Revista Cadernos de Saude Adufrj Pelasaude

download Revista Cadernos de Saude Adufrj Pelasaude

of 78

Transcript of Revista Cadernos de Saude Adufrj Pelasaude

  • Andes-SN Central Sindical e Popular - Conlutas

    Cadernosde Sade

    Sade na atualidade:por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade

    Andes-SN Central Sindical e Popular - Conlutas

    OrganizadorasMaria Ins Souza Bravo Juliana Souza Bravo de Menezes

    Setembro de 2011

  • Rede Sirius

    Rio de Janeiro

    2011

    Sade na atualidade:por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade

    Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino SuperiorAndes-SN Central Sindical e Popular - Conlutas

    Uma publicao

  • 2011 - Projeto Polticas Pblicas de Sade UERJ/ Faculdade de Servio SocialAdufrj - Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

    Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra,desde que citada a fonte e os autores.

    Organizadoras:Maria Ins Souza Bravo Juliana Souza Bravo de Menezes

    Editora:Rede Sirius Rede Bibliotec. Adufrj - Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro doSindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

    Capa: Conferncia Nacional de Sade. Braslia, 2007.

    Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom-ABr

    Projeto grficoDouglas Pereira

    Impresso: WalPrint

    Tiragem:8 mil exemplares

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    CATALOGAO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

    S255 Sade na atualidade : por um sistema nico de sade estatal,universal, gratuito e de qualidade / Organizadoras, Maria Ins Souza Bravo, Juliana Souza Bravo de Menezes. 1.ed. Rio de Janeiro : UERJ, Rede Sirius, 2011.76 p.

    ISBN 978-85-88769-43-4Uma publicao do Projeto Polticas Pblicas de Sade da Faculdade de Servio Social/UERJ

    e da Adufrj Seo Sindical.

    1. Poltica de sade pblica Brasil. 2. Sistema nico de Sade (Brasil) I. Bravo, Maria Ins Souza. II. Menezes, Juliana Souza Bravo de. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Servio Social. Projeto Polticas Pblicas de Sade. IV. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seo Sindical dos Docentes. V. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (Brasil)

    CDU 364.4:614(81)

  • Parte III Agenda para a Sade: Principais Desafios 64

    3.1. Documento: Contra Fatos no h Argumentos que sustentem as Organizaes Sociais no Brasil 65

    3.2. Agenda para a Sade 73

    SUMRIOApresentao

    Parte I Polticas Sociais, Sade e Participao na Atualidade 9

    1.1. Financeirizao do Capital, Fundo Pblico e Polticas Sociais em Tempos de Crise 10Giselle Souza da Silva

    1.2. A Sade nos Governos Lula e Dilma: Algumas Reflexes 15Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes

    1.3. Participao Popular e Controle Social na Sade 29Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes

    Parte II Gesto na Sade: Relao Pblico X Privado 35

    2.1. Gesto do SUS: O que fazer? 36Francisco Batista Junior

    2.2. Por que ser contra aos novos modelos de gesto do SUS? 43Maria Valria Costa Correia

    2.3. Fundaes Estatais: Projeto de Estado do Capital 50Sara Granemann

    2.4. Hospitais Universitrios Federais e Novos Modelos de Gesto:faces da contrarreforma do Estado no Brasil 56Juliana Fiuza Cislaghi

    Proj

    eto

    Polt

    icas

    Pb

    licas

    de

    Sad

    e

  • sta coletnea pretende socializar as informaes e estimular o debate junto aos diversos sujeitos sociais preocupados com a questo sade, a democratizao do Estado e os modelos de gesto ressaltando os dilemas e os desafios para o fortalecimento do Sistema nico de Sade (SUS), da Reforma Sanitria e da Seguridade Social Pblica.

    Considera-se que os textos so importantes para alimentar as discusses nas Conferncias de Sade e na 14 Conferncia Nacional de Sade, a ser realizada nos dias 30 de novembro a 04 de dezembro de 2011, com o tema: Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social, Poltica Pblica, patrimnio do Povo Brasileiro.

    A coletnea est estruturada em trs partes, nas quais so apontadas algumas questes sobre as Polticas Sociais e a Poltica de Sade na atualidade, a Participao Popular e Controle Social, os Modelos de Gesto na Sade e a elaborao de uma Agenda para a Sade.

    A primeira parte, intitulada Polticas Sociais, Sade e Participao na Atualidade, apresenta trs artigos.

    O primeiro texto intitulado Financeirizao do Capital, Fundo Pblico e Polticas Sociais em Tempos de Crise, elaborado por Giselle Souza da Silva, fornece elementos de reflexo sobre o contexto atual de crise do capital e financeirizao da vida social.

    O segundo e o terceiro textos so de autoria de Maria Ins Souza Bravo e Juliana Souza Bravo de Menezes. O segundo faz uma anlise da Poltica de Sade na atual conjuntura, destacando os limites e os desafios da poltica de sade no governo Lula e a perspectivas com relao ao governo Dilma. No terceiro, as autoras apontam subsdios para o fortalecimento da participao popular, refletindo sobre os impasses e desafios vivenciados pelos conselhos, tendo como pressuposto central a importncia da organizao e mobilizao dos trabalhadores para a conquista do direito sade.

    APRESENTAO

    EFabio R

    odrigues Pozzebom-ABr

  • A segunda parte, intitulada Gesto na Sade: Relao Pblico X Privado pretende caracterizar as propostas alternativas de gerenciamento que ganharam visibilidade, a partir da dcada de 1990, no Brasil, e que tm relao com as contrarreformas ocorridas em diversos pases pautadas na poltica de ajuste e na relao pblico-privado. composta de quatro artigos.

    O primeiro, de autoria de Francisco Batista Junior, ressalta as enormes dificuldades de implementar o Sistema nico de Sade em nosso pas, apesar da sua conquista histrica. O autor aponta que possvel a implantao definitiva do SUS de forma sintonizada com os princpios da Reforma Sanitria no Brasil, desde que haja deciso poltica, controle social democrtico, prtica efetiva da democracia participativa e obedincia legislao vigente, sem a criao de qualquer outro instrumento jurdico.

    O segundo artigo de Maria Valria Costa Correia trata do processo de privatizao dos servios pblicos em curso no Brasil, atravs dos denominados novos modelos de gesto, dando nfase s Organizaes Sociais (OSs) por ser o modelo que tem se ampliado com maior fora no setor sade dos estados e municpios brasileiros. Expe argumentos e questionamentos com relao a essas propostas de privatizao e apresenta algumas lutas e resistncias existentes nacionalmente.

    O projeto de Fundao Estatal de Direito Privado proposto pelo governo Lula abordado no texto de Sara Granemann. A autora analisa a Fundao Estatal como um projeto de contrarreforma do Estado no mbito das polticas sociais que afeta os interesses e os direitos dos trabalhadores. A proposio para a sade transformar os hospitais pblicos em Fundaes Estatais, onde o regime seria de direito privado; a contratao dos trabalhadores de sade via CLT (acabando com o Regime Jurdico nico RJU); o Plano de Cargos, Carreira e Salrios seria por fundao (no considerando a luta por Plano de Cargo, Carreira e Salrios dos trabalhadores do SUS) e o controle social substitudo pelos conselhos curador ou administrativo, fiscal e consultivo social. Este projeto foi rejeitado pelo Conselho Nacional de Sade em reunio realizada em junho de 2007 e na 13 Conferncia Nacional de Sade realizada em novembro de 2007. Tal projeto foi analisado e criticado nos Seminrios sobre Modalidade de Gesto do Sistema nico de Sade promovidos pelo Conselho Nacional de Sade em 2007 e 2008.

    Juliana Fiuza Cislaghi problematiza sobre a situao dos Hospitais Universitrios Federais e os modelos de gesto propostos, relacionado com o processo de contrarreforma do Estado. Faz referncia ao Projeto de Lei 1749/2011 que cria a Empresa Brasileira de Servios Hospitalares (EBSERH) que bastante semelhante em contedo a MP (Medida Provisria) 520/10 que foi derrotada no Senado Federal no comeo de junho de 2011. Este projeto foi encaminhado em regime de urgncia e tem que ser votado em 45 dias, ou seja, at 14 de agosto de 2011.

  • Projeto Polticas Pblicas de Sade

    Notas1 Esta Frente foi criada em novembro de 2010, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro e composta por diversos movimentos sociais, e pelas seguintes entidades: ABEPSS (Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social); ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior); ASFOC-SN (Sindicato dos Trabalhadores da FIOCRUZ); CMP (Central de Movimentos Populares); CFESS (Conselho Federal de Servio Social); CSP-CONLUTAS (Central Sindical e Popular); CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil); Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, Enfermagem e Servio Social; FASUBRA (Federao dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Pblicas Brasileiras); FENASPS (Federao Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Sade, Trabalho, Previdncia e Assistncia Social); FENTAS (Frum das Entidades Nacionais de Trabalhadores da rea da Sade); Frum Nacional de Residentes; Intersindical (Instrumento de Luta e Organizao da Classe Trabalhadora e Instrumento de Luta, Unidade da Classe e de Construo de uma Central); MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); Seminrio Livre pela Sade; os Fruns de Sade j existentes (Rio de Janeiro, Alagoas, So Paulo, Paran, Londrina, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Pernambuco, Minas Gerais, Cear, Rio Grande do Sul, Paraba); os setoriais e/ou ncleos dos partidos polticos (PSOL, PCB, PSTU, PT e PC do B); Consulta Popular e projetos universitrios (UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro; UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro; UFF Universidade Federal Fluminense; UFAL Universidade Federal de Alagoas; UEL Universidade Estadual de Londrina; EPSJV/FIOCRUZ Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da FIOCRUZ; CESTEH/ENSP/FIOCRUZ - Centro de Estudos da Sade do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Sade da FIOCRUZ; UFPB Universidade Federal da Paraba; USP- Universidade de So Paulo). 2 Esses projetos so coordenados pela professora doutora Maria Ins Souza Bravo.

    Por fim, a terceira parte desta coletnea, intitulada Agenda para a Sade: Principais Desafios, apresenta as principais questes e proposies para defesa do direito sade. Dessa forma, apresenta dois documentos elaborados pela Frente Nacional contra a Privatizao da Sade1: Contra Fatos no h Argumentos que sustentem as Organizaes Sociais no Brasil e a Agenda para a Sade. O primeiro consta de relatrio analtico de prejuzos sociedade, aos trabalhadores e ao Errio por parte das Organizaes Sociais (OSs). O segundo refere-se a Agenda para a Sade enfatizando as principais questes para a implantao do SUS e propostas para a garantia do direito sade.

    Esta a segunda vez em que os Projetos Polticas Pblicas de Sade e Sade, Servio Social e Movimentos Sociais2 da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Seo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (Adufrj-Ssind) elaboraram uma produo na sade com o intuito de democratizar o conhecimento.

    A Adufrj-Ssind e os Projetos universitrios citados tm como objetivos a defesa dos direitos dos trabalhadores e das polticas sociais tanto por sua participao nas lutas como na produo de reflexes que possibilitem resistir aos ataques do capital e dos governos contra a classe trabalhadora.

    Consideramos, a partir de Gramsci, que a universidade pode contribuir com a anlise crtica da realidade atravs do pessimismo da razo e oferecer estratgias de luta, pautando-se no otimismo da vontade e na perspectiva da importncia do conhecimento para transformar a realidade.

    Espera-se que o contedo desta coletnea possa constituir em um instrumento de potencializao do debate e de defesa das polticas sociais pblicas, tendo como referncia a construo de uma sociedade sem dominao e explorao.

    Boa leitura a todos(as)!

    Rio de Janeiro, Setembro de 2011.

    Adufrj-SSindSeo Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior

    Maria Ins Souza Bravo eJuliana Souza Bravo de MenezesOrganizadoras

  • Proj

    eto

    Polt

    icas

    Pb

    licas

    de

    Sad

    e

    Polticas sociais, sade e participao na atualidade

    Parte I

    MOBILIZAO. Manifestao no Centro do Rio

  • ApresentaoO estudo das polticas sociais e do

    capital financeiro na contemporaneidade exige-nos uma apreenso crtica, capaz de investigar as mltiplas determinaes que atuam no processo de financeiri-zao da vida social em tempos atuais. Tomamos como de extrema relevncia a desmistificao desta forma de capital, a superao de sua aparncia pela essncia e do fetiche inerente a ela que obscurece o processo real de produo de mais-va-lor no qual se ancora.

    O entendimento das modificaes na composio e na conduo das polticas sociais brasileiras na atualidade leva-nos ainda a um estudo histrico-crtico do desenvolvimento da fase madura do capitalismo. Nela, aps o amplo pero-do de expanso das conquistas da classe trabalhadora naquilo que se chamou de proteo social, tem-se uma diminuio da apropriao de parte riqueza social-mente produzida por aqueles que a pro-

    duzem, a classe trabalhadora. Em outras palavras, assistimos a um largo processo de desmonte das polticas sociais, sobre-tudo aquelas mais universais, destinadas a reproduo social da classe trabalha-dora, alargando-se a apropriao privada de parte do fundo pblico pelos rentistas, donos do capital que porta juros. E os mecanismos estratgicos para tanto so a transferncia crescente de recursos so-ciais para a esfera financeira por meio das contra-reformas das polticas sociais e do repasse de recursos do fundo pblico para o pagamento da dvida pblica.

    Neste artigo, partimos da anlise da dinmica de organizao do capital que porta juros e seus desdobramentos na con-temporaneidade, bem como dos impactos e determinaes impostas s polticas sociais em tempos de financeirizao do capital. Buscamos estudar a obra de Karl Marx, em especial a seo V do livro III dO Capital, como se configura o capital portador de juros na contemporaneidade, penetrando sua lgica em todos os mbi-

    tos da vida social e reconfigurando as for-mas de proteo social ao redor do globo.

    A financeirizao do capital sob a perspectiva da tradio marxista

    O desenvolvimento das foras produ-tivas levou ao desenvolvimento de novas formas de capital. No avanado processo de circulao de mercadorias do capital industrial e tambm do capital de comr-cio de mercadorias, o dinheiro passou a realizar movimentos puramente tcnicos e, autonomizados como funo de um capital especfico, torna-se esse capital o capital de comrcio de dinheiro. Do ca-pital global surge uma forma especfica de capital, o capital monetrio, que tem a funo de executar as operaes de co-mrcio de dinheiro para toda a classe de capitalistas industriais e comerciais.

    Os movimentos desse capital monet-rio so, portanto, por sua vez, apenas mo-vimentos de uma parte autonomizada do

    FINANCEIRIZAO DO CAPITAL, FUNDO PBLICO E POLTICAS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISE

    1.1

    Giselle Souza da Silva3

    3 Assistente Social e Mestre em Servio Social, Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Apoio Tcnico do Grupo de Estudos e Pesquisas do Oramento Pblico e da seguridade Social Gopss/UERJ (e-mail: [email protected])

  • Cadernos de Sade setembro de 2011 11

    capital industrial empenhado em seu pro-cesso de reproduo (Marx, 1983, p.237).

    O avano do processo de produo e reproduo capitalista faz com que o di-nheiro em si torne-se mercadoria. Trata-se, aqui, pois, de uma mercadoria especial que no pode ser comprada e vendida e por isso, adquire a forma de mercadoria dada em emprstimo. A essa forma, Marx chama capital portador de juros. Esta frao do capital tem a aparncia de ser autnoma e de valorizar-se na esfera fi-nanceira, mas essa apenas sua aparncia fetichizada.

    O capital que porta juros sempre exis-tiu na histria, antes mesmo da sociedade capitalista de produo, na forma de ca-pital usurrio. Mas na sociedade capi-talista que esta forma de capital torna-se mercadoria especfica com valor de uso e valor. O valor de uso do capital que porta juros o de ser utilizado como capital, im-pulsionando a produo de valor por meio do capitalista funcionante. Este definido por Marx como o capitalista que investe diretamente no processo produtivo, que compra meios de produo e matria-prima e ao final do processo de produo obtm uma nova mercadoria, acrescida de valor por meio da mo do trabalhador, pois s o trabalho vivo cria mais valor.

    A atividade dos capitalistas funcionan-tes destina-se a extrair mais valor e o juro ou a remunerao do capital que se con-verte em mercadoria corresponde a uma parcela deste mais-valor extrado. Deste modo, os juros so uma parte do lucro, como define Marx:

    a parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pr no pr-prio bolso, tem de pagar ao proprietrio do capital (1983, p.256).

    Todo o movimento entre o emprstimo e a devoluo deste valor acrescido de di-nheiro camuflado pelos liberais. Porm a mercadoria dinheiro (capital que porta juros) s pode retornar s mos do seu proprietrio acrescida de valor do con-trrio no teria ele motivos para abrir mo dele e s se incrementa no processo de produo de mais-valia. O capitalista pro-dutivo no poderia iniciar seu processo de produo sem tomar emprestado o di-nheiro do capitalista monetrio, e este no poderia receber os juros sem que aquele

    investisse no processo produtivo4.Sob a forma dinheiro equivalente

    de troca que em si j meio alienante de equiparao de diferentes valores de uso, na qual se apagam todas as determinaes qualitativas o capital que porta juros parece no estar contaminado pelo pro-cesso de extrao de mais-valia. Como diz o autor, da mesma maneira que o cresci-mento pertence rvore, assim o produzir dinheiro pertence ao prprio capital nes-ta sua forma pura de [capital] dinheiro (Marx, 1982, p. 197). Assim, como capital que porta juros, o capital assume a forma mais pura de fetiche5.

    medida que cresce a concentrao deste capital monetrio nas mos de ca-pitalistas que passam a dispor de grande massa de poupanas de outros milhares de capitalistas dispersos, estes montantes passam a ser colocados a disposio para emprstimo. Desenvolve-se assim em am-pla escala o sistema de crdito, que para a Hilferding (1985, p. 170), a transfern-cia de dinheiro que o proprietrio deixou de empregar como capital a algum que pretende empreg-lo como capital; a transformao de capital monetrio ocio-so em capital ativo.

    Atualmente o papel do crdito funda-mental ao processo de valorizao do ca-pital, pois permite a reduo do tempo de rotao do capital. Se no tempo de Marx o crdito era essencial para garantir a pro-duo capitalista e era um recurso aces-svel aos capitalistas funcionantes para o investimento produtivo atualmente sua funo est tambm em contrarrestar a superproduo e permitir a realizao do valor6. Seu acesso ao longo do sculo XX, fruto do desenvolvimento do capital ban-crio, se estendeu classe trabalhadora, a qual passa tambm a depender em boa parte do crdito para a sua reproduo7.

    Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulao, com a acumulao futura, descolada de sua base real, material dado o avano da finan-ceirizao do capital como no caso dos ttulos pblicos, tem-se o capital fictcio, que se origina daquela forma de capital. O capital fictcio constitui-se na forma ilus-ria que adquirem os rendimentos que pa-recem provir do capital portador de juros. Neste caso, a emisso de papis, como nas sociedades por aes e os ttulos da dvida pblica (do qual trataremos mais adiante), so a forma ilusria, fictcia, que assume o

    capital ao especular com o que Marx cha-ma de valores imaginrios.

    O carter fictcio dos ttulos da dvida pblica muito maior, pois, como diz o autor

    [...] os ttulos de dvida pblica no precisam de forma alguma representar nenhum capital existente. O dinheiro em-prestado pelos credores do Estado pode ter virado fumaa h muito tempo. Esses ttulos nada mais so do que o preo pago por uma participao nos impostos anu-ais que representam o rendimento de um capital inteiramente diferente do que foi gasto na poca de uma forma improdutiva (Hilferding, 1985, p. 114).

    Se este estudo j aponta os desdobra-mentos do desenvolvimento de capital portador de juros poca de Marx, esta forma de capital assume em nossos dias um novo papel no sistema monetrio, pois est organicamente associado ao ca-pital industrial. Na era dos monoplios temos o capital financeiro, que segundo Lnin (2005), a fuso entre capital in-dustrial e capital bancrio, em elevado grau de desenvolvimento do capital no qual a concentrao conduz aos mono-plios capitalistas. Ao fundir-se com o capital industrial altamente concentrado e centralizado, submete-o a sua dinmi-ca de atuao, na qual ganha destaque o capital fictcio. O capital financeiro cria a chamada oligarquia financeira, uma classe de rentiers que vive apenas dos rendimentos do capital financeiro, dos juros do capital monetrio e da especu-lao. Consequentemente, um peque-no e seleto nmero de Estados rentiers tornam-se prestamistas por excelncia e constituem-se em Estados parasitrios do capitalismo moderno, no qual o investi-mento monetrio d lugar ao investimen-to produtivo, criador de riqueza.

    Em tempos atuais, de mundializao do capital, esses rentistas daro a direo poltica e ideolgica ao Estado e requi-sitaro a atuao do fundo pblico dire-tamente a favor dos seus interesses a depender, claro, da correlao de foras presente na sociedade. Segundo Chesnais (1996), as finanas se alimentam por meio de dois mecanismos diferentes: da forma-o de capital fictcio e das transferncias de riqueza para a esfera financeira na qual um importante mecanismo o servi-o da dvida pblica. O capital monetrio ento passa a ditar o comportamento dos

  • Cadernos de Sade12 setembro de 2011

    Estados e das empresas produtivas. Este processo de financeirizao do capital penetra os meios de reproduo social da classe trabalhadora, qual sejam as polti-cas sociais historicamente conquistadas.

    A financeirizao do capital e as polticas sociais na contemporaneidade

    As polticas sociais a partir do ltimo quartel do sculo XX passam por grandes transformaes provocadas pela reorde-nao do capital sob hegemonia das finan-as. A entrada num perodo de estagnao do desenvolvimento do capital, iniciado nos anos 1970, apresenta novas condies de implementao das polticas sociais. A crise, que trouxe consigo o aumento do desemprego, as taxas altas de inflao, a queda do comrcio mundial, apresenta como forma de seu enfrentamento os cha-mados ajustes estruturais a serem realiza-dos no mbito estatal.

    Assim, a crise do capital tem como consequncia uma reconfigurao do pa-pel do Estado8 e graves conseqncias para as polticas sociais, o que quer dizer, para as condies de vida da classe tra-balhadora ao redor do mundo. A reao burguesa crise do capital que trata-se de uma crise de superproduo (Mandel, 1982)9 passa pelo rompimento do pacto keynesiano-fordista, que garantia o pleno emprego e um conjunto de polticas so-ciais de desenho social-democrata.

    Enquanto o mundo viveu um intenso processo de mundializao do capital sob a gide do capital financeiro, os Estados nacionais passaram a operar um conjunto de contra-reformas para contornar a crise do capital, que se traduziram num conjun-to de medidas e programas de austerida-de de natureza deflacionista, os chamados ajustes estruturais e mais uma vez o Es-tado atuou como uma almofada amor-tecedora anticrise (Behring e Boschetti, 2007, p.116)

    Entra em cena ao redor do globo o cha-mado projeto neoliberal, cujos principais argumentos, contrapondo-se ao modelo keynesiano/fordista em vigor, so os de que o dficit estatal produzido neste pe-rodo intrinsecamente negativo para a economia j que absorve poupana e reduz investimentos; a interveno esta-tal na regulao das relaes de trabalho

    tambm negativa, pois impede o cresci-mento econmico e a criao de mais em-pregos; e as polticas sociais redistributi-vas empreendidas pelo Estado Social so perniciosas, pois aumentam o consumo e diminuem a poupana da populao (Na-varro, apud Behring e Boschetti, 2007).

    A chamada crise fiscal do Estado passa a ser o argumento para a defesa neoliberal do corte de gastos sociais, que esconde as reais intenes de diminuio dos custos com a fora de trabalho e o redireciona-mento do fundo pblico para atender, em maior escala, as demandas do grande ca-pital. Os direitos da classe trabalhadora so assim os primeiros a serem atingidos neste processo, o que quer dizer que as polticas sociais passaro por regressivas transformaes.

    Se no se pode falar em desmantela-mento, inegvel que as reestruturaes em curso seguem na direo de sua restri-o, seletividade e focalizao; em outras palavras, rompem com os compromissos e consensos do ps-guerra, que permitiam a expanso do Welfare State (Behring e Bochetti, 2007, p. 134).

    A supremacia do capital fetiche atinge todos os mbitos da vida social e a sede de lucratividade desta forma de capital se espraia para alm dos investimentos privados. As polticas sociais se tornam alvo de investimento do capital financei-ro, na tentativa de solucionar o fenmeno da superacumulao. Este empurra para a privatizao (direta ou indireta) alguns se-tores de utilidade pblica como campo de inverso do lucro em servios de sade, de educao e de previdncia (Behring, 2008), caracterizando a supercapitaliza-o de que trata Mandel (1982).

    No Brasil as polticas sociais a partir da dcada de 1990, pouco depois da pro-mulgao da Constituio de 1988, tam-bm passaram a sofrer ameaas por meio do projeto neoliberal, que impediu a plena implementao do texto constitucional. A recm criada Seguridade Social uma conquista no mbito da formao de um sistema de proteo social no Brasil ainda que limitado derruda pelos sucessi-vos governos neoliberais desde Fernando Collor de Melo, aprofundando-se com os governos de FHC e persistindo nos gover-nos de Lula da Silva.

    As tendncias da Seguridade Social brasileira neste perodo esto relacionadas aos processos sociais gestados no capita-

    lismo em sua fase monoplica. Segundo Mota (2005) se ancoram em dois veto-res: nas mudanas no mundo do trabalho, quando a reestruturao produtiva supera o modelo fordista-keynesiano para firmar o modelo de acumulao flexvel, e nas mudanas na interveno do Estado, que assume novos papis e redefine os antigos em funo das necessidades de um novo momento na produo de mercadorias10.

    A partir dos anos 1990 vivemos um processo de desmonte de parte do apara-to do Estado e de restrio das polticas sociais, que passam a ser organizadas sob a lgica do capital financeiro. O processo de contrarreforma do Estado vem acom-panhado de uma srie de privatizaes do setor pblico estratgico. Alm dis-so, uma das principais consequncias da financeirizao para as polticas sociais tem sido a captura do fundo pblico para a alimentao direta do capital que porta juros, no qual o papel da dvida pblica tem sido central.

    A dvida pblica constitui-se em um dos principais instrumentos de dominao dos rentistas e do grande capital sobre os pases perifricos. Estes pases vm sendo orientados a conduzir sua poltica econ-mica para privilegiar o capital que porta juros em detrimento das polticas sociais desde a crise da dcada de 1970. Um dos mecanismos fundamentais utilizados para drenar recursos das polticas sociais brasileiras para o capital que porta juros a Desvinculao de Receitas da Unio (DRU) de 200011. A Seguridade Social a mais atingida por este mecanismo, tendo em vista que ele permite a desvinculao de 20% dos seus recursos. A DRU trans-fere os recursos do oramento da Seguri-dade Social para o oramento fiscal com a finalidade de facilitar a formao de supe-rvits e pagar a dvida pblica.

    A DRU possibilitou o repasse de bi-lhes de reais das polticas sociais12 para o grande capital e por isso a classificamos como um tipo de programa de transfern-cia de renda para os rentistas (Antunes e Gimenez, 2007). Em outras palavras, isto significa a transferncia de recursos antes destinados classe trabalhadora para o pagamento de juros da dvida13, alimen-tando o mundo das finanas. Deste modo, o fundo pblico passa a ser canalizado de forma direta para alimentar o mercado fi-nanceiro.

    Alm da DRU, o capital se utiliza de

  • Cadernos de Sade setembro de 2011 13

    outros mecanismos para garantir a acu-mulao e valorizao de sua forma feti-chizada14. Acrescentamos a esta forma de destinao do fundo pblico para o capi-tal, os recursos dos oramentos das pol-ticas sociais que remuneram o rentismo, direta e indiretamente. Referimos-nos remunerao do capital portador de juros para que operem e atuem na operaciona-lizao das polticas sociais. Esta remune-rao acontece das mais diversas formas e atinge a quase totalidade das polticas so-ciais, que consideramos uma privatizao via financeirizao por dentro do Estado.

    Este tipo de transferncia um pouco mais difcil de ser desvelada, mas pode ser visualizada em diversos mbitos. Na sade, por meio da ampliao da atuao da iniciativa privada via planos de sade e a entrega de atividades administradas e financiadas pelo Estado organizaes sociais15; no mbito da previdncia, as con-tra-reformas realizadas pelos ltimos go-vernos que desconstroem direitos e estimu-lam o crescimento da previdncia privada por meio dos fundos de penso16, e ainda a remunerao das instituies bancrias para operarem com o repasse das aposen-tadorias e benefcios previdencirios; e no mbito da assistncia, a desresponsabili-zao do Estado com o repasse das aes assistenciais para o terceiro setor, e ainda a nfase nos programas de transferncia de renda, nos moldes propostos pelas agn-cias multilateriais, que tambm repassam recursos aos bancos para que operem com os benefcios17 (Silva, 2010).

    Existe assim uma tenso na disputa pelo fundo pblico na qual a classe tra-balhadora luta pelo financiamento de suas necessidades e o capital busca a sua repro-duo por meio de subsdios e participa-o no mercado financeiro (com a dvida pblica, por exemplo). Pela sua fora he-gemnica e pela correlao de foras des-favorvel que vivenciamos, o capital tem conseguido cada vez mais se apropriar do fundo pblico e com maior fora a partir da entrada do projeto neoliberal no cen-rio nacional.

    Fundo pblico em disputa em tempos de crise

    H ainda um dado fundamental a ser tratado: a composio do fundo pblico. O fundo pblico composto por impos-tos, taxas e contribuies da classe traba-lhadora, do capital e do Estado que as re-

    colhe e reparte de forma desigual entre as classes sob diversas formas. Constitui-se de parte da riqueza socialmente produ-zida, ou seja, parte do trabalho excedente, mas tambm, e de forma majoritria em nosso tempos, pelo trabalho necessrio.

    De acordo com Behring (2010) no ca-pitalismo monopolista, a puno do fundo pblico feita pelo sistema tributrio, o que quer dizer que o fundo pblico cada vez mais sustentado no e pelos salrios.

    O fundo pblico no se forma- es-pecialmente no capitalismo mono-polizado e maduro apenas com o trabalho excedente metamorfoseado em valor, mas tambm com o traba-lho necessrio, na medida em que os trabalhadores pagam impostos direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do consumo, onde os im-postos esto embutidos nos preos das mercadorias18 (Ibdem, p. 6).

    No Brasil o sistema tributrio mar-cado pela regressividade19 que faz com que os trabalhadores paguem mais impos-tos que a burguesia, e consequentemente paguem pelo endividamento pblico. Isto porque no Brasil predomina a maior tri-butao por meio de impostos indiretos, que incidem de forma majoritria sobre a renda dos trabalhadores assalariados20.

    Assim, so os recursos dos trabalhado-res que sustentam o fundo pblico que, por sua vez, capturado pelo capital que porta juros, scio privilegiado do fundo pblico, como diz Salvador (2010). O capital pa-rasitrio utiliza-se dos mais variados me-canismos para capturar os recursos que por direito deveriam destinar-se to somente a melhoria das condies de vida da classe trabalhadora, j que so em sua grande maioria extrado dessa mesma classe.

    Atualmente vivemos em tempos de difcil disputa pela riqueza socialmente produzida. O fundo pblico tem sido cada vez mais capturado pelo capital que porta juros tanto pela dvida pblica que atin-ge os pases perifricos e usurpa grandes recursos advindos da classe trabalhadora, quanto pela incidncia de mecanismos de alimentao do capital financeiro no inte-rior das polticas sociais.

    A lgica de financeirizao das relaes sociais atinge os recursos destinados re-produo social da classe trabalhadora e as polticas sociais transformam-se em alvo prioritrio de mudanas e ajustes, tanto nos pases centrais do capitalismo, como nos pases perifricos. O repasse de recursos

    da Seguridade Social para o rentismo, a extenso do crdito aos aposentados, a re-munerao de instituies financeiras para operacionalizao de benefcios assisten-ciais, a expanso dos fundos de penso, a criao das Fundaes Estatais de Direito Privado, etc; por meio desses e outros me-canismos o capital portador de juros incide sob a reproduo social da classe trabalha-dora e a transforma em meios de valoriza-o altamente lucrativos.

    Nos tempos atuais, vivemos em meio a uma crise do capital que, de acordo com Katz (2010), irrompeu na rbita financei-ra, mas se relaciona s tenses geradas pelos capitais superacumulados, pela su-perproduo e pelos intercmbios despro-porcionais. Para o autor, a crise est re-lacionada no s esfera financeira, mas realizao do valor e valorizao do capital, causadores das crises capitalistas em todos os tempos, porm apresenta es-pecificidades relacionadas ao modelo ne-oliberal vigente nas ltimas dcadas21.

    Nesse contexto, o papel do Estado, como almofada amortecedora da crise, e do fundo pblico foi e fundamental para garantir as condies de acumulao, valorizao e do capital e de superao de suas crises. Os recursos utilizados para tanto, so aqueles extrados do mundo do trabalho, do que seria destinado me-lhoria das condies de vida dos traba-lhadores, que ao contrrio, posto a dis-posio do capital portador de juros. Em tempos difceis, no deixa de ser menos necessria a luta e disputa pela riqueza so-cialmente produzida, pelo Estado e pelo fundo pblico. Muito pelo contrrio. fundamental persistirmos na desmistifica-o e superao da ordem burguesa, dado que sem a apreenso da realidade concre-ta e dos rebatimentos da organizao do capital para a classe na atualidade, no possvel modific-la nem transform-la.

    Notas 4 Quanto a esta observao, tomamos por referncia neste captulo apenas o estudo pre-sente no captulo XXI dO Capital de Marx. A expanso do capital que porta juros para toda a vida social, do crdito, incidindo tambm so-bre a classe trabalhadora, tornando-a tambm sua mutuaria trataremos mais a frente. 5 Sobre capital fetiche, cf. tambm Iamamoto (2007). No primeiro captulo deste livro a au-tora faz uma consistente anlise marxista dos movimentos contemporneos do capital tendo como base o Livro Terceiro dO Capital e des-venda o fetiche presente na configurao atual

  • Cadernos de Sade14 setembro de 2011

    do capitalismo, iluminando o debate sobre o Servio Social em nossos tempos. 6 Exemplos do papel central do crdito nes-te sentido so a indstria automobilstica e o setor imobilirio e de turismo, que operam de forma massiva por meio do crdito. 7 O que dizer ento do crdito consignado que se expande em nossos dias e empurra para o endividamento boa parte da classe trabalhado-ra? Ao capital garantida a realizao do valor pela obrigatoriedade do pagamento descon-tado do salrio dos trabalhadores. O trabalho necessrio alimenta diretamente a esfera fi-nanceira sem que seja dado ao trabalhador o direito de contestar este processo.8 Vale ressaltar que o Estado sempre atendeu de forma desigual aos interesses contraditrios em disputa. Em que pese a correlao de for-as presente em cada contexto scio-histrico, o Estado manteve ao longo de todo o desen-volvimento capitalista seu carter de classe, a favor dos interesses da burguesia, embora no deixe de abarcar as lutas e reivindicaes da classe trabalhadora. 9 Sobre isto Behring e Boschetti nos esclare-cem: A crise [...] tem a funo de se constituir como meio pelo qual a lei do valor se expressa e se impe. Ela a consolidao de dificul-dades crescentes de realizao da mais-valia socialmente produzida, o que gera superpro-duo, associada superacumulao (2007, p. 117). 10 A discusso sobre a cultura da crise da Se-guridade Social encontrada no livro de mes-mo nome da autora (2005).11 Criada anteriormente sob a forma de Fundo Social de Emergncia (1994) e depois Fundo de Estabilizao Fiscal (1997) e a partir de 2000 reformulada com a denominao de Desvinculao de Receitas da Unio. 12 Em 2009 a DRU desvinculou do ora-mento da Seguridade Social um total de 39,1 bilhes de reais (Inesc, 2010).13 Segundo Filgueiras e Golalves (2007), os Cardoso e Lula pagaram mais de R$ 1 trilho em juros da dvida pblica e os supervits acu-mulados no mesmo perodo foram de R$ 489,8 bilhes de reais.14 Inclumos ainda Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000 que preceitua determinados contedos para a lei de diretrizes orament-rias e para o oramento e, na medida em que prioriza o pagamento das dvidas pblicas, acarreta o deslocamento de recursos das pol-ticas sociais para tanto. Tal medida de ajuste fiscal a aplicao prtica do princpio neoli-beral de reduo do Estado para o mundo do trabalho e seu alargamento para ateno dos interesses do capital.15 Como as Organizaes Sociais (OSs), as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs) e mais recentemente as Fun-daes Estatais de Direito Privado, todas elas formas de privatizar o Estado e descentralizar com a mera transferncia de responsabilida-des as polticas sociais; projeto este em con-

    sonncia a lgica do capital que porta juros. 16 Para maior aprofundamento sobre o estudo da previdncia privada e capital portador de juros, cf. Granemann (2006). 17 Quanto aos programas de transferncia de renda, Cf a dissertao de mestrado defendida recentemente (Silva, 2010) que mostra-nos os recursos destinados aos bancos (chamados de agentes pagadores) para operacionalizao dos benefcios do Programa Bolsa Famlia (PBF), do Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e da Renda Mensal Vitalcia (RMV), uma for-ma direta de remunerao do capital portado de juros. 18 Fabrcio de Oliveira (apud Salvador, 2005) chama este processo de fetiche do imposto, no qual o empresrio nutre a iluso de que arca com o nus do tributo, mas na verdade este integra a estrutura de custos da empresa, sen-do repassado aos preos das mercadorias e/ou servios, por isso so indiretos. 19 Para diferenciar a progressividade e a re-gressividade de um imposto preciso avaliar sua incidncia: se sobre renda, proprieda-de, produo, circulao e consumo de bens e servios. Conforme a base de incidncia os tributos so considerados diretos ou indiretos. Os tributos diretos incidem sobre a renda e o patrimnio porque, em tese, no so pass-veis de transferncias para terceiros. Esses so considerados impostos mais adequados para a questo da progressividade. Os indiretos inci-dem sobre a produo e o consumo de bens e servios sendo passveis de transferncia para terceiros, em outras palavras, para os preos dos produtos adquiridos pelos consumidores. Eles que acabam pagando de fato o tributo, mediado pelo contribuinte legal: empresrio produtor ou vendedor (Salvador, 2005, p. 3). 20 Segundo Salvador (2010), no Brasil, quem ganha at dois salrios mnimos gasta 26% de sua renda no pagamento de tributos indiretos, enquanto o peso da carga tributria para as fa-mlias com renda superior a 30 salrios mni-mos corresponde apenas a 7% . A tributao sobre renda e patrimnio (impostos diretos) extremamente baixa no pas e assim a burgue-sia paga cada vez menos impostos. Com isso o sistema tributrio brasileiro tem agravado a concentrao de renda no pas.21 Os resultados j se vem nos noticirios. A Europa padece com as graves conseqncias da crise, que atinge primeiramente os pases perifricos no seu interior, dos quais Grcia, Espanha e Portugal j so submetidos s bru-tais exigncias de ajuste dos pases do centro europeu. A crise enfatizou a polarizao exis-tente entre pases europeus comercialmente excedentes e deficitrios. E os desdobramentos desta crise no estaro no retorno do Welfare State, de um suposto capitalismo humano, nem mesmo sua soluo est no controle da espe-culao. Um sistema assentado na explorao do homem pelo homem no pode ser humani-zado, j que vulnera o princpio bsico da con-vivncia entre indivduos (Katz, 2010, p.34).

    Referncias BibliogrficasANTUNES, Dav, GIMENEZ, Denis. Trans-ferncia de Renda aos Ricos e aos Pobres no Brasil - Notas sobre os Juros Altos e o Bolsa-Famlia. Carta Social e do Trabalho Unicamp, n. 5, abril de 2007. Disponvel em: http://www.eco.unicamp. br/cesit/index1.htmlBEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contra-reforma: desestruturao do Estado e perda de direitos. 2 Ed. So Paulo: Cortez, 2008.______________. Crise do Capital, Fundo P-blico e Valor. 2010. No Prelo.BEHRING, Elaine Rosetti e BOSCHETTI, Ivanete. Poltica social: fundamentos e hist-ria. So Paulo: Cortez, 2007.CHESNAIS, Franois. A mundializao do ca-pital. So Paulo: Xam, 1996.FILGUEIRAS, Luiz e GOLALVES, Reinal-do. A economia poltica do governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.GRANEMANN, Sara. Para uma interpretao marxista da previdncia privada. Tese de doutorado em Servio Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. HILFERDING, Rudolf. O Capital Financeiro. So Paulo: Nova Cultural, 1985.IAMAMOTO, Marilda Villela. Servio Social em tempos de capital fetiche: capital financei-ro, trabalho e questo social. 3 ed. So Paulo: Cortez, 2007.INESC. Oramento e direitos da execuo da LOA 2009. Instituto de Estudos Socioecon-micos Inesc. Nota Tcnica n 164. Abril de 2010. Disponvel em http://www.inesc.org.br.KATZ, Claudio. Las tres dimensiones de la crisis. 2010. Disponvel em www.lahaine.org/katzLNIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. 3 ed. So Paulo: Cen-tauro, 2005.MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. So Paulo: Abril Cultural, 1982 (os Economistas). MARX. Karl. Rendimento e suas fontes: a economia vulgar. So Paulo, Abril cultural, 1982. (Coleo Os Economistas)________________. O Capital: crtica da eco-nomia poltica. Livro 3. Tomos 1 e 2. So Pau-lo: Abril Cultural, 1983.MOTA, Ana Elizabete. Cultura da Crise e Seguridade Social: um estudo sobre as ten-dncias da previdncia e assistncia social brasileira nos anos 80 e 90. 3 ed. So Paulo: Cortez, 2005.SALVADOR, Evilsio. Fundo Pblico e Se-guridade Social no Brasil. So Paulo: Cortez, 2010.SILVA, Giselle Souza da. Transferncia de renda a capital portador de juros: uma insidio-sa captura. Dissertao de Mestrado em Servi-o Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: 2010.

  • ApresentaoEste texto pretende analisar a Poltica

    de Sade na atual conjuntura, fazendo, num primeiro momento, uma abordagem geral, com nfase nas polticas sociais, e, no segundo, enfocando a Poltica de Sa-de nos dois mandatos do presidente Luiz Incio Lula da Silva e, em seguida, apre-senta algumas reflexes com relao ao governo Dilma Roussef.

    Nesta direo, vai-se ressaltar as pro-postas e reformas defendidas pelo gover-no Lula, aps o seu primeiro governo, que do seqncia contrarreforma do Estado iniciada na gesto de Fernando Henrique Cardoso (FHC), encolhendo o espao p-

    blico democrtico dos direitos sociais e ampliando o espao privado - no s nas atividades ligadas produo econmica, mas tambm no campo dos direitos so-ciais conquistados.

    Posteriormente, destaca-se a eleio de Dilma Roussef que chega ao poder com a mstica de ser a primeira mulher eleita ao cargo presidencial do pas. A atual presi-dente venceu as eleies devido popula-ridade do presidente Luis Incio Lula da Silva que a apoiou durante toda a campa-nha, uma vez que alguns petistas que tive-ram seus nomes cogitados para a eleio perderam a possibilidade de serem candi-datos por diversos motivos entre eles, a sucesso de escndalos que os envolvia,

    na maioria, por denncias de corrupo.

    O artigo vai abordar tambm as ma-nifestaes dos movimentos sociais, da Frente Parlamentar da Sade, do Frum da Reforma Sanitria e a criao de F-runs de Sade e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade.

    Para finalizar, so levantadas algumas consideraes que destacam as proposi-es de diversos sujeitos fiis as lutas e aos princpios da Reforma Sanitria brasileira construda nos anos oitenta. So ressaltadas a agenda poltica aprovada pelo Conselho Nacional de Sade e a criao dos Fruns de Sade e da Frente Nacional contra a Pri-vatizao da Sade e suas proposies.

    1.2 A sade nos governos Lula e Dilma: algumas reflexes22

    Maria Ins Souza Bravo23

    Juliana Souza Bravo de Menezes24

    24Especialista e mestre em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ), assistente social do Hospital Federal de Bonsucesso/Ministrio da Sade. Integrante do projeto Polticas Pblicas de Sade: o potencial dos movimentos sociais e dos conselhos do Rio de Janeiro da Faculdade de Servio Social da Universi-dade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Frum de Sade do Rio de Janeiro e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade (e-mail: [email protected]).

    22 Este texto uma verso revista e ampliada pelas autoras do artigo Poltica de Sade no Governo Lula: Algumas Reflexes. In: Movimentos Sociais, Sade e Trabalho. Organizadores, Maria Ins Souza Bravo [et al.]. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2010.23Assistente Social, doutora em Servio Social (PUC/SP) e ps-doutora em Servio Social pela UFRJ, professora aposentada da UFRJ, professora adjunta da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenadora dos projetos Polticas Pblicas de Sade: o potencial dos movimentos sociais e dos conselhos do Rio de Janeiro e Sade, Servio Social e Movimentos Sociais. Integrante do Frum de Sade do Rio de Janeiro e da Frente Nacional contra a Privatizao da Sade (e-mail: [email protected]).

  • Cadernos de Sade16 setembro de 2011

    A Conjuntura e as Polticas Sociais

    A eleio de Luiz Incio Lula da Silva significou um marco poltico na histria do pas, pois foi a primeira vez que se elegeu um representante da classe ope-rria brasileira com forte experincia de organizao poltica (Braz, 2004, p. 49). A consagrao eleitoral foi resultado da reao da populao contra o projeto neo-liberal implantado nos anos de 1990. Isto , pela primeira vez venceu o projeto que no representa, em sua origem, os interes-ses hegemnicos das classes dominantes.

    Apesar das dificuldades do cenrio in-ternacional, com a presso dos mercados e do capitalismo financeiro, acreditava-se que, no Brasil, estaria se inaugurando um novo momento histrico em que se enfrentaria as polticas de ajuste. No se esperava transformaes profundas, dian-te dos acordos ocorridos, mas havia ex-pectativas com relao s polticas sociais e participao social.

    A legitimidade expressa nas urnas, para exercer um governo orientado para mudar o Brasil numa direo democrti-co-popular (Netto, 2004, p. 13) e para uma poltica econmica direcionada ao mercado interno de massas, articu-lada a uma poltica social mais ousada (BEHRING, 2004), no foi levada em considerao.

    A anlise realizada por Behring (2004), explicita que, no plano econmico, todos os parmetros macroeconmicos da era FHC foram mantidos, permanecendo in-tocveis: o supervit primrio; a Desvin-culao de Receitas da Unio (DRU)25; taxas de juros parametradas pela Selic; apostas na poltica de exportao, com base no agronegcio; o inesgotvel paga-mento dos juros, encargos e amortizaes da dvida pblica; e o aumento da arreca-dao da Unio.

    Essas orientaes econmicas tm impactos nas polticas sociais. De acor-do com Soares (2004), a tese central do governo que a soluo no est na ex-panso do gasto social, e sim na focali-zao. Continua-se com polticas focais, em detrimento da lgica do direito e da Seguridade Social universalizada.

    Para Marques & Mendes (2005), as polticas sociais no governo Lula esto estruturadas em trs eixos que funda-mentam a concepo de proteo social

    utilizada. O primeiro o Projeto Fome Zero, que ficou basicamente concentrado no programa Bolsa-Famlia; o segundo, a contrarreforma da Previdncia Social; e o terceiro refere-se ao trato dado pela equipe econmica aos recursos da Segu-ridade Social.

    A ao mais importante na rea social o programa de transferncia de renda Bolsa Famlia, criado em 2003, com o desafio de combater a misria, atravs da unificao de todos os programas sociais e a criao de um cadastro nico de be-neficirios.

    Apesar dos avanos nas condies de vida de milhes de brasileiros, impor-tante destacar que o Bolsa Famlia no se constitui um direito, pois trata-se de uma poltica de governo, fruto de uma deciso do Executivo federal. No sendo uma po-ltica de Estado, pode ser extinto a qual-quer momento. Ressalta-se que o combate pobreza no se d apenas por polticas de transferncia de renda, mas preciso que estas estejam associadas a outras po-lticas sociais. Isto , no contexto de uma poltica de universalizao da proteo social, a garantia de renda seria compre-endida como um direito. E o seu avano no abandonaria a idia de universaliza-o das polticas sociais, ou seja, no seria acompanhado com a implantao de um Estado mnimo nos outros ramos da proteo social26 (Marques & Mendes, 2005, p. 169).

    A contrarreforma da Previdncia So-cial, ocorrida no governo Lula, realizou, no mbito do servio pblico, aes res-tritivas de direitos que haviam sido der-rotadas durante a gesto FHC27. H uma reduo de direitos do mundo do trabalho, a privatizao dos recursos pblicos e a ampliao dos espaos de acumulao do capital. Granemann (2004) destaca que a especulao financeira, promovida pelos fundos de penso, atinge o Estado por meio dos investimentos em renda fixa que tm como importantes fontes de suas apli-caes os ttulos pblicos. A autora ressal-ta ainda que essas medidas nos reservam, como futuro, uma necessidade inarred-vel de endividamento pblico, posto que partes significativas das contribuies previdencirias da fora de trabalho esta-tal e privada foram cedidas aos fundos de penso e s previdncias abertas (2004, p. 32). Nesta perspectiva, o endividamen-to estatal agravado e a emisso de ttulos

    pblicos colocada como soluo e, en-tre seus compradores, esto os fundos de penso. Dessa forma, as contra-reformas do Estado, que tinham como objetivo so-lucionar as crises fiscais, so os seus prin-cipais elementos geradores.

    Em sntese, a contrarreforma previ-denciria do governo Lula caracteriza-se por ser antidemocrtica, anti-republicana e ainda por promover uma redistribuio de renda s avessas, entre os servidores e o capital financeiro (Marques & Mendes, 2005, p. 150-151)28.

    Em 2009, no segundo mandato, o go-verno apresenta Cmara dos Deputados a proposta de Reforma Tributria (Projeto de Emenda Constitucional - PEC 233/08), na qual prope profundas alteraes no sistema tributrio nacional, com vistas sua simplificao e desburocratizao, eliminao da guerra fiscal, desonerao parcial da tributao sobre a folha de sa-lrios, eliminao de distores e cumu-latividade e aumento da competitividade econmica. Tal proposta traz graves con-seqncias ao financiamento das polticas sociais no Brasil, ameaando de forma substancial as fontes exclusivas que do suporte s polticas de Seguridade Social (Previdncia, Sade e Assistncia Social), Educao e Trabalho29.

    Esse projeto, se aprovado na forma atu-al, subtrai recursos e quebra salvaguardas constitucionais de benefcios e programas sociais e servios pblicos, atualmente protegidos pelo art. 195 da Constituio Federal de 1988. Desconstruda a capaci-dade de financiamento da Seguridade So-cial, a construo e a efetividade de direi-tos declarados em vrias partes do texto constitucional ficam inviabilizadas.

    A Reforma Tributria no interessa so-mente aos setores representativos do em-presariado nacional ou aos governadores e prefeitos. um tema que interessa a toda a sociedade. A carga tributria, o financia-mento do Estado, os tributos recolhidos incidem sobre toda a populao, 2/3 das receitas arrecadadas advm de tributao sobre consumo e sobre a renda dos traba-lhadores. Nessa direo, necessria uma reforma que no apenas racionalize o sis-tema tributrio, mas tambm o torne me-nos regressivo, ou seja, mais justo e redis-tributivo. Ao mesmo tempo, preciso ter claro que as mudanas propostas afetaro profundamente toda a Seguridade Social, colocando em risco as grandes conquistas

  • Cadernos de Sade setembro de 2011 17

    sociais da Constituio Federal de 198830.

    Esse breve balano das polticas sociais mostra que, apesar de algumas inovaes, a agenda da estabilidade fiscal muito for-te e, conseqentemente, os investimentos so muito reduzidos, no apontando na di-reo de um outro projeto para o pas.

    Com relao participao social, se-gundo Moroni (2009) houve a ampliao de canais de participao, mas tambm houve um desrespeito autonomia da so-ciedade civil. Na maioria dos espaos par-ticipativos criados ou reformulados quem determina a representao da sociedade o governo.

    O que se constata que ocorre uma multiplicidade de espaos de interlocuo, mas no h uma poltica de fortalecimento do sistema descentralizado e participativo e, muito menos, ampliao dos processos democrticos. A participao ficou reduzi-da estratgia de governabilidade31.

    Vai-se fazer em seguida, algumas re-flexes com relao aos seis meses ini-ciais do governo Dilma.

    Aps a vitria de Dilma, houve algu-mas especulaes com relao as linhas gerais de seu governo. Algumas temticas so centrais nesta anlise: poltica econ-mica, poltica externa, combate s desi-gualdades, postura com relao aos temas polmicos como a legalizao do aborto, regulao social do monoplio dos meios de comunicao.

    No incio do governo, algumas aes mereceram preocupaes como cortes or-amentrios, restrio de investimentos, medidas de carter privatista como a aber-tura do capital da Infraero, a privatizao de aeroportos e a nova rodada de leiles do petrleo do Pr-Sal (Medeiros, 2011).

    Como ocorreu no governo Lula, a maior parte do oramento da unio para 2011 ser destinado rolagem da dvida pblica. A proposta que R$678,5 bilhes sejam des-tinados a pagar os juros e a amortizao da dvida. Este valor representa mais de um tero do total do oramento que chegar em 2012, a R$2,07 trilhes. H tambm a previso da manuteno do supervit pri-mrio em 3,1% do PIB, com a previso de cortes de at R$ 60 bilhes, o que equivale a todos os gastos do Ministrio da Sade (Medeiros, 2011).

    Todas estas medidas demonstram que o governo Dilma no enfatizar mais o so-cial do que o anterior mas, pelo contrrio,

    as posies assumidas nesses seis meses apontam um governo mais privatista e comprometido com a manuteno do atu-al modelo econmico.

    O corte de R$ 60 bilhes no oramento atingiu basicamente a rea social, a saber: reduo de gastos com pessoal, incluindo congelamento dos salrios (R$ 3,5 mi-lhes); corte de R$ 5 bilhes no Programa Minha Casa Minha Vida; no Ministrio da Reforma Agrria houve reduo de R$ 929 milhes; na Educao corte de R$ 3,1 milhes; na Sade R$ 578 milhes; nos Desportos R$ 1,5 milhes; no Meio Am-biente R$ 400 milhes e no Transporte R$ 2,3 milhes (Domingues, 2011).

    Com relao ao combate s desigual-dades, a primeira medida do governo Dilma nesta rea foi solicitar uma nova definio da linha da misria e da pobreza sendo o nico critrio o da renda per capi-ta da famlia. O que se verifica a subor-dinao da lgica social lgica econ-mica, com belas frmulas para combater a misria (Moroni, 2011).

    Um aspecto importante que os pri-meiros meses do governo demonstraram a crescente insatisfao de grupos sociais.

    Vrias manifestaes ocorreram ca-bendo destacar (Costa, 2011):

    A dos estudantes e trabalhadores em protesto contra a elevao da passagem dos nibus em vrias cidades do Brasil;

    Fruns Populares em todo pas de-batem a situao da sade e da educao pblica, organizando mobilizaes contra o processo de privatizao;

    Trabalhadores da construo civil reagem s condies de super explorao impostas pelas empreiteiras empresas multinacionais como a Odebrecht, Ca-margo Correa, Queiroz Galvo, Mendes Junior e outras nas obras do PAC (Pro-grama de Acelerao do Crescimento) que um dos maiores programas de trans-ferncia de verbas pblicas para as mos do grande capital.

    Mais de 80 mil trabalhadores j fize-ram greve nas obras espalhadas pelo Nor-te, Nordeste e Centro-Oeste. Ressalta-se como exemplos, a Usina de Jiro (Ron-dnia) onde a massa em revolta incendiou nibus, veculos e escritrios; na Hidro-eltrica So Domingos (Mato Grosso) os trabalhadores incendiaram os alojamen-tos; no complexo do SUAPE que rene a Refinaria Abreu e Lima e a Petroqumi-

    ca, 30 mil operrios entraram em greve; na Termeltrica de Pecm (Cear), 6 mil trabalhadores ficaram parados; na Ponte sobre o Rio Madeira (Rondnia) houve 300 grevistas. Em diversas regies, o Pro-grama Minha Casa Minha Vidas sofre paralisaes com sete mil operrios da construo civil recusando-se a trabalhar nas condies impostas.

    Os servidores pblicos fizeram trs marchas em Braslia e houve a greve dos servidores das universidades. Em agosto, foi convocada uma Jornada Nacional de Lutas para unificar essas diversas mani-festaes.

    Aps essa anlise mais geral dos go-vernos, vai-se ressaltar a poltica de sade nos mesmos.

    A Sade no Governo Lula Vai-se abordar as aes na sade desenvolvidas nos dois mandatos do governo Lula.

    A Sade noPrimeiro Mandato

    A Poltica de Sade apresentada no programa de governo do primeiro manda-to como direito fundamental e explicita-se o compromisso em garantir acesso univer-sal, equnime e integral s aes e servi-os de sade. A concepo de Seguridade Social no assumida na perspectiva na Constituio Federal de 1988. Havia uma expectativa, entretanto, de que o governo fortalecesse o Projeto de Reforma Sanit-ria na sade.

    Para a anlise, vai-se utilizar dois au-tores que escreveram sobre a temtica: Bravo (2004 e 2006), Paim et. al. (2005) e Paim (2008).

    Para Bravo (2004 e 2006), o Minis-trio da Sade, no incio do governo, vai sinalizar como um dos desafios a in-corporao da agenda tico-poltica da Reforma Sanitria. Entretanto, tem-se percebido a manuteno da disputa en-tre os dois projetos: Reforma Sanitria e Privatista. Em alguns aspectos, o gover-no procura fortalecer o primeiro projeto e, em outros, o segundo.

    A autora ressalta como aspectos de ino-vao da poltica de sade que poderiam fortalecer o primeiro projeto: o retorno da

  • Cadernos de Sade18 setembro de 2011

    concepo de Reforma Sanitria que, nos anos noventa, foi abandonada; a escolha de profissionais comprometidos com a luta pela Reforma Sanitria para ocupar o segundo escalo do ministrio; as altera-es na estrutura organizativa do Minist-rio da Sade32; a convocao extraordin-ria da 12 Conferncia Nacional de Sade (CNS)33 e a sua realizao em dezembro de 2003 e a escolha de representante da Central nica dos Trabalhadores (CUT) para assumir a secretaria executiva do Conselho Nacional de Sade.

    Como continuidade da poltica de sa-de dos anos noventa, destaca-se a nfase na focalizao, na precarizao, na tercei-rizao dos recursos humanos, no desfi-nanciamento e a falta de vontade poltica para viabilizar a concepo de Seguridade Social34. Como exemplo de focalizao, destaca-se a centralidade no Programa Sade da Famlia, sem alterao signifi-cativa, para que o mesmo se transforme em estratgia de reorganizao da ateno bsica, em vez de ser um programa de extenso de cobertura para as populaes carentes (Bravo, 2004 e 2006).

    Paim et. al. (2005) realizou um estudo, no primeiro ano do primeiro mandato, em que avaliou a Poltica de Sade a partir das seguintes temticas: Ateno Bsica; Atendimento Hospitalar e Alta Comple-xidade; Programas Especiais; Vigilncia Epidemiolgica e Sanitria; Assistncia Farmacutica; Assistncia Mdica Suple-mentar e Controle Social.

    As aes referentes ateno bsica assinalam um compromisso do governo com a ampliao e o fortalecimento do Programa Sade da Famlia, atravs do aumento do financiamento e da ampliao de equipes de sade da famlia (Paim et. al., 2005).

    Para a ateno hospitalar e de alta complexidade, os autores ressaltam o fortalecimento dos vnculos dos hospitais universitrios (HUs) com o Sistema ni-co de Sade (SUS), atravs de algumas medidas, a saber: recomposio dos qua-dros de servidores desses hospitais; nova forma de financiamento dos HUs. Outras aes nesta direo: a estruturao do ser-vio de emergncia, com o lanamento do Programa Nacional de Ateno Integral s Urgncias e a criao do Servio de Aten-dimento Mvel de Urgncia (SAMU); o estmulo e apoio criao de Centrais de Regulao Regionais das Urgncias.

    Salienta-se, entretanto, segundo Mas-son (2007), que o grupo de trabalho in-terministerial, institudo no mbito do Ministrio da Educao em 2006, ao produzir parecer tcnico sobre a gesto e financiamento dos HUs vinculados s Instituies Federais de Ensino Superior (IFES), vai destacar, principalmente, o problema de gesto. A poltica de cria-o de indicadores para credenciamento e qualificao dos HUs, apesar de con-ter aspectos importantes, proporcionou oportunidade para o governo elaborar um diagnstico das condies de desempenho dessas unidades. Este diagnstico, por sua vez, forneceu dados para a implantao da proposta de contrarreforma da natureza jurdica (Fundaes Privadas) e da funo social dos HUs. O relatrio enfatiza que o problema dos HUs reside no desperd-cio por conta das deficincias de gesto, planejamento e integrao entre as esferas de governo. No se enfatiza a questo central, que a insuficincia de recursos.

    Com relao aos Programas Espe-ciais, foram mantidos os de combate ao Tabagismo e AIDS. No que diz respei-to sade da mulher, houve um esforo para enfrentar a mortalidade materna e formular uma poltica especfica. Quanto ao Programa de Tuberculose necessrio garantir a cobertura da ateno. Apesar das aes sobre as doenas infecto-con-tagiosas, o perfil epidemiolgico do pas indica que outras enfermidades e agravos merecem a ateno da Vigilncia em Sa-de, tais como a violncia e as doenas cr-nico-degenerativas (Paim et. al., 2005).

    Sobre a Assistncia Farmacutica, o governo buscou a ampliao de laborat-rios oficiais e criou as farmcias popula-res35; aumentou a fiscalizao e o controle dos medicamentos. Os autores ressaltam que um aspecto que no foi enfrentado, apesar do Conselho Nacional de Sade (CNS) ter apontado como desafio para o SUS, refere-se subordinao das agn-cias reguladoras s instncias gestoras p-blicas, mesmo se tratando de autarquias especiais: esta a situao da Agncia Nacional de Sade Suplementar. O gover-no tem-se posicionado de forma tmida em relao regulao e ao controle da sade suplementar.

    Em relao ao Controle Social, ex-plicitado como avano pelos dois autores a criao da Secretaria de Gesto Estrat-gica e Participativa, que tem como com-

    petncia fortalecer a participao social e a realizao de diversas conferncias em articulao com o Conselho Nacional. En-tre as conferncias realizadas, destaca-se a 12 Conferncia Nacional de Sade, em 2003, em carter extraordinrio, com o tema Sade: um direito de todos e dever do Estado. A Sade que temos, o SUS que queremos, e as seguintes Conferncias Temticas: 3 Conferncia Nacional de Sade Bucal e 2 Conferncia Nacional de Cincia, Tecnologia e Inovao em Sade (2004); 3 Conferncia Nacional de Sa-de do Trabalhador (2005); 3 Confern-cia Nacional de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade e 3 Conferncia Na-cional de Sade Indgena (2006)36. Outro aspecto importante foi a eleio do pre-sidente do Conselho Nacional de Sade, em 2006, pela primeira vez em 70 anos de existncia37 (Radis 53).

    Um dos aspectos centrais da Poltica de Sade refere-se aos trabalhadores de sade, que foram terceirizados nos anos de 1990. Nesta direo, algumas propos-tas tm sido defendidas e foram objeto de discusso na 3 Conferncia Nacional de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade, como a implantao do Plano de Carreira, Cargos e Salrios (PCCS) para o SUS; educao permanente; proteo social do trabalhador e regulao pblica das especialidades a partir das necessida-des de sade da populao e do SUS; des-precarizao do trabalho; implementao da Norma Operacional Bsica de Recur-sos Humanos (NOB/RH-SUS), aprova-da como Poltica Nacional, por meio da Resoluo n 330, em 2004. As aes ne-cessrias para a viabilizao da poltica, entretanto, no foram efetivadas.

    A partir das contribuies dos auto-res, pode-se identificar que a poltica de sade sofreu os impactos da poltica ma-croeconmica. As questes centrais no foram enfrentadas, tais como a universa-lizao das aes, o financiamento efe-tivo, a Poltica de Gesto do Trabalho e Educao na Sade e a Poltica Nacional de Medicamentos.

    Na atual conjuntura, desafios esto co-locados para os defensores do Projeto de Reforma Sanitria com relao demo-cratizao da sade. importante desta-car que o movimento sanitrio, formula-dor do Projeto de Reforma Sanitria e do SUS, durante a dcada de 1990, ficou em posio defensiva, apenas resistindo aos

  • Cadernos de Sade setembro de 2011 19

    ataques ao SUS. Em junho de 2005, foi realizado, na

    Cmara dos Deputados, o 8 Simpsio sobre Poltica Nacional de Sade, com o tema SUS o presente e o futuro: ava-liao do seu processo de construo. Este simpsio reuniu mais de oitocentos participantes, entre eles, representantes da Frente Parlamentar de Sade, diversas entidades da sade e representantes da populao usuria, dos trabalhadores da sade, dos prestadores de servios e dos gestores. Ao final do encontro, foi lanada a Carta de Braslia, que destaca propostas afirmando o compromisso com o direito universal e integral sade, com o Sis-tema nico de Sade, com o Projeto de Reforma Sanitria e com a Seguridade Social, a saber:

    Definio de uma Poltica Nacional de Desenvolvimento;

    Defesa da Seguridade Social como poltica de proteo social universal;

    Defesa intransigente dos princpios e diretrizes do SUS;

    Retomada dos princpios que regem o Oramento da Seguridade Social, mas, imediatamente, regulamentar a Emenda Constitucional n 29;

    Cumprimento da Deliberao N 001, de 10 de maro de 2005, do Conse-lho Nacional de Sade, contrria tercei-rizao da gerncia e gesto de servios e de pessoal do setor sade38;

    Avanar no desenvolvimento de uma poltica de recursos humanos em sade, com eliminao de vnculos precrios;

    Estabelecimento de Plano de Cargos, Carreiras e Salrios para o SUS de manei-ra descentralizada, sem a incidncia dos atuais limites de gastos da Lei de Respon-sabilidade Fiscal;

    Avanar na substituio progressiva do sistema de pagamento de servios por um sistema de oramento global integra-do, alocando recursos baseados nas neces-sidades de sade da populao;

    Reviso da lgica de subsdios e isen-es fiscais para operadores e prestadores de planos e seguros privados de sade, redirecionando esses recursos para o sis-tema pblico de sade;

    Avanar no debate do projeto de lei que trata da Responsabilidade Sanitria, no sentido de se retomar o cerne da dis-cusso para a garantia do direito sade;

    Garantir a democratizao do SUS, com o fortalecimento do controle social;

    Definio de uma poltica industrial, tecnolgica e de inovao em sade e ga-rantir assistncia farmacutica integral;

    Desenvolvimento de aes articula-das entre os Poderes (Executivo, Legis-lativo e Judicirio) para a construo de solues relativas aos impasses na imple-mentao do SUS;

    Recriao do Conselho Nacional de Seguridade Social.

    Aps esse encontro, observou-se a ini-ciativa de viabilizao das entidades em torno das bandeiras da Reforma Sanitria. Surge, em seguida, o Frum da Reforma Sanitria, formado pelas seguintes enti-dades: o Centro Brasileiro de Estudos da Sade (Cebes)39, a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (Abrasco), a Associao Brasileira de Economia da Sade (Abres), a Rede Uni-da e a Associao Nacional do Ministrio Pblico em Defesa da Sade (Ampasa). Este frum lana o seu primeiro manifes-to, no dia 23 de novembro de 2005, em ato pblico realizado na Cmara dos De-putados, com vistas defesa da aprova-o da Emenda Constitucional n 29 e ampliao de mais recursos no oramento da sade, em 2006. Este manifesto, inti-tulado Frum da Reforma Sanitria Bra-sileira: reafirmando compromissos pela sade dos brasileiros, defende a Refor-ma Sanitria e apresenta uma agenda para a sade dos brasileiros. O frum lanou mais dois documentos, um sobre os gastos pblicos em sade Gasto em Sade no Brasil: muito ou Pouco? e outro que foi apresentado aos candidatos eleio de 2006 O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade.

    O Frum da Reforma Sanitria, com a iniciativa do Cebes, organizou, em de-zembro de 2006, o Encontro Nacional de Conjuntura e Sade, na Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ). Este encontro teve como objetivo discutir uma agenda de debates para a reconstruo de um campo poltico da Reforma Sanitria que d feio a um projeto mais geral para o pas e articule as diversas lutas do setor sade, como o financiamento e a alterao do modelo assistencial (Radis 53). Segundo Paim (2008), entre os temas discutidos no en-contro, destacam-se o movimento sanit-rio e a mdia, a ampliao da agenda, o

    retorno da militncia e as propostas dos candidatos para a sade. Este ltimo tema foi considerado central diante da proxi-midade das eleies. Neste caso, como aspectos relevantes, pode-se salientar que as plataformas de sade dos candidatos no eram conhecidas pela sociedade, a sade no era prioridade para os partidos polticos e que, nos programas de sade divulgados, no havia diferena entre as propostas dos candidatos.

    No final do primeiro mandato, foi apresentado o Pacto pela Sade (2006), com o objetivo de rediscutir a organiza-o e o funcionamento do SUS e avanar na implementao dos seus princpios. Entretanto, at o momento, este pacto no tem sido debatido amplamente40.

    A Sade noSegundo Mandato

    O Plano de Governo 2007-2010 di-vulgado pelo candidato Lula no apre-senta um compromisso com a Reforma Sanitria, uma vez que no menciona alguns eixos considerados centrais, a saber: controle dos planos de sade, fi-nanciamento efetivo e investimentos, ao intersetorial e poltica de gesto do trabalho (Paim, 2008).

    Na composio do segundo governo Lula, escolhido para ministro da Sa-de um sujeito poltico que participou da formulao do Projeto de Reforma Sani-tria dos anos de 1980. Em seu discurso de posse, o ministro Jos Gomes Tempo-ro afirma que h uma tenso permanente entre o iderio reformista e o projeto real em construo, assim como aspectos cul-turais e ideolgicos em disputa, como as propostas de reduo do Estado, de indi-vidualizao do risco, de focalizao, de negao da solidariedade e banalizao da violncia. Um dos possveis caminhos de superao deste conflito certamente pas-sa pelo reconhecimento da sociedade de pensar a sade como um bem e um proje-to social. necessrio, portanto, retomar os conceitos da Reforma Sanitria Brasi-leira, que no se limitam construo do SUS, mas ao aumento da capacidade para interferir crescentemente na determinao social da doena. E os sujeitos deste pro-cesso so os usurios e os profissionais de sade. Sem eles, o projeto ser derrotado.

    O ministro, no primeiro ano de sua gesto, levantou para o debate questes

  • Cadernos de Sade20 setembro de 2011

    polmicas como a legalizao do aborto, considerado como um problema de sade pblica41; a ampliao das restries pu-blicidade de bebidas alcolicas e a neces-sidade de fiscalizar as farmcias. Tomou tambm algumas medidas, entre elas, a de maior impacto foi a quebra de patente do medicamento Efavirenz (Stocrin), da Merk Sharp & Dohme, elogiada ampla-mente pelas entidades de combate AIDS (Revista poca, 14/05/2007).

    O Ministrio da Sade, entretanto, no tem enfrentado algumas questes centrais ao iderio reformista construdo desde meados dos anos setenta, como a concep-o de Seguridade Social, a Poltica de Recursos Humanos e/ou Gesto do Tra-balho e Educao na Sade e a Sade do Trabalhador. Apresenta, por outro lado, proposies que so contrrias ao projeto, como a adoo de um novo modelo jur-dico-institucional para a rede pblica de hospitais, ou seja, a criao de Fundaes Estatais de Direito Privado.

    A proposio mais preocupante a criao das Fundaes Estatais, cujo de-bate est mais avanado na sade42 , mas pretende atingir todas as reas que no sejam exclusivas de Estado, tais como sade, educao, cincia e tecnologia, cultura, meio ambiente, desporto, previ-dncia complementar, assistncia social, entre outras43.

    Algumas questes podem ser levan-tadas com relao a esta proposta, tendo por referncia a sade: as fundaes se-ro regidas pelo direito privado; tem seu marco na contra-reforma do Estado de Bresser Pereira/FHC; a contratao de pessoal por CLT, acabando com o RJU (Regime Jurdico nico); no en-fatiza o controle social, pois no prev os Conselhos Gestores de Unidades e sim Conselhos Curadores; no leva em considerao a luta por Plano de Cargo, Carreira e Salrio dos Trabalhadores de Sade; no obedece as proposies da 3 Conferncia Nacional de Gesto do Tra-balho e Educao na Sade, realizada em 2006; fragiliza os trabalhadores atravs da criao de Planos de Cargo, Carreira e Salrio por Fundaes.

    Os movimentos sociais tm reagido a esta proposio. Em 2007, o Conselho Nacional de Sade se posicionou con-trrio na sua reunio do ms de junho44. Neste ano, foram realizadas Conferncias Estaduais em todos os estados brasileiros

    e a 13 Conferncia Nacional de Sade - maior evento envolvendo a participao social no pas. Em todas estas confern-cias a proposta de criao das Fundaes de Direito Privado foi rejeitada.

    A 13 Conferncia Nacional de Sade teve como tema central Sade e Quali-dade de Vida: Poltica de Estado e De-senvolvimento. O Conselho Nacional de Sade entendeu que era importante para a sociedade brasileira definir diretrizes para o avano e a garantia da sade como direito fundamental no desenvolvimento humano, econmico e social, bem como apontar estratgias para fortalecer a par-ticipao social no enfrentamento dos desafios atuais, para assegurar o Sistema nico de Sade como poltica de Estado.

    Dois temas foram centrais na 13 Con-ferncia: o projeto de Fundao Estatal de Direito Privado no mbito da sade e a descriminalizao do aborto. O projeto foi reprovado no somente em todos os grupos, mas tambm na plenria final. Marcou, desta forma, um posicionamento claro do movimento da sade contrrio ao modelo de gesto proposto pelo governo federal, que retoma, com novo flego, a contrarreforma do Estado, iniciada no go-verno Fernando Henrique Cardoso (FHC) por Bresser Pereira (Bravo, 2008).

    Os delegados do maior evento da sa-de pblica brasileira apontaram como propostas para as questes vivenciadas pelo SUS o aprofundamento das polticas universalistas, o cumprimento da legisla-o brasileira sobre a gesto do trabalho e da educao na sade para o SUS e a aprovao do PLP 01/2003 da Cmara dos Deputados, atualmente PLC n 89/2007 (no Senado Federal), que regulamenta a Emenda Constitucional 29, que se refere ao financiamento.

    Quanto descriminalizao do abor-to, a conferncia posicionou-se desfavo-ravelmente. A tradio cultural brasileira e a influncia da Igreja Catlica pesaram acentuadamente na escolha poltica dos delegados com relao a esse tema. O desafio colocado avanar e aprofundar esse debate, relacionando-o a uma ques-to de sade pblica.

    Um aspecto importante evidenciado na 13 CNS diz respeito autonomia do Conselho Nacional de Sade em re-lao ao governo, o que s foi possvel em decorrncia do presidente ter sido eleito pelos conselheiros e ter legitimi-

    dade na plenria.A conferncia s foi realizada em

    2007 face determinao do Conselho Nacional de Sade, apesar das dificulda-des enfrentadas e do pouco envolvimento do Ministrio da Sade, com exceo da Secretaria de Gesto Estratgica e Parti-cipativa.

    A questo preocupante aps a 13 CNS o fato do ministro da Sade no aceitar a deciso da mesma com relao ao projeto de Fundao Estatal de Direito Privado, continuando a defend-lo e a mant-lo no Programa Mais Sade, conhecido como PAC Sade, apresentado nao e ao Conselho Nacional de Sade no dia 5 de dezembro de 2007.

    O Programa Mais Sade apresenta quatro pilares estratgicos, a saber:

    Promoo e Ateno - Envolve aes de sade para toda a famlia, desde a ges-tao at a terceira idade.

    Gesto, Trabalho e Controle Social - Qualifica os profissionais e gestores, for-ma recursos humanos para o Sistema ni-co de Sade (SUS) e garante instrumentos para o controle social e fiscalizao dos recursos. Neste item, a proposta central a criao da Fundao Estatal de Direito Privado.

    Ampliao do Acesso com Qualidade - Reestrutura a rede, cria novos servios, amplia e integra a cobertura no SUS.

    Desenvolvimento e Inovao em Sade - Trata a sade como um importan-te setor de desenvolvimento nacional, na produo, renda e emprego.

    Nesta conjuntura ficou a indagao de como ampliar a participao social se um de seus mecanismos, como os conselhos e conferncias, foram banalizados e suas propostas no foram respeitadas.

    A expectativa que se tem num Esta-do democrtico de direito que os mi-nistros sejam exemplares no respeito aos princpios e normas constitucionais e no acolhimento s decises democrticas (Dallari, 2007).

    A proposta de Fundao Estatal de Direito Privado foi aprovada em diversos Estados, a partir de 2007. O Rio de Janei-ro foi o primeiro a aprovar a Lei que regu-lamenta a mesma em dezembro de 2007 (Lei n 5164, de 17 de dezembro de 2007). Outros Estados da federao tambm aprovaram em seguida a proposta de Fun-dao de Direito Privado, a saber: Bahia,

  • Cadernos de Sade setembro de 2011 21

    Sergipe, Pernambuco, Acre, Tocantins.

    Em 2009, a proposta das Fundaes Pblicas de Direito Privado reapresen-tada ao Congresso Nacional, em carter de urgncia, na contramo do que o Con-selho Nacional de Sade tem defendido, revelando a inteno-ao do governo de esvaziar o controle social democrtico na sade, de implementar a lgica privatista, de controlar o movimento dos trabalha-dores, com o fim da estabilidade do RJU subjugando trabalhadores s intencio-nalidades dos gestores. A proposta desca-racteriza o SUS Constitucional nos seus princpios fundamentais e todas as pro-posies que o Movimento Popular pela Sade e o Movimento de Reforma Sani-tria sonharam construir em suas lutas desde meados dos anos setenta. Substitui-se o interesse pblico por interesses par-ticularistas numa privatizao perversa do Estado brasileiro, o que infelizmente no novidade na cena pblica nacional. Todas essas modificaes, entretanto, so ancoradas em valores que foram ressigni-ficados, como a democracia, a qualidade, a transparncia, a eficincia e a eficcia.

    A anlise que se faz aps os dois man-datos do governo Lula que a disputa en-tre os dois projetos na sade existentes nos anos de 1990 continuou. Algumas propostas procuraram enfatizar a Reforma Sanitria, mas no houve vontade poltica e financiamento para viabiliz-las. O que se percebe a continuidade das polticas focais, a falta de democratizao do aces-so, a no viabilizao da Seguridade So-cial e a articulao com o mercado.

    Alguns autores ao analisar as priori-dades da agenda federal da sade identi-ficaram quatro polticas prioritrias (Ma-chado, Baptista e Nogueira, 2011 e Bahia, 2010): Estratgia Sade da Famlia (ESF) que persiste na agenda de sucessivas ges-tes ministeriais e anteriores ao governo Lula e as que foram salientadas pelo go-verno - Brasil Sorridente, SAMU (Servi-o de Atendimento Mvel de Urgncia) e Farmcia Popular.

    Segundo Machado, Baptista e Noguei-ra (2011), o Brasil Sorridente uma po-ltica de ampliao da ateno em sade bucal em todos os nveis, inclusive no atendimento de maior complexidade. Pre-v a expanso de equipes de sade bucal junto sade da famlia, define a implan-tao de centros de especialidades odon-tolgicas de referncia alm da implan-

    tao de laboratrios de rtese e prteses dentrias. O programa se efetiva dezesse-te anos aps a I Conferncia Nacional de Sade Bucal.

    O SAMU constitudo por uma central de regulao mdica, uma equipe de pro-fissionais e um conjunto de ambulncias, de abrangncia municipal ou regional (Machado, Baptista e Nogueira, 2011).

    A quarta poltica priorizada, segundo as autoras citadas, o programa Farm-cia Popular. Foi lanado como proposta na campanha eleitoral para a Presidncia de 2002. Esta poltica objetiva o aumento do acesso das pessoas a medicamentos de baixos preos para as famlias com sub-sdios do governo federal, sendo uma es-tratgia de co-pagamento entre usurios e o Estado. Baseava-se inicialmente na abertura de farmcias estatais geridas pela Fundao Oswaldo Cruz ou por meio de parcerias com estados e municpios. Em 2008, ultrapassa 450 unidades no pas. Nos casos de parcerias, o governo fede-ral oferece incentivo para a instalao das farmcias e os estados e municpios ficam com parte dos custos de manuten-o e pagamento de pessoal. As farmcias disponibilizam para a venda subsidiada pelo Ministro da Sade mais de seten-ta medicamentos referentes s doenas cardiovasculares, infecciosas, sistema endcrino e anticoncepcionais orais que so vendidos diretamente s pessoas com receita mdica e o usurio paga 10% do valor e o governo federal arca com 90%.

    Uma segunda vertente do programa cresce a partir de 2006, havendo o creden-ciamento de farmcias privadas cuja ex-panso se d de forma acelerada nos anos subsequentes, alcanando mais de seis mil estabelecimentos em 2008 (Machado, Baptista e Nogueira, 2011).

    O programa Farmcia Popular introdu-ziu, na prtica, o co-pagamento na aquisi-o de medicamentos o que colide com as diretrizes do SUS que prev atendimento integral sade, incluindo a assistncia farmacutica. Outro problema a parceria pblico-privado, com a estratgia utiliza-da a partir de 2006, com o Estado subsi-diando as farmcias privadas, reforando o carter privatista da sade.

    Com relao ao movimento sanitrio, o Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES), a partir de 2008, tem procurado debater alguns eixos temticos que con-sidera importantes para a atualizao da

    agenda da Reforma Sanitria brasileira.

    O primeiro evento foi realizado no Rio de Janeiro, em junho de 2008, com o tema Sade e Democracia: participao polti-ca e institucionalidade democrtica.

    O segundo tema, Seguridade Social e Cidadania: desafios para uma sociedade inclusiva, foi objeto de Seminrio Inter-nacional, realizado em setembro de 2008 no Rio de Janeiro.

    Em 2009, dois grandes temas foram escolhidos para aprofundamento: o Pbli-co e o Privado na Sade seminrio que ocorreu em So Paulo, em abril de 2009 e a Questo da Determinao Social da Sade, com elaborao de um documento de referncia.

    Ressalta-se a amplitude dos debates e a nfase na divulgao dos resultados dos eventos atravs de publicaes e boletins informativos.

    Identifica-se, entretanto, a modificao do referencial terico que foi hegemnico nos anos oitenta. A proposta de Reforma Sanitria teve como grande influncia te-rica o marxismo, primordialmente atravs das elaboraes de Gramsci e de um de seus seguidores Berlinguer, autor prin-cipal da Reforma Sanitria Italiana, que teve grande repercusso no movimento brasileiro.

    Na atualidade, a direo do CEBES tem destacado que o marxismo apenas uma das mltiplas teorias crticas que permitem ter uma posio politicamente comprometida com a mudana social. Ar-gumenta que a crise do pensamento e do movimento marxista profunda e ocorre em escala planetria.

    A direo da entidade reconhece como legitimas todas as correntes do pensamen-to que tm em comum o fato de salien-tarem os aspectos da autonomia da ao do sujeito, da tica e da intersubjetividade comunicativa e como autores relevantes so apontados: Heller, Arendt, Haber-mans, Bourdier, Taylor, Giddens, Rorty, entre outros (Cebes, 2009).

    Na nossa anlise, o que se evidencia com esta posio que h a defesa do pluralismo, mas sem hegemonia da te-oria social crtica, o que pode levar ao ecletismo45.

    Esta posio vai influenciar na direo social da Reforma Sanitria, que passa a ser orientada pela social-democracia, perspectiva dos autores referidos que no

  • Cadernos de Sade22 setembro de 2011

    tem como preocupao a superao do capitalismo. A concepo anterior, cons-truda a partir de meados dos anos setenta, tinha como horizonte a emancipao hu-mana, que s seria alcanada com o so-cialismo.

    Percebe-se tambm, em outras publi-caes da Sade Coletiva, vinculadas academia, a nfase no cotidiano, sem re-ferncia perspectiva de totalidade social, e s categorias de luta de classes e histo-ricidade.

    Outra questo que se evidencia tam-bm nas produes a nfase em algumas temticas, como a promoo da sade, cuidado e auto-cuidado, humanizao, estilo de vida. Percebe-se, em algumas anlises, a responsabilizao do indivduo pela sua sade e as estratgias tm sido estimular os sujeitos a encontrarem alter-nativas fora do sistema de sade, ou seja, fora do Estado atravs do fortalecimento da sociedade civil.

    O conceito de determinao social da sade e da doena tambm est sendo re-duzido a fatores sociais que promovem a sade ou causam as doenas. O que re-torna a cena o pressuposto positivista da epidemiologia tradicional. A publica-o dos relatrios sobre determinantes sociais da sade pela OMS (Organizao Mundial de Sade) e pela Comisso Na-cional, em 2008, segue esses referen-ciais. Os fatores socioeconmicos e os de ordem biolgica e ambiental so colo-cados num mesmo plano de importncia epistemolgica46.

    Destaca-se, entretanto, que alguns sujeitos coletivos tm sido mais crticos com relao privatizao da sade. .

    O Conselho Nacional de Sade tem divulgado diversos documentos que de-nunciam o retrocesso que a sade pblica brasileira e o SUS vem sofrendo nos l-timos anos, colocando-o definitivamente em risco, em decorrncia de aes do go-verno federal.

    A Plenria Nacional de Conselhos de Sade, em reunio extraordinria ocorrida em Braslia, em maio de 2009, especifica como principais questes:

    A desestruturao da rede de ateno primria sade, privilegiando os proce-dimentos especializados e de alto custo;

    A no regulamentao da Emenda Constitucional n 29, implicando no subfi-nanciamento da sade pblica a partir do

    no cumprimento dos percentuais mni-mos de investimento pela Unio, maioria dos estados e parte dos municpios;

    Avano da privatizao do SUS em detrimento do servio pblico eminente-mente estatal, atravs da desestruturao, sucateamento e fechamento dos servios pblicos e ampliao da contratao de servios privados, numa flagrante vio-lncia aos ditames constitucionais;

    Precarizao dos servios pblicos e das relaes de trabalho, com baixa remu-nerao dos trabalhadores e enormes dis-crepncias salariais sem definio de uma poltica de um plano de cargos, carreiras e salrios para os profissionais do SUS.

    A plenria se posicionou contrria proposio do Projeto de Lei n 92/07, que cria as Fundaes Pblicas de Di-reito Privado, considerando que o mes-mo descumpre o artigo 37 da Constitui-o Federal e configura um golpe final na desconstruo terica, prtica e po-ltica do SUS, que dispe da legislao reconhecida como a mais avanada do mundo e nunca cumprida em sua totali-dade, com reflexo em vrias outras reas do servio pblico do pas.

    Em maio de 2010, surgiu a Frente Nacional Contra as Organizaes So-ciais (OSs) e pela Procedncia a Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.923/98, como resultado de uma arti-culao dos Fruns de Sade dos estados de Alagoas, Paran, Rio de Janeiro, So Paulo e do municpio de Londrina em torno da procedncia da referida Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI), contrria Lei 9.637/98 que cria as Or-ganizaes Sociais (OSs), que tramitava no Supremo Tribunal Federal (STF) para julgamento, desde 1998.

    Em novembro de 2010, no Rio de Janeiro, foi realizado o Seminrio Na-cional 20 anos de SUS, lutas sociais contra a privatizao e em defesa da sade pblica e estatal. Inicialmen-te, pensado para cerca de 100 pessoas, atraiu inmeras entidades do pas intei-ro contando co