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R R R e e e v v v i i i s s s t t t a a a C C C h h h r r r ô ô ô n n n i i i d d d a a a s s s Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e G o i á s I S S N: 1 9 8 4 – 2 6 6 X Abril de 2010. Ano II, Número 06. Dossiê Temático: “História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade” Imagem de Capa: Maquinária, Rodrigo Godá (2006).

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Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História

U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e G o i á s II SS SS NN:: 11 99 88 44 –– 22 66 66 XX

Abril de 2010. Ano II, Número 06.

Dossiê Temático:

“História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade”

Imagem de Capa: Maquinária, Rodrigo Godá (2006).

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Revista Chrônidas

ABRIL DE 2010

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Universidade Federal de Goiás Reitor Edward Madureira Brasil Vice-Reitor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin Faculdade de História Diretor Leandro Mendes Rocha Coordenador do Curso de História Alexandre Martins de Araújo Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Maria Amélia Garcia de Alencar Revista Chrônidas Editor Sênior Marlon Salomon Editores Juniores Ivan Vieira Neto Carolina Soares Sousa

Universidade Federal de Goiás Faculdade de História Campus Samambaia – Goiânia – GO CEP: 74001-970

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Universidade Federal de Goiás

Universidade Federal de Goiás Faculdade de História

Goiânia, GO

Ano II, N. 06 / abril de 2010

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Sumário

Dossiê

História e pós-modernidade:

entre diferenças e diversidade Apresentação

Allysson Fernandes Garcia................................................................................................6

História, Experiência e Estudos de Gênero: uma reflexão feminista e foucaultiana

Thiago Fernando Sant’Anna............................................................................................11

Diálogos entre literatura e história: Conceição Evaristo e a obra Ponciá Vicêncio

Renata Jesus da Costa......................................................................................................28

Entre o “caos” e a “modernidade”: a cidade de Goiânia na imprensa escrita local

(1930-1970)

Lívia Costa.......................................................................................................................45

Michel Foucault, o problema da governamentalidade e a literatura anti-Maquiavel

Leandro Alves Martins de Menezes................................................................................62

Uma análise sobre a pós-modernidade e suas implicações na formação das

identidades pós-coloniais

Ana Beatriz Carvalho Baiocchi.......................................................................................76

Reafricanizando: dinâmicas identitárias candomblecistas no Brasil e em Goiânia

após a década de 1960

Nathália do Carmo Louzada............................................................................................89

A Demonização dos Cultos Africanos e sua herança no imaginário Umbandista

Léo Carrer Nogueira......................................................................................................115

Reflexões sobre a interação e integração entre os valores religiosos orientais e

ocidentais

André Luiz Caes............................................................................................................131

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6

Apresentação

História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade

É com satisfação que disponibilizamos o número seis da Revista Chrônidas.

Neste número o dossiê proposto teve como tema: História e pós-modernidade: entre diferenças

e diversidade. A intenção com este dossiê foi de congregar e divulgar trabalhos produzidos no

âmbito da História na condição pós-moderna. Segundo Durval Muniz Albuquerque Júnior a

pós-modernidade é uma nova condição histórica que fornece a própria episteme para produção

do conhecimento histórico na atualidade1

Os trabalhos que compõem o dossiê emergem dessa condição, não buscam apreender

uma verdade única do passado, não visam estabelecer leis eternas e imutáveis ou conhecer as

causas, desejos e princípios de um saber que implicou a violência frente ao outro. Os trabalhos

aqui são ao mesmo tempo perspectivistas e expansivos, contribuem para trazer à tona

personagens históricos, ações, fenômenos, teorias, metodologias diversas e dispersas,

iluminando outros passados, outras histórias. Contribuindo para rever conceitos, categorias, o

próprio “imaginário”. Lidam com outra lógica, preocupada com a descolonização do saber,

procurando romper as certezas cristalizadas, com o “saber automático” sobre o outro.

. Uma vez que o conhecimento histórico é produzido

em relação às próprias condições históricas de sua produção, os trabalhos aqui apresentados,

mesmo não discutindo em termos teórico-metodológicos o sentido, ou o significado da história

na pós-modernidade, foram produzidos a partir desta nova condição histórica.

Por alguma razão, não balcânica – e que fique claro –, os trabalhos presentes no dossiê

apresentam um viés da produção historiográfica desenvolvida por pesquisadores que se

encontram no estado de Goiás, especificamente nas universidades goianas. Professores e

pesquisadores que dividem estes espaços na condição pós-moderna. Acreditando na

possibilidade de uma nova relação com o passado, mas principalmente com o presente e o

futuro, os trabalhos aqui presentes são uma pequena amostra da diversidade de nossa produção

acadêmica.

Abrindo o dossiê, Thiago Fernando Sant’Anna realiza uma reflexão sobre a

experiência de mulheres, argumentando com Joan Scott que o sujeito é constituído

discursivamente pela própria experiência. Desenvolve uma análise a partir das contribuições

teórico-metodológicas dos Estudos Feministas e de Gênero, bem como das teorizações de

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Michel Foucault, historicizando as transformações disruptivas no domínio da história com o

desenvolvimento dos estudos das histórias das mulheres e das relações de gênero. Navegando

entre as matrizes, francesa e estadunidense, dos Estudos Feministas e de Gênero busca situar o

desenvolvimento de tais estudos no Brasil em diálogo com a produção de uma escrita da

história das mulheres que se assume como feminista e pós-moderna.

Na seqüência o trabalho de Renata Jesus da Costa desenvolve um diálogo entre

literatura e história para refletir sobre o papel da escrita feminina negra. A obra literária posta

em diálogo com a história é Ponciá Vivêncio (2003), da escritora mineira Conceição Evaristo.

Pouco ou quase nada conhecida no Brasil, a obra de Conceição Evaristo, serve para Renata

pensar o lugar da mulher negra na história do Brasil. Ponciá Vivêncio produz uma história para

seus pares? Atrás da resposta para esta pergunta o trabalho apresenta a escrita feminina negra

exercendo uma função delineadora de uma história para as mulheres negras e para os afro-

descendentes em geral. Através de Ponciá Vivêncio, Conceição Evaristo, contribui para manter

em movimento uma memória da população negra no Brasil, reconstruindo, sobretudo, aspectos

da experiência feminina. Através do diálogo desenvolvido por Renata da Costa perceberemos

como mesmo após 122 anos após a abolição a liberdade e a cidadania ainda é um sonho

almejado pelos negros no Brasil.

O terceiro trabalho que aqui se apresenta é fruto da pesquisa de mestrado em História

de Livia Costa. Através de uma pesquisa exaustiva e com uma grande quantidade de periódicos

e jornais de Goiás e Goiânia na virada do século XIX para o XX e ao longo deste século até a

década de 1970, Livia Costa, analisa o papel da imprensa na produção de uma imagem de

Goiânia. O discurso da imprensa produziu uma imagem normalizadora e normatizadora, na

defesa da honra da família goianiense. O discurso midiático mais do que defender a honra,

inscreveu no imaginário, valores definidos como verdadeiros. Neste sentido a denúncia dos

inimigos do progresso e da beleza que deveriam ser extirpados para a manutenção da cidade e

da família idealizadas, sanearia moralmente as ruas e as mentes goianienses. Enfim, o trabalho

de Livia Costa analisa como a prostituição, os crimes sexuais, a violência contra a mulher vão

se tornando um problema a ser combatido, e atuação da imprensa como mediadora entre a

defesa da honra familiar no espaço público e privado da nova capital.

Em seguida temos o trabalho de Leandro Alves Martins de Menezes, cuja proposta é a

análise da obra de Michel Foucault. Em específico, compreender como o problema da

gorvenamentalidade emerge no cenário das preocupações filosóficas e históricas em Michel

Foucault. Leandro Menezes busca elaborar uma questão de método, ao procurar esclarecer o

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projeto foucaultiano de uma história da governamentalidade. Desenvolve uma reflexão sobre o

problema do governo na modernidade, constituída em uma primeira fase da preocupação de

Foucault, onde emerge o pensamento de Maquiavel e o contraponto de uma literatura anti-

maquiavel, em um período entre os séculos XVI e XIX. Leandro Menezes avalia a

transformação da preocupação de Foucault antes calcada na constituição dos poderes

disciplinares, do liberalismo, da biopolítica e das artes de governar para uma genealogia da arte

de governar, quando o olhar do pensador francês se volta para a produção de uma poder

pastoral ligados aos valores, a uma ética, e à cultura cristã, contribuindo para pensarmos

historicamente nas formas específicas de racionalidade que sustentam e permitem a construção

de certo tipo de poder governamental na modernidade.

Ana Beatriz Carvalho Baiocchi traz uma análise sobre a formação das identidades pós-

coloniais. Em um estudo teórico, procura situar o processo de formação identitário pós-colonial

através da produção discursiva que mantém a desmontagem das metanarrativas modernas,

produto da condição pós-moderna e geradora de uma perspectiva multicultural.

Refletindo sobre o processo de reafricanização dos candomblés no Brasil, Natália do

Carmo Louzada, contribui para ampliar a reflexão sobre história das religiões no Brasil. Este

processo constitui-se em mais uma face da dinâmica de negociação por sobrevivência

empreendida ao longo da história pelas ditas religiões afro-brasileiras. Estudo sensível às

formas de sociabilidade dos indivíduos candomblecistas, Natália Lousada reconstrói a partir da

memória dos agentes envolvidos suas percepções sobre o hibridismo religioso, iluminando a

continua redefinição identitária dos indivíduos e do próprio sistema religioso, captados em seus

movimentos fluídos e complexos de ressignificação, estratégias e astúcias levadas a cabo para

sobreviver em um espaço hostil.

No mesmo viés de estudo sobre religiões afro-brasileiras, Léo Carrer Nogueira,

apresenta uma reflexão sobre a demonização dos cultos africanos e de como esse processo se

mantém no imaginário umbandista. Léo Carrer percorre um caminho que remonta aos

primeiros contatos entre os europeus cristãos e os cultos africanos da África Ocidental no

século XV demonstrando como os discursos de exploradores, missionários, homens de ciência

vão associando os cultos africanos ao demônio cristão, em específico os cultos dos orixás,

realizado pelos iorubas. Transladados ao Brasil junto com os africanos escravizados, a

reconstrução dos cultos no Brasil irão delinear processos de transculturação onde tanto o orixá

Exu absorverá traços do demônio cristão, assim como este segundo ganhará atributos da

divindade africana.

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Fechando o dossiê o trabalho de André Luiz Caes reflete as interações e integrações

entre os valores religiosos orientais e ocidentais. Através de uma análise profunda do dialogo

entre o Cristianismo e o Hinduísmo, apresenta as aproximações e convergências que se

processaram na Índia. Em especial o trabalho gira em torno do trabalho espiritual liderado por

Sai Baba captando os fluxos de mão dupla entre as duas matrizes religiosas, contribuindo para

entender a pós-modernidade não apenas como um momento de homogeneização e

fundamentalismo, mas de trocas e de formação de uma civilização global.

Que os artigos contidos no dossiê venham a ensejar discussões e a continuidade da

produção de uma história que, como ensina Muniz Sodré, venha sentir a diversidade humana

mais do que entendê-la2. Ao mesmo tempo, que o debate sobre nossa condição pós-moderna

avance rumo à noção de Homi Bhabha para o qual a profusão do prefixo pós deva significar o

além, no sentido heideggeriano de que a fronteira não é o ponto onde termina alguma coisa,

mas sim o ponto onde “algo começa a se fazer presente” 3, transformando as narrativas de

nossas histórias, mas principalmente nossas noções “do que significa viver, do que significa

ser, em outros tempos e espaços diferentes, tanto humanos como históricos” 4. Uma novidade

que nos leve para longe do perigo de uma única história como alerta, a escritora nigeriana,

Chimamanda Adichie5

.

Goiânia, 25 de abril de 2010.

Prof. Ms. Allysson Fernandes Garcia.

Notas: 1 Cf. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. ‘História: a arte de inventar o passado’. In. _______________. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007, pp. 53-65. 2 Cf. SODRÉ, Muniz. ‘Diferença e diversidade’. In: SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado da (orgs.). Metamorfoses da cultura. Porto Alegre: Sulina, 2006, pp. 47-58. 3 BHABHA, Homi. O local da cultural. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 1998, p. 19. 4 Idem, p. 352. 5 Conferência de Chimamanda Adichie: O perigo de uma história única. Disponível em: ˂http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html˃, acesso em nove de março de 2010.

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Dossiê

“História e pós-modernidade: entre diferenças e diversidade”

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HISTÓRIA, EXPERIÊNCIA E ESTUDOS DE GÊNERO: UMA REFLEXÃO FEMINISTA E FOUCAULTIANA

Ms. Thiago Fernando Sant’Anna

Universidade Federal de Goiás [email protected]

Escrever uma história sobre a experiência de mulheres, inscrita nos Estudos

Feministas e de Gênero de matriz pós-moderna1

Nessa linha, a ampliação de temas, objetos e fontes e a relativização do saber

histórico foram algumas das respostas inscritas no movimento da História Nova, na

década de 1960, e identificadas com a historiografia dos Annales dos anos 30 do século

XX. Ao lado desta, também podemos destacar a presença do pensamento da diferença

com sua crítica à razão, ao sujeito e às identidades – conceitos centrais para a História.

Questionada em seus fundamentos e finalidade, a História teria sido objeto de seus

deslocamentos epistemológicos, como sua “virada lingüística”, com sua ênfase no texto

e na linguagem, movimento que marcou sua escrita nos anos 1980 e 1990.

, é desafio que demanda não apenas a

escolha de um corpus documental, mas, sobretudo, de um quadro teórico-metodológico

específico para referenciar nossas reflexões. Para que possamos ter clareza de tais

nortes, é fundamental iniciar este texto com os debates em torno do estatuto de

inteligibilidade da história, da proclamada crise dos paradigmas e com seus

questionamentos às idéias de certeza, estabilidade, verdade e universalidade do saber

histórico. Isso porque foram a partir dessas transformações na produção de

conhecimento histórico, desde meados do século XX, que emergiu a possibilidade de

escrita da história das mulheres assumida como feminista e pós-moderna.

O fazer historiográfico, fundado pelos Annales, apesar de suas contribuições

para se pensar a pluralidade na/da história e a consciência da complexidade do social,

não rompeu com os quadros do pensamento moderno da existência do sujeito universal.

Tal permanência preservou a lógica do sujeito masculino, branco, heterossexual e

1 Compreendo por Estudos Feministas e de Gênero de matriz pós-moderna ao conjunto de autoras que incorporaram conceitos oriundos de pensadores pós-modernos como Foucault, Deleuze, Derrida, dentre outros. Algumas expressões desta perspectiva reúnem autoras como Judith Butler, Teresa de Lauretis, Joan Scott, Michelle Perrot, Jane Flax, Sandra Harding, Diva Muniz, Tânia Navarro Swain, Margareth Rago.

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ocidental e deixou de fora ou incluiu de forma desigual a outra metade da humanidade,

as mulheres, e também aqueles não identificados com tal referencial.

Afinal, os Annales mantiveram sua consonância com os paradigmas

contemporâneos da ciência ainda vincada pelo sexismo. Assim, a neutralidade do

discurso científico permaneceu com valor universal e seu estatuto de verdade. Esse

fazer historiográfico, não obstante sua ampliação de temas, objetos, problemas e

abordagens foi contestado, principalmente, a partir dos anos 60 pelos filósofos da

diferença, dentre eles, Foucault e Deleuze. Estes questionaram os axiomas científicos

das mais diversas disciplinas e abalaram velhas certezas, ao denunciar que a ciência

funcionava como um discurso substituto do religioso, isto é, baseada em um sistema de

crenças, em pressupostos axiomáticos e na autoridade do cientista, todos estes

substitutivos dos dogmas do posto do sacerdote.

Não se pode negar, porém, as mudanças processadas na concepção do trabalho

historiográfico advindas da Nova História, quando a tônica de ampliação da visão da

História fazia-se presente, os acontecimentos deixaram de ser analisados por um “olhar

de cima”, como fazia a história tradicional, mas por “vários olhares” e os documentos

passaram a ser vistos como monumentos, trabalhados no seu interior, não cabendo mais

à História determinar se eles falam a verdade nem qual é o seu valor expressivo

(FOUCAULT, 2004:05).

Foucault, nessa linha de reflexão e na leitura de Paul Veyne, foi quem

revolucionou a história, ao propor pensar os documentos como monumentos, ao recusar

as relações de causalidade simples antes delimitadas pela história tradicional, ao incluir

“várias formas de encadeamento histórico, várias redes de determinação, várias

teleologias” (FOUCAULT, 2004:05) para a construção da história. A descontinuidade

como emergência de um obstáculo, antes suprimida na lógica contínua, torna-se um dos

aspectos a ser ressaltado da narrativa histórica, ao descartar qualquer possibilidade de

produção de uma história contínua e global que dê significado comum a todos os

fenômenos de um dado período. Assim, ao seguirmos por esses nortes, pensar as

práticas e representações da experiência feminina requer atentar para as especificidades

de suas condições de emergência nos discursos de uma época, de modo a responder

questões como: em que formação discursiva, a experiência feminina, se inscreveu? O

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que ficou silenciado, diluído, nos diversos discursos, referenciados por um saber

masculino? Como, a partir da experiência, foram constituídos sujeitos?

Trata-se, portanto, de uma proposta de inscrição do tema, de construção do

objeto, nos quadros do pensamento pós-moderno, de descentramento do sujeito, da

concepção do mundo como representação, da ênfase no texto e na linguagem, na

concepção de saber e fazer histórias relativas às regras de sua produção. Nessa

perspectiva, existe o entendimento de que dada realidade social, complexa e

multifacetada, pode ser representada segundo diversas óticas, dando origem a uma

história plural. Essa história, na perspectiva pós-moderna, coloca em xeque a posição

dos centros operadores das metanarrativas, que por muito tempo, na história tradicional,

produziram saberes e verdades que legitimaram formas de governo, regimes políticos,

sistemas econômicos e sistemas de relações sociais/sexuais que possibilitaram

desconstruir e historicizar todas aquelas interpretações que têm pretensão de verdade

(HUTCHEON, 1991: 84).

Ao negar as totalidades universais, essa perspectiva relativa de saber histórico

põe em destaque a transitoriedade do conhecimento, em função dos valores culturais em

processo de transformação, das temporalidades múltiplas, e da condição de produção

específica de conhecimento cuja produção de “verdades” relaciona-se ao que circula

como verdade, que produz o efeito de verdade.

Se entendermos que o passado não é recuperado ou apagado, mas é incorporado

e modificado, que o passado recebe vida e sentido novos e diferentes, pensar a

complexidade do social implica atentar para a sua dimensão imaginária e para as

representações como nortes de apreensão dos sentidos atribuídos a este social. As

representações sociais, nessa perspectiva, compreendidas como “uma forma de

conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que

contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”, ou seja,

como “sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os

outros” (JODELET, 2001: 22), são fortemente marcadas pelo simbolismo que, por sua

vez, não é nem arbitrário, nem linear, mas está diretamente associado tanto ao aspecto

cultural quanto ao histórico. Assim, os saberes produzidos e os discursos difundidos

sobre determinados objetos/sujeitos ou fenômenos sociais estão imbricados às suas

condições de imaginação e produção.

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Os registros históricos, portanto, são feitos ao levar em conta um sistema de

significações imaginárias que valoriza e desvaloriza, estrutura e hierarquiza uma certa

“ordem do mundo”, em função dos interesses, necessidades, tradições e valores de

indivíduos e grupos. Esse processo de simbolização não pode ser desconsiderado na

análise feminista das experiências de mulheres, pois são redes de significação,

esquemas de interpretação/inteligibilidade e de orientação do social (JODELET, 2001:

17) nos quais aquelas se localizam como sujeitos/objetos do social.

O acesso às experiências femininas, nesse viés, é possível quando analisadas sob

a ótica das relações de gênero e de poder estabelecidas no social cuja economia opera na

instituição do verdadeiro, do regime de verdade acerca da experiência feminina em

momento e contexto específico. Compreendido como “saber estabelece significados

para as diferenças corporais” (SCOTT, 1994: 13), ou seja, como um processo que

sinaliza para o modo como as características sexuais são compreendidas e representadas

no processo histórico, o gênero é um “o conjunto de efeitos produzidos em corpos,

comportamentos e relações sociais”, por meio do desdobramento de “uma complexa

tecnologia política” (LAURETIS, 1994: 208). Nesse sentido, os corpos de mulheres são

conformados pela lógica do gênero a partir da partilha binária que confere significados

ao masculino e ao feminino; e o sujeito “mulher” é efeito das experiência tecidas no

interior dessa lógica que orienta o social.

As relações de poder, acima referidas, podem ser pensadas em consonância com

as reflexões de Foucault sobre o “poder”. Em Vigiar e Punir (1977), o filósofo

ressignificou o conceito de “poder”, ao se referir ao “poder disciplinar”, afirmando que

ele não se manifesta exclusivamente nas prisões, mas encontra-se, também, “em outras

instituições como o hospital, o exército, a escola, a fábrica” (MACHADO, 2001: XVII).

Esse poder, que, segundo aquele autor, atravessa o tecido social, conforma

corpos, gestos, comportamentos e normaliza condutas, possui uma dimensão imaginária

que extrapola a representação negativa (repressiva, que cala, silencia, abafa) a que ele

costuma ser associado, tendo como ponto fixo de localização o Estado e as instâncias

sociais. Ele funciona como uma rede de dispositivos ou mecanismos que ordenam o

social. Não está localizado em algo ou sob o controle de alguém; ele funciona como

uma engrenagem (MACHADO, 2001: XVII).

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O poder disciplinar, segundo o autor, não se exerce apenas pela força, tolhendo o

sujeito do exercício da sua liberdade. A sua lógica está fundada no controle de

processos orientadores de modo a convencer os sujeitos a adotarem comportamentos

“corretos”, isto é, conforme o padrão de conduta socialmente aceito e legitimado; enfim,

funciona de modo a normalizar a conduta. Segundo Foucault (2001: 187-188),

Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através da vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física do soberano. Finalmente, ele se apóia no princípio, que representa uma nova economia do poder, segundo o qual se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem as domina.

Foucault alerta quanto à percepção, segundo a qual o exercício do poder aparece

como muito mais profundo, sutil, permanente e microscópico, não se manifestando

somente por práticas repressivas, mas também criadoras. Este tipo de manifestação de

poder garante uma sustentação muito mais complexa para a estruturação social, pois não

se refere à ação de uma classe ou de um grupo sobre outros, mas está introjetada e

enraizada em cada um de nós. Nesse sentido, ao tomarmos por esses aportes teóricos,

precisaremos, nas análises dos documentos, descrever e analisar as experiências

femininas a partir de como as representações sociais de gênero são incorporadas pelos

sujeitos, são transformadas em auto-representações, ou seja, como suas próprias, e

normalizadas na dinâmica do social.

A partir das reflexões feitas por Foucault sobre a manifestação de poder que

normatiza as ações dos sujeitos sociais, deslocando, portanto, a posição de sujeito dos

atores sociais para as práticas disciplinares e disciplinadoras, abre-se, portanto, a

possibilidade de se pensar diferentemente a história. Essa passa a se constituir como um

discurso dentre uma série de discursos a respeito do mundo, uma vez que um mesmo

objeto de investigação pode ter diferentes leituras feitas por diferentes discursos que

variam no tempo e no espaço (JENKINS, 2001: 27). Logo, um trabalho sobre a

experiência de mulheres, inscrito nos Estudos Feministas e de Gênero, sob este viés,

pretende percorrer pelas práticas normatizadoras/disciplinares que se dão no âmbito dos

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discursos. E vale ressaltar que tal perspectiva não pretende alcançar a verdade sobre o

assunto, mas a ser uma leitura, dentre outras possíveis.

Esta linha de reflexão se assenta nas condições revolucionárias em que se

encontra a história quando as bases epistemológicas do positivismo tradicional foram

balançados a partir do momento em que se desvelou a impossibilidade de o/a

historiador/a abarcar e recuperar a totalidade dos acontecimentos do passado. Isso

porque, simplesmente, o “conteúdo” desses acontecimentos é ilimitado, considerando-se

que a maior parte das informações do passado sequer chegam a serem registradas e as

que nos chegam são versões e não o passado.

Assim, ciente de que não podemos recuperar o passado, mas apenas analisar os

discursos que nos chegam sobre ele, é possível fazer emergir nesses discursos as

condições de produção das referências representacionais/imagéticas sobre as

experiências femininas ocorrida no passado. Como elas foram descritas? Como foram

significadas? O que significava ser uma mulher em um tempo e espaço específicos?

Como funcionava o uso político da diferenciação de gênero para tratar desigualmente as

mulheres? Ao entender que o tratamento das fontes pelo/a historiador/a e a escrita da

história envolvem uma escolha política, podemos expor os processos sexuados em ação

na estruturação do social e do conhecimento, num contexto específico.

Nessa tarefa, é indispensável pensar que o poder em seu exercício constrói o

discurso “verdadeiro”, produz a verdade. Esta é sempre criada, portanto, nunca

descoberta, pois, cada sociedade tem

sua ‘política geral’ de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela escolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos; a maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2001: 12-14)

A história da experiência de mulheres sob a ótica dos Estudos Feministas e de

Gênero será, portanto, uma narrativa construída sob tais pressupostos na leitura feita dos

textos/discursos que nos falam sobre suas múltiplas experiências. Tais textos/discursos,

pensados como fontes históricas, inscrevem-se em uma rede discursiva. São textos

atravessados por outros textos. São leituras feitas por alguém sobre experiências

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próprias ou dos outros e encontram-se marcadas pela sua visão de mundo, por relações

de poder, que trazem em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar

de suas vontades. Priorizar a experiência das mulheres traduz nossa opção política por

uma história plural, contada no feminino. Nesse sentido, compartilhamos da posição de

Michelle Perrot (2005: 14), segundo a qual é

o olhar que faz a História. No coração de qualquer relato histórico há a vontade de saber. No que se refere às mulheres, esta vontade foi por muito tempo inexistente. Escrever a história das mulheres supõe que elas sejam levadas a sério, que se dê à relação entre os sexos um peso, ainda que relativo, nos acontecimentos ou na evolução das sociedades.

Para analisar a experiência de mulheres sob os Estudos Feministas e de Gênero

não há como não proceder a uma problematização do conceito de experiência. Segundo

Scott (1999: 42), que defende a historicização da experiência e o agenciamento do

sujeito define:

“E sujeitos têm agenciamento. Eles não são indivíduos unificados, autônomos, que exercem o livre arbítrio, mas, ao contrário, são sujeitos cujo agenciamento é criado através de situações e posições que lhes são conferidas. Ser um sujeito significa estar “sujeitado a condições de existência definidas, condições de designação de agentes e condições de exercício.” Essas condições possibilitam escolhas, apesar de não serem ilimitadas. Sujeitos são constituídos discursivamente, a experiência é um evento lingüístico (não acontece fora de significados estabelecidos), mas não está confinada a uma ordem fixa de significados. Já que o discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é coletiva assim como individual. Experiência é uma história do sujeito. A linguagem é o local onde a história é encenada. A explicação histórica não pode, portanto, separar as duas.”

Na acepção de Scott, podemos perceber que a experiência são as condições de

possibilidade de escolhas, condições de existência definidas, condições de designação

de agentes e condições de exercício. É por isso, a história do sujeito e lócus onde,

discursivamente, o sujeito é produzido. Nesses termos, não procede dizer que o sujeito

possui a experiência, como refutou Scott, mas que a experiência constitui,

discursivamente, o sujeito. Enveredar pelos registros sobre a experiência de das

mulheres nos demandará destacar/historicizar em que condições de possibilidade, de

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existência, de designação de agentes e de exercício, as pessoas tornaram-se, por meio de

suas experiências, mulheres do seu tempo.

Ao adensarmo-nos pelas concepções de experiência das teóricas feministas, a

autora Teresa de Lauretis (1994: 228), em suas reflexões, definiu a experiência como

como um complexo de efeitos, hábitos, disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação semiótica do eu com o mundo exterior (nas palavras de C. S. Pierce). A constelação ou configuração de efeitos de significados que denomino experiência se altera e é continuamente reformada, para cada sujeito, através de seu contínuo engajamento na realidade social, uma realidade que inclui – e, para as mulheres, de forma capital – as relações sociais de gênero. Pois, (...) a subjetividade e a experiência femininas residem necessariamente numa relação específica com a sexualidade. E, embora não suficientemente desenvolvida, essa observação me sugere que o que eu estava tentando definir com o conceito de um complexo de hábitos, associações, percepções e disposições que nos “engendram” como femininas – era na verdade a experiência do gênero, os efeitos de significados e as auto-representações produzidas no sujeito pelas práticas, discursos e instituições socioculturais dedicados à produção de homens e mulheres. E não foi por acaso, então, que minhas análises se preocupavam com o cinema, a narrativa e a teoria. Pois esses já são em si tecnologias de gênero.”

Se nos subsidiarmos nestas reflexões, reconheceremos ser preciso, para que

possamos analisar a experiência de mulheres, identificar/destacar efeitos, hábitos,

disposições, associações e percepções significantes capazes de processar a interação

entre as mulheres e o mundo a sua volta, por meio dos discursos que as produzem como

sujeitos femininos. A família, a Igreja, a escola, as mídias, o cotidiano, bem como as

inúmeras formas de vivências disponíveis no mundo social, nesse sentido, poderiam

estar funcionando como fábricas produtora de representações sociais de gênero, de

meninas e de mulheres. Enfim, poderiam estar funcionando como “tecnologias de

gênero”, isto é, como “técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é

construído” (LAURETIS, 1994: 240).

Revelar tais perspectivas implica atentarmo-nos para inflexões no discurso da

história, como sugere a historiadora francesa Michelle Perrot que, ao comentar sobre a

História das Mulheres, afirmou que essa tarefa de revelar a presença das mulheres na

história não coube aos Annales, pois esse movimento, “ao substituir o político pelo

econômico e o social”, não produziu ruptura com a posição do sujeito universal da

história. A visibilidade historiográfica é creditada aos movimentos feministas,

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sobretudo, aqueles que eclodiram nas décadas seguintes e que denunciaram e expuseram

os termos dessa exclusão e desse silenciamento revelador da violência de gênero, pois o

silêncio não é um vazio sem história, como diz Eni Orlandi. O não dito sempre quer

dizer alguma coisa na ordem do discurso (ORLANDI, 2002: 23). A História, como os

demais saberes, é um discurso produtor/reprodutor de gênero, pois se trata de território

de domínio masculino. Fazer história, como ressalta Perrot, foi e ainda é visto como

exercício viril, daí as mulheres não serem bem recebidas na ordem do discurso nem

como produtoras de conhecimento histórico, nem como sujeito/objeto de estudo

(PERROT, 2005: 14).

Os movimentos feministas, extremamente ativos nas décadas de 1960 e 1970,

questionaram a ausência das mulheres na História, seja como protagonistas, seja como

objetos, ao fazer a denúncia e exposição do sexismo na produção do conhecimento e na

estruturação do social (DESCARRIES, 2000)

Nesse sentido, as historiadoras feministas tiveram importância não apenas

quanto à inclusão das mulheres na historiografia, mas, sobretudo, quando denunciaram

os termos da exclusão do feminino pelo discurso histórico. Ao denunciar a narrativa

histórica como discurso sexista, elas evidenciaram a necessidade de se pensar as

diferenças e de criar categorias próprias para falar das mulheres e do feminino. O aporte

teórico produzido pela crítica feminista constitui, sem dúvidas, uma importante

contribuição para o exame crítico dos paradigmas de leitura do social, sem exclusão da

disciplina história.

No entanto, a apropriação desse aporte pelo campo histórico se fez de modo

tímido e restrito, pois não aprofunda na crítica dessa política de silenciamento,

discursivamente produzido. Para Tânia Navarro Swain, essa política de silenciamento

fundamenta a construção do sujeito singular, universal e a manutenção de um regime de

verdade. De acordo com a autora é assim

que a história do Ocidente naturaliza as relações e funções atribuídas a mulheres e homens, re-criando-as e desenvolvendo uma política do esquecimento, que apaga o plural e o múltiplo do humano. (SWAIN, 2000: 49)

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A solidariedade entre a prática política e a acadêmica proporcionou algumas

graduais incorporações do aporte teórico feminista, não sem tensões. Até a década de

1970, produziu-se uma história chamada por Raquel Soihet de “miserabilista”, isto é,

influenciada pela idéia marxista de “dominantes e dominados”, na qual as mulheres

foram representadas como vítimas passivas, sem qualquer possibilidade de serem

protagonistas. Em oposição a essa visão, emergiu a perspectiva da “mulher rebelde”,

também no mesmo período, reforçando a dicotomia entre a vitimização ou a

heroicização femininas. Ao enfatizar os sucessos, as mulheres foram enfocadas em suas

lutas, tramas, estratégias de sobrevivência, criando redes de solidariedade, lutando e se

revoltando contra a ordem patriarcal (SOIHET, 1997: 278). Conforme as reflexões da

historiadora Diva do Couto Muniz (2008: 120), quanto às contribuições dos

Feminismos:

A reflexão produzida pelas críticas feministas não deveria ser menosprezada pela história, pois seu potencial subversivo abre novas possibilidades para se pensá-la diferentemente, para se produzir conhecimento histórico. Com efeito, uma vez que tal epistemologia possibilita evidenciar as relações de poder constitutivas da produção dos saberes, desmistificam-se as noções de objetividade e neutralidade, pressupostos de veracidade do conhecimento científico, revelando o que naquelas estava oculto ou invisível: sua dimensão particularista, ideológica, racista e sexista. No caso dos “estudos da mulher”, “estudo das mulheres” ou “história das mulheres”, os deslocamentos propostos são promissores com seu investimento na desnaturalização das identidades sociais e sexuais e na atenção à dimensão relacional do movimento configurador das diferenças sexuais.

Nesse aporte teórico, no qual a categoria gênero encontra-se abrigada, postula-se

pensar mulheres e homens como identidades construídas social e culturalmente no jogo

das relações sociais e sexuais das redes de poder, pelas práticas disciplinadoras, pelos

discursos e saberes instituintes, e não como essências biológicas.

Apesar de tal aporte, contemporaneamente, ainda é comum a desconfiança e o

preconceito no meio acadêmico em relação às práticas feministas, como se essa metade

da humanidade não tivesse dignidade historiográfica, tal como conferida à outra, a

masculina. Frisamos o feminista, pois o incômodo e o desconforto provocados por suas

críticas ao establishment da ciência histórica é enorme. Denunciar o sexismo, questionar

as construções que privilegiam o masculino/universal, mostrar o funcionamento das

práticas discursivas na naturalização dos construtos sociais e culturais, romper com as

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leituras binárias do mundo é algo profundamente ameaçador à ordem existente.

Principalmente porque essa ordem fundamenta-se em um saber teórico e todo saber

teórico implica um sistema de dominação.

Sandra Harding, em sua proposta desestabilizadora dos quadros de pensamento,

pleitea que as “categorias analíticas feministas devem ser instáveis”, pois defender a

necessidade de teorias e categorias e sujeitos coerentes seria incorrer no mesmo

enclausuramento do pensamento moderno e mesmos mecanismos de dominação. Seria

tentar ordenar artificialmente “um mundo instável e incoerente”, e colocar “obstáculos

tanto ao conhecimento quanto às práticas sociais” (HARDING, s/d: 11). Deste modo, o

que os feminismos – sim, sempre no plural, – propõem um novo modelo de ciência,

novas óticas e possibilidades de leitura do social. No caso da história, uma aposta na

história do possível é uma aposta a uma história que inquieta, que interpela, que suscita

mudança, levanta questões e persegue incansavelmente a diversidade.

Perseguir a diversidade inclui atentar para a experiência constitutiva dos sujeitos,

para a história dos sujeitos. Em um estudo feminista sobre a experiência das mulheres

isso significa atentar para como a experiência produziu os efeitos do feminino em

corpos, comportamentos e relações sociais e construiu sujeitos mulheres.

Tais considerações implica entendermos “experiência”, conforme os termos

anteriormente apontados com base nas reflexões de Joan Scott, como “um evento

lingüístico”, tanto coletivo quanto individual, dotado de significações mutáveis, com o

fim de constituir, por meio da linguagem, o sujeito discursivamente. A “experiência é a

história do sujeito” e, portanto, deve ser historicizada, contextualizando o discurso

(SCOTT, 1999: 42-43).

É importante perceber nas fontes o modo como se constituem as representações

do feminino e da “mulher”, como historicamente são construídas e como a experiência

constituiu tal sujeito feminino. A constituição do feminino é processo que resulta do

funcionamento da tecnologia social de gênero, como a escola, como a família, as

práticas cotidianas, leis, regras, instituições, etc. São tecnologias que operam na

produção e naturalização da divisão binária do gênero – a partilha entre feminino e

masculino –, ignorando, silenciando as dimensões plurais, múltiplas e diferenciadas

constitutivas dos sujeitos. Conforme assinala Navarro-Swain (2000: 79):

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os feminismos têm sido ponta de lança em termos teóricos e de ação política de transformação, marcando a política de localização que leva em conta, para a sua reflexão crítica, a experiência múltipla e diferenciada, marcada e definida pela sexualidade enquanto feminina.

Não há como negar que os feminismos possuem alguma especificidade na sua

forma de produzir a história e que constroem um olhar diferenciado sobre e na história,

especialmente, em sua abordagem. O fazer historiográfico de mulheres, sobre mulheres,

sob outra ótica, se apresenta como idêntico quando atrelado ao paradigma iluminista,

obscurecido pela idéia de que o cientista deve perseguir, se não a neutralidade, pelo

menos a universalidade que seria a base para a inteligibilidade científica. Isso significa

produzir uma ciência neutra, universal e impessoal, que fala de todos e por todos.

Entretanto, a diferença se expressa no próprio modo de se posicionar e de fazer a

leitura do mundo. A inquietação criada pelos silêncios, ausências e regimes de verdade

não atinge a todos, ao mesmo tempo. Sob a ótica patriarcal, os discursos produzidos

na/sob a ordem masculina estabelecem a verdade acerca das relações sociais ao impor

sua lógica, sua verdade, seu poder.

Não se pode falar de homogeneidade no campo da História das Mulheres, nem

de propostas únicas ou de único movimento. Marcado pela heterogeneidade teórica e

metodológica, tal campo encontra-se consolidado em alguns países, como os E.E.U.U. e

a França. No Brasil, ainda se enfrentam algumas resistências no meio acadêmico, pois

as mulheres e o gênero são temas/objetos/perspectivas consideradas da esfera da

“natureza”, ou do doméstico, com pouca importância historiográfica.

No Brasil, a incorporação do gênero como categoria de análise histórica conhece

percurso similar ao ocorrido nos E.E.U.U. Sua introdução foi presidida por debates

acalorados, dividindo opiniões, críticas favoráveis e desfavoráveis, haja vista o célebre

debate entre Tilly e Scott nos anos 90 (VARIKAS, 1994: 63-94). As críticas emergiram

no anterior dos feminismos e no campo da História das Mulheres, sendo a principal

delas a do caráter descritivo dos estudos. No afã de conferir visibilidade às mulheres na

História, muitas historiadoras estariam fazendo muito mais um esforço de resgatar tal

presença, com a compilação e descrição de dados do que um trabalho de análise e

problematização (SCOTT, 1992: 85-86). Outra crítica é quanto à natureza suplementar

da História das Mulheres, a de sanar lacunas, acomodando as mulheres dentro das

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grandes narrativas já estabelecidas, ou seja, dentro da Casa Patriarcal. Como

lucidamente refletiu Joan Scott (1992: 85), o objetivo dos/as historiadores/as das

mulheres,

mesmo quando estabeleceram a identidade separada das mulheres, era integrar as mulheres à História. (...) A integração presumia não somente que as mulheres poderiam ser acomodadas nas histórias estabelecidas, mas que sua presença era requerida para corrigir a História. Aqui estavam em ação as implicações contraditórias da condição suplementar da História das Mulheres.

Ao reafirmar a condição suplementar das mulheres, segundo Scott, estaria

reproduzindo sua posição de inferioridade em relação aos homens, nessa história restrita

à visibilidade, reduzida à função de “preencher vazios”. Essa história perde de vista o

ponto central, o que deveria questionar as premissas da própria disciplina. Gênero foi

proposto como forma de se repensar a construção social e histórica das diferenças entre

os sexos, de questionar os processos históricos de naturalização das diferenças. Mas seu

potencial desestabilizador fragilizou-se ao ser domesticado, restrito ao uso descritivo e

não crítico. Afinal, os historiadores sociais, acabaram por reafirmar a partilha binária,

quando

documentaram os efeitos da industrialização sobre as mulheres, um grupo cuja identidade comum nós pressupomos. [...] Como resultado, a categoria “mulheres” assumiu uma existência como entidade social separada e seu relacionamento conceitual historicamente situado com a categoria “homens”. (SCOTT, 1992: 82-83)

Não há como negar a importância política do conceito de gênero para a leitura

do social, em especial nos anos 1990. As historiadoras feministas questionaram a

categoria mulher como construto a-histórico, definido por oposição à categoria homem,

ambos estrangeiros em relação ao sujeito universal masculino. Nesse contexto de

crítica, a proposta do gênero é tratada como categoria útil de análise histórica. Segundo

Scott (1994: 12),

gênero significa saber a respeito das diferenças sexuais. Uso saber, seguindo Michel Foucault, com o significado de compreensão produzida pelas culturas

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e sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mulheres. Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. [...] O saber não se relaciona apenas a idéias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável dela.

O uso do gênero no presente estudo é visto como “um saber a respeito das

diferenças sexuais”, isto é, se refere à construção do significado do feminino e

masculino na especificidade da sociedade em estudo pelo/a analista. Portanto, não há

como analisar as representações de gênero sem considerar também o masculino, ambos

como efeitos do gênero, produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais.

Para Jane Flax (1991: 230), o gênero é uma relação social prática e devemos nos

propor a fazer um exame daquilo que significa o “feminino” e o “masculino” em uma

determinada sociedade. Isso, entretanto, não tem como objetivo reforçar a imutabilidade

do binário, mas deixar evidente que por meio do gênero “dois tipos de pessoas são

criadas” e que dessa construção históricossocial decorrem “divisões e atribuições

diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades humanas” (FLAX,

1991: 228). Assim sendo, o esforço em mostrar a dimensão construída e relacional do

gênero estaria sintonizado com o projeto feminista de transformação das relações entre

mulheres e homens. Como assinala Flax (1991: 219), buscar outras formas de relações

inclui a análise crítica do gênero, pois esta permite

alcançar um distanciamento crítico em relação aos arranjos de gênero existentes. Esse distanciamento crítico pode ajudar a desobstruir um espaço no qual a reavaliação e a alteração dos nossos arranjos de gênero existentes se tornem mais possíveis.

Para a historiadora Joan Scott (1992: 86-87), os papéis seriam historicamente

construídos e não biologicamente determinados. Tal perspectiva ilumina as reflexões

sobre a construção das diferenças de gênero via experiência. Assim, ao recorrer aos

estudos feministas e de gênero, teríamos a possibilidade de revelar a dimensão histórica

e cultural das diferenças entre masculino e feminino, naturalizadas como

biologicamente determinadas, tratadas como categorias fixas, naturais, que existiriam

atemporalmente, como essência do humano. De acordo com Judith Butler (2003: 24), se

o gênero

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são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos.

As reflexões de Butler levam-nos a perguntar: seriam os corpos superfícies

acabadas sobre os quais a cultura age ou seriam os próprios corpos definidos pelas

expectativas culturais? Teriam os corpos das meninas/mulheres a condição de natural,

lócus de inscrição dos significados culturais? Os corpos seriam, eles próprios, produtos

culturais? Para Butler, “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência

significável anterior à marca de seu gênero”. Assim, o gênero construiria os corpos

atribuindo-lhes sentidos, destino, função social. São as expectativas culturais em torno

da performance de certos papéis que possibilitam que os corpos sejam moldados como

femininos ou masculinos, que a heterossexualidade seja dada como compulsória e que

ao feminino seja conferida/construída uma posição de inferioridade em relação ao

masculino. Investigar como isso se processa no interior do “complexo de efeitos,

hábitos, disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação

semiótica do eu com o mundo exterior” (LAURETIS, 1994: 228) – a experiência –, é o

desafio a que nos propomos no presente artigo. Em suma, estas reflexões se inscrevem

no aporte teórico produzido pelos feminismos e incorporado por vários/as

historiadoras/as, como enfim problematiza Diva Muniz (2008: 128-129), ao referir-se ao

uso do gênero:

O funcionamento do gênero pode ser pensado também como desdobramento de complexa tecnologia social, “[...] técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído”, como propõe De Lauretis (1994: 240). Tal procedimento apresenta-se promissor para se conhecer os mecanismos de seu engendramento, reprodução e naturalização. Gênero, pensado, portanto, como tecnologia social, como representação e auto-representação, como produto e processo de diferentes tecnologias sociais, aparatos biomédicos, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas e práticas da vida cotidiana. (Lauretis, 1994: 205). Nesse sentido, gênero, assim como o sexo/sexualidade, não é algo existente a priori na pessoas, mas “[...] o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais”. (Foucault, 1992: 124).

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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA: CONCEIÇÃO EVARISTO E A OBRA PONCIÁ VICÊNCIO1

Ms. Renata Jesus da Costa

Doutoranda em História Cultural Universidade de Brasília

[email protected]

A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser (EVARISTO, 2003:131).

Este artigo analisa a obra Ponciá Vicêncio (2003), da escritora mineira Maria

Conceição Evaristo Brito2

Para Giraudo o resgate de um tempo vivido por meio da memória “não é um

retorno ocioso ao passado, nem tampouco constitui sentimentalismo folclórico; antes,

sua função prospectiva conecta o passado à construção presente de um futuro comum”

(GIRAUDO, 1997: 51). As opiniões deste autor vão de encontro com o pensamento de

Susan Willis, na perspectiva de que,

. O objetivo do estudo é refletir sobre o papel da escrita

feminina negra, enquanto produtora de uma história para seus pares. No entanto, antes

de dar início à análise dessa narrativa, é importante ressaltar o quão significativo foi

para o desenvolvimento deste estudo, o livro, Poética da memória: uma leitura de Toni

Morrison de autoria de J.E. F. Giraudo. A importância desse livro está no fato dele ter

proporcionado o reconhecimento da proximidade entre a escrita de Evaristo e a escrita

feminina afro-americana. Essa última, pensada a partir da perspectiva de Giraudo,

exerce a função de delineadora de uma história para as mulheres negras, com base no

uso da memória como veículo de reconstrução de aspectos da experiência

especificamente feminina. É nesse sentido que o presente texto pretende refletir sobre a

obra Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo. Essa contigüidade entre a obra de Evaristo

e a afro-americana, talvez consiga explicar o sucesso considerável da autora brasileira

nos Estado Unidos, em oposição ao seu próprio país.

Este é um corpus escrito dedicado ao resgate da cultura afro-americana – a língua, as canções, os poemas, a dança, as estórias, a culinária e todas as praticas que deram forma à vida quotidiana do povo negro, de modo a torná-las novamente relevantes para os afro-americanos na década de oitenta (WILLIS: 1987, p. 3 Apud: GIRAUDO, 1997: 51)

1 Este artigo é parte de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no ano de 2008. 2 Mais conhecida como Conceição Evaristo.

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Foi a presença de eventos como os apontados na citação acima na obra de

Evaristo, que despertou o desejo de pensar sua narrativa a partir da analise desenvolvida

por Giraudo, o que poderá ser confirmado no decorrer do texto. Este fato, por sua vez

contribui, também, para confirmar a importância de se dar atenção a literatura como

fonte de pesquisa histórica como aponta os estudos históricos culturais.

Sobre a autora

Maria Conceição Evaristo Brito nasceu numa favela em Belo Horizonte, Minas

Gerais, em 1946. Hoje, este local, em razão das modificações causadas pelo

desenvolvimento da cidade, transformou-se em uma região composta por largas

avenidas cercadas por casas luxuosas e corresponde a uma das áreas mais valorizadas da

zona sul da capital mineira. Filha de lavadeira, Conceição Evaristo terminou o antigo

curso Normal com 25 anos de idade e nunca conseguiu espaço para realizar seu sonho

de dar aula nas escolas de Belo Horizonte. Foi somente depois da mudança para o Rio

de Janeiro e de seu ingresso na educação pública que pôde dedicar-se ao magistério. No

Rio de janeiro cursou letras na Universidade Federal Fluminense, mestrado na

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e atualmente cursa doutorado,

também, pela Universidade Federal Fluminense.

Seu envolvimento com as questões raciais ocorreu em 1980, ocasião em que já

morava na capital Fluminense. Foi nesta época que conheceu o Grupo Quilombohoje e

a publicação, em São Paulo, da série Cadernos Negros. Neste último, escreveu poemas

nos volumes número 13 (1998), 15 (1992), 19 (1996), 21 (1998), 25 (2002) e contos –

nos volumes número: 14 (1991), 16 (1993), 18 (1995), 22 (1999). Evaristo, também,

escreveu contos e poemas em edições especiais dos Cadernos negros, além de possuir

várias publicações no exterior. Esteve como palestrante em Viena e em Salzburgo/

Áustria, em 1996 e em 2000 em Mayaguez, Porto Rico, falando sobre literatura negra.

Até o momento a escritora tem publicado dois romances: Ponciá Vicêncio (2003) e

Becos da Memória (2007). Embora, poucos no Brasil conheçam esta autora ou suas

obras ela é bastante conhecida nos Estados Unidos.

Diálogos de transtextualidade

Na narrativa de Evaristo a presença destas informações e o retorno a uma

história vivida são uma constante. A memória da personagem é constituída pelo ato de

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regressar a aspectos como o artesanato de barro feito por mulheres; as canções, que

trazem algumas vezes em seu bojo a língua africana já esquecida pelos jovens; as

referências mitológicas que remontam ao continente africano como, por exemplo, a

cobra celeste que habita a memória da menina desde a infância. Oxumarê, o orixá

colorido que, por não gostar da chuva, desenha o arco-íres no céu com o objetivo de

estancá-la. E que por sua extraordinária beleza foi desejado por muitos, inclusive por

Xangô. E foi para fugir da cobiça deste orixá que Oxumarê transformou-se em cobra

(PRANDI, 2001: 222-230).

A memória não é o objeto desse estudo. No entanto, é preciso registrar que ela é

empregada, aqui, em concordância com o mesmo significado adotado por Giraudo,

como fonte de preservação de experiências vividas e que trabalha no sentido de

conservar a história ou identidade de um grupo “afiada no esforço e no exercício

constante, que o individuo pode purgar os pecados de vidas passadas, purificar a alma,

elevar-se e escapar às repetições causadas pelo esquecimento” (FISCHER, 1986:197

Apud: GIRAUDO, 1997:11); pois é esta, também, a função que a memória parece

desempenhar na obra Ponciá Vicêncio (2003) de Conceição Evaristo.

O título deste livro dá nome à protagonista da trama que vive os conflitos de ser

mulher negra em uma sociedade que desde sempre a relegou um a lugar secundário na

história. Trata-se de um sujeito em mobilidade espacial em busca de melhores

condições de vida; ao mesmo tempo, a autora discute a identidade dessa personagem

que, por sua vez, está intimamente relacionada à de seu avô, de quem ela herdou não

apenas o nome, mas também parte de sua história. Vô Vicêncio foi contemporâneo de

duas épocas: o antes e o depois da abolição, mas não experimentou as mudanças que ela

havia anunciado. E talvez, nem mesmo Ponciá o tenha. Assim, o romance fala de um

“sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado

em contraponto com uma história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e

democracia racial” (DUARTE, 2006:308). Destarte, Evaristo (2003), consegue, por

meio da personagem Ponciá, dar voz aos vencidos, que encontram na literatura um dos

poucos caminhos possíveis para a construção de um mundo seu, onde os compassos que

dão vida a esse universo foram delineados a partir de suas próprias experiências 3

3 De acordo com Zilá Berna, esta literatura, na qual o negro aparece como coadjuvante mostrando sua visão da história, não exprime os interesses dos cânones literários, portanto permanece ignorada, ficando muitas vezes esquecida dentro da própria época em que foram escritas (BERND, 1988: 17).

. Neste

sentido, a fala de Ponciá simboliza, parafraseando Jim Sharpe (1992), “novas

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perspectivas de se explorar o passado”, nas quais o discurso dos grandes homens da

história cede lugar ao dos oprimidos.

No caso de Ponciá, Conceição transmite a idéia de que se trata de um passado

que sobrevive ainda hoje. E esta contemporaneidade de um passado que deveria ter sido

extinto com a abolição, é fruto da insistência em não reconhecer a discriminação racial a

que negros estão sujeitos. Este fato, por sua vez, remete-se ao mito da democracia racial

formulado a partir de interpretações do pensamento do sociólogo Gilberto Freyre que

prega a harmonia entre brancos e negros no Brasil.

Neste contexto, refletir sobre essa personagem é, como aponta a epígrafe de

abertura, percorrer com ela simultaneamente presente e passado em busca de si mesma.

E esta procura tem início com o descontentamento em relação ao seu sobrenome: Ponciá nunca gostou dele (...) sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe e todos continuavam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens (EVARISTO, 2003:27).

Segundo Duarte (2006), a “marca da subalternidade” designada pela

denominação do mesmo sobrenome dos senhores aos escravos é um reflexo dos poucos

direitos à cidadania e preservação de sua história reservados aos descendentes dos

últimos e a eles mesmos. E esta prática foi veemente exercida entre o grupo senhorial

que se utilizavam desta técnica com o propósito de assegurar ainda mais seu direito de

posse sobre seus cativos.

Esta problemática abordada na obra ficcional de Evaristo relata a experiência da

grande maioria dos negros brasileiros. E isso pode ser confirmado, também, pelo

pequeno trecho do depoimento retirado do livro Memórias do Cativeiro..., (2005), de

Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, no qual as autoras por meio da narrativa oral de

descendentes de ex-escravos mostram a partir das lembranças destes, formuladas com

base no convívio com seus ascendentes, noções sobre o que era ser escravo; e

principalmente, sobre o modo como eles percebiam a questão da nomeação, deles e de

seus pares, com os sobrenomes dos senhores: Escravo que nascesse na propriedade deles levava o sobrenome deles, mais para constar que era uma propriedade deles, só, era só pra constar que era uma propriedade deles. Era mesmo como um animal. Fica jogado, trabalha, come no cocho, essas coisas, apanha quando o dono esta nervoso, quando os

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negócios não correm bem(...)(Pedro Francisco Prudente, SP, 73 anos, 5/9/1987)4

A relevância dos dois depoimentos perpassa, em primeiro lugar, pela

importância de se destacar a ausência de direito do escravo de decidir a respeito do

próprio nome. Em segundo, este fato revela-se como uma a tentativa de anulação de sua

identidade. Isso ocorria porque ao atribuir-lhes os seus sobrenomes, os senhores, além

de fazer destes homens e mulheres, parte de sua propriedade, os privavam da

possibilidade de reencontrarem por meio de seus nomes a sua ancestralidade e

conseqüentemente sua história.

Contudo, o nome compartilhado não significava jamais o estabelecimento de

relações de parentesco entre eles, como aponta o depoimento de Pedro Francisco. Eles

continuavam entregues a própria sorte, sendo submetidos a todas as atrocidades do

processo escravocrata. O uso do sobrenome senhorial assim como a substituição dos

nomes africanos por católicos expressava, além, da reminiscência do poderio do senhor,

a tentativa de anulação de suas referencias africanas. Enfim, quem era Ponciá? De onde

ela veio? Quem são seus antepassados? O que se sabe por meio de seu nome é que seus

avós serviram a um tal coronel Vicêncio. E nada mais. Esses traços compõem uma

história que não pertence apenas a ela, traduz a experiência de muitos e muitas Ponciás.

É importante registrar que além da probabilidade de nomear os escravos com

seus sobrenomes, os senhores ainda contavam com a possibilidade de batizá-los com os

nomes de suas regiões de origem como angola e benguela, por exemplo. Ou ainda de

chamá-los por um nome católico e pela denominação dos portos, em que permaneceram

antes de serem comercializados (SOUZA, 2005:105). A substituição dos nomes de

origem africana, como já foi apontado a acima, funcionou como um dos elementos de

desagregação da identidade daqueles que, sem escolha, foram transportados a força de

seu continente de origem.

A memória de Ponciá é utilizada por Conceição Evaristo como fio condutor

entre os demais personagens, por meio de uma mistura entre presente e passado,

proporcionada por flashes de recordações vividas por ela. É este fato que, por sua vez,

fornece subsídios para o conhecimento da história de Vô Vicêncio, de sua mãe, de seu

pai e de seu irmão. E também para a possibilidade de ligações com suas raízes africanas. 4 RIOS e MATTOS, 2005:91.

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Esta postura da autora abre margem para a percepção de uma possível

proximidade entre a sua escrita e a afro-americana. Nesta última, as escritoras, segundo

José Eduardo Giraudo (1997) em sua análise das obras de Toni Morrison, desempenham

o papel de transmissoras da história dos escravos através da memória dos seus

personagens; ao mesmo tempo em que são responsáveis por recuperar esta história, que

é vista, pelo autor, como indispensáveis para composição de uma identidade afro-

americana; ou seja, para ele a “literatura étnica” funciona “enquanto instancia da

atualização da memória coletiva” (GIRAUDO, 1997:13). Assim, em outras palavras, a

principal tarefa desta literatura, ainda seguindo o raciocínio do mesmo autor, seria de

guardar e reconstruir a história daqueles que ao longo de séculos permaneceram

marginalizados.

Ponciá era neta de escravos e seu pai havia vivenciado momentos nada

agradáveis ao lado do “sinhozinho branco”. Embora fosse nascido após a Lei do Ventre

Livre, instituída em 1871, que declarava que, a partir de então, os filhos dos escravos,

diferentemente de seus pais, nasceriam livres, “Ele crescera na fazenda vivendo a

mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele”

(EVARISTO, 2003: 14) o que significava satisfazer todos os seus caprichos. Contudo,

ele não gostava da vida que levava e, um dia, cansado das traquinagens do sinhô-moço,

criou coragem e perguntou ao pai: “se eram livres, por que continuavam ali? Por que,

então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de

outros lugares e trabalhos?” ( EVARISTO, 2003:14). O pai não pode responder, ele não

tinha a resposta. Um dia, o senhor de todos os escravos que trabalhavam naquela

fazenda havia reunido todos e dito que a partir daquele momento eram livres. Mostrou-

lhes papéis dizendo que eram contratos nos quais ele concedia a eles liberdade e terras

para trabalharem. No entanto, guardou com ele os documentos e também a liberdade

daqueles que a quem ele mesmo havia denominado de livres. A família dela ainda

morava nas terras concedidas e tomadas de Vô Vicêncio, pelos herdeiros do ex-senhor.

E depois da morte de seu avô, as terras e as condições de trabalho foram transferidas ao

pai de Ponciá. Ele e o filho continuavam o trabalho que havia sido iniciado há séculos

atrás por outros Vôs Vicêncios. Do mesmo modo, ainda hoje, infelizmente, outros

homens e mulheres negras prosseguem no mesmo ritmo a trilhar uma história que

outros começaram e parece nunca ter fim.

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Duas questões, assinaladas acima, ilustram o entrecruzamento entre história e

literatura na obra da autora: em primeiro lugar a discussão sobre os conflitos pela posse

da terra “concedida” aos ex-escravos pelos seus senhores; problema ainda hoje

enfrentado por algumas comunidades negras que lutam pela legitimação do domínio de

suas terras. Em segundo, o registro da continuidade do trabalho exaustivo, por grande

parte dos afro-descendentes, mesmo após o processo de abolição. Este fato, por sua vez,

traduz a história daqueles que ainda hoje não sentiram as mudanças almejadas neste

campo. Eu mesmo ainda fui muito sacrificado na minha vida de criança... eu tinha um sacrifício danado. Eu com idade de 14 anos estava capinando... trabalhando pros outros, passando mal, dormindo mal dormido, comendo mal comido... eu fui escravo do mundo. Eu fui escravo do mundo. Escravo do mundo... meu pai foi escravo de fazendeiro, eu fui escravo do mundo, sofri muito. (Seu Julião, RJ, 81 anos, 27/10/1995) 5

A discussão historiográfica abordada no livro Memórias do cativeiro: família,

trabalho e cidadania no pós-abolição (2004), de Hebe Mattos e Ana Lugão Rios

apontam duas interpretações presentes no imaginário dos afro-descendentes

entrevistados pelas pesquisadoras. Uma dessas interpretações reafirma a continuidade

de aspectos existentes no tempo do cativeiro no período pós-abolição, que estaria

relacionado em especial à questão do trabalho.

Este fato pode ser observado, também, no depoimento de Paulo Vicente

Machado, entrevistado por Mattos e Rios, que afirma ter crescido “tocando lavoura com

seus pais e irmãos, em regime de parceria, na mesma fazenda em que o pai havia sido

escravo” (MATTOS e RIOS, 2004: 14). É também a esta perspectiva que Evaristo

procura relacionar a história familiar de Ponciá, pois, o pai da personagem também

cresceu e trabalhou nas terras em que Vô Vicêncio havia sido escravo. Ela, seu irmão e

sua mãe compartilharam a mesma experiência até o momento em que, em períodos

distintos, partiram para a cidade.

Uma das vertentes apresentadas por Mattos e Rios infere que para alguns de

seus entrevistados o trabalho duro não era visto como principal marco divisor entre o

tempo do cativeiro e o tempo da liberdade. Deste modo, outros fatores como o “direito

de ir e vir, de dispor de seu próprio corpo e de regular autonomamente as relações de

família” apresentavam maior importância (MATTOS e RIOS, 2004:50). Esta vertente

5 MATTOS e RIOS, 2004: 122.

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apresenta-se em oposição à visão que aponta a continuidade do trabalho árduo, como a

principal motivo de insatisfação no pós-abolição.

Na obra de Evaristo tem-se uma junção dos dois elementos: em primeiro lugar, a

personagem principal vive indignada com o fato de sua família e de outras da

vizinhança viver no mesmo ritmo de trabalho do tempo da escravidão. Em segundo, a

autora relata que o pai e o avô de Ponciá não haviam vivenciado o verdadeiro sentido

que se imaginou simbolizar o fim do processo escravocrata, afinal, eles continuaram

presos, de algum modo, às terras em que vão Vivencio havia sido escravo até a morte de

ambos.

Foi com Ponciá que a família Vivencia desfrutou pela primeira vez do direito de

ir vir. Ela foi para cidade grande a procura de melhores oportunidades de vida. Depois

veio o irmão e por fim a mãe, em busca dos filhos.

Na obra de Evaristo quando Ponciá decidiu deixar a mãe e o irmão e, sem

nenhum preparo, tomou o primeiro trem para a cidade grande, acreditou que, por saber

ler e escrever, sua vida na zona urbana seria mais fácil. Na roça não precisaria desses

saberes, mas se um dia resolvesse ir para a cidade lá eles lhe seriam úteis. No campo,

bastava conhecer a natureza, o trabalho com a terra e com o barro para ajudar a mãe. Ela

aprendeu os primeiros passos da leitura com os padres das missões, que partiram antes

que ela pudesse terminar sua aprendizagem. Então, teve que prosseguir sozinha.

Luandi, irmão de Ponciá, quando chegou à cidade também era analfabeto. Foi

com a ajuda do soldado Nestor que ele aprendeu a escrever seu nome e depois a ler.

Todavia, a posterior desilusão em relação às oportunidades que poderiam ser abertas em

função dos dois personagens serem alfabetizados funciona na obra de Evaristo, na

verdade, como inquietações no sentido de se pensar se estes dois subsídios são

realmente suficientes para a garantia de possibilidades de melhor viver nesta sociedade.

Como pode ser observado nas citações abaixo. A primeira refere-se à Ponciá, Um dia Ponciá juntou todas as revistas e jornais e fez uma grande fogueira com tudo. De que valia ler? De que valia ter aprendido a ler? No tempo em que vivia na roça, pensava que, quando viesse para a cidade, a leitura lhe abriria meio mundo ou até o mundo inteiro. Agora nada lhe interessa mais nas noticias (EVARISTO, 2003:93).

A segunda diz respeito a Luandi, Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que

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ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia (EVARISTO, 2003:131).

Com base nestes dois exemplos, a escritora afirma que, o fato de saber ler e

escrever não é o bastante para que haja uma mudança na realidade dos afro -

descendestes. Eles são sem dúvida pré-requisitos, mas não é o único caminho. A

resolução desta problemática exige uma leitura mais profunda, que perpassa pelo

reconhecimento da existência de oportunidades diferentes, no campo educacional,

profissional, cultural e socioeconômico para negros. E para que este problema seja

solucionado, o primeiro passo é discuti-lo e não calar-se diante dele.

No Brasil, paralelamente a publicação do livro de Evaristo, algumas medidas

foram implementadas com o objetivo de contornar esta situação, como a Lei nº.

10.639/03, a criação da Seppir, as propostas que visam reservar maior atenção a doenças

com maior incidência sobre a população negra e as cotas. Embora, estas transformações

ainda causem debates fervorosos entre os brasileiros o fato de elas terem sido

implementadas já representa um primeiro passo para maiores mudanças.

Ao se retomar a decisão de Ponciá de deixar o campo e ir para a cidade, é

importante ter em mente que tal determinação alia-se ao fato da personagem ter perdido

as esperanças, de mudanças no modo de viver no pequeno terreno “familiar”. Esta

terra, por sua vez, era dona de muitas histórias de marginalização e violência que

envolve seus antepassados, assim, ela, Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir ás terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis (EVARISTO, 2003:32)

Aqui, mais uma vez, é possível perceber, entre outras coisas, a desilusão da

autora em relação ao momento pós-abolição, traduzida na indignação da personagem

em relação a pouca ou nenhuma possibilidade de transformação para a vida dos negros,

mesmo no período que sucedeu este evento. Assim, a fala da autora por meio de Ponciá

é ao mesmo tempo de descontentamento e denúncia frente a uma história que se repete.

Outro aspecto importante na obra de Evaristo diz respeito ao fato da escritora

construir sua personagem principal de modo que toda a experiência de vida, de Ponciá,

de criança a idade adulta é feita de perdas: a perda do Vô Vicêncio, do pai, dos sonhos e

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lentamente da própria consciência, como se com isso, perdesse o próprio “enraizamento

identitário”, como afirma Eduardo Duarte (2006:307).

Quando Vô Vicêncio morreu, Ponciá ainda era criança de colo. O pai partiu

quando ela era menina; saiu um dia para trabalhar a terra dos brancos e não voltou mais.

Morreu enquanto trabalhava. Quanto à perda da consciência, ela ocorreu lentamente,

porém os que viviam ao seu redor nunca tiveram dúvidas de que isso viesse a acontecer

afinal ela em tudo se parecia com seu avô. Ele também havia enlouquecido, após ver

parte dos filhos serem vendidos, apesar de nascido em pleno vigor da Lei do Ventre

livre.

A insanidade na obra de Evaristo caracteriza-se pelo fato de dois de seus

personagens, Vô Vicêncio e Ponciá, em um determinado momento da narrativa, em

função de inúmeros fatores dramáticos relacionados ao agora e ao já vivido,

anteriormente apontados, abdicarem do tempo presente, voltando-se para o passado.

Como se com isso pudessem encontrar um motivo para continuar existindo. No entanto,

morrem socialmente para aqueles que na verdade nunca deram a ela o direito de se auto

representar, mas vive em um passado que acredita ter sido feliz, mas ao qual não pode

retornar.

No livro Amada, de Toni Morrison, de acordo com Giraudo, Sethe, também,

vive reclusa em um período decorrido, após matar um dos seus. Contudo, embora, ela

tenha optado por viver no passado, é importante assinalar que ela não enlouqueceu. O

apontamento desta proximidade, no que diz respeito ao abandono do tempo presente,

entre a obra de Evaristo e Morrison tem como propósito ampliar o significado do dano

psicológico vivenciado por Ponciá, para além da perda de “enraizamento indentitário”

registrado no estudo de Eduardo Duarte. Destaca-se aqui, também, a relevância de se

pensar este fato em concordância com a análise feita por Giraudo (1997: 89), da obra de

Toni Morrison, Amada. Neste livro, segundo o mesmo autor, Sethe, personagem

principal, diante da impossibilidade de proteger os filhos de um grupo de caçadores de

escravos, tentou matar as quatro crianças. Tragicamente conseguiu tirar apenas a vida

de uma da filhas. Amada, acreditando com isso “colocá-la em um lugar onde ninguém

pudesse feri-la” (GIRAUDE, 1997:88). Após este acontecimento, a filha morta por

Sethe volta a conviver com ela como fantasma. Inicialmente como uma força

“estranha”, que habita a casa em que Sethe morava com os dois filhos homens e uma

filha de nome Denver, que sobreviveram à tentativa de assassinato da própria mãe.

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Depois da morte da sogra, da fuga dos filhos e com a chegada de um amigo antigo Paul

D que expulsa esta força, Amada volta a viver na casa como uma moça com a idade que

teria, se fosse viva.

Assim, ao reconhecer na estranha à filha morta, Sethe passa a dedicar-se ao

desejo de constituir uma família que nunca teve, Assim, ela se retira do presente – e da possibilidade de construir um futuro a partir do presente – e se refugia no passado. Escondendo-se num lugar tão “sem tempo” quanto o lugar de onde espera que retornem seus filhos, Sethe permanece fora da história e de suas possibilidades. Esta recusa do tempo, e do tempo presente, é representada pelo rompimento dos laços que a prendem ao mundo exterior, pelo abandono do emprego na cidade e pelo auto-escapsulamento na esfera da domesticidade (GIRAUDO, 1997:89).

A atitude da personagem é usada por Morrison como um meio de assegurar a

existência de um tempo passado, ou seja, de se retornar a histórias vividas. Objetivando,

com isso, a reconstrução de algo que ela sonhou, mas que não pode viver. O dano

psicológico na obra de Conceição Evaristo parece desempenhar função semelhante.

Ponciá “gastava todo seu tempo com o pensar, com o recordar. Relembrar a vida

passada pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O

amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!”

(EVARISTO, 2003:16).

Sethe, também, sonhou com a possibilidade de liberdade para sua família, após a

fuga de Doce Lar, assim como, Ponciá sonhou em encontrar um emprego na cidade, que

lhe permitisse juntar dinheiro para comprar uma casa e poder morar com a mãe Maria

Vicêncio e o irmão Luandi. Ambos os sonhos foram frustrados e elas, como se

respondendo a esta desilusão escolheram viver em função do passado, uma vez que o

futuro parecia não oferecer a elas nenhuma possibilidade de mudança.

A existência de situações semelhantes presentes na obra das duas autoras,

evidenciam a “transtextualidade” abordada por Zilá Bernd. Em outras palavras, se quer

dizer que a presença de temáticas em comum na narrativa de Conceição e Toni

Morrison como o fechar-se no passado, as canções usadas como formas de se

estabelecer uma ligação com uma ancestralidade africana, a questão da língua

desconhecida pelos jovens, mas que outrora fora falada pelos seus antepassados, tem

como objetivo maior tentar construir uma história ou um passado para os negros que

seja capaz de preencher a lacuna causada pela transferência forçada de seu continente de

origem. Embora, comungue com a idéia de Zilá Bernd é, também, importante destacar

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que, esta análise não desconhece a importância de se pensar a obra literária dentro de

seu próprio contexto histórico, social e cultural.

Toni Morrison em seu livro, talvez em razão do ano de publicação de sua obra

(1987), concentrou sua história e personagens no período da abolição e da escravidão

nos Estados Unidos, ou seja, Sethe e seus filhos eram escravos fugidos. Além disso, ela

não abordou a questão da loucura em seus personagens, como o faz Conceição.

Evaristo, por sua vez, escreve sua obra em 2003 e Ponciá pertence à segunda

geração de libertos, uma vez que seu pai nasceu durante a Lei do Ventre Livre e seu avô

recebeu carta de alforria. Embora, a escritora brasileira tenha escrito seu livro depois de

decorridos mais de cem anos do fim do processo escravista, ela ainda reclama por meio

de seus personagens e escrita uma história para os negros em que eles não sejam apenas

coadjuvantes. Em outras palavras, por meio de sua “herstory6

Na trama de Evaristo, o ato de abandonar o presente e fechar-se no passado não

está relacionado apenas à personagem principal, Ponciá, mas envolve outro membro de

sua família, Vô Vicêncio. Na obra Ponciá Vicêncio, por exemplo, é o a avô e não

Ponciá quem em um ato de desesperança, elimina um dos seus, crendo com isso aliviar

suas agonias,

“, ela traduz seu desejo

em relação à necessidade de se construir uma história para seus pares.

Três ou quatro dos seus, nascidos do “ventre livre”, entretanto, como muitos outros, tinham sido vendidos. Numa noite, o desespero venceu. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a mulher, começou a se autoflagelar decepando a mão. Acudido, é impedido de continuar o intento. Estava louco, chorando e rindo. Não morreu o Vô Vicêncio, a vida continuou com ele, independentemente do seu querer. (EVARISTO, 2005:50).

Vô Vicêncio, embora já recluso ao seu próprio mundo, estava vivo quando a

escravidão chegou ao fim. O pai de Ponciá nasceu livre e conseqüentemente ela e seu

irmão também. Depois que enlouquecerá Vô Vicêncio vivia rindo e chorando. A

primeira vista estes dois atos pode parecer apenas sintomas de uma loucura

compartilhada por muitos outros que se encontravam na mesma condição. Entretanto,

arisca-se aqui a pensar estes dois sentimentos como instrumentos usados pela autora

para registrar a ambivalência que poderia ter se formado no interior de Vô Vicêncio

depois do ocorrido. Assim sendo, o riso simbolizaria o contentamento por acreditar ter

6 De acordo com Geraldo (1997:50), o termo herstory é utilizado pelos críticos literários norte-americanos para nomear uma história especificamente feminina.

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conseguido abrandar a dor de um dos seus. O choro quiçá representasse a desilusão por

não ter conseguido terminar o que começou ou ainda como arrependimento.

Junta-se, também, à loucura e ao sofrimento de Vô Vicêncio o fato de que ele

teve que lidar com a idéia de que os filhos do ex-senhor tivessem o direito de tomar a

terra, que este lhe dera ainda em vida. Então, de nada valia o contrato outorgado a Vô

Vicêncio, eles queriam a terra de volta. Assim, é oportuno recorrer mais uma vez ao

trabalho de Mattos e Rios para reafirmar a idéia de, Sem oportunidades, ou desejo de constituir família, viver em comunidade, apropriar-se de alguma parcela de seu trabalho ou negociar com seu proprietário, as opções dos homens e mulheres cativos se restringiam à completa submissão ou à fuga, ao suicídio e ao crime, únicas possibilidades de resistência à despersonalização decorrente da condição cativa (MATTOS e RIOS, 2004:22).

Diante de todas as turbulências vivenciadas em função da reminiscência de um

passado que se desdobra no presente como a perda dos filhos, a “trapaça” com a questão

da terra, o direito restrito de habitar e de cultivar o terreno, o trabalho exaustivo

transmitido de pai para filho, em resposta a tudo isso a tentativa de suicídio de Vô

Vicêncio e a morte de sua esposa são atos planejados, acima de tudo, com a esperança

de abreviar sofrimentos. Mas a ação do personagem de Evaristo pode também significar

uma representação do desejo frustrado de apagar um passado e um presente marcado

pela dor e conseqüentemente impedir a continuidade desta história em sua memória.

O homicídio ocorreu quando o pai de Ponciá era jovem, assim, Vô Vicêncio

após sua tentativa frustrada de tirar a própria vida, ainda viveu muitos anos entregue a

própria sorte, vivendo de restos e presenciando o sofrimento daqueles que a sua volta

continuavam a mesma vida.

Aqui, mais uma vez sente-se a necessidade de ressaltar o descontentamento da

autora em relação às poucas transformações ocorridas com o fim da abolição. Ponciá

pertence à terceira geração de libertos e ainda são poucas as oportunidades oferecidas

aos afro-descendentes. Prevalece um mesmo ritmo de trabalho exaustivo e poucas

possibilidades de mobilidade via ingresso em outros campos profissionais, que não

estejam ligados ao universo doméstico ou ao trabalho rural. Ponciá e seu irmão são na

narrativa de Evaristo exemplos deste fato.

Movida pela esperança de que a vida poderia ser melhor, Ponciá acreditava que

por saber ler e escrever teria mais oportunidades de emprego na cidade, mas acabou

como empregada na casa de pessoas ricas. Luandi descobriu que embora soubesse ler,

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sem contar com a ajuda de seus pares no sentido de se fazerem voz ativa, continuaria

recebendo ordens.

No caso da lesão psicológica de Ponciá, ela também se alia a inúmeros fatores,

interligados como as perdas citadas acima, do pai, do avô e dos sonhos. Acrescenta

aqui, a morte de sete filhos.

Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras perdas ela sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a pena por um filho no mundo? Lembrava-se de sua infância pobre, muito pobre na roça e temia a repetição de uma mesma vida para os seus filhos (EVARISTO, 2005:82).

O sentimento de proteção, ao ente amado, está presente no ato de Sethe, Vô

Vicêncio e Ponciá. Assim, embora, Ponciá não tenha matado nenhum dos filhos, após

todas as decepções presenciadas em sua vida, agora submersa em um tempo pertencente

apenas a ela, concluiu que foi melhor que todos tivessem morrido, pois assim, foram

poupados das amarguras reservadas àqueles que nascem na mesma condição que ela.

Giraude concorda com Emily Budick no sentido de que a fuga da realidade

vivida por Sethe é, na verdade, uma resposta às perdas sofridas por ela, deste modo, o

fato do tempo para essa personagem deixar de existir funciona como uma tentativa

desesperada de guardar algo que não se quer perder (GIRUADE, 1997:98). Evaristo, ao

abordar essa temática por meio de Ponciá, também coloca as perdas, em especial de

indivíduos queridos, como fatores que desencadearam sua loucura, do mesmo modo,

que a reclusão no tempo passado, também, tem por objetivo assegurar a presença

daqueles que, em função de sua mudança para a cidade e da morte de alguns, não estão

mais com ela Ponciá age como se tentasse reter pequenos fragmentos de sua história que

poderiam se perder se não fossem guardadas e relembradas em sua memória.

De acordo com Ashar Rushdy, a personagem de Amada no livro Beloved, a filha

que Sethe assassinou, é a “personificação do passado que tem de ser lembrado para que

possa ser esquecido; ela simboliza o que precisa reencarnar para que possa ser

devidamente enterrado” 7

7 RUSHRAF, Asharf: Apud: GIRAUDO, 1997: 100.

. Arrisca-se aqui a inferir que o personagem de Vô Vicêncio

parece desempenhar função semelhante na obra de Evaristo.

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No entanto, é preciso mencionar, como já foi dito anteriormente, que quando Vô

Vicêncio morreu, Ponciá era criança de colo, mas isso não impediu que ela herdasse

comportamentos característicos dele, como o modo de andar com a mão para trás e a

loucura. Evaristo ressalta que ela era muito pequena para guardar estes detalhes, no

entanto, mesmo assim foi capaz de fazer com o barro uma escultura que em tudo se

parecia com seu avô. Uma escultura que tinha um semblante de riso e choro. A mãe

ficou assustada com o que viu embrulhou a pequena estatueta e a guardou no fundo de

um caixote. Comunicou ao marido o ocorrido, ele, por sua vez, não deu atenção.

Neste momento, é inevitável não prestar atenção na ambivalência de

comportamento apresentada por Evaristo entre simplesmente esquecer o passado ou

pensá-lo para que possa ser mudado. Com o comportamento da mãe ela almeja relatar o

primeiro desejo que vem a mente de grande parte daqueles que compartilham ou

compartilharam semelhante experiência: têm consciência, mas preferem não discuti-lo.

Por isso a mãe guarda o “pequeno homenzinho” na caixa. Ela sabe que ele existe,

porém, não quer enfrentá-lo, mas ele a incomoda e a qualquer momento pode vir à tona.

Quanto ao comportamento do pai, de Ponciá, simboliza a tentativa de esquecer

o passado marcado pelo sofrimento e pela marginalização a que os negros foram

sujeitados. No caso do pai esse esquecimento, que funciona como uma amnésia

voluntária quer apagar qualquer lembrança deste passado indesejado. Esta amnésia tem

como objetivo maior a ilusão de transformar o presente por meio do esquecimento

definitivo do passado.

Os sonhos, de Ponciá, se desfizeram com o correr do tempo com as frustrações e

com a impossibilidade de realizá-los. Assim sendo, “Ponciá havia tecido uma rede de

sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande

buraco, um grande vazio” (EVARISTO, 2003:23). Tudo que ela desejou foi afastar-se

daquele lugar onde seus pares trabalhavam sem nenhuma perspectiva de mudança de

vida. Sonhou em partir para cidade grande, em conseguir um bom emprego, afinal ela

sabia ler; aspirou comprar uma casa e voltar para buscar o irmão e a mãe, para juntos,

começarem uma nova vida. No entanto, na obra de Evaristo o ir e vir da terra dos

brancos cede lugar a um ir e vir à casa das patroas. Como se falassem por uma multidão,

ela se pergunta Conceição Evaristo por meio de sua personagem diz: De que valeria o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos sem escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de

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coragem-covardia, se rebelara, matara uns dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida (EVARISTRO, 2003:84).

Na narrativa da autora a Abolição revela-se como uma luta que apesar de

“vencida”, não foi capaz de simbolizar a liberdade e o direito a cidadania tão almejada.

Ela se perdeu em meio às fronteiras presentes no imaginário social, que insiste

ironicamente em continuar “sonhando” com a cordialidade e com o mito da democracia

racial, o que apenas corrobora para permanência da condição de marginalidade social

dos negros no Brasil. Em síntese, esta atitude acaba por criar um cativeiro invisível e

não legalizado, por isso, ainda mais difícil de ser combatido.

Em função disso, o negro ainda continua imerso na pobreza e na marginalidade

originada pela discriminação racial legada pelo sistema escravocrata. Assim sendo, para

que as Ponciás possam tentar cruzar as linhas imaginárias que insistem em remetê-las a

um lugar comum, o universo da exclusão, é preciso que de antemão se reconheça sua

condição que, por sua vez, não é a mesma da mulher branca.

Em seu romance o que Evaristo talvez deseje, por conhecer o poder que a

literatura possui de fazer permanecer entre seus pares e a gerações futuras pensamentos

e comportamentos sociais, seja justamente registrar, por meio da escrita, questões que

embora, evidentes contam com poucas narrativas históricas feitas a partir da perspectiva

de seus pares.

***

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ENTRE O “CAOS” E A “MODERNIDADE”: A CIDADE DE GOIÂNIA NA IMPRENSA ESCRITA LOCAL (1930-1970)

Me. Lívia Costa

[email protected] Goiânia, a capital caçula do Brasil, tão decantada por seus foros de beleza e progresso, com uma vintena de existência, tem um grande e grave problema que está a deturpar tudo que dela dizem, pois nunca poderemos ser considerados um povo civilizado, nunca deixaremos de ser taxados de cangaceiros se o crime não deixar de campear a solta (...). (É preciso agir senhor Juiz. Jornal Brasil Central, Goiânia, 22 de fevereiro de 1957.p.5).

Afirmações relativas a cidade de Goiânia enquanto terra do progresso e da

beleza, como afirma o trecho da reportagem acima, eram comuns nos jornais

goianienses entre as décadas de 30 a 70. Nesse período referente ao crescimento da

cidade, a imprensa escrita tinha um papel fundamental na divulgação de denúncias

relativas a criminalidade e outros problemas que denegriam a imagem citadina.

Nesse sentido, o texto tem como objetivo analisar como a imprensa escrita

atuava em Goiânia como um instrumento de defesa da imagem da cidade e das próprias

famílias goianienses.

Nas primeiras décadas de Goiânia, havia uma preocupação com a imagem da

cidade e do Estado voltada para o progresso. Para tanto, era necessário manter a cidade

saneada moralmente, com princípios de civilização. Constantemente, a imprensa

notificava a importância de proteger a honra das famílias. A família era vista como a

base fundamental de uma cidade civilizada.

Dessa forma, através de pesquisas realizadas nos periódicos goianos1

Essa preocupação com a “honra” da cidade e de uma imagem voltada para o

progresso, é vista desde o momento em que Goiânia foi idealizada pelo governador

observa-se

que havia uma relação entre a imprensa e as esferas da família, do estado e da polícia.

As famílias solicitavam a redação dos jornais, uma ação das autoridades acerca dos

problemas que as ameaçavam, como a criminalidade, a prostituição, os crimes sexuais e

a própria impunidade. A meu ver, cabia a imprensa denunciar esses problemas em

defesa da honra das famílias e da cidade.

1 A pesquisa foi realizada nos jornais “Cidade de Goiás”, “Brasil Central”, “Jornal de Notícias”, correspondentes às décadas de 1930 à 1950 e no jornal “Cinco de Março”, editado a partir de 1959. Atualmente é o jornal Diário da Manhã.

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Pedro Ludovico Teixeira, em 19322

Como aponta Nasr Fayad Chaul, 2000: 122/123, a construção de Goiânia está

ligada à expansão de fronteiras, mais precisamente na chamada Marcha para Oeste,

durante o Governo Vargas. Um dos projetos primordiais do Estado Novo foi sua

tentativa de integração e unificação do interior do Brasil através do tema da Marcha

para o Oeste. Vargas visava a inserção das regiões na construção da nação. Nesse

contexto, Chaul aponta que na Marcha para o Oeste, “Goiânia era o símbolo desse novo

Brasil grande, do novo, do progresso, que levava o Estado de Goiás a sair do marasmo

político-econômico”. Nesse sentido, Goiânia sustentaria a ideia de modernidade

substituindo a de decadência e atraso.

. Ludovico desejava a transferência da capital do

Estado de Goiás, da antiga Cidade de Goiás, para uma nova cidade, Goiânia. Ele

acreditava que Goiânia romperia com o atraso da Cidade de Goiás e simbolizaria um

novo espaço urbano caracterizado pelo progresso e modernidade, atraindo várias

pessoas para a economia do Estado (GOMIDE, 2003).

A propaganda oficial do governo do Estado dizia que Goiânia era um mundo de

possibilidades, uma terra de oportunidades. Goiânia seria a filha mais nova do Estado

Novo. Essa propagação atraiu um fluxo migratório de pessoas, especialmente nas

décadas de 1940/50. Após 1955, essa atração foi reforçada pelo projeto de construção

de Brasília, durante o governo de Juscelino Kubitschek. A cidade de Goiânia teve uma

importância estratégica na construção da nova capital federal.

Ao lado da propagação dessa imagem positiva da cidade, os jornais locais, na

década de 1950, difundiam os problemas que persistiam na cidade. Em uma reportagem

do jornal Brasil Central, Goiânia foi apontada como um centro que está na “vanguarda

dos crimes”: assaltos, roubos, espancamentos “[...] fica-se até temeroso de sair à noite

em Goiânia [...]”. (Crimes. Brasil Central, Goiânia, 10 de fevereiro.1957. p.01).

Essa preocupação também era vista em relação ao problema do menor

abandonado. No dia 27 de janeiro de 1957, na primeira página, o Brasil Central

publicou uma matéria intitulada “Pequenos Vigaristas”, na qual o problema do menor

abandonado na cidade de Goiânia, gerava para ela, uma imagem de cidade abandonada:

“[...] crianças de 6 a 15 anos enchem nossas ruas com pedidos suplicantes e implorações

2 A cidade de Goiânia foi idealizada por Pedro Ludovico no ano de 1932 e iniciada no ano de 1933. Porém, apenas em 1937 é que ocorreu definitivamente a transferência da antiga capital do Estado para Goiânia. Em 1942, Goiânia foi apresentada à nação através do conhecido batismo cultural.

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[...] A nossa capital atualmente é centro de turismo. Não podemos mostrar aos visitantes

a face da vadiagem e desorganização social [...]”.

Nota-se que problemas como o da criminalidade e do menor abandonado eram

apreendidos como fenômenos que de certa forma atingiam a moral da cidade. Já no caso

das notificações acerca do fenômeno da prostituição e dos crimes sexuais, a honra das

famílias era o principal tema de defesa da imprensa : [...] O que não pensarão do conceito moral da família goianiense, os visitantes que vêm, sabendo que infelizmente, até hoje as mulheres honestas, as moças, as crianças do Setor dos Funcionários, merecem tão pouco apreço das autoridades? [...]. (Remoção do Meretrício: Mães desesperadas lutam pela honra de suas filhas. Cinco de Março, Goiânia, 22 de junho. 1964.p.05).

A preocupação com o conceito da moral da família perante seus visitantes é

nítida. A honra das famílias, ao ser exposta e agredida moralmente, colocava em risco a

imagem da cidade. Noto que para manter a imagem de uma cidade civilizada, com

ideais de modernidade e progresso, Goiânia deveria preservar a honra familiar. Para

tanto, era necessário sanear moralmente a cidade e afastar todos os fenômenos que

pudessem atingir as famílias. A instituição da família deveria se identificar com

princípios de honradez e civilidade. Consequentemente, a prostituição deveria estar

afastada dos bairros familiares.

Nos primeiros anos da cidade de Goiânia, a prostituição era concentrada no

bairro de Campinas. Antes de ser um bairro, Campinas era uma cidade, fundada em

1810. Em 1933, foi o município escolhido para dar apóio a construção da nova capital

de Goiás, a cidade de Goiânia, localizada a cinco kilomêtros de Campinas. Dessa forma,

a cidade de Campinas passou a receber as novas obras de Goiânia, as construções

urbanas e comerciais. Além das construções de comércio e residência, algumas eram

destinadas ao comércio das casas de prostituição.

No ano de 1959, o jornal Cinco de Março, iniciou uma campanha a favor da

remoção da zona de meretrício das proximidades das residências familiares desse bairro.

Segundo o jornal, o meretrício campineiro era “a semente que germina delinqüência, é

um tapa na moral de cada família e um chute na quietude sagrada de cada lar”.

(Decaídas pequenas e grandes decaídas. Eis a questão: O prefeito é político, as

prostitutas eleitoras. Cinco de Março, Goiânia, I Semana de Novembro. 1959. p. 4). 3

3 Em algumas matérias do jornal Cinco de Março, não é especificada a data diária do jornal, mas apenas a da semana de sua publicação.

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Posteriormente, com o desenvolvimento urbano e comercial de Goiânia, os

prostíbulos foram se alastrando pelos outros bairros da cidade, principalmente naqueles

que comportavam casas comerciais. O Cinco de Março registra que essa expansão das

zonas de meretrício ocorreu devido à “oficialização da Prostituição”. Para solucionar a

confusão que se fazia entre as residências particulares e os prostíbulos, o governo e a

polícia do Estado de Goiás, no início da década de 1960, resolveram identificar as

pensões de prostíbulos como as “casas das luzes vermelhas”. Com essa identificação, as

residências particulares não seriam confundidas com os prostíbulos. Essa medida

adotada pelo Estado foi notificada pelo jornal, anos depois, da seguinte forma:

[...] Preferiram as autoridades o caminho mais curto e mais fácil [...] reconheceram oficialmente, legalmente, escandalosamente, o meretrício, oficializaram-no e aberrantemente o identificaram, com luzes vermelhas [...] afrontando à todas as tradições de honra e respeito à sagrada família [...] Pensaram as autoridades terem resolvido para sempre o problema das prostitutas em Goiás. Lá estão os emblemas vermelhos da legalização da depravação social. Mas os conflitos, as divergências, os problemas que naquela época haviam, tornaram-se infantis, diante do drama que aquela tresloucada medida veio constituir para hoje, caminhando “a passos largos, desde aquela época. Campinas, Setor dos Funcionários, Vila Operária, Fama, Setor Oeste, Vila Coimbra [...] e um punhado de outros bairros são hoje verdadeiras fontes luminosas de mulheres perdidas com a proteção oficial [...] Hoje é quase impraticável ter família e residir em um destes bairros [...]. (Prostituição Oficializada: Estraçalha a Moral do Povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de maio. 1962. p.8).

Outro problema que atingia a imagem da cidade e das famílias era a violência

contra a mulher. Todavia, esse fenômeno social estava inserido num problema de ordem

moral. Percebe-se que num determinado momento, os crimes contra a mulher eram

intrínsecos ao problema da prostituição que ameaçava a honra das famílias. Eles eram

efeitos da desordem moral que a prostituição gerava:

[...] As famílias, além dos infortúnios a que estão expostas por residirem nas proximidades de lupanares se vêem na obrigação de, em muitos pontos do bairro, escreverem a palavra “Família” nas paredes frontais da casa – a fim de não serem importunadas pelos freqüentadores menos avisados sobre a zona [...] Nenhuma senhora de respeito ou uma moça pode andar nas ruas, sob pena de ser confundida com as mulheres de vida livre e assim serem abordadas ou agredidas [...] Homicídios misteriosos já foram cometidos ali, tudo por culpa dos lupanares [...]. (São Francisco: O Inferno das Famílias no Bairro da Luz Vermelha. Cinco de Março, Goiânia, 11 de maio. 1975. p. 8).

Da mesma forma, a impunidade e a criminalidade eram vistas como uma ameaça

à imagem da cidade de Goiânia e do Estado de Goiás perante a nação: [...] Lamentavelmente, no entanto, contrapondo-se a esse progresso extraordinário, grassa no território goiano um mal que córroi os alicerces do

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seu conceito de Estado em ascensão – é a impunidade. Essa terrível doença, oriunda de nossa formação política e social, tem contribuído de modo protuberante para o achincalhamento do nome de Goiás, para o seu descrédito diante da opinião pública nacional [...] “E’ realmente lastimável que a terra do Anhanguera, a qual no momento se prepara para acolher a “massa cinzenta” da nação, sirva de estímulo, para o crime [...]. (Impunidade: Mãe do Crime. Brasil Central, Goiânia, 03 de fevereiro. 1957. p. 02).

Nas décadas de 1940 e 1950, a cidade de Goiânia passava por um momento de

crescimento econômico e demográfico. Os jornais registravam como ela começava a

adquirir o aspecto das grandes metrópoles, a evoluir em todos os setores da atividade

humana, e ao mesmo tempo, possuir “terríveis mazelas sociais, atestado eloquente da

miséria humana”. (Crimes + Crimes = Impunidade. Cidade de Goiás, 14 de abril, 1957.

p. 4). Nessa reportagem, percebo que a preocupação com os casos de violência, a

mendicância, a própria criminalidade e a ausência de meios adequados de repressão ao

crime, eram reflexos negativos da vida citadina. O crime em si era visto como um

problema de âmbito regional: “Em Goiás, cadeia para rico é mito”. Essa matéria refere-

se ao ano de 1957. No ano de 1964, o Cinco de Março continuava a publicar manchetes

dessa natureza: (Relação dos grandes processos paralisados nos Cartórios do Crime ou

desaparecidos, envolvendo figurões de dinheiro e da política! Justiça em Goiás protege

os ricos! Cinco de Março, Goiânia, 28 de dezembro de 1964, p.2). Em outra

reportagem, a notificação em relação as falhas da própria justiça era nítida: Não, não podem continuar as arbitrariedades dos encarregados de manter a ordem, de salvaguardar os habitantes de nossa Capital. A todo momento temos notícias alarmantes de atos desumanos praticados pelos representantes da lei. A má aplicação da justiça está ou não está concorrendo para aumentar as estatísticas de crimes em nosso Estado? [...] Por isso os patrícios de outros Estados falam de nossa terra no que se refere à segurança, e à sem cerimônia de dar cabo à vida do próximo, pois a própria polícia é quem dá exemplo [...]. ( Aluízio Mendonça. Polícia Acéfala. Brasil Central, Goiânia, 13 de janeiro de 1957.p.3 ).

Nota-se que a má ação da polícia como um órgão eficiente, que prevenisse e

combatesse os crimes que ocorriam nos espaços públicos, e que denegrisse a honra da

cidade, maculava a imagem do Estado, e especialmente da cidade de Goiânia, como um

espaço capaz de receber novos habitantes, que fornecesse uma infra-estrutura adequada

de uma cidade e de um Estado moderno. Para tanto, o jornal ressaltava a necessidade da

ação eficiente da polícia e da Justiça. Da mesma forma, a desordem pública presente nas

ruas de Goiânia era alvo de pedidos de ação eficaz da polícia:

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Insistentemente, por estas colunas temos solicitado as vistas da Delegacia de Polícia para a Vagabundagem que campeia nos principais logradouros públicos da cidade, onde desocupados promovem desordens, cometem dasatinos, quebram vidraças, danificam veículos, vaiam transeuntes e usam de linguagem pornográfica que ferem os ouvidos de senhoras e senhoritas que transitam nesses lugares, dos quais o centro é a praça da Liberdade, onde está localizado o Jardim Público. (Vagabundagem. Brasil Central, Goiânia, 22 de agosto de 1956. p.3).

Observa-se um apelo à polícia para pôr ordem às ruas públicas da cidade, do

centro e da localização do jardim público contra a vagabundagem. Novamente, vemos

que a questão da moral das “senhoras” e “senhoritas” era exaltada. Era necessário

afastar dos espaços públicos a desordem moral que “desocupados” promoviam e que

atingiam moralmente mulheres de família.

Essa ligação entre o saneamento moral dos espaços da cidade e a preservação da

imagem das famílias foi vista em vários períodos, como o da “belle époque” na cidade

do Rio de Janeiro. No final do século XIX e início do século XX, os administradores

municipais decretaram uma série de medidas autoritárias para sanear e civilizar o centro

da cidade. O objetivo era criar uma cidade moderna e civilizada. As políticas

implementadas eram feitas em nome da higiene social e da saúde pública, tanto da

cidade quanto das famílias. Portanto, foram adotadas medidas de controle sobre a

prostituição e crimes sexuais na defesa da honra sexual. Segundo Suean Cauelfield,

parte dos juristas brasileiros, até as décadas de 1920 e 1930, acreditava que a defesa da

honra feminina era sinônimo de civilização. A proteção da honra sexual das mulheres

pelo poder público era marca do progresso e da civilização. (CAUELFIELD, 2000).

Consequentemente, a defesa da honra sexual feminina e das famílias era

associada à defesa da honra da cidade. Todavia, ao contrário da realidade da cidade do

Rio de Janeiro no início do século XX, apontada por Cauelfield, a honra das mulheres e

das famílias em Goiânia, conforme a imprensa, não era defendida pelo poder público.

Era da alçada das próprias famílias defenderem sua honra. Por isso, constantemente as

famílias queixavam-se às redações do jornal sobre a falta de ação do Estado e da polícia

acerca dos fenômenos que causavam desordem moral nos bairros que residiam. Parece-

me que cabia à imprensa defender a honra das famílias e da cidade.

Outro exemplo que implica na articulação dessa ameaça a imagem citadina e das

famílias é o caso registrado nos jornais na época por “Chapas Branca”. Esse termo

refere-se a algumas viaturas públicas, identificadas com placas brancas. Essas viaturas

pertenciam aos altos funcionários do governo e circulavam pela cidade, principalmente

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nas zonas boêmias, onde transitavam “ameaçando a integridade física de crianças e

senhoras que por elas transitam”. (Chapas Brancas. Jornal Brasil Central, Goiânia, 19

de agosto.1972, p. 3). Segundo a imprensa, os homens que dirigiam essas viaturas

assediavam moças de famílias e prostitutas. O problema dessas viaturas era relacionado

à questão da degradação pública, da ameaça à moral de cada família. Mais uma vez,

vemos o jornal noticiar a sua denúncia contra a falta de autoridade do governo:

[....] Causa-nos repulsa assistir a degradação pública que vem tomando conta de nosso torrão, como seja, o pouco caso que fazem nossos governantes para com a coisa pública. Estas viaturas oficiais deveriam merecer melhor atenção de nossos poderes, dando a ela a sua devida aplicação, punindo os irresponsáveis [...]. (O problema das viaturas. Cinco de Março, Goiânia, 25 de junho de 1976. p.7).

Nesse sentido, acredito que a imprensa tratava de proteger a honra das famílias e

da cidade. Havia, uma concepção cívica da honra defendida pelos jornais. Esse conceito

é definido por Arlete Farge (1991), segundo a qual a honra cívica se define cada vez

mais pelo respeito à boa ordem geral da cidade. No entanto, no seu trabalho, ela percebe

essa concepção cívica da honra exercitada pela Polícia e pelo Estado.

Ao pesquisar sobre a família popular no século XVIII, na cidade de Paris,

através dos interrogatórios e depoimentos policiais, Farge ressalta que a honra se

constituía um bem fundamental para as famílias e era uma necessidade pública e

privada. Havia uma ligação entre a tranqüilidade pública e familiar. Dessa forma, cabia

à polícia a tarefa de manter e zelar pela manutenção da ordem pública, o que

consequentemente garantiria a tranqüilidade das famílias. Para Farge, essa manutenção

da ordem pública se associava à idéia de civilidade.

Através do diálogo com Norbert Elias, a autora nos mostra que num determinado

momento, a idéia de civilidade passa a ser promovida fora das práticas tradicionais da

corte e da magistratura para ser transformada em norma social. Segundo ela, “já não é

uma classe ou grupo que deve encarnar a civilidade, e sim o próprio Estado, a sociedade

como um todo”. Inicia-se assim um processo de civilização no qual tudo que parece

bárbaro, violento e irracional deve refinar-se ou desaparecer. A polícia torna-se um dos

meios mais seguros de obter um mínimo de civilização onde reina a confusão (FARGE,

1991: 604).

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Desse modo, penso que o problema da honra cívica associado à idéia de

civilização é visível nas primeiras décadas de Goiânia. Qualquer tipo de manifestação

ou criminalidade que estivesse associada à degradação pública eram reflexos negativos

da cidade, que poderiam ser obstáculos à imagem de uma cidade civilizada. Todavia, é

interessante ressaltar que, ao contrário da realidade parisiense pesquisada por Farge, em

que essa honra cívica era defendida e exercitada pelo Estado e pela Polícia, em Goiânia

parece que essa defesa era feita especialmente pela própria imprensa escrita local.

Percebe-se nitidamente a denúncia da parte dos jornais relativa a falta de ação

dos governantes e da polícia no que concerne à impunidade e à desordem pública e

moral presente nos bairros da cidade. Além disso, afirmava-se que a própria desordem

era cometida pelos próprios governantes, como foi citado o caso dos carros que

circulavam com Chapa Branca dirigidos por oficiais do governo. Eles freqüentavam as

zonas boêmias, da mesma forma que vários policiais. Assim, as famílias, através da

redação dos jornais, solicitavam uma ação da polícia e do Estado.

A partir dessas discussões é interessante notar que não há como dissociar a rede

de articulações que se formava entre o papel do Estado, da polícia, das famílias e da

imprensa. Percebe-se que existia um mecanismo social em relação ao papel do Estado e

das famílias. Cabia ao Estado e à polícia reparar e proteger a honra das famílias. O não

cumprimento do dever dessas instituições era combatido pela imprensa.

Nesse sentido, a vida pública e privada se confundiam tornando-se objeto de

discussão para a imprensa. Todos esses fenômenos ocorriam nos bairros ou nas ruas da

cidade. Consequentemente, as famílias e a imprensa reivindicavam à polícia e ao Estado

que tomassem providências acerca desses fenômenos. Os jornais denunciavam os

problemas específicos de cada bairro:

[...] Crimes: 1- Bairro com mais de 10 mil habitantes sem policiamento. 2- Tarados agem livremente desacatando as famílias 3- Arranhadores põem em sobressalto pais de famílias Vila Operária: Reclamam os moradores: [...] não há policiamento e algumas famílias já se mudam [...]. (Criminosos agem livremente na Vila Operária. Cinco de Março,Goiânia, III Semana de abril de 1961. p. 8).

Trechos de reportagens como esse eram publicados constantemente em jornais

como o Cinco de Março. Em outras matérias, o apelo à ação do Estado e da Polícia era

claro:

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[...] Analisando friamente os últimos crimes perpetrados em Goiás, chega – se a calamitosa conclusão de que o Estado está sem polícia [...] Em ligeiros passeios pelas ruas mais centrais de Goiânia, esbarra-se de quando em bárbaros criminosos apontados pela crônica policial e pela própria polícia como portadores de alta periculosidade [...] Hoje em dia, para a segurança de sua própria família, você, leitor, deve portar armas à cintura e dormir com elas sob o travesseiro, porque o órgão destinado à segurança, passou a ser, simplesmente mais uma sigla revelando-se inepto e deficiente [...] (Goiás Sem Policiamento: Assassinatos Impunes. Cinco de Março, Goiânia, 25 de agosto de 1968.p).

A segurança da família era sempre ressaltada nos jornais. Segundo o jornal, sem

a ação da polícia e do Estado, a impunidade prevalecia e a criminalidade se proliferava

pelos bairros familiares. Percebe-se no primeiro trecho da reportagem citado acima, que

os moradores do bairro Vila Operária queixavam-se da falta de policiamento, que

deixava “marginais” agirem livremente, desacatando as famílias. A Vila operária era um

dos bairros que comportava as zonas de meretrício, assim como a maioria dos primeiros

bairros da cidade de Goiânia. Portanto, as famílias clamavam ao Estado para reforçar a

segurança desses bairros ao sentirem sua honra ameaçada.

Assim, penso que a própria segurança das famílias era entendida como efeitos

ligados direta ou indiretamente a essa desordem moral. Zelar pela segurança das

famílias, era zelar pela honra dessa instituição. E cabia a imprensa intervir nos espaços

públicos e privados da cidade.

Nesse sentido, considerei os jornais investigados não apenas como portadores de

notícias - que podem ser apreendidas como “representações” do real -, construídas por

aqueles que as escrevem, mas sim, como agentes, participantes ativos na construção dos

acontecimentos, que interviram e mediaram as formas de sociabilidades, através da

relação entre leitor, escritor e ouvinte.

Para tal reflexão, considerei as análises realizadas por Henrrique Luiz Pereira

Oliveira (1990). O autor, ao tratar sobre como foi problematizada a questão das crianças

recém - nascidas expostas, e os investimentos na remodelação das condutas da

população no espaço urbano de Desterro - atual cidade de Florianópolis - durante os

anos de 1828 a 1887, observa que os cronistas dos jornais operaram na cidade como

“agentes de mediações sociais”. O discurso médico – higienista, disseminado na cidade

de Desterro, na época, foi propagado por diversos “agentes” não médicos, dentre eles, a

imprensa periódica. Segundo o autor, sob a ótica do discurso médico higienista, a

imprensa escrita passou a registrar os problemas da cidade, julgando as práticas sociais

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e distinguindo os limites do que poderia ser considerado como tolerável e intolerável

nos espaços que comportavam a cidade.

Para Oliveira (1990:227), os jornais interviram nas formas de sociabilidade no

espaço urbano, na medida em que serviam como um “meio para exercer a vigilância e

correção dos comportamentos nos espaços públicos”, e até mesmo, das condutas no

espaço privado. Além de uma vigilância acerca dos comportamentos, eles serviam como

um meio de pressionar as autoridades a tomarem determinadas providências.

Creio que as análises feitas pelo autor sobre a atuação dos jornais em Desterro,

permite-nos pensar na atuação dos jornais de Goiânia. Acredito que parte da imprensa

escrita goianiense, através de suas denúncias, estabelecia padrões de comportamentos

que definiam os limites do que deveria ser aceito ou não. No caso das denúncias do

problema da prostituição e dos crimes sexuais, isso se torna bem claro: as zonas de

meretrício não deveriam se localizar nas proximidades dos bairros familiares. As moças

de família poderiam ser confundidas com prostitutas e serem seduzidas e violentadas, o

que ameaçaria a honra das “famílias”. Dessa forma, a prostituta era vista como uma

mulher pública, que deveria ficar longe das residências, enquanto as moças de família,

deveriam ser protegidas nos seus espaços privados e nos espaço próximos as suas

residências.

Ou seja, não era admissível que as zonas de meretrício se localizassem nos

bairros familiares ou perto deles. As prostitutas e as mulheres de família eram

apreendidas no interior de uma moral, que definia quem eram mulheres honestas e

desonestas. Assim, suponho que a imprensa trabalhava na modelagem das condutas das

famílias, e tentava definir determinados limites, ou seja, determinadas delimitações

entre o espaço público e o privado, relativos às condutas e práticas sociais tidas como

permitidas ou não, morais/imorais, lícitas/ilícitas, que operavam como moduladores

sociais, como dispositivos de modulação social dos próprios corpos.

Portanto, acredito que os jornais “delimitavam fronteiras” nos espaços públicos

da cidade e nos próprios bairros familiares, no que tange às condutas morais que

deveriam prevalecer nesses espaços e que não ofendessem a honra das famílias. Eles

“restringiam as formas lícitas ou não para cada espaço”.

Da mesma forma, as questões que se enquadravam como reflexos negativos da

vida citadina de Goiânia, como a impunidade, o problema do menor abandonado, a

prostituição e a própria criminalidade urbana, foram alvos dos periódicos que

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estrategicamente demarcavam e redefiniam às condutas tidas como intoleráveis; tanto

do descaso das autoridades para com esses problemas, que atingiam a honra das famílias

e da cidade e, as próprias condutas de costumes dos membros das famílias, que

pudessem macular a honra dessas instituições.

Ao denunciarem esses fenômenos morais, os jornais apelavam para uma ação da

polícia e do Estado, no sentido de combater todas as atitudes que causassem desordem

urbana, estendida a uma desordem moral, que denegrissem a imagem das famílias e da

cidade. A ineficiência e/ou exaltação do papel da polícia e do Estado eram sempre

registradas, no sentido de corresponderem com os limites – tolerável, intolerável, lícito,

ou ilícito – normativos que deveriam prevalecer na cidade e no Estado.

Assim, procurei pensar os jornais através desse conceito definido por Oliveira

(1990), o de “agentes de mediações sociais”; a imprensa como um espaço operador de

mediações sociais. Acredito que as considerações feitas por Oliveira se enquadram nas

formas como os jornais operaram na cidade de Goiânia. A própria relação entre os

jornais e as famílias goianas demonstra que os jornais agiam como um meio

intermediário entre as esferas da família, do Estado, da polícia, e outras instituições, no

que tange à problematização dos fenômenos apreendidos como morais e sociais. Penso,

que alguns jornais, como o Cinco de Março, tornaram-se um meio estratégico para as

famílias, as quais o procuravam quando ocorria algum tipo de incidente nos bairros, ou

em locais próximos à elas, que pudessem atingir o núcleo familiar.

Dessa forma, é plausível pensar que os jornais constituíam - se como um meio

de exercício de vigilância e controle acerca das condutas, não apenas do Estado e das

autoridades, mas dos próprios indivíduos, pois, ao mesmo tempo, eles exerciam uma

vigilância ao nível dos costumes da população.

Nesse sentido, os jornais identificam formas específicas de sociabilidade.

Percebo que eles atuavam na sociedade como um meio que possibilitava às famílias

goianas de se comunicarem entre si e denunciarem às autoridades, suas principais

queixas referentes à desordens no espaço público, que atingiam suas esferas privadas.

Os modos de sociabilidade apreendidos como lícitos ou não, eram assim registrados nos

periódicos.

Mesmo sem ter informações sobre o número de pessoas que nas primeiras

décadas de Goiânia, não tinham acesso à leitura e aos jornais, noto que a imprensa

proporcionou uma ligação entre o público e o privado, colocando em cena os diversos

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conflitos existentes entre as famílias, o Estado, a polícia e a própria imprensa diante dos

problemas considerados como fenômenos morais. Portanto, ao analisar esses jornais

como espaço de propagação dos acontecimentos, como dispositivos, agentes de

mediações sociais, é plausível pensar que tais registros nos jornais, não apenas

possibilitavam a ligação entre leitor e escritor com as formas de sociabilidade, como

também interviam nessas formas de sociabilidade.

Outra questão relevante ao se conceber os jornais dessa forma, é analisar como

eles se tornavam um meio para exercer certas vigilâncias sobre os comportamentos no

espaço urbano, e das próprias condutas nos espaços privados, mas de forma invisível.

Refiro-me a uma vigilância invisível, no sentido de que muitas reportagens ficavam em

anonimato, principalmente aquelas que continham denúncias contra os governantes ou

algum órgão de responsabilidade pública.

Dessa forma, considero novamente outro conceito definido por Oliveira (1999),

reelaborado a partir de Michel Foucault, o de que os jornais funcionavam como uma

forma de panóptico sem torre, multipresente. As matérias jornalísticas ficavam em

anonimato, mas não deixavam de registrar e colocar diversos acontecimentos, ao

contato do julgamento público. Observa-se que são raras às vezes em que é declarado o

nome do autor da matéria. Todavia, é notório que os pequenos acontecimentos, conflitos

cotidianos entre famílias e prostitutas, ou mesmos os crimes entre as próprias famílias,

eram noticiados pelos jornais.

Assim, suponho que a imprensa intervia nas condutas do espaço urbano através

de determinadas estratégias, como o próprio anonimato. O caráter de denúncia era

evidente. As denúncias da parte do jornal eram sempre feitas com ataques ao Estado, e

até mesmo, ao Juiz de Menores, quando tratava-se do problema do menor abandonado e

da criminalidade infantil. Os jornais tentavam pressionar as autoridades a tomarem

providências.

Em se tratando do jornal Cinco de Março, fica explícito o quanto ele fazia

questão de ressaltar o seu papel de agente interventor nos problemas da sociedade. No

dia 26 de novembro de 1962, ele registrou um fato polêmico, o afastamento de uma

aluna do colégio tradicional de Goiânia, Instituto de Educação de Goiás (I.E.G), que

recebe apenas alunas do corpo discente. Algumas alunas estavam sendo assediadas,

tornando-se “vítimas de gracejos”. Todavia, “algumas delas cederam ao assédio e

passaram a freqüentar lugares suspeitos”. Segundo a reportagem, o caso só foi

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esclarecido na medida em que se comprovou que apenas uma aluna foi encontrada em

casas noturnas. É interessante ressaltar o trecho da reportagem desse caso, para perceber

o caráter modulador do jornal e da exaltação do seu papel como interventor nos

problemas da sociedade:

[...] Entendemos, entretanto, que o dever daquele Diretor seria outro senão o de levar o conhecimento público, [...] as providências tomadas por ele diante do acontecido, a fim de não só salvaguardar a honra das outras mil alunas que estudam no I.E.G., mas também de fazer jus à confiança que os pais dessas mesmas alunas depositaram no colégio, ao matricularem ali, suas filhas. Pois, da maneira como se divulgava, sem nenhum esclarecimento oficial, dúvidas outras poderiam sobrecair sobre moças honradas e de exemplar conduta social [...]. Os comentários na opinião pública só deixam de existir, quando ela está satisfatoriamente esclarecida e convicta da realidade dos fatos [...] Entendemos mais que a função da imprensa sadia, não é outra senão a de esclarecer, orientar e educar a opinião pública e não alimentar nela quaisquer degenerescência. Por isso mesmo, deixaremos de publicar o nome da aluna expulsa do I.E.G, porque com isso, alimentaríamos a fogueira do escândalo social [...]. (Aluna do Instituto foi afastada: Esclarecido o delicado acontecimento. Cinco de Março, Goiânia, 26 de novembro de 1962, p.3)

Aqui, pode-se observar o caráter estratégico do jornal, como de interventor das

condutas corretivas. Todos os casos considerados polêmicos e que mobilizavam a

população, o Cinco de Março problematizava. Na última semana de novembro do ano

de 1959, o jornal chegou a publicar que “há reclamações de que o jornal só publica

sobre o meretrício e menores abandonados”. Diante desse fato, o jornal se defendeu:

“esses problemas são os principais problemas sociais atuais [...] são estes os problemas

da preocupação de uma sociedade inteira. (Os problemas sociais. Cinco de Março,

Goiânia, última semana de novembro de 1959. p. 7).

Portanto, o jornal constantemente problematizava os fenômenos considerados

como os problemas da época, tornando-se dessa forma, a principal fonte de pesquisa

desse trabalho. Sobre o início da campanha contra a prostituição, o Cinco de Março

notificou:

(...) Começávamos naquela época a nossa luta de imprensa, fundáramos a pouco o “Cinco de Março”, e principiamos a pregação pela remoção do meretrício, dos núcleos residenciais. Nossa luta foi dura, foi ferrenha, foi ininterrupta. Procurando resolver o problema, satisfatoriamente, entramos em choque com a polícia, e, até mesmo com o então Governador José Feliciano Ferreira, que procurando não incompatilizar-se com as suas eleitoras, esquivava-se do problema e fugia à luta. Enfrentamos protestos políticos de todos os quilates possíveis (..) (Prostituição oficializada estraçalha moral do povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de maio.1962.p.08)

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Através das discussões que esse jornal promoveu, como a campanha contra a

prostituição e o problema do menor abandonado, penso que ele possa ter servido como

uma forma de “consolidação de uma esfera contratual”4

, não de um modelo de instância

jurídica, mas apenas no sentido de tentar resolver determinados problemas cotidianos,

seja do espaço público ou privado, e de denunciar as autoridades. Essa concepção é

válida não apenas para o Cinco de Março, mas também para outros jornais analisados. A

importância da imprensa e o papel dos jornais na sociedade, também eram destacados

nos jornais do Estado de Goiás. No ano de 1938, o jornal “Cidade de Goiaz” registrou

essa importância relacionando-a ao desenvolvimento do Estado de Goiás:

Hoje é um dia de festas para Goiaz depois de alguns meses de espera, surge, em fim, o jornal que levará, para todos recantos deste Estado tão grande e tão bom, a mensagem de amizade da Terra de Anhanguera. Goiaz não podia continuar sem um jornal que a irmanasse às outras cidades cultas do Estado. O descaso em que marchava a imprensa em nossa cidade contrastava, singularmente, com a aureola do centro de intelectualidade adquirida através dos tempos pelo mérito de grandes inteligências que aqui se formaram [...] O jornal é um dos índices mais expressivos da cultura dos povos. Ele nos traz, na longa fileira dos anos, a palpitação da vida civilizada, fazendo-nos acompanhar a trajetória apressada dos dias [...] Quando a cidade de Goiaz se vê desprovida de um de seus fatores de progresso, há um desabrochar de esforço que faz surgir [...] (Nice Monteiro, Bom dia. Cidade de Goiaz, Goiânia, 19 de junho de 1938, p.01).

Esse trecho é apenas um dos exemplos da atuação dos jornais. Nele, vemos que,

ao mesmo tempo em que o jornal se propaga enquanto tal, ele cultiva a imagem do

Estado, especificamente da cidade de Goiás, a antiga capital. Tal fato revela que a

imprensa escrita também teve o seu papel de atuação, diante da disputa que ocorreu

entre os grupos políticos favoráveis à transferência da capital da cidade de Goiás para a

cidade de Goiânia – denominados por mudancistas – contra os grupos antimudancistas.5

Na citação acima, do jornal Cidade de Goiás, é notório a valorização da cidade

de Goiás e do surgimento do jornal como propagador da antiga capital. Conjuntamente,

há uma crítica do descaso que é feita sobre a capital quando não há algum indício de

progresso. Os detalhes positivos da antiga capital do Estado indicam da parte da autora

uma valorização positiva da cidade de Goiás. Esse acontecimento condiz com a

4 Esse conceito também é definido por Oliveira (1999). 5 Compostos por representantes políticos e personalidades da antiga capital, que não desejavam a transferência da capital da cidade de Goiás para Goiânia. A discussão sobre esses grupos com aqueles favoráveis a mudança da capital, os mudancistas, na década de 1930 é analisada por vários trabalhos da historiografia goiana. 2004. Dentre eles, CHAUL, Nasr Fayad; SILVA, Luís Sérgio Duarte. (org). As cidades dos sonhos. Goiânia: Ed. Ufg,

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afirmação de Gomide (2004), de que os grupos antimudancistas expressaram seus

descontentamentos com o desejo da transferência da capital e a necessidade de

preservação da cidade de Goiás, através de alguns jornais locais como O Democrata,

Cidade de Goiás e A Coligação.

Desse modo, considero que a imprensa escrita da cidade de Goiás e da cidade de

Goiânia são notoriamente fontes significativas de pesquisa, para aqueles que desejarem

pesquisar sobre a luta simbólica e/ou concreta que efetivou-se na transferência da

capital da cidade de Goiás para Goiânia, baseada em princípios de progresso versus

tradição (arcaico). Enquanto jornais como o Cidade de Goiás, na década de 1930,

valorizava a imagem da cidade de Goiás, outros como o Cinco de Março, a partir do ano

de 1959, data de sua edição, passaram a se preocupar com a imagem positiva da cidade,

como espaço de modernidade e progresso. As denúncias sobre a impunidade, a

ineficiência do Estado, da Justiça e da polícia diante dos casos de violência, da

criminalidade infantil e da prostituição revelaram aspectos negativos da vida citadina

em confronto com os ideais modernos propostos pelo poder público desde a fundação

da cidade.

Assim, acredito que a imprensa escrita, sobretudo o jornal Cinco de Março,

pode ser concebida como um dispositivo que atuou na cidade como propagador da

imagem da cidade “moderna”, voltada para o “progresso”, mas com reflexos

negativos de problemas, não condizentes com princípios civilizatórios, necessários

para uma capital moderna.

Eliézer Oliveira (2004), ao discutir sobre as imagens goianas na literatura

mudancista aponta que a maioria das pesquisas feita na historiografia goiana é

relativa aos ideais de modernidade, que o poder público tentou construir desde a

fundação de Goiânia. Dessa maneira, grande parte das pesquisas foi feita através de

fontes orais, fotografias, dentre outras, que incorporaram esse discurso da imagem

positiva da cidade. Nesse sentido, vejo que as fontes jornalísticas apresentam um

outro lado dessa imagem, o do caos diante da modernidade. Além disso, elas

proporcionam um leque de possibilidades de objetos de estudos, que não

necessariamente referem-se à discussão sobre a mudança da capital e a dicotomia da

imagem de Goiânia – tão discutida pela historiografia goiana - mas que se

correlacionam e se integram, direta ou indiretamente, na construção desses

acontecimentos.

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Portanto, tratando-se das primeiras décadas da cidade de Goiânia considero

que a imprensa teve uma atuação importante nas denúncias dos fenômenos

apreendidos como problemas morais e sociais, no espaço público e privado, agindo

como agentes de mediações sociais entre as famílias e o espaço público.

FONTES 1 - ACERVOS PERIÓDICOS: A IMPRENSA: GOIÂNIA, 1914. O ASPIRANTE: GOIÂNIA, 1931. O LAR: GOIÂNIA, 1926, 1927, 1928,1932. JORNAL DE GOIÁS, GOIÁS, 1932 a 1937. BRASIL CENTRAL: GOIÂNIA, 1937, 1938, 1939, 1940, 1941, 1942, 1957, 1959. JORNAL DE NOTÍCIAS: GOIÂNIA, 1952 a 1958. CINCO DE MARÇO: GOIÂNIA, 1959 a 1979. JORNAIS DIVERSOS: SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX O COMÉRCIO: (06/04/1879 – 31/01/1882) GAZETA GOYANA: (13/09/1890 – 30/05/ 1891) JORNAL DE GOYAZ: (12/03/1892 – 18/12/1893) A REPÚBLICA: (28/09/1896 - 14/08/1907) A IMPRENSA: (02/02/1922 - 21/02/1932) O DEMOCRATA: (10/08/1923 - 09/12/1927)

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BIBLIOGRAFIA

ÁRIES. Philippe. Por uma história da vida privada. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. CAULFIELD, Suean. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000.

CHAUL, Nasr NAGIB Fayb. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. 2 ed. Goiânia: UFG, 2001. DONZELOT, Jaques. A polícia das famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores. Saber Médico e Prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989.

FAUSTO Boris. Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. FARGE, Arlete. Famílias. A honra e o sigilo. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. GOMIDE, Cristina Heloíza. História da transferência da capital. Goiânia: Alternativa, 2003. OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Imagens e Mudança Cultural em Goiânia. 1999. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia. Universidade Federal de Goiás, 1999.

________________As imagens de Goiânia na literatura mudancista. In: CHAUL, Nasr Fayad; SILVA, Luís Sérgio Duarte. (org). As cidades dos sonhos. Goiânia: Ed. Ufg,

OLIVEIRA, Henrrique Luiz Pereira. Os filhos da falha. Assistência aos expostos e remodelação das condutas em Desterro (1828 – 1887). Dissertação (Mestrado em História) Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 1990.

TELES, José Mendonça. A Imprensa Matutina. Goiânia: Cerne, 1989.

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MICHEL FOUCAULT, O PROBLEMA DA GOVERNAMENTALIDADE E A LITERATURA ANTI-MAQUIAVEL

Mestrando Leandro Alves Martins de Menezes Programa de Pós-Graduação em História

Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CAPES

[email protected]

O presente artigo propõe compreender como o problema da governamentalidade

apareceu no cenário das preocupações filosóficas e históricas em Michel Foucault. Uma

análise que visa dialogar com o leitor sobre o problema do governo no século XVI, a

multiplicidade das práticas de governo (governo de si, das almas, da família, etc.), a

problemática específica do governo do Estado, os pontos de repulsão da literatura sobre o

governo, precisamente na obra de Maquiavel, estabelecendo entendimentos sobre a história

da recepção do Príncipe, até o século XIX.

Pretende-se demarcar as condições de possibilidade da arte de governar,

exemplificando os olhares políticos de Guillaume de La Perrière, essencialmente no âmbito

da abertura de um governo das coisas. Faz-se relevante destrinchar os entraves

institucionais e históricos para a aplicação dessa arte de governar até o século XVIII,

juntamente com a emergência do problema da população enquanto um desbloqueio da

velha forma de governar. Michel Foucault entende por artes de governo o governo de si,

que atua no campo da ética, o governo dos outros, que são as formas políticas da

governamentalidade, a relação entre governo de si e dos outros, o poder pastoral, como a

confissão, o exercício do poder disciplinar, a polícia, a biopolítica, a razão de Estado e o

liberalismo.

Encontramos, em diversas referências de Michel Foucault, seu projeto de construir

uma análise fundada em uma história da governamentalidade. Essa sua produção intelectual

ganhou vida a partir do curso Segurança, território e população, ministrado entre os anos

de 1977 e 1978, especificamente na aula de primeiro de março do ano de 1978. Essa aula

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acabou gerando um artigo publicado inicialmente e originalmente na Itália com o título La

Governamentalitá e o último capítulo do volume Microfísica do poder. As indicações desse

campo temático se apresentavam em algumas entrevistas de Foucault ao longo dos anos 70

e nos cursos Em defesa da sociedade e Nascimento da biopolítica.

No início dos anos 80 esse objetivo de análise inverte sua ordem, ou seja, se antes

Foucault estava essencialmente preocupado com o problema do governo na modernidade, a

constituição dos poderes disciplinares, do liberalismo, da biopolítica e das artes de

governar; em sua última fase de produção ele passa a se questionar sobre os elementos que

constituíram a genealogia da arte de governar, isto é, passa a estudar a matriz poder

pastoral, as formas de governo no fim período medieval e o próprio conceito de vida entre

os antigos, baseado em um entendimento da vida como obra de arte, uma estética da

existência como força motora de resistência. Este presente artigo visa dar conta do início de

todo esse empreendimento pontual de Michel Foucault.

Analisando as diversas formas de apresentação dos dispositivos de segurança ao

longo da história, podemos compreender o problema específico e moderno da população,

que conduziu a formação posterior daquilo que Foucault chamou por arte de governar.

Desde a antiguidade clássica, mas também durante toda a Idade Média, existiram tratados

que apresentava hipóteses e imperativos sobre a melhor forma de governo para um

soberano, um príncipe, dizendo respeito ao seu modo de comportar, o exercício de suas

potencialidades, de seu poder e sua relação com os súditos, sobretudo no âmbito de aceite e

respeitabilidade.

De uma forma geral seus pressupostos de governo eram deduzidos na ordem de uma

aplicação das vontades de Deus introduzido na cidade dos homens. Contudo, vemos

aparecer já no início do século XVI até o final do XVIII uma série de tratados possuindo

um novo conteúdo estrutural, não mais estabelecendo ditames de uma soberania do

príncipe, nem mesmo uma ciência da política, mas uma arte de governar.

Michel Foucault entende por artes de governo o governo de si, que atua no campo

da ética, o governo dos outros, que são as formas políticas da governamentalidade, a

relação entre governo de si e dos outros, o poder pastoral como a confissão, o exercício do

poder disciplinar, a polícia, a biopolítica, a razão de Estado e o liberalismo. Assim como

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ressalta Vera Portocarrero, a noção de biopoder só pode ser compreendida em sua

mecânica, de forma geral, na medida em que antes de promover uma investigação sobre as

condições de possibilidade da biopolítica, devemos compreender a forma como o problema

de governo, da governamentalidade, opera nas produções filosóficas de Foucault:

A partir do momento em que Foucault cunha a noção de biopoder e tematiza diretamente a questão do Estado, a governamentalidade torna-se um conceito operatório para suas pesquisas sobre a gênese do Estado, realizada com base no estudo das práticas de gestão governamental, que objetivam a vida da população, para a qual a economia é o saber mais importante, e os dispositivos de segurança seus principais mecanismos. (PORTOCARRERO, 2009: 237)

Encontramos no século XVI um processo de superação da estrutura feudal, a

instauração dos grandes Estados territoriais, coloniais, administrativos e uma nova forma de

compreender o governo, o modo melhor de governar e ser governado. Para uma análise

detida dessa problemática, Michel Foucault toma como ponto de partida O príncipe, de

Maquiavel.

Contemporaneamente a publicação da obra, os princípios propostos por Maquiavel

foram aclamados pelos seus sucessores e intelectuais imediatos que problematizavam o

mesmo campo temático, até o início do século XIX, sobretudo por alemães como Ranke e

italianos, exatamente no período que percebemos o desaparecimento de uma literatura ativa

sobre a arte de governar.

Essa influência tem vazão, por exemplo, no contexto da Revolução Francesa e em

Napoleão no que se refere aos entendimentos da manutenção da soberania e do poder

soberano sobre um Estado. Ou por exemplo, do entendimento de Clausewitz na tese de que

a guerra é a política por outros meios, que exerce uma apresentação de idéia no campo da

política e da estratégia, na importância da política atribuída aos cálculos das relações de

força com base na racionalização presente nas relações internacionais, tal como

encontramos no Congresso de Viena, em 1815, e também no cenário de unificação da Itália

e Alemanha, em decorrência de Maquiavel nos seus textos explicitar e definir propostas

para a unificação territorial da Itália.

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Contudo, já no final do século XVI é possível encontrar textos com uma conotação

anti-Maquiavel. Essas produções não visavam somente o viés da censura, da recusa. A

principal crítica que encontramos na análise do Príncipe associa a concepção de que ele

tem um estabelecimento de exterioridade em relação a sua própria geografia, ao seu espaço,

ao principado, dado que o príncipe o recebe por herança, de forma que essa mecânica o

torna artificial aos laços que o une ao principado, principalmente em vista do fato que seu

poder é exercido por tradição, pela violência, laços sanguíneos e assim não há uma ligação

efetiva e processual entre o príncipe e o principado. Por isso a força de sustentação desse

poder torna-se fragilizada e ameaçada por aqueles que se situam como inimigos do

príncipe, que em alguma medida desejam conquistar seu principado. Por isso, as formas

pelas quais o príncipe deduz sua força e produz imperativos de governo do seu principado,

são tênues entre sua derrocada e a reverberação social de seu discurso e prática. Esse é

exatamente o objetivo da obra de Maquiavel para pensar a arte de governar do Príncipe, isto

é, o campo sutil e fundamental entre o príncipe, seu principado, o território e os súditos.

A análise de Maquiavel é construída sob duas vias: na delimitação dos riscos que

atingem a soberania do príncipe e no desenvolvimento da arte de manipular forças para que

seu principado esteja protegido, sobretudo nos domínios de um governo dos súditos e da

territorialidade. O Príncipe de Maquiavel é uma obra estruturalmente preocupada com os

elementos que habilitariam a formação de um tratado para que o principado seja

conservado pelo príncipe.

Guillaume de La Perrière, um dos teóricos precursores da literatura anti-Maquiavel,

aponta que a arte de governar envolve campos externos ao mero magistrado. O governante

é aquele que governa uma casa, almas, vidas, crianças, uma ordem religiosa, uma família,

etc. Por essa crítica, o autor argumenta que o príncipe de Maquiavel é aquele possuidor de

uma transcendência, de uma posição de exterioridade, enquanto para La Perrière o

entendimento de governante se aplica de múltiplas formas, dado que um pai de família, o

pedagogo, o superior de um convento, o professor em relação ao seu orientando; todos estes

governam. Nesse sentido, a modalidade governamental do príncipe é somente mais uma,

dentre vários modos de governar. Por outro lado todos esses níveis de governo estão em

uma dada sociedade, dentro de um Estado. Por isso a singularidade vislumbrada por

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Maquiavel opõe-se totalmente a noção própria de governo, deduzindo assim a presença de

um governo dos outros.

Trata-se então de pensar um modo de governo que dê conta das outras

internalidades governamentais que operam no Estado. Exatamente esse é o objetivo de La

Mothe Le Vayer, ou seja, construir uma tipologia das diferentes formas de governo,

definindo essencialmente três formas de governo: aquele ocupado com o campo ético, o

governo das famílias (economia) e a política como uma ciência de bem governar o Estado.

O poder do príncipe apontaria assim uma descontinuidade entre as outras formas de

governo, noutro sentido as artes de governar estabeleceriam as redes que conduziriam o

entrelaçamento de todos os governos que operam dentro do Estado.

Em La Mothe Le Vayer, nas teorias da arte de governar, haveria uma continuidade

ascendente e descendente, a primeira ocupada com a sapiência para se governar, seus bens,

sua família, seu patrimônio e descendente na medida em que o Estado quando bem

governado, os demais governos internos são conservados da melhor forma.

Essa segunda modalidade exercida por contenção pelo Estado começa a ser

chamada de polícia. Nessa medida, a pedagogia do príncipe deveria assegurar um governo

ascendente, a polícia o descendente e em um terceiro caminho a economia (governo das

famílias) deveriam cumprir um papel intermediário, central. Por esse passo a pergunta que

aparece é: Como introduzir o domínio do governo da família ao nível da gestão de um

Estado? Foucault pinça o artigo Economia Política de Rousseau, para explicitar essa

questão, elucidando que nesse material há indicações de que a terminologia economia

refere-se ao sábio governo da casa, visando o bem da família. A problemática apontada

também aparece em Rousseau, ou seja, em entender como o governo do Estado irá articular

essa economia política, isto é, estruturando um cuidado com as riquezas, os

comportamentos individuais, coletivos, formas de vigilâncias em relação aos habitantes.

Certamente esse é o momento histórico que a população emerge como um problema

específico de governo.

A palavra economia, dessa forma, já no século XVIII, começa a ganhar uma

corporeidade moderna de ser compreendida, dado que até o XVI ela designava uma forma

de governo de si, passando posteriormente ao entendimento de um campo de intervenção

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governamental, havendo um novo empreendimento para as relações de governar e ser

governado. Guillaume de La Perrière em seus textos faz alusão da necessidade de um

governo das coisas. Podemos tomar o sentido da palavra coisa para justificar essa nova arte

de governar. No Príncipe de Maquiavel, percebemos a disposição das ferramentas de poder

arraigadas pelo território e seus habitantes, por isso seu princípio é um retorno jurídico

existente durante a Idade Média acerca da soberania no direito público. Ou melhor, todas as

variáveis eram submetidas ao território que é o fundamento do principado. Em La Perriére

a lógica é inversa, dado que o território não é a centralidade do governo, são na verdade as

coisas, ou seja, o conjunto dos homens e sua relação com as coisas, costumes, hábitos, ou

mesmo as doenças, acidentes, fome, epidemia, a morte, entre outros.

Para evidenciar essa idéia, Foucault utiliza como referencial a metáfora do que

significa governar um navio, isto é, em construir um aparato de atenção sobre os

marinheiros, a carga, os ventos, recifes, às tempestades, todas as questões internas do navio

– as coisas – e as intempéries externas. O mesmo vale se pensarmos em um governo da

casa, ou seja, o mais relevante não essencialmente a proteção estrutural da casa, mas muito

antes, o cuidado com as pessoas que compõem a família, suas riquezas, atenção aos

acontecimentos como morte, doença, nascimento, vinculações com outras famílias,

alianças, estabelecendo dessa forma uma gestão geral de governo. Por essa perspectiva

podemos concluir que as preocupações com o território são meramente secundarias, dado

que o objetivo central do governo deve ser as coisas.

Foucault ressalta outros teóricos, que em uma postura anti-Maquiavel, argumenta

favorável ao governo das coisas:

Frederico II, em seu Anti-Maquiavel, escreveu passagens significativas. Diz por exemplo: comparemos a Holanda e a Rússia; a Rússia pode até ser o país de maior extensão em relação aos outros Estados europeus, mas é composta por pântanos, florestas, desertos, é povoada apenas por um bando de miseráveis, sem atividade nem indústria; a Holanda, que é pequeníssima e constituída de pântanos, possui ao contrário uma população, uma riqueza, uma atividade comercial e uma frota que fazem dela um país importante da Europa, o que a Rússia está apenas começando a ser. Portanto, governar é governar as coisas. (FOUCAULT, 2007: 283)

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Nessa citação percebemos as diferenças da soberania clássica em relação à nova

finalidade do governo. Nesse modelo, atestado no exemplo holandês, faz-se necessário ao

soberano não um auto-benefício, mas o beneficio do Estado. Aquilo que caracteriza então a

soberania é o bem geral, o bem comum, seja num modelo rousseauniano que redefine o

sentido de corpo social, de soberano, ou mesmo nas visões tradicionais. O bem, em parte, é

situado na obediência as leis e isso não se opõem a perspectiva de Maquiavel, por estruturar

o príncipe no objetivo de manter seu principado.

O governo passa a ser definido como o modo mais adequado de dispor as coisas,

dentro de um domínio com objetivo adequado a cada um dos elementos a governar. Um

papel então de produzir riquezas ao máximo, possibilitar aos habitantes meios de

subsistência, gerir a vida da população para que ela possa se multiplicar e

consequentemente aumentar seu efeito produtivo. Nesse momento histórico o papel do

soberano não é o de imposição das leis, mas de fazê-la valer por vários meios, com

finalidades que possam ser atingidas. A lei deixa então de ser o objetivo último e primordial

do governo. Vislumbramos aqui a premissa para uma sociedade da norma que visa atingir

os fins do governo.

Todos esses argumentos apresentados são defendidos por La Perrière, considerando

também que o bom governante é aquele que possui os atributos da paciência, soberania e

diligência. Paciência no sentido de demonstrar sua força sem formas punitivas diretas, ou

seja, no lugar de um direito de matar, o que deve prevalecer é o direito de fazer valer sua

força. A soberania não mais sendo entendida pela tradição, nem por elementos da justiça ou

divinos, mas pelo domínio e conhecimento das coisas. Diligência no âmbito de governar

como se estivesse a serviço dos governados. Assim como aponta Foucault sobre a

elucidação de La Perrière:

E La Perrière se refere mais uma vez ao exemplo do pai de família, que é o que se levanta antes das outras pessoas da casa, que se deita depois dos outros, que pensa em tudo, que cuida de tudo, pois se considera a serviço da casa. Vê-se como esta caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe que se encontra ou que se pensava encontrar em Maquiavel. (FOUCAULT, 2007: 2385)

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Essa apresentação indiciária da teoria da arte de governar, não reverberou somente

entre os teóricos e filósofos políticos, situou efetivamente nas relações com a realidade,

dada pela notável mudança a partir do século XVI, na Europa como um todo, dos aparelhos

administrativos de governo, o conhecimento do Estado, dimensões e fatores de força, que

mais tarde se reafirmou na estatística, ou seja, em uma ciência de Estado que foi

consolidada com o advento do mercantilismo. No volume Vocabulário de Foucault,

produzido por Edgardo Castro, encontramos apontamentos que confirmam a hipótese do

mercantilismo como uma racionalização, como uma prática primeira e um vetor bloqueado

daquilo que configuraria a governamentalidade:

O mercantilismo foi a primeira forma de um saber constituído para ser utilizado como tática de governo. O desenvolvimento dessa primeira forma foi bloqueado fundamentalmente, por cauda da preocupação em conjugar essa arte de governar com a teoria da soberania e com a teoria do contrato. No entanto, certo número de circunstâncias, no século XVII, determina a reativação do gênero ‘artes de governar’: a expansão demográfica, a abundância monetária, o aumento da produção agrícola ou, para ser mais preciso, o recentramento da economia não sobre a família, mas sobre a população. (CASTRO, 2009: 192)

Percebemos então uma cristalização, entre os séculos XVI e XVII, da arte de

governar, ao haver uma organização em torno da razão de Estado. Michel Foucault, quando

fala nesse momento em razão de Estado, está especificamente atento aos efeitos positivos

dessa razão, com o Estado que é governado segundo regras racionais, sem dedução de leis

naturais, sagradas, dado que um Estado natural ou divino obedece a uma racionalidade

própria. A arte de governo aborta os princípios transcendentes, cosmológicos e ocupa-se

com a realidade específica do Estado. Essas antigas concepções que entendiam o governo

do Estado por uma fluidez natural, dotado de uma racionalidade própria, foi um contra-

aliado para o desenvolvimento da arte de governo até o século XVIII.

Por essa via, alguns eventos históricos apontavam os entraves no caminho da

formação de uma arte de governar, e estes são identificados por Foucault:

(...) a série de grandes crises do século XVII, como a guerra dos 30 anos com suas devastações; em meados do século, as grandes sedições camponesas e urbanas; finalmente, no final do século, a crise financeira, a crise dos meios de subsistência que determinou a política das monarquias ocidentais. A arte de governar só podia se desenvolver, se pensar, multiplicar suas dimensões em períodos de expansão, e

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não em momentos de grandes urgências militares, políticas e econômicas, que não cessaram de assediar o século XVII. (FOUCAULT, 2007: 286)

Outro obstáculo ao estabelecimento da arte de governar foi o que Foucault chamou

de estrutura institucional e mental. Trata-se da hegemonia e primazia de uma soberania que

exerceu poder por séculos e sedimentou uma lógica institucional e política no Estado.

Combater essa estrutura, esse bloqueio, é algo bastante complexo, de forma que a arte de

governar não pôde se desenvolver de autonomamente. O próprio mercantilismo foi o início

evidente da sanção da arte de governar no conhecimento sobre o Estado e prática política,

na medida em que representou um primeiro limiar de racionalidade na arte de governar,

caracterizando como um exercício do poder enquanto prática de governo, construindo um

saber sobre o Estado como tática de governo.

O mercantilismo, embora aparentemente promovesse uma alternativa para a

emergência de uma arte de governar, ao mesmo tempo era freado pela força do soberano.

Sua lógica era refletiva no interior de uma estrutura mental e institucional da soberania, que

ao mesmo tempo lhe produzia e bloqueava. Por isso até o século XVIII o desenvolvimento

da arte de governar se demonstrou bastante limitada, sobretudo pelo fato de ter a soberania

como obstáculo, também em vista do mercantilismo ter sido uma ferramenta para dispor

novos modelos, uma teoria renovada dentro do cenário dos princípios diretores da

soberania. Dentro dessa perspectiva, entre filósofos e juristas, vemos aparecer no final do

século XVII uma re-atualização da teoria dos contratos sociais entre soberano e súditos.

Esse passo foi uma matriz teórica para a formação posterior de uma efetiva arte de

governar, formando uma teoria do direito público – tal como encontramos nas obras de

Hobbes – até então desconhecida, inexistente.

Encontramos dentro dessa formulação de governo a bipolaridade entre o lado da

soberania e de outro o da família. A arte de governar se desenvolve fundando-se na

formação geral da soberania, contudo inserindo o modelo familiar no modo de governar.

Mas ainda havia uma clara separação entre esses pólos e assim tornar-se-ia impossível

promover uma dimensão própria da arte de governo. Uma nova pergunta que se apresenta

nesse momento é: Como ocorreu o desbloqueio entre esses dois lados para que se tornasse

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possível a arte de governar? Em que medida o modelo da família, da economia,

efetivamente se engendrou no cenário do Estado?

Michel Foucault responde com algumas hipóteses:

Alguns processos gerais intervieram: expansão demográfica do século XVII, ligada à abundância monetária e por sua vez ao aumento da produção agrícola através dos processos circulares que os historiadores conhecem bem. Se este é o quadro geral, pode-se dizer, de modo mais preciso, que o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que, quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados. (FOUCAULT, 2007: 288)

Com o quadro de desenvolvimento da ciência de governo, foi possível centralizar a

economia aos problemas específicos da população, podendo ser pensada fora dos limites

jurídicos da soberania. Encontramos assim um uso da estatística diferenciado, se

comparado as práticas presentes no mercantilismo, dado que ela não mais se submete ao

interior da administração monárquica, por conseguinte esse processo se torna fundamental

para o desbloqueio e a emergência da arte de governar.

Os fenômenos da população permitiram a desestruturação do modelo da família,

modificando o entendimento da noção de economia. Há uma tentativa a partir desse

momento, em fazer uso da estatística para compreender as regularidades internas da

população, por exemplo, com o conhecimento dos índices de natalidade, mortalidade,

acidentes, doenças, epidemias, curas; produzindo assim efeitos econômicos e quantitativos

específicos.

O modelo econômico da família vai gradualmente desaparecendo, ou seja, com o

advento da população como problema de governo, avistamos a arte de governar preocupada

com a gestão da população. A família passa a ocupar um plano secundário e interno em

relação à população, sendo apenas um segmento, não mais um modelo de governo.

Contudo, se configura como um segmento fundamental, por compor e difundir as propostas

que vale para a população, como preceitos morais, de comportamentos sexuais, consumo,

educação, higiene, demografia, campanhas relativas ao casamento, vacinação, todos os

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níveis de precaução com o corpo, dispositivos discursivos que saem, ao longo do século

XVIII, dos mecanismos governamentais e se confirmam de forma instrumental na família.

Na medida em que a população passa a ser fonte produtiva e objetivo do governo,

notamos o aumento significativo da durabilidade das vidas, das riquezas, saúde e todos os

elementos que envolvem o desenvolvimento dessa nova concepção de corpo social. A

população passa a ser também a centralidade daquilo que até o século XVI se compreendia

por paciência do soberano, ou seja, organizará a racionalização e o planejamento último do

governo. Esse processo demarca o nascimento efetivo de uma economia política. Mas ao

contrário do que pode parecer, esse período, não rompe com o modelo da soberania, apenas

há uma re-atualização de sua prática, de forma que o governo passa a se tornar uma ciência

política.

Novamente em Rousseau, encontramos argumentações para compor essas hipóteses

apresentadas. No artigo Economia Política da Enciclopédia, analisado por Foucault,

verificamos que o filósofo contratualista associa a palavra economia com a gestão dos bens

da família pelo pai. Mas o mesmo produz o apontamento de que não faz mais sentido

sustentar esse modelo, haja vista que a economia política não pertence ao mesmo campo

categorial e de ação da economia familiar, embora a segunda atue internamente na

primeira. Rousseau, dessa forma, nesse artigo e no Contrato Social, procurou teorizar sobre

um novo modo de governo, a arte de governar.

A soberania e a disciplina são atualizadas dentro desse novo modelo, constituindo

saberes em instituições que começam a surgir nesse período, sob essa ótica governamental,

tais como as escolas, prisões, exército, oficinas; internamente ao desenvolvimento de uma

monarquia administrativa. Contudo, o poder disciplinar se singulariza, passa a referenciar

como uma ferramenta fundamental para os sistemas de governo e gestão da população em

níveis globais. Percebemos nessa trajetória, em Foucault, a relação entre o desenvolvimento

do poder soberano, da soberania enquanto problema central de governo, o advento da

economia, os dispositivos governamentais preocupados especificamente com a população,

os objetos de intervenção do governo, que constituíram ao longo do século XVIII. Por esses

meandros, Foucault propõe formular uma história da governamentalidade. Preocupando-se

em destrinchar em suas palavras:

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1 – o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 – a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3 – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2007: 291-292)

A compreensão do que é o Estado desde então, não pode se tornar uma realidade

compósita, nem uma abstração de ordem divina, mística, portanto, dentro desse cenário,

vemos nascer um novo entendimento para os governos de um Estado. É exatamente esse

processo que interessa a Foucault e que o mesmo chama de governamentalização. Processo

esse que se realizou de forma plena ao longo do século XVIII, enquanto um fenômeno

particular, possibilitando a formação moderna daquilo que hoje chamamos de Estado, dado

que ele sobrevive dentro de táticas gerais da governamentalidade.

Essas etapas foram constituídas e perpassadas pelo Estado da lei, de justiça, gerido

de uma produção territorial de tipo feudal, posteriormente vemos desenvolver um Estado

administrativo construído também calcado na territorialidade, contudo de tipo fronteiriço

no decorrer do século XV e XVI, para mais tarde encontrarmos uma nova mecânica de

governo fundada na disciplina e finalmente nas concepções governamentais preocupadas

com a gestão da população, com dispositivos de segurança, um saber estatístico,

econômico, seja num entendimento do corpo máquina ou do corpo espécie presente na

biopolítica.

Antes mesmo de toda a cronologia aqui apresentada, para Foucault, a genealogia de

um discurso governamentalizado está assentada em um modelo arcaico correspondente ao

período da pastoral cristã, transformados modernamente, entre os séculos XVII e XVIII, na

prática de governo das populações que conhecemos por polícia. Em Foucault os pontos de

apoio do fenômeno da governamentalidade no Ocidente estão centrados na pastoral, nas

técnicas diplomático-militares e por último na polícia.

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Kleber Prado Filho, em sua obra Michel Foucault: uma história da

governamentalidade, afirma que na análise de Foucault sobre as formas modernas de

governar, encontramos duas matrizes políticas no Ocidente. São justamente sobre elas que

Foucault se detém nas suas conferências dos seminários em Vermont no fim dos anos 70:

(...) uma, grega, caracterizada pela invenção da ‘democracia’, pela fundação da ‘política’ – posta no marco da cidade e dos cidadãos – e outra, pastoral, ligada aos valores, à ética e à cultura cristãs, centrada em práticas de individualização. Uma tecnologia de poder que quer dar conta do todo, e outra, que busca dar conta de cada um: o todo e cada um – totalização + individualização – a marca do Estado moderno, esta nova forma de pastorado. (FILHO, 2006: 31-32)

O estudo de Foucault sobre a governamentalidade, nos leva aos modos de

compreensão e ao estudo histórico sobre as formas específicas de racionalidade que

sustentam e permitem certa construção de um exercício de governo na modernidade.

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BIBLIOGRAFIA

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autores. Tradução: Ingrid Muller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga Neto e Walter

Omar Kohan. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009.

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Edições Graal, 2007.

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Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

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Paulo: Martins Fontes, 2008.

FILHO, Kleber Prado. Michel Foucault: uma história da governamentalidade. Rio de

Janeiro: Editora Indular Achiamé, 2006.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e Civil.

Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Abril

S. A. Cultural e Industrial, 1974.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Princípe / Escritos políticos. Tradução de Lívio Xavier. São

Paulo: Editora Abril S. A. Cultural e Industrial, 1973.

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida (De Canguilhem a Foucault). Rio de

Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política e do contrato social. Petropolis: Editora Vozes, 1996.

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UMA ANÁLISE SOBRE A PÓS-MODERNIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES PÓS-COLONIAIS

Mestranda Ana Beatriz Carvalho Baiocchi

Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CAPES

[email protected]

A discussão sugerida nesta análise corresponde a algumas digressões sobre o

conceito de narrativa histórica na pós-modernidade. Assim, a concepção de narrativa

perpassa o discurso da burguesia durante o século XVIII e XIX, que fundamentaram

uma concepção de filosofia da história, e consequentemente de uma compreensão de

mundo, referencial pra todos os povos conhecidos e por conhecer. A esta filosofia da

história, pautaram-se os ideais de progresso e razão, que se realizaram no Iluminismo e

construíram um ideal de racionalidade, científico e linear de causalidade dos fenômenos

históricos. Soma-se a isso, o desenvolvimento das ciências naturais, frente às novas

descobertas de Newton e Kepler¸ da causalidade dos fenômenos da natureza, abrindo

novos rumos também para as ciências do espírito.

Nesse sentido, a crítica identifica-se com a própria crise do pensamento

moderno, que se volta para si, e questiona-se a partir de suas bases. Podemos dizer que

o pós-modernismo, constitui-se por essa crítica, que no fundo é a crítica de si mesmo,

do modernismo. Desse modo, partimos da concepção da crítica sublinhada por

Koselleck1

A crítica do pensamento burguês, e da filosofia da história que o constituiu,

perpassa a crise das narrativas historiográficas que perfazem o caminho teórico do

discurso do próprio historiador. A filosofia da história suplanta a teoria, na medida em

, que por ser dialética em sua estrutura, não se confunde com nenhuma

metafísica, no mínimo beligerante, das causas últimas do fim da história, se é que existe

um fim. No entanto, a crítica não se dirige à “modernidade” ou pós-modernidade, e suas

conquistas do avanço das novas tecnologias. Não é uma crítica à pós-modernidade, mas

a um pós-modernismo teórico e filosófico, que desacreditou as metanarrativas, como

discurso ideológico.

1 KOSELLECK, R. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução do original alemão [de] Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.

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que aquela se liga uma narrativa cuja estrutura metafísica, pressupõe a ideia de um

início, meio e fim. Os ideais do Iluminismo se concretizavam ou tornavam realidade, à

medida que a prática filosófica corroborava com uma atitude que permeava todo o

pensamento europeu, da realização de um fim para a história, que libertasse a

humanidade dos sofrimentos e perdas infligidos ao longo do tempo. Sobre esta atitude,

assim descreve Koselleck,

“A sociedade burguesa que se desenvolveu no século XVIII entendia-se como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e negava o mundo antigo. Cresceu a partir do espaço político europeu e, na medida em que se desligava dele, desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse processo. O sujeito desta filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria ser conduzida em direção a um futuro melhor.” (KOSELLECK, R., 1999: 9-10)

No entanto, a prática muitas vezes toma rumos, que independem da teoria, não

que a ela a prática deva estar indubitavelmente submetida, mas que a partir dela, a teoria

se refaz quase ininterruptamente. O discurso da filosofia da história moderna, sob o

pano de fundo do colonialismo e do imperialismo, inseriu as demais “narrativas”

constituídas (as da América), nessa grande narrativa que é a história européia. Nesse

sentido, à crise do pensamento filosófico é a crise do pós-modernismo, visto como a

crítica da utopia e da ideologia, subjacentes à filosofia da história, que suplantou as

narrativas americanas, submetendo-as a uma alteridade, que hoje é indiscutivelmente,

repensada sobre outras bases.

A discussão a ser analisada, é sobre as implicações do termo pós-modernismo

em relação à formação das identidades pós-coloniais. Partindo de uma análise

jamesoniana do pós-modernismo, enquanto crítica da ideologia, e realidade (utopia e

representação), desloca-se a questão do pós-colonialismo como reflexo dessa crítica

imanente. Talvez nesse sentido, sublinhamos o termo “pós” para designar de fato, uma

ruptura com o moderno. Senão uma ruptura, o voltar-se para si, a partir de um olhar

mais inquiridor, do olhar que não é mais o olhar do outro, mas o olhar sobre si mesmo.

De modo a definir-se uma categoria que discuta a identidade a partir de novas

bases sociais, políticas e culturais, o pós-colonialismo pode se configurar como um ato

metafórico daquilo que constitui o pós-moderno: como nos indica Jameson, um ato que

envolve o esquecimento e a repressão de si mesmo, velando sua origem e colocando-se

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como verdadeiros e referenciais, numa linguagem literal. A discussão do pós-

colonialismo volta a essa linguagem literal, e procura desvelar essa origem velada, e

desconfigurada pelo próprio ato metafórico, que a constituiu.

Desse modo, quais são as questões teórico-metodológicas a que o debate pós-

colonial se refere? É possível uma teoria capaz de pensar a construção das identidades,

descolonizada dos modelos ocidentais? Ou pelo contrário, pensar numa identidade

capaz de canalizar tanto esse modelo ocidental e suas inúmeras variantes que foram

adquiridas e assimiladas ao longo de todo processo de colonização e descolonização? A

questão é pensar o pós-modernismo como a crise das metanarrativas modernas, e as

convergências de seu discurso com as tendências do pensamento pós-colonial, e suas

aplicações na formação das identidades pós-coloniais.

Segundo o autor, Fredric Jameson, o pós-modernismo é a lógica cultural do

capitalismo tardio. Mas se se caracteriza o pós-modernismo como “lógica cultural”

dominante do capitalismo tardio, nos parece que fica intrínseca a questão de que o pós-

modernismo é uma lógica cultural, de um sistema que se quer centralizador e

totalizante, fugindo das prerrogativas iniciais da discussão em torno do conceito de pós-

modernismo. Como um retorno das questões de progresso, razão, sujeito histórico, e

tantas outras, que caracterizaram a modernidade e seu projeto iluminista. Nesse aspecto,

as questões relativas ao pós-colonialismo, parecem coexistir como estruturas

totalizantes separadas do próprio sistema. É a velha questão ocidental, sendo mais uma

vez determinante sobre as questões do multiculturalismo e da pluralidade dos discursos.

De acordo com Jameson, o capitalismo multinacional marca a apoteose do

sistema e a expansão global da forma mercadoria, colonizando áreas tributárias de tal

forma que não se pode mais falar de algum lugar “fora do sistema”, como a natureza, ou

o Inconsciente, constantemente bombardeados pela mídia e pela propaganda. Nesse

novo estágio do capital, a lógica do sistema é cultural, sendo mais especificamente, o

pós-modernismo como a lógica cultural desse novo estágio. E nesse aspecto, a tarefa

básica é discernir as formas de nossa inserção como indivíduos em um conjunto

multidimensional de realidades percebidas como radicalmente descontínuas. Uma

abordagem totalizante, um pensamento radical oposicionista, como uma superação dos

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termos em que a dominante cultural, o pós-modernismo, articula as condições de

possibilidade do pensamento teórico.

“A questão não é arbitrar, mas enfrentar o pós-modernismo como um componente do estágio atual da história, e investigar suas manifestações culturais – como o vídeo, o cinema, a literatura, a arquitetura, a retórica sobre o mercado – não só como veículos para um novo tipo de hegemonia ideológica, a que é funcional para o novo estágio do capital globalizado, mas também como configurações que permitem ao crítico de cultura, destrinchar os germes de ‘novas formas do coletivo, até hoje quase impensáveis’” (JAMESON, 2000: 7).

O que fica evidente é que Fredric Jameson, em sua abordagem totalizante do

processo em questão, não percebe esses novos agentes culturais como classes. A crítica

do nosso autor é de que esses agentes não são vistos como classes sociais em potencial,

mas sim como microgrupos e as “minorias”, pra usar um termo seu “micropolítica”, que

“corresponde à emergência de uma grande variedade de práticas políticas de pequenos

grupos, sem base em classe social.” (JAMESON, 2000: 322).

Esta ausência reflete o próprio momento global da produção de mercadorias (a

questão do consumismo no pós-moderno), sendo normalmente apontado como uma

nova ordem mundial, onde o eurocentrismo e a dinâmica imperial, centro-periferia

perderam sua importância. Nesse aspecto, nosso autor foge da perspectiva pós-moderna,

de uma crise das metanarrativas, ao detectar um pós-modernismo que em seu alicerce

continua reproduzindo a mesma metanarrativa, mas cuja crítica, ao resgatar os valores

do Iluminismo, volta-se para o em-si de si mesma, de modo a desconstruir o tropo

moderno, que a constituiu.

Para muitos teóricos da pós-modernidade/pós-modernismo, esse é um momento

de crise de legitimação das narrativas, ou mesmo das ciências, como é o caso de

Lyotard.

“considera-se que o ‘pós-moderno’ é a incredulidade em relação às metanarrativas. Esta é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde especialmente a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde os seus functores, o grande herói, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos, etc., veiculando cada um consigo valências pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive nas encruzilhadas de muitas delas. Nós não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis e as

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propriedades das que formamos não são necessariamente comunicáveis” (LYOTARD, 2003: 12).

Para Linda Hutcheon (1991), o pós-modernismo é fundamentalmente

contraditório, deliberantemente histórico e inevitavelmente político. É sempre uma

reelaboração crítica, nunca um “retorno” nostálgico. Por isso, para a autora, o pós-

modernismo não pode ser considerado como um novo paradigma, pois ele não

substituiu o humanismo liberal, mesmo tendo contestado-o, mas pode servir de luta para

o surgimento de algo novo.

Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa –

seja na literatura, na história ou na teoria – que tem constituído o principal foco de

atenção. Aqui também, a narrativa sobre o colonialismo entra em questão. A

“metaficção historiográfica” incorpora todos esses três domínios: sua autoconsciência

teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica),

passando a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos

do passado.

Se para Hutcheon, a crescente uniformização da cultura de massa é uma das

forças totalizantes que o pós-modernismo existe para desafiar, sem o negar, em Jameson

essa atitude vai ligar-se a uma produção estética hoje integrada à produção de

mercadorias em geral; ou então, um campo de forças em que vários tipos bem diferentes

de impulso cultural têm que encontrar seu caminho. Enquanto que para Jameson, o

discurso do pós-modernismo inaugura um novo estágio cultural do capitalismo tardio, e

liberam “novos movimentos sociais” 2

Ainda de acordo com Hutcheon, o importante, em todos esses desafios

internalizados ao humanismo, é o questionamento da noção de consenso. A

, para Linda Hutcheon a cultura pós-moderna tem

um relacionamento contraditório com aquilo que costumamos classificar como nossa

cultura dominante, o humanismo liberal. Ela contesta-o a partir do interior de seus

próprios pressupostos e se recusa a propor qualquer estrutura ou qualquer narrativa

mestra.

2 “O aparecimento dos ‘novos movimentos sociais’ é um extraordinário fenômeno histórico que é mitificado pela explicação que muitos ideólogos pós-modernistas se sentem capazes de propor, a saber, que os novos pequenos grupos surgem do vazio deixado pelo desaparecimento das classes sociais e entre os detritos dos movimentos políticos organizados ao redor delas”. (JAMESON, F., 2000: 322-323)

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concordância pública, sobre o que nos era permitido julgar ou mesmo definir, de forma

não problemática e universal, foram questionadas pela aceitação da diferença – na teoria

e na prática artística. O resultado é o de que o consenso se transforma na ilusão de

consenso, seja ele definido em termos da cultura de minorias (erudita, sensível, elitista)

ou da cultura de massa (comercial, popular, tradicional), pois ambas são manifestações

da sociedade do capitalismo recente, burguesa, informacional e pós-industrial, uma

sociedade em que a realidade social é estruturada por discursos (no plural).

Os anos sessenta foram a época de formação ideológica para muitos dos

pensadores e artistas pós-modernistas dos anos oitenta. A experiência política, social e

intelectual dos anos sessenta ajudou a permitir que o pós-modernismo fosse considerado

como aquilo que Kristeva chama de “escrita-como-experiencia-dos-limites”3

Em seu texto, “Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante?”, Mary

Louise Pratt (1999), alude seu debate a questão colocada por Jürgen Habermas, da

modernidade enquanto um projeto incompleto. Para a autora não é um projeto

incompleto, porque ele ainda esta aí, a nossa volta, sendo colocado em termos pós-

coloniais e pós-modernos, porque se fazem necessárias novas discussões, novas

abordagens, sobre esse projeto, que é a modernidade.

. Os limites

da linguagem, da subjetividade e da identidade sexual bem como, da sistematização e da

uniformização. Esses questionamentos dos limites contribuíram para a “crise da

legitimação”, como parte da situação pós-moderna.

A época pós-colonial que se caracteriza pelo imperialismo, perde lugar para a

globalização. O pós-colonialismo, como um “estado do sistema”, é marcado pelo fim

das metanarrativas, nesse caso, particularmente, a narrativa do colonialismo, sendo a

todo tempo trabalhado e retrabalhado. A questão do pós-colonial é tratar da

modernidade, e especificamente do retumbante fracasso dos pensadores metropolitanos

em articular sua relação com a colonialidade. Na América Latina, o pós-modernismo é

visto primeiramente como uma maneira de pensar o que busca nossa modernidade. Já o

pós-colonialismo, pelo menos em termos latino-americanos é visto como uma maneira

de pensar a respeito da finalidade de nossa situação colonial. O termo “pós” aqui 3 Em KAPLAN, E. ANN. O mal estar no pós-modernismo: teorias e práticas. In: Feminismo/Édipo/Pós-modernismo: o caso da MTV. Tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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indicando a dinâmica do euro-imperialismo, como já não sendo mais “pré-dominante”,

portanto, a chave mais importante para a compreensão do funcionamento do mundo.

A autora parte da análise dos relatos de viagem que deram forma e conteúdo

para uma narrativa do mundo, a partir do olhar do europeu. No século XVIII, as viagens

e a literatura de viagem configuraram-se na emergência da história natural, como

estrutura globalizante de conhecimentos e com o fim da fase das navegações de

exploração e o advento da exploração em terra firme, rumo ao interior. Esses dois

processos registraram e iam de encontro a outra mudança chamada de “consciência

planetária” (européia), que coincidiu com a consolidação dos modelos burgueses de

subjetividade e a inauguração de uma nova fase territorial do capitalismo.

No século XIX, a nova expansão capitalista era traduzida em colonialismo na

África e neo-colonialismo na América Espanhola. Surgem então os relatos de

“anticonquista”, que deixavam para trás, retóricas antigas de conquistas imperiais

associadas à era absolutista, e incorporavam uma nova “estratégia de inocência”,

paradigmas narrativos onde o sujeito europeu é mais passivo e reacionário do que

agressivo e pró-ativo. Essas narrativas de anti-conquista, que surgiam como fenômeno

cultural na América como um todo, naturalizavam a presença e autoridade global

européia em vez de transformá-las em invasão, davam uma impressão de inocência do

que de intervenção, objetivando reordenar os aspectos do mundo dentro de um sistema.

A década de sessenta se configurou na “descolonização do conhecimento”. Se os

anos cinqüenta foram representativos da repressão, da rebeldia e revolta, em relação aos

ideais sociais do alto modernismo, os anos sessenta se caracterizam como desejáveis a

contracultura e os “estilos de vida”, frutos dessa descolonização. A partir de então, a

proposta era de compreender as maneiras pelas quais o Ocidente constrói ou construiu

seu conhecimento do mundo, em linhas com suas ambições econômicas e políticas, e,

concomitante a esse processo, subjuga e absorve os conhecimentos de outros e as

capacidades produtoras de conhecimento de outros. Nos anos setenta e oitenta essa

descolonização se intensificou, e a modernidade, está atualmente sendo analisada sob

uma perspectiva muito mais global que antes, de uma maneira pós-moderna e pós-

colonial.

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Não existe um consenso sobre o tema do pós-colonialismo. Assim como também

não existe um consenso sobre o pós-modernismo. No entanto, o termo “pós-

colonialismo” deve ser explicado posteriormente ao fracasso da autonomia dos projetos

nacionalistas em relação às antigas colônias, num complexo de relações transnacionais

em que esses países independentes são reconhecidos, mas se estabelece uma

padronização de “quem é quem”. O termo “pós”, para as questões coloniais não deve

ser pensado a partir de uma periodização, e sim, como uma tentativa de estabelecer um

diálogo que até então não existia, na busca da legitimidade.

“De fato argumenta-se que o processo de descolonização do conhecimento é a causa do “pós” na pós-modernidade, não porque tenha colocado um ponto final na modernidade, mas porque pôs fim à compreensão interesseira que o centro nutre sobre a modernidade, provocando entre outras coisas uma crise na autoridade intelectual que as academias ainda lutam para confrontar e conter” (PRATT, 1999: 47).

Parece que todas essas questões relativas à pós-modernidade e ao pós-

colonialismo estão ligadas pelos mesmos acontecimentos e emergências: à crise das

experiências nacionalistas e totalizantes que deram origem a severas ditaduras, e a

emergência de novas estruturas de conhecimento que levassem em conta o “fracasso”

dessas experiências e o surgimento das novas identidades.

Como bem coloca Stuart Hall, um complexo de processos e forças de mudança,

identificado como “globalização”, vem sendo atuante numa escala global, atravessando

fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas

combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais

interconectado. A globalização implica um movimento de distanciamento da idéia

sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição

por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao

longo do tempo e do espaço.

Tal processo tem influência direta sobre as identidades culturais. Para o autor,

as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da

homogeneização cultural e do pós-moderno global. Outras, “locais” ou particularistas

estão sendo reforçadas pela resistência à globalização e, outras, estão em declínio, mas

novas identidades, “híbridas”, estão tomando seu lugar. Uma das características

principais para tal processo é a “compressão espaço-tempo”. A aceleração dos processos

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globais, caracterizados por Jameson como o momento do capitalismo multinacional e a

expansão global da forma mercadoria, características do próprio pós-modernismo, torna

o mundo menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar

têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância.

Segundo Hall, alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção

a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades

culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de códigos culturais, e uma

multiplicidade de estilos, cuja ênfase volta-se para o efêmero, flutuante, impermanente,

para a diferença e o pluralismo cultural, no pós-moderno global.

“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’”. (HALL, 2001: 75).

A globalização tem sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas

e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as

identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de

identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e

diversas. Por toda parte, estão surgindo identidades culturais que não são fixas, mas que

estão suspensas, em transição, entre diferentes posições. Que retiram seus recursos de

diferentes tradições culturais, e que ao mesmo tempo, são produtos desses complicados

cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado.

As culturas híbridas, para Hall, constituem um dos diversos tipos de identidade

distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia, ou pós-modernidade.

Para Hall, a globalização coincide com a era da exploração e da conquista

européia, juntamente com a formação dos mercados capitalistas mundiais. As primeiras

fases dessa história global foram sustentadas pela tensão entre esses pólos de conflito, a

saber, a heterogeneidade do mercado global e a força centrípeta do Estado-nação. Com

o apogeu do imperialismo, as duas Guerras Mundiais e os movimentos pela

independência nacional e pela descolonização no século XX, temos o auge e o término

dessa fase. Após 1970, o processo de globalização tira do jogo a antiga estrutura do

Estado-nação.

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Essa nova fase, denominada pelo autor de “transnacional” do sistema tem seu

“centro” cultural em todo lugar e em lugar nenhum. Está se tornando descentrada. Ao

Estado-nação não resta mais nenhuma função nesse novo sistema globalizado. Hall

identifica esse processo a partir de uma perspectiva diaspórica da cultura, como uma

subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. A globalização

cultural é desterritorializante em seus efeitos.

Com a globalização, as identidades concebidas como estabelecidas e estáveis

estão naufragando nos rochedos de uma diferenciação que se prolifera. Por todo o

globo, os processos de migrações livres e forçadas estão mudando de composição,

diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-

nação dominantes, das antigas potências imperiais e, de fato, do próprio globo. Tal fato

sugere o fim da “modernidade” definida exclusivamente nos termos ocidentais

No entanto, forças dominantes de homogeneização cultural, por causa de sua

ascendência no mercado cultural e tecnológico, mais especificamente a cultura norte-

americana, e os processos que vagamente estão descentrando os modelos ocidentais,

levam a uma disseminação da diferença cultural em todo globo. Elas têm a capacidade

em todo lugar, de subverter e “traduzir”, negociar e fazer com que se assimile o assalto

cultural global sobre as culturas mais fracas.

Tais apontamentos nos levam a uma crítica séria em relação ao termo

multiculturalismo e pluralismo, que permeiam tanto as concepções pós-modernas

quanto as concepções pós-coloniais. Segundo Russel Jacoby, a ascensão do

multiculturalismo está relacionada ao declínio da utopia, um indicador do esgotamento

do pensamento político. O multiculturalismo preenche um enorme vazio intelectual,

privado de todo um idioma radical, destituído de esperança utópica, tanto liberais

quanto esquerdistas, que recua em nome do progresso e celebração da diversidade.

Se à diversidade cultural, reserva-se o direito da uniformidade política e

econômica, é porque o multiculturalismo é um indício do fim da utopia, entendida como

um ato político. No entanto, o discurso da diversidade recai na mesma querela dos

dogmatismos que a ele se impôs a crítica, de que toda sociedade e suas estruturas são

políticas: textos, contextos, leituras, autores, livros, currículos. Portanto, esse conceito

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de utopia parece estar ligado às experiências nacionalistas modernas, e a um conceito de

cultura, embebido da idéia de progresso, e das palavras, iluminismo, cultura e educação,

eurocêntricas.

Com o advento dos estudos antropológicos em relação à cultura, a ideia de

diversidade, do multiculturalismo passa a ser analisado como sendo qualquer conjunto

de atividades. Tal conceito de cultura estava envolto num ethos liberal e igualitário, lhe

conferindo verdade e força. No entanto, a idéia de cultura também perdeu toda

especificidade, tornando-se ao mesmo tempo tudo e coisa alguma. A cultura já não se

restringe ao “conjunto” de atividades de um povo, mas qualquer atividade de qualquer

grupo pode constituir uma cultura ou subcultura, “tudo é cultura”. E nesse aspecto, para

o autor, um retorno à idéia hierarquizante de cultura não seria desejável, mas uma maior

precisão pode ser.

O que o autor parece propor é perceber o conceito de pluralismo democrático,

como sendo um conceito ideológico e obscurantista, na medida em que a ordem política

em que ele se insere, não é, nem autenticamente pluralista nem invariavelmente

democrática. Isto parece sugerir implicitamente uma crítica ao pós-modernismo, como

uma ideologia que obscurece as reais intenções desse novo estágio do capital, e que, por

sua vez, estão inseridas na crítica dos próprios pós-colonialistas, em perceber tal

discurso, como mais um discurso homogeneizante, de uma ideologia neoliberal. Para o

autor, a proposta de uma identidade cultural pode surgir precisamente da necessidade de

reagira a sua falência.

Ainda de acordo com a análise de Jacoby, os imigrantes da primeira geração,

assoberbados de “problemas materiais”, pouca atenção davam à cultura do “Velho

Mundo” da qual provinham. Adotavam ou optavam pela “política do esquecimento”

(filhos e filhas dessa primeira geração). Já a geração seguinte, a terceira, é que se lembra

com orgulho de suas raízes e de sua herança comum. Ela que alimenta a identidade

cultural e sua revivescência, o entusiasmo pelo multiculturalismo.

O que parece fundamentar o multiculturalismo é a tendência de se conciliar o

“reconhecimento igualitário” proporcionado pelo liberalismo clássico básico, com um

reconhecimento exigido pela “autenticidade”, própria do multiculturalismo. No entanto,

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a autenticidade invoca um individualismo radical ao mesmo tempo em que explora ao

máximo os registros genealógicos para expelir o inautêntico, gerando um misticismo e

patrulhamento. Como bem coloca Stuart Hall,

“Um fundamentalismo de impulso racial veio à tona em todas essas sociedades da Europa Ocidental e da América do Norte, um novo tipo de nacionalismo defensivo e racializado. O preconceito, a injustiça, a discriminação e a violência em relação ao “Outro”, baseados nessa “diferença cultural” hipostasiada, passou a ocupar seu lugar – (...) – junto com racismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na diferença fisiológica, originando como resposta uma “política de reconhecimento”, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social.” (HALL, 2003: 46).

A crítica realizada por Russel Jacoby é a de que alguns multiculturalistas

radicais, pós-colonialistas e outros tantos teóricos, falam muito sobre a marginalidade

com o objetivo implícito, e às vezes explícito, de juntar-se à corrente principal.

Especializam-se em marginalização para aumentar seu valor de mercado. Também aqui

a coisa parece compreensível: os pobres e excluídos querem ser ricos e incluídos, mas

em que medida seria isto multicultural ou subversivo?

O que parece permear o discurso multiculturalista e as convicções dos pós-

colonialistas é perceber assim como os pós-modernos, a força da construção de um

discurso, em que sempre se coloca a questão do referente. Para os pós-colonialistas esta

questão se insere dentro de um questionamento que fazem sobre se temos ou não, uma

historicidade essencial, afastando-se da idéia de um “isolacionismo histórico”.

Nesse sentido a questão está em identificar como a sociedade se percebe, ou é

percebida, nessas encruzilhadas históricas, que compõem essas novas identidades, em

uma relação de interação múltipla com os fatores e processos que ao longo de meio

milênio tem condicionado sua formação. Para tanto, uma crítica das categorias, como

tempo, narrativa e história, se faz necessária, a partir de critérios nacionais e

nacionalistas, no intuito de se desconstruir as grandes narrativas sobre a América no

século XIX, na busca de uma historiografia que é plural, híbrida, um local de diálogo

que se constitui como sendo a matriz de nossa própria experiência

.O que pode parecer uma contradição, ao partir dos critérios de nacionalidade

para se desconstruir as grandes narrativas mestras, se resolve na própria dialética que

realiza a mediação no interior do próprio discurso, ao reconhecer tais ideais, não como

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seus, mas construídos a partir das suas realidades intrínsecas e mais imediatas. Nem o

pós-colonialismo, nem o próprio pós-modernismo, podem fugir dos alicerces que

definiram sua base teórica e metodológica de suposta ação. Mesmo que esses

referenciais sejam questionáveis. O retorno da dialética renova o próprio discurso

narrativo pós-colonialista, ao inferir suas soluções das suas próprias convicções

irresolutas.

***

BIBLIOGRAFIA

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p. 25-47.

____________. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro – 6. – ed. – Rio de Janeiro, DP&A, 2001, p. 67-89.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro. Ed. Imago, 1991. JACOBY, Russel. O Fim da Utopia. Tradução Clóvis Marques. – Rio de Janeiro: Record, 2001. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª edição. Editora Ática, 2000. KAPLAN, E. ANN. O mal estar no pós-modernismo: teorias e práticas. In: Feminismo/Édipo/Pós-modernismo: o caso da MTV. Tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. KOSELLECK, R. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução do original alemão [de] Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999. LYOTARD, J. François. A condição Pós-moderna. Ed. Gradiva, 3ª edição, 2003. PRATT, L. Mary. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: Perspectivas e Convergências. Bauru, SP; EDUSC, 1999, p. 17-53.

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REAFRICANIZANDO: DINÂMICAS IDENTITÁRIAS CANDOMBLECISTAS NO BRASIL E EM GOIÂNIA APÓS A DÉCADA DE 1960

Mestranda Natália do Carmo Louzada

Universidade Federal de Goiás, UFG Bolsista CNPq

[email protected]

O presente artigo é resultante das observações feitas pela autora em pesquisa de

campo iniciada no ano de 2006, em âmbito de iniciação científica, e atualmente

desenvolvida como pesquisa de mestrado. Experiência que revelou a existência de um

renitente discurso de africanidade, frequentemente proferido por babalorixás e ialorixás

como forma diferenciação entre o candomblé e as demais religiões afro-brasileiras.

Nesse sentido, a breve análise aqui apresentada se propõe a refletir acerca da identidade

candomblecista frente às referidas religiões, perpassando para tanto a positivação e

afirmação do candomblé enquanto implicações do processo de reafricanização,

transcorrido no Brasil durante a década de 1960 no âmbito do movimento de

contracultura nacional. Pretende-se desta forma, pensar a dinâmica de negociação por

sobrevivência historicamente empreedida pelas religiões de influência indígena e

africana no Brasil. Realizando estudo sensível à percepção da comunidade

candomblecista em relação ao hibridismo religioso, bem como atento às interfaces

existentes entre o discurso da liderança religiosa estabelecida na cidade Goiânia e outros

discursos locais.

As religiões de origem africana no Brasil, segundo pesquisa de Vagner Silva

(1994), receberam, até o século XVIII, a denominação genérica de calundus, podendo

também ser chamadas de batuques ou batucagês, abrangendo de forma imprecisa, como

mostra o autor, “toda sorte de dança coletiva, cantos e músicas acompanhadas por

instrumentos de percussão, invocação de espíritos, sessões de possessão, adivinhação e

cura mágica” (SILVA, 1994, p.43). Até o referido período, tais cultos encontravam-se

organizados em torno da figura dos sacerdotes, calundu ou calundeiros, os quais

exerciam três tipos de sacerdócio: curas de doenças, curas espirituais e advinhações

(SILVEIRA, 2005). Como explica Renato da Silveira

Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou em casas

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destinadas a outras ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas também não representavam simples cultos domésticos, uma vez que havia um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções, e eram frequentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive brancos, vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ganhar bem a vida com atendimento individual e tornar-se finenceiramente independente ao prestar à população serviços essenciais que o estado colonial não oferecia satisfatoriamente (2005: 19)

Estando confinados ao espaço das fazendas, os primeiros calundus brasileiros

apenas puderam se estabelecer nas imediações da senzala, nas matas ou em meio às

plantações, nos quais os sacerdotes, estigmatizados pela sociedade colonial como

“feiticeiros”, podiam atuar livremente (SILVA, 1994). Entretanto, a partir do século

XVII, os calundeiros eram também recebidos em monastérios e meios ricos, sendo

publicamente reconhecida a eficácia de seus saberes, o que, todavia, não se sobrepunha

ao fato de seu ofício questionar o monopólio da cura atribuído à Igreja e à medicina

oficial (SILVEIRA, 2005). Tais calundus constituíam

cultos que englobavam uma grande variedade de cerimônias, misturando elementos africanos (atabaques, transe por possessão, adivinhação por meio do búzio, trajes rituais, sacrifício de animais, banhos de ervas, ídolos de pedra, etc.) aos elementos católicos (crucifixos, anjos católicos, sacramentos como o casamento) e ao espiritismo e superstições populares de origem européia (adivinhação por meio de espelhos, almas que falam através de objetos ou incorporadas nos vivos etc.) (SILVA, 1994:, p.45- 46).

Características que demonstram, desde então, por meio do próprio significado da

expressão calundu – que pretende se referir ao melhor modo de louvar a Deus - o

sincretismo necessariamente presente nas religiões de influência africana formadas no

Brasil. Pois como revelam pesquisas de Renato da Silveira, os calundus de origem jeje

(constituído por pessoas advindas da região ocidental da África, principalmente do atual

Benin) aderiram ao catolicismo. E os calundus de origem banto (formados por

indivíduos advindos da região sul do continente africano, como Angola, Moçambique e

Congo) sincretizaram-se ao catolicismo e aos cultos indígenas, dando origem,

posteriormente, à religião Umbanda (2005).

De qualquer forma, segundo Vagner Silva, apenas no século XIX, com o

crescimento das cidades e o aumento da presença de negros libertos nestes espaços

urbanos em decorrência da abolição, as religiões em questão puderam se desenvolver.

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Isso ocorreu principalmente nos locais em que habitava a referida população, isto é, as

moradias coletivas caracterizadas como cortiços, onde tais pessoas, nas palavras do

autor, encontravam-se “relativamente resguardadas da repressão policial” (SILVA, 1994,

p.48). Nesta perspectiva, o uso do espaço de moradia como espaço também de culto, foi

marcadamente característica das primeiras religiões afro-brasileiras, constituindo

alternativa ritual originária das senzalas, e que foi mantida pelas referidas religiões até o

presente momento.

Após a abolição da escravidão, em 1888, a população negra não encontrou

possibilidades de inserção no mercado de trabalho, pois a então República brasileira

preocupava-se, neste contexto, em implementar medidas sanitaristas e projetos

urbanísticos que, ao contrário de proporcionar tal inserção, ao “importar o modelo

europeu de vida”, circunscrito a um plano de urgente modernização, “combatia a

herança africana em nossa cultura, vista como exemplo de primitivismo e atraso”

(ibidem, p.54). Dessa forma, evidenciava-se o conflito entre o ímpeto civilizatório das

elites brasileiras e a presença da herança cultural e étnica africana na composição da

sociedade nacional, manifestada pela forte expansão, nos espaços urbanos, de religiões

tais como o candomblé.

Nesse sentido, Raimundo Nina Rodrigues foi um dos cientistas que, tendo como

influência as teorias racistas e evolucionistas européias do final do XIX, se interessou

pela pesquisa das religiões de origem africana presentes em Salvador, consideradas

“fetichistas e animistas”1

²Relativo à primeira obra de Nina Rodrigues, publicada no Brasil em 1896, que se intitula O animismo fetichista dos negros bahianos.

. Em estudo pioneiro realizado nos terreiros de candomblé

soteropolitanos, Nina Rodrigues concluiu que o politeísmo e o animismo das religiões

de africanos e seus descendentes, caracterizavam formas religiosas desprovidas de

exigências de abstrações mais complexas, diferentemente do que acontecia no caso das

religiões monoteístas, afirmando, por meio deste argumento, a superioridade de brancos

em relação a negros. De maneira que, em sua perspectiva, o Brasil jamais se igualaria

aos países europeus, tendo em vista a parca forma de civilização aqui estruturada com

influência de africanos (SILVA, 1995).

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Assim sendo, a repressão às manifestações religiosas de origem africana deu-se,

tanto no âmbito social, quanto nos âmbitos político e científico. Repressão que se

constituiu, ainda nos primeiros séculos de colonização portuguesa, como um processo

de “demonização” realizado por meio da negativação dos aspectos cosmogônicos e

ritualísticos da religiosidade africana.

Ao mesmo tempo, o “verniz católico” (1994, p.32) aplicado sobre os negros

escravizados, na perspectiva de Silva, criava um catolicismo em que a simples

realização de sacramentos entre escravos, tais como o casamento e o batismo, era

valorizada como legitimadora de sua suposta conversão. Os elementos ritualísticos

africanos, tais como o toque de tambor, as danças e os cânticos - entoados em línguas

africanas - em ocasiões de festividades religiosas, eram tolerados sob o argumento de

eles constituírem “inofensivo folclore” (idem, p.34). Todavia, essa tolerância acontecia

para não prejudicar os senhores de engenho, privando-os, em função de punições aos

escravos, de sua mão de obra fundamental.

De maneira que, em sua atuação ambígua, ao fazer vistas grossas ao catolicismo

sui generis dos escravos brasileiros, a Igreja Católica se dispôs também a controlá-lo,

instituindo para tanto os tribunais do Santo Ofício. Com a expansão das cidades e o

surgimento de associações de ofício e lazer, as quais permitiam aos libertos “entregar-se

efusivamente às suas danças e rodas de capoeira e de batuque” (idem, p. 37), a

aproximação entre brancos e negros no espaço urbano fez com que a Igreja

providenciasse a manutenção do afastamento, tanto dentro da instituição quanto fora

dela, criando as Irmandades de Pretos e Pardos e combatendo o chamado catolicismo

popular. Substituindo, posteriormente, por influência da Revolução Francesa, “a

repressão pelo sentimento de superioridade que separou a fé católica das elites brancas

das práticas consideradas rudes e ignorantes do povo” (SOUZA apud SILVA, 1994,

p.49).

Pois, como demonstra Vagner Silva

As religiões africanas caracterizavam-se, como ainda hoje, pela crença em deuses que incorporam em seus filhos. São também religiões baseadas na magia. O sacerdote, ao manipular objetos como pedras, ervas, amuletos, etc., e fazer sacrifícios de animais, rezas e invocações secretas, acredita poder entrar em contato com os deuses,

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conhecer o futuro, curar doenças, melhorar a sorte e transformar o destino das pessoas. Por esses princípios a magia africana era vista como prática diabólica pelas autoridades eclesiásticas, como já havia ocorrido em relação aos indígenas. Principalmente porque, sendo o catolicismo colonial também uma religião fortemente magicizada, era preciso distinguir a fé católica nos santos, almas benditas e milagres, das crenças consideradas “primitivas” em seres que incorporam, em espíritos que recebem como alimento sacrifícios de sangue e adivinhos que operam curas. Da mesma forma que foi preciso distinguir a ingestão da hóstia, representando o corpo de Cristo, da antropofagia ritual dos índios (SILVA, 1994, p.35 – grifos meus).

Visto que, ainda que a Igreja Católica tentasse impedir o sincretismo, ele

estabeleceu-se como estratégia de negociação por sobrevivência utilizada tanto pela

referida instituição, procurando garantir a implementação do catolicismo na colônia,

quanto por índigenas e africanos escravizados, os quais adaptaram suas crenças

religiosas às novas concepções que lhes eram impostas.

Nesse sentido, o sincretismo do colonizado transgrediu as fronteiras da

negociação por sobrevivência para tornar-se real conversão, originando, num primeiro

momento, o que entendemos como catolicismo popular, para então formar novas

religiões híbridas, denominadas afro-brasileiras.

Se a fé dos negros nos deuses de sua religião original esteve primeiramente disfarçada nas danças e cantos que eles faziam em louvor aos santos católicos, num segundo momento sua fé se dirigiu tanto a uns como a outros. Ou seja, o negro, assim como o índio, continuou acreditando nos seus deuses mesmo considerando-se cristão. (SILVA, 1994, p.42)

A compreensão desta alternativa de sobrevivência material e cultural que

perpassa ora a introjeção de preconceitos e a incorporação de padrões da sociedade

dominante, ora a afirmação dos valores e diferenças advindas da ancestralidade indígena

e africana (idem, p.56), substitui a noção de sincretismo pela idéia de hibridismo. Desse

modo, abandona-se a perspectiva de mistura homogênea entre os aspectos culturais

europeus, indígenas e africanos amalgamada pela morenidade de uma sociedade

pautada numa suposta democracia racial, pela compreensão da existência de um fluido

mosaico cultural, o qual seria mais apropriado para “abarcar as diversas mesclas

interculturais” (BERND, 2004, p.100) dentro do rizoma2

2 Cf. Édouard Glissant, Traité Du tout-monde. Paris: Gallimard, 1997

de influências que compõe as

sociedades coloniais.

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Assim sendo, a perspectiva da hibridez, segundo Zilá Bernd, procura refutar a

“camuflagem” e “manutenção de uma identidade calcada na homogeneidade,

preocupada em integrar os grupos marginalizados, mas sempre de acordo com as

concepções dominantes de nação” (idem, p.100), possíveis por meio da utilização dos

conceitos de mestiçagem e sincretismo. Na concepção da autora o termo híbrido

Enfatiza acima de tudo o respeito à alteridade e a valorização do diverso [...] Ao destacar a necessidade de pensar a identidade como processo de construção e desconstrução, estaria subvertendo os paradigmas homogeneizantes da modernidade, inserindo-se na movência da pós-modernidade e associando-se ao heterogêneo [...] Processo de ressimbolização em que a memória dos objetos se conserva e em que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem à tentativas de tradução ou inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura [...] (BERND, 2004, p.100-101).

A idéia de hibridismo nos permite então, compreender o “sincretismo” das

religiões afro-brasileiras tanto como estratégia de resistência cultural, quanto como

condição real de crença religiosa, sem, contudo, anular a existência de hierarquização

entre as diferentes influências culturais componentes da sociedade brasileira,

pressupondo, para tanto, a heterogeneidade desta mescla intercultural. Mescla na qual,

ainda que sobrevivessem à perseguição e à imposição da racionalidade/cultura européia

ocidental, as religiões afro-brasileiras apenas poderiam existir mediante um processo de

constante negociação, que findaria por invisibilizá-las, marginalizando-as espacial e

socialmente.

E por assim ser, os terreiros - ou casas de santo - associaram-se, desde o

contexto de abolição da escravidão e expansão das cidades, no qual puderam se

estabelecer formando religiões organizadas como o candomblé e a umbanda, à luta

contra as condições de subordinação do negro (SILVA, 2005, p.50). Estando a

estruturação do movimento negro no Brasil diretamente relacionada à reivindicação de

valorização da influência africana na formação cultural e étnica nacional. Nesse sentido,

durante o século XX, a partir do desenvolvimento das grandes cidades, foram criadas

organizações, como a Frente Negra Brasileira, na década de 30, e o Teatro Experimental

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do Negro, no final dos anos 40, que adquiriram proporções nacionais na década de 80

durante as lutas pela redemocratização (GONÇALVES; SILVA, 2000, p.138).

A consolidação do movimento negro brasileiro foi impulsionada pelo chamado

processo de reafricanização, movimento de valorização e afirmação dos elementos

africanos componentes da cultura brasileira, o qual foi significativamente expressivo no

contexto de instalação do candomblé em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre meados

dos anos 60 e o início dos anos 70. Segundo Reginaldo Prandi, “os anos da

contracultura” formaram um contexto de “recuperação do exótico, do diferente, do

original”, sendo que, no Brasil, ao “valorizar-se a cultura do outro”, a antropologia

voltou seu olhar para a cultura indígena e para a “cultura do negro”, pois a “sociedade

saía em busca de suas raízes” (1999, p.102). Neste ambiente de efervescência cultural,

surgem o tropicalismo e a bossa nova de Baden Powell e Vinícius de Morais com os

afro-sambas, entoando canções cujas harmonias e letras continham instrumentos,

ritmos, temas e mesmo palavras cantadas em língua yorubana3

Desenvolviam uma concepção de sociedade que implicava a valorização do pobre, do negro, do explorado, do marginalizado, em que se incluía a favela e o morro cariocas, que passam a ser cantados pelos compositores e intérpretes da música popular de elite como pólos de luta contra a injustiça social (PRANDI, 1999, p.103).

. Como nos explica

Prandi, os movimentos de esquerda se manifestavam também artisticamente, por meio

do teatro e da música, ao mesmo tempo em que

Durante os anos 60, em decorrência da intensa migração de nordestinos em

direção às indústrias do Sudeste, os antigos adeptos da umbanda, tão bem estabelecida

naquela região quanto o candomblé no Nordeste, começaram a abandonar os ritos de

umbanda para tornarem-se candomblecistas. De maneira que, muitas dessas pessoas

tornaram-se pais e mães de santo de candomblé, permitindo a expansão desta religião

em novo território, o qual apresentava condições sociais, econômicas e culturais muito

favoráveis. Para Prandi, tal fenômeno acontecia em função de a umbanda ter sido

3 Língua advinda do tronco étno-linguístico Ewe-Fon, característico da região da África Ocidental, de onde foram trazidos os africanos escravizados denominados sudaneses, dos quais fazem parte o povo yorubá (ou iorubá). Encontra-se ainda preservada no Brasil por meio dos rituais de candomblé da nação Keto (ou Quetu). Cf. Roger Bastide, O candomblé da Bahia. São Paulo: Nacional, 1978; e Vagner G. Silva, Candomblé e Umbanda. São Paulo: Selo negro, 2005.

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remetida ao candomblé como “sua velha e verdadeira raiz ‘original’, considerada pelos

novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais poderosa que sua

moderna e embranquecida descendente” (1999, p.101-102). 4

Começava assim o processo de reafricanização,

Em que o retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da diáspora; voltar à África não para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil agora era motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá. (PRANDI, 1999, p.105) (grifos meus).

Finalmente, no decorrer dos anos 80, pouco após a grande disseminação do

candomblé pela região Sudeste e concomitantemente à expansão do movimento negro

pelo território nacional, organiza-se em Salvador a II Conferência Mundial da Tradição

Orixá e Cultura. Nesta ocasião, em julho de 1983, as mais respeitadas ialorixás (ou

mães de santo – sacerdotisas da nação Ketu5

Nas palavras das mães de santo:

) do candomblé da Bahia se reuniram,

elaborando um documento no qual afirmavam o candomblé como religião e não como

seita, independente do catolicismo. O documento refutava ainda o estigma de animismo

e folclore que consideravam ser frequentemente atribuído à religião, além de recusar a

perpetuação de sua utilização como elemento de atração turística. Entretanto, dentre as

medidas anunciadas no referido documento, a que maior polêmica criou se referia à

rejeição do sincretismo em meio ao candomblé.

Sejamos livres, lutemos contra o que nos abate e o que nos desconsidera, contra o que só nos aceita se nós estivermos com as roupas que nos deram pra usar [...] Durante a escravidão, o sincretismo foi necessário para nossa

4 Isso porque a umbanda é uma religião que abarca elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista, das religiões chamadas de nova era, além das tradições religiosas indígenas e africanas. Possuindo pouco rigor litúrgico ou doutrinário quando comparada ao candomblé.

5 A denominação “nações” de candomblé se refere às diferentes tradições étnico-culturais seguidas por três vertentes fundamentais de candomblé: a nação Keto-Nagô, originária do povo yorubano, cultua Orixás, possui grande rigor ritualístico e constitui a mais popular dentre as demais; a nação Angola - originária de diferentes povos banto, cultua Inquices, embora tenha incorporado a seu panteão também alguns orixás e caboclos (espíritos indígenas); e a nação Jeje ou Jeje-Mahin, originária do povo ewe-fon, que cultua Voduns. Cf. Prandi (1999).

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sobrevivência, agora, em suas decorrências e manifestações públicas, gente-do-santo,6 ialorixás, realizando lavagens nas igrejas, saindo das camarinhas7

. As sacerdotisas pretendiam, por meio de tal manifesto, retomar a dignidade da

religião africana que lhes teria sido aviltada no período da escravidão e, posteriormente,

em função da marginalização social, cultural e econômica a que fora submetida o povo

negro. O contexto da II Conferência era absolutamente propício a tais reivindicações,

visto que o evento contava com presenças tais como o reitor da Universidade de Ifé

para as missas etc., nos descaracteriza como religião, dando margem ao uso da mesma como coisa exótica, folclore, turismo. Que nossos netos possam se orgulhar de pertencer à religião de seus antepassados, que ser preto, negro, lhes traga de volta a África e não a escravidão (Transcrição do documento de 12 de agosto de 1983 apud CONSORTE, 1999, p. 89-90).

8

Dessa forma, as mães de santo da Bahia afirmavam e, mais do que isso,

legitimavam uma identidade religiosa “africana” por meio do reconhecimento e

valorização da ancestralidade e seus específicos elementos culturais “trazidos” de África

ao Brasil. Para tanto, elas propunham excluir os aspectos sincréticos presentes no

candomblé, a fim rejeitar a história de submetimento causada pela escravidão e

perpetuada pela marginalização. Pois em sua perspectiva, após a inserção subalternizada

proporcionada pelo sincretismo à cultura religiosa de origem africana e ao próprio povo

negro, a circunstância do referido contexto seria de luta pela afirmação do que fora

obliterado e negado em sua diferença. Este posicionamento consolidava uma identidade

afro-brasileira forjada tendo como fundamento a idéia de preservação das características

, os

embaixadores de todos os países africanos com representação no Brasil, delegações de

outros países e estados e ainda diversos estudiosos das civilizações africanas. Além de

terem sido implementadas, naquele mesmo período, medidas oficiais de proteção e

defesa da memória da presença africana em terras baianas, promovendo desapropriações

de terras ocupadas por terreiros e tombamentos de sítios e logradouros (CONSORTE,

1999).

6 Iniciados em candomblé

7 Quarto de reclusão em que o iniciado será mantido por determinado período (o qual varia de acordo com cada nação), com a finalidade de aprender os segredos necessários para o ingresso na religião

8 Mais importante cidade yorubana. Antiga capital da confederação yorubana e considerada como “umbigo do mundo” pela mitologia do yorubo.

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ritualísticas e cosmogônicas “trazidas” da África (não orientada pela compreensão das

ressignificações / recriações diaspóricas), estas que, por sua vez, vinham sendo

popularizadas e celebradas, desde a década de 60, por segmentos artísticos nacionais.

Tal fato promovia ainda a abertura da religião a todos aqueles que reivindicam para si a

ancestralidade africana, independente de se considerarem negros ou não.

Contudo, é necessário observar que, conforme se afirmou anteriormente, o

hibridismo das religiões de influência africana formadas no Brasil constitui tanto uma

estratégia de sobrevivência e inserção, quanto verdadeira condição de crença religiosa.

O que acontece também com o candomblé, ainda que o mesmo se proponha a manter a

tradição africana mais rigorosamente do que fazem as demais religiões afro-brasileiras.

Fato que pôde ser verificado pela pesquisadora Josildeth Consorte em entrevistas

realizadas com as próprias ialorixás signatárias do documento de 1983.

Segundo afirma Consorte, muitas das tradições “sincréticas” foram mantidas na

Bahia após a publicação do manifesto, tais como a lavação da escadaria do Bonfim; o

presente de Iemanjá entregue no dia de Nossa Senhora das Candeias; a presença de

povo-de-santo nas missas das segundas-feiras na Igreja de São Lázaro, sincretizado com

Omolu9

Além disso, outras sacerdotisas, tais como a importante Olga de Alaketo

, dentre outros rituais. Isso foi explicado por algumas das mães de santo à

pesquisadora com base na manutenção da tradição, pois como afirmou Mãe Nicinha de

Bogum em entrevista, não seria correto modificar o que lhe foi ensinado, no contexto de

sua iniciação em candomblé, como práticas religiosas a serem mantidas e que existem

em seu terreiro desde a sua criação.

10

9 Orixá responsável pela propagação da doença e da cura. Segundo a mitologia possui o corpo coberto de doenças e por isso e representado nas rodas (ou xirês) de candomblé coberto de palha da cabeça aos pés.

,

afirmaram ser pertinente cultuar tanto aos santos católicos quanto aos orixás desde que

em espaços e momentos diferentes, se auto-definindo cristãs católicas e também

10 Líder sacerdotal de grande prestígio de um dos mais importantes terreiros da Bahia, o Candomblé do Alaketo. Constituem ainda os terreiros mais antigos e de maior prestígio no Brasil a Casa Branca do Engenho Velho; o Axé Opô Afonjá e o Terreiro do Gantois. Cf. Prandi, Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1991

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candomblecistas. Sendo assim, a percepção do sincretismo como decorrência da

escravidão foi mantida apenas pelo discurso de Mãe Stella, que procurou estabelecer no

terreiro Opô Afonjá a separação entre elementos da cultura local, tais como a realização

de batismos e a comunhão, daqueles relativos à religião candomblecista, afirmando a

independência desta religião em relação ao catolicismo (CONSORTE, 1999).

Nesse sentido, torna-se possível perceber que o manifesto das mães de santo

baianas perpassa a evocação de uma identidade como estratégia política. Visto que,

conforme mencionado anteriormente, “voltar à África não para ser africano nem para

ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil agora era motivo

de orgulho, sabedoria e reconhecimento público” (PRANDI, 1999, p.105), ainda que

não contribuísse, diretamente, no atendimento às demandas étnico-raciais reconhecidas

pelas sacerdotisas, constituía importante alternativa de diminuição dos preconceitos

relativos às religiões afro-brasileiras e de promoção da inserção social de seus adeptos.

Nesse sentido, a referida “volta à África”, perpassava a recuperação de um passado que

legitimaria a africanidade destas religiões, agregando-lhes definitivo valor cultural.

Por sua vez, isso implicava no esquecimento, obliterateração daquelas memórias

cuja perpetuação não corroboraria a nova identidade forjada, pois como explica Jô

Gondar (2002), sendo a identidade uma construção ficcional, ela parte necessariamente

de uma escolha política, orgulhosa, relativa a interesses práticos, e que apenas pode se

manter a partir da segregação daquilo que ameaça a representação que um indivíduo ou

um coletivo fazem de si mesmos. Portanto, a identidade passa a ser construída frente a

sua alteridade, por meio da oposição à diferença, ou como nos diz Thomaz Tadeu da

Silva (2000), definindo-se em função não daquilo que é ou que deseja ser, mas sim

daquilo que não é.

Dessa forma, torna-se possível compreender que, no âmbito da identidade

africanista enunciada pelo candomblé, há um processo de oposição tanto às religiões de

matriz européia, expresso pelo intuito de desvinculação relativa ao catolicismo, quanto

às demais religiões afro-brasileiras, fundamentadas em características irrefutavelmente

sincréticas, as quais foram negadas pela religião dos orixás, criando uma identidade

candomblecista específica, em detrimento do sentimento identitário - deslocado de uma

identificação racial – de valorização da ancestralidade africana comum, fato que, como

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explicitado anteriormente, institui uma abertura das religiões afro-brasileiras aos

diversos segmentos sociais que compõem o espaço urbano. Essa identidade se baseia na

concepção de que a referida religião teria se sincretizado em menor grau relativamente

às demais religiões afro-brasileiras, tendo conseguido, portanto, preservar características

rituais e cosmogônicas tal como “trazidas” de África, conferindo a si própria, como

instrumento de diferenciação, a condição de “pureza” e o status de “guardiã da

tradição”. Principalmente no âmbito do candomblé de nação ketu-nagô.

Isso porque, como afirma Renato da Silveira, “segundo as tradições orais dos

nagôs (africanos yorubas, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo)” situados na

Bahia, o primeiro candomblé institucional, organizado legitimamente em espaço

urbano, teria sido o de sua linhagem, fundado em Salvador atrás da Igreja Nossa

Senhora da Barroquinha, local em que já existia uma irmandade de pretos, denominada

Senhor Bom Jesus dos Martírios, cujos associados teriam sido os mesmos africanos

organizadores do referido candomblé. Não há referências quanto à data de fundação do

mesmo nas tradições orais, entretanto, investigações antropológicas indicam que tal

acontecimento teria se dado entre fins do século XVIII e meados do século XIX. “Data

que coincide” tanto com a oficialização da irmandade da boa morte, quanto com “a

chegada à Bahia dos primeiros escravos nagôs do reino de Ketu” (situado em região

yorubá), ”de onde teriam vindo os fundadores” do candomblé da barroquinha (2005: 21)

Ainda segundo Silveira, “entre os primeiros escravos provenientes do Reino de

Ketu” teriam vindo alguns membros da família real Arô, “capturados na cidade de

Iwoyê, saqueada em janeiro de 1789 pelo exército do Reino do reino do Daomé (atual

República do Benin)”. Na perspectiva do autor, a “primeira das fundadoras do

candomblé da barroquinha, Iyá Adetá”, teria vindo nesta leva de escravos. Ela teria

conquistado a alforria no fim do século XIX, fundando em sua casa, situada no bairro da

barroquinha, um culto doméstico a Oxóssi11

11 Orixá dos caçadores e da caça. Tem como símbolo o arco e flecha bem como a cor verde. Ver Lopes, Nei. Kitabu: o livro do saber e do esírito negro-africanos. Rio de janeiro: Senac Rio, 2005.

. Culto este que, após longo processo de

institucionalização e resistência frente à perseguição empreendida por Conde da Ponte

entre os anos de 1805 e 1809, teria conquistado em 1812 “consentimento oficial” para

realizar suas reuniões num salão nobre anexo à Igreja da Barroquinha. Contexto em que

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surge no lugar o Iyá Omi Axé Airá Intile, “dirigido por Iyá Akalá, segunda das

fundadoras segundo a tradição”.

Em 1830 a cidade de Oyó, “capital do maior dos Estados nagô iorubas” fora

saqueada por africanos islamizados do “califado de Kotô e do Emirado de Ilórin” dando

início a “um grande êxodo da população dessa região”, bem como a uma guerra civil

“destruidora” em que, nas palavras do autor “verdadeiras multidões de prisioneiros (...)

vieram parar na Bahia como escravos, de modo que, em meados do século XIX, mais da

metade da população escrava africana já era nagô-yorubá” (Idem, 2005: 22). Em função

deste grande contingente de africanos advindos da região, durante a reorganização do

Império de Oyó, uma missão secreta teria sido organizada com a finalidade de organizar

os cultos estabelecidos na Barroquinha, pois diversos

Subgrupos étnicos de todas as regiões ocupadas pelos yorubás na África Ocidental, a chamada Yorubalândia, como oyós, ijexás, ketos, efans, dentre vários outros, trouxeram suas divindades para o exílio, as quais foram sendo “assentadas” no terreiro da Barroquinha (SILVEIRA, 2005: 22)

Dentre os membros do “alto escalão” yorubá vindos à Bahia na referida missão

estava Iyá Nassô, considerada a terceira fundadora, “personalidade do primeiro escalão

cerimonial do palácio de Oyó”, quem juntamente aos demais enviados teria

reestruturado o culto às diferentes divindades reunidas na Barroquinha, organizando o

Candomblé de Ketu no terreiro Iyá Omi Axé Airá Intile, posteriormente chamado

popularmente Casa Branca do Engenho Velho da Federação, tal como hoje é

conhecido.

Tendo como referência a participação direta de africanos na estruturação do

culto, o Candomblé de Ketu percebeu a si próprio, bem como foi percebido pelos

primeiros pesquisadores, enquanto religião “originalmente africana”. O discurso de

pureza registrado em circunstâncias como a II Conferência Mundial da Tradição Orixá

e Cultura e ainda percebido contemporaneamente entre a nação Ketu12

12 A denominação “nações” de candomblé se refere às diferentes tradições étnico-culturais seguidas por três vertentes fundamentais de candomblé: a nação Keto-Nagô, originária do povo yorubano, cultua Orixás, possui grande rigor ritualístico e constitui a mais popular dentre as demais; a nação Angola - originária de diferentes povos banto, cultua Inquices, embora tenha incorporado a seu panteão também alguns orixás e caboclos (espíritos indígenas); e a nação Jeje ou Jeje-Mahin, originária do povo ewe-fon, que cultua Voduns. Cf. Prandi (1999).

, tal como

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ocorrido com a autora do presente artigo em sua pesquisa de campo nos candomblés da

cidade de Goiânia, fundamenta-se na idéia de perpetuação desta africanidade por meio

do tradicionalismo ritual e da rígida hierarquia característicos da referida nação.

Características estas, que teriam impedido o avanço do sincretismo por entre o

candomblé de Ketu.

Entretanto, embora não possa ser negada enquanto expressiva acracterística da

religião, a forte preocupação e o esforço em termos de manutenção da tradição

religiosa africana, a nação Ketu caracteriza-se historicamente também pela reunião

feita “pela primeira vez na religião africana”, “de todos os orixás nos mesmo templo”,

o que criou, diferentemente do que havia em África, uma hierarquia unificada a todas

estas divindades (SILVEIRA, 2005: 23). Pois, como nos mostra Renato da Silveira, no

candomblé da Barroquinha plantaram-se13 quatro pilares centrais em referência ao

“quatro cantos do país yorubá, dedicados à Oxossi de Ketu, Xangô de Oyó, Oxum de

Ijexá e Oxalá14

Ainda nesse sentido é necessário levar-se em conta que os calundus jejes em

meados do século XIX já haviam dado origem, na cidade de Cachoeira a “uma

de Efan”, representando a tradição religiosa destas quatro etnias. Assim

sendo, o candomblé de Ketu configura-se como uma recriação, no espaço da diáspora,

das antigas religiões africanas, perpetuando uma forma de culto que jamais existiu em

África e que apenas foi criada a partir da ressignificação feita em território brasileiro.

Pois embora Iyá Nassô e demais enviados africanos tenham elaborado tal forma de

culto, o fizeram a partir da mescla entre divindades e tradições já empreendida na

Barroquinha, esta que fora conduzida no contexto do século XIX não somente por

sacerdotes africanos como também por líderes nascidos no Brasil.

13 Referência ao ritual de instauração do axé, energia dos orixás, que somente se estabelece no espaço dos terreiros se feitos os rituais de devoção, que perpassam o soterramento dos ‘fundamentos’ (conjunto de objetos) da divindade, nas bases dos pilares, para que nelas se fixe o orixá.

14 Respectivamente: Orixá dos ventos e trovões, tem como símbolo o machado de duas lâminas representando a justiça. Orixá das águas doces , cachoeiras, também da beleza e da riqueza, é representada pelo espelho e os seixos rolados. Orixá supremo, criador dos homens, tem como símbolo tradicional o cajado. Ver Lopes, Nei. Kitabu: o livro do saber e do esírito negro-africanos. Rio de janeiro: Senac Rio, 2005.

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organização tipicamente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de

periferia”, bem como originaram, com apoio dos calundus bantos existentes “que

detinham forte saber ritual acumulado”, o Candomblé do Accu, estabelecendo cultos

“marcadamente comunitários e de forte tradição litúrgica” (SILVEIRA, 2005:20).

Assim, nota-se que o sincretismo, entendido enquanto mosaico de tradições religiosas,

perpassa a formação de todas as nações de candomblé, visto ter sido iniciado entre as

própria etnias africanas que os formaram. Além disso, a característica de rigor ritual,

vista pelo candomblé de Ketu como condição para a perpetuação da tradição, constitui

também característica dos candomblés jeje, os quais embora tenham posteriormente

agregado o catolicismo a sua religião, parecem também ter conseguido perpetuar sua

tradição durante o século XX (como demonstram estudos de Luis Nicolau Parés e

Sérgio Ferretti)15

Por fim, tal como nos mostra Josildete Consorte em seu estudo, os candomblés

mais tradicionais da nação Ketu da Bahia, descendentes do candomblé da Barroquinha

- Casa Branca do Engenho Velho - mantêm tradições sincréticas, como a lavação da

escadaria da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, por as considerarem legítimas. Bem

como parte de suas respeitadas ialorixás consideram-se candomblecistas e também

cristãs, o que indica uma necessária condição híbrida às mesmas enquanto sujeitos e às

religiões que praticam. Pois como evidencia Vagner Silva em seu estudo sobre os

candomblés contemporâneos na cidade de São Paulo, denominado “Orixás da

metrópole”

.

16

15 Parés, Luis Nicolau. Antes dos orixás. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ano 1, número 6, p.24 – 31, Dez., 2005. Ferretti, Sérgio. Querebentan de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. São Luis: EDUFMA, 1996.

, as nações de candomblé estabelecidas na referida cidade adaptaram seus

ritos, sua tradição religiosa, às necessidades da vida urbana moderna, indo desde

ressignificações dos domínios dos orixás, tal como Ogum passou a ser entendido como

orixá da tecnologia, à redução do período de recolhimento e dos procedimentos rituais

iniciáticos. Demonstrando a fluidez presente também na tradição religiosa

candomblecista, característica de todo e qualquer aspecto cultural tendo em vista a

necessária dinamicidade e impossibilidade de cristalização da cultura.

16 Silva, Vagner Gonçalves da. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.

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Portanto, torna-se evidente neste processo a tentativa de recuperação de um

passado que é, na verdade, construído pela articulação política da memória, visto que

implica o esquecimento de aspectos da circunstância histórica de formação

necessariamente híbrida do candomblé. Pois,

Admitir a relação de forças entre memória e esquecimento implica admitir o quanto essa grande abstração chamada “identidade” é ficcional (...). Não podemos falar de memória, articulando-a à identidade, sem inseri-la num afrontamento de forças e sem levarmos em conta que a memória é, antes de mais nada, um instrumento de poder (GONDAR, 2002, p.37).

A luta pela memória, por sua vez, evidencia uma situação de invenção da

tradição, compreendida por Bhabha (2005) da seguinte forma:

As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de uma tradição cultural já autenticada; elas são os signos da emergência da comunidade concebida como um projeto – ao mesmo tempo uma visão e uma construção – que leva alguém para “além” de si, para poder retornar, com um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente (BHABHA, 2005, p.22).

Tudo isto tem como consequência, em termos da identidade em questão, a

projeção da comunidade candomblecista não como remanescente de uma ancestralidade

ressignificada em seu espaço diaspórico, mas como importante instrumento de

preservação da cultura “africana” mediante a circunstância de sua valorização pela

sociedade brasileira após a década de 60. Nesse sentido, a memória é negociada,

adaptando-se à circunstância de supervalorização daquilo que os candomblecistas

entendem como tradição africana, em detrimento do que percebem enquanto

decorrências de uma ressignificação diaspórica.

É importante perceber a afirmação conquistada pelo candomblé por meio da

reafricanização. Pois tal como interpreta Prandi (1999), ser católico, a partir do referido

contexto, deixa de se uma exigência para que se seja brasileiro, visto que o candomblé

“se põe em pé de igualdade com o catolicismo”, “deixando de ser uma religião

subalterna” (1999, p.108). Entretanto, a legitimação da religião, “gestada pela nova

estética da classe média intelectualizada do Rio e de São Paulo dos anos 60 e 70”

(ibidem, p.105), estando fundamentada na valorização dos aspectos culturais de origem

africana, ao legitimar a representação de culto “original”, “verdadeiro” dos orixás

relativa ao candomblé, instituiu uma hierarquia de representações entre as religiões

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afro-brasileiras, na qual as religiões mais híbridas17

A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias, elas são disputadas. [...] A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença nunca são inocentes (SILVA, 2000, p. 81).

mantiveram-se relegadas aos

últimos patamares de valor. Isso por que

Portanto, a reafricanização do candomblé trouxe relativa autonomia e

visibilidade às religiões afro-brasileiras, circunscrevendo-as, todavia, em um novo

campo de relações de poder em que foram hierarquizadas sob o critério de preservação

da “tradição” religiosa africana, tendo como parâmetro o candomblé. De maneira que,

esta nova relação permeou mesmo as próprias nações da religião, as quais foram

submetidas ao que podemos entender como “ketucentrismo” ou hegemonia Ketu.18

A grande quantidade de pessoas socialmente reconhecidas como brancas que

compõem atualmente a comunidade candomblecista, parece demonstrar a efetiva

legitimação e abertura da religião frente à valorização do legado advindo da

ancestralidade africana, evidenciando ainda, como indica Stuart Hall, o descentramento

dos sujeitos no contexto do final do século XX – durante o que ele denomina

modernidade tardia. Sujeitos estes que, destituídos de um “sentido de si estável”

(HALL, 2002, p.9), possuem identidades fragmentadas, fluidas, articuladoras da

diferença que as compõem, deslocando no caso dos candomblés e sua reafricanização,

Pois, por ser considerada mais “pura”, a nação Keto-Nagô popularizou-se em todo o

país, sendo objeto de inúmeros estudos acadêmicos e tornando-se referência, em termos

de preservação, para as demais que, passaram a incorporar muitas de suas práticas

rituais.

17 Tais como a jurema, o catimbó, a pajelança, a macumba, o toré, entre outras. Cf. Prandi, J. Reginaldo e Souza, André Ricardo de (Orgs.). Encantaria Brasileira: o Livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. 18 Cf. Vagner G. Silva, Orixás da metrópole. Rio de Janeiro: Vozes, 1995

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por meio do deslizamento característico de toda construção lingüística (SILVA, 2002), a

identidade étnico-racial, em direção a outra identidade que articule primordialmente a

influência africana na formação cultual brasileira. Celebrando, para tanto, a diferença

como fonte de “diversidade, heterogeneidade e hibridismo” (WOODWARD, 2002,

p.50).

Entretanto, ainda segundo Hall, a “tendência à homogeneização” (2002, p.95)

advinda da globalização, pode por um lado valorizar as mesclas interculturais que

originam culturas híbridas e/ou traduzidas, enquanto por outro pode desencadear

“tentativas para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão, o

‘fechamento’ e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade” (ibidem, p.92). Nesse

sentido, aquilo que o autor denomina contradição entre Tradução e Tradição, pode

encontrar na micro-esfera do candomblé brasileiro um espaço de aplicação. Pois ainda

que fundamentalista em sua ritualística, a referida religião sustenta sua identidade

africanista tanto por meio do discurso de recusa ao sincretismo, quanto através da

celebração do hibridismo brasileiro em termos da influência africana sobre a cultura

nacional. Conferindo legitimidade à valorização do candomblé em função de sua

africanidade por meio de uma perspectiva de positivação da diferença cultural que, de

forma contraditória, oblitera as contribuições de outros povos, além daqueles africanos,

à formação da cultura religiosa brasileira.

Portanto, torna-se notável que a fluidez identitária, permitindo a articulação das

diferenças que compõem o sujeito, implica em escolhas políticas que se adaptam às

circunstâncias. Do mesmo modo, a referida celebração da diferença, no contexto do

movimento de reafricanização, sob a ótica do padrão ocidental instituído, permite

relativa positivação e inserção social às religiões afro-brasileiras. Contudo, ela atribui ao

candomblé, e mais especificamente ao candomblé de ketu, o status de mais importante

religião afro-brasileira, hierarquizando todas as demais religiões afro-brasileiras em

função da preservação da tradição religiosa africana. Fato que evidencia

despreocupação e ainda desvalorização quanto à preservação dos aspectos religiosos

advindos de outras matrizes culturais, tal como o legado cultural indígena, que

influenciou, sobremaneira, a constituição cultural brasileira. O que é reforçado pela

própria nomenclatura atribuída às religiões híbridas nacionais – o termo “afro-

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brasileiras” - que não se refere a qualquer hibridismo ou tradição cultural que não seja

propriamente a africana.

A perspectiva em questão, apresentada em bibliografia bastante diversificada e

aqui apresentada em partes, encontra reforço em entrevistas realizadas por

pesquisadores do projeto ABEREM19

ENTREVISTADOR: Deixa eu te fazer uma pergunta. Você citou essa questão dos montes, dos rios... Como é que fica isso aqui em Goiânia? Pra vocês por que os evangélicos estão indo hoje pros montes?

, entre os anos de 2006 e 2008, com líderes

candomblecistas cujos terreiros encontram-se situados na cidade de Goiânia e em sua

região metropolitana. Tais sacerdotes, ao refletirem acerca do estabelecimento do

candomblé no espaço em questão, argumentam a necessidade de a religião se organizar

por meio de associações e instituições representativas, para evitar charlatanismos e

resguardar a tradição. Ainda neste conjunto de entrevistas, os mesmos reivindicaram

frente aos pesquisadores maiores estudos acadêmicos acerca da religião, argumentando,

para tanto, em termos importância das características culturais africanas na “atual”

formação cultural brasileira, tendo em vista inclusive, a influência das referidas

características sobre a ritualística das religiões evangélicas. Assim como pode ser

percebido no seguinte excerto:

BABALORIXA20

TATA DE INQUICE

: Usando nossos termos, usando nossos ritos... [...]

21: Tipo assim, nós não temos antropólogos, nós não temos historiadores que assumam a bandeira do lado da religião e prove que é plágio! Quer dizer, estamos certos em todas as nossas ações... porque vida vem da vida e a vida é a natureza... Cada entidade nossa, cada Inquice ele cultua, ele é cultuado em um ponto da natureza. Esse ponto da natureza corresponde a nós22

BABALORIXÁ: Agora a questão dos rios... Tem que se entender também que todas as religiões têm... Os rios, o batismo...é sagrado pra eles desde... é instituído por João Batista, independente da

... [...]

19 ABEREM – África no Brasil: estudo de comunidades, religiosidades e territórios. Realizado pela Universidade Estadual de Goiás, entre os anos de 2006 e 2008, com financiamento do CNPq. 20 Sacerdote do candomblé de nação Keto, quem dirige o culto aos Orixás.

21 Sacerdote do candomblé de nação Angola, quem dirige o culto aos Inquices.

22 Tal afirmação se refere à necessária relação que o culto aos Orixás, Inquices e Voduns mantém com elementos da natureza que os simbolizam.

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influência do candomblé, o rito de se mergulhar no rio... Só que tem um simbolismo por trás... só que eles entendem ao pé da letra e...

TATA DE INQUICE: Não, não... agora eu vou contigo... eu vou contigo, é aonde que mostra a presença africanista o que eles faziam.23

Nesse sentido, torna-se evidente o discurso de defesa da originalidade da

ritualística africana e sua grande influência relativamente às demais religiões brasileiras.

Ao mesmo tempo, evidencia-se a ausência de referências sobre as religiões indígenas,

sua relação com o espaço natural e sua importante contribuição em relação às religiões

nacionais, demonstrando a desvalorização a que nos referimos anteriormente. Esta

situação reaparece em novo trecho da entrevista após se referirem ao “sincretismo” no

candomblé como descaracterização prejudicial à beleza peculiar ao culto de cada nação,

desserviço à luta ancestral pela manutenção dos elementos da tradição. Momento em

que os entrevistados analisam o “sincretismo” no âmbito da Umbanda – religião de

origem banto (PRANDI,1999) – cujas características fundamentais são o hibridismo,

abarcando principalmente influências indígenas, católicas e kardecistas

24

Não tá muito preocupado se você tem que girar, vestir branco, vestir saia... se você tem que sentar aqui no tronco e concentrar e ela manifestar... a espiritualidade não é nossa... É ao contrário... Não somos nós que ditamos como que as espiritualidades têm que se manifestar. É ao contrário tá? [...]

, e a

diversidade doutrinária e litúrgica – como “evolução”, argumentando ser desnecessária

a manutenção de um rigor ritualístico nesta religião em específico. Visto que, em sua

perspectiva, a espiritualidade

25

Desse modo, por meio da convicção na possibilidade de a espiritualidade alterar

suas formas de manifestação, os entrevistados explicitam ser a rigorosa preservação da

tradição ritual realizada pelo candomblé uma escolha identitária política.

23 Entrevista 001, Projeto ABEREM. Realizada em 04/06/2006 na Av. Regina, gleba G-2, vivenda Rosa Chá, Setor Samambaia. Goiânia-GO.

24 Doutrina espírita sistematizada por Allan Kardec (1803-1869), cuja teoria fundamental é a reencarnação dos espíritos com finalidade de evolução.

25 Entrevista 001, Projeto ABEREM. Realizada em 04/06/2006 na Av. Regina, gleba G-2, vivenda Rosa Chá, Setor Samambaia. Goiânia-GO.

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Por fim, no decorrer da realização do projeto, houve ainda a solicitação, por

parte de diferentes pais de santo, de que o candomblé fosse diferenciado das demais

religiões afro-brasileiras, sendo denominado como “religião de matriz africana” nos

textos acadêmicos em função de sua maior proximidade com a cultura africana. Essa

solicitação aponta para uma relação de atribuição da diferença, relativa às religiões

consideradas mais sincréticas, na qual se fundamenta a identidade candomblecista.

De maneira que, o discurso advindo do movimento de reafricanização é

entendido no âmbito da presente interpretação, como tentativa de normalização26

Certamente, o candomblé goiniense, bem como o candomblé brasileiro, não

enuncia o referido discurso em uníssono, havendo sacerdotes e sacerdotizas, mesmo de

nação Ketu, que tendo se iniciado na religião em uma outra nação hibridizam aspectos

de duas tradições, acreditando na complementaridade dos mesmos. Todavia, a

possibilidade de sincretismo entre o culto às divindades orixás, inquices e voduns, e

aquele dedicado às entidades espirituais como caboclos, pretos velhos e pombas giras

dos

aspectos de influência africana integrantes da formação cultural brasileira. Tentativa

que, sendo conduzida pela elite econômica e intelectual nacional, localizada durante os

anos 60 e 70 do século XX nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo (PRANDI,1999),

detentora do poder de instituir representações hierarquizando identidades e diferenças

(SILVA, 2002), atribui ao candomblé ressignificação que o posiciona como a mais

importante religião afro-brasileira, pois como nos mostra Rajagopalan que “é através da

representação que novas identidades são constantemente afirmadas e reivindicadas”

(2002, p.86).

27

26 “Normalizar significa eleger – arbitrariamente - uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas” (SILVA, 2000: 83). Entendida no presente texto enquanto maneira de transformar a identidade africanista do candomblé enquanto identidade situada dentro do padrão instituído pela normalidade.

,

é considerado inaceitável por grande parte dos sacerdotes candomblecistas. Ainda que

implicitamente, por meio do repetido esforço em afirmarem aos pesquisadores que não

o fazem nas casas que conduzem. Nesse sentido, é significativamente reconhecido entre

27 Entidades espirituais que correspondem a espíritos de pessoas desencarnadas. São incorporadas por médiuns em diversas religiões afro-brasileiras, tais como a Umbanda, para atenderem a consulentes.

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os líderes candomblecistas que os adeptos da candomblé sofrem menos preconceito que

adeptos da umbanda ou outras religiões afro-brasileiras, o que demonstra a diferença

entre a representação social do candomblé e das demais religiões mais híbridas, as quais

encontram maior dificuldade de legitimação e inserção.

De toda forma, a referida ressignificação permite relativa positivação da referida

religião frente à sociedade de padrões ocidentais, e ainda, certa visibilidade à

problemática étnico-racial existente no país. Contudo, influencia de maneira dúbia as

demais religiões afro-barsileiras, pois ao mesmo tempo em que lhes permite positivação

e inserção social, as posiciona em condição inferior em termos de africanidade. Agindo

então como subalternizadora tanto da influência indígena na constituição cultural

brasileira, quanto das religiões afro-brasileiras consideradas mais “sincréticas”.

Processo que cria uma celebração da diferença que supervaloriza a herança cultural

africana, relegando aos últimos patamares de importância, em sua hierarquia instituída,

a contribuição da herança cultural indígena na fusão entre as diferentes influências

culturais que formam o hibridismo brasileiro.

Contudo, é necessário perceber ainda, além da fluidez identitária caracetrística

dos sujeitos descentrados no contexto de uma modernidade tardia (HALLL, 2002) a

negociação por sobrevivência constantemente empreendida nos espaços pós-colonias

pelos sujeitos subalternizados, originários do encobrimento a africanos e ameríndios

promovido pelo colonizador ao reconhecê-los como extensão de um si-mesmo europeu,

negando-os em sua alteridade (DUSSEL, 2003). Negociação esta que cria, no âmbito do

terceiro espaço, a efervescência de diversas realidades advindas da justaposição

conflitiva entre saberes ocidentais, africanos e indígenas, caracterizando a

especificidade do entrelugar cultural. Espaço no qual, todavia, perpetuam-se as

estruturas de colonialidade do poder (MINOLO, 2003), as quais atuam mantendo a

hierarquização das diferentes formas de conhecimento sobre o parâmetro da

racionalidade, bem como alimentam as estruturas sociais eurocêntricas que

marginalizam, culturalmente, socialmente e espacialmente as latências de

transculturalidades que fogem ao padrão ocidental instituído.

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O que, por sua vez, leva tais sujeitos subalternos, como aqueles pertencentes à

culturas religiosas marginalzadas como o candomblé, a uma agency28

Assim sendo, a reflexão acerca da dinâmica identitária candomblecistas nos leva

ao que Glissant (1999) concebeu como pensamento arquipélago, caracterizado pela

heterogeneidade do rizoma. Em que a conciliação entre diversas matrizes culturais,

resultando em uma série de manifestações híbridas, se faz por meio do agenciamento

das identidades através de discursos deslizantes, os quais constituem estratégias de

resistência da cultura do outro mediante à necessidade de inserção em sociedades

ocidentais. “Para Glissant, as identidades são formadas pela relação entre indivíduos,

grupos sociais e étnicos e entre discursos e representações” definindo aquilo que

entende como Poética das Relações, por meio da qual as identidades são formadas

performativamente, “na relação ou no confronto do eu (self) com a alteridade”. Nesse

sentido, os indivíduos reagem continuamente à forma como são representados nos

sistemas culturais em que se inserem, de maneira que suas “identidades são formadas

nos diversos papéis sociais que os indivíduos são chamados a exercer no convívio social

e pelas relações de poder e de subalternidade que se estabelecem nesse contexto”

(RABELO, 2005: 17-18)

identitária. Esta

que lhes permite, por meio da identificação de um contexto cultural formado pelo

tráfico de escravos África-Américas, denominado por Gilroy como “atlântico negro”

(2001), a afirmação dos aspectos de africanidade enquanto estratégia de resistência.

Galgando por meio da incorporação relativa de aspectos da cultura ocidental, maior

aceitação dos elementos culturais advindos da influência africana. Os quais, ainda que

híbridos, ressignificados, conseguem permanecer vivos.

Por fim, torna-se importante notar, que a hierarquização a que se referiu no

presente trabalho pode indicar a existência de um processo de apropriação para o qual

alerta Zilá Bernd, pois

Assim como o conceito de mestiçagem foi uma cilada da modernidade, pois sob aparência da aceitação do múltiplo, encobriu na verdade um projeto racista que previa a mistura das raças, desde que – através do branqueamento progressivo da população –

28 MATORY, Lorand. Jeje: repensando nações e transnacionalismo. Mana, Rio de Janeiro, vol.5, p.57-80,

1999.

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acabassem predominando valores brancos, talvez também o conceito de hibridismo corresponda a mais uma utopia (da pós-modernidade), que encobriria um certo imperialismo cultural prestes a apropriar-se de elementos de culturas marginalizadas para reutilizá-las a partir dos paradigmas de aceitabilidade das culturas hegemônicas. Tratar-se-ia então apenas de um processo de glamourização de objetos culturais originários da cultura popular ou de massas para inseri-los em uma outra esfera de consumo, a da cultura de elite (BERND, 2004, p.100-101).

Entretanto, também pode apontar, em sentido completamente oposto, para o que

nos diz Bhabha.

A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição (BHABHA, 2005, p.22-23).

Perspectiva segundo qual a identidade africanista forjada pelo candomblé

representaria um processo de transição em que se promoveria a autorização progressiva

de todo tipo de hibridismo religioso nacional.

Assim sendo, mediante a impossibilidade de se concluir, no presente momento,

em que processo maior se inscreve o movimento de reafricanização do candomblé

goiano e brasileiro, novos desafios interpretativos, relativos à dinâmica do hibridismo

cultural e à articulação fluida da diferença no âmbito identitário das religiões afro-

brasileiras, novos desafios interpretativos para futuros trabalhos de maior amplitude

encontram-se lançados.

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A DEMONIZAÇÃO DOS CULTOS AFRICANOS: DA ÁFRICA PARA O BRASIL COLONIAL (1500-1800)

Léo Carrer Nogueira

Especialista em História da África pela UEG Mestre em História pela UFG

[email protected]

Introdução

Nos últimos anos, o crescimento de cultos afro-brasileiros tem sido cada vez

mais notado em nossa sociedade. As religiões de matriz africanas vêm ganhando

visibilidade principalmente pelo fato de terem se popularizado entre as classes mais

altas. Aos poucos, estas religiões vêm deixando pra trás um estado marginal para

conquistarem seu lugar entre as classes média e alta. Tal crescimento preocupa alguns

segmentos religiosos, especialmente as igrejas neopentecostais, que herdaram da Igreja

Católica o papel de inquisidores, e insistem cada vez mais numa discriminação dos

cultos de origem afro.

A Umbanda é o principal alvo destas Igrejas. Entre outras coisas, os praticantes

desta religião são acusados de feiticeiros e adoradores do demônio, dando continuidade

a séculos e séculos de perseguição por parte dos segmentos cristão-católicos. Em geral,

os rituais de incorporação são vistos por estas igrejas como possessão demoníaca, e o

fato de alguns centros trabalharem com certos tipos de entidades só agravam e

contribuem para uma visão distorcida e demonizada destes cultos. Refiro-me aos

trabalhos, comuns em vários centros, da Quimbanda, linha de Umbanda que trabalha

com Exus e Pombagiras, personagens, aliás, bastante conhecidos do imaginário popular.

Tais entidades correspondem, no imaginário cristão, ao ideal da personificação do mal,

e se enquadram bem na imagem que tais Igrejas fazem do demônio. Para entendermos,

portanto, a relação que se faz entre o demônio cristão e a figura do Exu utilizada na

Umbanda, é necessário antes analisarmos um pouco do que representa o demônio para o

imaginário cristão.

Neste artigo, resultado de pesquisas realizadas para conclusão de minha

especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, pretendo fazer uma

abordagem de longa duração, utilizando a história do imaginário proposta por autores

como Le Goff e Braudel de como a divindade do Exu africano sofreu uma

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ressignificação no contato com os missionários europeus, e de como esta

ressignificação, resultado da identificação de Exu com o diabo cristão chegou ao Brasil

através do Atlântico e aqui se propagou até os dias de hoje.

A idéia do demônio surgiu antes mesmo da própria Igreja Cristã, e sempre foi

essencial dentro de sua teologia. Segundo Carlos Roberto Nogueira,

era necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do mal. Era

preciso que fosse visto, tateado, tocado, para que o bem surgisse como a graça

suprema – o belo e o divino, em oposição ao horrível e demoníaco

(NOGUEIRA, 2002, p. 103).

Assim percebemos que o demônio sempre teve lugar de destaque no imaginário

cristão. Sem ele, a figura do Cristo não seria tão forte, e a graça oferecida àqueles que

seguem as palavras de Cristo não seria tão suprema. Para que a moral cristã tivesse

sentido, era preciso que se oferecesse a seus súditos algo a que temer. Não existe o bem

sem a idéia do mal.

A necessidade do diabo nasce, portanto, da necessidade do mal e isto fica claro

nas páginas do Novo Testamento. A iminência do mal é que pode nos fazer

reagir em busca do bem (LAPA, 1987, p. 43).

O cristianismo acaba sendo, então, infestado por uma avalanche de demônios e

espíritos malfazejos. Esta consolidação do demônio ocorre por vários anos e permeia

toda a história do cristianismo, se iniciando com a tradição hebraica, quando os hebreus

começam a associar os deuses dos povos vizinhos a espíritos malfazejos. Conforme nos

afirma Nogueira,

a principio, os primitivos hebreus não tinham necessidade de corporificar uma

entidade maligna. (...) Na opinião que tinham os hebreus dos deuses

estrangeiros (...), assimilavam estes deuses aos espíritos das trevas (...) e todos

os deuses potencialmente adversários passaram a fazer parte integrante da corte

demoníaca (NOGUEIRA, 2002, p. 13-14).

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Para os hebreus, Yaweh representava um Deus implacável, que punia e castigava

a todos que cometessem faltas. Portanto, para eles, a idéia de um ser que personificasse

o mal era completamente estranha e inútil. Posteriormente, com o advento do

cristianismo, Deus passa a ser concebido como o bem supremo, ser superior de infinita

bondade. Mas, se este Deus é todo bondade, e o mundo é obra sua, como explicar a

existência de coisas maléficas em sua criação? Era preciso uma explicação para o mal,

já que este não podia ser atribuído a Deus. É então que a figura do demônio ganha

forças dentro da tradição cristã. Se na tradição hebraica a figura demoníaca era

associada apenas aos deuses dos povos inimigos, agora ele ganha autonomia dentro da

teologia cristã. A partir daí,

o universo inteiro passa a ser pintado como dividido entre dois reinos, o de

Cristo e o do Diabo. (...) Dessa polarização resulta que tudo o que afasta os

homens de Deus é uma manifestação do Diabo. (...) A religião cristã, assumida

como a verdadeira, exclui e assimila ao Demônio todos os outros credos

(NOGUEIRA, 2002, p. 26).

A partir desta autonomia, a figura de satanás ganhará força ao longo de toda a

Idade Média, época em que a Igreja busca se afirmar enquanto instituição do poder de

Deus na Terra, e utiliza a figura do demônio para se fortalecer. O diabo estava presente

em tudo e em todos. Tudo o que desviava os bons cristãos do caminho do bem, que

eram os caminhos da Igreja, era atribuído ao demônio. A Igreja cria artifícios diversos

para identificar, descobrir e expulsar demônios, como podemos citar os tribunais da

Inquisição e os exorcismos.

Para que o fortalecimento do poder da Igreja fosse efetivo, era necessário não só

a figura do demônio a tentar os homens para o caminho das trevas, mas também que

este demônio fosse associado aos outros cultos, credos e práticas religiosas existentes na

época. Assim, as práticas mágicas das comunidades rurais européias, por exemplo, com

suas ervas e seus sabás, são logo identificados como demoníacos, e seus praticantes

perseguidos e condenados às fogueiras da inquisição.

Demonização dos Cultos Africanos

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É sob este clima de julgamento e desconfiança propagado pela Inquisição,

quando se tenta expurgar a magia do seio da sociedade, que a Igreja se encontra com as

práticas religiosas africanas que se espalhavam pelo Atlântico Negro, no período do

tráfico de escravos. Em geral, os negros africanos provinham de uma tradição religiosa

totalmente diferente do imaginário europeu que a Igreja se esforçava por estabelecer nas

colônias européias nas Américas. Tal tradição se ligava a crenças e práticas mágicas,

que buscavam compreender e interferir neste mundo a partir de um mundo sobrenatural,

composto por deuses e ancestrais – espíritos daqueles que já morreram.

Na maioria das religiões tradicionais africanas1

, apesar de existirem muitas e das

peculiaridades de cada uma, o culto aos ancestrais era bastante comum. Acreditavam

que a pessoa, ao morrer, continuava a viver em outro mundo, paralelo ao mundo visível,

e, portanto continuava a fazer parte do clã, mas sob uma forma divinizada. Eram-lhe

prestados cultos e oferendas como forma de pedir sua proteção aos vivos, e podiam até

mesmo entrar em contato com eles através de rituais em que os sacerdotes, pessoas

especializadas neste tipo de rituais, entravam em transe e incorporavam o espírito de

deuses e antepassados, variando de um povo para outro (PIERUCCI, 2000). Opoku nos

relata um pouco sobre a religião tradicional africana:

Deus não se assemelhava aos seres humanos e era totalmente superior à sua

criação, mas, ao mesmo tempo, envolvia-se nos negócios dos homens,

sustentando a criação e defendendo a ordem moral. (...) Abaixo de Deus

estavam os espíritos dos ancestrais, sempre tratados com reverência e temor;

depois, vinham as deidades (...), que se acreditava terem o poder de

recompensar os seres humanos ou de castigá-los com a má sorte, doenças e até a

morte. As divindades tinham seus cultos, sacerdotes e altares (OPOKU, 1985, p.

520).

Verificamos assim que os deuses faziam parte da vida cotidiana destes povos,

que se ligavam a eles de forma muito mais efetiva do que na tradição cristã. Esta ligação

estava assentada na crença da comunicação entre os homens e as divindades através de

cultos diversos, como a interpretação de sinais, em que se jogavam objetos para o alto e

1 A discussão sobre as “religiões tradicionais africanas” pode ser encontrada no capítulo 6 da obra de Kwame Appiah, Na Casa de Meu Pai. Para ele, o termo tradicional significa simplesmente as religiões africanas antes da colonização, e em contraposição ao pensamento religioso ocidental-moderno-cristão.

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o modo como caiam podia ser lido como uma resposta dos deuses; ou através da própria

possessão, ato em que um sacerdote entrava em transe e era possuído por um espírito

ancestral ou uma divindade, que se comunicava e respondia às perguntas dos outros

participantes do culto (PIERUCCI, 2000).

À medida que se intensificam os contatos entre europeus e africanos, a partir do

século XV, a imagem dos cultos africanos no imaginário europeu vai se constituindo em

uma imagem de barbárie e selvageria. As religiosidades africanas são retratadas, durante

o período medieval, como sendo “práticas de bruxaria e ações demoníacas” (OLIVA,

2005, p. 14). Vemos mais uma vez a associação do “outro” à figura do demônio cristão.

Neste contexto, vale ressaltar as diversas teorias que foram desenvolvidas neste período

para explicar a inferioridade do negro africano, e sua associação à imagem diabólica.

Entre elas podemos destacar a da passagem bíblica dos descendentes de Cam, que

castigado por flagrar seu pai Noé nu e embriagado, teve sua descendência condenada a

servir aos seus irmãos (OLIVA, 2005).

A África seria, portanto, a região habitada pelos descendentes de Cam, que

deveriam servir aos outros homens. Esta é apenas uma, das várias idéias existentes no

imaginário medieval para justificar a inferioridade e a escravidão dos povos africanos.

Estas idéias vão ganhando força ao longo dos séculos XVII e XVIII, e ganham um

aliado científico no século XIX.

Aos preconceitos elaborados nos séculos anteriores articulam-se, no século

XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo Social e do

Determinismo Racial, que alocaram os africanos nos últimos degraus da

evolução das “raças” humanas. (OLIVA, 2005, p. 15).

A partir do século XIX, portanto, a idéia bíblica será ratificada pela ciência que,

apoiada nas teorias evolucionistas, encaixa o negro no último degrau da escala evolutiva

das raças humanas. Esta escala é bem representada no sistema classificatório de Linné,

de 1778, em que o Homo Sapiens é classificado em cinco tipos, a saber, o homem

selvagem, o Americano, o Europeu, o Asiático e o Africano (HERNANDEZ, 2005). A

cada tipo corresponderiam características biológicas inatas, não só físicas como também

psicológicas. Podemos perceber a diferença entre as espécies ao analisar os perfis do

europeu e do africano:

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c) Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado;

olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas.

Governado por leis.

e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele

acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente.

Unta-se com gordura. Governado pelo capricho (BURKE apud HERNANDEZ,

2005, p. 19).

A diferença entre o tipo europeu e o africano fica explícito nas imagens

produzidas pelo cientificismo racialista no séc. XIX por autores como Linné e Gobineu,

e utilizados por Hegel na análise do continente africano. Endossando esta imagem do

africano como atrasado e selvagem este autor afirma que a África

não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na

barbárie e selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. (...) Nesta

parte principal da África, não pode haver história. (HEGEL apud

HERNANDEZ, 2005, p. 20).

Fica estabelecida assim a gama de ideologias que justifica e endossa a imagem

de atraso do continente africano e dos povos que ali vivem. Tal justificação se dá tanto

no campo religioso quanto científico, e vai aos poucos influenciando o discurso

político-ideológico europeu que tenta legitimar o tráfico atlântico de escravos

(HERNANDEZ, 2005). Assim os europeus apareciam “como missionários que

deveriam se sacrificar para levar a civilização aos africanos bárbaros” (OLIVA, 2005, p.

17).

Neste contexto, os rituais religiosos africanos ganham contornos diabólicos, e

passam a ser perseguidos em nome da fé cristã. Mas dentre os vários grupos africanos e

suas diferentes religiosidades, interessa-nos especialmente um grupo existente na região

ocidental da África: os povos iorubás2

2 Tal denominação se refere aos povos da região conhecida como Iorubalândia. Anderson Oliva define a Iorubalândia como sendo a “área que corresponde a uma parte da atual Nigéria – África Ocidental – que se estende de Lagos para o norte, até o rio Níger (Oyá) e, do Benin para leste, até a cidade de Benin. Não possui fronteiras físicas e políticas determinadas e nem uma organização centralizada. Compreende a existência de vários reinos, como os de Egbá, Ketu, Ibeju, Ijexá e Owó que têm seus próprios governantes. Ao mesmo tempo, esses reinos, por questões de legitimação espiritual, ligação com a

. Encontramos na religiosidade destes povos um

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panteão de divindades diversas, conhecidos como Orixás, divindades ligadas a

fenômenos da natureza, como rios, oceanos, matas, cachoeiras, e também a qualidades

humanas, como força, maternidade, amor, coragem, etc.

Entre estas divindades, recebe papel de destaque o orixá Exu, responsável pela

intermediação entre o mundo dos homens e dos deuses. O Prof. Anderson Oliva destaca

algumas das características atribuídas a Exu na tradição iorubá:

Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal de Exu

é de representar a oposição à criação, sendo o infrator das regras e da ordem.

(...) Incumbido por Olodumaré3

da tarefa de mudar o que está parado, Exu

recebe o Adô, uma cabaça na qual se encontra a força da transformação. (...)

Exu destrói para recriar. É o principio da desordem, inseparável da estrutura da

ordem; um depende do outro. (...) Uma outra característica de Exu, que se alia à

idéia da modificação e da recriação da ordem, é seu aspecto fálico: (...) ele é o

senhor dos cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetra e liga os mundos

que formam o universo religioso iorubá. (OLIVA, 2005, p. 19).

O orixá Exu, na cosmologia iorubá, possui funções bem definidas. Por ser o

mensageiro e responsável pela ligação entre os homens e os demais Orixás, é a ele que

se destina a primeira oferenda, antes de todos os outros orixás, pois, sem ele, não há a

comunicação com os outros, é como se eles não escutassem o chamado dos homens.

(OLIVA, 2005).

Sua importância era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas as

regiões da Iorubalândia, marcada por uma grande diversidade de cultos e orixás

distintos. Além disto, Exu se ligava também ao comércio e as atividades econômicas,

sendo representado sempre com cauris e búzios, consideradas importantes moedas de

troca na África Ocidental.

“Em grande medida, essas características de Exu o tornaram para os ocidentais,

um orixá contraditório e de difícil definição” (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo ele

será interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificação do mal, assumindo,

assim, toda a carga simbólica construída em torno da figura do diabo cristão.

mitologia ou heranças de certos períodos históricos nos quais alguns reinos estendiam suas influências sobre outros, mantém vínculos mais próximos ou distantes, mas sempre existentes, com duas cidades nos aspectos político e religioso mais importantes da região: Oyó e Ifé” (OLIVA, 2005, Nota 11, p. 32) 3 Deus supremo e criador dos Orixás. Não é venerado entre os iorubás (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32).

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Observamos nos relatos de vários viajantes esta associação, de forma direta ou indireta.

É o caso, por exemplo, dos irmãos Lander, que pesquisaram o rio Níger no início do

séc. XIX, e lá encontraram um sacerdote de Exu, deixando anotado suas impressões

sobre o mesmo, onde percebemos a maneira pejorativa como encaravam as religiões dos

africanos. (OLIVA, 2005). Nestes relatos podemos perceber também que

o cristianismo não era a única religião monoteísta a interpretar de forma

negativa as práticas religiosas dos orixás. Unia-se a ele, nesse mister, o

Islamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na África Ocidental, de

fato transparece a idéia de que também os muçulmanos relacionavam o orixá

com o princípio da maldade e da ação demoníaca. (DOPAMU, 1990, p. 34 apud

OLIVA, 2005, p. 22).

Outros estudiosos que voltaram sua atenção para a figura do orixá Exu-Elegba4

De uma forma geral, o que eles fazem é interpretar a religiosidade africana dos

orixás sob a ótica cristã, e assim aplicar conceitos e julgamentos que não lhe cabem.

Baudin, por exemplo, interpreta que “a necessidade ritualística de os iorubás ofertarem

os primeiros sacrifícios sempre a Exu” decorre do “medo gerado pelo caráter perverso e

ameaçador do orixá, em uma óbvia aproximação com a figura do Diabo na tradição

judaico-cristã” (BAUDIN, 1884 apud OLIVA, 2005, p. 24).

demonstram fortes traços do pensamento cristão, aliados às teorias racialistas e

evolucionistas do século XIX. Podemos citar como exemplo dois padres católicos, um

europeu e um africano, que demonstram este tipo de pensamento. Nos referimos ao

reverendo Noel Baudin e o prof. da Universidade de Ilorin, na Nigéria, Ade Dopamu.

Ambos escreveram trabalhos sobre as religiões dos orixás, onde deixam transparecer a

forte influência do pensamento cristão na análise dos orixás, especialmente de Exu.

Já Dopamu realça apenas alguns aspectos desta entidade, como o fato de ele ser

o agente do desequilíbrio e da desordem, e sua personalidade libidinosa, contraventora e

perversa, que, para ele, são sintomas de sua maldade. Exu, inserido num mundo

maniqueísta, onde temos dois pólos distintos – o bem e o mal – passa a ocupar então o

lado maligno, e passa a representar a personificação da maldade. (DOPAMU, 1990

apud OLIVA, 2005, p. 25). 4 Légba – vodum cultuado no Benin e no Togo, que guarda grande similitude funcional e iconográfica com Exu (ver OLIVA, 2005, Nota 15, p. 33).

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Podemos concluir então que

nos trabalhos dos sacerdotes, de forma geral, houve uma transposição das

mentalidades e concepções religiosas ocidentais para o entendimento das

cosmologias africanas. Como no imaginário cristão todas as formas de mal e de

influências negativas na vida das pessoas e na ordem do mundo são associadas

ao Diabo, suas análises sobre a cosmologia dos orixás passaram a estabelecer a

mesma relação. Percebe-se, portanto, que a relação entre Exu e o Diabo foi uma

criação de sacerdotes cristãos ou muçulmanos, seguida e defendida por seus

fiéis. (OLIVA, 2005, p. 26).

Dinâmica Cultural5

no Brasil Colonial

No Brasil, esta imagem demoníaca dos cultos africanos ganhará contornos mais

precisos ao longo de todo o período colonial. Ao ser trazido pra cá como escravo, o

negro africano trará também suas crenças e rituais, enfim, sua religiosidade. Mesmo

com todas as tentativas por parte da Igreja Católica, através da atuação da Inquisição,

em reprimir estes cultos, eles acabam por proliferar nas senzalas e becos das cidades,

praticadas inicialmente por escravos africanos, e procuradas por pessoas de todas as

classes sociais.

Como a grande maioria dos escravos que eram trazidos para o Brasil provinham

da região da Iorubalândia, o culto às divindades dos grupos desta região (como oyós,

ijexás, efans, ketos) acabaram predominando nos primeiros templos construídos na

Bahia com o objetivo de cultuar as divindades iorubás, como os Orixás e Voduns

(SILVEIRA, 2006, p. 22). Algumas destas divindades ganharão destaque dentro das

primeiras casas de Calundus surgidas na Bahia durante o século XVIII, como Oxalá,

Ogum, Xangô, Iemanjá e, é claro, Exu.

Este último já contava com prestígio mesmo antes de vir para o Brasil, sendo seu

culto estendido a praticamente todos os grupos africanos presentes na Iorubalândia.

Segundo Robert Pelton,

5 Sobre o conceito de Dinâmica Cultural, Sá Júnior esclarece que “a sociedade vive essa dinâmica cultural (HALL, 1997; GEERTZ, 1973; BHABHA, 1998) e através do uso da sua utensilagem mental ressignificam e se apropriam desse universo cultural disponível de acordo com as suas percepções e interesses”. (SÁ JÚNIOR, 2004, p. 52).

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o tradicional número de deuses yoruba (orixás) é de 401, porém Exu,

juntamente com Ifá, são as divindades universalmente reconhecidas e para as

quais todos os fiéis yoruba podem recorrer, independentemente de sua filiação a

outro culto. (PELTON, 1980, p. 128 apud OLIVA, 2005, p. 20).

Os primeiros terreiros surgidos no Brasil com o intuito de cultuar estes orixás

surgiram na Bahia. Fundados por africanos, a característica fundamental destes era unir,

em um mesmo terreiro, diferentes orixás de diferentes regiões. No Terreiro da

Barroquinha, por exemplo, um dos primeiros a surgir no Brasil, foram colocados

quatro pilares centrais representando os quatro cantos do país ioruba, cada pilar

dedicado a um dos regentes da casa, ao Oxossi de Ketu, ao Xangô de Oyó, à

Oxum de Ijexá e ao Oxalá de Efan. (SILVEIRA, 2005, p. 23).

Mas paralelamente ao desenvolvimento deste tipo de culto, surgia nas senzalas a

figura do “feiticeiro negro”. João José Reis nos explica melhor do que se tratavam estes

feiticeiros:

(Eram) adivinhos e curandeiros (que) atendiam em casa, sem participar da

hierarquia dos terreiros de Candomblé. Alguns atraiam centenas de consulentes,

mesmo de fora da Bahia, até mesmo da África. (REIS, 2005, p. 25).

Renato Silveira complementa que:

Além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas,

cataplasmas e ungüentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da

colônia; eram também capazes de curar doenças mais graves como a

tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional e

participando inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em

meados do século XIX (SILVEIRA, 2005, p. 19).

Estes personagens, conhecidos como calunduzeiros, macumbeiros, curandeiros,

feiticeiros, e diversos outros nomes, quase sempre de cunho pejorativo, aos poucos vão

se proliferando por toda a colônia, perseguidos e ao mesmo tempo procurados, inclusive

por pessoas das classes mais altas da sociedade. Sua associação com o demônio era

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constante por parte dos segmentos católicos, e a ação da Inquisição, mesmo que esparsa,

legitimava esta imagem de cultuadores do demônio.

No Brasil Colonial, porém, a imagem deste demônio vai aos poucos ganhando

contornos menos hostis. A imagem que é passada pela Igreja Católica, de um ser dotado

de uma malignidade intrínseca e indiscutível, nas crenças e rituais das Religiões Afro-

brasileiras e do Catolicismo Popular acaba se tornando um agente transgressor da

ordem, que pode ser curtido ou temido, invocado ou esconjurado, dependendo apenas

do interesse daquele que se manifesta (LAPA, 1987).

Assim é que o diabo se transforma em uma espécie de divindade, e passa a ser

invocado com o objetivo de atender a diferentes pedidos. Esta invocação ao diabo busca

atender a uma necessidade imediata, material, na qual a pessoa busca resultados mais

eficientes do que aqueles obtidos através da adoração ou veneração aos deuses e santos

católicos. O Diabo, ao contrário, oferece a oportunidade de se obter benefícios

diretamente, mediante uma contrapartida, e isto assegura sua eficácia. Ele é, assim,

uma entidade maligna (...) que na verdade presta relevantes serviços no

atendimento de dificuldades prosaicas ou transcendentais, satisfazendo desejos,

atraindo os amigos ou repelindo os inimigos. Quanto à sua eficácia, é

geralmente inquestionável (LAPA, 1987, p. 40).

No imaginário popular, a presença do diabo se dá de forma muito mais direta,

desligando-o de uma associação rígida ao mal, e colocando-o como um agente que

oferece aos homens a possibilidade de atingir seus mais íntimos desejos:

A vivência popular do diabo não o associa propriamente a uma instância

metafísica do mal, salvaguardando-o como representante e advogado de bens e

prazeres pessoais e imediatos que, por razões o mais das vezes

incompreendidas, são proibidos em função de interesses alheios aos do

indivíduo (BAIRRÃO, 2002, p. 60).

Esta imagem relativizada do mal e a constante recorrência ao diabo, como um

agente negociador, está intimamente ligada à ação da Inquisição:

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Há um cruzamento dialético entre a prática exconjuratória e punitiva da

Inquisição e o apelamento – consciente ou não – dos agentes para negociar com

o diabo. Em ambos os extremos, o diabo se faz necessário e portanto tem

utilidade (LAPA, 1987, p. 43).

Inerente a este processo de reconfiguração do diabo, analisado aqui

especialmente em terras brasileiras, está a relativização dos conceitos de bem e mal.

Enquanto que para a Igreja Católica estes extremos são bem definidos e personificados

nas idéias de Deus como o bem absoluto e o Diabo como o mal absoluto, no imaginário

das populações do Brasil Colonial este maniqueísmo não existe de forma tão extrema.

Ao realizar algo em benefício próprio, a pessoa está fazendo um bem, ainda que para

isto tenha que causar o prejuízo de outrem. Assim é que o “Diabo (...) não se resume em

ser o mal, pois o que pode ser o mal para um será o bem para outro” (LAPA, 1987, p.

41).

A mensagem católica da época vêm acompanhada de um juízo de valor que

define bem os valores do bem e do mal, e vão além da própria teologia católica. No caso

colonial, não se trata apenas de resumir as idéias de bem e mal ao Deus e ao Diabo. É

necessário também associar a cada um destes personagens um estilo de vida

identificável, um modelo. Assim, à figura de Deus coube a do homem civilizado,

europeu, branco, cristão-católico, enquanto que ao Diabo restou a figura do atraso, da

barbárie, do selvagem, ou seja, das raças consideradas inferiores, o índio, o branco, o

mestiço, e conseqüentemente suas práticas demoníacas.

A relação dominador-dominado, vencedor-vencido é que estabelece o que é o

bem, e o que é o mal, quem é Deus e quem é o Diabo. Portanto, é perfeitamente possível

que

os juízos de valor que identificam o bem e o mal (...) tenham sido gerados pelos

dominadores que apontando, condenando e eliminando o que podia ameaçar-

lhes o bem-estar, (...) identificavam o mal que estava inerente ao outro, o

dominado (LAPA, 1987, p. 41).

A contrapartida deste processo é que gera a negociação recorrente que se faz

com o diabo na sociedade colonial, já que, “para o vencido, o mal está no vencedor”

(LAPA, 1987, p. 41). Assim,

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esse ser (o diabo) pode assumir ser (...) a resposta que o imaginário dá – do

ponto de vista dos oprimidos – a partir da vontade individual e/ou coletiva, para

aliviar suas tensões, violências, conflitos, satisfazendo necessidades físicas e

mentais. (LAPA, 1987, p. 43).

É assim que ele vai ganhando espaço na sociedade, invocado ou não, mas

sempre presente, circulando pelas casas e senzalas. Pode ser associado a animais ou

personificar-se, muitas vezes associado a uma natureza sexual, como “um negro ou

negrinho capaz de proezas sexuais, mas também uma dama generosa que satisfaz o

deslumbrado amante” (LAPA, 1987, p. 50). Mas na maioria das vezes é realçado seu

caráter estético horripilante e seus defeitos físicos, como podemos notar nos apelidos

que recebe (bicho-preto, porco-sujo, coxo, rabudo, mal-encarado, cão-sarnento, etc.)

Podemos concluir que

por trás dessas aparências horripilantes ou por causa delas mesmo, esconde-se

uma entidade que dá força aos desesperançados e carentes, aos céticos e

desconfiados, sem qualquer tipo de discriminação (LAPA, 1987, p. 42).

É possível que esta ressignificação do diabo cristão no Brasil Colônia tenha sido

resultado da aproximação deste Diabo com o Exu africano, já que, dentro da lógica da

dinâmica cultural, as diferentes religiosidades presentes no Brasil colonial se

influenciam mutuamente. Não foi somente a visão católica que penetrou no pensamento

das religiosidades Afro-brasileiras, mas o inverso também é verdadeiro. Esta influência

das visões africanas e indígenas no catolicismo é que deu origem às práticas presentes

no catolicismo popular. Assim, a correspondência entre Exu e o Demônio fez com que,

não só o primeiro ganhasse características do segundo, mas que o Diabo também fosse

aos poucos ganhando características do Orixá Exu.

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REFLEXÕES SOBRE A INTERAÇÃO E INTEGRAÇÃO ENTRE OS VALORES RELIGIOSOS ORIENTAIS E OCIDENTAIS1

Dr. André Luiz Caes

Universidade Estadual de Goiás [email protected]

A descoberta da riqueza cultural do mundo oriental pelo ocidente cristão

remonta a um passado bastante distante, porém, o esforço para a compreensão de seus

mitos, símbolos, rituais, divindades e ensinamentos espirituais, por meio de uma

aproximação isenta de preconceitos ocorreu apenas recentemente, já no século XX.

Segundo Eliade (1999): Esses documentos humanos haviam sido estudados anteriormente com o desinteresse e a indiferença que os naturalistas do século XIX dedicavam ao estudo dos insetos. Agora, começa-se a perceber que esses documentos exprimem situações humanas exemplares, que fazem parte integrante da história do espírito. Ora, o meio apropriado para se apreender o sentido de uma situação humana exemplar não é a “objetividade” do naturalista, mas a simpatia inteligente do exegeta, do intérprete. (p. 4)

O encontro entre esses dois fascinantes universos tem produzido, no curso

da história, amplas implicações, tanto políticas e econômicas como culturais, cujos

desdobramentos, na forma de uma crescente interpenetração entre as respectivas visões

de mundo, vem sendo reelaborados atualmente, agora sob o impacto do processo de

formação da civilização global.

Abordagens realizadas por estudiosos de diversas áreas têm mostrado as

múltiplas formas como essa interpenetração tem ocorrido. Edward Said (1990), por

exemplo, mostrou importantes aspectos desse processo ao desvendar o que chamou de

“orientalismo”, isto é, o campo de conhecimento e o instrumental que foram

constituídos pelos ocidentais diante do desafio de compreender, mas, também, dominar,

o mundo oriental. Disciplinas acadêmicas, procedimentos diplomáticos, teorias

explicativas sobre o oriente, sua cultura e seu povo foram elaborados tendo em vista os

diversos tipos de relação estabelecidos, os muitos interesses que estavam em jogo e os

vários níveis de estranhamento vivenciados pelos que participaram desse processo.

1 Este texto faz parte do trabalho “Sathya Sai Baba e Organização Sri Sathya Sai: elementos para a compreensão de uma corrente do Hinduísmo no contexto dos movimentos religiosos de alcance global”, apresentado ao Programa de Pós Graduação da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Campus de Assis (SP), como conclusão do Pós Doutorado.

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Numa outra perspectiva, a jornalista Gita Mehta, no livro “Carma Cola: o

marketing do Oriente místico” (1999), mostra na visão de alguém pertencente à cultura

indiana, os aspectos cômicos, irônicos, ridículos e, às vezes, trágicos, da busca pelos

gurus e ensinamentos espirituais da Índia, empreendida pelos ocidentais.

Os trabalhos citados são exemplos das amplas possibilidades de

interpretação do encontro entre o Ocidente e o Oriente existente na literatura seja ela

científica, jornalística ou de ficção. Para o nosso objetivo específico, procuraremos nos

aproximar desse tema a partir de outra perspectiva: as explicações e reflexões

provenientes da teologia e das demais ciências que estudam as religiões e que abordam

a interação e integração entre os valores e ensinamentos religiosos ocidentais e

orientais, mais especificamente entre o Cristianismo e o Hinduísmo.

Escolhemos dar atenção privilegiada, mas não exclusiva, às reflexões

teológicas, com o intuito de perceber, nesse campo, alguns dos aspectos essenciais do

processo vivido no Ocidente, de abertura e valorização da experiência religiosa oriental.

As indagações e problematizações que foram realizadas, nas últimas décadas, pelos

estudiosos desse tema, a nosso ver acompanham de perto as principais circunstâncias

que marcaram esse processo – polêmicas, transformações conceituais, problemas

teóricos e práticos, experiências concretas, etc. – mostrando o movimento de elaboração

conceitual e prática, com seus grandes desafios, mas sumamente necessário para a

aproximação pacífica e construtiva entre esses mundos tão diferentes.

Em seu conjunto, as perspectivas que enfocamos compõem um quadro de

grande riqueza e beleza sobre o encontro entre o Ocidente e o Oriente no terreno das

religiões, e nos possibilitam compreender parte das atuais tendências que movimentam

o campo religioso ocidental.

Essas perspectivas nos permitem ainda, como momento conclusivo de

nossas reflexões, contextualizar e analisar o movimento religioso global liderado por

Sai Baba2

, que traz em suas diretrizes centrais valores e ensinamentos que integram a

essência das espiritualidades oriental e ocidental.

O que se perdeu no Ocidente e o que se busca no Oriente?

2 Sobre Sai Baba, conferir texto em anexo.

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A década de 1960 pode ser considerada um marco para o aprofundamento

das relações entre o Oriente e o Ocidente no que diz respeito às religiões. A percepção

de Eliade sobre a necessidade do homem ocidental se aproximar do mundo oriental, que

citamos no início, rapidamente se concretizou. Além da Contracultura, que se

caracterizou basicamente como um movimento de rebeldia contra os valores

tradicionais da cultura cristã ocidental e favoreceu uma maior abertura ao pensamento e

visão de mundo orientais, um outro passo importante para essa aproximação – e que

aqui nos interessa particularmente – foi a mudança de postura da Igreja Católica

afirmada no Concílio Vaticano II (1962 – 1965)3

Um século antes, no Concílio Vaticano I (1869 – 1870) a Igreja se

posicionara contra o mundo moderno, recusando-se a dialogar com qualquer forma de

pensamento que fosse contrária a suas interpretações doutrinais sobre a vida humana e

aos dogmas definidos pelo magistério. De acordo com a interpretação que tinha naquele

momento sobre a sua missão espiritual, a Igreja se auto-definiu como “sociedade

perfeita”, na qual os fiéis encontrariam todas as respostas necessárias para sua vivência

na sociedade, podendo, portanto, se afastar das coisas modernas, que para a Igreja eram

“mundanas”. Nessa condição, à Igreja cabia determinar não apenas os conhecimentos

que seriam verdadeiros e que os católicos deveriam valorizar, mas também as práticas

religiosas, atitudes e comportamentos que deveriam ser adotados pelos fiéis. Dessa

forma, a vida espiritual dos católicos passava a ser um constante exercício de adequação

ao que era prescrito pela Igreja, fato que limitava ao máximo a possibilidade de uma

vida espiritual autônoma (EICHER, 1978).

.

No Vaticano II, a Igreja realizou uma profunda revisão dessa posição,

estabelecendo o diálogo com o mundo moderno como a atitude adequada e fecunda para

a atuação da instituição e para a participação dos católicos na sociedade. Em relação às

outras religiões – tema que é do nosso particular interesse – a Declaração Nostra Aetate

(1965) reconhece positivamente a herança filosófica, religiosa e cultural das religiões

não-cristãs, demonstrando uma inédita disposição ao diálogo: Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os povos, considera

3 Entendemos que a revisão realizada pela Igreja Católica, por ser esta a maior das instituições religiosas dentro do mundo cristão, produziu grande impacto em todo o Cristianismo e não apenas dentro do próprio catolicismo.

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primeiramente tudo aquilo que os homens têm de comum e os leva à convivência. [...] Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações [...] A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo. 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (2 Cor 5, 18-19). (NOSTRA AETATE, 1965)

Este novo posicionamento da Igreja-instituição repercutiu profundamente no

debate teológico que se seguiu, evidenciando a natureza radical da mudança que se

produzia.

Encontramos nas muitas reflexões dos teólogos4

O quadro composto por essas análises nos permite visualizar a amplitude do

encontro entre Oriente e Ocidente nesse campo, assim como nos fornece dados

importantes para fundamentarmos a perspectiva em que estamos colocando nosso tema.

e de outros pesquisadores

que, desde o Vaticano II, procuraram pensar sobre as relações entre os ensinamentos e

as experiências religiosas do Ocidente e do Oriente, análises que percorrem os

principais problemas teóricos e práticos surgidos desse contato, além de propostas de

solução e, mesmo, experiências concretas de entrelaçamento entre esses universos.

Um primeiro elemento de grande interesse é a experiência do Cristianismo

na Índia e sua aproximação com o Hinduísmo por meio dos ashrams cristãos. Já em

1965, ano do final do Concílio Vaticano II, o testemunho do pastor Anglicano C.

Murray Rogers no texto “Herança do Ashram Hindu: dom de Deus à Igreja”, expõe a

riqueza e os desafios do diálogo entre essas religiões.

Tendo chegado à Índia em 1946, acompanhado da esposa e filhos, para

realizar atividades missionárias, o pastor reconhece que tinha ido, como outros antes

dele, para “trazer Cristo à Índia” e “converter os hindus a Cristo” (p. 108). Com essa

visão inicial, viveu distante da fé e da cultura hindus durante quatro anos, numa espécie

de gueto cristão.

Convidado para participar de atividades no ashram onde Gandhi havia

vivido seus últimos anos, acabou por ter contato com muitos dos fundamentos da

experiência religiosa hinduísta (as tradições Bhakti, Advaita e Vedanta), fato que o 4 Tomamos como base para nossa pesquisa a revista Concilium, uma publicação internacional de Teologia que nasceu em 1965, ano do final do Concílio Vaticano II, e que circula até hoje.

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levou a buscar outros Ashrams de santos indianos5

Dessas experiências profundas nasceu o Ashram Jyotiniketan (Lugar da Luz

Incriada), que viria a se tornar uma comunidade cristã com membros das mais variadas

confissões: anglicanos, presbiterianos, católicos, membros das Igrejas de rito oriental,

etc.

, nos quais reconheceu almas “que

podem transformar uma vida inteira com um único olhar” (p. 106).

Em suas reflexões sobre o processo que viveu, Murray Rogers expõe,

primeiramente, que foi necessário escapar à tendência, existente no espírito missionário,

que via “o Ashram como um meio para alcançar um fim” (p. 113), ou seja, atrair e

converter os hindus ao cristianismo. Além dessa questão primordial, outros quatro

aspectos ele considera fundamentais – a partir de sua experiência – para o diálogo entre

cristãos e hinduístas na Índia: 1) que os cristãos compreendam que a essência do

hinduísmo é a “sede insaciável do Uno, do Absoluto”, fato que os leva a privilegiar a

meditação, a contemplação e não o ativismo social e o proselitismo; 2) que há a

necessidade dos cristãos retomarem o significado do “Cristo Cósmico” – aquele que

revela a unidade entre todas as coisas – e que esse Cristo seja encontrado no interior do

próprio ser; 3) que haja a renúncia “a qualquer tentação de obter uma vitória sobre outra

fé”; 4) que o único caminho é o ecumenismo, aquele que possibilita o real encontro

entre as diferentes crenças. (p. 115 e 116)

Na verdade, a experiência de Murray Rogers não era a primeira, mas foi

após a criação do Ashram Jyotiniketan que ele soube da existência de outras

experiências similares. Segundo Painadath (1994), as iniciativas cristãs de fundar

Ashrams começaram na década de 1920: Os principais ashrams protestantes foram: o Ashram Christukula (Tirupppathur) fundado pelo Dr. Jesudason e pelo Dr. Forrester Paton em 1921, o Ashram Christa Prema Seva (Pune) fundado pelo Rev. Jack Winslow em 1927 e o Ashram Sat Tal (Nainital) iniciado por Stanley Jones em 1930. Seu objetivo era a evangelização efetiva através da ação social integral. Do lado católico, a primeira tentativa de fundar um ashram foi feita por Brahmabandhav Upadhyaya em 1894, mas foi cortada pelas autoridades eclesiásticas. Iniciativas importantes começaram com o Pe. Jules Monchanin (Swami Arubi Anandam) e Dom Henri Le Saux (Swami Abhishiktananda), que fundaram o Ashram Saccidananda em Santivanam perto de Tiruchi em 1950 e com o Pe. Francis Acharya e o Pe. Bede Griffiths que iniciaram o Ashram Kurisumala em Vagamon no Kerala em 1955. (p. 57 e 58)

5 O autor cita Ramana Maharshi (Tiruvanamalai), Ma Anandamayi (Varanasi) e Swami Ramdas de Kanhangad (Kerala).

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Após o Vaticano II, a experiência dos ashrams cristãos se intensificou,

recebendo, do lado católico, o apoio da Conferência dos Bispos Católicos da Índia

(1969). Do lado protestante esse apoio já existia desde 1939, dado pela Conferência

Missionária Mundial. (PAINADATH, 1994: 58)6

Outras questões importantes, suscitadas pela interação entre o Cristianismo

e o Hinduísmo nessas comunidades, exigiram dos cristãos muita reflexão e

modificações na conduta para que pudesse haver, de fato, a integração desejada.

O ashram, como criação hinduísta, é um lugar que convida à busca interior,

sendo sua principal finalidade proporcionar as condições que levem o praticante das

disciplinas espirituais à percepção do “Eu divino dentro de si mesmo” e a conseqüente

percepção desse mesmo “Eu divino em todas as coisas”, isto é, a base da experiência

ashrâmica é o princípio da unidade tão caro ao hinduísmo. Nesse sentido, os ashrams

cristãos se tornaram locais que privilegiavam atividades que facilitam a busca por essa

experiência: Inspirando-se nas tradições místicas da Índia, todos os ashrams fundados por cristãos promovem a busca do silêncio interior: iniciação à oração contemplativa (sadhana), prática de ioga, canto meditativo (bhajan), oferecimento de luz (arati), sessões de oração na penumbra (sandhya), celebração da Eucaristia com rituais indianos (puja), partilha de experiências espirituais (satsang) e o estudo dos clássicos espirituais hindus e cristãos. (PAINADATH, 1994: 61)

Se, por um lado, essa característica do ashram cristão favoreceu a

revitalização, entre os cristãos, da experiência mística – que muitos autores entendem

como um fato essencial para o cristianismo nos tempos atuais (JÄGER, 1994; CATTIN,

1994; COLEMAN, 1983; NEUNER, 1976) –, por outro lado, essa mesma característica

acabou por se tornar uma condição essencial para o aprofundamento da integração entre

hindus e cristãos: No ashram um cristão vive uma espécie de vida contemplativa e religiosa em continuidade com um velha tradição indiana. A herança indiana cultural e religiosa é assimilada no Cristianismo, com o intuito de fazê-lo interna e externamente mais indiano. O ponto-chave é atingir a divinização. Um missionário que se dedica a obras sociais é admirado pelos indianos, mas não imitado, por não mostrar aquela procura espiritual que é tão estimada pelos hindus. Por isso, no ashram se dá muita importância aos meios hindus de atingir essa divinização: yoga, meditação e contemplação. Diversamente do

6 Painadath faz referência, em seu texto, aos nomes e as principais atividades dos ashrams cristãos existentes na Índia no momento em que escreve (1994). Ele cita 21 ashrams cristãos que funcionam como: centros de formação espiritual com bibliotecas e práticas espirituais hinduístas e cristãs, centros de cura e cuidado com a saúde da população, inclusive mantendo hospitais e dedicando atenção especial aos leprosos, centros que se dedicam a projetos de desenvolvimento das aldeias e a programas de atendimento especial a mulheres. p. 64.

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antigo ashram, mas de acordo com o moderno movimento ashrâmico hindu, os ashrams cristãos consideram o serviço social como uma continuação do culto e como expressão de amor e solidariedade com os pobres da Índia. Os ashrams são locais de comunhão inter-religiosa e de encontro. (CAMPS, 1983: 104)

A experiência dos ashrams cristãos sofreu muitas críticas, tanto dos cristãos

mais conservadores como dos que conferem maior importância à dimensão social do

Cristianismo. Os conservadores enxergaram nos ashrams uma “traição à fé cristã”, pois

esta tem suas formas de manifestação tradicionais como: liturgia, símbolos, vestes,

teologia e apostolado, que devem ser mantidas em todos os locais onde o Cristianismo

estiver atuando. Já os ativistas sociais, criticaram uma possível insensibilidade dos

participantes dos ashrams para com as estruturas sociais indianas, que permitem a

marginalização e a violência contra “a mulher, os tribais, os párias e os dalits”.

(PAINADATH, 1994: 61)

Apesar das críticas, os autores que acompanham mais de perto essas

experiências, reconhecem que os ashrams cristãos, na forma como estão organizados,

favorecem a integração entre a mística e a ação social, constituindo-se, então, como um

local onde se pode viver uma experiência genuinamente cristã. Assim, segundo

Painadath: A contemplação a ser fomentada nos ashrams cristãos não é apenas uma imersão mística na profundeza abismal do ser, mas um despertar da consciência para a percepção de nossa história como história de Deus, um estar alerta ao Espírito divino que nos fala constantemente através dos problemas e lutas de nosso tempo. [...] A integração de contemplação (jnana), devoção (bhakti) e ação libertadora (karma) parece emergir como o objetivo espiritual dos ashrams cristãos na Índia de hoje. (1994: 63)

Em consonância com as experiências dos ashrams cristãos, ocorreram as

iniciativas do Secretariado Nacional para o Diálogo Inter-religioso – da Conferência dos

Bispos Católicos da Índia – que organizou encontros entre membros das religiões cristãs

e não cristãs existentes no país, cujo intuito era promover o exercício do diálogo. Nesses

encontros que reuniam, além de cristãos e hindus, também muçulmanos e sikhs, ocorria

a oração em comum, a meditação e a reflexão sobre temas fundamentais para o

exercício do diálogo entre os praticantes das diversas religiões: Qual o sentido da religião para mim? Qual a minha atitude para com as outras religiões? Qual o papel da oração, da experiência religiosa e da meditação em minha vida? Qual o contributo de minha religião para com as necessidades sociais de meu próximo? Como é a minha religião desafiada pelas outras? Que esperança alimento? Mostro boa vontade para promover a união mútua? Estaria disposto a trabalhar para superar o sistema indiano de castas? Estou preparado para trabalhar com pessoas de outra fé? (CAMPS, 1983: 100)

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Na análise dos organizadores desses seminários, os principais empecilhos

para um trabalho conjunto e construtivo entre as diversas tradições religiosas que

convivem na Índia era a “ignorância de parte a parte” e os preconceitos que surgiam a

partir desse desconhecimento. Nesse sentido, as indagações acima apontadas, traduziam

a necessidade de uma auto-avaliação, realizada por cada participante, de sua própria

atitude diante das outras religiões e das percepções dos membros de outras religiões

sobre o mesmo tema. O objetivo era desmontar as noções e opiniões que sustentavam a

ignorância e impossibilitavam a convivência pacífica e o trabalho conjunto.

Outro aspecto que se mostrou significativo para a integração entre o

cristianismo e o hinduísmo na Índia é o que se refere à liturgia e ao uso das escrituras

hindus (e outras) nas cerimônias cristãs. Tomando como referência dois textos, um de

1976 e outro de 1983, podemos ver com clareza alguns aspectos importantes da

trajetória do Cristianismo na Índia, a partir de sua vertente católica.

No primeiro texto “Seminário de investigação sobre textos sagrados não-

bíblicos” (1976), o autor, Josef Neuner, descreve as circunstâncias que levaram à

organização desse evento (realizado entre 11 e 17 de dezembro de 1974) e analisa as

principais conclusões a que chegaram os debates.

O tema central do encontro foi “o problema do uso dos textos sagrados não-

cristãos no culto cristão” (p. 18[146]), porém, muitas outras eram as indagações que o

seminário ajudaria a responder, conforme assinala Neuner: Existem precedentes dessa prática no passado? Como são as interpretações destes textos que vêm duma base totalmente diferente da das escrituras bíblicas? Não haverá perigo de confusão para muitos cristãos que já não serão capazes de distinguir o que é cristão e o que é hindu? Não estamos sendo levados para o indiferentismo e minimizando a função central de Jesus Cristo no plano da salvação de Deus, fazendo dele um de tantos canais pelos quais o mistério divino se revela às idades e culturas diversas? Estes perigos não serão particularmente grandes em tempos de incerteza geral e, especialmente, no mundo indiano que dá excessiva ênfase à experiência religiosa individual? (NEUNER, 1976: 19[147])

Portanto, ao lado do debate sobre o valor teológico das escrituras não-

cristãs, estaria também em debate os temores cristãos em relação ao contato com outras

religiões e seus ensinamentos.

Assumindo, por um lado, a necessidade não apenas do diálogo mas também

da integração com as tradições religiosas hinduístas – sejam suas escrituras sagradas ou

as práticas rituais –, o cristianismo (nesse caso, católico) reconhece o temor do

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sincretismo e da perda de identidade das comunidades no contato com o “hinduísmo

que tudo absorve” (p. 25[153]).

Essa dificuldade dos cristãos em definir os limites seguros para o

estabelecimento dessa integração com o hinduísmo, decorre, a nosso ver, daquilo que o

autor identifica como “o problema mais difícil do seminário” (p. 23[151]), que foi o

debate sobre uma abordagem cristocêntrica ou teocêntrica quanto ao valor das religiões.

Esse debate, que nesse momento era central para a teologia católica, e não

apenas na Índia, revelava a dificuldade do cristianismo em deixar de lado a postura de

superioridade com que sempre havia tratado as demais religiões. Nesse caso, a

abordagem cristocêntrica insistia no fato de Jesus Cristo ser a finalidade última da busca

de todas as religiões, sendo a partir dele, de sua missão e de seus ensinamentos que se

podia julgar a validade das outras religiões e do conteúdo de suas escrituras (KNITTER,

1986; KÜNG, 1986).

Já a perspectiva teocêntrica parte do princípio de que há “o esforço, comum

a todas as religiões, de exprimir, cada uma à sua maneira, o único e inexprimível

mistério de Deus”. Nessa perspectiva, entre as questões levantadas no seminário,

indagou-se: “Por que só Jesus Cristo e a Igreja, e não as religiões não-cristãs e seus

textos sagrados são queridos, por si mesmos, por Deus?” (NEUNER, 1976: 23 [151]).

Mesmo não havendo uma resposta decisiva sobre esse debate, os

participantes reconheceram que é necessário ao cristianismo abrir-se ao contato com as

outras religiões e “confiar na orientação divina de um modo totalmente novo” (p.

24[152]), evitando o temor dos desafios que serão enfrentados e a tentação de retornar

ao “gueto cristão”. A partir dessa postura adotada, destacamos aqui duas considerações

tomadas do texto conclusivo do próprio seminário: Se o Espírito de Deus está trabalhando nessas religiões, é também “atividade do Espírito Santo que faz refletir nestes textos as experiências de tais comunidades, dando-lhes autoridade”. (p. 21[149]) Reconhecemos como nunca, nos livros sagrados de outras religiões, a presença dinâmica do Espírito, que conduz os nossos compatriotas, cada vez mais profundamente, para o mistério inefável que se nos revelou em Jesus Cristo. Apercebemo-nos também da responsabilidade grave que este reconhecimento nos impõe, de nos deixarmos conduzir pelo mesmo Espírito, por um novo e talvez imprevisível caminho, de vivermos plenamente as implicações, para o nosso país, da universalidade do Senhor ressuscitado, ainda em grande parte oculto para nós no mistério de Deus. (NEUNER, 1976: 25[153]).

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A importância das reflexões realizadas nesse seminário pode ser avaliada

pela polêmica surgida quanto ao novo “Ordo Missae”7

Entremeando formas litúrgicas cristãs – como a liturgia da palavra e a

liturgia eucarística – com mantras, bhajans (cânticos) e pujas (ritual purificatório)

hindus, o Ordo Missae propõe para o encerramento da celebração eucarística orações

que conjugam as perspectivas cristocêntrica e teocêntrica, reconhecendo a presença

divina na sabedoria espiritual hinduísta – manifestada tanto nas revelações dos sábios

videntes que legaram as escrituras sagradas como nas tradições devocional, ascética e

ritualística – e pela afirmação da importância do Cristo eucarístico como necessário para

o processo de transformação ética da Índia.

indiano, publicado também em

1974 e que concretizava a união, na liturgia da celebração eucarística, dos conteúdos

das escrituras sagradas e tradições espirituais cristã e hinduísta.

Deus das nações, tu és o desejo e a esperança de todos os que te procuram com um coração sincero. Tu és a Força onipotente adorada como Presença escondida na natureza. Tu te revelas nos videntes que procuram o conhecimento, ao fiel que te procura pelo sacrifício e na renúncia, a toda pessoa que de ti se aproxima pelo caminho do amor. Tu iluminas os corações que anseiam por consolo, pela conquista do desejo e universal benevolência. Tu mostras misericórdia por aqueles que acolhem os teus imperscrutáveis decretos. [...] Nós te pedimos, ó Pai, coroa os esforços desta nossa velha terra com o conhecimento e o amor do teu Filho. Abençoa os esforços de todos os que trabalham por fazer deste país uma nação onde pobres e famintos sejam saciados, onde todos vivam em harmonia, onde reinem a justiça e a paz, a união e o amor. Abençoa todos os nossos irmãos que não estão presentes nesta Eucaristia. [...] Amém! Tu és a Plenitude da Realidade, o único sem segundo, Ser, Conhecimento, Felicidade! Om! Tat! Sat!. (CAMPS, 198: 103)

Dividindo as opiniões dos católicos da Índia, devido à defesa, pelos mais

conservadores, da liturgia latina tradicional, o Ordo Missae foi proibido no primeiro

momento, para ser liberado – após outros debates e reflexões – para circulação privada e

em cultos experimentais (p. 102). A solução encontrada, como vemos, foi política, à

medida que não foi possível, de imediato, a implantação de uma mudança tão ampla,

que atingia o núcleo central da experiência religiosa cristã, que é a celebração

eucarística.

Procuramos expor, nesse primeiro momento, alguns dos elementos

essenciais da interação e integração do Cristianismo na Índia, evidenciando a natureza

dos questionamentos surgidos, dos problemas debatidos e das atitudes e propostas

7 Instrução normativa erigida pela Igreja Católica que estabelece as normas e a forma do ritual litúrgico da Missa. O último Ordo Missae foi instituído em 1969 pelo Papa Paulo VI. Neste caso, o Ordo Missae indiano foi elaborado pela Conferência dos Bispos Católicos da Índia.

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adotadas para que o diálogo fosse possível e se tornasse frutífero. Evidentemente o

levantamento não é exaustivo, mas o consideramos significativo e representativo do

processo de encontro entre essas religiões, cujas crenças e visões de mundo são tão

diversas.

Em nossa perspectiva, as considerações aqui apresentadas revelam alguns

aspectos fundamentais – aos quais voltaremos à frente no texto – da dimensão que

tomou a experiência de encontro entre as religiosidades do ocidente e do oriente na

história recente, nesse caso tendo como foco os desafios da penetração da religiosidade

ocidental no universo oriental.

Porém, como contrapartida dessas atividades missionárias e institucionais

cristãs na Índia e em todo o Oriente, ocorreu a penetração cada vez mais intensa, no

último século, das noções filosóficas e religiosas e das práticas espirituais orientais no

ocidente. Procuraremos agora, como um segundo momento de nossa reflexão, mostrar

essa outra face desse amplo processo, que se revela pelas análises dos teólogos e demais

estudiosos ocidentais quanto aos desafios lançados pela presença, também quase que

missionária, dos ensinamentos dos mestres espirituais orientais dentro do, até então

quase que exclusivo, mundo cristão.

As reflexões desses estudiosos são bastante ricas em questionamentos sobre

a natureza desse fenômeno, apontando sempre para a necessidade de uma profunda

revisão dos conceitos ocidentais – conforme havia profeticamente afirmado Eliade, no

texto já citado – quanto à forma de convivência e integração entre os mundos Ocidental

e Oriental. Pode-se dizer que o Ocidente finalmente percebeu que a relação com o

Oriente é uma via de mão-dupla.

Fundamentalmente, podemos afirmar que, a partir da década de 1960, o

Cristianismo em geral passou a lidar mais abertamente com a sensação do fracasso, o

que, nesse caso, significou a percepção de que o ideal universalista que sempre o

mobilizou, fundado na pretensão de ser portador da única verdade no campo espiritual e

sustentado pelo espírito missionário – a maior parte das vezes invasivo e destrutivo na

sua relação com outras tradições culturais e religiosas – passava a ser rejeitado dentro de

seus próprios domínios, ou seja, o Ocidente, o qual se tornava cada vez mais aberto à

penetração de outras idéias. Essa percepção produziu muitos questionamentos e

mudanças de atitude – como já apontamos o caso do Concílio Vaticano II.

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As causas do fracasso cristão são analisadas sob diversas perspectivas, entre

outras, pelas dificuldades das Igrejas cristãs institucionalizadas em manter viva a chama

da experiência religiosa trazida por Jesus na forma de valores e vivências significativas;

pelos problemas decorrentes da perda de identidade do Cristianismo na sua relação com

o sistema capitalista, com o qual compartilha a acusação de ser a causa principal das

violências e injustiças entre os povos e da destruição do planeta; pelas implicações do

encontro de grandes contingentes de ocidentais com os ensinamentos de outras tradições

religiosas, que trazem em seu conteúdo opções bastante atraentes e viáveis de vida

espiritual individual e coletiva, que se mostram compatíveis com as atuais necessidades

ocidentais de expressão subjetiva e auto-realização.

Essa “crise do espírito”, como denominou Bradley (1970), que se abateu

sobre o Ocidente cristão, tem como causa básica, segundo ele, o inevitável confronto

entre os ensinamentos cristãos em relação à vida humana em geral e os acontecimentos

históricos, que não só contradizem as formulações cristãs como levam a uma profunda

descrença quanto à eficácia e, mesmo, quanto à veracidade das mesmas.

Bradley elenca, como motores dessa descrença, as inúmeras guerras – em

especial as duas mundiais – levadas a cabo pelas nações ditas cristãs, o racismo, o

colonialismo e a violência histórica produzida pelo domínio das nações cristãs sobre

outras regiões do planeta, e o fracasso ético da ciência e da educação ocidentais que não

puderam impedir que as conquistas nos campos da saúde, do conhecimento e do

conforto material, fossem obscurecidas e, talvez, anuladas, pela violência produzida

pelas armas, pela discriminação social, pela exploração desmedida da natureza e pela

competitividade exacerbada (p. 1184 e 1185). Nesse último aspecto, há a percepção de

que o Cristianismo, como fonte de inspiração para os valores sociais, já não detém

meios de reconduzir a ciência, a educação e a sociedade ao caminho ético.

À essa falta de credibilidade dos ensinamentos cristãos grande parte dos

ocidentais reagiu rebelando-se contra a autoridade eclesiástica, procurando outros

conhecimentos e ensinamentos que lhes possibilitassem a redescoberta de um sentido

para a existência. Nesse caso, as religiões asiáticas surgiram como uma das principais

opções, exercendo uma forte atração devido às possibilidades oferecidas pelos ideais de

não-violência, unidade e harmonia homem/natureza e pela via mística, centrada no auto-

desenvolvimento e na busca de um estado de paz interior que, em tese, permitiria a

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convivência equilibrada do indivíduo com o materialismo, a competitividade e as

compulsões do modo de vida ocidental (p. 1186 e 1187).

A maior ironia desse processo, segundo Bradley (que escrevia no início da

década de 1970), é que os ocidentais em geral desconheciam a violência existente nos

países asiáticos, as divisões de casta na Índia (cuja violência pode ser comparada à do

racismo e da discriminação de classe ocidentais), a busca dos orientais por padrões de

vida ocidentais – que o autor caracteriza como “inveja” – e o fato das religiões orientais

exigirem uma alta dosagem de disciplina e austeridade, quando os ocidentais rejeitavam

as exigências cristãs. (p. 1188)

A seu ver a frustração seria a principal causa da busca pelas experiências

religiosas orientais, pela incapacidade do Cristianismo, na forma como vinha sendo

vivido nesse tempo, de responder aos anseios dos que procuravam uma vida espiritual

significativa.

Na mesma linha dessa reflexão sobre o processo de busca pelo Oriente, Guy

Deleury (1972), propõe algumas indagações sobre esse movimento. Na sua análise,

realizada no auge da primeira grande onda de procura pelo Oriente, havia também um

equívoco na visão que os jovens ocidentais tinham do Oriente. Nesse sentido, ele se

pergunta: “quem é esse ‘Deus Hindu’ que, permanecendo misterioso atrai, mas

tornando-se familiar, repele?” (p. 819). Com essa indagação ele se refere aos ocidentais

que buscavam a Índia sem conhecê-la e aos indianos que procuravam migrar para o

ocidente justamente por conhecê-la.

Em sua irônica perspectiva, o autor compara o ocidental que procura o

“Deus Hindu” com o brâmane do sistema de castas, que detém privilégios sociais e

espirituais, à medida que, num hipotético sistema de castas internacional, estes

ocidentais ocupariam a posição dos brâmanes, podendo enveredar pela aventura mística

embalados pela riqueza de sua própria sociedade, que sobrevive da exploração das

sociedades não desenvolvidas (as castas inferiores no sistema internacional).

Seria esse o caso dos jovens contestadores, hippies e partidários da

Contracultura, que abandonavam a sociedade capitalista, mas continuavam a viver às

custas dela, sacrificando a vida produtiva (no sentido capitalista) para viver a aventura

no oriente, esta patrocinada pelas possibilidades materiais oferecidas pela mesma

sociedade contestada e rejeitada (p. 822 e 823).

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A análise do autor, porém, vai além dessa ironia e se dirige ao que

realmente essa experiência de contato profundo com o Oriente poderia ensinar aos

cristãos. Ao lado da crítica contundente o autor identifica a redescoberta, por exemplo,

da devoção (bhakti), da mística e da comunhão na unidade, que é proporcionada pela

experiência religiosa hinduísta ao ocidental que é sério em sua procura. Nesse sentido,

na sua percepção, a busca pelo “Deus Hindu”, poderia “ensinar ao cristianismo a se

olhar com mais objetividade” (p. 825), ajudando-o a perceber as dimensões da fé cristã

que foram perdidas no decorrer da história, pela excessiva institucionalização (p. 826).

Se, nesse primeiro momento, a reação dos estudiosos ocidentais é de

incômodo e estranhamento em relação a essa busca pelo Oriente, na década de 1980, já

no contexto da rápida expansão dos Novos Movimentos Religiosos (NMR) por todo o

Ocidente, outras análises abordam a atração pelas religiões asiáticas – assim como a

expansão pentecostal e neopentecostal – como um fenômeno de renovação profunda da

vida espiritual ocidental em contradição com as teses da secularização.

As propostas de explicação para esse fenômeno, nesse momento, apontam

para dois tipos de fracasso: o do “racionalismo técnico-científico” como fonte de

orientação para a conduta humana e o do Cristianismo tradicional como motivador de

experiências espiritualmente transformadoras.

No primeiro caso, a análise procura contradizer os defensores da

secularização, que entendiam os novos fenômenos religiosos como simples sintomas da

perda de influência da religião na sociedade, considerando-os como patologias sociais

motivadas pelo consumismo – nesse caso, de produtos religiosos –, pelo narcisismo, ou

seja, o exacerbado culto ao indivíduo, e pela fragilidade emocional de um grande

número de indivíduos, fato que levava à aceitação de propostas de obediência total ao

sacerdote, pastor ou guru (ANTHONY et ali, 1983: 12 a 18)8

Ao contrário, afirma-se em defesa da legitimidade da expansão dos NMR

que amplos setores da sociedade contemporânea despertaram para o fato do

racionalismo técnico-científico ser incapaz de orientar e trazer sentido para a sociedade

e para os indivíduos, pois este, ao desembaraçar-se da perspectiva espiritual,

componente das tradições religiosas, obstruiu a “função dos valores na vida social” (p.

.

8 Essas questões também são debatidas por MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. São Paulo: Paulinas, 1995. p. 339 a 354.

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20), determinando a expansão do utilitarismo e do materialismo em detrimento dos

valores humanos e fraternos.

Nessa perspectiva, entende-se que os NMR [...] têm em comum uma ênfase no fervor emocional e/ou ‘experiência’ espiritual interior. Vale dizer, todos eles incluem a premissa de que se chega aos valores autênticos mediante experiências intensas e não mediante pensamento ou análise racional. Destarte, as principais tendências da religião contemporânea na América – ressurgimento evangélico, orientalismo e a proliferação de grupos terapêuticos quase religiosos – parecem encarnar uma rejeição do humanismo racional para o qual parecia evoluir a religião liberal. (ANTHONY et ali, 1983: 11).

No segundo caso, em relação ao fracasso do Cristianismo tradicional, as

reflexões se dirigem para dois aspectos: por um lado, identificam-se as limitações a que

o Cristianismo está sujeito contemporaneamente devido à perda de elementos que já

foram constitutivos de sua própria tradição; por outro, entende-se que o desafio maior

trazido pelos NMR ao Cristianismo é o exercício do diálogo, tanto entre as múltiplas

Igrejas e denominações cristãs, como com as demais religiões mundiais.

Quanto ao primeiro aspecto, há a percepção, entre os autores que analisam o

encontro entre o Cristianismo e as religiões orientais, de que estas têm muito a ensinar

aos cristãos quando se pensa a religião como caminho interior de força transformadora.

Coleman (1983), por exemplo, enumera quatro componentes existentes nas religiões

orientais – e que já fizeram parte da tradição cristã – cuja importância seria essencial

para a renovação do Cristianismo: “1) um conjunto específico de práticas; 2) formas de

conhecimento interior pessoal; 3) níveis de iniciação; e 4) uma tradição esotérica” (p.

23).

Tendo se tornado, segundo sua visão, uma religião que cada vez mais parece

ser “apenas uma questão de palavras, exortações e filosofia e não uma questão de

orientação prática em vista de experimentar diretamente a verdade da doutrina” (p. 23),

o autor entende que a retomada desses quatro componentes poderia restituir ao

Cristianismo a qualidade necessária para “levar-nos ao nível em que os ensinamentos de

Cristo podem ser seguidos de fato e não na imaginação” (p. 25).

Apoiando-se nas reflexões de Needleman (1980)9

9 Segundo Coleman, este autor pesquisou entre “diretores espirituais cristãos” em “freqüentes visitas a mosteiros” e não encontrou nestas pessoas e nestes locais “as concretizações dos níveis graduados de prática cristã que procurava para comparar com as sofisticadas psicologias espirituais e métodos de

, Coleman sustenta que o

Cristianismo já não apresenta métodos e técnicas específicas para alimentar a busca de

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conhecimento interior e capazes de transformar a ação do sujeito comum – geralmente

fundada “nas compulsões do ego” (p. 24) – em ação espiritualmente motivada, fundada

na percepção do divino em todas as coisas. Essa transformação só pode ocorrer,

segundo o autor, como ocorre nas religiões orientais, ou seja, a partir de práticas

específicas e disciplinadas conduzidas por “guias espirituais vivos”, que estejam aptos a

perceber os estágios ou níveis de iniciação dessa jornada interior (p. 24 a 27).

Não apenas Coleman, mas diversos outros autores enveredaram pelo debate

sobre a importância da experiência interior e da mística como meio para uma renovação

do Cristianismo, à medida que identificavam a ausência de sentido da experiência cristã,

nesse momento excessivamente institucionalizada e racionalizada.

Eicher (1978), por exemplo, analisando a relação entre o governo

eclesiástico e a experiência de fé dos cristãos, reconhece que: O preço da relação estável entre as funções da autoridade religiosa e dos fiéis é uma grande perda de experiência. Aliviar a pessoa da pressão de se decidir religiosamente – uma exigência bem característica da religiosidade contemporânea – significa também diminuir-lhe a responsabilidade religiosa. A extrema racionalização do governo religioso leva a uma formalização da prática religiosa, que resulta no interesse pelo bom funcionamento de tudo e não por uma vida verdadeiramente religiosa. (p. 18 [282], grifos do autor)

Tendo como objetivo administrar a experiência de fé dos fiéis, as

organizações eclesiásticas em geral acabam por condicionar essa experiência de tal

modo que ela passa a ser apenas um estar em conformidade com o que é prescrito.

A partir dessa perspectiva, a mística é vista como essencial à renovação

cristã, à medida que, mesmo quando ocorre dentro de uma determinada tradição, com

suas doutrinas e regras, esta leva o indivíduo para além dos condicionamentos

institucionais e dos desejos pessoais, possibilitando uma vivência religiosa profunda e

autêntica.

Falando sobre a experiência mística no Cristianismo, Cattin afirma: Se forem exatas estas análises, poderíamos concluir que a experiência mística, sejam quais forem suas expressões originais nas subjetividades dos crentes, é a perfeição da vida cristã. Também não poderia ser considerada como a mais elevada expressão do desejo absoluto que é sempre um desejo de si e do ídolo de si mesmo. É uma conversão desse desejo que é uma renúncia ao próprio desejo. Longe de ser a apoteose da vida interior ou da interioridade, ela é, ao contrário, uma espécie de “exterritorialização” da vida de fé: o homem deixa de existir diante de si e de seu desejo, diante do mundo e dos ídolos do mundo, para existir diante de Deus. (1994: 29 [547]

meditação que encontrou em vários dos grupos neo-orientais que estudou”. p. 24. Estas informações Coleman colheu em: NEEDLEMAN, Jacob. Lost Christianity. Nova Iorque: Doubleday, 1980.

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Já sobre o segundo aspecto que apontamos, há o reconhecimento das

dificuldades do Cristianismo para dialogar com as outras religiões e para lidar com o

pluralismo religioso. Confrontado com o fato de que o ideal universalista carece de

fundamento num mundo agora marcado, cada vez mais, pela necessidade de

entendimento e respeito entre as culturas, o Cristianismo viu-se na urgência de refletir

sobre seus próprios fundamentos, num esforço para compreender o outro e se

compreender nessa nova relação com o outro.

Com o passo dado pelo Catolicismo no Concílio Vaticano II, no qual há o

reconhecimento oficial do valor das demais religiões, esse esforço para o diálogo e

compreensão produziu um renovado entendimento sobre o papel das religiões e da

forma de sua relação no mundo global. Mesmo que pareça estar longe o momento em

que essa nova posição será aceita pelas inúmeras vertentes cristãs, esse debate já é o

reflexo de uma mudança significativa na visão de mundo cristã quanto à interação e

integração entre as religiões.

Knitter (1986) expôs esse movimento interno do Cristianismo como a

passagem de uma oposição sistemática às outras religiões – existente antes do Vaticano

II – para a percepção, já no final da década de 1980, de que as religiões podem e devem

caminhar juntas. Para que essa mudança fosse possível, os cristãos precisaram aceitar

colocar-se em real igualdade com as outras crenças, pois, a princípio, saíram de uma

posição exclusivista na qual se afirmava que “fora da Igreja” e “sem Cristo” não há

salvação, para uma posição condescendente, na qual os indivíduos pertencentes a outras

religiões seriam “cristãos anônimos”, que passariam a ser “cristãos explícitos” à medida

que reconhecessem em Cristo a finalidade de sua vida religiosa. Essa atitude foi assim

expressa por Puthiadam: A atitude cristã para com o pluralismo, quando não religioso, é antes positiva e dialógica. Muitos teólogos já escreveram páginas maravilhosas sobre o diálogo numa sociedade pluralista. Aceitam que o diálogo se tornou o único modo possível de coexistência. Assim o diálogo implica abertura, autocrítica e o desejo de aprender. Cada pessoa entra no diálogo tendo suas próprias convicções, sem no entanto subordinar a priori os outros às suas convicções. Cada parceiro está convencido que a expressão das verdades experimentadas é imperfeita. Através do silêncio tentam os parceiros do diálogo transcender o que é expresso e alcançar a realidade por trás das palavras. Todos estes são belos sentimentos. Contudo, quando um cristão encontra um não-cristão na base da fé religiosa, verifica-se imediatamente uma mudança nas atitudes. O cristão está convencido que o outro não é o outro mas um cristão anônimo, um homem em quem inconscientemente está operando a graça salvífica de Cristo, uma pessoa cuja identidade cultural sócio-religiosa ainda não é perfeita [...] (1976: 106 [678])

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A tese dos “cristãos anônimos” acabou contestada pelos teólogos que

conheciam de perto as outras religiões e nelas não encontravam uma “presença oculta

de Jesus” e nem percebiam em seus fiéis a “busca inconsciente de um salvador”

(KNITTER, 1986: 107). No entanto, mesmo aqueles que passaram a aceitar a validade

intrínseca das demais religiões e que aceitavam dialogar com as mesmas não apenas

para ensinar mas também para aprender, não deixaram de afirmar que “Jesus Cristo é a

revelação plena, definitiva e, portanto, normativa de Deus para todos os povos”

(KNITTER, 1986: 108, grifos do autor), fato que mantinha o Cristianismo e os cristãos

numa posição de superioridade diante das demais religiões.

A dificuldade a ser superada entre os cristãos, para que o verdadeiro diálogo

pudesse ser instaurado, foi assim expressa por Küng: A questão mais importante no diálogo inter-religioso é a seguinte: será teologicamente responsável um caminho que permita aos cristãos aceitar a verdade de outras religiões sem renunciar à verdade da própria religião e, assim, à própria identidade? (1986: 124)

Em sua indagação Küng expressa o problema fundamental que permeia toda

e qualquer proposta de diálogo inter-religioso e que é particularmente essencial para o

Cristianismo: a conversão ou passagem de um núcleo de sentido e identidade para

outro.

Como para o Cristianismo “converter” tornou-se um procedimento essencial

de sua crença e missão – daí a importância conferida às atividades missionárias –,

dialogar, no sentido amplo apresentado acima, significa deixar de lado essa pretensão, e

mais, significa também admitir que há a possibilidade de que muitos cristãos, no contato

e conhecimento de outros ensinamentos religiosos, possam se “converter” a outros

núcleos de sentido.

Podemos confrontar essa tensão existente no Cristianismo quanto ao diálogo

entre as religiões, com a postura existente em geral no Hinduísmo, conforme a visão

apresentada por Mukerji: O hindu, em geral, não é chamado a pregar sua religião aos “outros”. “O outro”, para o hindu, é um companheiro de peregrinação e não uma espécie de espelho que reflete sua própria autocompreensão. Já que a evangelização não constitui parte de sua crença, pode o hindu facilmente aprovar qualquer outro esquema alternativo de culto como caminho viável de vida religiosa. [...] As escrituras hindus afirmam unicamente a certeza do sucesso, deixando a pessoa livre para escolher seu próprio caminho para chegar lá. [...] Por isso as escrituras hindus celebram as infinitas maneiras de Deus participar dos negócios humanos, procurando não negar que toda ocasião de manifestação de Sua graça é em si única. [...] Na reflexão do hinduísmo, o cristianismo é mais outra dimensão da auto-revelação de Deus a seu povo. A dedicação a

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Cristo é facilmente entendida por um hindu que está engajado num determinado modo de devoção em sua própria tradição. A natureza do compromisso exige que este seja exclusivo, como também envolva todo o ser do peregrino em busca de plena realização espiritual. Poder-se-ia dizer que o hindu crê em uma comunidade de pessoas comprometidas, que seja uma livre associação de amigos que se reúnem para celebrar e proclamar e comemorar cada qual a sua maneira como o outro busca Deus e a divinização. (1986: 40 a 46).

Tendo apresentado aspectos importantes do diálogo entre Cristianismo e

Hinduísmo, passaremos a refletir sobre a interação e integração entre as visões de

mundo oriental e ocidental, conforme a interpretamos nos ensinamentos e ações de Sai

Baba.

Considerações sobre o movimento espiritual liderado por Sai Baba: a compreensão mística da vida e o serviço à humanidade como amálgamas da interação e integração religiosa entre o Ocidente e o Oriente

Procuramos evidenciar, na primeira parte deste texto, o movimento

reflexivo que ocorreu no campo da Teologia, a partir da década de 1960, cujo intuito foi

apreender os principais aspectos do encontro entre o Cristianismo e as demais religiões,

em especial o Hinduísmo. Para isso, selecionamos os estudos que enfocam as atividades

das Igrejas cristãs na Índia e aqueles que tratam dos questionamentos trazidos pela

presença cada vez mais marcante dos valores e ensinamentos religiosos hinduístas no

Ocidente e da atração que estes exercem sobre os ocidentais.

Nas reflexões dos teólogos, pudemos observar o caminho percorrido, do

lado cristão, para que houvesse a possibilidade de um verdadeiro diálogo entre essas

tradições religiosas, as indagações e os desafios que emergiram do contato entre as

mesmas no Oriente e no Ocidente, e as propostas de encaminhamento teórico e prático

para que esse diálogo se efetivasse.

Como síntese de nossa leitura sobre os estudos que apresentamos,

destacamos os seguintes aspectos:

1) na experiência do Cristianismo na Índia ocorre a percepção da inegável

dedicação dos hinduístas às suas práticas espirituais e o reconhecimento de que estas

não podem ser desvalorizadas pelos cristãos simplesmente por não pertencerem ao

Cristianismo. Ao contrário, quando os cristãos compartilham das mesmas, como na

experiência dos ashrams cristãos, estas lhes renovam o sentido da vida interior e,

também, da ação no mundo (aqui se conjugam o karmayoga hinduísta e a caridade

cristã).

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A compreensão da importância da mística no hinduísmo, cujos objetivos são

a redução das atividades do ego como entidade separada e separatista (que se move

principalmente em função dos desejos pessoais e da satisfação dos sentidos físicos) e a

percepção da presença divina em todas as coisas (unidade na diversidade), acaba por

produzir nos cristãos a inspiração para superar os preconceitos, dialogar e mergulhar na

experiência mística propriamente cristã, que é atingir a unidade com Cristo na prática do

amor a todos.

Essa mudança de atitude dos cristãos em contato com o Hinduísmo na Índia,

pode ser sintetizada por essa afirmação de Cornelis, em texto que debate o encontro

entre as “espiritualidades cristãs e não cristãs”: Se é verdade – e não duvidamos – que o encontro com as espiritualidades não cristãs diz respeito ao Cristão até mesmo na qualidade de sua caridade, então não necessitamos de outra prova: precisa desse encontro como de pão para a boca. (1965: 69, grifo do autor)

Em suma, nas experiências dos cristãos na Índia, há o reconhecimento de

que o Cristianismo não perde ao se colocar de igual para igual com o Hinduísmo, e que

é necessário vencer o medo do diálogo, da interação e da integração, como pudemos

perceber nas iniciativas para o diálogo inter-religioso e para a utilização das escrituras

hinduístas e seus rituais dentro da liturgia cristã.

Porém, quando constatamos, também através dos textos, as muitas

resistências ainda existentes entre os cristãos mais conservadores em dialogar com

outras tradições religiosas, uma indagação permanece: não é o medo de que os valores e

a vivência espiritual cristã sejam hoje tão frágeis que não resistam ao contato com

outras religiões, que faz com que muitos cristãos e muitas das vertentes cristãs se

refugiem na idéia de superioridade e de recusa da validade das demais religiões?

2) nas reflexões relativas ao grande interesse dos ocidentais pela Índia e

pelo Hinduísmo e à presença cada vez mais forte dos ensinamentos e práticas hinduístas

no Ocidente, percebemos mais claramente o olhar auto-crítico direcionado à

identificação das carências do Cristianismo e que são indicadoras dos motivos que

levam os ocidentais a se interessarem por outras tradições religiosas.

Primeiramente, há o reconhecimento de que os acontecimentos da história

ocidental denunciam as fragilidades do Cristianismo como caminho ético e espiritual, à

medida que ele se encontra imerso nas grandes contradições do capitalismo (guerras

com motivações políticas e econômicas, violência e exploração desmedida de outros

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povos, destruição insensata da natureza, desenvolvimento científico e tecnológico sem

ética, etc.) e já não detém a necessária força moral para ajudar a corrigir esses

descaminhos.

A nosso ver, a forma como o Cristianismo se propôs a atuar para realizar, na

história, sua missão de salvar todos os homens e a meta de construir o Reino de Deus,

ou seja, envolvendo-se com os poderes político e econômico10

Se, no plano micro, o da vida individual e das pequenas comunidades, é

inegável a vida espiritual e o trabalho social dos agentes cristãos, no plano macro, as

disputas entre as Igrejas cristãs (incluindo aqui todas as categorias em que hoje se

divide o Cristianismo: católicos, protestantes, pentecostais e neo-pentecostais) por

hegemonia religiosa e espaços de poder e os discursos agressivos e intolerantes de

algumas, denunciam a impossibilidade do “reino” ser construído para todos os cristãos

e, menos ainda, para toda a humanidade não cristã.

, o tornou extremamente

vulnerável à crítica, à medida que esse envolvimento o leva a contradizer

constantemente sua própria proposta que, muitas vezes, não é percebida como

espiritualmente motivada. Mesmo as mais elaboradas justificativas teológicas para

certos posicionamentos cristãos não resistem mais ao crivo do bom senso.

Assim, o reconhecimento das dificuldades existentes internamente no

Cristianismo, faz com que as análises que apresentamos se voltem para o debate sobre

as carências que a religião cristã tem demonstrado contemporaneamente: excessiva

institucionalização, que limita a experiência interior dos fiéis, ausência de um caminho

interior com práticas específicas e “guias espirituais vivos” já realizados nesse caminho

e aptos a transmiti-lo, incapacidade para um diálogo verdadeiro com outras religiões

devido à postura de superioridade adotada pelas Igrejas, comportamento ao mesmo

tempo agressivo e defensivo no trato com outras crenças pelo fato de aceitar a

conversão para o Cristianismo como um bem e entender a conversão para outra religião

como um mal.

O medo cristão do pluralismo religioso e da ameaça de perda de identidade

quando aceita dialogar com outras religiões, que também foram apontados nos textos

que utilizamos, denunciam a insegurança do Cristianismo quanto à sua própria verdade

10 Scott Mainwaring, analisando os procedimentos adotados pela Igreja Católica, enquanto instituição, para realizar sua missão, identifica e debate as muitas contradições a que a instituição religiosa está sujeita ao se envolver com os poderes político e econômico. Conferir: MAINWARING, Scott. Igreja e política no Brasil 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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espiritual e os resquícios da crença – tão difundida nos últimos séculos – de que os

cristãos devem ter sua vontade e sua consciência conduzidas pelas suas Igrejas, à

medida que, no contato com os outros, correm sempre o risco de se perder11

Mesmo admitindo as diversas dificuldades do Cristianismo para interagir

com as demais religiões, o ponto conclusivo dessas reflexões é a aceitação de que

somente o verdadeiro diálogo, com todos os desafios que ele implica, pode possibilitar a

construção, pelas religiões, de um caminho de paz para a humanidade.

.

A partir dessas duas perspectivas, evidencia-se que uma das importantes

tendências do Cristianismo nas últimas décadas, é a que passou a reconhecer o valor e a

verdade contida nos ensinamentos espirituais de outras tradições religiosas e, também, a

admitir as próprias deficiências cristãs como caminho de realização espiritual. Em

relação à Índia e ao Hinduísmo, ocorreu a compreensão de que a essência da

espiritualidade hinduísta é um convite à ação correta (dharma) e ao mergulho na

experiência da unidade. A esse fato podemos atribuir a atração pela teodicéia presente

na cultura indiana, cuja racionalidade estabelece o agir correto não pelo temor do

castigo ou pela coerção de uma suposta justiça implacável após a morte, mas pela

responsabilidade diante da própria vida, isto é, pelas escolhas que o indivíduo faz

cotidianamente ao agir no mundo. A aceitação dessa responsabilidade pelo próprio

destino na terra e pela própria salvação/libertação espiritual, se apresenta muito mais

condizente com a atual perspectiva de liberdade de consciência e de manifestação da

individualidade que caracteriza o homem ocidental.

Mesmo sem compreender devidamente o complexo “karma-sansara”, cujas

implicações totais na vida humana exigem um aprofundamento nos mistérios das

escrituras hinduístas, assim como sem compreender o significado das miríades de

deuses do panteão hindu, os cristãos que se abriram ao diálogo conseguem apreender,

porém, o significado da presença divina na história (personificada pelo Avatar), dentro

de si mesmo (como Atman) e em tudo que existe (unidade). Pode-se dizer, ainda, que os

cristãos que procuram o hinduísmo sabem que na essência dessa religião está o mesmo

amor incondicional que é também a essência do Cristianismo.

11 Romualdo Dias debate a doutrina católica da autoridade, que foi bastante difundida no período entre a Revolução Francesa e o Concílio Vaticano II, e que recusava aos cristãos a “maioridade”, no sentido de terem capacidade para exercer a liberdade de consciência. Conferir: DIAS, Romualdo. Cor unum et anima una: a doutrina católica sobre a autoridade no Brasil 1922-1935. Campinas: IFCH-Unicamp, Tese de Doutoramento, 1993.

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Neste ponto, podemos direcionar nossa análise para o movimento religioso

global liderado por Sai Baba que, como já afirmamos, traz em sua proposta essa

possibilidade de interação e integração entre as religiosidades do Oriente e do Ocidente.

Podemos sintetizar o interesse despertado por Sai Baba nos buscadores

ocidentais com as palavras do Dr. John S. Hislop, norte-americano que escreveu dois

livros sobre sua experiência direta de diálogo com o líder espiritual. Ao ouvir falar

sobre ele pela primeira vez em 1968, confessa ter feito a seguinte reflexão: Poderia haver um homem, vivendo nos dias de hoje cujo ser era tão sutil, tão poderoso, tão misterioso, tão divino que poderia mudar o coração humano? Se isso fosse realmente verdade, que esse homem vivia no mundo de hoje, então nada mais em minha vida poderia igualar-se à urgência de procurá-lo. (2003: 17)

Essa ânsia por encontrar uma experiência realmente transformadora está na

base da devoção a Sai Baba e da expansão de sua Organização pelos países ocidentais.

Sua mensagem simples e acessível a todas as pessoas, propõe o fim da intolerância e

dos julgamentos fundados nas diferenças e a aceitação do princípio da unidade por trás

da diversidade de castas (no caso da Índia), de raças, de culturas e linguagens e de

crenças religiosas. Toda essa diversidade aparente, segundo Sai Baba, manifesta a

onipresença, onipotência e onisciência do Criador, pois Ele é “namarupa”, isto é, Ele é

todos os nomes e todas as formas existentes. Assim sendo, todas as manifestações

culturais e religiosas, como também todos os deuses e todos os fundadores das religiões,

são nomes e formas com que o Imanente se manifesta. Adore Deus em qualquer forma ou com qualquer nome. Na realidade, Deus tem milhares de nomes e uma miríade de formas. O Deus único tem muitos nomes. Enquanto adora Deus com mil nomes, você deveria estar completamente consciente de que está se dirigindo à mesma Divindade. Rama, Krishna, Alá, Jesus, etc. – todos são Nomes que denotam a mesma Divindade. Apenas a unidade é a realidade. A Verdade é única, mas o sábio se refere a ela por muitos nomes. Guarde esta fé firmemente em seu coração e faça sua vida valer a pena e permanecer sempre em bem-aventurança. (SAI BABA, discursos12 www.sathyasai.org.br, , 2008)

Se o divino está presente em todos e em tudo, a desigualdade se justifica

apenas como condição da vida humana no plano terreno, no qual as habilidades e as

necessidades criadas pela vida em sociedade diversificam as funções dos indivíduos e os

valores a elas atribuídos. A injustiça, nesse caso, nasce da exacerbação do valor das

diferentes funções sociais e das distinções de poder conferido às mesmas. Esse fato

12 No site oficial da Organização Sai do Brasil há 413 discursos de Sai Baba traduzidos para o português, que percorrem o período de 1953 a 2008.

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estimula o ego humano, que está sujeito à ilusão dos desejos e se apega aos benefícios

adquiridos em sua função. O ego apegado aprofunda as diferenças e as injustiças, pois

cria direitos e deveres desiguais, privilégios, etc. A causa da tristeza e da infelicidade do homem é o apego à propriedade ou à posição, nascido de um sentimento de posse. Para experimentar a felicidade duradoura, o homem deve se esforçar para se livrar desse sentimento de 'eu' e 'meu'. Quando tudo parece ir bem, o homem esquece tudo, incluindo a si mesmo. Seu ego aumenta, como resultado de suas realizações e aquisições. Ele deveria perceber que é apenas um beneficiário temporário do que possui, e que não tem qualquer direito permanente sobre isso. Ele deveria considerar o poder ou a posição social como uma responsabilidade moral, com a obrigação de cumprir os deveres relativos a ela. Somente quando todas as ações são realizadas com esse espírito de moral, o homem pode experimentar felicidade e satisfação genuínas. (SAI BABA, discursos, www.sathyasai.org.br, 2008)

Nessa perspectiva, portanto, o reconhecimento do princípio da unidade

proposto por Sai Baba, e que constitui o núcleo da experiência mística hinduísta,

estimula a mudança de atitude em todas as relações e atividades humanas: diante do fato

da unidade perde o sentido qualquer tipo de diferenciação entre superior e inferior (pela

profissão, pela condição econômica, pela raça, religião ou beleza física, etc.), pois

estamos lidando sempre com a mesma presença divina em cada ser ou em cada situação

da vida.

Segundo Sai Baba, somente uma verdadeira experiência interior da unidade

– que envolva a mente e o coração – pode transformar a humanidade e levá-la à paz.

Sai Baba expressa esse fundamento de sua mensagem em todos os

ensinamentos que apresenta em seus discursos, estimulando os devotos e demais

buscadores a não abandonarem o esforço pela conquista dessa experiência interior. A

insistência na busca pela experiência da unidade tem o mesmo papel que a

recomendação para o “namasmarana” ou “repetição do nome de Deus” e a recitação dos

mantras, todas essas atividades lembram que a constância na repetição interior de uma

verdade espiritual – se for realizada com verdadeira intenção e devoção – conduz à

realização da mesma na vida pessoal.

No entanto, Sai Baba não resume sua tarefa a estimular essa experiência

interior. Ele enfatiza que esse desejo por uma transformação espiritual deve

necessariamente se manifestar na vida cotidiana por meio do serviço. Servir, para ele,

significa realizar todas as atividades, desde tarefas domésticas até as profissionais,

assim como as de lazer, com a consciência da unidade, isto é, realizar tudo como um

serviço a Deus e à humanidade, sempre pensando em construir o bem para todos.

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As atividades de serviço que você executa e os cantos devocionais que você entoa não bastam. Você deveria, primeiro, abandonar o sentimento de que está servindo aos outros. Isso é muito importante. Você está servindo a si próprio quando serve aos outros. Você deveria considerar tudo como seu. Na realidade, todos os seres são a mesma forma de Deus. Portanto, o serviço feito à humanidade é serviço feito a Deus. Todas as atividades de serviço servem para nutrir este sentimento em você. Você deveria mergulhar nas atividades de serviço com amor abnegado. O melhor modo para amar Deus é amar todos e servir a todos. Seus atos de serviço deveriam ser preenchidos com o espírito do amor. Sem o aspecto positivo do amor, todo serviço que você faz torna-se negativo em sua natureza. (SAI BABA, discursos, www.sathyasai.org.br, 2008)

A utilização correta de cada recurso colocado à nossa disposição pela

sociedade e pela natureza e a dedicação de nosso potencial criativo para a melhoria das

condições sociais torna-se, assim, o mais alto grau de ação consciente no mundo. Deve

haver um compromisso interior com tudo que ocorre à volta, pois tudo passa a ser visto

como divino, mesmo que, muitas vezes, não seja prazeroso ou lucrativo. Essa forma de

ação, como vimos há pouco, constitui a essência do “karma-marga”, um dos caminhos

prescritos no Bhagavad Gita para o ser alcançar a libertação dos efeitos do “karma-

sansara”.

É sobre esses aspectos da mensagem de Sai Baba que fundamentamos nossa

afirmação de que o mesmo realiza a integração das espiritualidades ocidental e oriental.

Como vimos nas reflexões teológicas, o Cristianismo perdeu sua essência

mística e conferiu maior importância à formalidade da participação ritual e à luta pela

justiça por meio do ativismo social. Por sua vez, a mística hindu deixou de lado a

promoção da justiça social, se fixando numa interpretação radical da lei do karma, cujo

efeito é a despreocupação com a situação humana do indivíduo, visto que essa situação

é apenas uma conseqüência dessa lei. No caso da Índia, essa interpretação determinou a

quase que ausência de solidariedade entre as castas e o desprezo pelo infortúnio das

mulheres, dos párias e dalits.

Tanto a ênfase excessiva na justiça social como a ênfase excessiva na

responsabilidade individual pela própria condição social e espiritual, levam ao

esquecimento ou abandono do amor como essência da lei divina e como chave para a

verdadeira transformação humana. Sobre isso, Sai Baba afirma que não basta o enfoque

apenas material da justiça, assim como não basta trilhar o caminho interior segundo a

casta, sem manifestar solidariedade amorosa. Ambas as atitudes contribuem para manter

o mundo como está: cheio de individualismo e de violência motivada por disputas

materiais e distinções sociais.

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O enfoque de Sai Baba na tríade devoção a Deus, vivência dos valores

humanos e serviço à humanidade – que não pertencem a uma religião específica, mas a

todas elas – aproxima sua mensagem e seu propósito da essência da fé cristã, tornando

desnecessário que um admirador de seus ensinamentos mude sua concepção religiosa

para que possa praticá-los. Aliás, podemos dizer que seria praticamente impossível a um

cristão tornar-se hinduísta continuando a viver no Ocidente. Porém, as disciplinas

espirituais como o “namasmarana”, os mantras e os bhajans (cânticos devocionais), são

perfeitamente adaptáveis à experiência religiosa ocidental. Se há um único Deus,

reverenciá-lo pelo nome de Brahman ou Jesus se torna natural, assim como utilizar o

Pai Nosso e outras orações cristãs juntamente com mantras indianos ou entoar os belos

hinos cristãos como bhajans. Aqui, é importante relembrar as experiências dos Ashrams

cristãos que descrevemos há pouco.

Dois aspectos nos parecem de fundamental importância para entendermos a

aceitação de Sai Baba e sua mensagem entre os cristãos: o primeiro é o reconhecimento

de que o mesmo possa ser um Avatar, o segundo é a percepção do significado essencial,

para o indivíduo alcançar a realização no caminho espiritual, da revisão da categoria

psicológica do ego, conforme ela tem sido propagada no mundo ocidental.

Sobre o primeiro aspecto, basta observar a ausência atual no Cristianismo de

“guias espirituais vivos”, seres já realizados espiritualmente que inspirem e auxiliem os

que procuram mergulhar na vida espiritual, dando-lhes confiança quanto ao resultado de

sua busca. Nesse caso, Sai Baba, como uma encarnação divina representa a presença

viva do mesmo poder transformador que Jesus manifestou no passado, sendo, portanto,

o perfeito “guia espiritual”. Assim, para a grande maioria dos ocidentais e dos hindus

que procuram seu Ashram, estar perto dele significa pisar em solo sagrado, uma

oportunidade comparável a estar próximo de Jesus ou de Krishna.

Quanto ao segundo aspecto, podemos afirmar que, no Ocidente, o ego,

como núcleo da personalidade, tem sido estimulado com o objetivo de seu

fortalecimento e auto-afirmação, o que, em si, não é negativo Porém, isso tem ocorrido

por meio do incentivo à satisfação dos desejos individuais e da livre expressão de todas

as tendências pessoais, acentuando o enfoque materialista e hedonista do sistema

capitalista, fato que tem levado essa tendência ao extremo, estimulando os indivíduos a

centrarem toda a personalidade na busca compulsiva do sucesso e do prazer e na

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expressão de todas as emoções e impulsos, sem respeitar, para isso, limites sociais,

morais e éticos.

No campo da religião, esse estímulo ao ego tem ocorrido paralelamente ao

incentivo à vivência dos verdadeiros ensinamentos cristãos – “amar a Deus sobre todas

as coisas e amar ao próximo como a si mesmo”. Nesse caso, a atitude de superioridade

religiosa que é baseada na idéia de “eleição divina”, constitui um enorme estímulo ao

desenvolvimento da vaidade e do orgulho espiritual. Podemos dizer que o “ego

espiritual” inflado tem o efeito de limitar e, mesmo, impedir a vivência das verdades

cristãs, pois o prazer e a satisfação experimentados com a sensação de superioridade que

é conferida pela convicção de “ser eleito”, bloqueia a busca interior pelo auto-

aperfeiçoamento. Esta situação pode ser percebida de forma aberta e evidente em

algumas denominações cristãs (especialmente nas que se opõem ao diálogo com outras

crenças) ou de forma velada e discreta em outras.

No contato com os ensinamentos hinduístas – e da forma simples e direta

como são expostos por Sai Baba – os ocidentais que procuram a transformação interior

logo identificam o equívoco existente nesse estímulo excessivo ao ego e o obstáculo que

o mesmo representa no caminho espiritual. Na concepção hinduísta, os movimentos do

ego não devem ser estimulados, mas conhecidos, compreendidos e, pela disciplina,

dominados, pois o ego, quando movido pelos desejos acaba por se submeter ao corpo,

fortalecendo a tendência ao desregramento físico e à indisciplina espiritual, à medida

que esta exige a renúncia de muitas satisfações pessoais (físicas e emocionais).

Ao contrário, quando conhecido, compreendido e dominado, o ego deixa de

se mover apenas pela busca de auto-satisfação e passa a reconhecer que os desejos

exacerbados são a causa da violência, das injustiças, das calúnias e das discriminações

de todos os tipos. Desse reconhecimento surge a disponibilidade para o sacrifício dos

desejos, especialmente aqueles que são percebidos como promotores do mal individual

e social. Não há a necessidade de renunciar ao prazer e à alegria de viver, mas aos

excessos que acabam levando ao desprazer, às tristezas e à violência.

Essa experiência de compreensão do funcionamento do ego, acaba por

conduzir à experiência da unidade, à medida que a compreensão de si mesmo leva à

compreensão das motivações internas de todos os seres humanos e ao acolhimento

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pacífico das diferenças. Assim, a partir desse mergulho no conhecimento de si mesmo,

nasce a experiência da unidade e, com ela, a do serviço desinteressado à humanidade.

É quase que desnecessário afirmar que todo esse processo é longo e exige

do indivíduo a constante reflexão e uma vontade profunda de alcançar a experiência de

Deus. Contudo, muitos dos devotos ocidentais de Sai Baba, afirmam ter obtido essa

experiência de forma antes não imaginada, facilitada pela prática dos seus ensinamentos

e também pelo profundo amor e inspiração que receberam por parte do mestre, mesmo

estando distantes.

Concluindo essa parte de nossas considerações, podemos afirmar que os

ocidentais que integram os ensinamentos de Sai Baba ao seu universo espiritual, podem

realizar em suas vidas a essência da vida espiritual cristã, caracterizada pela aceitação

de Cristo presente em todos os seres e pela prática do amor e da caridade.

Já em relação ao hinduísmo, a postura de Sai Baba, além de manter viva a

busca pela experiência mística da unidade, tem ajudado a combater as violências do

sistema de castas, que oficialmente não existe na Índia desde 1947, mas que permanece

arraigado nos costumes e relações cotidianas. Seu enfoque na promoção da justiça

social e na igualdade de todos os seres humanos é expresso pelos lemas “Amor em

ação” e “Ame a todos, sirva a todos”, que se espalham por todos os locais onde há

iniciativas suas.

O compromisso com sua mensagem o fez investir considerável quantidade

de recursos, disponibilizados por seus devotos de todo o mundo, em programas e obras

sociais de grande alcance: 1) a construção de represas e de sistemas de tratamento de

água que hoje fornecem água tratada para milhões de pessoas que vivem em aldeias do

sul da Índia; 2) a construção de três hospitais (dois deles entre os maiores e mais

modernos da Ásia, com atendimento gratuito e trabalho voluntário); 3) o investimento

em unidades móveis para o atendimento dos problemas básicos de saúde da população

carente; 4) a criação de centros de formação profissional como, por exemplo, uma

escola de preparação para motoristas de rickshaw que funciona como uma cooperativa

que auxilia no financiamento do veículo; 5) centros de atendimento a idosos, mulheres,

crianças e deficientes físicos; 6) criação de um sistema de ensino que cobre todo o

período escolar – desde a pré-escola até o doutorado em algumas áreas –, no qual o

critério de seleção não é a casta ou a condição econômica, cujos princípios norteadores

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são a formação do caráter e a vivência dos valores humanos (amor, verdade, paz, retidão

e não violência), e que hoje é qualificado como um dos melhores da Índia.

Com o objetivo de colaborar na transformação de toda a Índia, a

Organização Sai tem realizado esses empreendimentos em todo o país, estimulando em

todas as regiões as ações fundamentadas nesses ideais, procurando contribuir para a

mudança dos padrões tradicionais de relação entre as castas e das condições e meios de

vida culturalmente estabelecidos para as castas inferiores.

É interessante notar que essa circunstância está presente também nas

atividades sociais dos cristãos na Índia, pois estes encontram maior aceitação da

mensagem cristã entre essas castas e acabam direcionando às mesmas a maior parte de

seu trabalho. (VON BRÜCK, 1986: 57)

De certa forma, Sai Baba está procurando corrigir, a partir de sua condição

de líder espiritual, as interpretações do sistema social e religioso indiano que se

sustentam no argumento de que a desigualdade é relativa somente ao karma individual.

Na visão de Sai Baba, mesmo que se reconheça a justiça existente na Lei do

Karma, esta não pode anular a Lei do Amor, que se expressa pela compreensão da

unidade de todos os seres e pelo serviço desinteressado à humanidade. Assim, todas as

atividades assistenciais promovidas pela Organização Sai são realizadas em caráter

voluntário por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e demais profissionais que se

dispõem a executá-las, sem que haja qualquer tipo de distinção social em relação aos

atendidos.

Num projeto de alcance mais amplo, Sai Baba pretende, com o sistema de

ensino cujas diretrizes estão sob sua orientação, formar as lideranças futuras da Índia,

com profissionais gabaritados e imbuídos da consciência espiritual e adeptos

incondicionais da aplicação dos valores humanos em todas as áreas da sociedade,

incluindo a política e a economia.

Todas essas, podemos dizer, estratégias de ação espiritual na sociedade,

conduzidas por Sai Baba e pela Organização Sai, são familiares aos cristãos, à medida

que o Cristianismo também realiza empreendimentos similares e com os mesmos

objetivos nas sociedades em que está inserido.

Conclusão

Se analisarmos o movimento espiritual liderado por Sai Baba sob a

perspectiva das reflexões que apresentamos, provenientes da Teologia, podemos afirmar

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que a interação e integração entre as visões de mundo ocidental e oriental ocorre à

medida que o Cristianismo – em uma de suas principais vertentes – reconhece o valor

dos ensinamentos e práticas hinduístas e aceita aprender com as mesmas, como é o caso

da percepção da mística como elemento fundamental não só para se alcançar a

realização na vida espiritual mas também para a redescoberta da essência da vida cristã.

Por outro lado, o Hinduísmo volta-se para formas de ação social que há

muito tempo são praticadas dentro do Cristianismo, tanto no Ocidente como na Índia,

como vimos na experiência dos ashrams cristãos. Nesse sentido, a ação social e

espiritual promovida por Sai Baba e pela Organização Sai está em perfeita sintonia com

o propósito mais amplo do Cristianismo de transformar a sociedade por meio da

aplicação dos princípios da “devoção” e do “serviço” ou “amor a Deus” e “ao próximo”.

Porém, ao universalismo da religião cristã – que o Cristianismo procurou e

procura realizar por meio das atividades missionárias – sobrepõe-se, hoje, o

universalismo dos valores humanos, que não pertencem a uma tradição religiosa, mas

podem ser encontrados em todas elas.

Abre-se, a nosso ver, a partir dessa interação e integração baseada em ações

e valores comuns, uma nova perspectiva e um novo significado para a “construção do

Reino de Deus” ou início de uma “Era de Ouro”: na constituição de uma identidade

planetária, as identidades culturais e religiosas (para citar apenas essas) não podem se

sobrepor à identidade humana, isto é, de todos os seres humanos como um todo

integrado.

Mesmo que não tenhamos nos referido especificamente aos movimentos

conservadores, tradicionalistas ou propriamente fundamentalistas existentes tanto no

mundo ocidental como no oriental, entendemos como certo que essas tendências – que

hoje reagem contrariamente ao diálogo entre as crenças e culturas – mais cedo ou mais

tarde deverão se confrontar com o significado profundo contido na formação da

civilização global.

Nesse sentido, a “Era de Ouro” ou “Reino de Deus”, é o período no qual a

consciência da unidade – mas mantendo-se e valorizando-se toda a diversidade existente

– fundamentará a busca do homem pela paz e pela justiça nas relações entre todos os

seres.

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Anexo

Existem hoje, somente no mercado editorial brasileiro, cerca de 40 títulos de livros que falam sobre Sai Baba, sobre seus ensinamentos e as experiências vividas pelos devotos quando em contato com ele. Além dos livros, há também CDs com mantras, DVDs com imagens de cerimônias realizadas em seu Ashram na Índia, e o site da Organização Sai no Brasil (www.sathyasai.org.br), no qual é possível obter todos os tipos de informação sobre Sai Baba e sobre as atividades da Organização em nosso país e no mundo (está presente em 136 países).

Nosso interesse por Sai Baba e pelo propósito de suas atividades e da Organização Sai deve-se, por um lado, ao caráter inusitado, extraordinário e instigante de sua manifestação como líder espiritual, fato que possibilita, por outro lado, uma abordagem interessante sobre a relação entre as tradições espirituais do Oriente e do Ocidente no contexto da globalização cultural. A nosso ver, Sai Baba propõe uma linguagem universal, baseada na experiência da unidade, como meio de se estabelecer o diálogo e a interação frutífera entre as muitas religiões existentes no mundo.

Sai Baba ou Sathya Narayana Raju, nasceu em 1926 no vilarejo de Puttaparthi, localizado no estado de Andhra Pradesh, sul da Índia. Desde o nascimento, sua vida tem sido marcada por fatos extraordinários, sendo os mais notáveis o profundo conhecimento das escrituras sagradas e da sabedoria espiritual da Índia (sem que houvesse estudado qualquer texto), o poder de curar doenças e a capacidade de “materializar” ou trazer à existência um sem número de objetos: na infância, doces, frutas e material escolar, mais tarde, livros, fotos, estatuetas de divindades, colares, pulseiras, anéis, rosários, etc., estes últimos sempre com a motivação – segundo suas próprias palavras – de presentear buscadores espirituais sinceros com algo que simbolizasse o encontro com ele e que os mantivessem ligados ou com a finalidade de ilustrar algum ensinamento espiritual que estivesse transmitindo.

Esses muitos milagres, segundo Sai Baba, são necessários devido à natureza excessivamente materialista da mente humana nos dias de hoje.

Em 1940, pouco antes de completar 14 anos, revelou ser a reencarnação de Sai Baba de Shirdi, importante santo indiano que anunciara, pouco antes de morrer, em 1918, que voltaria a nascer após 8 anos. A partir dessa revelação Sai Baba passou a materializar constantemente a cinza sagrada chamada vibhuti, a qual manifestava poderes curativos e purificadores, tanto do corpo como da mente.

O rápido aumento do número de visitantes a Puttaparthi levou à formação de um Ashram, local onde Sai Baba recebia devotos, transmitia seus conhecimentos sobre a tradição espiritual indiana e realizava as cerimônias e rituais sagrados prescritos nas escrituras. Aos poucos Sai Baba estabeleceu um extenso calendário de cerimônias e rituais – incluindo a celebração do Natal, que é significativa para os ocidentais – cujo intuito, segundo ele, é revitalizar as antigas tradições e restabelecer seu significado original, mas traduzindo-as para uma linguagem universal, adequada ao nosso tempo.

Dentre essas cerimônias, ganhou destaque especial a do Maha Shivaratri ou “Grande Noite de Shiva”, realizada todos os anos na última noite de lua minguante no mês hindu de Magha, que ocorre entre fevereiro e março do nosso calendário, momento propício – sob os auspícios do deus Shiva – para que o devoto alcance o domínio da própria mente e dos sentidos físicos, dando um passo significativo para realizar moksa ou libertação do ciclo de renascimentos.

Nessa cerimônia ocorre um dos principais fatos extraordinários que se manifestam na vida de Sai Baba: a materialização do Shiva Lingam. Esse objeto sagrado, basicamente do tamanho e forma de um ovo e constituído por diferentes elementos como ouro, prata, cristal, etc., é gerado no esôfago de Sai Baba, saindo pela boca do mesmo durante o Maha Shivaratri, podendo ser apenas um ou vários lingams a cada ano. A materialização do Shiva Lingam é um dos fatos reveladores de que Sai Baba é um Avatar do deus Shiva.

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Tocamos aqui no ponto central de nossa abordagem sobre Sai Baba, à medida que a possibilidade da existência de um Avatar vivo e da experiência de contato com ele e recepção de sua benção (darshan) e de sua energia espiritualmente transformadora, parece ser a fonte da qual emana esse movimento espiritual que atinge escala global. Sobre esse aspecto, é importante destacar aqui o valor desse acontecimento para os buscadores espirituais de todo o planeta que anseiam por uma experiência real e libertadora de encontro com Deus. Para muitos desses indivíduos a possível existência do Avatar representa uma oportunidade única e que não pode ser perdida.

A doutrina do Avatar – que na tradição hinduísta significa “o divino desce para este mundo e se torna presente numa forma” (D’SA, 1993, p. 92) –, entra na história do Hinduísmo por meio do Bhagavad Gita, texto sagrado que narra a intervenção histórica e o ensinamento de Krishna, oitavo avatar do deus Vishnu, e marca uma mudança significativa na tradição espiritual hindu.

Temos, então, na existência e encarnação do Avatar a manifestação do supremo poder, como nome e forma, esclarecendo e confirmando ensinamentos das antigas tradições espirituais, e assumindo a tarefa de realizar a renovação da vida espiritual em momentos de crise profunda dos valores essenciais da humanidade.

Sai Baba, ao afirmar ser um Avatar, coloca-se como continuador dessa ação divina no mundo e revela, por sua simples presença, que o atual momento histórico, no qual se vivencia a formação da civilização global e em que ocorre o encontro ou confronto entre as muitas culturas, tradições religiosas e interesses políticos e econômicos, é um período crucial para o futuro da humanidade.

Recorremos aqui ao discurso do próprio Sai Baba no intuito de dimensionar como ele mesmo define sua missão como Avatar e a perspectiva de sua atuação dentro do propósito da renovação dos valores espirituais.

Em muitos dos seus pronunciamentos, como o realizado em 23 de novembro de 1968, data de seu 43º aniversário, Sai Baba anuncia sua condição de Avatar, com todos os poderes atribuídos ao divino:

Para a proteção dos virtuosos, para a destruição dos malfeitores e para o firme restabelecimento da justiça, Eu encarno de tempos em tempos. Sempre que a desarmonia (ashanti) dominar o mundo, o Senhor encarnará sob a forma humana para instituir as maneiras de se obter a Paz Suprema (Prashanti) e para reeducar a comunidade humana nos caminhos da paz. [...] (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 100)

A presença do Avatar, como nome e forma, inserido na história humana, tem uma função didática, à medida que pode orientar diretamente os devotos e fortalecê-los no conhecimento espiritual e na conquista da libertação:

O Avatar se comporta como se fosse humano para que a humanidade possa sentir afinidade com Ele, mas eleva-se a alturas sobre-humanas para que a humanidade possa aspirar a alcançá-las e, através dessa aspiração, chegar verdadeiramente a Ele. A missão para a qual Ele vem sob a forma humana é levá-los a compreender o Senhor como motivador dentro de cada um de vocês. [...] Vim para dar-lhes a chave do tesouro da Bem-Aventurança (Ananda), para ensinar-lhes a beber desta fonte, pois vocês se esqueceram do caminho que conduz a ela. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 101 e 102)

Sai Baba reconhece e valoriza todas as religiões e todos os demais nomes e formas

com que o Senhor se manifestou no passado e, além de estimular os indivíduos a permanecerem em seu caminho, afirma que está presente com sua benção sempre que qualquer devoto se manifesta sincero em sua fé qualquer que seja o nome e forma de sua devoção:

Vocês podem dirigir-se ao Senhor por qualquer nome que lhes seja doce ao paladar, ou escolher para representá-Lo qualquer forma que lhes evoque um sentimento de admiração e reverência. Podem louva-Lo como Muruga, Ganapathi, Sarada, Jesus, Maitreya, Shakti; ou invocá-Lo como Alá, como Aquele que não tem Forma ou como o Senhor de todas as Formas. Não faz diferença alguma. Ele é o princípio, o meio e o fim; é a base, a substância e a fonte. [...] Continuem adorando o Deus de sua escolha, da maneira que lhe é familiar e, então, descobrirão que estão se aproximando cada vez mais de Mim, pois todos os nomes

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são Meus e todas as formas são Minhas. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 102 e 247)

Sai Baba, porém, realiza a crítica da visão estreita das religiões que, no intuito de

defender suas concepções e doutrinas, se estabelecem sobre a falsa idéia de que detêm a verdade e que, por isso, podem estimular a intolerância que se baseia na superioridade e no preconceito:

Quem pode afirmar que Deus é isso ou aquilo? Quem pode afirmar que Deus é tal forma ou possuidor de tal atributo? Cada um pode adquirir da vasta extensão do oceano somente o quanto pode ser contido no vasilhame que levar até a praia. A partir dessa quantidade, pode-se conhecer um pouquinho daquela imensidão. Cada religião define Deus dentro dos limites que demarca e então alega conhecê-Lo todo. Como os sete cegos que falavam do elefante como um pilar, um abanador, uma corda ou um muro, porque eles entravam em contato com apenas uma parte e não podiam compreender o animal inteiro, similarmente, as religiões falam de uma parte e afirmam que essa visão é completa e total. Cada religião esquece que Deus é todas as Formas e todos os Nomes, todos os atributos e asserções. A religião da Humanidade é a soma e a substância de todas essas fés parciais; portanto, existe somente uma Religião e essa é a Religião do Amor. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 217)

Contrário a qualquer espécie de separação ou discriminação, Sai Baba afirma sua

missão global, não restrita à Índia e ao Hinduísmo: Este Sai veio para cumprir a suprema tarefa de unir toda a humanidade em uma só família através do vínculo da fraternidade; afirmar e iluminar a realidade átmica de cada ser, a fim de revelar o Divino, que é a base sobre a qual repousa todo o Universo; e instruir a todos no sentido de reconhecerem a herança divina comum que liga os homens entre si – a fim de que o homem possa libertar-se da condição animal e ascender à Divindade que é a sua meta. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 220)

Tendo por tarefa trazer a humanidade de volta ao caminho espiritual, Sai Baba

afirma categoricamente a certeza da concretização de sua missão, mesmo que a muitos pareça incompreensível ou, mesmo, inacreditável:

Tudo o que eu desejo se realizará, tudo o que eu planejo se concretizará. Sou a verdade, e a verdade não tem necessidade de vacilar, de temer ou de se submeter. ‘Ser condescendente’ é supérfluo para mim, pois minha graça está sempre disponível para os devotos que têm amor e fé inabaláveis. Como eu me movimento entre eles, conversando e cantando, mesmo os intelectuais são incapazes de compreender minha verdade, meu poder, minha glória ou minha verdadeira tarefa como Avatar. Posso resolver qualquer problema, por mais complexo que seja. Encontro-me além do alcance da investigação mais profunda e da avaliação mais meticulosa. Somente aqueles que reconheceram e vivenciaram o meu amor podem afirmar ter tido um vislumbre de minha realidade, pois o caminho do amor é a estrada soberana que conduz a mim a humanidade. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 219)

Por fim, Sai Baba afirma que, antes do final dessa encarnação, que se encerrará no

ano de 2021, a aurora de uma nova Idade de Ouro planetária será iniciada: Cultivem no coração a proximidade Comigo e serão recompensados, pois assim adquirirão também uma fração deste Amor supremo. Está é uma grande oportunidade. Confiem em que todos serão libertados. Saibam que estão salvos. Muitos hesitam em acreditar que as coisas vão melhorar, que a vida será feliz e plena de alegrias para todos e que a Idade de Ouro ressurgirá. Asseguro-lhes que este corpo divino, este Dharmaswarupa, não veio em vão. Ele terá êxito em acabar com a crise que se abateu sobre a humanidade. (SAI BABA, apud SANDWEISS, 2002, p. 100)

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