Revista Coito Cerebral #0

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Edição piloto da revista criada no final de 2007. Com projeto gráfico diferente do atual, e ainda sem definição editorial, apresentou, entre resenhas, uma reportagem sobre o Hospital Colônia Itapuã.

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Editorial

xiste um lugar que parece uma cidade perdida. Desconhecido, para muitos não existe nem na imaginação. Mas ele está lá. Suas pequenas ruas, casas e pavilhões abrigam personagens de uma história tão distante quanto o próprio local. É esta cidade perdida, chamada Hospital Colônia Itapuã (HCI), a moradia de ex-hanse-

nianos que, mesmo após receberem alta, acuados pelo preconceito, continuaram residindo no hospital. Localizado às margens da Lagoa dos Patos e da Lagoa Negra, o HCI foi uma das principais iniciativas da campanha contra a hanseníase, em uma época que pouco se sabia sobre a doença. Esta instituição cercada de histórias marcou o imaginário dos doentes, pois significava, acima de qualquer coisa, o último lugar do mundo.

A hanseníase é uma doença milenar. Durante séculos, princi-palmente na Idade Média, foi considerada castigo de Deus. Essa visão da doença, que pode causar deformidades nos membros e no rosto se for tratada tardiamente (ver quadro), estigmatizou o doente, e chega aos dias de hoje quase com o mesmo preconceito. As origens encon-tram-se em relatos bíblicos e na visão de mundo do homem medieval, período em que muitos problemas de saúde eram explicados através da religião. Diante das precárias condições de vida, doenças conta-giosas logo assumiam proporções epidêmicas, e a falta de conheci-mento médico agravava a situação. Entre as moléstias que acome-teram milhares de pessoas e muitas vezes vitimaram grande parte dessas, a hanseníase era vista não só com repúdio e como castigo di-vino, mas também como um elemento que atuava sobre o caráter das pessoas. Inconformados com seu destino, acreditava-se que eles esco-lhiam levar uma vida promíscua apenas para transmitir a doença.

De uma forma geral, quem tivesse lepra era considerado um indivíduo morto. Uma missa era preparada em sua intenção, diante de sua presença, e três pás de terra eram jogadas sobre sua cabeça ou pés.

Ao final, era obrigado a vestir um manto negro, que lhe cobria o corpo inteiro, e um sino para levar pendurado no pescoço, para que pessoas sadias soubessem estar se aproximando um leproso. Mais tarde, seriam construídos os leprosários, local que funcionaria apenas como um depósito de doentes, já que tratamento médico não existia.

No Brasil, os relatos iniciais sobre a hanseníase datam do período colonial, o que prova a tese de que fora intro-duzida no país através de colonizadores europeus. Durante a Primeira República foram construídos os primeiros lepr-osários, iniciando um trabalho que se intensi-ficaria no final do século XIX. Conferências internacionais discutiram a descoberta do caráter contagioso da doença, e recomen-daram o internamento compulsório como a única medida possível para combatê-la. Seguindo essas orientações, o Brasil implantou o conceito dos hospitais colônia.

O primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) marcou, entre outros setores, a saúde pública brasileira. Durante a década de 1920 foi fundado o Departamento Nacional de Saúde (DNS), que favoreceu o isolamento. Im-plementa-se, definitivamente, o internamento compulsório nos recém construídos hospitais asilares. No RS, a cons-trução do hospital colônia iniciou com a aquisição de uma fazenda no município de Itapuã, em 1936. A inauguração ocorreu em 11 de maio de 1940, ainda com obras em anda-mento. Logo, os portadores da doença começaram a ser identificados por agentes do Serviço de Profilaxia da Lepra (SPL), o qual deveria conduzir os doentes até o hospital. A equipe, formada especialmente para essa tarefa, buscava os doentes em suas residências, muitas vezes à força, diante do repúdio dos vizinhos. O transporte era feito em carros fe-chados, conforme relata Rita Camello, enfermeira do HCI.

O paciente era identificado dentro de um consultório, no seu município ou na Santa Casa, independente de onde fosse, e esses médicos contatavam o carro da profilaxia da lepra. Eles pegavam aquele ser humano e o levavam até o complexo do hospital. Ao chegar, diziam: aqui vais viver, e aqui vais morrer.

Construído como uma microcidade, o hospital possui casas, igrejas, praças e demais depen-dências que pudessem atenuar a sensação de confinamento. Os pacientes eram distribuídos em pavilhões para mulheres, homens e crianças. Era dividido em três áreas: A “Zona Limpa”, onde ficavam os prédios da residência para o médico diretor, administrador, casas geminadas para os funcionários, usina geradora de eletricidade, garagem e casa para o motorista. Na “Zona Intermediária” encontravam-se os prédios da administração, padaria, casa das irmãs, o pavilhão de observações e a casa do capelão. Na “Zona Suja” ficavam os 14 pavilhões “Carville”, as casas geminadas, cozinha, refeitório, hospital, lavanderia, capela, forno de incineração, necrotério, oficinas e o cemi-tério.

O tempo das irmãs

A maioria dos moradores ainda se lembra das Irmãs da Ordem Franciscana com saudade. Foram elas as únicas pessoas realmente próximas dos doentes.

– Na época das irmãs, era tudo muito mais movimen-tado

– afirma dona Elma L., ainda moradora do hospital.

Porém, outros relatos contradizem essa afirmação. Através da presença das freiras, o HCI foi fortemente re-gido pelas normas do catolicismo. Na época, foram cons-truídas duas igrejas: uma Católica e outra Luterana. Atual-mente, ao observar as duas construções, as marcas do tempo são visíveis, mas apenas para a Igreja Luterana. Esse

fato confirma as palavras de Rita:– Muitos pacientes luteranos amarguraram a

vida toda o fato de serem obrigados a praticar uma religião que não era sua. Eles contam que tinham que escolher entre largar a religião deles para entrar no catolicismo e um prato de comida.

Além da estrutura que copiava o mundo que os excluíra, o estímulo aos relacionamentos de uma forma geral também tinha como objetivo minimizar transtornos emocionais. Os namoros eram acompanhados de perto pelas irmãs, e após o casamento o casal tinha o direito de residir em casas geminadas, garantindo sua privacidade.

Isso acabava gerando outro problema, para muitos o maior. Naturalmente as mulheres engravidavam, mas como os médicos acreditavam que a hanseníase pu-desse ser transmitida de mãe para filho, logo após o parto a criança era afastada dos pais.

– A irmã parteira mostrava a criança à mãe, informava se era menino ou menina e dizia que jamais poderia tocá-lo – disse Rita.

Paralelamente à construção do HCI foi implantado no bairro Belém Velho, em Porto Alegre, o preventório Amparo Santa Cruz, com o objetivo de abrigar os filhos dos hansenianos. Então, longe de seus filhos e sem a possibilidade de algum contato, uma vez por mês um ônibus repleto de crianças parava na zona limpa, enquanto,

Fotos arquivo iconográfico CEDOPE/HCI

do outro lado do muro, os pais amontoavam-se para vê-los de longe. Anos mais tarde, com a descoberta de um tratamento eficaz para a doença e o fim do internamento compulsório, os pais puderam conviver com seus filhos no HCI, a maioria já adolescente. Foi constatada, nesse mo-mento, uma grande ruptura dos laços familiares. Muitos desses jovens rejeitaram os pais verdadeiros, raiva que se misturava ao fato de terem crescido longe de qualquer estrutura familiar.

O tempo da solidão

Apesar de toda a estrutura de segurança, que envolvia muros altos e cercas de arame farpado, as fugas eram freqüentes. Muitos pacientes inconformados em viver longe da família e amigos escapavam, seja com a ajuda de moradores de fora do hospital ou por conta própria. Isso os colocava diante de duas alternativas: ou voltavam por livre iniciativa, pois seus parentes os repudiavam, ou o carro da profilaxia iria buscá-los e conduzi-los de volta. Essas fugas colocaram fim a qualquer possibilidade de dinheiro circular internamente. Para evitar novas tentativas, e também para impedir uma possível contaminação da sociedade através desse dinheiro, foi criada uma série de moedas talhadas em alumínio, com valores diferentes, as quais seriam trocadas por produtos.

Com o passar dos anos, após a inclusão do medicamento Dapsona no tratamento, a incidência da doença diminuiu consideravelmente no estado, e o internamento compulsório foi abolido por lei em 1954. A maioria dos internos

encontrou a oportunidade para refazer suas vidas. Mas não só o preconceito de parentes marcou a saída do HCI, como também a dificuldade em encontrar emprego devido ao estigma da hanseníase. Sem alternativa, a solução foi o retorno ao hospital.

Com a desocupação de uma grande área do local o governo buscou alternativas para ocupar o espaço que se encontrou sem utilidade. A solução, na década de 1970, foi a criação do Centro de Reabilitação Agrícola (CAR), projeto do Hospital Psiquiátrico São Pedro que tinha como objetivo a reabilitação dos pacientes através do trabalho rural. Inicialmente cercada de divergências entre os portadores da hanseníase, a iniciativa mostrou alguns resultados positivos, mas o projeto foi gradualmente abandonado. Hoje, observa-se dois lados da solidão e da exclusão, ambas amparadas pelo preconceito.

O tempo que não volta

Dona Maria R. relembra com detalhes o período em que viveu com o marido no HCI. Apesar de um passado repleto de tristeza, seus olhos expressam uma alegria típica de quem viveu uma vida feliz. O jardim da casa geminada no HCI onde vive exibe uma coleção de miniaturas de A Branca de Neve e os sete anões, o mesmo jardim que, em tempos distantes, sofria com a proximidade da Lagoa dos Patos e da Lagoa Negra.

– A umidade era muito grande. Freqüentemente o jardim ficava inundado – afirma.

Esses detalhes, aparentemente sem importância, são pe-quenos pontos na costura de uma enorme colcha de retalhos, a qual compõe a vida que tiveram. Independente da trajetória marcada pela solidão, exclusão e tristeza, essa é a história de cada um. E, procurando apagar as marcas do passado, a exemplo de dona Maria, muitos extraem os pontos positivos para construir uma rede feliz de memórias em família. Hoje, através das várias construções abandonadas aos efeitos do tempo, pouco se pode imaginar o que essas histórias, de fato, representam. São histórias, em resumo, de superação.

Guiomar da Silveira Marques, atual coordenadora do Hospital Colônia, comentou sobre a possibilidade do hospital ser desativado em um futuro próximo, a exemplo de outras instituições similares no país. – A atual gestão está focada na manutenção do HCI, seguindo as diretrizes da Secretaria Estadual da Saúde, e no futuro, existe uma tendência de tornar-se um Residencial Terapêutico.

De tantas pessoas que passaram pelas dependências do HCI, 44 ex-hansenianos e 78 pacientes do São Pedro ainda residem no local. Com parte da estrutura voltada para a comunidade, existe um ambulatório com atendimento 24h, ambulância para possíveis remoções até hospitais de Viamão e Porto Alegre e atendimento odontológica mediante consultas eletivas.

Uma lei aprovada em setembro de 2007 autoriza o pagamento de pensão para todos os hansenianos que foram internados até 31 de dezembro de 1986. Vitória importante, porém tardia. A ausência de uma iniciativa como essa na época das altas hospitalares foi decisiva para o agravamento do estado emocional de cada paciente que retornou ao HCI. Foi uma época marcada por erros, que não volta, mas que deve permanecer no imaginário de cada um como um grande exemplo de vida.

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vai fazê-lo beber. Se alguém

Distrção

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R$20,00

e dúvida entre integrantes da classe.

21 9 2006