria voz. Na opinio do crtico, Machado de Assis estava quase mudo, Olavo Bilac apenas passeava a sua elegante nostalgia no boulevard, deixando fechado o seu escrnio oriental, e Alusio Azevedo havia adormecido no Cortio. As causas, em sua opinio, seriam essencialmente duas: o aumento em nmero e formato dos jornais, que ocupavam os raros e curtos lugares deixados pela struggle for life para leitura de volumes, e o conturbado contexto do Encilhamento: a febre do dinheiro, a carestia da vida, a despreocupao das coisas da arte e a preocupao das da bolsa por parte do pblico produziram a baixa na procura e, portanto, na produo. Via-se logo que o crtico no julgava ser possvel depositar esperanas de regenerao nos chamados novos, haja vista que, em sua opinio, jamais se vira mort-nes mais lamentveis, gorados nos

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    respectivos ovos logo aps as primeiras e atrevidas bicadas na casca. Sendo assim, Magalhes convocava reao os chefes ilustres que a imprensa coroa[va], reverente e ofuscada, os gloriosos generais da nossa literatura (MAGALHES, 25 jun. 1891, p. 1). Ou seja, contava com os carraas.

    O alarmismo de Valentim Magalhes no ficou sem resposta e, assim, em 2 de julho de 1891, o crtico voltou s pginas de O Pas, para justificar-se diante dos que contestaram os argumentos de seu artigo sobre a Decadncia literria. A primeira contestao que rebateu dizia respeito possibilidade de ser a imprensa peridica veculo legtimo e eficaz da literatura. Para Valentim Magalhes, porm, no haveria literatura sem livros, porque no se escrevem obras de flego e valor para terem a durao de uma gazetilha, para desaparecerem juntamente com as folhas que as publicassem. Em sua opinio, jornais e revistas seriam de incmoda leitura e no chegariam s camadas populares. No Brasil, com exceo de alguns contos e rarssimos romances e apesar da contribuio de jornais como O Pas, Gazeta de Notcias e Correio do Povo, a literatura veiculada por peridicos ficava reduzida a ligeiros artiguetes escritos sobre a perna para as sees fixas das folhas. O segundo argumento de seus contestadores, que diziam estar a caminho uma deslumbrante inundao de obras-primas, Magalhes destruiu com ironia, observando simplesmente que tal produo ainda estava nas nebulosas regies do incriado e apenas poderia entrar na ordem das possibilidades. Para o crtico, essa crena em promessas de obras-primas que nunca aparecem e as doces esperanas de escritores de gnio estavam associadas a uma ingenuidade cabocla. Por fim, Magalhes acrescentou duas causas para a decadncia literria no mencionadas no artigo anterior: falta de educao do povo e carncia de regulamentao dos direitos autorais (MAGALHES, 2 jul. 1891, p. 2). Observe-se que os argumentos de Valentim Magalhes atingiam a maioria dos novos, que, ainda inditos em volume, vinham publicando suas produes em peridicos.

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    Xavier de Carvalho

    Papel importante na difuso das ideias e obras decadentistas-simbolistas foi exercido pelos diversos correspondentes estrangeiros dos peridicos cariocas, que procuravam colocar seus leitores brasileiros a par do que se passava na Europa. Para O Pas , Xavier de Carvalho enviava a sua Carta parisiense, onde sempre havia referncias literatura francesa e, eventualmente, portuguesa. O cronista no primava pela modstia e no escondia ser amigo de escritores decadentes e de Lon Vanier, que informava ser o editor de todas as refinadas elegncias da prosa e do verso moderno (CARVALHO, 18 set. 1891, p. 2).

    Ao noticiar a iminente publicao, pela casa editora de Vanier, de Mes hpitaux , de Paul Verlaine, Carvalho descreveu para seus leitores cariocas o hotel meio borgne em que habitava o poeta francs e narrou-lhes em primeira mo anedotas que ouvira do prprio autor da Sagesse , com quem almoara poucos dias antes e que lhe narrara episdios de sua existncia picaresca (CARVALHO, 8 jul. 1891, p. 2).

    Ao tratar da maior inundao, nas livrarias parisienses, de versos simblicos e decadistas, Xavier de Carvalho disse ao leitores de O Pas que costumava apreciar os novos livros, como um aperitivo, s margens verdes do Sena, de papo para o ar, acompanhando o movimento dos barcos (CARVALHO, 25 set. 1891, p. 2). A despeito desse seu evidente esnobismo, - ou justamente por causa dele, o cronista portugus no deixava de noticiar a publicao de livros de simblicos como Albert Saint Paul (CARVALHO, 25 jun. 1891, p. 2), de romanos como Chales Maurras (CARVALHO, 18 set. 1891, p. 2) e de neocatlicos como Laurent Tailhade, Luis le Cardonnel e Charles Morice (CARVALHO, 25 set. 1891, p. 2).

    Em 20 de julho de 1891, ao tratar dos livros novos no fragmento final de sua crnica, o correspondente estrangeiro noticiou a publicao das Poesias, de Alberto de Oliveira, cujo ttulo trocou por Versos de Alberto de Oliveira, e entrou a dissertar sobre a literatura contempornea de Portugal. Do livro, disse possuir

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    impresso magnfica e conter duas gravuras admirveis. Em sua opinio, em Paris no se faria uma edio superior a esta. As consideraes de Xavier de Carvalho sobre os poemas propriamente ditos no foram alm da generalidade de dizer que as rimas tilinta[va]m numa guizalhada satnica, entre o explosir [sic] de mil auroras sob um cu de morango maduro. Havia mais preciso em sua observao de que os admirveis versos do livro seriam de uma fatura toda moderna, como os versos de [Francis Viel-]Griffin e de muitos dos novos decadistas (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). Em sua crnica, Carvalho tambm destacou o fato de que a segunda parte do livro, Pores de sol, era dedicada a Antonio Nobre. Essa meno forneceu-lhe o pretexto para tratar da nova gerao de poetas e prosadores surgida em Coimbra e no Porto, de cujos membros muitos haveriam de vingar, caso no se esterilizassem no caf Suo e no Camanho, entre a intriguinha barata e o elogio mtuo. Alberto de Oliveira estaria fadado ao sucesso e constitua com seu amigo Nobre e Alberto Osrio de Castro, Agostinho de Campos, Oliveira Alvarenga, Eugnio de Castro, Antnio de Oliveira Soares e Raul Brando a falange que deveria triunfar sobre a esterilidade do meio literrio lisboeta. Tal florao no era casual, pois fora no norte que se robusteceram quase todos os grandes mestres da moderna literatura portuguesa como, em sua opinio, Antero de Quental e Tefilo Braga (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). Em breve considerao formal sobre as Poesias, de

    Alberto de Oliveira, o corresponde estrangeiro notou queo jovem poeta portugus adotara os alexandrinos com cesuras na quarta e oitava slabas poticas, que eram ento muito usados pela modernssima gerao lrica francesa, sobretudo pelos poetas de Bruxelas. Carvalho confessou que, em seus ouvidos acostumados ao alexandrino tradicional, composto de dois hemistquios, os novos soavam sem harmonia. Reconheceu, no entanto, com boa vontade, que era apenas questo de habituar o ouvido nova cadncia (CARVALHO, 20 jul. 1891, p. 2). O minucioso e equilibrado relato sobre o decadentismo-simbolismo portugus e a amizade com o editor Vanier e escritores modernos como Verlaine poderiam fazer supor

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    que Xavier de Carvalho fosse admirador e defensor intransigente das novidades literrias europeias. No entanto, suas restries a elas ficaram evidentes quando tratou de um suposto krack do livro, que a imprensa parisiense havia colocado na ordem do dia. Se havia tal crise, ela no podia, em sua opinio, ser atribuda ao fastio do pblico para com a literatura demasiadamente doutrinria ou liquidao do realismo.

    Segundo Carvalho, um dos fatores poderia ser a concorrncia dos gabinetes de leitura, que facilitavam e barateavam o acesso s publicaes. Outro talvez fosse o excesso de oferta, pois todos os rapazes de 20 a 25anos, educados pela bomia do bairro latino e pelossmbolos decadistas, publicavam um volume porano. Eram muitos escritores novos e muitos imortaisde pacotilha:

    Ele o imortal Jean Moras, hoje descrente do simbolismo e guindado a patriarca da escola romana; ele o imortal Ren Ghil, o chefe dos instrumentistas-evolutivos, descobridor do decadismo em Portugal; ele o imortal Albert Saint-Pol-le-Magnifique, simbolista dequatro costados.

    O grande pblico, porm, mantinha-se afastado deles, pois no os conhecia nem compreendia deliquescncias e nevroses. Como Paul Bourget, Guy de Maupassant, Mirbeau e Mlvier vendiam bem e Zola continuava a desfrutar de uma popularidade extraordinria, krack, se havia, era o das publicaes decadistas, dos romances sem miolo, dos livros pessimistas (CARVALHO, 22 out. 1891, p. 2).

    Pinheiro Chagas

    Um dos mais acatados correspondentes estrangeiros da imprensa carioca era certamente Pinheiro Chagas, ex-ministro, deputado, literato e jornalista portugus. Para O Pas , escreveu dois artigos em que zombou dos dois principais representantes da nova gerao de poetas

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    portugueses, isto , Eugnio de Castro e Antno Nobre. O artigo em que tratou do autor de oaristos (1890) e Horas (1891) recebeu o ttulo de Os nefelibatas, termo com que a imprensa portuguesa ento se referia pejorativamente aos jovens poetas, embora houvesse figurado, como um cartel de desafio, no prefcio das Horas , no qual Castro se atribura um nobre e altivo desdm de nefelibata (CASTRO, 1891, p. VI). Pinheiro Chagas criticou-lhe as pretenses de fundar-se uma escola potica e imporem-se regras de composio (CHAGAS, 9 jan. 1892, p. 1). Quanto ao poeta do S , ridicularizou sua artificiosa ingenuidade ou simplicidade, mas reconheceu seu talento e sua capacidade de forjar imagens belssimas e originais (CHAGAS, 19 jul. 1892, p. 1). Ambos os artigos foram republicados com intervalos menores do que um ms no Correio da Manh , de Lisboa, peridico que era dirigido pelo prprio Pinheiro Chagas. Antes de ocorrerem essas publicaes, os textos j haviam suscitado polmica em Portugal graas a nmeros do carioca O Pas que atravessaram o Atlntico e em virtude de transcries parciais realizadas por outros peridicos portugueses. Pode-se presumir que a publicao integral dos artigos era aguardada com certa ansiedade pelo pblico de Portugal.

    Em O Pas , edio de 16 de agosto de 1892, Pinheiro Chagas tambm publicou sobre Os simples , de Guerra Junqueiro, um artigo que se compunha de uma transcrio de breve resenha j publicada anonimamente no citado dirio lisboeta em 3 de junho e de novas consideraes sobre o livro. Na primeira parte, divulgada previamente em Portugal, havia breves consideraes sobre vrios poemas do livro, mesclando-se elogios e reparos crticos. Embora reconhecesse que Os simples possuam pginas verdadeiramente admirveis, Chagas comeava por observar que s vezes fatigava um pouco a repetio quase incessante do mesmo ritmo. Depois de dizer que se entusiasmara com o poema Preldio, afirmou que Junqueiro quis, com A moleirinha, provar que, ao fazer nefelibatismo, o fazia melhor que todos os outros juntos. Deste poema, cita versos em que se atribuem pensamentos a um burrico, para quem as estrelas eram

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    milho loiro e a lua, m de jaspe. O trecho suscita comentrio sarcstico de Chagas:

    O Sr. Eugnio de Castro fez da lua peneira, o Sr. Antnio Nobre leiteira, o Sr. Guerra Junqueiro m de moinho. A noite para o Sr. Eugnio de Castro padeira, para o Sr. Antnio Nobre dona de uma vacaria, para o Sr. Guerra Junqueiro moleira. / Pobre noite! E pobre lua! Caram em boas mos! (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1)

    Se para o correspondente estrangeiro do matutino carioca O Pas o poema O cadver era admirvel, Ermidas, encantador, e O pastor, uma obra-prima,o Campo santo no passava de uma estopada. J O cavador, que considerava uma poesia dilacerante de tom, ficaria prejudicado pelo cansao proporcionado pelo dobre de sinos constante do restante do livro. Para Chagas, o poema Eplogo seria soberbssimo; deletranscreveu uma estrofe que o teria feito correr as lgrimas de um modo irresistvel (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1).

    Na continuao escrita apenas para seus leitores brasileiros, o cronista desenvolveu um pouco mais a comparao entre o Preldio, poema de abertura, e o Eplogo. Chagas condenou a soluo alegrica adotada para o primeiro, empregando o seguinte argumento:

    ... quando um poeta de gabinete, um pico erudito, ainda que se chame Virglio, comea a fazer esforos para criar alegorias, para transformar em entes que a sua fantasia laboriosamente fabrica os seres da vida real, os sentimentos da sua alma, nada h mais fatigador e mais fastidioso. (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1

    Aps prever que Junqueiro ainda seria reconhecido como um dos grandes poetas portugueses do sculo XIX, que de A morte de D. Joo e A velhice do Padre Eterno sobreviveriam largos trechos do naufrgio do conjunto e que de A musa em frias e Os simples seria extrada uma seleta destinada a encantar os psteros, Chagas acusou

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    o poeta de escrever A moleirinha por no gostar de serprecedido por inovadores de qualquer espcie, porreceio de ser considerado fora de moda, por temer que opblico abandonasse Os simples para se extasiar com asaudcias do S , de Antnio Nobre, e por no seconformar com um passageiro eclipse da popularidadeque o inebria[va] (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1).

    No fragmento final de seu texto, o cronista toma o poema Cadver como indcio de inflexo no esprito do poeta, que, invadido por um sopro pantestico, j no seria capaz de escrever o prometido livro A morte de Jeov, com o qual se encerraria sua trilogia satrica. No era ainda, assegurava, a converso completa do poeta ao catolicismo, mas indicao de que sua alma voltava-se, compungida e anelante, para os ideais da crena, ainda vaga e indefinida (CHAGAS, 16 ag. 1892, p. 1).

    A Repercurso de Os simples

    Bem mais velho do que Antnio Nobre e Eugnio de Castro, nascidos, respectivamente, em 1867 e 1869, Guerra Junqueiro, que contava 41 anos quando publicou sua obra lrica intitulada Os simples , conseguiu obter da imprensa carioca uma ateno que no foi dispensada aos citados nefelibatas . Com O Pas , no foi diferente. Alm de Pinheiro Chagas, outros colaboradores escreveram a propsito do livro. No fragmento final de sua coluna Reminiscncias

    de 27 de junho de 1892, Jos Fino (possivelmente pseudnimo de Jos Jlio da Silva Ramos) disse que a semana ento conclusa fora assinalada por um acontecimento literrio, o surgimento de nova obra do revolucionrio da poesia portuguesa, isto , Guerra Junqueiro. Segundo o cronista, haveria em Os simples um lirismo encantador, uma suavidade buclica, sem banalidades choramingas. Tal fora a transformao do poeta, que seria difcil reconhecer nele o agitador do protesto social na Morte de D. Joo (FINO, 27 jun. 1892, p. 1).

    Sob o conhecido pseudnimo de Caliban, Coelho Netotambm dignou-se opinar sobre o novo livro de Guerra Junqueiro. Iniciou-se a crnica por consideraes gerais sobre os crticos literrios, que seriam incapazes de

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    expressarem-se com sinceridade e clareza sem interferncia dos mestres. A crtica seria, assim, apenas uma subsidiria de pensamento alheio. Quando, adiante, Caliban disse no possuir a cincia altssima da crtica, j se sabia que pretendera ser irnico e, na verdade, valorizar seu pretenso costume de formular suas opinies s escncaras, desassombradamente, sem circunlquios, sem arrebiques. Para o cronista, o livro de Guerra Junqueiro seria mais do que uma grande pastoral em que tomam parte promiscuamente seres e coisas e deveria ser lido como a expresso alegrica da vida e dos sentimentos do poeta. Ao final da crnica, suspendendo suas consideraes sobre Os simples , Caliban declarou ter pretendido apenas aguar a curiosidade do leitor por aquela bblia que Tecrito no duvidaria assinar. Nessa avaliao essencialmente positiva, as estrofes maviosssimas (CALIBAN, 17 jul. 1892, p. 1) do livro no foram associadas ao nefelibatismo ou decadentismo, o que poderia comprometer a sua recepo pelo pblico. Cabe assinalar que a livraria Garnier publicou em O Pas pelo menos trs anncios do livro,3 que expunha venda. em suas prateleiras. Poderiam os colaboradores do jornal exprimir uma avaliao que depreciasse Os simples? No incio de 1893, sob as iniciais C. F., Crispiniano da

    Fonseca relatou em suas Lrias encontro que tivera um ano antes, no Porto, com o satrico de A velhice do Padre Eterno. Naquela ocasio, Junqueiro lhe confidenciara ter enfim conseguido achar uma revoluo completa esttica contempornea (FONSECA, 13 jan. 1893, p. 1).

    Esse testemunho do jornalista portugus vinha reforar a impresso de que Guerra Junqueiro nutria grandes expectativas em relao repercusso de sua obra lrica. Como conclura Pinheiro Chagas, o poeta de Os simples no suportava a ruidosa concorrncia dos jovens nefelibatas, que ameaavam ofuscar o seu brilho e negar o seu protagonismo.

    _______3

    Em 14, 16 e 18 de setembro de 1892.

    Uma bela sntese

    Em longo e importante artigo publicado em O Pas no dia 29 de dezembro de 1892, o portugus imigrado

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    Crispiniano da Fonseca4 tratou das tendncias de renovao da literatura em Frana e tambm em Portugal. Comeou por observar que ocorreu com os decadistas o que geralmente aconteceria com aqueles que rompem com a tradio apresentando um trabalho original: os j consagrados [...] surgem a gritar contra os recm-vindos. Em Frana, colocou-se na liderana do movimento de renovao Verlaine, secundado por Tristan Corbire, Mallarm, Moras, Kahn e Rimbaud. J em Portugal rompeu frente Eugnio de Castro com os seus Oaristos, que levantaram uma gritaria geral. Se, em um primeiro momento, ningum compreendeu o poeta, j ento se fazia justia aos nefelibatas, entre os quais se contavam Antnio Nobre, um dos maiores poetas portugueses, e Alberto de Oliveira, um dos melhores prosadores (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1). Aps esse prembulo, o crtico se empenhou em

    apresentar as principais caractersticas formais e temticas do decadismo, lanando mo de exemplos franceses e, principalmente, portugueses. Sobre o propalado misticismo, reconheceu que este no seria, de fato, sincero, pois lhe faltaria a base de crena. Fonseca assim justificou sua opinio:

    O poeta no cr, mas deseja crer e esse desejo, com o poder de sugesto que uma alma de poeta comporta, d uma aparncia de crena ideia e reveste-a do carter de ingenuidade que particularmente encanta. (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1)

    ________________4 Nascido em Aveiro no ano de 1961, Jos Crispiniano da Fonseca formou-se em Engenharia Civil e pode, graas aos recursos da famlia, viajar por toda a Europa, tornando-se fluente em vrias lnguas. Chegou ao Brasil em julho de 1892 e pouco depois j integrava a redao do matutino O Pas, respondendo pela crtica literria e teatral. Durante a Revolta da Armada,enviou espontaneamente correspondncia ao Sculo, de Lisboa, com o objetivo de combater uma suposta campanha de difamao contra o Brasil. Faleceu no dia 16 de fevereiro de 1894 por haver contrado febre amarela.

    Como resultado desse processo, a obra de arte adquiriria um duplo aspecto mstico e mistificante. Em funo dessa orientao nova, a escola decadista inclinou-se para novas formas poticas: 1) aproveitamento de formas poticas antigas como o rondel e a xcara; 2) a heterometria; 3) lxico arcaizante; 4) atribuio de funo simblica a aspectos materiais do poema (talvez se referisse ao uso de iniciais maisculas ou de tipos de tamanho e/ou feitio diferentes); 5) repeties de palavras e versos; 6) falta de cesura no alexandrino e 7) onomatopeias (aliteraes).

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    O que torna o artigo de Crispiniano da Fonsecaespecialmente interessante o fato de ter esse crtico apresentado para todos os casos exemplos dos portugueses Guerra Junqueiro, Eugnio de Castro e Antnio Nobre. Quando se tratou de condenar o abuso da obscuridade, que levaria ao hermetismo, encontrou-se o exemplo probante em versos do francs Verlaine. No encerramento do seu artigo, Fonseca associou a orientao da nova poesia ao estado de esprito da humanidade no final do sculo XIX. Com o predomnio do fatalismo cientfico e do materialismo, teria ressurgido enfim a necessidade de acreditar em uma existncia outra. Assim, o decadismo vinha ao encontro da nsia messinica da sociedade de ento (FONSECA, 29 dez. 1892, p. 1).

    CONCLUSO

    Assim como outros jornais, O Pas envolveu-se na polmica dos novos , dos quais muitos seriam anos depois membros atuantes do grupo simbolista. No comeo da dcada de 1890, os novos experimentavam suas armas contra medalhes como Slvio Romero e eram alvos de manifestaes de desprezo ou zombaria como as promovidas por Oscar Guanabarino, Joo Ribeiro e Valentim Magalhes.

    Graas aos seus correspondentes estrangeiros, O Pas permitiu aos seus leitores colocarem-se a par do decadentismo-simbolismo europeu. Nesse aspecto, papel fundamental desempenhou a Carta parisiense, de Xavier de Carvalho, que proporcionou aos seus leitores cariocas informaes detalhadas sobre a vida literria francesa, divulgando as obras e as personalidades de Verlaine, Mallarm, Jean Moras etc., e promoveu, apesar de eventuais restries, jovens escritores portugueses como Alberto de Oliveira e Antnio Nobre. At mesmo o conservador Pinheiro Chagas, que com

    seu sarcasmo combatia o artificialismo e a falta de sinceridade com que julgava comprometidos os novos e at mesmo o veterano Guerra Junqueiro, contribua paradoxalmente para a divulgao no Brasil das obras dos

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    nefelibatas portugueses.Os redatores e colaboradores brasileiros do matutino

    O Pas no deram grande ateno aos decadentistas-simbolistas europeus no perodo de 1890 a 1892. Como exceo que confirma a regra, pode-se mencionar a recepo de Os simples , de Guerra Junqueiro, autor que contava com o apoio promocional da influente livraria Garnier e j conquistara uma slida reputao no Brasil com suas obras satricas: A morte de D. Joo (1874) e A velhice do Padre Eterno (1885).

    Coube a um portugus recentemente imigrado, Crispiniano da Fonseca, publicar em O Pas , no final de 1892, o melhor artigo sobre o decadentismo-simbolismo europeu com informaes precisas sobre autores, obras e, principalmente, a esttica decadentista-simbolista, colocando nfase na orientao mstico-religiosa, nas ousadias formais, na obscuridade muitas vezes voluntria e na correspondncia com as tendncias ascendentes do pensamento do final do sculo XIX.

    O levantamento realizado em O Pas confirma, portanto, o interesse de uma ampla investigao nos peridicos cariocas sobre a repercusso do decadentismo-simbolismo portugus no comeo da dcada de 1890.

    REFERNCIAS

    BUSCA-P [pseudnimo de Oscar Guanabarino]. Foguetes. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 8. col., 9 out. 1890.

    ______. Foguetes. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 4. col., 11 out. 1890. ALIBAN [pseudnimo de Coelho Neto]. Palestra. A propsito dos Simples. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 17 jul. 1892.CARVALHO, Xavier de. Carta parisiense. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 25 jun. 1891. ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 8 jul. 1891. ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 20 jul. 1891. ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 18 set. 1891.

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    ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 25 set. 1891. ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 22 out. 1891. ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 7 nov. 1891.

    ______. ______. O Pas , Rio de Janeiro, p. 2, 1.-2. col., 1. maio 1892.

    CASTRO, Eugnio de. Horas . Coimbra: Manuel dAlmeida Cabral, 1891.

    CHAGAS, Pinheiro. Os nefelibatas. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 9 jan. 1892.

    ______. Simples. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 1.-2. col., 16 ag. 1892.

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    F., C. Lrias. Guerra Junqueiro. O Pas , Rio de Janeiro, p. 1, 6. col., 13 jan. 1893.

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    _________________5

    Embora se tenha, de maneira uniforme, procedido atualizao ortogrfica dos nomes prprios, conservou-se a oscilao de formas para o nome do poetamineiro, que, depois,acabou por adotar asoluo arcaizante deAlphonsus deGuimaraens.

  • 50 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.24, 2014

    ______. Literatura sem livros. O Pas, Rio de Janeiro, p. 2, 4. col., 2 jul. 1891.

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