Revista Curinga Ed. 16: Especial

88
Revista Laboratório | Jornalismo | UFOP Março de 2016 | Ano VI

description

Revista-laboratório do curso de Jornalismo da UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto.

Transcript of Revista Curinga Ed. 16: Especial

Page 1: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Revista Laboratório | Jornalismo | UFOP Março de 2016 | Ano VI

Page 2: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Expediente

Professores ResponsáveisFrederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)Lucília Borges (Planejamento Visual)André Luís Carvalho (Fotografia)Editoras de Texto Catarina Barbosa e Gabriela SantarosaEditora de ArteSilmara FilgueirasSubeditor de ArteRodolfo DiasEditores de Fotografia Jéssica Corona e Stênio LimaEditoras de MultimídiaAna Clara Fonseca, Giovanna de Guzzi, Luíza Lacerda

Re

da

tore

sD

iag

ram

ad

ore

sFo

tóg

rafo

s

Aline Nogueira, Ana Clara Fonseca, Andrezza Lima, Caroline Antunes, Eliene Santos, Endrica Fernandes, Gabriel Campbell, Gabriela Santarosa, Igor Capanema, Luana Barros, Marília Mesquita, Stela Diogo, Stênio Lima.

Bárbara Torisu, Caroline Fernandes, Felipe Augusto, Fernando Ciríaco, Igor Capanema, Isabela Porto, Magu Tavares, Rafael Melo.

Aline Nogueira, Andressa Goulart, Andrezza Lima, Catarina Barbosa, Eliene Santos, Felipe Augusto, Fernando Ciríaco, Jéssica Corona, Luana Barros, Luiza Lacerda, Marina Morgan, Thatiana Zacarias, Victor Hugo Martins.

Monitores: Bruno Arita e Túlio dos Anjos

Agradecimentos especiais à Diretoria do ICSA, ao Setor de transportes da UFOP, Corpo de Bombeiros, Guarda Municipal de Mariana, Elvis Barbosa e Elmo de Oliveira.

Endereço:Rua do Catete, 166 - Centro35420-000, Mariana - MG

Março/2016

Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II.

Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop.

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de

Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO).

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

rio

Page 3: Revista Curinga Ed. 16: Especial

15 18 5645 6466

Car

ta a

ber

ta

Ho

men

s tr

abal

han

do

Vo

zes

da

trag

édia

En

saio

fo

tog

ráfi

co:

Qu

em r

esis

te à

lam

a?

Pre

juíz

o A

mb

ien

tal

Eu

so

u a

lam

a

Os

impa

ctos

da

mai

or t

ragé

dia

ambi

enta

l do

Bra

sil

73

Um

céu

de

con

tras

tes

PIB

e I

DH

M a

ltos

não

sig

nif

icam

riq

uez

a e

igu

alda

de s

ocia

l par

a M

aria

na

Men

sage

m d

a Pe

dago

ga q

ue

trab

a-lh

ava

na

Esc

ola

de B

ento

Rod

rigu

es

Um

a cr

ônic

a pe

rson

aliz

ada

A m

orte

de

trab

alh

ador

es s

oter

rado

s n

a la

ma

da b

arra

-ge

m c

oloc

a a

terc

eiri

zaçã

o n

ovam

ente

em

pau

ta

Exp

eriê

nci

as in

dire

tas

do a

com

teci

men

to

Page 4: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Editorial

Cartas do Leitor

Para comentar as matérias ou sugerir pautas para a nossa próxima edição, envie e-mail para: [email protected]

5 de novembro de 2015, por volta das 15h. A barragem de Fundão da mineradora Samarco S.A. se rompe. Quinze mi-nutos depois, destrói o subdistrito de Bento Rodrigues. Horas mais tarde, a lama de rejeitos atinge o distrito de Paracatu de Baixo. 17 pessoas morreram na tragédia e duas permanecem desaparecidas. Até a madrugada de 6 de novembro, a lama atingiu a cidade de Barra Longa, os subdistritos de Camargos, Pedras, Gesteira e afetou lugares que dependiam do Rio Doce. Foram 24 horas confusas e tensas. Havia pouca informação.

9 de novembro de 2015, 19h. A Revista Curinga decide interromper o processo de produção de sua 16ª edição. Era im-possível deixar de relatar as histórias das vítimas da tragédia. Isto não poderia ser esquecido.

Resolvemos fazer uma abordagem diferente dos outros veículos. Por se tratar de um tema delicado e importante, de-cidimos duplicar o número de páginas da revista.

As tradicionais 44 páginas tornaram-se 88. Começa a pri-meira edição especial da Curinga. Na editoria “Travessia”, o marrom que remete à lama é uma marca real do percurso por onde o rejeito passou e deixou destruição. Marca que chama a atenção de observadores e restará guardada na memória de todos os atingidos direta e indiretamente pela tragédia

Na editoria “O Mundo em Mim”, suas consequências. Nós, como estudantes de jornalismo, não poderíamos observar algo da nossa rotina como se estivéssemos do lado de fora. Ma-riana é também nossa casa. Olhamos a situação como quem vê todos os dias pessoas ligadas ao rompimento da barragem, parentes, amigos, conhecidos. Somos parte disso também.

A Curinga histórica sobre Bento Rodrigues traz toda a temporalidade do rompimento de Fundão, desde a construção de uma barragem até as vidas afetadas direta e indiretamente por ela. Na editoria “Eu no mundo”e nas demais, buscamos

dar voz à todas as pessoas que tiveram algum envolvimento com a situação.

Qual o preço que se paga pela mineração? E qual o custo ambiental da tragédia? O Rio Doce morreu e levou consigo parte do mar. Parte da Estrada Real desapareceu. No caminho percorrido pela lama, há quem não teve seu lar destruído, mas perdeu o principal meio de sobrevivência: terra e água.

Procuramos resgatar a identidade de quem perdeu todos os seus bens. Quem foi Bento Rodrigues? Quem eram os mo-radores antes do dia 5 de novembro? Quem são agora? Primos, filhas, tios, tias, pais. Eles têm nome, história e toda uma vida de adaptação. Quem serão? Essas pessoas estão, hoje, unidas pela lama. É um estigma que, infelizmente, os une.

E quanto a realocação destas pessoas? Elas estão alojadas agora, mas foram separadas de seus antigos vizinhos e ami-gos. Haverá um novo Bento? Este será como o antigo? Como seguir em frente? São perguntas que tentamos responder ao longo de toda a revista através de nossas reportagens e dos ensaios fotográficos.

Agradecemos desde já a todos que visitaram memórias para documentar nesse especial os principais acontecimentos; do rompimento da barragem de Fundão até a realocação de seus moradores. Sabemos que foram momentos difíceis, mas é necessário documentar. Bento Rodrigues não merece ser apagado do mapa. Nenhuma vítima merece o esquecimento. Há tradição de gerações debaixo de cada quilômetro de lama e incontáveis histórias daqueles que sobreviveram. Antes da lama. Depois da lama. 5 de novembro será sempre um divisor.Uma marca. Uma mancha.

Catarina Barbosa e Gabriela Santarosa

Page 5: Revista Curinga Ed. 16: Especial

EU NO MUNDO

Jéss

ica

co

ron

a

Page 6: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Se

nsa

ção

L i l i a n M a r i a Jose Geraldo Maria

Imaculada C a t a r i -

na Alice Adrielli

Alequis-s a n d r a Nivea Raissa

Rayane Clarisse Rafaela Expedi-to Geraldo Joao Ligia Miguel Na-talia Angela Camila Matheus Mi-rella Milton Valdemar Paula Keilla Jeniffer Maria Jose Geraldo Maria Imaculada Catarina Alice Adrielli

Alequissandra Nivea Raissa Rayane Clarisse Rafaela

Expedito Geraldo

Maria Jose Geraldo Maria Imacu-

lada Catarina Alice Adrielli Alequissandra Nivea Raissa

Rayane Clarisse Rafaela Expedito Geraldo Joao Ligia Miguel Nata-lia Angela Camila Matheus Mirella Milton Valdemar Paula Keilla Jeniffer Maria Jose Geraldo Maria Imaculada Catarina Alice Adrielli Alequissandra Nivea Raissa Rayane Clarisse Rafaela Expedito Geraldo Joao gia Miguel Natalia Angela Camila Matheus Mirella Milton Valdemar Paula

Keilla Jenifferamila Matheus Mirella Milton Valde-

mar Paula

Maria Jose Geraldo Maria Imacu-

lada Catarina Alice Adrielli Alequissandra Nivea Raissa

Rayane Clarisse Rafaela Expedito Geraldo Joao Ligia Miguel Nata-lia Angela Camila Matheus Mirella Milton Valdemar Paula Keilla Jeniffer Maria Jose Geraldo Maria Imaculada Catarina Alice Adrielli Alequissandra Nivea Raissa Rayane Clarisse Rafaela Expedito Geraldo Joao gia Miguel Natalia Angela Camila Matheus Mirella Milton Valdemar Paula

Keilla Jenifferamila Matheus Mirella Milton Valde-

mar Paula

histórias

20 retratos

1barragem

Page 7: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 7

Fotos: AndressA GoulArt, JéssicA coronA e thAtiAnA FreitAs

Arte: MAGu tAvAres

Page 8: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Ide

nti

da

de

José, e agora?”

Com a chave na mãoquer abrir a porta,não existe porta;

quer morrer no mar,mas o mar secou;quer ir para Minas,Minas não há mais.

Carlos Drummond de Andrade

texto: cArol Antunes

Fotos: luAnA BArros

Arte: rAFAel Melo

Ide

nti

da

de

Page 9: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 9

De um lado, José Nascimento de Jesus, 70, conhecido como o Zezinho de Bento Rodrigues. Presidente da Associação de Mo-radores e Líder Comunitário do subdistrito, tem como dom a dedicação e a vontade de ajudar a comunidade. Do outro, José Patrocínio de Oliveira, 86, chamado de Zezinho de Paracatu. Co-mandante da Folia de Reis, tem como um de seus prazeres a ale-gria e disposição de não deixar a festa tradicional do subdistrito morrer. O que une essas vidas além do nome? A cor marrom.

Zezinho de Bento apareceu na entrada do hotel sorridente e hospitaleiro. Apertos de mãos dão início a um vínculo e sua his-tória seria parte minha também. Começou a contar o que ainda se enroscava na garganta. “Foi horrível, a gente correndo e a lama vindo atrás. Não deu tempo de nada, só de correr. Cheguei com a boca seca”, lamenta. A primeira coisa que veio na sua cabeça foi: “o que nós vamos fazer, Irene?”. Ele e sua mulher passaram uma noite ilhados em Bento, sem poder ir embora, porque os helicópteros suspenderam o resgate. Só puderam dei-xar o local às nove horas da manhã seguinte. Com Zezinho de Paracatu não foi muito diferente: teve tempo apenas de pegar os documentos e correr para não ser atingido pela lama. “Pega os documentos e vai, porque daqui a cinco minutos vem uma bar-reira aí”, três companheiros o avisaram. Correu e foi para casa de sua filha, que era mais à frente, e ficou esperando a tragédia chegar. Quando chegou, só ouviu o barulho da lama batendo e derrubando as casas. “Acabou tudo, arrasou” - diz com o olhar longe, distante de mim e perto da memória de uma vida que não volta mais.

Os cenários de entrevista dos Zezinhos eram distintos. O de Bento estava em um hotel harmonioso e com varandas por vários lados. O de Paracatu era um com poucas janelas e a luz fraca. Não era o local que ambos queriam estar. Queriam o lar, o aconchego, o que é deles por direito. Zezinho de Bento não nasceu lá, mas viveu 32 dos seus 70 anos no subdistrito. Já o de Paracatu é nascido e criado, onde morou seus longos 86 anos.

Zezinho relembra o quanto foi bem aceito em Bento Rodri-gues. Natural de São João Del Rei, MG, mudou-se quando seu trabalho foi transferido para lá. Vivendo de aluguel primeira-mente, conseguiu construir seu lar quando um amigo vendeu para ele um lote. Ali construiu uma casa e muita história. Os filhos viveram com ele e sua mulher no subdistrito por pouco tempo. Como já eram adultos na mudança, seguiram seus ru-mos. Zezinho e Irene, fiéis ao lugar que os acolheu, ficaram até não poderem mais. Ficaram até serem expulsos.

No mesmo ano em que Zezinho se mudou para Bento, o de Paracatu passava por um momento difícil. Enquanto um esta-va vivendo uma mudança que trazia a animação de uma nova vida, o outro sentia a mudança da despedida, de dar adeus à quem sempre esteve por perto. Ambos experimentavam um lu-gar novo. Um com novas pessoas e o outro sem a qual lhe deu a vida. O pai de Zezinho de Paracatu faleceu no ano de 1983 e a época já não estava fácil. “Era uma época difícil, a gente lutava muito com a vida para ter as coisas em casa. Foi fácil não”, la-menta ao recordar-se da situação.

Uma vida inteira em Paracatu, Zezinho sempre trabalhou na roça. Tirando uma época em que estava tudo mais compli-cado, com o tempo, construiu em seu lar um lugar onde nada faltava, nada precisava ser comprado. “Eu tinha 24 filhos, só de homem eram 12, todo mundo trabalhava na roça. A gente

tinha arroz, moranga, pepino, melancia. Agora fico aqui preso. Não faltava nada lá. Tudo o que ‘cê’ precisasse, tinha. Agora não restou nada”, desabafa. Conta com orgulho que sua casa era grande com um terreno que tinha espaço para quando os filhos casassem construírem suas casas ao redor da dele. Dos 24, hoje restaram apenas 16 filhos. Alguns moravam em Paracatu, ou-tros moram em Mariana. Mas todo sábado visitavam o pai. “Eu ficava aflito para chegar sábado para eles chegarem”, enfatiza.

Tudo em Bento faz falta para Zezinho. Ele confessa que ja-mais irá se esquecer dos pés de manga, de jabuticaba, da rotina. “A gente pode até viver melhor do que lá, mas não é a casa que a gente tinha, aquela vida que a gente tinha, aquela liberdade que a gente tinha”. Zezinho sente saudade de acordar de manhã e já saber quem estava levantando para o serviço. A nostalgia do diálogo matinal, rotineiro: “bom dia, tudo bem?”, “beleza, tudo jóia”, “vai com Deus”, “Deus te acompanhe”. Lembra com o olhar longe daquelas paisagens, praça, igreja, as ruas que era acostumado a percorrer todos os dias. Com o som de passari-nhos cantando pelo hotel, Zezinho confessa: “tem uma coisa que eu não falei e tô sentindo muita falta - a Irene não pode nem me ouvir falando que começa a chorar - que são os passari-nhos. Tinha um monte de passarinho solto e eu cuidava deles”. Zezinho comprava alpiste, canjiquinha e ração. Às vezes eles le-vantavam primeiro do que ele e o chamavam. “Isso aí eu não vou esquecer nunca e não vou ver nunca mais”, desabafa com o olhar triste.

Zezinho de Paracatu sente falta da sua rotina que era cheia de vida. “Levantava cedo, às cinco da manhã, saía de casa, bebia o meu cafezinho preto e ia cuidar da criação, cavalo, vaca, plan-tações. Agora ia dar jabuticaba e laranja, mas acabou com tudo. É triste, a gente tem saudade do que a gente tinha”, lamenta.

Ambos simples, valorizam os hábitos mais singelos. Ressal-tam que uma das melhores coisas de morar nos distritos era a amizade. Zezinho de Bento destaca que “lá era uma comuni-dade muito humilde, onde todo mundo conhecia todo mundo. Um ajudando o outro. Quando um estava doente, o outro ia visitar. Quando a gente tem amizade, não falta nada! Para nós é uma coisa muito difícil, porque não sabemos se vamos ter essa união novamente”. Zezinho de Paracatu tinha muitos amigos. “Lá não tinha separação, era uma família só. Todo mundo se ajudava. Todo mundo era compadre um do outro”, enfatiza.

Vivendo em um lugar de tradição religiosa, a igreja é um dos espaços que a lama arrastou. No dia de São Bento, Zezinho sempre ia à capela construída em homenagem ao padroeiro. Ti-nha o costume também de todas as noites, às 19h, rezar o terço do Santíssimo, na presença de umas dez pessoas, além de tocar no coral. Zezinho de Paracatu também tem uma relação muito grande com a fé. Confessa que não ia na igreja toda semana, mas sempre acreditou em Deus. Ainda enfatiza como os pode-res divinos agem em todo lugar: “a bandeira do menino Jesus de Paracatu estava lá, tudo foi embora e a bandeira ficou. Tudo cheio de lama, mas nela não caiu um pingo. É um milagre!”.

Outro ponto em comum dos Zezinhos, é a música. Zezinho de Bento tem o violão como uma parte do seu ser, e confessa: de todos os pertences que estavam dentro de sua casa, o ins-trumento é a ausência mais sentida. “Eu até ganhei outro, que pode ser até melhor, mas igual com certeza não. Porque já tinha aquele amor. Eu tinha o violão há mais de vinte anos, era de

Pretérito imperfeito

Pretérito perfeito

CURINGA | EDIÇÃO 16 9

Page 10: Revista Curinga Ed. 16: Especial

estimação”, lamenta. Amante de sertanejo raiz, sempre no fim de semana ele e sua mulher levavam o violão e uma caixa de som na praça. Ele tocava e Irene cantava para espantar os males e trazer a alegria para perto. No final da conversa, Zezinho até deu uma palinha e fez questão de compartilhar com a gente uma de suas composições. A letra gritava para salvar a natureza. Ironia ou não, ela dizia: “e o que vai ser da gente?”

Zezinho de Paracatu tem a música como algo que faz parte da sua identidade. Responsável pela Folia de Reis, tudo o que tinha foi embora. Pandeiros, xique-xique, reco-reco, bandei-ra. “Tô conseguindo arrumar alguns instrumentos, já ganhei bumbo, pandeiro. Porque eu não fico sem a folia não!”, avisa. Para ele, a festa era a coisa que mais gostava nesse mundo. Co-meçou a acompanhar a Folia com nove anos, com seus pais e avôs. Quando cresceu, levou seus filhos. Com o passar do tem-po, sua hora de comandar a Folia chegou e há 46 anos Zezinho está à frente do evento. “A festa que a gente homenageia o me-nino Jesus acontece todo mês de setembro. Eu dou de comer e beber no sábado e domingo para todo mundo sem cobrar. Tem barraquinhas, cozinheira, levantamento de mastro, celebrações. A gente toca. Uma alegria só!”, relembra sem saber da continui-dade e do futuro que sua festa terá.

No terceiro encontro, Zezinho de Bento revela que também já comandou uma Folia de Reis. O curioso é que os dois se co-nheceram num desses eventos de Folias. Contam que não con-versaram, apenas se viram e sabiam da existência um do outro. A vida dos dois se cruza em várias estradas. Zezinho relata que, quando chegou em Bento, o pessoal o incentivava muito, pois sempre foi criativo. A todo momento estava tocando, cantan-do. Então, em 1986, pensou em formar uma Folia. Criou-se um grupo de 14 pessoas e sua esposa Irene também participava. Para sua tristeza, em 1995, a Folia começou a se separar. “Me deu muita satisfação e agora só resta saudade. Hoje em dia não existe mais isso, a criação mudou muito”.

Liderar grupos é algo que os dois sabem bem. Zezinho de Paracatu faz isso com amor na Folia de Reis. Zezinho de Bento faz com dedicação sendo Presidente da Associação de Morado-res e Líder Comunitário do subdistrito. Até dia 31 de dezembro de 2015 era o prazo para Zezinho continuar no seu cargo. Sua função desde 2012 tem sido de pedir, construir e correr atrás do crescimento do subdistrito. “Meu papel lá era esse, ver o que era melhor para Bento pra gente discutir a execução de obras”, declara humildemente.

Ele sabe que muita gente deseja sua reeleição, pois o povo conhece sua maneira de trabalhar e sabe que se Zezinho sair, irá fazer falta para a comunidade. Admite que é uma respon-sabilidade muito grande e que para assumir o cargo tem que

ter tempo disponível e principalmente pessoas para ajudar. “So-zinho é difícil! Antes de eu pegar, ninguém acreditava na As-sociação Comunitária. Depois que eu peguei, o relacionamento com a Prefeitura é muito melhor, com a Vale do Rio Doce, com a Samarco. É um porta-voz: você leva o que é ruim para eles e traz o que é bom, a solução”, discursa.

Ambos têm passado seus dias esperando as coisas se ajeita-rem. No começo da conversa, em novembro de 2015, Zezinho de Paracatu estava no hotel sem previsão de uma mudança para casa. Frustado por ter apenas quatro paredes para nada se aven-turar, desabafa que ali não era seu lugar. “Não nasci pra ficar à toa! Eu sou de idade, mas não paro não. Eu saio por aí andando para acalmar, passar o tempo. Não nasci para ficar quieto, tá ruim demais!”. No final de nossa conversa, uma parte de sua frustração pôde dizer adeus. Recebeu a notícia da mineradora que iria se mudar ainda naquele dia para um domicílio. De sua expressão sempre séria lhe fugiu um sorrisinho tímido, um pou-co de felicidade em meio à tristeza.

Já Zezinho de Bento conta que seus dias têm sido assim: ba-tendo um papinho até ver se as coisas melhoram. Segundo ele, possuem tudo no hotel, desde refeição à roupa lavada. Não tão sufocado com a inércia quanto seu xará, espera o tempo passar.

Apesar de tudo, os dois mantém a esperança dentro de si. Para Zezinho de Bento a expectativa daqui para frente é de ten-tar esquecer o passado e esperar o que isso traz de bom. Para Zezinho de Paracatu a ideia é voltar para o subdistrito e refazer as casas, tudo.

Em uma tarde abafada de dezembro, o reencontro dos dois aconteceu. Compartilhavam do mesmo olhar. Lembram do pas-sado, de como viveram uma época diferente. Zezinho de Ben-to tinha compromisso. O encontro foi rápido, mas trouxe um significado importante. De frente um para o outro, a troca de olhares disse mais do que qualquer palavra falaria. A dor.

E agora, José? “o que a gente tinha, jamais teremos de novo”. E agora, José? “tudo o que eu tinha foi-se embora”. No dia cinco de novembro suas vidas se entrelaçaram de lama e uma avalanche de perdas. Partilharam mais do que o nome e um apelido carinhoso: dividiram emoções e tristezas que não irão se apagar nunca. A cor marrom é a cor mais trágica. Ela suja, bagunça e destrói. Tudo o que eles querem são suas cores de volta.

É, Josés, e agora?

Presente

Futuro do presente

Page 11: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 11CURINGA | EDIÇÃO 16 11

Page 12: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Ha

bit

ar

Histórias ligadas por Bento Rodrigues

Mapas de afeto

Descrição da seção (blablablablablabla)

1-Eurides da Paixao Souza, 2-Eva Aparecida de Souza, 3-Jercina Juliana Souza, 4-Neuza Maria de Souza, 5-Juarez Marino de Souza, 6-Renata Tainara de Fa-tima do Carmo, 7-Gustavo Henrique, 8-Melissa Souza, 9-Lurdes Carmo Souza, 10-Onesio Isabel de Souza, 11-Jardel de Souza, 12-Josimara de Souza, 13-Cristhi-an Souza, 14-Stefani Sofia, 15-Rosa Maurilia Gomes, 16-Geralda Penha Gomes, 17- Osvaldo Gomes, 18-Jose Caetano, 19- Judith de Souza e 20-Camilly de Souza

1

2

3

4

5

9

10

13

14

11

15

19

20

12

6

7

8

Page 13: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 13

Histórias ligadas por Bento Rodrigues

Mapas de afeto

texto: stelA dioGo

Fotos: AndressA GoulArt

Arte: BárBArA torisu

O rompimento da barragem de Fundão fez romper também a paz, a harmonia e a união das cerca de 600 pessoas que, independen-temente dos laços sanguíneos, compartilha-vam a solidariedade e o bom convívio que o subdistrito de Bento Rodrigues oferecia. Muitas vidas se salvaram. No entanto, suas casas, ruas e as verdes áreas de agricultura familiar tornaram-se escombros de lama. O pequeno espaço de Minas Gerais, fundado no século XVII, agora remete apenas às lem-branças das gerações que passaram por lá. Parte das memórias e elos construídos na-quele vilarejo foram soterrados. Para sempre.

Descrição da seção (blablablablablabla)

A mancha no fundo destas páginas remete ao formato do mapa de Bento Rodrigues.

17

18

20

16

Page 14: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Entes queridos

Família. Esta é a palavra que melhor traduz os sentimentos construídos entre os moradores de Bento Rodrigues. As cerveji-nhas no fim da tarde. Conversas na porta de casa. Festas de fi-nais de ano. Encontros dominicais na Igreja. Esses eram alguns dos acontecimentos que contribuíam para fortalecer a amizade conquistada entre os moradores que estavam distribuídos nas onze ruas do local. Sair de Bento em novembro de 2015 não estava nos planos de nenhuma das famílias que nos contou suas histórias. Pelo contrário. O desejo de estar sempre juntos fazia com que alguns deles ainda estivessem realizando reformas em seus terrenos, para estreitar ainda mais os laços e a vizindade entre os parentes. Judith de Souza, Rosa Maurília Gomes, Ma-ria de Lourdes Carmo de Souza e Eurides da Paixão Souza, são exemplos de mães, de lares distintos, que juntas representam o que havia de mais comum em Bento Rodrigues: o desejo de criar e manter, por gerações, a proximidade entres seus entes muito queridos.

Existir em conjunto

Dona Rosa Maurília Gomes e dona Judith de Souza, apesar de não terem nenhum parentesco, consideram-se irmãs. Fa-zem parte, desde os anos 1970, da história de Bento Rodrigues. Dona Rosa foi transferida a trabalho para o subdistrito no ano de 1965, com seus três filhos ainda crianças. Continuou na re-gião e casou os filhos lá também, que lhes deram cinco netos e um bisneto; com quem, mesmo em casas separadas por alguns muros, convivia todos os dias.

Já dona Judith saiu da cidade de Cláudio Manoel para Bento em 1968, após casar-se com José Caetano. O que motivou sua mudaça para o subdistrito foi a oportunidade de continuar pró-xima de seus pais, que tinham acabado de adquirir um imóvel na região. Iniciou a vida de casada, convivendo próxima a seus pais, em uma casa simples e pequena. O terreno que era pe-queno foi expandindo juntamente com o chegada de seus nove filhos. Em 2015, o lote de dona Judith e José Caetano compor-tava cinco dos filhos que casaram e ganharam um espaço para seguirem a vida ao seu lado. Dona Rosa e Judith intensifica-vam ainda mais o laço de irmandade quando compartilhavam o mesmo banco da igreja que frequentavam semanalmente.

Sonhos construídos juntos

Na década de 1980, Eurides Paixão de Souza deixou a cida-de de Bicas, onde viveu grande parte de sua vida, para se mu-dar para Bento Rodrigues, local que ofereceu emprego para 8 de seus 12 filhos. A empresa de carvoaria, que mais tarde deu lugar à Samarco, contribuiu para que a família de Eurides se conso-

lidasse ali. Sempre comunicativa e alegre, Eurides passou a ser reconhecida na região como dona Dirce, uma senhora que lutou para manter unida toda sua descendência. O que lhe rendeu em 2015 o prêmio de Avó do Ano, concedido pela Escola Munici-pal de Bento Rodrigues (vó Dirce tem 50 netos, 20 bisnetos e 5 tataranetos). Nesta mesma época, aos 83 anos, três filhos e 11 netos dividiam com ela o mesmo teto. A casa de dona Dirce não lhe possibilitava mais abrigar toda sua geração, mas em algum lugar de Bento cabiam todos. O local escolhido era a Rua Das Mercês, que além de dona Dirce, abrigava praticamente toda sua família.

Vidas que se entrelaçam

O destino de Maria de Lourdes do Carmo de Souza, ao se mudar com sua mãe para Bento, ainda muito jovem, faz sua vida entrelaçar-se com a de dona Dirce, citada acima. Em sua adolescência, Maria de Lourdes, conheceu Onésio Isabel de Souza, um dos filhos de dona Dirce, com quem se casou. Com-partilhando a vida há mais de 20 anos, o casal constituiu uma família de quatro filhos e dois netos, dos quais quase todos con-viviam no mesmo lar, exceto uma filha e um neto que viviam a menos de um quarteirão de distância da casa de seus pais. A fa-mília de dona Dirce e Maria de Lourdes, já unidas por um casa-mento, se entrelaçaram novamente em 2015 com o nascimento de Stephany Sofia, fruto do relacionamento de Josemara Souza com Maurício Souza, respectivamente filha de Dona Maria de Lourdes e neto de Dona Dirce. Porém, a família de Josemara e suas próximas gerações não vão crescer em Bento Rodrigues. Na ocasião da tragédia, a segunda neta de Maria de Lourdes ainda se encontrava na barriga da mãe, que na data de seu nascimen-to estava alojada em um quarto de hotel.

Incerteza

A lama que saiu das barragens arrastou com ela não só as casas dessas famílias, como todos os sonhos construídos e com-partilhados. É o caso de Conceição Caetano, uma das filhas de Dona Judith, que mesmo sem ter uma data marcada, tinha o sonho de se casar na Igreja Nossa Senhora das Mercês, a úni-ca Igreja Católica do subdistrito. Mas, quantos Silva, Almeida, Quintão, Pereira... não tiveram algum plano interrompido? A esperança de todos os nomes que fizeram parte da história de Bento Rodrigues é de que um dia eles possam ter um novo espa-ço que permitirá restabelecer a vida daquela comunidade, que interligou histórias de gerações inteiras. Um subdistrito que, apesar de pequeno em questão territorial, era de tamanho in-calculável no amor e companheirismo cultivado por todas as famílias que juntas, ali, uniam-se em uma só.

Page 15: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CartaAberta

Queridos alunos,Sei que vocês estão passando por momentos difíceis nestes últimos meses, pude acompanhar de perto, mas acredito no potencial de todos. Nós, seres humanos, estamos sempre recomeçando. Recomeçando e reconstruindo. Faz parte da nossa natureza e ofício. Recomeçar em uma nova casa, uma nova cidade, em um novo bairro, em nova comunidade, um momento de história, uma etapa e novos amigos. Assim vocês poderão escrever novas histórias, mas permanecendo na memória a Pracinha, o Bar da Sandra, as cachoeiras, o pé de jabuticaba, o prédio da escola, os projetos realizados, as risadas, a Igreja de São Bento, as festas, os rios, o futebol na quadra, o bate-papo com os amigos, a aula de educação física, missa no domingo, o culto e o cheiro do campo. Sentir saudade é muito bom. A Comunidade de Bento Rodrigues, sua história, patrimônio e cotidiano, o importante é poder compartilharmos nossas lembranças, seja no Facebook ou nos encontros com os amigos.Acredito que vocês podem ser médicos, psicólogos, dentistas, eletricistas, mas, a humildade e o respeito pelo próximo são o melhor caminho a ser trilhado. Espero

que vocês criem. Criem novas ideias, novas formas de ver o mundo. A escola é o espaço de conhecimento, é um lugar de acolhimento, encontro, estreitamento de laços e vivência. Deixar de ir á escola é deixar de viver momentos significativos no nosso dia a dia.Nestes últimos 2 anos que estive a frente juntamente com a diretora Eliene e os professores, o trabalho pedagógico desenvolvido na Escola Municipal de Bento Rodrigues foi muito significativo, pois o pedagogo tem, atualmente, um papel que extrapola o campo educacional e vem com força total para articular o trabalho em equipe. Este profissional deixa de ser um especialista para se tornar um indivíduo também habilidoso, com conhecimentos diversificados e que deve estar atento às novas demandas.Ah, só mais uma coisa: quero que vocês contem comigo sempre, estou aqui para chorarmos juntos as dores e as alegrias. Agradeço aos alunos, aos professores, à direção e toda comunidade escolar pela experiência de ter feito parte da Escola Municipal Bento Rodrigues. Um abraço repleto de luz, proteção e boas vibrações.

Pedag. Alcione Araújo. Fevereiro 2016.

Aos alunos da Escola Municipal Bento Rodrigues

Foto: Bruno AritA

Arte: FernAndo ciríAco

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 15

Op

iniã

o

Page 16: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Ide

nti

da

de

Page 17: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Existem dois Bentos, o criador e a criatura. Do primeiro, Bento Godói Rodrigues, pouco se sabe. É fragmentos de textos em

livros antigos. Pela origem, nascimento e sepulcro, seria um eterno desconhecido. Porém deixou seu nome marcado na história e fez do caminho do ouro sua própria estrada real.

Bandeirante por profissão, foi um dos paulistas que em território mineiro cra-vou sua bandeira. Logo em 1708, antes que os paulistas saíssem derrotados da Guerra dos Emboabas, juntou sua comitiva de índios carijós e rumou de Santa Bárbara - onde estava o bando armado do português Manuel Nunes Viana, o chefe dos emboabas - em direção a Catas Altas. Desbravando a mata, já ao pé da Serra do Caraça, conseguiu, em um dia e meio de trabalho, o feito de encontrar quase uma arroba do metal precioso. Os aproximados 13 kg em pepitas de ouro fez com que desse ao lugar seu próprio nome: Bento Rodrigues.

Bento Rodrigues, o segundo Bento, veio mesmo da generosidade do garimpo. Fundado ainda em 1708, era a demarcação de que aquelas terras, entre Camargos e Santa Rita Durão, tinham um dono.

Em um tempo de muita fé, São Bento foi designado padroeiro do lugarejo. A primeira capela em homenagem a ele nasceu em 1718. Mais tarde, veio a capela de Nossa Senhora das Mercês - a padroeira da libertação dos escravos. A organização política fez do povoado um subdistrito da cidade de Mariana. As fazendas viraram casas, as trilhas viraram ruas, o lombo de animais e de escravos deram espaço para carros com motor e para pessoas livres. São Bento ganhou novena - todos os anos, no mês de julho. Houve um tempo que existia coral. Apareceu o time de futebol. Em 1950 a escola foi inaugurada. No final da década de 1970, chegou a energia elétrica. Tinha bar, tinha praça, tinha pássaros e plantações. Bento Rodrigues esteve de pé por 307 anos, até ser enterrado por um rio de lama.

Não enterraram a pessoa. No lugar, tudo que estava à vista foi sepultado. Sem direito à despedidas ou à lágrimas de “adeus”. É estranho, mas houve uma inver-são da ordem. O natural era que tudo acabasse, que com o tempo caísse no esque-cimento. Mas é diferente. Do enterro, veio o velório. As memórias de 600 “filhos” de Bento fazem com que a tristeza vire esperança. A troca de flores é diária, até que venha o renascimento: tiram as mágoas, cultivam a fé.

O criador eternizou sua existência não no chão, mas na imaterialidade de toda uma comunidade. Ele foi o primeiro de uma terra com descendentes extraordiná-rios: de outras pessoas, de outras famílias, de outros tempos, de outros caminhos. Mas descendentes que carregam a essência e os encantos do que os faz ficarem ali.

O bandeirante Bento Godói Rodrigues viveu na travessia do século XVII para o século XVIII. Mas Bento Rodrigues é infinito. O subdistrito Bento já não é apenas Rodrigues. Bento agora é Damasceno, é Lucas, é Santos, é Souza, é Silva. É uma porção de outros sobrenomes.

texto: MAríliA MesquitA Arte: MAGu tAvAres ilustrAção: elMo de oliveirA Alves

que nunca morrem

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 17

Page 18: Revista Curinga Ed. 16: Especial

As Vozes da tragédia

As pessoas queriam Chegar ao nível

corpo de alguém

Um rio foi morto, as pessoas não

tinham água. São pessoas numa

condição de extrema

vulnerabilidade.

Isso

me

pe

rmit

iu e

nte

nd

er

a c

om

ple

xid

ad

e d

o im

pa

cto

de

ssa

lam

a.

Todo mundo que vivia aqui perdeu

Aq

ui

a v

ida

se

div

idiu

e

ntr

e a

nte

s e

de

po

is d

o

rom

pim

en

to d

a b

arr

ag

em

.

Até o bêbado caído na rua jogavam nas costas

Eu preciso dialogar com a

Esse é o principio

TexTo: Luana Barros

FoTos: aLine nogueira e CaTarina BarBosa

A imagem que ficou quando

A maior ferramenta que um

bombeiro tem são suasmãos e a melhor é o

coração.

Precisava fazer o meu o acontecido, mas

Recebi umforte tapa de luva.

Antes de chegarmos em

Bento, vimos pessoas

desespera-

das e sujas de lama pelo

caminho.

O meu pensamento mu-dou. Eu senti que a gente não vale nada.

Ha

bit

ar

Page 19: Revista Curinga Ed. 16: Especial

terra e o mundo. da nossa existência.

Le

vam

os co

mid

a, á

gu

a e me

dica

me

nto

s a

ind

a n

o lo

cal.

os restos mortais. de implorar peloamado é terrível.

Eu vi uma vila de

economia baseada

no turismo adormecida.

Imagina estar em casa preparando a sua janta e alguém chegar gritando pra você correr porque em 5 minutos a lama vai destruir a sua casa?

foi salvo. As pessoase subiam o morro.

As ondas de rejeitos não afetaram somente quem vivia na rota da lama. Aqueles que participaram indiretamente do episódio expõem as percepções e traumas vividos. O sangue esfriou mas, suas histórias continuam ecoando.

Eles não se preocupavam com bens materiais, mas sim com

a história que eles deixaram lá.

o sangue esfriou foi de desolação.

As pessoa estavam preocupadas com desaparecidos e eu sentia que não podia fazer nada pra ajudar.

Vi o Rio Doce em toda sua extensão.

Os alunos ribeirinhos per-guntavam à professora: “quan-do essa lama vai embora”?

trabalho. Eu estava ali para entendertambém me tocava.

A lama destruiu vilarejos.

algo. Até parte da história se perdeu.

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 19

Page 20: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Wagner Augusto diz ser impossível narrar o que viu nas 38 horas - sem dormir - após o rompimento da barragem em Bento Rodrigues. O chamado de Wagner, bombeiro militar há 23 anos, aconteceu às 19h do dia 5 de no-vembro, mas em seu primeiro contato com as vítimas e com a lama densa do minério, o dia já clareava. Enquanto via o sol nascer, tentava medir a gravi-dade do acontecimento. O número de idosos e crianças feridos chamou sua atenção. Pegar no colo um bebê com dias de vida abalou a rigidez do bom-beiro experiente. “Foi um misto de emoção. Sentir aquela criança no meu colo e pensar que ela passou por um risco tão grande doeu em mim. Fiquei com coração de pai, né?”. Wagner confessa que nunca viu nada parecido. As mãos sangravam, consequência do impacto emocional vivido em Bento. Tornou-se mais emotivo e reflexivo. O desastre ainda tira seu sono, finaliza.

Waldir Pollack planta orgânicos, cria animais e se dedica à apicultura há 18 anos. A vida simples no interior fez com que Waldir trocasse Belo Hori-zonte por Paracatu de Baixo, subdistrito tomado pela lama. Sua propriedade não foi atingida, mas toda sua produção foi perdida porque não havia mão de obra para colheita. Ele diz ter saído de órbita e ter ficado psicologicamente afetado, não pela perda material, mas por pensar em todo esforço que foi de-dicado àquilo que hoje não existe. Viu as casas de seus vizinhos derrubadas em efeito dominó. “Eu senti uma tristeza muito grande. Não nasci aqui, mas é a comunidade que eu amo, acreditei que fosse o lugar onde eu viveria tran-quilo”, comenta com emoção. Próximo de completar 70 anos e sem acreditar que viveu pra ver tanto sofrimento, ele afirma que o trauma também o fez perceber que nem tudo está perdido, “Ainda existe muita gente boa no mun-do, gente que fez o possível e o impossível pra não deixar ninguém pra trás”.

A “Expedição Rio Doce Vivo” percorreu aproximadamente 3 mil quilô-metros margeando o rio. Felipe Pinheiro aponta que a expedição, realizada por financiamento coletivo, surgiu com o auto questionamento “qual deve ser nossa postura diante do que aconteceu em Mariana?” Diante dessa re-flexão surgiu a ideia da caravana ir à campo com três linhas de atuação: oficinas, rodas de debate e documentação fotográfica. Felipe é engenheiro civil e faz parte do Coletivo PermaSampa, onde também é educador em bio-construção. Felipe esclarece que o impacto é muito mais complexo. Toda a vida do rio acabou. Sobre o aspecto social o expedicionário se entristece: “Falamos de comunidades que tem no rio a sua maior referência, aquilo que provê a sustentação das comunidades. O rio é o espelho da vitalidade social deles, um rio morto reflete na saúde da comunidade”.

Rafael Camara não sabia o que era uma barragem de rejeitos, muito me-nos o que podia significar o rompimento dela. O jornalista recém formado chegou na entrada de Bento Rodrigues ainda na noite do dia 5. Foi impedido de entrar no local pela polícia, que já havia feito barreiras. Foram dias traba-lhando por mais de 12 horas, Rafael não nega o abalo: “O cansaço emocional era muito maior que o físico. O físico sarava depois de uma noite de sono, o emocional não. Acordava e a primeira coisa que vinha na cabeça era a lama que eu vi, a lama que eu senti.” Rafael confirma que em alguns momentos viveu um conflito pessoal, se sentiu impotente. Desabafa que precisava fazer seu trabalho, mas não sabia como isso poderia ajudar àqueles que só que-riam encontrar os que se ausentaram pela prepotência da lama.

cAtArinA BArBosA

Arquivo PessoAl

Aline noGueirA

Aline noGueirA

Page 21: Revista Curinga Ed. 16: Especial

TRAV

ESSIA

An

dre

zz

A l

iMA

Page 22: Revista Curinga Ed. 16: Especial

texto: GABriel cAMPBell e iGor cAPAneMA

Fotos: JéssicA coronA

Arte: BárBArA torisu

5 de novembro Barragem rompe.Pessoas atingidas são le-

vadas à Arena Mariana, local que a prefeitura disponibilizou para que as pessoas fossem instaladas temporariamente.

Ministério Público instau-ra inquérito para apurar os res-ponsáveis e as causas do rom-pimento da barragem. Além disso, uma equipe de técnicos ambientais, juntamente com promotores, foram até a área analisar os impactos causados pela lama.

Presidente Dilma Roussef disponibiliza ajuda das Forças Armadas no resgate das pes-soas que estão no local.

9 de novembro Ministério Público de-

termina que a Samarco consiga moradia e renda mínima mensal para os desabrigados na tragédia.

14 de novembroJustiça determina blo-

queio de R$ 300 milhões da conta da Samarco. O valor deveria ser utilizado no ressarcimento das 600 vitimas do acidente.

11 de novembroAcionistas da Sa-

marco declaram à im-prensa que criarão um fundo de assistência às vi-timas da lama de rejeito.

Promotoria designada para investigar o acidente responsabiliza mineradora Samarco.

Ibama decide aplicar multa de R$ 50 milhões a Samarco pelo acidente, con-siderado por eles, catastró-fico.

16 de novembroSamarco assina termo de

compromisso preliminar com o Ministério Público de Minas Gerais (MP/MG) que esta-belece o pagamento do valor caução de R$ 1 bilhão para co-brir os gastos com as medidas emergenciais de reparação.

17 de novembroPolícia Civil de MG reco-

lhe documentos sobre à bar-ragem de Fundão na sede da Samarco.

18 de novembroProcuradoria do tra-

balho abre dois novos inquéritos para apurar as condições de trabalho na área de mineração.

19 de novembroTribunal de Justiça

do Espírito Santo (TJ/ ES) concede habeas cor-pus preventivo ao Di-retor-Presidente da Sa-marco, Ricardo Vescovi.

20 de novembroJustiça Federal determina

bloqueio de R$ 570 milhões da Samarco para pagamento de royalties referente à restituição da Compensação Fincanceira pela exploração de Recursos Minerais (Cefem).

Familiares dos despareci-dos participam de manifesta-ção em Mariana reivindicando transparência e mais efetivida-de nas buscas.

2015

O caminho apagado pela lama

Bento RodriguesParacatu Barra Longa

Rio DoceBarragem

Page 23: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 23

24 de novembroMinistério Público

do Trabalho do Espírito Santo (MP/ES) deter-mina que a Samarco estabeleça um plano a fim de evitar demissões em massa no Estado.

26 de novembroSamarco deposita R$

208 milhões ao Fundo de ajuda as vítimas. Me-nos da metade do valor de R$500 milhões esta-belecidos previamente.

30 de novembroSamarco consegue autori-

zação de juiz para administrar suas contas e realizar o paga-mento dos funcionários.

21 de novembroJustiça determina

que Samarco alargue a foz do Rio Doce para fa-cilitar o escoamento da lama com a água.

Lama chega ao ocea-no perto de Linhares no Espirito Santo.

29 de novembroControladoria-Geral do

Estado de Minas Gerais abre sindicância para investi-gar possíveis irregularida-des na concessão de licenças para a atuação da Samarco.

28 de novembroSamarco ameaça

suspender pagamentos a fornecedores e funcioná-rios da mineradora após bloqueio de contas.

25 de novembroSamarco “some”

com R$ 292 milhões que deveriam estar bloquea-dos na conta.

O Diretor-Presidente da Samarco, Ricardo Vescovi, em conjunto com os representantes da Vale e BHP Billiton, prestom depoimentos aos procuradores do Mi-nistério Público Federal fornecendo informações à investigação.

6 de dezembroMais dúvidas surgem:

se todas as famílias atingi-das vão conseguir sair dos hotéis e se mudar para ca-sas alugadas e mobiliadas pela Samarco até o Natal, prazo praticamente des-cartado pelo Ministério Público de Mariana.

10 de dezembroMinistério Público prepara a re-

quisição da impugnação das alega-ções da mineradora Samarco, que pediu nova prorrogação de prazo, por mais seis semanas, para apresentar o plano de contingência para o caso das barragens Germano e Santarém se romperem e para esvaziar a hidre-létrica de Candonga. A minerado-ra é obrigada a pagar R$ 5 milhões em multas por descumprir a data prevista para o dia 4 de dezembro.

7 de dezembroSamarco começa a

distribuir o primeiro lote de 115 cartões para auxí-lio mensal de R$ 788 por família, mais 20% por de-pendente, mas a maioria delas ainda não possui uma renda que dê alguma autonomia.

11 de dezembroMoradores de Ben-

to Rodrigues e Paraca-tu de Baixo continu-am morando em hotéis.

Ibama diz que a bio-diversidade da bacia hi-drográfica do Rio Doce só se recuperará em dez anos e promete novas multas contra a empresa.

Novo corpo é encontra-do após 35 dias da tragédia.

Lama destruiu 324 hec-tares de Mata Atlântica.

5 de dezembroUm mês desde a tragédia.As igrejas de Mariana e de

outras 79 cidades que integram a arquidiocese tocam os sinos ao mesmo tempo por cerca de 20 minutos para marcar a data.

Os números estão defini-dos: duas comunidades arra-sadas, 139 famílias ainda mo-rando em hotéis, outras 115 em casas alugadas pela Samarco, 11 mortos identificados, quatro corpos aguardando reconheci-mento, oito desaparecidos, três rios devastados e 28 mil espéci-mes de peixes mortos.

O Ministério Público dila-ta a previsão inicial de 30 dias para seu laudo técnico a respei-to do desastre.

Governador Valadares

CURINGA | EDIÇÃO 16 23

Fachada de igreja em Paracatu dividida pela lama.

Page 24: Revista Curinga Ed. 16: Especial

13 de dezembroInspetores do Alto Comissaria-

do de Direitos Humanos da Orga-nização das Nações Unidas (ONU) se impressionam com as condições precárias das famílias atingidas pela tragédia.

15 de dezembroMinistério Público pede à Jus-

tiça cobrança de multa de R$ 5 mi-lhões por dia de atraso da Samarco na apresentação de plano de emer-gência se caso houver o rompimen-to de outras barragens.

Outro corpo é encontrado pró-ximo à Barragem de Fundão, em Bento Rodrigues. Três funcionários terceirizados da mineradora Sa-marco seguem desaparecidos.

17 de dezembroA Organização das Na-

ções Unidas (ONU) emite relatório alertando para a escassa segurança das bar-reiras de rejeitos no Brasil.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) realiza estudo e mostra que o solo das áre-as atingidas pela lama não apresenta condições para o desenvolvimento de ativi-dades agropecuárias.

18 de dezembroFaltando sete dias da

data-limite defendida pelo Ministério Público, minera-dora Samarco informa ter instalado 260 famílias, mas 131 vítimas estão em hotéis de Mariana e aguardam mu-dança para casas alugadas.

21 de dezembro O promotor Carlos Eduardo Ferreira

Pinto alega que o MP/MG vai instaurar inquérito no mês de janeiro para apurar a responsabilidade da empresa Vale na tragédia de Mariana.

22 de dezembroMais de 60 famílias não receberam o

auxílio mensal prometido pela Samarco de um salário mínimo (R$ 788), mais 30% por dependente e o correspondente ao valor de uma cesta básica (R$ 388), mes-mo que os prazos já estivessem sido defi-nidos. Algumas delas continuam hospe-dadas em hotéis alugados pela empresa.

25 de dezembroOs parentes das 19 víti-

mas falecidas ou desapare-cidas devem receber R$ 100 mil a título de antecipação de indenização. Cada famí-lia que sofreu deslocamento físico vai receber R$ 20 mil. Por 12 meses, a mineradora Samarco vai continuar a pa-gar um salário-mínimo para cada pessoa que perdeu a renda devido à tragédia.

07 de janeiroPrincipais praias de Linhares são interdita-

das pela prefeitura.

08 de janeiroA busca por desaparecidos é suspensa em

Mariana.

12 de janeirosSamarco descumpre prazo da Justi-

ça para entrega do plano de emergência.

13 de janeiroPolícia Federal indicia executivos da mi-

neradora Samarco.

4 de fevereiroTribunal de Justiça Federal divulga a trans-

ferência de ações relativas ao rompimento da barragem da Samarco para a Justiça Federal.

5 de feverereiro Três meses desde a tragédia.O delegado da Polícia Civil

Rodrigo Bustamante, respon-sável pelo inquérito que apura a tragédia causada pelo rompi-mento da Barragem do Fundão, irá indiciar diretores da minera-dora Samarco pelas 19 mortes (contando com as duas pessoas desaparecidas). A mineradora deverá responder por crime am-biental. O prazo para a conclusão do inquérito é 15 de fevereiro, mas Bustamante poderá pedir à Justiça a prorrogação da data, o que já ocorreu duas vezes.

Vista da entrada de Bento Rodrigues após a destruição.

Page 25: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 25

6 de fevereiroOs números foram atualiza-

dos: 17 mortos, dois desapare-cidos, 1.469 hectares de matas ciliares destruídos, pelo menos 100 nascentes soterradas, três rios e o Oceano Atlântico atin-gidos e vários animais mortos.

12 de fevereiroO Comitê da Bacia Hidrográfica

do Rio Doce investirá cerca de R$ 175 milhões para o processo de recupera-ção da bacia, dando preferência para a recuperação de nascentes e projetos de saneamento. O valor será aplicado durante os próximos cinco anos.

15 de fevereiroA Polícia Civil de Minas Gerais,

pela terceira vez, pede à Justiça mais 30 dias para a conclusão do inquérito que apura as causas do rompimen-to da barragem da mineradora Sa-marco. O delegado da Polícia Civil de minas Gerais, Rodrigo Bustamante, não revelou os motivos da prorroga-ção do prazo para o fim das investi-gações. Justiça atendeu à solicitação.

22 de fevereiroPolícia Civil conclui inquérito que apurara as causas

do rompimento da barragem de Fundão. Nesta etapa da investigação, foram apurados os homicídios, delitos de perigo comum e contra a saúde pública.

23 de fevereiroA Polícia Civil pede à Justiça a prisão de sete pes-

soas consideradas responsáveis pelo rompimento da Barragem de Fundão. Entre elas estão seis funcionários da Samarco e um da consultoria VogBR, indiciados por homicídio com dolo eventual (quando se assume o ris-co, mesmo sem intenção de que o crime aconteça).

Segundo o resultado do inquérito da Polícia Civil, a causa do rompimento da Barragem de Fundão foi a liquefação: desprendimento da água que está associada aos rejeitos de mineração e seu acúmulo em locais que podem desestabilizar a estrutura, o que ocorreu primei-ro com o material arenoso que suportava o alteamento. Fatores como a falta de monitoramento e aparelhos de-feituosos influenciaram no rompimento.

28 de fevereiroEx-moradores de Bento

Rodrigues visitam área onde o subdistrito será reerguido.

2016

A linha azul no centro da página reproduz o caminho feito pela lama da barragem até chegar ao mar.

Baixo Gandu

Colatina

Linhares

RegênciaRegênciaRegência

Page 26: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Barragens e suas especificidades

O termo barragem provém etimologicamente da palavra francesa barragem, que deriva das palavras barre, do francês, e barra, do latim vulgar, que significa “travessas”. As barragens são barreiras artificiais com capacidade de reter líquido, rejeitos e detritos, para fins de armazenamento ou controle.

As primeiras grandes construções brasileiras datam de 1887, no Nordeste. Surgiram para armazenar água em virtude de uma seca denominada como “A Grande Seca”, um período de três anos sem chuvas e miséria extrema.

De acordo com Comitê Brasileiro de Barragens (CBDB), a principio, essa era a única razão para construir uma barragem: armazenar água para suprir a escassez dela no período seco. No entanto, com o passar dos anos, o número de estruturas au-mentou, permitindo o aperfeiçoamento das técnicas de proje-to. Apareceram então as barragens com funcionalidades dife-rentes, como as de rejeito. As primeiras construções desse tipo surgiram como opção para amenizar os problemas ambientais, visto que o material proveniente da exploração de minério era descartado no meio ambiente sem nenhum planejamento.

Mesmo com outras opções, construções como estas ainda são utilizadas, tanto que entre 2008 e 2014, o número de es-

truturas em Minas passou de 373 para 450. A maioria dessas barragens possui resíduos da exploração mineral que são acu-mulados com 60% de água, de rios ou minas, e 40% de areia, e são construídas, geralmente, com a fração grosseira do próprio rejeito, para reter a fração mais fina e a água do processo de concentração do minério, como acontecem com as barragens da Samarco S.A., na cidade de Mariana.

De acordo com esta empresa, todas as suas barragens são construídas como aterros compactados de materiais naturais provenientes de jazidas de solos, rochas ou rejeitos, e são utili-zadas para armazenar resíduos da mineração após as etapas do beneficiamento do minério.

Muitas empresas de mineração optam pela utilização do próprio rejeito como elemento construtivo, o que se tornou uma preocupação. O Inventário de Barragem do Estado de Minas Gerais, elaborado pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), em 2014, indica que 8% das 754 barragens de contenção de rejeitos do Estado não são seguras. Algumas não apresentam as condições básicas de segurança, como altura, comprimento e volume do reservatório. Outras não dispõem de informações técnicas suficientes para esse tipo de garantia.

Lago de rejeitos da barragem de Germano: a primeira e maior estrutu-ra do complexo também corre risco de rompimento.

Page 27: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 27

Segurança x fiscalização

texto: eliene sAntos

Fotos: luízA lAcerdA

Arte: iGor cAPAneMA

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), o De-partamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) tem obri-gação legal de fiscalizar todas as barragens de rejeitos no país. Porém, nem sempre isso acontece. A barragem de Fundão, que se rompeu no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana, Minas Gerais, é destinada ao acumulo de rejeitos de mineração, e sua última fiscalização ocorreu em 2012. Segundo o Cadastro de Barragens de Minérios do DNPM, Fundão era classificada como categoria de baixo risco, pois tratava-se de uma barragem bem gerida, com bom monitoramento e com toda a documentação em dia. Por esse motivo ainda não havia recebido vistoria técni-ca, pois a prioridade é vistoriar barragens com risco mais alto.

O advogado Emerson Freitas, especializado em Direito Am-biental, explica que a Política Nacional de Segurança de Barra-gens (PNSB) estabelece no artigo 5º que a fiscalização da segu-rança das barragens compete também aos órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNA-MA), composto por entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Por outro lado, a empresa explorado-ra também é responsável pela segurança da barragem, pois de acordo com a PNSB, “cabe ao agente privado ou governamental

com direito real sobre as terras onde se localizam a barragem e o reservatório ou que explore a barragem para benefício próprio ou da coletividade realizar inspeções de segurança e a elaborar de um Plano de Segurança de Barragens”.

Segundo a Samarco, todas as barragens, principalmente as do Complexo Germano, onde ficam as barragens de Santarém, Fundão e Germano, possuem Licenças de Operação concedidas pela Superintendência Regional de Regularização Ambiental (SUPRAM), órgão que, nos recorrentes processos de fiscaliza-ção, atesta o comportamento e a integridade das estruturas. A empresa também afirma que sua última fiscalização ocorreu em julho de 2015 e indicou que as barragens “encontravam-se em totais condições de segurança para continuar funcionando”. Além dessas vistorias, a Samarco garante ter uma equipe prepa-rada para realizar inspeções próprias, conforme Lei Federal de Segurança de Barragens, fazendo monitoramento por meio de drones, acompanhamento de piezômetros (medidores de pres-são e nível de água), inspeções visuais, e conta com equipe de operação em turno de 24 horas para manutenção e identifica-ção, de forma imediata, de qualquer anormalidade.

Mas se estava tudo regular, o que provocou o rompimento?

FiscalizaçãoduvidosaAs barragens de rejeitos deveriam amenizar impactos ambientais, porém isso nem sempre acontece

27CURINGA | EDIÇÃO 16

Page 28: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Meses se passaram desde o rompimento da barragem de Fundão da empresa Samarco S.A. e ainda faltam respostas para esclarecer muitas dúvidas. Perguntas como, o que pro-vocou o maior desastre ambiental da história do Brasil, são indagações de pessoas do mundo inteiro.

As causas do rompimento da barragem da mineradora ainda estão sendo investigadas. A própria Samarco disse que “não há confirmação do que possa ter acontecido de fato, mas que todos estão se empenhando bastante nas investigações e estudos que apontarão o que realmente provocou o rompi-mento de uma das suas barragens”. Mesmo sem total certeza do motivo, algumas prováveis causas do rompimento estão sendo levantadas por especialistas.

O professor de Engenharia de Minas da Universidade Fe-deral de Ouro Preto (Ufop) e doutor em gerenciamento am-biental, Hernani Mota de Lima, explica que vários fatores como percolação de água no corpo do barramento, ou seja, deslocamento da água através do solo, galgamento de água sobre o barramento, que é quando a água transborda por cima, obstrução do dreno vertical e/ou horizontal ao barramento, elevação do nível d’água no corpo do barramento e até mesmo abalos sísmicos, podem causar danos na estrutura de uma bar-ragem de rejeito. Ressalta, porém, que teriam que ser abalos de magnitude maior, pois os abalos registrados pelo Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo (USP) antes do rom-pimento da barragem foram entre 2.0 e 2.6 na escala Richter. Estes tremores somente causariam o rompimento se a barra-gem estivesse com problemas. Problemas estes que não foram identificados por uma auditoria feita na área quatro meses an-tes, por uma empresa contratada pela própria Samarco.

De acordo com a subprocuradora-geral da República San-

dra Cureau, coordenadora da Câmara do Meio Ambiente do Ministério Público Federal (MPF), a Samarco será punida porque houve “negligência” e “omissão” por parte dela. Isso porque um laudo elaborado em 2013, para renovar a licença de operação da barragem, feito pelo Instituto Prístino, empre-sa privada responsável por desenvolver pesquisas direciona-das em diagnóstico, a pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), alertou a Samarco sobre os riscos do rompi-mento da barragem de Fundão. De acordo com o documento “o contato entre a pilha de rejeitos e a barragem não é reco-mendado por causa do risco de desestabilização do maciço da pilha e da potencialização de processos erosivos”. E ainda, de acordo com a Feam, a barragem de Fundão estava defasada, isso porque o volume máximo estimado oficialmente em 2011 era de 2,7 milhões de metros cúbicos de lama e o último regis-tro, ocorrido em 2013, já apontava que 2,6 milhões de metros cúbicos haviam sido despejados no local. A Samarco afirma que um volume 20 vezes maior, ou seja, 55 milhões de metros cúbicos vazaram da represa após sua ruptura em 2015, contu-do, garantiu que tinha licença para até 92 milhões.

Baseado no laudo de 2013, o MPMG recomendou que a empresa elaborasse estudos e projetos sobre os possíveis im-pactos do contato entre as estruturas, e o promotor de Justiça, Carlos Eduardo Ferreira Pinto, sugeriu que realizassem uma análise em caso de ruptura da barragem e que apresentassem um plano de contingência em caso de acidentes. Mas, ao que tudo indica, nada disso foi feito por quem deveria cuidar de imensas estruturas como essas. A incapacidade dos órgãos e empresas responsáveis pela fiscalização dos empreendimentos que dispõem de diques em Minas Gerais e no Brasil apenas agrava a desconfiança na estabilidade dessas estruturas.

Negligência da Empresa

Rastro de danos: negligência da empresa devastou o distrito de Bento Rodrigues.

Page 29: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 29

Em Minas Gerais, segundo o Instituto Brasileiro de Minera-ção (Ibram), temos mais de 300 minas em operação, sendo que, desse número, 57 delas estão entre as 200 maiores do Brasil. Com um número tão grande de minas em operação, consequen-temente o número de barragens de rejeitos não seria menor. São 317 estruturas de contenção de rejeitos conhecidas pelo De-partamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o que re-presenta 48% das 662 instaladas no Brasil. Dessas, contudo, 95 sequer constam do Plano Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) do Departamento, sendo que o próprio DNPM conside-ra que 37% das estruturas não são fiscalizadas. Por não consta-rem no plano apresentam riscos alto e médio.

Informações como essas assustam principalmente as co-munidades que moram próximas a essas estruturas. De acordo com o Secretário Geral do Sindicato dos Inconfidentes, Valério Vieira, “a mineração brasileira está abandonada, principalmen-te em questão de segurança. Faltam recursos materiais, tecno-lógicos, financeiros e humanos ao DNPM. Na fiscalização isso é ainda mais grave, porque os fiscais, sem diárias, transporte e equipamentos, ficam mais nas sedes do que em campo”. Se a situação já está critica com as barragens em funcionamento, sendo monitoradas por, pelo menos, fiscais das empresas, ima-gine se elas forem desativadas...

O advogado, Emerson Freitas, explica que, ainda que a extração do minério não aconteça em determinada região, as barragens utilizadas não deixarão de existir, apenas serão desa-tivadas e continuarão ocupando espaço na natureza. E mesmo desativada, a empresa proprietária é obrigada a realizar manu-tenções e vistorias nas estruturas para evitar que ela degrade o meio ambiente, pois de acordo com o parágrafo 2° do artigo 225 da Constituição Federal, “aquele que explora recursos minerais

fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado”, e se caso a proprietária não apresentar condições financeiras para reali-zar esse trabalho, a obrigação legal passa a ser das acionistas.

Ainda assim, mesmo sendo supervisionadas, muitos sentem medo ao saber que por cima das suas casas existem imensas “piscinas” de água, areia ou lama que podem romper-se a qual-quer momento. Por aí percebemos os muitos problemas, tanto ambientais quanto sociais, que uma barragem pode provocar. E pior é saber que não se pode mudar nem cobrar muito dos responsáveis, pois a maioria das empresas seguem apenas o que lhe é cobrado pela legislação, que é falha.

Como explica Emerson, a legislação ambiental, principal-mente o Código Mineral, é muito “pobre” e com muitas lacu-nas. Este último foi criado no período da ditadura militar, quan-do o desenvolvimento da indústria e da economia brasileira era o único objetivo, tornando superficiais os estudos dos impactos ambientais feitos na época. E agora com o Novo Marco Regu-latório da Mineração, que está em tramitação na Câmara dos Deputados desde junho de 2013 e que substituirá o código em vigor de 1967, faz com que algumas pessoas, como Emerson, acreditem que teremos uma evolução frente ao quadro atual, pois “será um passo em prol da proteção do meio ambiente”. O novo Marco apresenta novas propostas como a criação do Con-selho Nacional de Política Mineral, órgão de assessoramento da Presidência da República, e a Agência Nacional de Mineração, órgão regulador e fiscalizador do setor, uma Agência Reguladora de Mineração e também Mudanças na Outorga de Título Mine-ral, garantindo melhor acompanhamento, fiscalização e gestão pelo órgão gestor competente.

Seria essa uma mudança? Ou desastres como o de Fundão seguirão acontecendo?

Preocupação

Fissura de três metros na barragem Germano: Samarco garante que tem Licença de Operação certificando a integridade da es-trutura. Foto: Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais.

29CURINGA | EDIÇÃO 16

Page 30: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Cicatriz aberta

Há 30 anos a primeira barragem de uma mineradora se rompeu. Levou casas, histórias e sete vidas. Desde então,

Minas Gerais já chorou cinco vezes com tragédias que

envolvem a mineração. O tempo passa, a memória falha. Com uma nova

fatalidade, um histórico é tirado da caixa antiga, e todos se lembram que

não foi a primeira vez. Outros reforçam que não será a última. Até quando isso

acontecerá?

Foto

: ass

Ess

ori

a d

E c

om

un

ica

çã

o d

o c

orp

o d

E B

om

BEir

os

mil

ita

r d

E m

ina

s G

Era

is,

Page 31: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 31

Minas Gerais é quem sofre a carga do nome que leva. Mina, minério, mineração. Segundo dados atuais do Departamento Na-cional de Produção Mineral(DNPM), dentre 608 barragens de mineração que existem no Brasil, Minas é o único estado com rompi-mentos de barragens desse tipo.

Para ajudar na luta justa com as famílias de atingidos e a preservação do meio am-biente, o Movimento dos Atingidos por Bar-ragens (Mab) existe há 46 anos e tem repre-sentação em 16 estados do Brasil. Membro da coordenação nacional do Mab e um dos representantes de Minas Gerais, Joceli José Andrioli, explica que o papel do Movimento sempre foi organizar os atingidos na luta pe-los seus direitos e denunciar o modelo viola-dor de direitos humanos dessas empresas. A ideia é fortalecer uma luta em comum de vá-rias entidades e movimentos para a mudan-ça desses modelos de obras que não servem a população brasileira de forma integral. Desde criança envolvido com o Movimento, Joceli já sentiu na pele o que um rompimen-to pode causar. Sua família foi atingida pela construção da barragem de Itá, em Santa Catarina. Desde então, está junto para aju-dar outros atingidos e lutar por justiça.

Andrioli afirma que a Barragem de Fun-dão, da mineradora Samarco, foi a maior das tragédias que ocorreram. A última a romper e a mais devastadora, “é apenas con-sequência da falta de responsabilidade das mineradoras com o meio ambiente e com a vida da população”, analisa o representante do Mab. Ele destaca que Minas é o estado que mais possui barragens de rejeitos de mi-nério e a privatização dessas empresas foi o marco central para a redução dos custos na construção e manutenção dessas barragens. “Tudo em nome de mais lucro e aí os resul-

tados são todas essas barragens rompidas!”.Então, onde está a fiscalização que só

deveria aumentar cada vez que uma notícia dessas estampa as páginas de jornais? Jo-celi conta que há pouca estrutura tanto de pessoal quanto de orçamento para a ativida-de de fiscalização. Ele destaca ainda que as empresas fazem seus acordos com o Estado para viabilizarem os licenciamentos de for-ma mais branda e que a fiscalização muitas vezes fecha os olhos para situações de obras vinculadas as grandes empresas. “Tudo isso tem a ver com o poder que essas empresas tem em relação ao Estado e principalmente aos governos que são eleitos com financia-mentos privados dessas”, lamenta.

Apesar de existir desde a década de 1970, o Mab em Minas Gerais passa a ter uma ação mais estadualizada só a partir de 2006. Joce-li relembra que tiveram atuação direta com os atingidos pelo rompimento da Barragem de São Francisco, da mineradora Rio Pomba Cataguases, em Miraí, e agora estão atuan-do na barragem de Fundão. Em Mariana, ele explica que estão num processo de tra-balho de base em toda a bacia do Rio Doce, de Mariana à Regência no Espírito Santo. Conta que estão atuando de forma intensa: buscando construir uma pauta comum en-tre os atingidos levando as informações e organizando o povo; reivindicando a plena participação dos atingidos em todo proces-so; cobrando do estado de Minas Gerais uma política estadual de garantia dos direitos dos atingidos por obras, bem como uma mora-tória a essa forma de barragem de rejeito; correndo atrás de uma política de segurança em todas as barragens em Minas Gerais; e articulando com diversas entidades um pla-no popular de reconstrução da vida em toda a bacia do Rio Doce.

texto: cArol Antunes

Fotos: eliene sAntos

Arte: isABelA Porto

Barragem de Fundão: O maior rompimento e o mais atual. Até quando?

Page 32: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Itabirito: palco de duas tragédiasO primeiro registro de um rompimento de barragem de mi-

nério ocorreu em Itabirito, em 1986, na Mina de Fernandinho, do Grupo Itaminas. Até o acontecimento da Samarco, em Ma-riana, essa era a tragédia que tinha deixado mais mortos: sete.

Mas esse desastre não foi o único que ocorreu na cidade. Em 2014, Itabirito torna a sofrer as consequências com o rom-pimento de barragem da Herculano Mineração. Três operários que faziam a manutenção no talude de uma barragem de rejei-tos desativada foram soterrados e morreram. O deslizamento de terra ocorreu em uma área destinada a depósito de rejeitos da Mineração Herculano. Outra barragem da empresa chegou a ser interditada porque apresentava risco de ruir. A famosa tragédia anunciada, cai como uma luva nessa história, pois a empresa foi avisada sobre o risco de rompimento várias vezes. Em 2012 e 2013 a mineradora passou por auditorias pela empresa Engeo que apontaram diversos problemas, dentre eles: falha da drena-gem e falha dos sistemas de monitoramento. Fechando os olhos para o que o era avisado, a empresa decidiu correr o risco com o pensamento “comigo nunca vai acontecer”. Mas acontece.

Thiago Luiz Mendonça Damasceno sabe muito bem: aconte-ce. Nascido e criado em Itabirito, no distrito de São Gonçalo do Bação, assistiu de perto o que o desleixo da empresa fez com a cidade. Estava trabalhando quando recebeu a notícia e imedia-

tamente começou a contatar os amigos que moram nas imedia-ções. Começou uma série de discussões online nas redes sociais sobre o impacto na cidade. “Muita gente desconhece o curso do rio e não sabe onde ficam localizadas as minas e as barragens. Dentro de algumas horas o rio já mudou, trouxe uma lama ma-tando peixes e assustando os moradores”, conta.

Após um ano e meio, Thiago afirma que nenhuma ação foi feita no sentido de recuperação ambiental ou de compensação pelo dano. Pelo contrário, abriu um precedente para outras empresas jogarem rejeitos diretamente no curso do rio. “Basta olhar a cor do rio ou subir seus afluentes e localizar os pontos de contaminação! Além da alteração da fauna e flora, a lama depo-sitada no leito do rio espera somente mais uma enchente para sair para as casas e lojas do centro da cidade”, lamenta. A Her-culano Mineração não respondeu sobre ações feitas para conter os danos nem sobre sua posição perante ao acontecimento.

Diante disso, por que a população não luta para que os cul-pados arquem com as consequências dos seus atos? É o que rapidamente vem a cabeça, mas Thiago acredita que a grande maioria ignora porque a economia da cidade é baseada na mine-ração e qualquer impacto mudaria drasticamente os empregos da cidade, arrecadação municipal, entre outros.

“Gostaria que as pessoas se fizessem algumas perguntas: vale a pena votar em quem tem campanha financiada por esse

Page 33: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 33

Miraí

Itabirito

Nova LimaMariana

Segundo moradores, desde o rompimento da barragem Herculano o Rio Itabirito nunca mais voltou à sua cor natural.

tipo de empresa? Se essas empresas gastassem o mesmo que gastam com publicidade com recuperação ambiental? Nossa justiça funciona ou é cega para o rio e para os pobres que so-frem as consequências? Que meios a sociedade civil tem para cobrar dos orgãos competentes para que esse tipo de coisa não aconteça mais? Vivemos no país da certeza da impunidade? Vale mais empregos que poluem e matam ou chegou a hora de discu-tirmos o futuro e o presente que realmente queremos, com em-presas sérias, responsáveis que presam a vida mais que o lucro a qualquer preço?”, questiona o morador Thiago.

Nova Lima

Em 2001, foi a barragem da Mineração Rio Verde que se rompeu em Macacos, distrito de Nova Lima. Com cinco operá-rios mortos, o acidente atingiu 43 hectares e assoreou 6,4 km do leito do córrego Taquaras. Causou degradação de cursos hídricos e destruição de mata ciliar. Uma tragédia com menos danos que a de Mariana, que atingiu 1469 hectares de vegetação e afetou 663 km do Rio Doce.

Miraí: sem mortes, eternas cicatrizes

Em 2007, Miraí quem sofreu as consequências com a barra-gem de São Francisco, da mineradora Rio Pomba Cataguases. O rompimento chegou a atingir a cidade de Muriaé e mais de 4.000 moradores ficaram desalojados, e ao menos 1.200 casas foram atingidas. Um ano antes um vazamento da mesma bar-

ragem contaminou córregos e rios, matando centenas de peixes e interrompendo o fornecimento de água.

O coordenador da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil (COMPDEC) de Miraí, Sebastião Soares de Andrade conta que, segundo informações que circularam na cidade, o rompimento se deu pelo excesso de rejeitos acumulados na barragem, onde aconteceu uma invasão em grande proporção de rejeitos atin-gindo aproximadamente 30% do município. “Na época eu não estava na coordenação da COMPDEC, mas contribui volunta-riamente. Vi uma forte união entre os órgãos, que trabalharam incansavelmente para a limpeza e recuperação da ordem e dig-nidade do nosso município”, garante.

A Mineradora Rio Pomba assumiu todas as responsabilida-des, fechando um acordo com as pessoas atingidas. Mas mesmo assim, ainda hoje se encontra, em alguns lugares, marcas da tragédia. O coordenador cita o rejeitos e destroços que ficaram presos de alguma forma em quintais e locais de difícil acesso. E as erosões causadas pela passagem dos rejeitos na Zona Rural.

Sebastião acredita que a solução para esses casos diminuí-rem é os órgãos fiscalizadores apertem mais nas suas vistorias e acompanhamento das manutenções nas barragens. “É muito descaso e falta de manutenção nas barragens. Todo cuidado é pouco quando se trata de vidas”, finaliza.

A irresponsabilidade de algumas empresas continua a dei-xar mais feridas expostas. A sutura tem sido mal feita. Minas carrega consigo 32 lápides. Fica a pergunta: serão preciso mais 30 anos para alguém fechar esse corte?

Page 34: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Às margens da destruição

Existe uma cidade na confluência de dois rios. Quando o rio Gualaxo do Norte deságua no Ri-beirão do Carmo, forma -se uma extensa barra na superfície das águas. É ali que nasce Barra Longa. Cidade com 6.143 ha-bitantes. Composta por uma Sede e 26 comunidades. Cidade de vaca no pasto, lambari no rio e bananeira no quintal.

Barra Longa existe. Esse foi o apelo de Bernadete Atanásio, 38 anos. “Barra Longa está completamente esquecida. Na televisão eles citam todas as cidades atingidas pela barragem, quando aproximam de Barra Longa, eles pulam não sei pra onde”, diz. Na primeira hora do dia 6 de novembro, pelo Gualaxo do Norte desceram rejeitos da barragem de Fundão com tudo o que haviam arrastado, por 72 km, desde a cidade de Mariana. Naquela data, o Gualaxo chegou com tanta força e velocidade no Ribeirão do Carmo, que no sentido contrário ao fluxo do ribeirão fez o trajeto reverso de 5 km. Ao mesmo tempo que percorreu os 15 km de ex-

Page 35: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 35

tensão da cidade, e seguiu. Os sinais da enchente vieram em sucessão. “Primeiro veio o cheiro insuportável”, disse Doracy Pereira, 51 anos. “Em seguida veio o barulho, muito barulho. Então veio a lama.”, completa. A partir daí, seja rio, seja casa, tudo virou lama.

Na vegetação ou no concreto, a paisagem tem a mesma marca: uma linha horizontal, reta, completamente livre de oscilação. Tanta precisão separa as cores, do que quer que seja, em uma metade marrom. Nos quintais, dos bairros Volta da Capela ao Morro Vermelho, o cultivo das bananeiras confunde os estereótipos do que é urbano e do que é rural. Era possível colher bananas na cida-de. Agora todas foram enterradas. Nos sítios, o que era pasto, de repente, já não tem quase nada. Nos rios não vivem mais peixes, os rios abrigam lama. As pessoas observam os restos do que eram suas casas, conversam um só assunto, convivem com o barulho de escavadeiras, com o movimento de caminhões carregados de rejeitos e com o cheiro de putrefação.

texto: MAríliA MesquitA

Fotos: AndrezzA liMA e stênio liMA

Arte: isABelA Porto

CURINGA | EDIÇÃO 16 35

Foto

: an

drE

zz

a lim

a

Page 36: Revista Curinga Ed. 16: Especial

O rio“Quantas vidas foram ceifadas? Quando eu vou

poder sentar na beira do rio e pescar meus Lambaris?”, questiona João Freitas, 76 anos. Os rios são em Barra Longa, além de fonte para o consumo de água, tam-bém lazer. A companhia de saneamento não sofreu dano. No entanto, não há rio para o nado e a pesca.

Pescador desde a infância, João, ao se aposentar, fez das tardes com iscas de cupim e vara de pesca na mão, um estilo de vida. “Hoje, eu sou um homem de cabeça baixa.”, fala. Na geladeira, ele guarda bandejas com Lambaris limpos e congelados. São presentes pre-parados para as visitas. “Essa parte do congelador, nós já demos tudo. Quem vem aqui a gente dá.”, conta a irmã, Eponina Freitas, 77 anos. Com uma bandeja na mão, João mostra com lágrimas nos olhos o que pra ele é só saudade. “Acabou uma parte da minha vida”.

Os rios possuíam em suas águas grande variedade de peixes. Carpa, Tilápia, Dourado e Lambari eram os mais comuns. João sabia onde sentar a beira rio para encontrar os Lambaris. Agora, ele perdeu a rotina. “Todos os dias pela manhã, ele fazia uma caminhada. Quando chegava, ia tirar cupim para pescar de tarde. Depois da pescaria, enquanto os peixes não estivessem limpos não entrava em casa.”, conta Eponina.

João sabe que não pode comparar a perda dele com famílias que perderam seus entes queridos. Porém, toda perda é importante. “Você encontrou um homem que está navegando e não está vivendo.”, afirma. João viu a lama chegar. Da janela do quarto, ajoelhado sobre a cama, viu o ribeirão que passa no fundo do quintal transbordar sujeira. “Parece um barro, no dia seguinte o sol secou.”. O que chegou, atingiu aproximadamen-te, a altura de 2m dos muros do quintal dele. Quando a água foi embora, deixou 1m de lama. “Barra Longa está vivendo um drama que é muito pior. A cidade que era pacata, vai ficar morta.”, fala.

A margem dos rios não possui a mesma altura e vegetação. Alguns trechos são como areia movediça, quem pisa afunda. A água que corre é grossa e agres-siva. Produz um barulho diferente do que era, e por vezes forma pequenas ondas.

Um mês depois da invasão dos rejeitos da barra-gem em Barra Longa, a assessoria da Samarco - em-presa responsável pela barragem de Fundão - afirma que laudos do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e da empresa SGS Geosol atestam que os rejeitos não oferecem riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Porém, ao contrário do monitoramento feito no Rio Doce, não há registros de laudos específicos para os rios Gualaxo do Norte e Ribeirão do Carmo. Para João, não há nenhuma estimativa de quando poderá, nova-mente, pescar Lambaris. A previsão dele, é que não vai viver para ver o rio renascer.

Marcina fala sobre os móveis e eletrodomésticos que perdeu e mostra os rastros deixados pela lama dentro de casa

João Freitas se emociona ao mostrar uma das últimas bandejas de lambaris pescados por ele no Ribeirão do Carmo

Foto

: stê

nio

lim

a

Page 37: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 37

A pessoaDo asfalto, Maria Marcina Tomaz, 57 anos, viu a casa nú-

mero 163 em que vivia com o marido e o filho - na parte baixa do Volta da Capela - ser tomada pela lama. “Se a gente tivesse dormido sem medo, tinha acordado atolado na lama”, relata. Nas paredes, as marcas horizontais chegam a 2m na parte de trás da casa. Na fachada, a 1,5m. “Na hora que eu olhei a lama foi entrando devagarzinho, devagarzinho. Daí a pouco acabou. Foi aquela altura”, lembra. Com a moradia tomada e sem ter pra onde ir, Marcina passou duas noites e dois dias na rua. “Quan-do a lama chegou, ficamos com medo e corremos para a ponte. Passamos a noite lá. Quando foi o outro dia, passamos a noite no asfalto, sentados em frente à casa. Não tinha lugar pra gente ficar.”, explica.

Marcina foi alojada no PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), uma escola que está com as atividades para-lisadas. Ela levou o que tinha: a família, uma trouxa de roupas e as gavetas do armário que conseguiu tirar antes da invasão de lama. Dos quatro cômodos disponíveis, dois são a cozinha e o banheiro. Os outros dois, salas de aula que passaram a ser quar-to de dormir. Junto à cama que dormia com o marido, Marcina olhou as gavetas colocadas em um canto e falou da casa que perdeu. “O meu sonho era uma cozinha grandona. Fiz a cozinha e coloquei um armário na pia. Trouxe só as gavetas.”, lamenta.

Após 15 dias no alojamento, Marcina conseguiu alugar uma casa. “Lugar pequenininho assim da impressão de que está na casa da gente”, fala. No banheiro, tem um cobertor para tampar o buraco deixado pela porta que não existe. “Eles falaram que vão vir para arrumar as janelas estragadas e colocar porta no banheiro. Banheiro sem porta é ruim demais, né?! Na minha casa tinha porta.”.

Os móveis chegaram. Uma cama de casal, uma de solteiro, uma cômoda, uma televisão. O fogão, a geladeira e o microon-das. Um tanque para lavar roupa. “As minhas camas eram de madeira, eu tinha umas cômodas boas. Mas tá bom.”, conta. O quadro com flores vermelhas dependurado na sala foi recupe-rado da casa tomada pela lama. “No PETI estava me sentindo meio desnorteada. Na casa da gente; não é da gente, é alugada, mas a rotina é minha. Quando eu levanto já tenho casa para arrumar.” Marcina tem medo de voltar para a casa 163. “Acho que o teto não está bom. Mas o cantinho da gente, a gente não esquece dele nunca!”.

A assistente social do CRAS (Centro de Referência da As-sistência Social de Barra Longa), Viviane Moreira, afirma que os desabrigados e desalojados são prioridades nas ações da Sa-marco e da Prefeitura. “No primeiro momento, essas famílias estão acomodadas em casas de aluguel social e recebem o kit mobília”, diz. A pedido do Ministério Público, 40 dias depois do rompimento da barragem, a Samarco começou a distribuir o cartão-auxilio. O cartão equivale a um salário mínimo para o titular, mais 20% para cada dependente, e não anula a indeniza-ção que ainda será negociada com a empresa.

Em Barra Longa, não existem vítima fatais. O CRAS estima que 1. 100 pessoas foram diretamente atingidas pela barragem de Fundão. Foram cadastradas 217 residências com a invasão da lama, 97 delas com o interior comprometido. Porém, lugares públicos como a praça central Manuel Lino Mol e a Escola Mu-nicipal José de Vasconcelos, ficaram cobertos pela lama. Não há mais praça. E os 100 alunos da educação infantil foram enca-minhados para um novo espaço, alugado pela Samarco. Nessas proporções, Barra Longa é uma cidade em que todos os 6.143 habitantes foram, de algum modo, atingidos pela barragem.

CURINGA | EDIÇÃO 16 37

Foto

: an

drE

zz

a lim

a

Page 38: Revista Curinga Ed. 16: Especial

A terra Nos quintais, as frutas perdem o visco. Do terraço de Sebas-

tião Rola, 76 anos, ainda dá pra ver as bananeiras que não foram arrastadas pela lama. “Tinha bananeira até lá na frente”, indica. Para ele, os pés das frutas que restaram, de alguma forma, são apenas enfeites. “Não tenho coragem de comer as bananas, nin-guém sabe o que tem nessa lama”, diz.

A 400 metros dali, Maria Goretti Lanna, 54 anos, acumula documentos para garantir o ressarcimento do seu pomar. “Perdi a minha horta, minhas bananas, meu jeito de viver”, conta. O boletim de ocorrência junto à Polícia Militar já está feito. Na va-randa de casa, ela ainda coloca as frutas em tabuleiros para que possa vender e garantir sua renda. No entanto, sem o pomar, o irmão de Goretti tem que trazer os cachos de banana da roça.

Na casa branca que faz de escritório, Godofredo Filho, 59 anos, como um bom barralonguense, mantinha o quintal cheio.

“Isso aqui era bonito demais”, lamenta. “Morreu maçã, pêra, um punhado de fruta. Eu plantei kiwi que estava desse tama-nho”, mostra com a mão o 1 metro da árvore. O sítio dele está no trajeto dos 5 km de refluxo dos rejeitos no ribeirão do Carmo. O 1,5m que ficou da lama, deixa a mostra a copa de algumas árvores ainda carregadas de frutas. “Eu tô comendo, mal ainda não fez”, conta rindo.

Godofredo é produtor rural. O terreno da casa também era terreno para os piquetes das 25 vacas de lactação que cria. Ago-ra, os piquetes que alimentavam os animais não existem mais. “Produzia até 300 litros de leite por dia, agora, sem os piquetes, produzo cento e poucos.”, explica. Godofredo perdeu ainda oito bezerros que ficavam na parte baixa da propriedade, e o trator que ficou atolado por 25 dias. “Vieram aqui e só tiraram meu trator. Coloquei ali para cima, mas ainda não testei para ver se funciona.”, fala.

Godó, como é conhecido, alimenta a criação como conse-gue. O vizinho traz cana para completar a celagem insuficiente entregue pela Samarco, mas já avisou que não tem cana pra muito tempo. Pode ser que venda as vacas, e pare por três anos a produção de leite - tempo que acha necessário para recuperar o pasto. “Eu não vou deixar o animal morrer de fome”, justifica.

Barra longa não depende da mineração. Cidade pecuária, possui 19.269 cabeças de gado, principalmente para a produ-ção de leite. O presidente da Cooperativa Agropecuária de Bar-ra Longa, Paulo Rogério Teixeira, disse que o prejuízo das duas primeiras semanas, depois do rompimento da barragem, foi de pelo menos 60 mil litros de leite. “O produtor perdeu vagem, extrato, capinheira, e jogou leite fora por questão de acesso.”, justifica. As pontes das comunidades do Onça, Escurvina, Ges-teira e Barreto, que eram os principais acessos para a zona rural, caíram. A Cooperativa que coletava 12 mil litros de leite por dia, passou a recolher 7 mil litros por impossibilidade de chegar ao produto. Para normalizar a produção, caminhos alternativos fo-ram a solução imediata usada pela Cooperativa.

O prefeito Fernando Carneiro garantiu a reconstrução das quatro pontes para dezembro de 2015. A assessoria da Samarco estipulou a data para o fim de janeiro de 2016. Em 20 de dezem-bro a ponte entre Barreto e Campinas foi liberada para o tráfego, e, em 6 de janeiro, a ponte do Onça. As pontes de Escurvina e Gesteira foram liberadas no final de fevereiro.

Nem a prefeitura, nem a Samarco, se pronunciaram sobre a perda dos pastos e a dificuldade em alimentar o gado. Godofre-do continua sem soluções práticas para o seu problema.

Com a devastação provocada pela lama, o tanque onde Godofredo armazena o leite produzido em sua fazenda atinge apenas metade de sua capacidade total

Foto

: stê

nio

lim

a

Page 39: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 39

A cidade

Com o encontro dos rejeitos no rio Gualaxo do Norte, ain-da em território marianense, era inevitável que Barra Longa entrasse no trajeto da lama. E ainda assim não aconteceu ne-nhum tipo de aviso à população. Foram nove horas até que a comunidade mais afetada, Gesteira, fosse devastada pela lama. Onze horas até a lama chegar no centro da cidade. “Fa-laram para o Sargento que não era para ninguém se preocupar. Subiria, no máximo, 2m do rio e seria só água.”, conta Lindo-mar Tomaz, 40 anos.

“A Prefeitura exigiu tempo máximo de 10 meses para a reconstrução de Barra Longa.”, afirma o prefeito. O que a as-sessoria da Samarco garante é que 350 profissionais atuam na reconstrução da cidade. Até dezembro, 70 imóveis, 40 quintais e as principais ruas de todas as regiões do município haviam sido limpos. A empresa afirma também que está fornecendo apoio psicossocial através da empresa especializada Chestnut Global Partners Brazil, e pelo CRAS. No entanto, o dia que a lama chegou, foi pra ficar. “Por mais que indenize, a gente não vai conseguir comprar a mesma coisa, a mesma blusa que eu tinha, o mesmo brinquedo que dei para o meu sobrinho”, fala Tássia Vital, 26 anos.

Dez meses não apagarão o que aconteceu em Barra Lon-ga. Bernadete Atanásio lamenta: “No Morro Vermelho cada vizinho foi para um lado, e quando voltar não vai ser a mes-ma coisa.”. Doracy Pereira assiste: “No jornal falou outra vez que as barragens não estão seguras.”. João Freitas substitui: “Alimento os passarinhos, eles necessitam.”. Godofredo Filho espera: “Daqui alguns anos, vai ter fruta tudo de novo.”. Mar-cina Tomaz relembra: “Fiz uma mudança da noite para o dia, que não esperava.”. Lindomar Tomaz suspeita: “Se acontece alguma coisa, a gente vai suspeitar logo dessa lama.”. Tássia Vital ora: “A gente só pede a Deus pra tirar esse pesadelo da cabeça da gente”.

39

De cima para baixo:1. Maquinas estacionadas na Praça Manoel Lino Mol, que passou por limpeza após ser encoberta pela lama.2. Cadeira abandonada em bar aos arredores da Praça Manoel Lino Mol.3. Bananeiras morrem às mar-gens do Ribeirão do Carmo devastado.4. Confluência dos rios Gualaxo do Norte e Ribeirão do Carmo

CURINGA | EDIÇÃO 16 39

Foto

s: a

nd

rEz

za

lim

a

Page 40: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Caminho perdidoLocalizado a 19 km do centro de Mariana, Camargos é pouco conhecido na região. Desde o rompimento da barragem de

Fundão, que atingiu uma de suas áreas, o distrito perdeu turistas, visitantes e o vizinho Bento Rodrigues, subdistrito

com quem tinha forte relação.

Page 41: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 41

texto: AnA clArA FonsecA e Aline noGueirA

Fotos: JéssicA coronA

CURINGA | EDIÇÃO 16 41

Page 42: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Igreja Matriz de Nos-sa Senhora da Con-ceição, patrimônio histórico tombado pelo IPHAN. Atual-mente fechada para reformas.

A quarta-feira, 25 de novembro de 2015, amanheceu nu-blada em Mariana. Mas a temperatura aumentava ao longo do dia. Por volta das 13h, o carro da reportagem seguiu até o distrito de Camargos. O caminho não era longo, mas a estra-da, de terra batida envolta por árvores e serras, o fazia tortu-oso. A música que tocava no rádio falhava a cada quilôme-tro distante da sede do município. Após passar pela pequena ponte de madeira, a placa vertical da Estrada Real indicava que Camargos estava próximo.

A primeira casa, de cor laranja, destacou-se em meio ao verde da vegetação. O caminho, porém, continuava o mesmo: terra avermelhada e trajeto esburacado. O carro seguiu pelo vilarejo contornado por casas simples até encontrar o curso de água que leva aos sítios atingidos pelo rompimento da barra-gem de Fundão, no dia 5 de novembro de 2015.

A barragem ficava a 2,5 km do subdistrito de Bento Ro-drigues, localizado ao norte, a 8 km do distrito de Camargos. A lama devastou Bento Rodrigues, que tinha sua área conhe-cida pela intensa mineração, com uma população estimada em 600 moradores. Camargos ficava em suas adjacências, im-plantado em uma encosta formado pela área urbana - parte alta -, e pela área rural - parte baixa - a qual foi tomada pelos rejeitos. Distrito e subdistrito tinham forte relação, não ape-nas através do caminho da Estrada Real, que passava pelo centro urbano de Bento Rodrigues e ligava-se aos distritos de Camargos e Santa Rita Durão, mas também nas questões de desenvolvimento econômico, social e cultural.

Nos sítios atingidos em Camargos, ao pisar na lama dei-xada pelos rejeitos da barragem, a temperatura aumentou e o coração ficou apertado. O solo que parecia firme, causava insegurança a cada passo que afundava. No reflexo do sol, o chão frágil se mostrava com coloração azul acinzentado, as-sim como o camaleão que passou despercebido. Das três casas da região atingida, a amarela era a mais próxima, a outra, em que não se pôde distinguir a cor original, estava ainda mais tomada pela lama. Da terceira só se via o telhado.

No caminho de volta a parte alta do distrito, o barulho de água se faz cada vez mais perto. Ali está a Cachoeira do Te-

soureiro, antigo ponto de lazer dos moradores e visitantes de Camargos. A água fresca e límpida entre as pedras, se mistura com a lama ao fim de sua queda, tornando-a barrenta. Na grama ao lado da cachoeira, encontravam-se vestígios recém deixados de uma fogueira, indicando que há pouco havia pes-soas no local.

Atualmente, Camargos possui apenas 86 habitantes. Al-gumas casas são abertas somente aos finais de semana e fe-riados, período em que se recebia visitas e o movimento dava cor e alegria ao lugar. Parte do trecho do Caminho dos Dia-mantes da Estrada Real, o distrito de Camargos era agitado pelos turistas e visitantes que exploravam as belezas e pontos comerciais da região. A lama levou o caminho histórico das riquezas minerais e a ponte que ligava a Bento Rodrigues, dei-xando o vilarejo vazio e apagado. Ainda assim encontramos alguns moradores que carregavam consigo histórias e senti-mentos para contar.

“Aqui foi acabando, acabando, acabou”

Maria Inêz abre a janela desconfiada. Quer saber nomes. “É a Defesa Civil?” Caminhou até a porta, trocou algumas palavras e nos convidou para entrar. O aconchego do lar pa-rece tomado por um clima de insegurança. Natural de Vitó-ria, no Espírito Santo, escolheu Camargos pela tranquilidade. Intitula-se velha para as agitações do dia a dia nas cidades. Moradora há quatro anos, sabe exatamente sobre o cotidiano do local. Cotidiano esse, que se altera a cada dia desde o rom-pimento da barragem de Fundão.

“Estou aqui com a vida parada, faço só o trivial. Plantar e mexer no quintal eu já fico desanimada. Estou sempre atenta ao telefone, ao carro que passa. Será que vão me dar o papelzi-nho para eu ter que correr? Será que a sirene vai tocar? É um medo estranho, uma ansiedade, uma insegurança.”

A lama que atingiu Camargos não chegou até o vilarejo. No dia 7 de novembro de 2015, a Samarco - empresa respon-sável pela barragem - instalou um sistema sonoro, a fim de alertar os moradores de possíveis eventualidades. Porém, eles

Page 43: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 43

temem pela falta de informação. “Eu já falei com tanta gente. É uma situação instável, muita desinformação, in-formação errada, controvertida. Eu tenho que ficar atenta porque eu sou sozinha aqui.”

O subdistrito Bento Rodrigues, diferente de Camar-gos, cresceu com a chegada da mineradora, recebendo todo tipo de atenção e investimentos. “Era calçado, boa iluminação, tinha colégio. Aqui foi acabando, acabando, acabou.” Camargos foi esvaziando aos poucos, fazendo também com que os terrenos ali comprados fossem ape-nas para construção de sítios, habitáveis somente aos fi-nais de semana. Mesmo não tendo tanta ligação com Ben-to, como os outros moradores, Inêz se sente tocada pela tragédia. “A gente sente muito. Quem tem um pouco de sensibilidade, uma noção da interligação dos lugares, tem esse sentimento. A gente fica engasgado.”

“Dia de missa tinha muita gente”

Andrina Rodrigues mora há 22 anos na construção de aproximadamente 150 anos, herdada de seus familiares. A casa, em bom estado de conservação, é onde Andrina conta orgulhosa que em cada canto tem um pouquinho da história que ela e seu marido construíram juntos. É através das janelas azuis que ela olha todos os dias para a igreja em frente, encoberta por lonas esperando manu-tenção. “A igreja está feia, com aquele chapéu azul nas torres caindo”.

Com a igreja fechada para reformas, que sequer come-çaram, a missa, que acontece todo primeiro domingo do mês, está sendo celebrada numa sala da casa ao lado, que também abriga o posto médico do distrito. “Tá uma vergo-nha. Caindo aos pedaços, principalmente por dentro. Tem as imagens barrocas, anjos, tudo despedaçado lá dentro.”

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição foi erguida no alto de uma colina e tem sua construção da-tada de 1707. Considerada uma das mais antigas igrejas de Minas, pertence ao grupo das matrizes mineiras do sé-culo XVIII. Passou por reformas no inicio do século XX e foi, em 1949, classificada como patrimônio histórico pelo IPHAN. Hoje fechada guarda um pedaço da história de Camargos.

Além do lugar das celebrações religiosas, a igreja era ponto de encontro e festas dos moradores. “A comunidade é pequena, mas dia de missa tinha muita gente. As festas eram muito bacanas, tinha forró a noite toda. Mas agora vai acabar, a nossa festa aqui era mais agitada com o povo do Bento. Agora não existe o Bento, nem a estrada.”

“Bento foi um vizinho que morreu”

Silvânia Aparecida gosta mesmo é de cozinhar. Dona de um restaurante em Camargos, se diz a moradora mais animada do lugar. “Eu sou a mais bagunceira daqui. Faço quadrilha, festa de Nossa Senhora das Mercês, Festa do Cruzeiro. Ajudo muito nas festas da igreja. Faço feijoa-da para mais de 200 pessoas. De vez em quando a gente faz umas festas extras para não perder o costume. Fazia. Mas vamos voltar a fazer, né? O pessoal de Bento sempre vinha.”

Moradora de Camargos há 15 anos, Silvânia cresceu e construiu família em Bento Rodrigues, local onde vi-veu por 22 anos. “Mais ou menos 40% de Bento é paren-te meu.” Mas viu no distrito a oportunidade de abrir seu próprio negócio. Para ela, desde o rompimento da barra-gem, tudo mudou. O restaurante, que antes ficava cheio, hoje só é frequentado pelos vigias da Samarco, que agora ficam 24h no local. “Eles estão sendo meus fregueses, só. Era movimentado demais. Sábado e domingo eu não ti-nha tempo nem de almoçar.”

Além do restaurante, o vazio também toma conta de Silvânia. “Camargos pra mim tá um velório. Ruim demais. Bento, foi um vizinho que morreu e sabemos que não vai voltar. Mesmo que reconstruam um outro Bento, não vai ser o nosso Bento. Eu gostava muito de lá.”

A tragédia em Bento, afetou diretamente a vida dos moradores de Camargos, uma vez que muitos dependiam do que o subdistrito oferecia. “Lá tinha escola, posto de saúde, dentista, fisioterapia. Os médicos vinham de Santa Rita, passavam por Bento e chegavam aqui. Mas os aten-dimentos avançados eram todos lá. O posto aqui não é equipado para isso. Nem ônibus nós temos. A gente descia pra Bento, a pé ou de carona, e pegava o ônibus lá. A pre-feitura não nos dá muita atenção. Devem pensar ‘não vou cuidar de Camargos, lá não tem eleitor’. Não dão priorida-de para nós, não sei se é bom ou ruim. Precisava ter ôni-bus. Eu tenho carro e moto, mas tem gente que não tem.”

“Aqui a gente larga tudo aberto, dorme até com a janela aberta se tá fazendo calor”, conta Andrina Rodrigues.

Page 44: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Camargos como um dos primeiros povoados de Minas Ge-rais, foi fundado entre 1700 e 1701 pelos irmãos Camargos, que saíram de São Paulo e foram garimpar ouro no local. Porém, o monsenhor Raymundo Trindade, sacerdote e historiador, em seu livro “Instituição de Igrejas e Bispado de Mariana”, rela-ta que a Paróquia de Camargos já existia desde 1698, quando ainda era conhecido apenas como um vilarejo, sendo elevado a distrito em 1836.

O censo à época contabilizou 336 habitantes no local. Se-gundo o professor Cristiano Cassimiro, o esvaziamento do dis-trito seu deu pela perda da organização paroquial e, quando na década de 1980, houve a divisão do polo educacional e Camar-gos perdeu a escola. “Quando se tira a escola do lugar é isso que acontece.” Além disso, entre 1970 e 1980, a prefeitura de Maria-na criou políticas públicas para a construção de bairros e trouxe a população de alguns distritos para habitá-los. O morador Da-rio Pereira conta que a partir de 1950, quando as empresas mi-neradoras começaram a chegar, que as famílias foram saindo de Camargos em busca de oportunidades de trabalho nas regiões próximas. “Quando chegaram essas empresas aqui eles começa-ram a fichar o pessoal das roças. E foi saindo gente. Aqui foi um distrito sofrido, saiu mais gente daqui.” Desde então o distrito, aos poucos, se tornou o Camargos que conhecemos hoje.

O filho, Dario Junior, é presidente da Associação de Mora-dores e Amigos de Camargos e explica que os problemas encon-trados no distrito - como a falta de transporte público, falhas no abastecimento de água, pavimentação da estrada e calçamento - são fatores que interferem no crescimento do local. Ele conta que há projetos, já de muito tempo, para uma revitalização e urbanização do distrito.

Porém, o presidente da Câmara de Vereadores de Mariana, Antônio Marcos Ramos Freitas, o Tenente Freitas, diz que a câmara não recebeu nenhuma demanda para revitalização ou melhorias no distrito. “Ninguém de lá nunca nos procurou para

falar sobre qualquer possível demanda. Para os moradores nos solicitarem algo, como isso do transporte, a Associação de Mo-radores normalmente é o melhor caminho. As vezes não precisa nem de audiência, é só nos encaminhar um abaixo assinado, que agendamos uma visita. Tem coisas que só vamos descobrir necessárias se alguém trouxer.”

O rompimento da barragem atingiu além daquilo que a lama de rejeitos alcançou. Moradores do distrito tiveram sua rotina tomada por alertas e esperam a criação de outro Bento. Tenente Freitas acredita que a construção de um novo Bento Rodrigues nas proximidades de Camargos iria valorizar a região e não perderia a união entre eles, porém dependeria da vontade da comunidade. “A Samarco é dona de muitos terrenos ali, ela podia pegar um desses terrenos e construir o Bento. É a região que eles vieram, morar por ali, seria como manter a tradição, os laços.” O tenente aponta que deveria também ter um memorial de Bento em suas proximidades e que talvez poderia ser um caminho para Camargos para, quem sabe, conseguir um repo-voamento do local.

Dario Junior contextualiza Camargos após o rompimento da barragem de Fundão. “Bento Rodrigues foi devastado, não tem mais jeito. Camargos infelizmente teve uma parte atingida, mas o distrito continua de pé, em momento algum abaixamos a cabeça. Mas mudou completamente a nossa forma de viver porque não temos uma informação concreta do que vai ser. Qual o risco que Camargos tem hoje? Eu não sei, não posso dizer.”

Às 17h entramos no carro da reportagem de volta a Ma-riana. Com o coração ainda apertado, porém compreendendo e conhecendo melhor Camargos e seus moradores, seguimos em silêncio. Na mesma estrada encontramos um pavão com as asas baixas, imóvel, até mesmo quando passamos por ele. Apesar disso, enfeitou o caminho e nos deixou a lembrança da beleza e simplicidade do distrito de Camargos, que mesmo abalado, tem muito a contar e a se redescobrir.

Silvânia Aparecida lam-enta a perda do subdistrito Bento Rodrigues. “É triste demais você ver as pes-soas perderem tudo.”

“O distrito continua de pé”

Prej

uízo ambiental

Page 45: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 45

Prej

uízo ambiental

texto: AndrezzA liMA

Fotos: cAtArinA BArBosA, GiovAnnA de Guzzi, JéssicA coronA

Arte: rAFAel Melo

CURINGA | EDIÇÃO 16 45

Gio

va

nn

a d

E G

uz

zi

Page 46: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Segundo Letícia Camarano, jurista especializada em proteção ambiental que acompanha o caso, a empresa e o governo são corresponsáveis pela tragédia, porque ambos sabiam da condi-ção de alerta da barragem. Para ela, “há um certo desleixo do Estado com relação ao meio ambiente, uma omissão generali-zada, porque as licenças são sempre concedidas, as leis são ar-rochadas e os órgãos ambientais do governo são pautados pelo poder econômico”.

Genética ilegal

De acordo com o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A construção de uma barragem em um local histórico, geográ-fico e socialmente definidos, como era o caso da barragem de Fundão, já constitui uma ilegalidade, porque não se garante o “ecologicamente equilibrado”. É o que afirma Letícia Camara-no, atestando “a genética criminosa desse empreendimento”.

A Samarco é acusada por cometer vários crimes ambientais, além dos 19 homicídios. O indiciamento aponta dolo eventual (o agente assume o risco de determinada ação), pois a empresa estava ciente dos grandes perigos da barragem. Para a jurista, “qualquer empreendimento nesse nível de risco deve ser repen-sado e qualquer possibilidade de dano ao direito à vida deve ser motivo para se interromper qualquer empreendimento”.

De novembro de 2015 a janeiro de 2016, o IBAMA lavrou

“O desastre nunca aconteceu, ainda está acontecendo”. Essa frase, da antropóloga Andrea Zhouri, enfatiza que os danos da maior tragédia ambiental do país serão sentidos por muitas dé-cadas. Os impactos do rompimento da Barragem de Fundão são imensuráveis e atingem fauna, flora, água e homem.

De acordo com o IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Am-biente e dos Recursos Naturais Renováveis), dos 50 milhões de m³ de rejeitos de minério da barragem de Fundão, pelo menos 34 milhões foram lançados no meio ambiente. Já o MAB (Mo-vimento dos Atingidos por Barragem) afirma que a barragem era formada por 92 milhões de m³ e que o vazamento foi es-timado entre 55 e 65 milhões de m³. Um dos problemas para determinar os impactos é a instabilidade da barragem que não para de vazar.

Em laudo técnico de novembro de 2015, o IBAMA relatou que a lama atingiu 663km do Rio Doce e afluentes, destruiu 1469 hectares de vegetação, incluindo áreas de preservação per-manente. A bacia do Rio Doce possuía cerca de 80 espécies na-tivas de peixes, 11 ameaçadas de extinção e 12 endêmicas (que só existiam lá). Foram recolhidos, até o dia 26 de dezembro pela empresa Bioma, contratada pela Samarco, 28.000 exemplares de peixes mortos no curso do Rio Doce. O IBAMA acredita que esse número tenha aumentado muito, “decorrente das altera-ções causadas nos cursos de água”.

Na lista de classificação de barragens da Fundação Estadu-al do Meio Ambiente de 2014, as três barragens da Samarco em Mariana estão na “Classe 3” (última categoria, que signi-fica alto potencial de dano ambiental e que deve ser auditada anualmente) e tiveram a estabilidade garantida pelo auditor.

Page 47: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 47

39 notificações e autuações à Samarco exigindo relatórios de monitoramento das outras barragens próximas, plano de mo-nitoramento ambiental, implementação de ações de resgate da fauna, análises da água, dentre outros. As cinco infrações (to-talizando R$ 250 milhões em multa) são por tornar uma área urbana imprópria para ocupação, provocar perecimento de es-pécies da biodiversidade, causar poluição hídrica, provocando a morte de animais, e lançar resíduos sólidos e líquidos na água. Além dessa multa, o governo federal entrou com ação civil pú-blica para que a Samarco arque e administre um fundo de 20 bilhões para revitalizar a bacia do Rio Doce.

Segundo o IBAMA, a empresa está “de maneira geral” cum-prindo as determinações. No dia 30 de dezembro, a Samarco foi notificada a apresentar um plano de restauração ambiental das áreas atingidas pelo rompimento da barragem, mas esse projeto foi reprovado por não apresentar análises detalhadas, minimi-zando todos os impactos ambientais. O IBAMA entende que os impactos deveriam ser melhor estudados para que o projeto seja mais condizente com a realidade. A Samarco entregou, no dia 17 de fevereiro, as complementações do plano.

Rios

A lama atingiu primeiro o Rio Gualaxo do Norte, em Maria-na, até desaguar no Rio do Carmo, em Barra Longa (ambos per-tencem à bacia hidrográfica do Rio Doce) e chegar ao Rio Doce. No dia 21 de novembro (16 dias após o rompimento da barra-gem), os rejeitos chegaram à foz no Oceano Atlântico. Através do curso do rio, a lama passou por dois estados (MG e ES) e se-

gundo o relatório de dezembro de 2015 do PoEMAS (Grupo Po-lítica, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade de UFJF), sete cidades mineiras e duas capixabas tiveram abastecimento de água interrompido e 35 municípios de Minas Gerais ficaram em situação de emergência ou calamidade pública e pelo menos quatro do Espírito Santo sofreram com os impactos da tragédia.

Antes do rompimento da barragem, os moradores de Ben-to Rodrigues e Paracatu já sentiam os impactos da mineração. Segundo relatam moradores e afirma a coordenadora estadual do MAB, Letícia Oliveira, esses dois distritos possuíam proble-mas de abastecimento de água que pode ser justificado pelo uso intenso de recurso hídrico pela Samarco para lavar o minério. Letícia aponta que a barragem de Fundão e Germano foram construídas no vale do rio, ou seja, “as terras das baixadas, as mais férteis, eram totalmente comprometidas, assim como a beira dos rios”.

A coordenadora conta ainda que os moradores de Gover-nador Valadares e Colatina relatam coceiras após o banho e que se alguém deixa parado um copo cheio de água de um dia para o outro é possível perceber um resíduo escuro no fundo do recipiente, mesmo depois do tratamento feito pelos órgãos de saneamento. Além disso, o MAB está muito preocupado com a população rural: “o problema é que nessas áreas as pessoas pe-gavam água e tratavam do jeito delas. Agora elas não tem nem água para irrigar as plantações e nem os pescadores conseguem pescar mais. Fora os índios Crenaque de Resplendor que pos-suem uma relação cultural e religiosa com o Rio Doce e, mesmo com a lama, continuam entrando no rio e ficando com feridas”, afirma Letícia Oliveira. _

CURINGA | EDIÇÃO 16 47

ca

tari

na

Ba

rBo

sa

Page 48: Revista Curinga Ed. 16: Especial

O Rio Doce é identificado como “Classe 2” pela Deliberação Normativa Conjunta COPAM/CERH-MG e Conselho Nacional do Meio Ambiente. Portanto, essas águas podem ser destina-das ao consumo humano (após tratamento convencional): à proteção das comunidades aquáticas; à natação; à irrigação de plantas, parques e campos de esporte; e à atividade pesqueira. Essa classificação é importante para as pesquisas, pois é o que estabelece os limites aceitáveis de índices de metais, ametais, materiais sólidos e outros elementos encontrados na água.

A ONG SOS Mata Atlântica divulgou, em janeiro de 2016, análises do Rio Doce. Dos 18 pontos analisados, 16 apresenta-ram níveis de Índice de Qualidade da Água péssimo e dois em estado regular. Toda água do trecho foi considerada imprópria para consumo humano e de animais.

Em contrapartida, a CPRM - Serviço Geológico do Brasil e a ANA (Agência Nacional de Águas), que estão monitorando a qualidade da água do Rio Doce, indicam outros dados. Segundo relatório desses órgãos (de dezembro de 2015), as amostras de água coletadas no rio não possuem metais em quantidades con-sideradas contaminantes; as concentrações dos metais pesados estão próximas do limite aceitável e a turbidez (material em suspensão na água) alcançou níveis de até 100 vezes superiores aos observados em análises anteriores.

O IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) já super-visiona a bacia do Rio Doce desde 1997. Após o rompimento da barragem, o Instituto intensificou esse acompanhamento e produziu, até o fechamento da edição, quatro relatórios com análises dos rios do Carmo, Gualaxo do Norte e Doce. Eles ob-servaram o aumento da turbidez acima do valor médio da sé-rie histórica de monitoramento e do limite estabelecido para rios de “Classe 2”. Além disso, também constataram a presença de ferro e alumínio acima do limite em quase todos os pontos, principalmente no Rio do Carmo. O Instituto também encon-trou metais pesados nas coletas realizadas entre os dias 21 de novembro e 20 de dezembro de 2015.

O laudo técnico do IBAMA, de novembro de 2015, também apresenta resultados iniciais de amostras da água dos rios afe-tados pela lama e indica a presença de Metais Totais (Alumínio, Bário, Cálcio, Chumbo, Cobalto, Cobre, Cromo, Estanho, Ferro, Magnésio, Manganês, Níquel, Potássio, Sódio), Metais dissol-vidos (Alumínio, Ferro, Manganês) e alteração nos parâmetros de condutividade elétrica, Fluoreto, Fósforo total, sólidos to-tais, turbidez e Cloro residual total.

O Rio Doce já era degradado com vários trechos assoreados (acúmulo de lixo) por falta de mata ciliar e mal uso do solo das margens. De acordo com a Coordenadora Geral de Emergências Ambientais do IBAMA, Fernanda Pirillo, o rio já possuía uma série de contaminantes. “Quando a lama passou, causou a re-suspensão desses metais que ficavam no fundo e por isso eles foram detectados nos exames. Já o ferro e o manganês são com-ponentes da própria lama e por isso apresentam os índices mais

elevados”, confirma Fernanda. Dados do CPRM comparam análises de 2010 com as de 2015 (depois do desastre) e atestam que a concentração dos dois elementos aumentou muito. Em 2010, a água da bacia do Rio Doce tinha no máximo 12% de ferro e 1.200 ppm (parte por milhão) de manganês e, em 2015, o ferrou subiu para 24% e o manganês para 2.900 ppm. Esses elementos são considerados metais pesados e em alta concen-tração são tóxicos e nocivos à saúde.

Outra preocupação é o aumento do nível de chuvas no su-deste em janeiro e fevereiro, ampliando ainda mais a turbidez, gerando um bloqueio da entrada de luz e do processo de oxi-genação e atrapalhando a respiração das espécies aquáticas. Segundo a bióloga, Letícia Garcia, professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), “a chuva poderá dar a falsa impressão de que a água está sendo ‘lavada’, porém, os re-jeitos estarão continuamente se depositando no fundo da calha. Além disso, a chuva aumenta o volume do rio que transborda e contamina lagoas adjacentes com os rejeitos, a exemplo do que está acontecendo em Linhares, ES.”

Oceano

O IBAMA está acompanhando a pluma de sedimentos no mar através de mapas feitos por interpretação com imagens de satélite. Esses comprovam que a pluma atingiu três unidades de conservação federais próximas a foz do rio: Revis de Santa Cruz, APA Costa da Algas e Rebio de Comboios. Os mapas de 10 e 14 de fevereiro estipulam que a área da pluma de maior concentração ocupe 328 km² e 138km² e a menor 6.634km² e 1.711km², respectivamente. Fatores como ventos superficiais, correntes, vazão e turbidez na foz do Rio Doce influenciam a diferença de tamanho e a distribuição das plumas ao longo dos dias. Segundo Fernanda Pirillo, o oceano não está diluindo a lama na mesma velocidade que ela chega. “Tudo indica que o mar está diluindo menos”, atesta.

De acordo com a bióloga Letícia Garcia, a lama se tornou uma substância bem fina no mar que fica flutuando e gera alta turbidez. Isso afeta organismos que produzem fotossíntese e dificulta a entrada de luz na água e ainda altera drasticamen-te a cadeia alimentar marinha. No dia 7 de janeiro, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiverdidade) e o IBAMA constataram a presença de sedimentos nas áreas de recifes de corais no Parque Nacional Marinho de Abrolhos, no sul da Bahia. Estimaram que a pluma tenha atingido cerca de 7.000km². No fim de janeiro, o ICMBio realizou uma expedição durante 10 dias para coletar e analisar amostras de água, sedi-mentos e espécies marinhas da foz do Rio Doce ao arquipélago de Abrolhos. O objetivo é fazer um diagnóstico dos impactos da lama na região e obter estudos para subsidiar futuros progra-mas de restauração ambiental. Até o fechamento desta edição não houve acesso à análise.

Giovanna dE Guzzi

Page 49: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 49

Fauna e FloraA lama inundou e arrancou plantações, hortas familiares,

árvores e muitos quilômetros de solo fértil. Os rejeitos da mi-neração formaram um material inerte (inativo) sem matéria orgânica, causando desestruturação química e afetando o pH do solo e a fixação de nutrientes importantes para o desenvol-vimento das plantas. Portanto, a presença da lama dificultará a recuperação e o desenvolvimento das espécies e as mais sen-síveis podem até mesmo “ser extintas localmente por não se adaptarem às condições alteradas”, confirma a bióloga.

O relatório da SOS Mata Atlântica sobre áreas atingidas, de dezembro de 2015, aponta que 236 hectares de remanescentes florestais e 88 de vegetação natural foram removidas pela lama. Além disso, 1.775 zonas urbanas, de pasto, agricultura, mata e várzea foram impactadas só nos municípios de Mariana, Barra Longa, Rio Doce, Ponte Nova e Santa Cruz do Escalvado.

A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) realizou um estudo, em novembro de 2015, em locais atingidos e não detectou metais em níveis tóxicos no solo. Ainda assim, a empresa afirma que a a região não “apresenta condições para o desenvolvimento de atividades agropecuárias” e de plantações por causa da infertilidade e a dificuldade de infiltração de água na lama. A análise ainda aponta a redução de potássio, magné-sio e cálcio, necessários para o desenvolvimento de atividades agrícolas. Segundo a Embrapa, as áreas degradadas podem ser

recuperadas através de técnicas de revegetação e tecnologias, mas que podem demorar mais de uma década para fazer efeito.

Segundo Fernanda, coordenadora do IBAMA, a empresa está plantando gramíneas para contenção de rejeitos. Já a co-ordenadora do MAB diz que são sementes de leguminosas e o objetivo é recuperar o nitrogênio e acumular matéria orgânica no local. Pelo site, a Samarco afirma que está usando um mix de plantas nativas e de rápida germinação para evitar que as margens dos rios fiquem expostas e que sedimentos sejam le-vados para os rios.

A lama também atingiu vários animais. Além dos prejuí-zos causados pela alta turbidez e pelos elementos químicos en-contrados na água, as espécies aquáticas foram mais afetadas porque estavam em período de reprodução. O desastre impac-tou ainda toda a cadeia alimentar, que envolve peixes, anfíbios, répteis, comunidade planctônica, invertebrados aquáticos e mamíferos que dependem das águas do rio e das matas que fo-ram devastadas. Por causa da condição física da lama, animais maiores podem ficar soterrados e atolados ao tentarem chegar no curso do rio.

O IBAMA alerta para a possibilidade disso provocar um au-mento na ameaça de extinção de espécies: “O nível de impacto foi tão profundo ao longo de diversos estratos ecológicos, que é impossível estimar um prazo de retorno da fauna ao local, visando o reequilíbrio das espécies na bacia do rio Doce”.

ssic

a c

oro

na

CURINGA | EDIÇÃO 16 49

Page 50: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Bodas de

Ouro sem ouro

Há dois anos, o Governo Federal encaminhou para votação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.807/2013, também conhe-cido como o novo marco regulatório para o setor de mineração no país. Se aprovado, o projeto substituirá o atual Código de Minera-ção, o Decreto-Lei n° 227, de 28 de fevereiro de 1967. Criado às vés-peras do Ato Institucional nº 5, durante a Ditadura Civil e Militar brasileira, desde então, o marco não sofreu nenhuma modificação.

Quase 50 anos depois, com o objetivo de ampliar as áreas explo-radas, modernizar as regras do setor, alterar as diretrizes de cobran-ça e ter uma fiscalização com estrutura mais eficiente que a atual, o PL aguarda a aprovação de seu texto, que já possui várias pro-postas de emendas. De acordo com notas divulgadas no site oficial do Senado Federal, o foco principal do novo Código é impulsionar, através de uma sistematização mais organizada, os investimentos no setor minerário, o que geraria maior retorno à sociedade como um todo em várias frentes da economia.

Mudanças

No novo texto está proposta a criação de um Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) e também de uma Agência Nacional de Mineração (ANM) – e a extinção do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Tudo isso, na teoria, tornaria mais transparente tanto a divisão dos recursos financeiros aos municí-pios, estados e União; quanto obrigaria os municípios “minerado-res” a também compartilharem dessa mesma política de transpa-rência na prestação de contas.

Com o novo Código, todas as prefeituras do país serão obriga-das a divulgar como estão sendo gastos o dinheiro advindo dos royalties da mineração. Outra importante decisão é a participação federativa na fiscalização e gestão dos recursos minerais, presentes no artigo 23 da Constituição Federal, que estabelece a existência de uma cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal

Giovanna dE Guzzi

texto: endricA FernAndes

Fotos: GiovAnnA de Guzzi e victor huGo MArtins

Arte: rAFAel Melo

victor huGo martins

Page 51: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16 51

e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio e a preservação de florestas, fauna e flora nacionais.

Para seus defensores, o novo marco regulatório será um me-canismo de apoio à sustentabilidade da mineração em todas as etapas. Ele terá leis específicas para substâncias que constam como monopólio da União, minerais e fósseis raros, águas mi-nerais, mineração em terras indígenas e em faixa de fronteira entre outras cláusulas importantes. Isso traria, além de um ga-nho econômico, maior segurança quanto à paralisação da de-gradação ambiental, principal queixa de quem convive com o cenário da mineração diariamente.

É fato que o projeto de lei propõe uma mudança estrutural drástica no caminho para a exploração e pesquisa dos recursos minerais. A principal vantagem dessa mudança seria a criação de licitações para isso. Assim, mais empresas seriam incentiva-das a pleitear o gerenciamento das jazidas de minério no Brasil. Além desse incentivo à ampla concorrência entre mineradoras, a nova estrutura, de acordo com o texto, daria mais segurança – tanto fiscal quanto jurídica – para os interessados. Se pensar-mos sobre como o contexto e técnicas mudaram desde a criação do código, a proposta parece buscar acompanhar a mudança nas relações institucionais, que vem acontecendo nos últimos 50 anos de história brasileira.

A criação de licitações ficaria a cargo do futuro CNPM, en-quanto a ANM ficaria responsável pela regulação, fiscalização e

formulação das regras do setor. Isso acabaria por solucionar um problema de anos: a falta de estrutura do DNPM para fiscalizar e regulamentar as atividades minerarias no Brasil.

Mas nem todos defendem as mudanças do novo Código. Para alguns, essa mudança nos órgãos de política mineral, alia-da a alterações na tributação, visam mais o aumento da arreca-dação do governo do que qualquer outra frente objetivada. No texto inicial da proposta, as novas alíquotas da CFEM (Com-pensação Financeira de Extração Mineral) para cada tipo de minério serão definidas, por exemplo, por decreto presidencial, após sanção da lei. Isso significa que as regiões mineradoras estarão “nas mãos” do governo, que pode até dobrar as taxas da exploração.

Em meio aos trâmites do projeto no Senado e Câmara, exis-te um jogo de interesses entre as empresas e os políticos que protagonizam a votação desse projeto de lei. Muitos políticos ti-veram suas campanhas eleitorais financiadas por mineradoras, inclusive Leonardo Quintão, Deputado Federal, relator do PL 5.807/2013 até fevereiro de 2016. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o deputado recebeu R$ 1,8 milhão de empresas de mineração na campanha de sua reeleição, em 2014. O que deixa em questão, a quem, afinal, esse projeto deve beneficiar.

Uma mudança na legislação é, sem dúvidas, um excelente avanço. Todavia, é necessário também saber como cada peça desse enorme tabuleiro de xadrez se movimenta.

CURINGA | EDIÇÃO 16 51

Page 52: Revista Curinga Ed. 16: Especial

OpiniãoJosé Margarida da Silva, professor da Universidade Federal

de Ouro Preto (UFOP), coordena a Câmara Nacional de Geolo-gia e Minas do CREA-MG. Em entrevista à Curinga ele relata prós e contras do novo código minerário.

Curinga: O código minerário é de 1967, as prioridades das cidades que são mineradoras foram mudando, mas o código não acompanhou essas mudanças, quais as con-sequências dessa defasagem?

As cidades também nunca se prepararam para a situação. Casos existentes, mais de uma dissertação que orientamos na UFOP, por exemplo, alertavam para a questão. O código vem sendo aperfeiçoado dentro da necessidade e poderiam ocorrer mudanças acerca da questão de equilibrar a intervenção do po-der concedente (União) com a concessão do direito minerário, que é um dos motivos apontados para a necessidade de uma nova legislação inteira sobre o tema.

C: Quem se beneficia com esse novo código?Nessa proposta, criada pelo governo, que teve mais de 700

propostas de alteração, alega-se que as grandes empresas se beneficiariam. A criação de nova entidade para fomento e re-gulamentação do setor, em substituição ao DNPM, seria eficaz se forem garantidos aportes de recursos e infraestrutura para fiscalização, o que não vem acontecendo nos últimos anos. Cor-remos o risco de “somente trocar a placa” da entidade, mas não

resolvermos os problemas apontados de que áreas poderiam estar liberadas mais rapidamente para a produção, após a pes-quisa mineral.

C: As taxas dos royalties que são pagas pela CFEM irão aumentar com a aprovação do novo código.O au-mento é suficiente? Por quê?

Os profissionais e entidades da mineração, em sua maioria, entendem que esta questão deveria ser discutida e votada em separado, assim como outro PL sobre a criação da Agência e Conselho de Mineração e outro ainda sobre a própria regulação do setor. O setor está caminhando lentamente com a demora da definição, insegurança jurídica e risco que já é intrínseco ao negócio da mineração.

C: O novo código funcionará? Ele tornará Mariana uma cidade com menos desigualdade social?

Temos que ver qual será o novo relatório e qual será o pro-duto final (as leis), após as votações no Congresso. A eventual reestruturação levará alguns anos; é o que se prevê. As ques-tões ambientais não podem ser extremadas, nem mesmo com o acidente recente, pois precisamos da mineração para as neces-sidades de moradia, alimentação, transporte (petróleo), entre muitas outras, além da oferta de empregos e renda. É um “mo-tor” de nossa economia também. Portanto, há necessidade de equilibramos a preservação com a extração desses recursos de que a sociedade não abre mão.

vic

tor

hu

Go

ma

rtin

s

Page 53: Revista Curinga Ed. 16: Especial

OMUNDOEM MIM

Jéss

ica

co

ron

a

Page 54: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Se

nsa

ção

Art

e: B

árB

ArA

to

risu

Qu

em

re

sist

e

à la

ma?

thA

tiA

nA F

reit

As

Se

nsa

ção

Arte: BárBArA torisu

Page 55: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 55

ssic

A c

oro

nA

CURINGA | EDIÇÃO 16 55

Page 56: Revista Curinga Ed. 16: Especial

thA

tiA

nA F

reit

As

Page 57: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 57

thAtiAnA FreitAs

thAtiAnA FreitAs

JéssicA coronA

CURINGA | EDIÇÃO 16 57

Page 58: Revista Curinga Ed. 16: Especial

thA

tiA

nA F

reit

As

Page 59: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 59

thAtiAnA FreitAs

thAtiAnA FreitAs

cAtArinA BArBosACURINGA | EDIÇÃO 16 59

Page 60: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Recortes de uma Identidade Perdida

As mulheres e eu no resgate memorial de Bento Rodrigues

stê

nio

liM

AM

Ari

nA M

orG

An

Page 61: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 61

Ide

nti

da

de

Recortes de uma Identidade Perdida

As mulheres e eu no resgate memorial de Bento Rodrigues

Falo aqui de perda. Perda de amor, de memória, de referên-cia. Durante dois meses, de novembro a dezembro de 2015, andei por diversos hotéis em Mariana. Vi muitas roupas amontoadas, pessoas com o olhar perdido. Os olhos cabisbaixos, como quem procura alguma solução para uma tragédia que devastara uma ci-dade e, junto, o psicológico de seus moradores. Bento Rodrigues não existe mais.

Álbum de fotos, documentos, camas, objetos carregados de afeto se foram. O que moldou a personalidade e a identidade dos ex-moradores da localidade se perdeu. Resta somente a lembran-ça em suas cabeças. O desafio agora é reconstruir a vida de antes. Reconstruir recordações.

Quando estive em Bento, me senti perdido. Nada do que me contaram que ali existia era fácil de se encontrar. O cenário fedia. Moscas circulavam ao nosso redor, frequentemente pousando sobre nosso corpo. Não existiam cores. Era tudo marrom. Real-mente não restava nada. Meu pé afundava na lama daquela ci-dade fantasma. Cenário composto por ruínas. Parecia um campo de guerra, não um local colorido cheio de vida e amor. Bento sumira no mapa. Todos estavam perdidos em uma nova cidade, sem saber o que fazer. Antes resolviam seus problemas de forma autônoma, agora esperam ordens de terceiros, de desconhecidos, para poderem retomar suas vidas com integridade.

Apesar disso tudo, conheci e participei da rotina de mulheres fortes. Capazes de erguer a cabeça e me contar sobre quem eram e quem são, sem esconder suas emoções e fragilidades. Enquan-to respirarem, Bento existirá. Seus relatos vêm para nos aprofun-dar nesse lugar outrora vivo, agora devastado.

texto: GABriel cAMPBell

Fotos: stênio liMA e victor huGo

Arte: cAroline FernAndes

CURINGA | EDIÇÃO 16 61

Page 62: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Através de um padre fui ao encontro de Rosilene no culto ecumênico realizado no dia 5 de dezembro, um mês após a destruição. Casada com Expedito Lucas da Silva, de 45 anos, teve sua cerimônia de casamento realizada na principal igreja católica de Bento, há 18 anos. Seu marido e ela tiveram que se preparar para a data através da Pastoral da Família. Segundo ela, todos os casais que iriam se dedicar ao matrimônio faziam assim. As missas aconteciam todo segundo sábado e quarto domingo do mês. Percebo que olha para uma menina correndo e pergunto se é filha do casal. Ela me responde que sim. Conta que foi batizada na mesma Igreja de São Bento, onde se casou. As crianças tinham aulas de catecismo todos os domingos às 10h da manhã, lecionadas por pessoas da própria comunidade.

Participante do Coral da igreja, Rosilene e seu grupo ensaiavam duas à três vezes por semana, às vezes até mais. “Passávamos até 15 dias ensaiando, sem parar, dependendo da música”. O coral era composto por jovens, crianças e idosos, contemplando todas as faixas etárias. O grupo apresentava-se nas Igrejas da região. Paróquias de Catas Altas, Santa Rita Durão e demais localidades. “Todo dia 8 de Dezembro, no dia de Nossa Senhora da Conceição, íamos a Catas Altas nos apresentar. Agora não vamos mais”.

Hoje, só resta o chão coberto de terra suja e densa. Ainda se vê a pia de batismo, mas a estrutura se foi. A Igreja que move montanhas foi movida por elas.

No dia 20 de novembro, 15 dias após o rompimento da barragem, dirigi-me ao Hotel Providência, em Mariana. Nele estavam diversas famílias atingidas pela lama em Bento Rodrigues. Foram alocadas após o desastre. Lá conheci Sandra. Estava na

cozinha preparando suas coxinhas, coisa que fazia religiosamente quando tinha seu bar erguido. Era, como diz ela, o mais famoso de Bento. Fundado em 2000, o

espaço era um ponto de encontro da própria população local e de quem ali pas-sava. Pessoas que faziam trilha, turistas conhecendo a localidade, motociclis-

tas. Todos paravam para beber uma cerveja e degustar dos melhores quitutes, especialmente preparados por ela.

Além de um ponto de encontro, a casa em que Sandra morava era cen-tenária, da época dos tropeiros - condutores de tropas de cavalo ou mu-

las, que atravessavam grandes distâncias rumo ao interior, levando gado e mercadorias. Dentro de sua residência existia um título de eleitor de

1888. Tinha orgulho de mostrar seu espaço para todos que ali passavam. Havia feito reformas recentemente para valorizar a arquitetura da época, expondo ainda mais as vigas de madeira e chão de pedras justapostas. Quando fala de sua casa, sua voz fica embargada e trêmula. “Meu chão era de pedra, muito antigo. Todo mundo que passava pela estrada real eu fazia questão de mostrar tudo da minha casa. Tinha orgulho dela. Era a casa mais bonita de Bento”.

Sandra saiu com sua filha no colo, foi para o alto. Viu tudo sendo arrastado pela lama: o telhado indo embora em alta velocidade, junto com o quintal que continha sua plantação de milho, cinco pés de jabuticaba e a plantação de mandioca. Segun-do ela, eram as melhores da região. Foram embora também seus documentos e sua identidade.

No hotel, sua filha sempre vinha a perguntar: “Mamãe, essa é a nossa casa? De quem é essa casa que a gente está?”. Frase que ela, ainda criança, insiste em repetir.

Sento à mesa, num canto ao lado do fogão e ela me oferece suas coxinhas. Con-fessa-me que chorou muito quando viu tudo se perdendo. A bíblia de sua mãe foi levada. Representava a proteção do seu lar. O livro continha todas as anotações e orações de quando ela ainda era viva. Antigamen-te, na casa havia uma capela: sua família sempre foi bastante religiosa.

Sandra se despede de mim falando de seus afazeres depois que sair da cozinha. “Amanhã vou no salão fazer a sobrancelha. Foram man-dar a gente para cidade. Meu Deus, me colocaram na cidade! Ago-ra tenho que ficar bonita, arrumada.”, confessa. “Agora vou tomar umas cachacinhas e ouvir umas músicas antigas para ver se lembro um pouco da minha casa e da minha família”, desabafa enquanto cantarola.

Dia 20 de novembro, fui até onde era o distrito de Bento Ro-

drigues à procura do famoso bar. Demorei para encontrá-lo. Eram

muitos destroços e garrafas espalhadas. Pelas características que

Sandra havia me passado, foi difícil visualizar tal lugar em meio

ao marrom denso. Seu bar ali estava. Pelo menos o que restou

dele. Dois fogões à lenha cobertos de barro e vegetação. O banhei-

ro cheio de lama até a torneira da pia. A toalha vermelha estava

intacta. Pratos brancos quebrados. A tristeza me tomava. Ali era

o lugar para o qual ela vivia. Sua rotina fora interditada. Passo

por onde seria o depósito e o caixa. Salgadinhos jogados no chão,

garrafas... No canto havia o computador onde seus ganhos e gastos

eram registrados. Da casa não restou nada - o famoso piso e as vi-

gas, nem sinal. O lugar, mesmo tomado pela destruição, sem a cor

viva do laranja, era aconchegante. Imagino que era carregado de

momentos de alegria e comemorações.

Foto: Stênio Lima

Foto: Arquivo pessoal Sandra

Foto: Stênio

Lima

Foto: Arquivo pessoal Sandra

Page 63: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 63

Encontrei-me com Alcione, antiga funcionária da escola de Bento Rodrigues. Estávamos na escola Dom Luciano, local onde atualmente diretora e alunos de Bento estão tentando manter o ensino até o final do ano letivo. Além deles, todos os alunos que estudavam na es-cola de Paracatu estão, agora, estudando ali, no bairro Alto do Rosário, em Mariana. Alunos da própria instituição colaram cartazes de boas-vindas para os novos colegas. “Todos eles falam que estão gostando da escola, mas que preferiam estar na de Bento”. Eram alunos que estudavam juntos desde que ingressaram na escola. A adaptação se torna mais difícil pelo espaço ser maior e ter muitas crianças diferentes do convívio delas. Como muitas famílias estão sendo realocadas para bairros distantes um dos outros, muitas delas tem dificuldade em manter todos os filhos juntos na mesma escola. Eles vão perdendo a identidade e o contato

Alcione foi contratada quando a Escola Estadual Bento Rodrigues já existia. Se-gundo ela, o local era composto por salas bem próximas umas das outras, aproxi-mando as crianças. Além dos ambientes de aula convencionais, o lugar contava com laboratório de informática, salão de jogos, almoxarifado bem equipado com tudo que tinha direito para atender aos trabalhos dos alunos, e um cantinho da leitura, onde professores e estudantes faziam suas rodas para ler e trocar experiên-cias sobre os livros lidos. O funcionamento era em tempo integral não obrigatório. As crianças iam para aprender o dever, tinham oficina de artesanato, teatro e aulas sobre educação patrimonial. “Para não ficar à toa em casa, muitos deles preferiam ficar na escola. Pelo menos estavam ali aprendendo”, relata Alcione. A escola, em Bento, funcionava com o corpo docente de 20 pessoas, que estavam ali há mais de 15 anos. “A escola era um mo-

delo para os distritos e até mesmo para Mariana”. A merenda era balanceada, bem rural. Os alunos eram chamados pelo nome. Todos eram tratados como filhos. “O almoço não perdia para nenhum restaurante. Os alunos respeitavam todos, não somente à diretora. Todos ali eram uma família. Quando algum aluno faltava muito, os professores iam até a casa dos pais para saber se tinha acontecido alguma coisa e dar assistência. As coisas eram muito próximas e a facilidade de todo mundo se conhecer era um ponto positivo para essa relação acontecer. “Um dia, um senhor de Bento tinha morrido e a escola estava vazia. Quando fui saber, todos tinham ido ao velório desse senhor”, lembra Alcione. Os lotes eram extensos. As casas não eram tão grandiosas, mas os lotes sim. Atrás da escola havia 25 pés de jabuticaba. “As crianças pulavam o muro para pegar o fruto e a vizinha ficava brava com eles.

O colégio era referência para a comunidade. As reuniões da Associação de Moradores de Bento Rodrigues eram feitas lá. Cursos, oficinas, campanhas de vacinação e palestras de saúde. Através do convênio com o PSF, médicos realizavam consultas na Escola, que funcionava, às vezes, como um hospital. “Faziam tudo na escola”, enfatiza Alcione.

Fui à casa de parentes onde Nenzica, uma das cooperadas da Associação de Hortifru-tigranjeiros de Bento Rodrigues (Ahobero), estava para me contar a história da conhecida fábrica de pimenta biquinho. Começou em 2002, quando a Samarco alugou um lote com 70 canteiros para plantio e beneficiamento de verduras de um senhor da localidade de Bento Rodrigues. Inicialmente, as cooperadas começaram a plantar a pimenta biquinho através do apoio da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMA-TER-MG), para vender o molho para uma indústria. Durante esse processo, resolveram testar a receita da geleia e deu certo. Passaram a plantar mais pimentas para confecção do produto e a pensar sua divulgação na mídia regional e nacional. Em 2006, a fábrica já produzia e comer-cializava a geleia de pimenta biquinho. “Era onde nós mulheres nos apoiávamos para resolver os problemas e garantir a renda extra”conta Nenzica.

A Associação hoje se encontra vazia. Continua

de pé, na parte mais alta de Bento Rodrigues, po-

rém nada de pimenta, nada de vidros de geleia. Nem

água, nem luz. A mesa onde as sete mulheres se reu-

niam para discutir o futuro, passar o tempo, compar-

tilhar os problemas e alegrias, está às moscas. No to-

tal eram 12 pessoas: sete mulheres e cinco homens.

“Costumávamos falar que éramos a casa das sete

mulheres. Os homens ajudavam quando ficava mais

apertado”, relata Nenzica. As pimentas, que estavam

acondicionadas em garrafas pet com salmora, foram

colocadas em containers da Samarco. As pias, fogões

e caixas foram retirados do local.

Foto: Thatiana Freitas

Foto: Stênio Lima

Foto: Victor Hugo

Foto: Victor Hugo

Foto: Arquivo pessoal Sandra

CURINGA | EDIÇÃO 16 63

Page 64: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Cinquenta e cinco milhões de metros cúbicos: esse era o meu tamanho. Agora já ocupo uma área maior, es-tou presente em distritos, sítios, cidades, rios e cheguei até o mar. Sou composta basicamente por areia, cerca de 90% de todo meu volume. Os outros 10% restantes se subdividem entre argila, óxidos de ferro e de manganês. Há quem diga que eu possa ser tóxica ao ser humano, mas prefiro acredi-tar que não. Ou pelo menos, essa não era a minha intenção.

Não me lembro como ou quando nasci, eu apenas estava lá e a cada dia crescia mais um pouco. Mas eu não me importava em crescer porque minha casa tinha espaço suficiente para mim. Eu morava em uma barragem feita sob medida para me abrigar. Ela, inclusive, era feita com as partes mais grosseiras da mi-nha própria composição. Eu não queria ter saído dela. Há algum tempo ouvia as pessoas, do lado de fora, dizendo que um dia minha casa ia cair. Mas pensava que eram apenas boatos, afinal, como uma casa tão grande e imponente poderia vir ao chão?

Um dia comecei a notar rachaduras nas minhas paredes, elas aumentavam a medida que eu crescia. Foi assustador. Nes-se momento, percebi que seria obrigada a deixar minha casa, mesmo não querendo. Juntei minhas coisas e, sem avisar nin-guém, saí por volta das 15h do dia 5 de novembro de 2015. Imaginava que seria apenas uma viagem tranquila, mas eu não sabia o que encontraria pelo caminho.

Eu, que nunca havia saído de casa até então, abri a porta meio desajeitada e saí correndo. Nos primeiros passos, encon-trei apenas restos da mineração e pouca vegetação. Ainda assim, pensei nos danos que causaria ao meio ambiente e quis voltar, mas já não conseguia. Alguns passos mais adiante encontrei ca-sas: era o subdistrito Bento Rodrigues, que tanto ouvi falar nes-

ses anos. Mais uma vez quis parar, porém eu era muito grande e pesada para voltar. Não era assim que eu imaginava conhecer o Bento. Eu estava muito alta e batia nos obstáculos com muita força, derrubei as casas que vi pelo caminho, assustei as pessoas e os animais. Quis logo sair dali e cessar a destruição que come-cei, mas não encontrava a saída. Andei pelas ruas em forma de redemoinho por várias vezes até achar um lugar para onde ir.

Foi assustador ver as pessoas correndo com medo de mim -eu não queria ter causado esse pânico. Até hoje lembro das pes-soas com lágrimas nos olhos me vendo passar. Enquanto deixa-va esse rastro de destruição em Bento, imaginei quantas histó-rias se passaram por ali e sabia, que de certa forma, eu estava levando as boas memórias dessas pessoas. Em cada esquina que dobrava, eu deixava minhas marcas pelas ruas e paredes. Me via invadindo as casas e levando tudo que as pessoas tinham. Levei também 19 vidas cheias de sonhos e planos para o futuro. Não queria que isso acontecesse, não era a minha intenção.

Consegui sair de Bento, mas deixei um pouco de mim lá, as-sim como fiz em todos os lugares que passei. E não foram pou-cos. Fiz o mesmo estrago em muitos outros distritos e cidades. Passei levando casas, o sustento e os sonhos de muitas famílias. Algum tempo após sair da barragem, encontrei alguns afluentes que me levaram até o Rio Doce.

Cruzei a fronteira de Minas Gerais com o Espírito Santo e sabia que logo chegaria ao litoral. Pensava que lá eu teria fim. No dia 21 de novembro, dezesseis dias após sair de casa, che-guei em Regência, distrito do município de Linhares, por volta das 16h. Foi lá, na foz do Rio Doce, que desaguei no mar. Até chegar aqui, passei por um total de 879 km. As ondas ainda me arrastam, me fazendo ocupar uma área maior.

Eu, Lama

texto: Aline noGueirA

Fotos: AndrezzA liMA

Arte: cAroline FernAndes

Op

iniã

o

Page 65: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Agora, avançando cada vez mais mar a dentro, não sei como será o meu fim, mas espero que seja logo. Já causei muita des-truição. Daqui de dentro, tenho ouvido muita coisa sobre mim. Entre elas, que o meu maior dano foi ao meio ambiente, que levará anos até se recuperar. Ouvi também que já conseguiram tratar a água dos rios para retornar o abastecimento e que pes-quisadores já estão estudando como reaproveitar o material que deixei pra trás na construção civil.

Todo esse estrago e confusão serviu para que eu soubesse quem realmente sou e por qual motivo fui criada. E isso é ainda mais difícil de aceitar. Pensava que era inofensiva e não causaria mal algum. Por onde passei, todos me culparam e me respon-sabilizaram, mas não é bem assim. Fui útil enquanto cumpria minha missão dentro de casa, mas os que me criaram sabiam do risco que corriam quando me deixaram crescer mais do que eu podia. Peço desculpas por eles.

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 65CURINGA | EDIÇÃO 16

Page 66: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Co

mu

m CUIDADOHOMENS

TRABALHANDO

Mais um dia comum de trabalho para Seu João*. Acordar, preparar o café, vestir o uni-forme de uma das 15 empresas terceirizadas pela Samarco Mineração S.A., na região de Mariana, em Minas Gerais. Os minutos correm e já são quase 6h. Seu João prepara-se para sair pela última vez da casa onde mora com a família. Toma o ônibus junto com tantos outros colegas que atuam na mineração. São 20 quilômetros de estrada até chegar à Barragem de Fundão, para iniciar seus serviços como operador de máquina às 7h. Há três meses, essa é a rotina dele, que geralmente trabalha até às 19h e retorna ao lar às 20h.

Trabalhador terceirizado, cumpre aproximadamente três horas semanais a mais de servi-ço do que os contratados da Samarco. No dia 5 de novembro de 2015, trabalhou menos. Foi obrigado a parar.

Seu João, cujo nome verdadeiro fica resguardado em respeito à família, foi engolido pela lama da Barragem de Fundão junto com outros 12 companheiros de trabalho que também prestavam serviços de forma terceirizada para a Samarco. Além deles, cinco moradores do distrito de Bento Rodrigues estão entre as vítimas. Um trabalhador segue desaparecido. Cem dias depois do acidente, ninguém foi punido ou indiciado pelas mortes.

A morte de quatorze trabalhadores, treze de-les terceirizados, relembra que a terceiriza-ção precisa ser colocada, de novo, em pauta.

Co

mu

m

Page 67: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 67

CUIDADOHOMENS

TRABALHANDO

texto: stênio liMA

Fotos: FernAndo ciríAco

Arte: cAroline FernAndes

CURINGA | EDIÇÃO 16 67

Page 68: Revista Curinga Ed. 16: Especial

A pesquisadora Dora Maria

de Oliveira Ramos, em 2001,

definiu terceirização como “um

método de gestão em que

uma pessoa jurídica pública ou

privada transfere, a partir de

uma relação marcada por mú-

tua colaboração, a prestação

de serviços ou fornecimento

de bens a terceiros estranhos

aos seus quadros. Esse con-

ceito prescinde da noção de

atividade-meio e atividade-fim

para ser firmado, uma vez que

tanto podem ser delegadas

atividades acessórias quanto

parcelas da atividade principal

da terceirizante”. Ou seja, é a

relação onde o trabalho é re-

alizado para uma empresa, mas

contratado de maneira imediata

por outra.

A Câmara dos Deputados

aprovou, no dia 22 de abril de

2015, uma emenda do Projeto

de Lei 4.330/04 que possibilita

que as empresas terceirizem

todos os seus serviços, in-

cluindo a atividade-fim. O lado

vencedor, favorável à emenda

e composto por partidos como

PSDB, PMDB, DEM, PSD e Soli-

dariedade, obteve 230 votos.

Contrários à proposta, depu-

tados do PT, PCdoB, PSB, PV,

PDT, Pros e Psol conseguiram

203. O Senado ainda precisa

aprovar o Projeto de Lei.

O Sintcop-MG (Sindicato dos

Trabalhadores nas Indústrias da

Construção Pesada de Minas

Gerais) representa as seguin-

tes prestadoras de serviço da

Samarco:

- VIX LOGISTICA,

- 3 T ENGENHARIA,

- SKAVA CONSTRUÇÕES,

- GEOSOL SONDAGENS,

- LSI SERVIÇOS E

- INTEGRAL ENGENHARIA.

Quanto vale a terceirização?Entre trabalhadores mortos e desaparecidos em

meio à lama da Samarco, totalizam 14 homens. Treze deles terceirizados. Um número quase absoluto (93%) não se dá por acaso.

Principal empregadora na cidade de Mariana, a Sa-marco, em números gerais de 2014, contratava 3113 (47%) trabalhadores diretos, enquanto terceirizava ou-tros 3517 (53%). A porcentagem de contratados é bas-tante elevada quando se considera que os únicos servi-ços permitidos por lei são as “atividades-meio”, aquelas que não são correspondentes ao objetivo principal da empresa. Vigilância, limpeza, portaria, conservação e re-cepção estão entre os principais tipos de serviços presta-dos. Tramita o Projeto de Lei 4330/2004 que também torna legal a terceirização de atividades-fim, excluindo administração pública direta, autarquias e fundações.

A escolha pela terceirização na prestação de serviços se dá, na maioria das vezes, pela redução dos custos da produção final. Tal interferência econômica é determi-nante. Pesquisa realizada em 2015 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta que a principal mo-tivação para 91% das empresas terceirizarem parte de seus processos é a diminuição de custos e apenas 2%, a especialização técnica.

De acordo com o dossiê “Terceirização e Desenvol-vimento”, organizado pela Central Única dos Traba-lhadores (CUT) em 2014, as empresas “buscam, como estratégia central, otimizar seus lucros e reduzir preços, em especial, por meio de baixíssimos salários, altas jor-nadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria das condições de trabalho, que passam a ser de respon-sabilidade da subcontratada”.

O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada de Minas Gerais (Sinticop-MG) re-força a afirmação do dossiê ao apresentar os valores de salários dos trabalhadores de minas e barragens. O piso salarial do ajudante de servente é de R$ 843,00. Entre os profissionais da construção pesada o salário médio sobe para R$1.700,00. A maioria dos trabalhadores mortos no rompimento da barragem eram operadores de má-quinas. No caso deles, o piso é de R$ 1.500,00. Segun-do pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2014, os salários dos trabalhadores terceirizados é cerca de 24% menor do que o de trabalhadores diretos que realizam funções semelhantes. Para ilustrar, se fossem contratados diretos por empresas, os profissionais da construção pesada receberiam R$ 2 108,00 mensais de salário nominal.

Em um calculo rápido, a diferença de R$ 408,00 nos salários entre trabalhadores contratados e terceirizados representa cerca de 0,001% do lucro líquido individual que cada um deles “rende” para a Samarco. A empresa teve lucro livre total de R$ 2.805,5 milhões em 2014. É como se cada um dos 6630 trabalhadores, entre empre-gados e contratados, tivesse rendido aproximadamente 425 mil reais no ano para a empresa.

A Samarco não retornou às solicitações de entre-vista, portanto não justificou o alto número de tercei-rizados que emprega e a relação dos contratados com a política de ganhos da empresa.

Page 69: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 69CURINGA | EDIÇÃO 16 69

Page 70: Revista Curinga Ed. 16: Especial

A terceirização lícita ocorre quando o prestador de serviços será empregado da empresa terceirizante, mantendo com o tomador apenas uma relação de tra-balho. Se ilícita, o vínculo empregatício será feito di-retamente com o tomador de serviços, que será re-sponsável direto por todos os direitos trabalhistas e previdenciários.

Riscos e vítimas

Alguns pontos chamam a atenção quando a tercei-rização é vista para além dos valores. Segundo o dossiê da CUT, “a grande maioria dos direitos dos terceirizados é desrespeitada, criando a figura de um ‘trabalhador de segunda classe’ com destaque para as questões relacio-nadas à vida dos trabalhadores, aos golpes das empre-sas - que fecham do dia para a noite e não pagam as ver-bas rescisórias aos seus trabalhadores empregados - e às altas e extenuantes jornadas de trabalho”.

O Sinticop-MG, representante de cerca de 750 ter-ceirizados atuantes na área da Samarco, em Mariana, recebe diferentes tipos de denúncias relacionadas às condições de trabalho. A origem das reclamações está no chão de fábrica e ferem os direitos trabalhistas. A jornada de trabalho é extensa, o pagamento das horas extras não é cumprido, empreiteiras realizam tercei-rização ilícita, pagamentos de periculosidade e de insalubridade por exposição à poeira e ao sol não são realizados. Para além das denúncias à representação sindical, Germano Silveira, vice-presidente da Anama-tra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), vê na terceirização uma forma de precarizar o trabalho. Em entrevista ao site UOL Notícias, ele afir-ma que “os terceirizados sofrem acidentes de trabalho com mais frequência, pois as empresas que prestam o serviço terceirizado economizam nos itens de segurança para cortar custos”.

José Antônio da Cruz, presidente do Sinticop-MG, não aponta a terceirização em si como uma forma de precarização do trabalho. O que o sindicato levanta é o uso inadequado desse tipo de prestação de serviço. "Caso a terceirização do trabalho fosse realizada de forma a fazer cumprir os direitos da categoria não seria precari-zação. O que acontece é que as empresas contratantes querem menor preço e o custo disso sai caro”. Cruz cita, por exemplo, a empresa Vix Logística que trabalhava no alteamento da barragem de Fundão sem ART (Anota-ção de Responsabilidade Técnica) registrado o no CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia).

Segundo o MTE, “os inúmeros dados apresentados deixam claro que o lado mais perverso da terceirização são os acidentes e as mortes no trabalho, que aconte-cem em diversos setores da atividade econômica”. O Ministério também explicita que, devido à precarização

“A barragem é um ambiente perigoso de trabalho, sim. A mineração, na categoria de risco, ela é nota 4. É um nível muito alto.” Sérgio Al-varenga, Diretor Suplente do Sindicato Metabase Mariana.

ví.ti.masf (lat victima) 1 Pessoa ou animal que se imolava a uma divindade. 2 Pessoa morta por outra. 3 Pessoa sacrificada às paixões ou aos interesses de outrem. 4 Pessoa passiva de um crime. 5 Pessoa que sofre o resultado funesto das próprias paixões ou a quem são fatais os seus bons sen-timentos. 6 Qualquer coisa que sofre dano ou prejuízo.

Page 71: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 71

roBerto coelho do cArMo

Assistente sociAl e ProFessor dA uFoP

Opinião Falar de terceirização é sempre muito comple-xo, pois envolve questionar um universo de preca-rização do trabalho que é multideterminado e que teria como fim a garantia de uma crescente taxa de lucro para as empresas. Esta prática é cada vez mais comum e tem ultrapassado o universo onde “tradicionalmente” se aplica – conhecidas como atividades meio, atividades menos importantes para a empresa, – estendendo-se às atividades mais importantes dos parques produtivos. Para o trabalhador, o que está se disseminando com o atual modelo de terceirização são práticas que lem-bram o tráfico de escravos pela precariedade extre-ma do trabalho. Principalmente nos setores onde está enraizada, como na mineração.

Os desequilíbrios capitalistas já são velhos co-nhecidos – o caso mais emblemático é a crise de 1929 – entretanto, em um mundo globalizado sob regime de acumulação flexível e tendo a terceiri-

zação como instrumento tácito, as grandes corporações, inclusive as mineradoras, passam à empresas menores os reflexos destes desequilíbrios como as intempéries do mercado ou flutuações no campo da produtividade do trabalho. Contrata-se para uma determinada atividade, e o contrato finda com a atividade. Estas empresas me-nores por sua vez, recebem esta carga de instabilidade dobrada, e a repassam asseverada para outras empre-sas terceiras ainda menores ou até mesmo direto aos trabalhadores(as) que sofrem.

Outros determinantes deste tipo de estratégia é o “turn over”, a redução de salários, a subcontratação, o enxugamento dos parques produtivos, a intensificação do trabalho. Práticas que, mesmo combatidas, são realiza-das, pois, o trabalhador(a) tem uma família em casa e escolhe as agruras do trabalho precário ao desemprego.

A atividade mineradora é a “menina dos olhos” da região dos Inconfidentes, em Minas Gerais, e todo esse fascínio pode esconder um universo de trabalho altamen-te precarizado. É o mesmo que tornar banal e corriqueiro, a injustiça social, a calamidade, a barbárie.

É preciso desvelar as várias determinantes do proces-so de precarização do trabalho e, de certo, a terceirização é uma destas. Também a intensificação do trabalho, a so-brecarga de trabalho e o desgaste físico e mental, preci-sam estar nas pautas de discussões acadêmica e política.

No cenário atual, é fundamental pensar propostas alternativas para o desenvolvimento regional. Tais alter-nativas devem ser construídas ultrapassando-se a lógica do empreendedorismo, envolvendo os sujeitos sociais e aqueles organizados nos sindicatos, associações, partidos. É fato que a atividade mineradora é de grande impacto no orçamento público e em toda a dinâmica econômica local, mas reduzir uma região tão humanamente rica à mineração é reduzir estes sujeitos ao rejeito desta ativi-dade. À lama.

A la

ma

qu

e e

sco

rre

da

te

rce

iriz

açã

o

causada pela terceirização, “o trabalhador paga um pre-ço alto, muitas vezes com a própria vida, por essa lógica brutal”.

De acordo com pesquisa realizada pela CUT em par-ceria com o Dieese em 2014, de dez acidentes de trabalho no Brasil, oito acontecem, em média, com funcionários terceirizados. Segundo o Ministério do Trabalho e Em-prego, dois fatores podem explicar esse grande número de acidentes entre terceirizados: “a gestão menos rigoro-sa dos riscos de acidentes de trabalho nas terceirizadas e as tarefas que envolvem mais riscos de serem exercidas, em geral, pelos trabalhadores terceirizados”.

A fiscalização é de responsabilidade do órgãos compe-tentes. No entanto, Carlos Silva, auditor fiscal do Minis-tério do Trabalho e Emprego, reconhece que a quantidade de fiscais em Minas Gerais é insuficiente pela quantidade de postos de trabalho terceirizado, inclusive em outras dezenas de barragens espalhadas pelo estado.

A Samarco, por sua vez, apresenta, em seu relatório de 2014, algumas ações implantadas com a finalidade de reduzir os riscos de acidentes no trabalho. Entre as intervenções está o Programa “Disseminando o Valor da Segurança para as Contratadas”, que visa especialmente as empresas terceirizadas, “ajudando-as na elaboração, na implantação e em melhorias de sistemas de gestão e controle de saúde e segurança”. O Programa é oferecido a empresas que têm interesse em se qualificar para prestar serviços à empresa contratante.

Sobre o rompimento da barragem de Fundão, Daniel Gaio, Secretário Nacional de Meio Ambiente da CUT con-sidera que a fiscalização precisa aumentar. "As empresas devem ser fiscalizadas para que situações como estas não voltem a ocorrer. A empresa, ao decidir colocar em ris-co as comunidades e os bens comuns, em nome de seus interesses e lucros, deve assumir todos os custos e res-ponder civil e criminalmente pelo que, por omissão, não evitou".

O Ministério do Trabalho e Emprego segue apurando as causas das mortes. Houve irregularidades? Quem res-ponde pelas vítimas? Não se pode, ainda, apontar quem são os responsáveis. O que sabe-se, sim, é que a aprova-ção de um projeto de lei que regulamenta ainda mais a precarização do trabalho precisa ser questionado.

Page 72: Revista Curinga Ed. 16: Especial

“É sempre bom olhar para todos os lados”

Em vida, ninguém nunca mais os viu. Os restos mor-tais foram identificados pelas famílias ou por exames. Os direitos de 14 trabalhadores foram soterrados pela lama da barragem de Fundão da Samarco Mineração S.A.

50 dias depois, Samarco e as famílias das vítimas da tragédia fecharam um acordo parcial. Como antecipação das indenizações, cada família receberia R$ 100 mil. O acordo ainda não foi cumprido para a família de Lucas*. Mesmo não tendo recebido o montante prometido pela empresa, a família vê o valor como um pagamento sim-bólico. “Esse dinheiro representa uma forma de justiça já que sabemos que os responsáveis não serão presos.”

Além do adiantamento, as famílias dos trabalhadores têm direito a indenizações por danos morais e materiais. “Aqueles que dependiam das rendas das vítimas também podem entrar com ação de alimentos, pelo qual a empre-sa será obrigada a pagar uma pensão por tempo indeter-minado. O juiz levará em conta a duração provável da vida das vítimas”, explica o advogado Brás Melo.

Há alguns casos específicos, nos quais as represen-tações sindicais traçam acordo coletivo com as empresas no momento das contratações. Uma cláusula específica resguarda o seguro de vida do contratado.

Para os terceirizados, representados pelo Sinticop-MG, por exemplo, o valor deste seguro é de R$ 35 mil. “O valor de R$ 100 mil pagos às vitimas, trabalhadores ou não, quem paga é a Samarco, ela é a empresa responsável pelo ocorrido. Portanto, ela quem indeniza”, explica José Antônio da Cruz, presidente do sindicato.

Junto dos valores, as famílias têm direito a ajuda psicológica e social. Os filhos de Lucas e seu João consi-deram a assistência insuficiente. “Não recebemos ajuda psicológica… Vieram psicólogos apenas recolher infor-mações do grupo familiar mas não considero isso como assistência psicológica.”, conta o filho de Lucas.

“No dia do acidente, procuramos por informação e ninguém tinha. No dia seguinte, a empreiteira falou que meu pai estava desaparecido e deu uma assistência psi-cológica mais ou menos. Já a Samarco, mandou psicólogo lá em casa umas duas vezes. Nem pra ligar, pra pergun-tar se estamos bem… nada! O auxílio psicológico não foi suficiente. Nada suficiente.”, relata a filha de Seu João, que segue indignada com a demora na apuração do caso.

Diretor executivo do Sindicato Metabase Mariana, Sérgio Alvarenga de Moura, pensa diferente. Considera que, como as famílias não reclamaram, o atendimento tem funcionado. “A gente tem acompanhado esses aten-dimentos dentro do possível. Não chegou para nós ne-nhuma informação de que tem sido um tratamento defi-citário. Então a gente entende que está sendo bem feito.”

Passados cem dias, cabe a pergunta: Quem mais sofre com a tragédia? O Sindicato Metabase responde: “Todos nós”. Lembrando da base da empresa, quem gera os lu-cros, são os trabalhadores. “Os empregados e contratados são tão vítimas dessa tragédia quanto quem perdeu seus parentes, quem teve sua casa destruída, um pescador que não pode mais pescar. Todo mundo está sofrendo”.

Page 73: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 73

Um céu de contrastesMariana é considerada patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico (IPHAN) desde 1945. Há quem pense que por esse moti-vo o turismo é protagonista na economia da cidade. Na verdade, a mineração emprega cerca de três mil moradores, aproximadamente 5% da população da cidade, é a principal atividade industrial, e tem grande participação nos índices de desenvolvimento local.

A atividade mineradora extrativista compõe 7,5% do Produto Interno Bruto (PIB) do município de acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2013. O PIB é um índice que mostra todos os valores do que foi produzido na cidade. Ele é divido em três setores: agropecuária, indústria e serviços. Embora seja uma porcentagem pequena de extração mineral, a atividade industrial atinge todos os setores da cidade seja diretamente ou indiretamente.

Em Mariana, o índice chega a mais de R$ 6 bilhões por ano, um número pequeno comparado a grandes municípios como Belo Horizonte, com PIB de mais de R$ 81 bilhões. No entanto, enquanto a renda por habitante na capital mineira fica em torno de R$ 32 mil anuais, em Mariana o valor por pessoa gira em torno de R$ 114 mil. Esses números mostram um PIB per ca-pita bastante desproporcional entre os dois municípios, muito em função da atividade mineradora marianense, com população quase vinte vezes menor do que BH. Mas a aparente riqueza de Mariana não é o que parece.

texto: endricA FernAndes

Fotos: FernAndo ciríAco

Arte: silMArA FilGueirAs

CURINGA | EDIÇÃO 16 73

Page 74: Revista Curinga Ed. 16: Especial

PIB x IDHM

De acordo com o IBGE, o Índice de Desenvolvi-mento Humano Municipal (IDHM) de Mariana é de 0,742, número considerado alto. Segundo o cientis-ta político Antônio Marcelo, cidades que possuem índice maior que 0,7 são cidades que têm elevado padrão de vida como é comum observar em países como Dinamarca e Suécia. Porém, quando se abre a janela, vê- se uma cidade cuja realidade está longe daquelas de Copenhagen e Estocolmo, ambas com IDHM de 0,9.

Na primeira capital de Minas Gerais, observa-se muita pobreza e desigualdade social. Mariana é ca-rente em muitos aspectos, o que contradiz os altos índices e valores associados a ela. Para o jornalista econômico Reinaldo Moraes, houve má adminis-tração do dinheiro ganho na cidade em função da Lei nº 8.876/94, referente a compensação financeira pela utilização dos recursos naturais, e que entrou em vigor há duas décadas. “ Muitas cidades soube-ram lidar com os royalties, infelizmente não é o caso de Mariana. Hoje essa paralisação da Samarco deixa Mariana com as ‘calças na mão’. Nós estamos re-cebendo esses royalties há 20 anos, por que nós não pensamos, por que os administradores não pensa-ram nesse espírito da lei dos royalties”, questiona.

Além disso, como complementa o cientista polí-tico Antônio Marcelo, nem tudo que é produzido em Mariana fica no município. A maior parte do lucro obtido pela mineração vai para as cidade-s ede das empresas mineradoras. Rio de Janeiro, no caso da Vale e Queensland, na Austrália, no caso da BHP. O alto PIB de Mariana poderia ser ainda maior, mas o dinheiro total arrecadado não permanece na cidade.

Segundo o professor de economia da Universida-de Federal de Ouro Preto (UFOP), André Mourthé, isso acontece, porque destinam-se a em Mariana somente 2% dos lucros das empresas, ou seja, so-mente os royalties pagos a prefeitura e o salários dos profissionais que moram na cidade. Além disso, os maiores salários pagos pela empresa são para funcio-nários que não residem na cidade, permanecem nela apenas temporariamente.

Os rendimentos do minério

A mineração gera renda para Mariana de duas formas: a primeira é empregando a população e a segunda é por meio dos impostos pagos à Prefeitura Municipal e ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

O imposto chamado CFEM (Compensação Fi-nanceira pela Exploração dos recursos Minerais) é o royaltie pago pela empresa Samarco devido à uti-lização de recursos naturais para fins privados. Do valor total do recurso, derivado dos lucros da mine-ração, 65% é repassado para o município e o restante é dividido entre Estado e União. Em 2015, o valor pago para a União, Estado e município ficou na casa

A cidade possui poder aquisitivo para oferecer serviços básicos de qualidade. O investimento, porém, é centralizado.

Page 75: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 75

A disparidade de infra-estru-tura pode ser observada nos bairros periféricos, sem acesso a serviços como tratamento de esgoto adequado

dos R$ 61 milhões. Desse dinheiro, aproximadamente R$ 37 milhões foram para Mariana. Pela lei número 7990 de 2001, os recursos repassado pela CFEM para a Prefeitura devem ser usados para investimentos na cidade e também na criação de outras atividades eco-nômicas que gerem renda para a cidade.

Reinaldo Moraes explica que os royalties foram fei-tos para se criar um fundo de compensação ambien-tal. Esse valor deveria ser investido, não apenas na administração na cidade, mas de forma que ela tivesse outros tipos de movimentações econômicas. Assim, a economia não ficaria inteiramente dependente de um só meio para se sustentar, principalmente pensando no fato de que os recursos naturais, num dado mo-mento, irão se esgotar.

De acordo com a Assessoria de Imprensa da Pre-feitura de Mariana, a parcela do faturamento das mineradoras destinadas aos governos municipais é insuficiente para corrigir as distorções sociais promo-vidas pela atividade mineradora. A pressão urbana e as demandas por educação, saúde e assistência social requerem investimentos constantes que se somam aos passivos sociais já existentes em 320 anos de histó-ria. Ainda de acordo com a Prefeitura, há necessidade de investimentos permanentes e reparos ambientais em função de danos causados pela ocupação humana sem planejadamento em encostas e bairros periféricos do município.

Há também programas de diversificação econô-mica, sobretudo no desenvolvimento do segmento agrário, que requerem investimentos em eletrificação rural, acessos e incentivos ao homem do campo, ma-nutenção de serviços básicos na extensa zona rural, como educação e saúde mais próximas dos morado-res. Mariana demanda investimentos na preservação do patrimônio histórico, não apenas na sede do mu-nicípio, mas nas suas localidades que também fazem parte do conjunto tombado.

De acordo com o especialista em gestão pública, e professor da UFOP, Rafael Alves, “a tragédia provoca-da pela Samarco vai além do deslocamento de lama sobre Bento Rodrigues, atinge, também, os funda-mentos político e econômicos de uma cidade que se li-mita a projetar seu futuro dentro da lógica da empresa e não para os interesses dos cidadãos”. Por isso, afir-ma, “não podemos tão simplesmente constatar uma incapacidade político-administrativa e aguardar que o valor do minério se eleve ou que a exploração se in-tensifique até chegar a níveis ótimos de arrecadação”.

De acordo com a prefeitura de Mariana, foi lança-do em 2015 um Plano de Crescimento e Desenvolvi-mento que consiste em um mapeamento de lideran-ça e de recursos culturais. Além disso, foi criado um espaço chamado Focadema que capacita e desenvolve micro e pequenas empresas da cidade.

No mês de dezembro de 2015, aconteceu em Bra-sília, na Câmara dos Deputados, uma reunião com a comissão geral e o prefeito de Mariana, Duarte Júnior. Na ocasião, o prefeito defendeu que mudanças na le-gislação brasileira de mineração devem ser feitas. É preciso que o novo código de mineração seja aprovado,

Page 76: Revista Curinga Ed. 16: Especial

pois o município necessita aumentar sua arrecadação, diz o governante. “Se não houver a aprovação, Mariana perderá cerca de R$ 5 milhões da sua receita, e com isso serviços essenciais deixarão de ser feitos pela Pre-feitura por falta de verba”, afirma.

Para o professor Rafael Alves, a questão ainda é outra, “talvez, a solu-ção não seja mais mineração e, sim, menor dependência desses circuitos do capital que extrapolam os limites do município e da região.” Segundo o professor, “os impactos negativos advindos da mineração não podem ser compensados pelos valores recebidos a título de CFEM”. Ademais, afirma, “os valores advindos como CFEM são variáveis conforme os ciclos de extração definidos pelos agentes privados e pelo mercado internacio-nal. Assim, as tentativas de planejamento para a conversão dos valores da CFEM em melhorias das infraestruturas e das condições de vida dos habitantes locais parecem ser sempre insuficientes”.

Distribuição de riquezas

Francisco Horácio, economista e professor da UFOP, diz que para au-mentar ainda mais o IDHM é preciso ter investimentos em educação, saneamento básico, políticas públicas que privilegiem as assistências às famílias pobres. É preciso também aumentar a oferta dos chamados ser-viços públicos, aqueles que são gratuitos, universais e fomentados pelo município, no caso. Como consequência, o Estado conseguiria aumentar o IDHM e diminuir a desigualdade social.

O atual secretário de desenvolvimento econômico de Mariana, Heliel-cio Jesus Vieira, relata que “a relação do PIB com o IDHM é ingrata, pois sabemos que a mineração é extremamente concentradora de renda. A agricultura, por exemplo, consegue distribuir melhor a riqueza. As mine-radoras e prestadoras de serviços da mineração, que tem faturamento alto na região e que engrossam o PIB local, nem sempre empregam pessoas da nossa comunidade ou aplicam aqui as suas rendas, o que provoca esse desequilíbrio no IDHM”.

O indicador de desigualdade econômica, calculado pelo IBGE é feito de acordo com uma análise da desigualdade social onde quanto mais o valor é próximo de 1 a desigualdade é maior, e quanto mais próximo de 0 mais igualdade na distribuição de renda. Em Mariana, esse índice é de 0,51, enquanto em outras cidades mineradoras como Nova Lima (0,813) e Brumadinho (0,747) esse índice é maior, o que mostra que a desigualdade social é elevada.

Outras Marianas

Segundo o secretário Helielcio, “o desequilíbrio PIB/IDH não é uma particularidade somente de Mariana. Praticamente todas as cidades mi-neradoras vivem esse cenário. Isso é visível no quadro do IDH de Minas Gerais, onde a única cidade mineradora com destaque é Nova Lima, que tem o privilégio de ser adentrada pela capital.”

Paracatu, na região Noroeste de Minas Gerais, vive com uma situação parecida. Com IDHM de 0,744 e PIB de cerca de R$ 2 milhões. Com mais de 80 mil habitantes, tem o mesmo índice de desigualdade de Maria-na. Os dados são equivalentes, porém Mariana recebe anualmente muito mais com o imposto da mineração, são cerca de R$ 37 milhões contra aproximadamente R$ 8 milhões da Paracatu.

Três Marias, cidade mineira que abriga uma usina hidrelétrica, tam-bém tem índices semelhantes de desigualdade e IDHM. O índice de de-sigualdade de Três Marias é de 0,52, já IDHM é de 0,752, apesar do PIB estar na casa dos R$ 1,1 milhões.

Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte, é a cidade que mais recebe royalties de mineração. Mesmo com IDHM de 0,813, possui

A relação do PIB com o

IDH é ingrata, pois sabemos que a

mineração é extremamente

concentradora de renda.

Helielcio Jesus Vieira

Page 77: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 77

uma taxa de desigualdade na distribuição do dinheiro muito alta. O índice na cidade, de acordo com o último censo feito pelo IBGE, é de 0,69, o que mostra que em Nova Lima existe ainda mais desigualdade social. O IDHM de Nova Lima é alto, pois há uma parte da população que reside na cidade, mas trabalha em Belo Horizonte, consequentemente, a renda gerada por eles é somada à de Nova Lima.

Já Rio das Ostras, no Rio de Janeiro, que recebe royalties do petróleo; com mais de 100 mil habitantes, tem PIB de mais de R$ 14 milhões e taxa de desigualdade de 0,41. Ou seja, a distri-buição de riqueza é maior.

Apesar dos altos números de PIB e IDHM, Mariana ainda se mantém semelhante a cidades que recebem poucos impostos em relação a ela. Sendo assim, poderia haver mais investimen-tos na cidade, já que sua arrecadação é bem maior.

Como viver sem a mineração?

A mineração é uma atividade de extração que ao longo do tempo tende a se acabar. A partir disso, surgem grandes proble-mas para municípios que dependem dessa economia para a sua sobrevivência.

Segundo o economista André Mourthé, sem a mineração Mariana perderia uma arrecadação brutal. “Vai ter que enxugar decisivamente seus gastos e perder alguns milhares de empre-gos”, afirma. A cidade sofreria com a migração. Para ele, a região “investe pouco e mal na produção de alternativas. M as isso não significa que não haja capacitações locais para se produzi- las.”

De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Econô-mico da Prefeitura, a atual administração está trabalhando na

implantação da Área de Diversificação Econômica de Mariana – ADE. Essa instituição foi criada com o objetivo de apoiar os produtores rurais, implementar as atividades do laticínio muni-cipal, desenvolver a agricultura familiar, elaborar o mapeamen-to de lideranças e recursos culturais da cidade.

Porém, todos os investimentos e projetos feitos só darão re-torno a longo prazo. Para Mourthé, os investimentos em turis-mo, gastronomia e cultura não são suficientes para manter a cidade em caso do fim da atividade mineradora. “É necessário investir em estratégias tecnológicas daquilo que já existe. No caso, Mariana é uma cidade mineradora e pode investir em pro-duzir tecnologias para a mineração. No futuro quando a ativi-dade se esgotar ela poderá vender essas tecnologias para outras cidades que ainda vivem de mineração”, enfatiza.

Segundo o economista Francisco Horácio, para diminuir a dependência econômica da atividade de mineração, é necessá-rio diversificar a estrutura produtiva da cidade. Para ele, é pre-ciso incentivar as outras atividades que já existem, promover o turismo, o trabalho artesanal, as cooperativas das artesãs, dos artesãos de várias áreas, como a pedra sabão.

A saída é impulsionar empreendimentos que gerem empre-go e renda, e para isso é preciso ter políticas de fomento. Outra alternativa seria criar empreendimentos, empresas e atividades econômicas que estão vinculadas à produção científica e acadê-mica da UFOP, presente na cidade. Essa alternativa seria uma fonte de novas ideias, tecnologias, novos processos e negócios.

Em Mariana enquanto o minério é lapidado, o desenvolvi-mento ainda é bruto. Um município com tanta riqueza no solo, no povo, na cultura, nas tradições. Mas, ainda falta muito para ser a cidade do “Bem viver”.

Page 78: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Op

iniã

oO

pin

ião

Page 79: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 79

O desvio daMineração

Os caminhos de Mariana, MG, são marcados pela exploração. Suas ruas têm rastros de vidas que dependem da extração mineral para sus-tentar suas famílias. Há anos essa atividade se mantém como principal fonte de dinheiro para a cidade. Seria o minério a única direção?Reinaldo Morais é jornalista e economista, aponta algumas repostas. Morador de Maria-na, já foi Secretário de Cultura e Turismo e Pre-sidente Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico. Com experiência na área de política, tem conhecimento sobre os royalties e sabe da necessidade de uma lei que proteja as cidades dependentes da extração de recursos natu-rais. Nessa entrevista, ele explica a situação de Mariana a partir dos royalties de mineração recebidos há anos e a importância dessa lei.

Rua do bairro Nossa Senhora Aparecida ilustra a situação desigual da urbanização em Mariana.

texto: GABrielA sAntArosA

Fotos: FernAndo ciríAco

Arte: FernAndo ciríAco

Page 80: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Curinga: De onde veio a necessidade de criar uma lei para os royalties de mineração?

Não só pelo que aconteceu em Mariana, mas pelo que vinha acontecendo na cidade. Como vivia absolutamente da dependência da exploração mineral, temia com muita propriedade de que quando a exploração começasse a cair, uma vez que o minério é uma produção exaurível, a cidade ficaria absolutamente desamparada e a tendência era desaparecer. Somando-se a outras expectativas e outras preocupações no Brasil inteiro, pensou-se em criar um fundo de compensação ambiental e de compensação da atividade econômica quando essas atividades de mineração estivessem encerradas, ou no caso de áreas amplamente inundadas pela construção de hidrelétricas. Essas cidades todas que estavam envolvidas nisso viviam preocupadas. Na época, um senador, eu não me lembro mais se ele era deputado federal ou senador, falou: “Nós temos que criar uma maneira de compensar essas cidades, então vamos apresentar um projeto de lei de royalties”. Para que isso servisse não como uma soma à arrecadação dessas municípios, mas como um fundo. Essa lei foi criada no sentido de se criar, através do pagamento de royalties, um fundo para quando as atividades encerrassem ou pra remunerar os produtores rurais e os municípios que fossem atingidos, para não ficarem com uma mão na frente e outra atrás. Esse foi o espírito da lei.

C: E para onde esse dinheiro deve ir?Bom, é lógico que o dinheiro fica à disposição do

administrador público que dirigir isso, mas o espírito da lei é pra que se formasse um fundo para o futuro. Ou seja, se você lida com uma atividade econômica, como é o caso de Mariana, vitalmente dependente da mineração e um dia essa mineração acabasse, o espírito era criar uma poupança para que aos poucos ela fosse reciclando a atividade econômica e substituísse a atividade que um dia terminaria por outras atividades; dependendo do perfil, da vocação de cada município. Que se criasse um distrito industrial, ou um incentivo ao turismo. Depende da vocação.

C: Então o dinheiro não era para ser gasto na administração da cidade?

Era pra ficar, mas a intenção, como eu disse. O administrador teria a liberdade disso, mas teria que ter a responsabilidade, além da liberdade, de pensar que um dia isso ia acabar. Então seria muito mais, por exemplo, no caso de uma cidade onde a vocação poderia ser industrial (por alguma razão, de localização, logística, infraestrutura). Ou outras onde algumas atividades econômicas já existissem e que se incentivasse outras atividades. Um dia, se alguma acabasse, você já teria construído ao longo de 10, 20, 30 anos uma outra que sustentasse a sobrevivência da cidade.

C: Procurando sobre a lei, vi que também deveria investir em saúde e educação. Isso é correto?

É correto, mas não há cravado, carimbado, que o dinheiro recolhido para os royalties deva ser usado pra isso. A lei indicou. Em alguns lugares foi cumprido. Algumas cidades do triângulo mineiro, por exemplo. Antes, eram paupérrimas. Hoje não.

C: Mariana tem um PIB per capta alto...Você vê o seguinte, a arrecadação de Mariana, em

função da mineração, é maior que em grandes cidades do Estado de São Paulo, como Jundiaí, por exemplo, que não recebe os royalties. É uma cidade que você chega e fica impressionado com a organização, com a limpeza. Claro que falo do lugar que eu conheço, cujo PIB per capita é menor que o de Mariana, embora tenha uma população talvez cinco vezes, dez vezes maior.

C: Nova Lima tem menos também e é a 33º melhor cidade para se viver no país.

Nova Lima também sofreu com outra influencia positiva que é a proximidade de Belo Horizonte. A criação daqueles condomínios importantes e o deslocamento do desenvolvimento... Hoje é uma cidade com uma qualidade de vida muito grande. Muitas cidades souberam lidar com os royalties, infelizmente não é o caso de Mariana. Nós estamos recebendo esses royalties há 20 anos, por que os administradores não pensaram nesse espírito da lei? Mariana tem uma localização geopolítica muito especial, é uma cidade cercada de infrestrutura, muito pobre de rodovia de ferrovia, mas é muito rica em outras coisas, como o turismo, por exemplo, que poderia estar recebendo muito desses royalties. Você vê que desses 20 anos pra cá ela teve um “bum”, um crescimento muito grande, mas não foi necessariamente em função da movimentação econômica que a mineradora gerou.

C: O investimento na cidade não foi visível. Por que a gente não sente ele?

Olha, primeiro porque acho que eles foram pobres.C: Apesar de ser muito dinheiro…Apesar de ser muito dinheiro. E onde se investiu de

maneira correta administrou-se de maneira incorreta. Mariana não estaria nessa “saia justa” que está hoje, muitas vezes tendo que ficar de joelhos para sua única atividade mineradora se ela tivesse feito um fundo, não para guardar e ficar acumulando dinheiro, mas voltado para a diversificação econômica.

C: Como você vê essa “saia justa” que Mariana está entre punir a Samarco e depender dela?

A cidade de Mariana precisa ter uma relação não apenas cordial, mas equidistante com a Samarco. Primeiro porque não podemos hoje abrir mão da atividade da Samarco, mas por outro lado ela não pode ficar de joelhos diante da Samarco, não pode virar capacho. Mesmo porque a Samarco não está aqui dando esmola pra ninguém, não está aqui fazendo caridade. Está desenvolvendo uma atividade econômica que interessa muito a ela, porque retira muito dinheiro. Haja vista essa publicização do prefeito que foi dada ao faturamento. A questão da diversificação econômica é fundamental pra Mariana, para ela não virar uma vila podre como foi quando se exauriu a atividade aurífera aqui, porque quando o ouro acabou, Mariana virou uma vila esquecida.

C: A quem cabe esse processo?Do ponto de vista das leis e do ponto de vista do

cumprimento, das responsabilidades da Samarco, que escapa uma parte, o município tem que agir, mas em maior parte são os órgãos ambientais, o Ministério Público, o

Page 81: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 81

governo federal, que têm que cobrar. Eu acho que isso aí tem que ser feito mesmo. A empresa é responsável pela atividade que desenvolve, e se houve essa catástrofe na atividade, ela tem que ser responsabilizada, não tenho a menor dúvida. Agora, isso não tem nada a ver com continuar ou não continuar. Não se pode misturar a permanência dela aqui com a punição que ela merece e que está sendo imposta pelo Ministério Público, pela Justiça. Mariana depende da Samarco, precisa ter uma boa relação com ela. A Samarco depende de Mariana.

C: É uma relação mútua.É, é uma relação adulta, sadia, simétrica, equivalente.

Isso aí não tenho dúvida, temos que ter um bom relacionamento com ela. Agora, quanto às punições que ela tem que receber, um assunto não tem nada a ver com o outro. Ela tem que receber as punições, tem que construir, indenizar e isso não se discute. Agora, não é a cidade que vai por a faca no pescoço dela, é a Justiça. Para isso tem a Justiça.

C: Você acha que a cidade também tem que pressionar para que tenha essa punição?

Acho que não precisa nem pressionar, basta olhar. É lógico que a pressão popular, a pressão do administrador…

C: As pessoas têm medo que a Samarco vá embora, no caso.

Pois é, eu acho que é um medo um pouco improcedente. Porque de repente o jogo vira e a cidade fica de joelhos, fica de quatro diante da Samarco, como se ela estivesse dando uma esmola para Mariana, e não é isso. Ela tem uma atividade econômica. Se essa atividade deixar de ser lucrativa pra ela por alguma razão, cai-se naquele raciocínio anterior, ou seja, esse negócio um dia pode acabar, por força da exaustão ou por força de um incidente, ou acidente. Mas, por outro lado, ela não pode se omitir. É claro que tem que ter a preocupação com o emprego. Tem que ter a preocupação fundamental na questão da recomposição não só física de quem perdeu as coisas, as casas, mas uma recomposição sociopolítica, ambiental e geopolítica importantes. Porque não adianta você pegar essas pessoas e colocar numa vila de casinhas.

C: Como fazer?Esse negócio tem que ser refeito mais ou menos

repetindo a mesma lógica de relações que essa população tinha. Você vê: a igreja que desapareceu em Bento Rodrigues era do século XVIII. Havia um vínculo quase imaginário com a vida ali. O sujeito tinha os parentes, uma galinha, um cachorro, uma horta. Ele acordava de manhã e ia no bar comprar um pão, e você não pode ceifar, não pode arrancar da interioridade das pessoas. Isso porque elas cresceram assim. Esse contexto externo é constituinte do contexto interno, então você não pode simplesmente pegar essas pessoas e depositá-las num lugar por melhor que seja. Não pode tirar as pessoas daqui “vou dar para vocês uma casa nova no Alphaville”, não se trata disso, ninguém quer isso, ninguém quer se ascender socialmente.

C: Eles querem viver em comunidade.Claro. Você pega o caso do Paracatu, um senhor que é

muito amigo nosso, que faz 20 anos que produz uma horta orgânica. Todo o contexto ambiental em volta, ele levou vinte anos pra constituir, os rios, a mata, os peixes. Tudo isso fazia parte da lógica dele de se ter uma agricultura orgânica. E acabou tudo. Só não acabou a horta porque estava num lugar mais elevado, mas a horta era uma parte pequena dessa lógica de agricultura orgânica dele. O entorno, ele levou 20 anos plantando árvores, semeando, limpando o rio, etc. E agora? Não tem mais como fazer isso. Tem uma expressão que em português se traduz como emaranhado. Esse emaranhamento é essa inter-relação que existe entre homem e o meio, e você não pode separar isso. São coisas inseparáveis e você não pode romper. Há de se ter essa preocupação para que você não só reconstrua a parte física, mas que você pense também nessa inter relação com o que a pessoa construiu. Esse respeito é fundamental.

CURINGA | EDIÇÃO 16 81

Page 82: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Solid

ariz

ar

Em 40 dias, 3.120 fichas de retirada foram feitas pela equipe de apoio da distribuição de doações. Isso significa que por 3.120 vezes alguém subiu as escadas que dão acesso ao segundo andar do Centro de Convenções Alphonsus de Guimarães Filho, em Marina - local de distribuição dos donativos - e por ter o nome na lista de pessoas atingidas, solicitou os materiais dos quais precisava.

Marinalva Nalva, 43 anos, hoje mora em Mariana, no bairro e no imóvel que escolheu. Antes disso, morou em uma pousada. An-tes ainda, em Bento Rodrigues. Era na rua Alímpio Viana, número 50, próximo a Escola Municipal Bento Rodrigues, que ficava a casa em que vivia com a família. O dia 5 de novembro de 2015, também invadiu a história dela. Quando cedeu a barragem de Fundão, da Samarco Mineração S. A., ela perdeu a casa e tudo o que estava den-tro. “A gente saiu com a roupa do corpo, sem documento, sem mais nada.”, recorda. Assim como a família de Marinalva, outras 384 fa-mílias marianenses, de Bento Rodrigues, Paracatu, Bicas, Pedras, Campina, Borba e Ponte do Gama foram vítimas do rio de lama e possuem o mesmo discurso. É exatamente nesse ponto que começa a solidariedade.

No dicionário, solidário é “interesse e responsabilidade com o outro”, para os atingidos, é “o que foi feito pelo povo brasileiro para nos ajudar, e o que agradecemos sempre.”. Já no dia 5 de novembro, a Arena Mariana - alojamento providenciado pela Prefeitura Muni-cipal para acolher os desabrigados - recebeu de pessoas solidárias, colchões, travesseiros, lençóis, toalhas, roupas e itens de higiene pessoal. “Eu passei uma noite inteira em Bento, a tragédia aconte-ceu de tarde e não teve como sair. Quando cheguei em Mariana pas-sei na Arena pra arrumar uma roupa e ter o que vestir. Foi a primeira vez que peguei doação.”, lembra Marinalva.

Chegaram donativos em caixas e sacolas: por caminhões, cami-nhonetes, carros e motos. Chegaram também levadas pelas pernas

texto: MAríliA MesquitA Foto: victor huGo MArtins Arte: MAGu tAvAres

Ha

bit

ar

Page 83: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 83

e carregadas pelas mãos de muitas pessoas. Mariana recebeu 180 toneladas de mantimentos, 300 mil litros de água e 200 toneladas de roupas. Foram donativos de

vários lugares do Brasil. A equipe de apoio, através da metodologia adotada para a distribui-ção dos donativos, registrou 1.200 cadastros de entrada de doações. Marinalva admira: “Eu não

achava que tinha tanta gente boa como descobri que tem. Foi muito bom saber que tem pessoas realmen-te preocupadas conosco.”. A solidariedade também chegou na cidade por meio de contas bancárias. Em quatro

meses, R$ 1,092 milhões foram depositados nas três contas disponibilizadas pela Prefeitura Municipal e 700 mil na conta disponibilizada pela Arquidiocese de Mariana. A Prefeitura, com o amparo do Ministério Público, realizou, em janeiro

de 2016, uma votação junto aos atingidos para que eles opinassem sobre o destino da quantia. “Eu gostaria que o dinheiro fosse para as crianças, mas qual que é o problema: se eu tomo uma decisão dessa, depois eu vou receber um processo? Não vale a pena. Melhor ser o mais democrático possível.”, afirma o prefeito da cidade, Duarte Júnior.

Do total arrecadado pela Prefeitura, R$ 1,025 milhões serão divididos em partes iguais para os chefes das famílias atingi-das. Os outros R$ 67 mil vão ser investidos nos 320 adolescentes e crianças da região atingida. Marinalva irá receber R$ 2,7 mil. Esse dinheiro vai devolver o computador que perdeu na lama. “Os meninos tinham um computador, e agora fica difícil pra eles fazerem trabalho de escola. Então com o dinheiro vou comprar um.”, justifica.

O Padre Marcelo Santiago, responsável pelo controle e gerenciamento dos recursos arrecadados pela Arquidiocese, explica que o dinheiro não será usado no que é de responsabilidade da empresa, mas em ações coletivas em favor dos atingidos. “Não há pressa em esgotar os recursos pois passada a fase emergencial, este momento de negociações de indenizações, reparações e reconstrução, haverá necessidades de investimentos outros em favor dos atingidos que, pouco a pouco, vão aparecendo e

que se acolha, para avaliação criteriosa e aprovação, projetos coletivos apresentados pelos atingidos e suas localidades.” Se o gesto de doar é nobre, o de receber é um exercício. Para quem acredita que as conquistas vêm do tra-

balho, para quem tem orgulho das dificuldades vencidas, não foi fácil. “Foi muito estranho ir pegar doações. A gente tinha tudo, e de repente tem que depender delas porque já não tem mais

nada.”, reflete Marinalva.Agora, mais que receber doações, 385 famílias esperam que suas vidas

sejam reestabelecidas. Esperam o endereço fixo. Esperam recon-quistar o que as doações não comportam. Esperam a tran-

quilidade que por tantas vezes falta.

CURINGA | EDIÇÃO 16 83

O centro de convenções de Mariana recebeu donativos às vítimas da tragédia de novem-bro de 2015 a janeiro de 2016.

Page 84: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Ide

nti

da

de

RECONSTRUINDO

Deixar o lar onde se passou a vida é um processo difícil quando planejado. Imagine

sair às pressas de casa, sem ter tempo de dar o último adeus, deixando para trás pertences e anos de memórias ? Esta foi a realidade de

mais de 1.500 pessoas que estavam no caminho da lama da Barragem de Fundão.

OS CAMINHOS

elvis BArBosA elvis BArBosA

TexTo: STela Diogo

FoToS: CaTarina BarBoSa

Page 85: Revista Curinga Ed. 16: Especial

CURINGA | EDIÇÃO 16CURINGA | EDIÇÃO 16 85

A rotina de famílias inteiras foi mudada de súbito no dia 5 de novembro. Em menos de 24 horas, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo precisaram ser inteira-mente desabitados. Após o rompimento da barragem de Fundão, 19 vidas foram lamentavelmente perdidas nessa corrida contra o tempo. As mais de 400 famílias que tiveram suas casas completamente destruídas não puderam parar o relógio. De acordo com a Samarco, empresa que gerencia a barragem, em menos de uma semana, as vítimas foram encaminhadas para hotéis ou mudaram para casas de parantes, principalmente na cidade de Mariana. Apesar de toda a assistência da hos-pedagem assegurada pela empresa, muitos quartos não ofereciam acomodação para uma família inteira.

Segundo as gerência dos principais hotéis que hos-pedaram as vitimas, algumas famílias até conseguiram ficar em um único quarto, com todos os membros. No caso das famílias com mais de cinco pessoas, que eram maioria, foi necessária a separação por quartos e até mesmo por hotéis. Para grande parte dos moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, o período como hóspedes foi importante para dimensionar a tragédia. Começaram a ver pelos noticiários a situação dos sub-distritos próximos às barragens; passaram a receber doações de mantimentos; foram alvos da imprensa; e precisaram fazer consultas com psicólogos e assisten-tes sociais. Foi naquele momento que muitos se deram conta de que não era possível voltar para casa.

Trabalhadores do Corpo de Bombeiros informaram que após a lama baixar o nível e secar, foi permitido aos moradores voltar ao lugar para a retirada de algum do-cumento ou pertence que pudesse ser recuperado. A dor da saudade, causada pelo retorno ao local quase irreco-nhecível, piorou quando os ex-moradores das partes me-nos atingidas se deparam com o que um dia foram seus lares, remexidos pela ação humana. O tempo que o local ficou sem policiamento para controlar o fluxo, foi sufi-ciente para que oportunistas se apossassem dos objetos ainda envoltos de barro. Em muitas casas, desaparece-ram móveis, objetos de devoção e roupas. Em outras, faltavam portas, janelas, telhados. A repulsa é inevitável até mesmo por quem não foi atingido. O que entristece aqueles que visitam o local não é apenas a visão dos des-troços de um espaço que abrigou tantas vidas, mas a fal-ta de respeito de quem saqueia o lugar sem se importar com todo o suor gasto em cada conquista.

A dificuldade de readequar a rotina aos quartos de hotel começou a tomar fim após um mês nessas condi-ções. Depois deste tempo, a Samarco iniciou o processo de locação de imóveis para uma melhor acomodação das vítimas. As casas, que puderam ser escolhidas pelas pró-prias famílias, foram alugadas e mobiliadas pela empre-sa. São nesses lugares que os moradores de Bento e Pa-racatu encontram-se atualmente. Para suprir despesas pessoais e domésticas, a empresa disponibiliza para cada famílias um cartão de auxílio financeiro. Neste cartão é depositado o valor de um salário mínimo, de uma cesta básica e um adicional de 20% do salário mínimo para cada dependente do chefe da família. Mesmo tendo uma casa que oferece melhor acomodação e mais espaço que um quarto de hotel, a retomada da rotina em um novo lugar traz sempre insegurança. As pessoas jamais conse-guirão trazer de volta a vida que levavam, mas cada um tenta, a seu modo, seguir em frente.

Page 86: Revista Curinga Ed. 16: Especial

Prédio alugado pela Samarco para abrigar a família da dona Maria Aparecida, na rua Cônego Marcil Muzzi.

No outro lado de sua rua, Maria Aparecida cultiva uma horta juntamente com seu irmão João Santos.

Difícil readaptação

A rua Cônego Marcial Muzzi, localizada no bairro Chácara, em Mariana, abriga 12 famílias. Parte dessas pessoas conseguiu reunir quem antes morava junto, mantendo a proximidade com alguns de seus antigos vi-zinhos. A vida farta de natureza cultivada nos quintais não consegue ser substituída pela vida na cidade, como dizem os residentes do local. Ex-moradores que presta-vam serviços como elétricos, de construções, costuras e consertos em geral, ainda não conseguiram voltar ao tra-balho. Com muita timidez e até certa cautela, as amiza-des estão sendo construídas em Mariana. A cidade onde os moradores de Bento e Paracatu iam com frequência para fazer compras, realizar consultas e resolver proble-mas burocráticos agora os abriga.

Maria Aparecida Santos, 57 anos, dona de casa, casa-da com Ailton Santos, 60 anos, aposentado e pais de 8 fi-lhos, é uma das novas habitantes do bairro Chácara. Para ela, moradora de Bento Rodrigues desde a infância, o que mais dói é saber que aquele lugar que outrora foi tão bonito e cheio de vida, encontra-se completamente devas-tado pela lama.

Inevitavelmente, Maria Aparecida sente muita falta de sua casa pelas coisas boas que ela lhe proporcionava, como as frutas, oferecidas pelo seu enorme quintal, e o cantar dos pássaros pela manhã. Os passeios de domingo também são lembrados com saudosismo, como os que fa-zia com a família pelo Batizal, local de muito verde e be-las flores que eles mesmo deram nome e não sabem bem o por quê. Até mesmo o dever de lavar roupas lhe trazia alegria, pois fazia parte do processo enxaguar as peças em um córrego que passava nas proximidades. Maria adorava o frescor e transparências das águas. Por acaso ou não, nos dias que antecederam a tragédia, ela passou a fre-quentar mais os lugares que tinha admiração, buscando reparar em detalhes antes não observados.

Pelas palavras dela, parecia que estava até sentindo a destruição iminente. Está vivendo hoje em um aparta-

mento que caberia no quintal de sua antiga casa. Além de toda a família, conseguiu resgatar seu segundo maior bem, os dois cachorros que levam alegria e boas lembran-ças do passado para o lar temporário. Sobre a vida em Mariana, ela está se esforçando para retomar os costumes que tinha no subdistrito de Bento Rodrigues. Ter como vizinhos a mãe, os irmãos e os filhos casados, dá ânimo a ela. O marido e o irmão tentam refazer as hortas, mesmo que em um espaço reduzido. Utilizam o pequeno quintal do prédio e até mesmo uma parte da rua em que estão vi-vendo. Esses pequenos momentos em contato com a terra proporcionam forças para reconstruir a nova rotina. Como ela mesma não cansa de repetir, “quem nasce no mato gosta de mato e nenhum lugar na cidade vai conseguir substituir”.

Representantes dos moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo estão sempre com agenda cheia de compromissos para resolverem a questão da construção

de uma nova comunidade. A reconstrução de novos subdistritos. Áreas nas proximidades de Mariana estão sendo analisadas pelos morado-res para, em seguida, serem avaliadas por uma equipe técnica da Samarco. A empresa apre-sentará a viabilidade de estruturação de novas casas. Sendo aprovada a apropriação dos locais, iniciarão as obras para que novos lares possam ser entregues o mais rápido possível aos atingi-dos da maior tragédia socioambiental da histó-ria brasileira. Famílias que, diante da impossi-bilidade de voltarem para sua terra natal, ainda têm a esperança de recuperar a alegria de viver em um lar que possam chamar de seu.

Page 87: Revista Curinga Ed. 16: Especial

IMPRESSÃO: MJR EDITORA GRÁFICA

Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca

CEP: 32.113-460 - Contagem - MG

tel: (31) 3357-5777

Curinga Online

www.

revistacuringa. ufop.br

/revistacuringa Revista Curinga @revistacuringa@RevistaCuringa

Fotos cAPA e contrAcAPA: JéssicA coronA e thAtiAnA zAcAriAs

Page 88: Revista Curinga Ed. 16: Especial