Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012 · Teatro. 2. Teatro – Estudo e ensino. 3....

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Revista de Artes do Espetáculo n o 3 - março de 2012

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Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012

Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012

Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura

Realização e apoio

ApoioinstitucionalApoio

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Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012

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Catalogação na fonte: Elaborado pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

Rebento: revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista“Julio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 3 (março 2012) - São Paulo:Instituto de Artes, 2010.

Anual

ISSN: 2178-1206

1. Teatro. 2. Teatro – Estudo e ensino. 3. Representação teatral. 4. Criação (Literária, artística etc.). I. Universidades Estadual Paulista, Instituto de Artes.

CDD 792.07

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EXPEDIENTE

Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade dos autores. Todo o material documental e as inserções fotográfi cas deste número foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes.

Coordenação editorial: Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi (UNESP).

Conselho editorial: Alberto Ikeda (UNESP), Armindo Bião (UFBA), Luís Alberto de Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariangela Alves de Lima, Milton de Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP).

Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Carminda Mendes André (UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – SP), Edélcio Mostaço (UDESC), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Villar (UnB), Fernando Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert Junior (USP), Hugo Possolo (Grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP), Jaime Gómez Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez (UNESP), Kátia Rodrigues Paranhos (UFU), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP), Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Lúcia Romano (UNESP), Marcelo Bones (CEFAR-MG), Maria Silvia Betti (USP), Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP), Marta Colabone (SESC-SP), Marvin Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Narciso Telles (UFU), Paulo Eduardo Arantes (USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke (University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo (UFG), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano (Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Suely Master (UNESP), Valmir Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR).

Projeto gráfi co: Alexandre Mate e Maurício F. Santana. Revisão técnica: Alexandre Mate.Revisão: Airton Dantas. Revisão dos abstracts: Helena Miguel.Revisão editorial: Selma Pavanelli.Impressão: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Capa: Foto do arquivo pessoal de Fernando Peixoto, cedida ao Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC - Uberlândia) com coordenação de Rosangela Patriota. Fernando Peixoto em ensaio de Tambores da noite, 1972, Studio São Pedro (SP).Contracapa: Foto do arquivo pessoal de Fernando Peixoto, cedida ao Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC - Uberlândia) com coordenação de Rosangela Patriota. Fernando Peixoto e Dulce Muniz em ensaio de Tambores da noite, 1972, Studio São Pedro (SP).

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Apresentação: As Formas Fora da Forma e as difi culdades interpostas ao registro documental do evento por Alexandre Mate

Bloco I: OS GÊNEROS ARQUETÍPICOS DO CIRCO-TEATRO

Famílias circenses: características, glórias e percalços por Daniele Pimenta

Maiakovski – Arte – Revolução por Mario Fernando Bolognesi

Bloco II: O TEATRO DE REVISTA BRASILEIRO

Preconceito e teatro musical por Neyde Veneziano

Apesar do “passamento” tantas vezes anunciado, a resistência de uma forma teatral (ou) As sobrevidas do teatro de revista brasileiro por Alexandre Mate

Relatos de uma atriz-cantora pela forma revisteira por Carol Bezerra

Bloco III: O TEATRO DE FEIRA

O teatro de feira e sua poética por Robson Corrêa de Camargo

Experimentar, selecionar, compor e recompor: o jogo da autonomia do ator por Lúcia Romano

Bloco IV: O TEATRO DE RUA NO BRASIL

Um itinerário do teatro de rua por Lindolfo Amaral

A improvisação, o ator e a commedia dell’arte por Ana Rosa Tezza

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ÍNDICE

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Bloco V: MATÉRIAS DE COLABORADORES

Histórias circenses: composições de subjetividades por Manoela Maria Valério e Tiago Cassoli

Decio de Almeida Prado, o circo e outros gêneros “menores” por Rodrigo Morais Leite

A noite dos palhaços mudos: uma análise por Lilia Nemes Bastos

O repertório formal do agitprop por Iná Camargo Costa

O que há para além dos muros que nos impõem?por Adailtom Alves Teixeira

No Brique da Redenção: uma experiência de teatro de rua como arte públicapor Licko Turle

Bloco VI: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS

Vá ser bom fotógrafo assim lá em casa

“Pirandello presta-se a pilhérias”. In: Revista Zaz Traz, de Luiz Carlos Júnior e Victor Carvalho (1930)

“Amor de cowboy”. In: Revista Na Hora H, de Luiz Iglésias, Freire Júnior e Carlos Bittencourt (1936)

“Os marimbondos”. In: Revista Dona Boa, de Jerônimo Castilho, Alfredo Breda e Lamartine Babo (1930)

Esquete sem nome. In: Revista Brasil Terra Adorada, de 1932, escrita por Jardel Jércolis com músicas compiladas

Esquete sem nome. In: Revista Estou Nessa Marmita!, de Nino Nelo

Esquete sem nome. In: Revista A Mulata, de Max Porto e de Júlio Cristóval

Sai despacho! (Prólogo), de Benjamin de Oliveira

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ILUSTRAÇÕES

Foto de Bob Sousa. Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo - Cristiana Fabrício, no espetáculo Aqui não, Senhor Patrão!

Foto de Bob Sousa. Cia. Antropofágica - elenco do espetáculo-intervenção Karroça Antropofágica.

Foto de Bob Sousa. Cia. dos Inventivos - Aysha Nascimento, no espetáculo Bandido é quem anda em bando.

Foto de Bob Sousa. Brava Cia. - Cris Lima, Débora Torres, Henrique Alonso, Luciana Gabriel e Sérgio Carozzi, no espetáculo Corinthians, meu amor.

Foto de Bob Sousa. Cia. Teatral Boccaccione - Michel Masson e Visinho Juri, no espetáculo Ubu rei.

Foto de Bob Sousa. Cia. Antropofágica - elenco espetáculo-intervenção Karroça Antropofágica.

Foto de Bob Sousa. Grupo Rosa dos Ventos - Tiago Munhoz e Robson Toma, no espetáculo Saltimbembe mambembancos.

Foto de Bob Sousa. Grupo Rosa dos Ventos - Fernando Ávila, Gabriel Mungo e Tiago Munhoz, no espetáculo Saltimbembe mambembancos.

Foto de Bob Sousa. Grupo Off Sina - Lilian Moraes e Richard Righetti, no espetáculo E o palhaço o que é?

Foto de Bob Sousa. Brava Cia. - Sérgio Carozzi e Márcio Rodrigues, no espetáculo Corinthians, meu amor.

Foto de Bob Sousa. Cia. Estável - Daniela Giampietro, no espetáculo Homem cavalo & sociedade anônima.

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Apresentação

As Formas Fora da Forma e as difi culdades interpostasao registro documental do evento

por Alexandre Mate

I. Histórico de mais uma edição do evento Estudos Teatrais Mario Fernando Bolognesi criou em 2008 o evento Estudos

Teatrais. Naquele ano, a primeira edição foi desenvolvida em três manhãs de novembro, tendo como tema geral Persona & Personagem. Alexandre Mate e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez coordenaram o evento em 2010, desenvolvido em três manhãs e uma tarde, cujo tema geral foi Dramaturgia: as tessituras da cena.1 Alexandre Mate, em 2011, coordenou a terceira edição, realizada de 4 a 7 de julho, tendo como tema geral As Formas Fora da Forma. Dividido em quatro manhãs e tardes, com refl exão e experimentação estética, o evento foi dividido da seguinte forma:

• No dia 4, de 9h às 12h, tendo como tema O circo-teatro brasileiro, a mesa contou com a participação de Daniel Marques (Universidade Federal da Bahia – UFBA); Daniele Pimenta (Faculdades Integradas Coração de Jesus – Fainc, de Santo André/SP); Cia. Pic & Nic/SP); Fernando Neves e Mario Fernando Bolognesi (Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp). Nesse mesmo dia, de 14h às 18h, foram apresentadas cenas de: Vem buscar-me que ainda sou teu, de Carlos Alberto Soffredini e Sai, despacho!, de Benjamin de Oliveira, com direção coletiva de estudantes do terceiro ano do curso de Licenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da Unesp.

• No dia 5, de 9h às 12h, tendo como tema O teatro de revista brasileiro, a mesa contou com a participação de Alberto Ikeda e Alexandre Mate (Instituto de Artes da Unesp), Carol Bezerra

1 Na Introdução da Rebento – Revista de Artes do Espetáculo no 1 – julho de 2010 há mais informações acerca das moti vações que levaram à realização do evento. Na Introdução da Rebento – Revista de Artes do Espetáculo no 2 – novembro de 2010 são apresentadas mais informações referentes às duas primeiras edições do evento Estudos Teatrais.

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(atriz-cantora) e Neyde Veneziano (Universidade Estadual de Campinas – Unicamp). Nesse mesmo dia, de 14h às 18h, foram apresentados esquetes do Teatro de Revista2 encenados pelo grupo Tia Tralha, formado por estudantes do Ensino Médio, com direção de Alan Livan (mestrando da pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp), e números musicais com Carol Bezerra, acompanhada ao violão por Leonardo Santiago.

• No dia 6, de 9h às 12h, tendo como tema O teatro de feira francês do século XVII e seus desdobramentos, a mesa contou com a participação de João das Neves, José Fernando de Azevedo (Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo – EAD/USP), Maria Thais (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP) e Robson Corrêa Camargo (Universidade Federal de Goiás – UFG). Nesse mesmo dia, de 9h às 12h, Lúcia Romano (Instituto de Artes da Unesp) ministrou uma ofi cina de improvisação com base nos expedientes de teatro de feira, retomados por Vsevolod Meyerhold.

• No dia 7, de 9h às 12h, tendo como tema A ocupação dos espaços públicos pelo teatro de rua brasileiro: de quem é a rua?, a mesa contou com a participação de Ana Rosa Tezza (Ave Lola e as Meninas Produções Artísticas – Curitiba/PR), Hélio Fróes (Nu Escuro – Goiânia/GO), Licko Turle (Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua – Rio de Janeiro) e Lindolfo Amaral (Grupo Imbuaça - Sergipe). Nesse mesmo dia, de 14h às 18h, dando continuidade ao intercâmbio desenvolvido entre o Instituto de Artes e representantes do Núcleo Paulistano de Teatro de Rua, foi realizado o Segundo Fórum de Teatro de Rua de São Paulo.

Articulado ao projeto Escambos Estéticos, da Companhia dos Inventivos – orientado por professores do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação, em 8 de julho, de 9h às 13h, foi desenvolvida a última das quatro mesas propostas por essa Companhia, cujo tema – No entrecruzamento dos fazedores de teatro – norteou a discussão de procedimentos 2 Há a transcrição de alguns desses esquetes no últi mo bloco desta edição.

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e experimentações ligados aos processos de construção do texto. Assim, priorizou-se a adaptação, de cuja mesa – A adaptação de texto literário para o teatro – participaram criadores que têm trabalhado com o texto literário adaptado: Aurea Karpor, do Núcleo Cênico Projetobazar (SP); Aysha Nascimento, da Companhia dos Inventivos; Caio Martinez Pacheco, da Trupe Olho da Rua (Santos/SP) e Dorberto Carvalho, da Companhia Insurgente (SP).3

Para concluir a semana, com sete dias de atividades, em 9 e 10 de julho, Alexandre Mate ministrou um treinamento com os integrantes da Oigalê – Cooperativa de Artistas Teatrais e outros participantes de grupos da cidade de São Paulo, cujo assunto foi o trabalho com o gesto teatral: Do gesto ao gestus.

II. As motivações temáticas para o evento As Formas Fora da Forma

Todos os que estão envolvidos com processos de criação sabem que, do ponto de vista artístico ou artístico-pedagógico, as produções artísticas, em geral, atendem aos interesses dos grupos hegemônicos. Desse modo, exclui-se da memória documental a totalidade de produções não afi nadas formalmente com os cânones e com os padrões de pequenos grupos de elite.

A origem do teatro, as obras consagradas e seus criadores destacados correspondem a certa e afi nada produção atinente aos interesses políticos e hegemônicos do momento. Arte e beleza consagram, naturalizam e expandem “padrões de qualidade”. Qualidade e padrão não são abstrações, mas sim conceitos construídos histórica e socialmente com base em interesses bem determinados.

Além de veicular as culturas eurocêntricas e norte-americanas – correspondendo à parcela ínfi ma do produzido nesses “centros”, em perspectiva hegemônica, que tem servido de/para o aprendizado e o conhecimento histórico-estético do teatro, é preciso que nas universidades outras experiências e produções sejam apresentadas.

3 A transcrição integral do que foi discuti do no encontro está disponível no blog da Companhia dos Inventi vos: <htt p://www.ciadosinventi vos.blogspot.com>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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Assim, na medida em que o estudante, especialmente o de cursos de licenciatura, precisa apropriar-se de certos conteúdos para participar de concursos de ingresso (em que, majoritariamente, serão exigidos determinados conhecimentos), pode-se ampliar o universo de conhecimento dos estudantes por meio das atividades extracurriculares.

O evento Estudos Teatrais tem esse propósito: ampliar o universo de conhecimento dos estudantes. Nesse sentido, ao buscar novos parceiros ou parcerias, tende a ocorrer a ampliação de assuntos vistos em sala de aula. Eventos dessa natureza, na medida em que os acontecimentos não são neutros nem existem por si, cotejam olhares e percepções diferentes sobre os fenômenos, em processo de análise que vai se fazendo em relação. Tendo em vista os processos de intercâmbio, pesquisa e prática que vêm sendo desenvolvidos no Instituto de Artes, principalmente com o circo, as danças dramáticas e o teatro de rua, o evento de 2011 buscou imbricar as necessidades de ampliação de seus fazeres e redimensioná-los, contando com o apoio da comunidade externa à vida acadêmica.4

III. Do que se compõe a Rebento no 3O leitor da revista Rebento, em seu terceiro número,

encontrará textos de variadas extensões, decorrentes de uma série de questões nem sempre articuladas e quase sempre imprevisíveis. Em tese, a publicação decorre da necessidade de se registrar as refl exões levadas a termo em encontros presenciais. E na luta, tantas vezes insana, para a publicação do material muito tempo se passa. Professores geralmente têm uma carga de trabalho bastante elevada e pautam suas tarefas de acordo com as cobranças. Da

4 Nesse senti do, entre outras ati vidades – imbricando graduação e pós-graduação –, foram desenvolvidos no Insti tuto de Artes, em 2011: As Cenas de Rua no Teatro de Rua, desenvolvido toda últi ma terça-feira do mês (curso, em seu segundo ano); Seminário Nacional de Dramaturgia para o Teatro de Rua – em parceria com o Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo; Escambos Estéti cos, em parceria com o grupo de teatro Os Inventi vos, que se consti tuiu em uma série de quatro encontros para discuti r questões ligadas ao teatro de rua, às formas populares de cultura, aos procedimentos épicos no teatro de rua; o consistente trabalho práxico desenvolvido pela professora Marianna Monteiro com as teatralidades populares brasileiras, pesquisa lastreada fundamentalmente nas danças dramáti cas brasileiras visando incorporar no ensino do teatro as tradições cênicas populares.

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participação do debate em uma determinada mesa até a publicação do material outras tantas tarefas surgem. Com relação ao evento As Formas Fora da Forma é fundamental esclarecer algumas questões: nenhum profi ssional recebeu cachê para participar das mesas ou para escrever os textos que comporiam a revista, e que se esperou, o máximo possível, alguma ajuda econômica que viabilizasse a publicação dos textos referentes ao evento. Seria uma indelicadeza solicitar aos profi ssionais que escrevessem os textos sem ter a certeza de que seriam publicados. Desse modo, dentre tantas inseguranças, como se verá, nem todos os profi ssionais das diversas mesas conseguiram apresentar textos correspondentes às suas participações no evento em epígrafe.

À Daniele Pimenta, pertencente a uma família circense e pesquisadora do assunto, coube tecer considerações acerca do tema Famílias circenses: características, glórias e percalços. Para a pesquisadora, sob uma aparente homogeneidade para o leigo, diversos são os procedimentos utilizados para a manutenção das tradições artísticas circenses. Ao fazer menção à existência de preconceitos contra a linguagem e seus artistas, e o esquecimento no qual hoje se encontra, com o advento do “novo circo” – que contribuiu para a decadência do tradicional –, a pesquisadora acredita que os excessos tecnológicos poderão trazer novamente o público para o velho modelo e suas formas relacionais arquetípicas. Apesar de o assunto não se ligar ao circo, o texto de Mario Fernando Bolognesi apresenta uma refl exão, sempre necessária, sobre a função social da arte e da arte como sucedâneo do engajamento político. Nesse sentido, Bolognesi centra sua refl exão na produção artística no momento em que a Rússia passa a integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, revelando os embates entre as tendências de vanguarda em oposição às manifestações do passado. Além de outras considerações referentes às tentativas dos processos de coisifi cação dos sujeitos, lembra o pesquisador:

A verdade da arte termina sendo aquilo que a Rússia era, tal como aparece nas obras do período. Isto implica admitir que a arte não seja revolucionária porque foi ou é escrita por um escritor

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que adotou os princípios da revolução, ou por quem pertence à classe trabalhadora. Ela é revolucionária porque o conteúdo se torna forma. Portanto, em outras palavras, o potencial político da arte reside unicamente em sua dimensão estética. Sua relação com o universo social e econômico é inevitavelmente indireta e mediata. Assim, Baudelaire, Dostoiévski ou Jorge Andrade têm tanto potencial subversivo como as peças didáticas de Brecht. Suas obras agem na subjetividade e, ao contrário do que apregoa o estreito materialismo, a subjetividade tem seu potencial revolucionário, pois a necessidade de uma mudança radical deve ter suas raízes na subjetividade dos indivíduos, em sua inteligência, paixões, pulsões e ideais.

Neyde Veneziano, Carol Bezerra e Alexandre Mate, dentre outros aspectos, destacam o preconceito em relação ao teatro de revista brasileiro e a necessidade de conhecê-lo ou “revelá-lo” para as pessoas. Com Orfeu da roça, paródia do ator Francisco Correa Gomes ao Orfeu no inferno de Jacques Offenbach, Neyde Veneziano, em suas refl exões, aponta que “[...] com ar de quem ri de tudo (até de si mesmo...)” se inicia um processo de imposição de “[...] tal jeito brasileiro de fazer teatro musical.” Ainda segundo a pesquisadora, esse acontecimento prepara “[...] o fértil terreno brasileiro para o teatro de revista.” Carol Bezerra apresenta sua inserção no universo da Revista como pesquisadora (e a paixão daí decorrente), e alguns relatos sobre sua carreira como atriz e cantora por entre as plagas da forma. Alexandre Mate, por sua vez, compartilha algumas “pérolas” proferidas por gente de destaque sobre a forma, insistindo muito mais nos preconceitos de classe do que propriamente estéticos.

Robson Corrêa de Camargo realiza signifi cativo esforço de pesquisa e cria um texto fundamental para o entendimento dos expedientes estéticos adotados pelos artistas populares (sem nenhuma proteção do Estado), nos séculos XVII e XVIII, para driblar proibições, censura e inveja. Diversos expedientes criados naquele momento, especialmente nas feiras de Saint-Gérmain e de Saint-Laurent, em Paris (França), chegaram ao teatro da contemporaneidade, ajudando a relevar a teatralidade do teatro.

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Na tarde do dia reservado para a refl exão acerca do teatro de feira, Lúcia Romano desenvolveu, a pedido da coordenação do evento, uma experimentação prática com estudantes e demais pessoas interessadas com base em algumas proposições meierholdianas. Em seu texto, depois de breve exposição conceitual, a professora apresenta os objetivos e o alcance da atividade desenvolvida naquela tarde.

Lindolfo Amaral, do Grupo Imbuaça, de Sergipe, traça uma interessante trajetória do teatro de rua praticado no Brasil, atendo-se à trajetória do Grupo do qual faz parte. Em seu “passeio”, Amaral compartilha informações preciosas sobre alguns coletivos que se dedicam (ou se dedicaram) ao teatro de rua no Brasil. Ana Rosa Tezza tece algumas ponderações relativas à commedia dell’arte italiana, destacando, além das difi culdades e conquistas dos artistas ligados àquela forma popular e profi ssional de atuar, a importância da improvisação. Adailton Alves Teixeira, que tem participado ativa e militantemente da discussão ligada ao teatro de rua na cidade de São Paulo (mas não exclusivamente), discorre sobre a importância da fala de João das Neves referente a um olhar elitizado sobre esse movimento. De modo breve, comenta também sobre o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo. Licko Turle, convidado a participar da mesa sobre Teatro de Rua, relata uma experiência vivenciada em Porto Alegre (RS), em 10 de abril de 2011, alimentado pelas teses de Denis Guénoun – A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro – para, de modo sucinto, apresentar o conceito de arte pública.

A professora Iná Camargo Costa, sempre parceira e colaboradora, tendo em vista a ausência de material em português, fez a tradução parcial do texto de Claude Amey et al. Le théâtre d’agit-prop de 1917 à 1932 (1977), destacando principalmente o item “Métodos e formas específi cas”, de Claudine Amiard-Chevrel.

Com formação em Psicologia, Manoela Maria Valério e Tiago Cassoli estabelecem uma refl exão sobre a história do circo, tomando como esteio pontos de vista de uma corrente fi losófi ca premida pela subjetividade. Assim, ao rastrearem a história do circo, os autores revisitam o circo e seus artistas.

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Estudante do curso de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp, Rodrigo Morais Leite, com surpreendente agudeza, desenvolve uma refl exão sobre o circo com base em raros comentários da crítica jornalística e da historiografi a de Decio de Almeida Prado. A refl exão corresponde ao trabalho fi nal da matéria O Circo e seus Palhaços: Encenação, Interpretação, Aspectos Visuais e Dramatúrgicos, ministrada pelo professor Mario Fernando Bolognesi. Estudante da pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp, também participante dessa matéria, Lília Nemes Bastos – orientanda de Mario Fernando Bolognesi – apresenta como trabalho fi nal excelente análise da peça A noite dos palhaços mudos, montada pela Cia. La Mínima, de São Paulo. Em sua análise, a estudante concilia apreciação e teoria circense.

Ao fi m e ao cabo, trata-se de uma obra que passeia, fl ana, atraca, lança âncoras em superfícies e territórios diversos, na tentativa de criar interlocuções pertinentes. Entretanto, compreendendo a base da qual ela decorre (um encontro para discutir formas estéticas consideradas fora dos cânones hegemônicos), é possível compreender seu formato. Como um baralho, constituído de diversas cartas e de algumas formas de articulação, uma revista também apresenta diversas possibilidades, à semelhança de um jogo. Assim, se para Bertolt Brecht jogar implicava:

[...] transformar em decisão a opinião do que joga, na ausência de informações sufi cientes sobre o jogo dos adversários, é um desafi o à sorte e aos determinismos [...]. Quando não jogamos (isto é, quando vivemos pacatamente e sem riscos) também nos decidimos na ausência de informações sufi cientes, desafi ando o acaso e determinismos; portanto, jogamos no mais profundo sentido da palavra. (Brecht, apud LEFEBVRE, 1970: 60)

Decorrente do mesmo “fi lão”, Michel de Certeau defende a tese segundo a qual sempre se escreve sobre algo já escrito. Nesse particular, é fundamental entender que “[...] o que se acha em jogo é o estatuto da análise e sua relação com seu objeto. Como numa ofi cina ou num laboratório, os objetos produzidos por uma pesquisa resultam de seu aporte, mais ou menos original, no campo onde ela se tornou possível.” (CERTEAU, 1996: 109)

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Bob Sousa, fotógrafo que vem se destacando no panorama teatral da cidade de São Paulo, atendeu ao pedido da coordenação do evento para apresentar algumas fotografi as feitas durante a 3a Mostra de Teatro de Rua da Trupe Olho da Rua, desenvolvida na cidade de Santos (SP), de 26 a 30 de janeiro de 2012. A inserção das fotografi as de Bob Sousa nesta edição se justifi ca porque as que foram feitas durante o evento não têm a qualidade necessária para impressão. De qualquer modo, como se tratou de um evento de rua, as imagens selecionadas correspondem aos temas estudados no evento em epígrafe.

Para concluir, além de Rosangela Patriota, é fundamental agradecer aos parceiros que participaram do evento presencial e àqueles que militantemente escreveram os textos desta publicação. Rebento no 3 transformou-se em realidade, também, por meio de gestões desenvolvidas entre parlamentar e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

Juntos em mais uma vitória, a certeza de estarmos fazendo história!

Referências bibliográfi cas

BRECHT, Bertolt. Apud Henri Lefebvre. O teatro épico de Brecht como crítica da vida cotidiana. In: Bertolt Brecht et al. Teatro e vanguarda. Lisboa: Presença, 1970.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do Fazer. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

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Foto de Bob Sousa. Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo - Cristi ana Fabrício no espetáculo Aqui não, Senhor Patrão!

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Bloco I: OS GÊNEROS ARQUETÍPICOS DO CIRCO-TEATRO

Famílias circenses: características, glórias e percalçospor Daniele Pimenta5

Resumo: Neste texto, a autora aborda a estrutura social circense brasileira, partindo da formação do artista em âmbito coletivo e familiar, com base em sua própria experiência e nas memórias familiares. Trata também das fases mais signifi cativas da evolução do circo brasileiro, em seus aspectos positivos e negativos.

Abstract: In this paper the author discusses about the social structure of Brazilian circus, starting with the formation of the artist in a collective and family ambit , based on his own experiences and family memories. The author also broaches the most signifi cant phases of the evolution of Brazilian circus, in its positive and negative aspects.

Palavras-chave: circo, história do circo, famílias circenses.

Keywords: circus, history of the circus, circus families.

Aceitei com muito prazer o convite para escrever sobre as características, glórias e percalços das famílias circenses. Entretanto, logo que comecei a organizar os pensamentos, me dei conta de que, como a história das nossas famílias circenses se confunde com a própria história do circo no Brasil, a tarefa poderia não ser simples para o pouco tempo disponível. Nós, circenses, fi camos muito tentados a alongar nossos relatos e, em contrapartida, minha formação como pesquisadora estaria sempre fi ltrando e procurando barrar os possíveis excessos saudosistas e emocionais de quem cresceu no circo. Enfi m, passado o duelo interno, eis um pouco do que posso dizer sobre o tema.

5 De tradicional família circense, é atriz, coreógrafa, diretora musical e codiretora da Cia. PicNic de Teatro. Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre pela Universidade de São Paulo (USP), professora de teatro na graduação e na pós-graduação em Educação Artí sti ca das Faculdades Integradas Coração de Jesus (Fainc), em Santo André – SP.

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CaracterísticasO circo tem uma cultura própria e muito complexa, pois

compreende diferentes culturas. São famílias de diversas nacionalidades e regiões construindo um universo que resulta aparentemente homogêneo para quem o observa, mas composto de diferenças essenciais, como língua, religião, comida, hábitos, princípios familiares e outros tantos aspectos com os quais os circenses convivem em todos os momentos, pois trabalho, relacionamento social e lazer estão circunscritos a um único ambiente.

A formação do circense desenvolve-se em duas frentes: coletiva e familiar.

A formação coletiva compreende a transmissão dos saberes especifi camente circenses, sobretudo das técnicas corporais que condicionam fi sicamente as crianças para o desenvolvimento de seus futuros números, por meio do treinamento diário, orientado por um adulto responsável por todas as crianças. Há diferenças no treinamento, de acordo com a idade e o sexo. Geralmente, as meninas iniciam o treinamento por atividades de contorcionismo e os meninos por atividades de salto e equilíbrio, porque as atividades futuras, de maneira geral, demandarão habilidades e respostas diferentes de cada corpo: suavidade, fl exibilidade, leveza e elegância para as mulheres; agilidade e força para os homens.

A formação familiar permite resguardar as diferenças culturais, mas também implica treinamento específi co para a inserção do jovem no número de família, além do desenvolvimento de possíveis números-solo.

Essas duas formações compõem a cultura circense, caracterizada fundamentalmente pelo nomadismo, o qual imprime a necessidade de preservação cultural, de proteção das crianças pelo coletivo e da manutenção das tradições artístico-administrativas em relativa independência das sociedades que recebem o circo.

As tradições artísticas compreendem a transmissão de estruturas dos números; construção e manutenção de equipamentos;

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guarda-roupa (como os circenses referem-se a seus fi gurinos); possibilidades de evolução técnica e estética das atividades circenses.

As administrativas absorvem diferentes funções – como secretaria, gerência, publicidade – e suas atribuições; além de atividades complementares, como vendas e manutenção de equipamentos gerais do circo (soldador, eletricista, costureiro, bordador etc.).

Nesse sentido, a estrutura social circense tradicional engloba as relações entre vida familiar, pessoal e profi ssional, partindo da atribuição de funções bem defi nidas, tanto sociais quanto artísticas, técnicas e administrativas.

A organização dessa estrutura geralmente apresenta as seguintes características:

• as despesas comuns, como fornecimento de água e luz, coleta de lixo, são custeadas pela empresa;

• os contratos de trabalho são fi rmados por família. A subdivisão do pagamento depende dos critérios de cada família, geralmente em função de faixas etárias e das atividades que cada sujeito desenvolve no circo. As famílias costumam ter um número coletivo, pelo qual é contratada, mas seus integrantes podem desenvolver outros números e, eventualmente, a empresa pode fazer pagamentos individuais para números-solo, independente do número da família;

• cada família tem sua própria habitação, o que sofreu mudanças muito intensas ao longo da evolução da história do circo: de casas alugadas a traillers e motorhomes, passando pelas barracas de lona, casas desmontáveis e carretas adaptadas;

• a habitação coletiva só existe para alguns funcionários contratados para a montagem, desmontagem e manutenção do circo, os quais convivem com funcionários eventuais na chegada a uma cidade e no momento de deixá-la. Para eles, o circo mantém uma cozinha

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com refeitório, cuja estrutura é sempre proporcional ao porte da empresa circense, chegando a padrões semi-industriais.

A educação formal, considerando aqui desde a alfabetização a alguns casos de circenses que completam a formação superior mesmo sem se desligarem do circo, depende basicamente do empenho de cada família em solicitar às escolas de cada cidade as vagas a que os fi lhos de profi ssionais viajantes têm garantidas por lei, mas em algumas empresas, principalmente nas etapas iniciais do desenvolvimento do circo no Brasil e, posteriormente, até o presente, nas fases em que determinados circos passam por regiões sem infraestrutura escolar satisfatória, a solução encontrada é a contratação de um professor para lecionar em uma estrutura similar às escolas rurais, com o atendimento coletivo às várias crianças com conteúdos diferenciados por faixa etária.

Socialmente, as famílias circenses vivem o desafi o de manter sua privacidade em um ambiente fechado, morando muito próximas umas das outras e em residências frágeis estruturalmente. O respeito à privacidade é um acordo tácito, mantido pelo hábito de considerarem o espaço externo às casas como espaço comum, no qual acontecem todas as brincadeiras das crianças e jovens, além dos eventos coletivos, como festas no picadeiro e jogos de futebol ou churrascos em espaços livres do terreno.

Os casamentos, apesar das inúmeras lendas e do mito de que “palhaço é ladrão de mulher”, acontecem, na maioria das vezes, entre circenses, mas há também casamentos entre circenses e pessoas da cidade, principalmente nas fases em que os circos fi cam muito tempo nas cidades, o que depende tanto do perfi l das regiões visitadas quanto da evolução estrutural dos circos ao longo de sua história, pois as diferentes estruturas físicas dos circos demandam relações diversas com a cidade, em função da necessidade de tempo para limpeza e nivelamento do terreno, montagem e desmontagem do circo, que podem levar horas e até mesmo semanas.

Os casamentos entre circenses podem resultar em reforço do

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repertório artístico das famílias envolvidas, com a criação de novos números pelo casal e seus fi lhos ou, o que é quase inevitável, na perda de números quando o novo casal decide mudar de circo.

Quanto aos casamentos com pessoas da cidade, por minhas memórias, poucas foram as vezes em que a união resultou na saída do circense para uma vida na cidade. Geralmente, o circo ganha um novo integrante, que em pouquíssimo tempo é absorvido em suas atividades artísticas ou administrativas.

GlóriasNo Brasil, o circo teve algumas fases “de ouro”, nas quais,

consequentemente, nossas famílias viveram suas maiores glórias.

No último quarto do século XIX, grandes companhias circenses internacionais fi zeram temporadas de sucesso no Brasil, ocupando os teatros do Rio de Janeiro com suas pantomimas circenses de grande porte (pantomimas equestres e pantomimas aquáticas).

Já em suas estruturas itinerantes, as empresas estrangeiras foram responsáveis pela difusão do circo pelo País, o que resultou na fi xação de muitas famílias em nosso território e na formação de novas empresas por associações familiares.

No século XX, destacam-se dois períodos de glória:

• o auge do circo-teatro, nas décadas de 1940 e 1950, com uma geração de artistas nascidos na “nova tradição”, tecnicamente bem preparados para o teatro circense, com domínio da linguagem, inovações tecnológicas e produções de esmerada qualidade, em circos como o Pavilhão Arethuza, Irmãs Silva, Rosário e Nerino, entre outros;

• e, nas décadas de 1970 e 1980, após a recuperação econômica de empresas circenses nacionais que passaram a se dedicar ao formato do circo de variedades, nosso público volta a valorizar o circo, entusiasmado com a presença de nomes como Thiany, Garcia, Orfei, além dos já brasileiros Bartholo, Robattini, Neves e muitos mais.

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PercalçosA maior parte dos percalços de nossas famílias só é notada

quando se passa muito tempo afastado do circo, com a adaptação a padrões de vida diferentes, porque a rotina circense é precária: o chão de terra ou, muitas vezes, de barro; banheiros e cozinhas que necessitam de reestruturação a cada chegada em um novo terreno; pouco espaço para objetos pessoais; ter de procurar escolas a cada nova cidade; amizades e romances restritos ou mesmo interrompidos à revelia de seus protagonistas, pela mudança da família para outro circo.

Mas há percalços mais sérios e perceptíveis para os circenses, causados por interferências externas. Por exemplo, o preconceito, que já levou muitas paróquias a impedirem a montagem de circos em cidades pequenas, que faz com que tratem as crianças circenses como aberrações nas escolas e que leva muitas famílias a ocultarem seu passado circense, para evitar que suas mulheres fi cassem “malfaladas”.

Ainda como problemas de causa externa, há a indisponibilidade de terrenos; os impedimentos legais inesperados (como o toque de recolher no período do golpe militar ou a recente proibição da presença de animais); perda de público por parâmetros impostos pela concorrência com a televisão e o cinema, como o gosto por efeitos especiais, em detrimento das habilidades físicas circense, ou mesmo pelas referências do chamado “novo circo”, ditando moda nos fi gurinos e nas trilhas sonoras do Cirque du Soleil (Canadá).

Encerrando...Como estímulo ao debate, lanço as seguintes provocações:

com o surgimento das escolas de circo, a partir da década de 1980, observamos nos circos artistas “avulsos”, isto é, que não pertencem às tradicionais famílias circenses. Nesses anos de convivência, alguns desses artistas casaram-se e constituíram novas famílias circenses? Ou trabalham esporadicamente, sem criar vínculos além dos profi ssionais? Sabemos que as escolas de circo e a difusão de atividades circenses em ofi cinas também infl uenciam os grupos

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teatrais. Esse intercâmbio vai estimular e alimentar o desenvolvimento circense ou pode enfraquecer algumas de suas características essenciais?

Particularmente, considero que o circo tem, por tradição, de absorver o “novo” e adaptar-se para sobreviver aos tempos de crise, fortalecendo-se em novos formatos. Quero crer que, em algumas décadas, estaremos em uma nova fase de glória circense, pois se o contraste com novas tecnologias tem afastado o público dos circos, o mesmo excesso tecnológico, que tem reduzido ao mínimo algumas relações pessoais, fará com que o ambiente circense torne-se uma grande oportunidade de encontro e de encantamento por feitos (quase sobre-)humanos. E no caminho dessa transformação está essa relação que se estreita entre circo e teatro, como já ocorreu em tantos momentos de nossa trajetória.

Referências bibliográfi cas

PIMENTA, Daniele. O circo no Brasil, de dentro da cerca. In: Arte e cultura da América Latina: vol. VII, n. 2. São Paulo: Cesa/ Fapesp, 2000.

______.A dramaturgia circense: conformação, persistência e transformações. Tese (Doutorado em Artes) - Campinas: Instituto de Artes/Unicamp, 2009.

SILVA, Ermínia. O circo: sua arte e seus saberes – o circo no Brasil do fi nal do Século XIX a meados do XX. Dissertação (Mestrado em História) - Campinas: IFCH/Unicamp, 1996.

______. As múltiplas linguagens da teatralidade circense – Benjamim de Oliveira e o Circo-Teatro no Brasil no fi nal do século XIX e início do XX. Tese (Doutorado em História) - Campinas: IFCH/Unicamp, 2003.

TORRES, Antônio. O Circo no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1998.

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Maiakovski – Arte – Revoluçãopor Mario Fernando Bolognesi6

Resumo: As vanguardas russas e Maiakovski acirraram as relações da arte com a revolução. Porém, sucumbiram diante do realismo e da mimese. A ortodoxia de tal momento recebeu críticas das mais variadas correntes de pensamento. Herbert Marcuse assumiu essa tarefa e ampliou o debate das artes no tocante à transformação social.

Abstract: The Russian avant-gardes and Mayakovski incited the relations of art and with revolution. However, succumbed before the realism and mimesis. The orthodoxy of such moment received criticism from several schools of thought. Herbert Marcuse took over this job and extended the debate of arts in respect to social change.

Palavras-chave: Maiakovski, revolução, realismo, Marcuse.

Keywords: Mayakovsky, revolution, realism, Marcuse.

1.

Nos dias atuais, a discussão das relações das artes com a revolução está fora de circulação, pelo menos nos parâmetros consolidados pelo debate estético marxista do século XX. Ela perdeu a novidade porque, de um lado, “revolução” é palavra e ato que fugiram da agenda cotidiana de discussões e preocupações; de outro, já não se espera da arte a tarefa messiânica de mudar o mundo (não diretamente, ao menos).

Não se pretende, por outro lado, uma análise teórica das artes e de suas várias poéticas inseridas especifi camente nos momentos revolucionários. Tratadas em si mesmas como obras acabadas em um determinado passado, com ou sem conexões com a história que as gerou, as ideias e ideais debatidos redundariam em anulação da validade do tema para os dias atuais. O passado deve dialogar com o presente e o retorno a ele só tem sentido quando desperta pertinências a serem debatidas na atualidade. 6 Professor ti tular do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Insti tuto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí fi co e Tecnológico (CNPq).

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O tema será tratado e embasado em uma experiência artística particular, que despertou a tomada de consciência diante da situação da existência humana sob o capitalismo. O momento é o da Rússia pré e pós-revolucionária, nas vozes do cubo-futurismo e de Vladimir Maiakovski. A tomada de consciência, por sua vez, alimenta a discussão acerca do tema do engajamento das artes e dos artistas com a revolução. Por outra via, ao invés de se perguntar, exclusivamente, acerca do papel das artes e dos artistas para e na revolução, pode-se igualmente debater, com signifi cativo ganho, a natureza revolucionária da arte.

2.

A Rússia, no início do século XX, viveu período dos mais conturbados. A iniciativa de uma industrialização rápida, que visava à sua inserção no ambiente europeu, provocou, como era de se esperar, um acirramento das desavenças e distâncias sociais. Logo na abertura do século, em 1905, a Rússia presenciou uma rebelião sem igual, liderada por um padre, que foi duramente reprimida. A repressão continuou nos anos seguintes.

Foto de Bob Sousa. Cia. Antropofágica - elenco do espetáculo-intervenção Karroça Antropofágica.

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Em meio a esse ambiente, no campo das artes (particularmente na literatura e nas artes plásticas), prevalecia o simbolismo com sua estética do etéreo, uma espécie de sublimação do real em nome da fugacidade poética. No teatro, o naturalismo psicológico levado adiante por Vladimir Dântchenko e Constantin Stanislavski, no Teatro de Arte de Moscou, alcançava seus mais altos voos. A voz dominante era a do indivíduo cindido diante do esfacelamento das condições reais da existência. Metáfora privilegiada dessa situação pode ser tomada em Anton Tchékhov e a impotência de suas personagens diante da nova ordem que desfazia, em nome da produtividade da terra e sem maiores sentimentos, os “jardins das cerejeiras” cultuados por longo tempo.

Mas o aparente predomínio dessas correntes artísticas veio a ser duramente abalado com a recepção (e releitura) das novas ondas artísticas, vindas especialmente de Paris. As ideias cubistas alimentaram a poética dos cubo-futuristas, que surgiram no cenário russo repudiando imediatamente a poesia simbolista e, extensivamente, toda a tradição cultural. Em nome do ritmo frenético das cidades, com suas luzes e rodas a toda velocidade, os temas urbanos atuais realçaram a condenação do passado. O futuro era o presente, melhorado.

O frenesi cubo-futurista, além de alimentar uma poética particular, também determinou uma certa postura existencial. O furor do momento estava em perfeita sintonia com o ideal do choque, ingrediente indispensável às vanguardas. O cubo-futurismo almejava uma língua própria, a chamada “língua transracional”, voltada à ação pública, com ritmo superior à velocidade. A poesia, portanto, estava envolvida e comprometida com a vida urbana, em uma espécie de simbiose cujos limites são quase invisíveis. Nesse aspecto, o poeta se compara a um operário e o ofício do artista equivale ao do trabalhador e não ao do ser excepcional que é possuído pelo furor da inspiração. A poesia, portanto, não celebra os estados de alma, mas se transforma em crítica contumaz do visível.

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O trabalho poético, para os cubo-futuristas, deveria ser similar ao da ciência, com igual rigor. Mas deveria também participar da vida social divulgando uma maneira nova de viver, embalado pelos ideais utópicos da mudança social, largamente divulgados pelos artistas e intelectuais russos envolvidos com a teoria marxista da revolução. Roman Jakobson denominou esse momento de “Revolução do Espírito” (1973: 81).

Havia em Maiakovski (e nos cubo-futuristas) um descontentamento com o caráter mimético da arte, tal como empregado pelos naturalistas. Contrariamente ao imitar do real, o intuito maior era o de abstração do real. Exemplo deste intuito pode ser tomado na primeira obra teatral de Maiakovski, intitulada Vladimir Maiakovski: uma tragédia, de 1913. Nela, apesar da infl uência simbolista, tem-se encenado o relacionamento dos operários com as máquinas, produtoras de coisas e também de deformidades. Ou seja, a obra mencionada deixa entrever a conscientização acerca do processo reifi cante do trabalho, abstratamente tratado a partir de alegorias em um jogo duplo entre a humanização das coisas e a coisifi cação dos homens.

Eis um trecho da obra:Velho Com Gatos Negros e Magros: Vocês me entendem? Os objetos

devem ser destruídos! Eu estava certo ao ver o inimigo em seus carinhos.

Homem Com Cara Longa e Macilenta: Não seria melhor amarmos os objetos? Talvez os objetos tenham almas diferentes.

Homem Sem Mão: Há muitos objetos costurados ao revés. Seus corações não se enraivecem nem prestam ouvidos ao ódio.

Homem Com Cara Longa e Macilenta (Concordando, entusiasmado): Onde, no homem, talharam a boca, muitos objetos levam uma orelha anexa.

O próprio nome das personagens deixa entrever a consciência da mutilação do homem. A consciência, nesse caso, ultrapassa os limites do espírito objetivo e alcança o próprio corpo. É, pois, uma consciência corporal.

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3.

Maiakovski e os futuristas estavam imbuídos de um pensamento marxista plural, que até a década de 1920 – portanto após a Revolução de 1917 – tinha lugar para o novo e o diverso. No entanto, o percurso não se sustentou, e com o império do realismo socialista, defl agrado a partir de 1934, sob a batuta do “maestro” Andrei Jdanov, com o necessário consentimento de Joseph Stalin, o manipulador dos cordéis de então, o quadro se inverteu. Imediatamente, Maiakovski e seus colegas, inclusive Vsevolod Meyerhold, seu grande encenador, foram alçados ao calabouço, à vala comum da “arte burguesa decadente”. O reducionismo mecanicista terminou imperando.

Algumas teses propostas por autores marxistas terminaram encontrando terreno fértil na Rússia stalinista. Elas, é claro, partiram de algumas observações de Karl Marx e Friedrich Engels, mas ganharam tal amplitude extremista que se desviaram completamente do intento dialético dos autores.

A primeira dessas teses pode ser formulada nos seguintes termos: há uma relação de determinação entre a arte e as condições materiais da produção social, entre a arte e o conjunto das relações de produção.

O determinismo está explícito em Marx e Engels, em obras como A ideologia alemã e Para a crítica da economia política. No entanto, nelas há a constatação geral e abstrata segundo a qual a consciência e suas diversas formas são determinadas por situações econômicas e sociais explícitas. É a relação entre a infraestrutura e a superestrutura, que se estende aos campos da política, das regras jurídicas, das religiões, da fi losofi a e das artes.

O determinismo mecanicista do jdanovismo fez o favor de entender a tese marxista ao pé da letra. Com isso, criou uma espécie de imperativo estético, segundo o qual as relações sociais de produção devem estar representadas na obra literária. Sem maiores problematizações, admitiu que a arte não é autônoma e que toda a mudança na infraestrutura implica mudanças na superestrutura. Em uma lógica obliterada, os ideólogos de então raciocinaram que

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a Rússia havia experimentado uma revolução e, portanto, o novo período deveria colocar no esquecimento toda a arte do passado, em nome de uma nova arte. Essa nova arte deveria ser a fi el porta-voz da nova classe no poder e, assim, solidifi car uma segunda tese de uma pretensa estética marxista, tese esta que admite a existência de laços determinados entre arte e classe social. Nesse sentido, a arte não deixaria de ser uma manifestação de consciência de classe. Ou seja, ela se resume e se restringe a ser ideologia. A autêntica arte, naqueles tempos na Rússia, passaria a ser a da classe proletária, que alcançou a universalidade através da revolução.

Em consequência, política e estética, conteúdo revolucionário e qualidade artística devem coincidir e o artista tem o dever de articular e exprimir os interesses e as necessidades dos proletários. A contrapartida desse pensamento é a seguinte: a classe decadente produz arte decadente.

No campo explícito de uma ordem estética, outra consequência advinda do radicalismo mecanicista diz respeito à eleição do realismo como forma artística que corresponde mais estreitamente às novas relações sociais, vindo a ser, portanto, a forma de arte “correta”. Para tanto, retorna à cena o ideal da mimese como suporte máximo do fazer artístico, conceito este que havia sido descartado pelos movimentos de vanguarda das décadas anteriores, a partir do Cubismo. A proibição e a perseguição, além das razões políticas, eram também justifi cadas do ponto de vista estético.

4.

A ortodoxia dominante, sob o império jdanovista, prevê que a interpretação da qualidade e da verdade de uma obra de arte se dá em relação à totalidade das relações de produção. Esta interpretação considera que a obra de arte representa de modo mais ou menos exato os interesses e a concepção de mundo de classes particulares, no caso em questão, do proletariado agora no poder.

Contrariamente à ortodoxia (aqui seguimos os passos de Herbert Marcuse em seu livro A dimensão estética), pode-se

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admitir que é na arte ela mesma, na forma estética como tal, que se encontra o potencial político e revolucionário da arte. Ao contrário do dogma, a arte goza em larga medida de autonomia, apesar de sua determinação. Mais ainda, para ser considerada como tal, ela deve alcançar um caráter universal. Nesse sentido, Os miseráveis, de Victor Hugo, ou as personagens mutiladas, de Maiakovski, não sofrem somente da injustiça de uma classe social particular: elas são vítimas da desumanidade de todos os tempos e representam a humanidade como tal. O universal nasce do particular e dele se destaca. A arte é fi lha das relações sociais, mas se opõe a elas e ao mesmo tempo as transcende. Em outras palavras, a arte subverte a consciência dominante e a experiência ordinária.

Nesses termos, antes de se perguntar acerca da função da arte diante da revolução, pode-se (ou deve-se) questionar o seu caráter revolucionário interno. De imediato, dois sentidos podem ser admitidos. O primeiro é um tanto quanto intrínseco ao próprio fazer e admite que a arte possa ser revolucionária desde que represente uma mudança radical de estilo e de técnica artística. Essa mudança pode ser fruto de uma vanguarda que anuncia e refl ete as mudanças substanciais na sociedade em geral. Foi o caso das vanguardas russas que denunciaram o caráter destrutivo do capitalismo monopolista e apontaram novos objetivos para uma mudança radical.

No entanto, uma defi nição puramente técnica da arte revolucionária, como é o caso desta, não diz muita coisa acerca da qualidade da obra e menos ainda sobre sua autenticidade e de sua verdade. Portanto, um segundo sentido se faz anunciar: uma obra de arte é revolucionária quando manifesta a falta de liberdade e as forças de rebelião existentes e possíveis. Ela abre horizontes e se coloca ao lado da liberdade. De novo, os cubo-futuristas, em geral, e Maiakovski, em particular, podem ser lembrados. Eles subverteram a percepção e a compreensão do mundo e testemunharam contra a realidade vivida. Suas obras são dependentes das condições históricas específi cas em que foram criadas, mas apontaram para o futuro ao explicitarem uma possível libertação.

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Mas a realidade – ou o conteúdo, como se diz – aparece nas obras de forma distanciada e mediata. A verdade da arte termina sendo aquilo que a Rússia era, tal como aparece nas obras do período. Isto implica admitir que a arte não seja revolucionária porque foi ou é escrita por um escritor que adotou os princípios da revolução, ou por quem pertence à classe trabalhadora. Ela é revolucionária porque o conteúdo se torna forma. Portanto, em outras palavras, o potencial político da arte reside unicamente em sua dimensão estética. Sua relação com o universo social e econômico é inevitavelmente indireta e mediata. Assim, Charles Baudelaire, Fiódor Dostoievski ou Jorge Andrade têm tanto potencial subversivo como as peças didáticas de Bertolt Brecht. Suas obras agem na subjetividade e, ao contrário do que apregoa o estreito materialismo, a subjetividade tem seu potencial revolucionário, pois a necessidade de uma mudança radical deve ter suas raízes na subjetividade dos indivíduos, em sua inteligência, paixões, pulsões e ideais.

A estética marxista ortodoxa desqualifi ca a subjetividade. Por isso, valoriza o realismo, alçando-o à condição de modelo de arte progressista, ao mesmo tempo que tenta desqualifi car o romantismo, chamando-o de reacionário, e denuncia toda arte das chamadas classes decadentes.

A qualidade da arte reside em seu potencial de denúncia da realidade estabelecida e, ao mesmo tempo, no evocar de imagens da libertação. A arte, portanto, transcende sua determinação social, se emancipa do universo do discurso e do comportamento recebidos e alcança (novamente) o terreno do utópico ao repor a liberdade como objetivo supremo e possível de se realizar. Com isso, ela ultrapassa os limites do mimético e subverte a experiência. A realidade recebida é sublimada e os dados são remodelados conforme as exigências da forma artística.

Ao denunciar o real e repor a liberdade, a arte provoca a “dessublimação” da percepção individual, dos sentimentos, juízos e pensamentos. Invalida as normas e os valores dominantes.

Em outras palavras, a arte não está comprometida com uma

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percepção do mundo que aliena os indivíduos no estrito cumprimento de seus papéis sociais. Ela está comprometida com a emancipação da sensibilidade, da imaginação e da razão. Outro imperativo, então, lhe é dado a enfrentar, justamente o de sua autonomia, que deve ser comprometida com a mudança do mundo e das coisas. Isso não signifi ca que a revolução deva ser um tema necessário. A necessidade de revolução, de transformação, é um a priori da arte. Ela deve responder à angústia do homem e procurar o rompimento com o passado.

A autonomia, então, não se torna absoluta. Há um grau de determinação que permite visualizar a presença do social na arte autônoma. Isto se dá, em primeiro lugar, por meio do material da representação estética. Depois, a sociedade está presente nas possibilidades de luta e de liberação efetivamente disponíveis. E, fi nalmente, a sociedade determina o lugar da arte na divisão do trabalho. Esses são os limites de sua autonomia. A origem social e o universo ideológico da classe à qual pertence não são critérios sufi cientes para medir o caráter progressivo da arte. O caráter progressivo só pode ser dado pela arte ela mesma. A arte não muda o mundo, mas contribui para mudar a consciência dos homens. Eles, sim, podem mudar o mundo.

Referências bibliográfi cas

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Bloco II: O TEATRO DE REVISTA BRASILEIRO

Preconceito e teatro musicalpor Neyde Veneziano7

Resumo: Breves comentários sobre o Teatro Musical Brasileiro, desde a sua chegada ao Brasil até os dias de hoje, quando o teatro tecnológico e melodramático aportou em São Paulo com as megaproduções da Broadway. Pretende-se, aqui, alertar sobre o preconceito que acompanha este gênero musical desde o início de sua carreira de sucesso. Aborda-se, também, a necessidade de formação de libretistas e de especialistas em playwriting, a fi m de que o musical contemporâneo brasileiro e suas personagens sejam dramaturgicamente pensados e construídos entre música e fala, com efi cácia.

Abstract: Brief comments about the Brazilian Musical Theatre since its arrival in Brazil, until today, when technological and melodramatic theater anchors in Sao Paulo with the mega-productions of Broadway. It is intended here, to warn about prejudice that accompanies this musical genre since the beginning of its career of success. This article also alerts about the need to train specialists in playwriting and librettists, so that the Brazilian contemporary musical and its characters become, dramaturgically, designed and built between music and speech, effectively.

Palavras-chave: teatro musical, teatro de revista, preconceito, dramaturgia.

Keywords: musical theater, revue, prejudice, drama.

7 Doutora e Livre Docente pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), professora do Insti tuto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora dos livros Teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções; Não adianta chorar: identi dade do teatro de revista brasileiro... Oba! (Editora Unicamp); A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação (Editora Códex); De pernas para o ar: Teatro de revista em São Paulo (Imprensa Ofi cial do Estado, Coleção Aplauso, 2007) e As grandes vedetes do Brasil (Coleção Aplauso, 2010).

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A pesquisa e o preconceitoIniciei minha pesquisa sobre o teatro de revista no Brasil

durante os anos 1980. Naquela época, havia muito preconceito e o terreno revisteiro representava uma zona obscura (quase proibida) por onde era raro aventurarem-se historiadores e pesquisadores. Interessante lembrar que, na época, os poucos artigos publicados sobre teatro de revista insistiam na tecla do “preconceito”. Gastavam-se páginas e páginas tentando provar que havia arte no teatro de revista. O preconceito vinha de longe. Basta lembrarmos um verso de Arthur Azevedo que, na revista A fantasia, afi rmava: “Há muita arte na Revista Brasileira”. O teatro brasileiro musical era, na época, chamado gênero alegre. Naquele início, a luta contra o preconceito era manifestada nos textos teatrais. Cansados de serem atacados pela crítica, os autores inventavam, amiúde, quadros metalinguísticos reivindicando o direito ao reconhecimento. A defesa sempre conclamava o grande público e se apoiava nos sucessos de

Foto de Bob Sousa. Cia. dos Inventi vos - Aysha Nascimento, no espetáculo Bandido é quem anda em bando.

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bilheteria e aplausos da plateia. Sim, para aqueles artistas pioneiros do século XIX, o público era o juiz. Foi assim que se fi rmou, entre nós, o “gênero alegre”: dedicando ao público, não aos deuses.

O primeiro tipo de teatro musical que aportou no Brasil foi um espetáculo de variedades com números de canto, dança, ginastas e um corpo de baile de lindas francesinhas que levantavam a saia e mostravam as pernas envoltas em justíssimas meias grossas. Quem trouxe foi um empresário chamado Monsieur Arnaud, em 1859. O espetáculo foi apresentado no recém-inaugurado Alcazar Lyrique, um pequeno teatro com formato de café-concerto ou cabaré, chamado de café cantante, que funcionava na Rua da Vala, no centro do Rio de Janeiro. Ali se apresentavam números musicais alegres, populares e divertidos. Nada que desse muito trabalho ao cérebro, mas que trouxesse muita alegria e descontração.

Orfeu no inferno, de Jacques Offenbach, a primeira opereta francesa, estreou em Paris em 1858 e inaugurou uma nova dança: o cancã. Este espetáculo chegou em versão integral ao Alcazar Lyrique, do Rio de Janeiro, em 1865. Durante o espetáculo, os homens (de todas as classes sociais) enlouqueciam com aquelas mulheres, é claro. Machado de Assis fez campanha declarada contra as meias tão justinhas que pareciam que as pernas estavam nuas! Os jornais reclamaram, as senhoras católicas idem, os intelectuais exigiam um teatro sério, nos moldes europeus-inteligentes.

Sem se dar conta das rixas moralizantes e jornalísticas, a plateia brasileira (que tantas vezes queria ser francesa) cantava e assobiava os belos motivos de Offenbach. A elite carioca aplaudia e se divertia elegantemente com o espetáculo francês. A verdadeira sátira da opereta, uma paródia ao mito de Orfeu e Eurídice e à ópera de Christoph Gluck, se perdia, pois era encenada em francês.

Foi então que o ator Francisco Correa Vasques, conhecido como o “rei do riso”, pegou a pena e escreveu a primeira paródia brasileira, baseada na paródia francesa. Foi em 1868 que estreou, no Teatro Fênix Dramática, a opereta-paródia Orfeu na roça, cuja

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autoria é de Vasques. Sucesso estrondoso! Foram mais de cem representações consecutivas. Para a época, um recorde absoluto que roubou todo o público do Alcazar, então conhecido como “o templo da opereta francesa!”

A partir daí, os preconceituosos fi caram ainda mais enfurecidos. Pois se antes havia bailarinas com pernas quase desnudas, pelo menos elas cantavam em francês! Tratava-se de um acontecimento, no mínimo, chic. Agora, a partir de Orfeu na roça, a deusa Diana passou a se chamar Dona Ana e o inferno de Orfeu transformou-se num galinheiro do sítio de Apolo, transformado em político brasileiro.

Foi com esse ar de quem ri de tudo (até de si mesmo...) que começou a se impor o tal jeito brasileiro de fazer teatro musical.

Esses fatos prepararam o fértil terreno brasileiro para o teatro de revista.

E chegou... a Revista!A revista é um gênero fragmentado que se adapta ao país que

a adota. Pode ser francesa, portuguesa, e assim por diante, porque o arcabouço revisteiro é elástico, com espaços para os acontecimentos do cotidiano local, para o desenvolvimento de personagens-tipo de cada país e para a inclusão de músicas nacionais.

O teatro de revista no Brasil, como a opereta, também nasceu francês. Começou como revista de ano, um tipo de teatro musical que passava em revista os principais acontecimentos do ano anterior. No Brasil, as duas primeiras tentativas não deram certo. O público não gostou e a culpa foi colocada no excesso de sátiras políticas. A primeira revista de Arthur Azevedo foi O Rio de Janeiro em 1877. O público aceitou melhor. Mas a crítica e os “cultos” rejeitaram-na.

Em 1884, o grande sucesso foi a revista O mandarim, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio. A força dessa revista estava no texto, na sátira política e no desempenho do cômico brasileiro e, principalmente, nas construções de efeito paródico.

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No fi m do século XIX, as revistas já eram um enorme sucesso. Os palcos desse teatro musical foram responsáveis pela divulgação da música popular brasileira. Mas a crítica e “os cultos” ainda continuavam a rejeitá-lo. Talvez porque esse gênero alegre fosse tão alegre que eles eram incapazes de reconhecer as críticas sociais que estavam implícitas.

A trajetória do gênero conduziu-o para um modelo essencialmente brasileiro. Na década de 1920, o tema “carnaval” insistiu em defi nir a identidade “brasileira” da revista. Criou-se a “revista carnavalesca” que, além do tema, trazia estrutura de enredo própria, conduzida pelo mais carnavalesco dos compère8: Rei Momo.

Ao assumir essa identidade brasileira, o teatro de revista transformou-se, durante um longo período, no gênero que melhor representou a ideia que o Brasil tinha de si: Deus é brasileiro e este é o melhor país que há. E a revista elegeu os signos nacionais: samba, mulher, carnaval e malandragem.

A história conduziu o antigo musical para um período dominado pelo luxo. Walter Pinto, o grande produtor das décadas de 1940 e 1950, criou cenários deslumbrantes. Ficou conhecido como o Ziegfi eld brasileiro e tinha fórmula própria: elenco de primeira; efeitos cênicos moderníssimos (luz negra, palco giratório, cascatas de fumaça, de água), grandes e monumentais apoteoses, além da presença das mais bonitas mulheres do nosso teatro. E se, no início de tudo, queríamos ser Paris, o modelo de musicais, agora, era a Broadway. As sessões eram lotadas. Quase todos gostavam. Alguns reconheciam o kitsch, mas continuavam gostando. Os críticos, como sempre, continuavam a repudiar.

Quando a censura se manifestou, as alusões ao sexo substituíram as alusões políticas. E quando a decadência e o empobrecimento riscaram a revista dos circuitos teatrais, seus antigos procedimentos migraram para zonas periféricas do teatro

8 Compère era uma personagem fi xa das revistas de ano que desempenhava a função de apresentador. Poderia vir disfarçado com outros nomes. Costurava os quadros, compactuava com a plateia e servia, também, como “coringa”. No Brasil, foi chamado de compadre.

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pornô, do teatro-sex, do strip-tease. O preconceito de antes aumentou transformando-se em total desprezo.

Uma nova dramaturgia para musicais brasileirosA nova dramaturgia musical – com personagens mais

elaboradas, enredo, histórias e conteúdos mais complexos – tratou de encontrar uma saída para resolver a questão do desejo brasileiro em unir teatro e música com textos “engajados” e comprometidos com o estado atual. Foi a partir das experiências de Chico Buarque de Hollanda e de Gianfrancesco Guarnieri que deslanchou uma dramaturgia musical capaz de provocar a ira dos censores do regime ditatorial. Por causa de seus conteúdos metaforicamente políticos e comprometidos com a realidade social, o preconceito e a intolerância foram de outra ordem.

Foi a partir de 1965 que a cara do teatro musical brasileiro mudou. Duas experiências fundamentais fi zeram renascer o gosto adormecido do público pelos musicais. No Teatro de Arena de São Paulo, surgiu o musical de resistência com Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967), de Guarnieri e Augusto Boal, com músicas de Edu Lobo. O público mais avisado aplaudiu de pé tais experiências.

Naquele mesmo ano, Chico Buarque de Hollanda fazia sua primeira incursão no teatro ao compor as músicas de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Tratava-se de um espetáculo do TUCA – Grupo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – dirigido por Silnei Siqueira. Além do incrível sucesso no Brasil, o grupo foi o vencedor do Festival International de Théâtre Universitaire de Nancy (França). O ano de 1967 marcou a estreia de Chico Buarque na dramaturgia com Roda viva. Em 1972, em parceria com Ruy Guerra, ocorreu a estreia de Calabar, o elogio à traição. Em 1975, foi a vez de Gota d´água, adaptação de Medeia, de Eurípedes, transportada para um conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Em 1977, Chico Buarque lançou Os saltimbancos, uma montagem infanto-juvenil, que era uma adaptação da fábula Os músicos de Bremen, dos irmãos

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Grimm. A Ópera do malandro (1986) foi dirigida pela primeira vez por Luís Antônio Martinez Corrêa e era baseada na Ópera do mendigo (1728), de John Gay e na Ópera dos três vinténs (1928), de Bertolt Brecht. O enredo aprofundava a característica fi gura do malandro da Lapa carioca e, em meio a ótimas canções, desenrolava-se a história. Chico Buarque ainda compôs as músicas de O rei de Ramos, de Dias Gomes e Ferreira Goulart (1982).

A integração entre melodia e poesia estava desvendada. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se o musical biográfi co, de outros autores. Todas estas montagens brasileiras foram muito bem recebidas.

A Broadway paulistana (brasileira?)Partindo dos musicais biográfi cos e das traduções

norte-americanas, a história do musical no Brasil mudou, novamente, o perfi l. A montagem de Rent, em 1999, foi o marco que introduziu o Brasil na rota milionária do teatro musical. Ao mesmo tempo, criaram-se novas leis de incentivo que facilitaram a realização de superproduções. Acelerou-se a profi ssionalização de atores (algumas escolas particulares conseguiram oferecer cursos profi ssionalizantes com estágio na própria Broadway).

O fenômeno da consolidação do profi ssionalismo e de “como fazer” teatro musical se deve a um conjunto de novos fatores e talentos que impulsionaram e possibilitaram a evolução do cenário musical teatral brasileiro.

Como no tempo do Vasques, o público precisa de traduções e de adaptações. Dessa vez, elas surgiram não como paródias, mas com licenças poéticas que muitas vezes foram preconceituosamente rejeitadas por ouvidos puristas.

Dessa vez, longe do teatro de revista ou das follies, caminhamos para uma espécie de melodrama musical, que é a base textual da ópera contemporânea. O público prestigia mais do que nunca. Semelhante à era do teatro das revistas, organizam-se fãs clubes, agora em forma de comunidades virtuais, para aplaudir suas

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divas e se deleitarem com espetáculos espetaculares cada vez mais tecnológicos.

Paralelamente, os nacionalistas reclamam da invasão norte-americana. Preconceito?

Infelizmente, não temos formação especializada de playwriting. Nem de libretistas capazes de pensar o argumento e a história em música e texto. Os atores-cantores-bailarinos ainda não vêm da Universidade. Eles emergem das poucas, mas efi cientíssimas, escolas técnicas. Sabem sapatear, cantar e (muitos deles) sabem interpretar.

A possibilidade de unir “o acabamento e a tecnologia importados” aos estudos sobre o teatro musical brasileiro permite-nos pensar que é possível o desenvolvimento de pesquisas e criações de espetáculos nacionais nada artesanais, com o mesmo padrão de acabamento destes novos musicais americanos. Sem preconceitos. Com todos os procedimentos que já dominamos no Brasil, certamente em futuro muito próximo, faremos a mão inversa. Exportaremos musicais brasileiros da mesma forma que, em tempos passados, fi zemos com o teatro de revista.

Sem saudosismos de um teatro que era ingênuo, mas não era ignorante, poderemos pensar em uma nova dramaturgia musical.

Enquanto isso permanece um velado preconceito.

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Apesar do “passamento” tantas vezes anunciado, a resistência de uma forma teatral

(ou) As sobrevidas do teatro de revista brasileiro

por Alexandre Mate9

Resumo: O texto apresenta algumas articulações entre o desconhecimento e os infi ndos preconceitos acerca do teatro de revista brasileiro. A forma revisteira – em sua totalidade – não consta nas panorâmicas de história do teatro brasileiro, decorrendo daí uma repetição, sobretudo de natureza ideológica, contra o gênero e seus artistas.

Abstract: This paper presents some connections between the infi nite number of ignorance and prejudice about the Brazilian revue. The revue – in its entirety – is not shown in the panoramic history of the Brazilian theater, following from there a repetition, especially of an ideological nature, against the genre and its artists.

Palavras-chave: teatro de revista, teatro e preconceito, estética e exclusão, teatro e ideologia.

Keywords: revue, theater and prejudice, exclusion and aesthetics, drama and ideology.

Os únicos espetáculos teatrais que a gente ainda pode frequentar no Brasil são o circo e a revista. Só nestes ainda têm criação. Não é que os poetas autores de tais revistas e pantomimas saibam o que é criação ou conservem alguma tradição efetivamente nacional, porém as próprias circunstâncias da liberdade sem restrições e da vagueza desses gêneros dramáticos permite aos criadores deles as maiores extravagâncias. Criam por isso sem leis nem tradições importadas, criam movidos pelas necessidades artísticas do momento e do gênero, pelo interesse de agradar e pelas determinações inconscientes da própria personalidade. Tudo isso são imposições que levam à originalidade verdadeira e à criação exata. As extravagâncias maiores se justifi cam pela simbologia que é caráter absolutamente indispensável de qualquer fi cção.

9 Professor doutor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Insti tuto de Artes e do curso de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), pesquisador teatral e integrante dos Núcleos Nacional e Paulistano de Pesquisadores de Teatro de Rua.

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Nascem naturalmente, daquela elevada “lógica do absurdo” que admite a Ilíada, os Nibelungos, a comédia Hamlet e Dom Quixote. Na pantomima elas estão todas admitidas de antemão, defendidas pela precisão imperiosa do cômico antirrealista e do agradável. São da própria essência do prazer desinteressado e da fi cção. Arte pois.

Do Brasil ao far west – Piolin. Mário de Andrade (assinando Pau-d’Alho).

Como é do conhecimento de quem está envolvido com a linguagem teatral — especialista, militante, amador ou pesquisador —, a crítica teatral brasileira (dita acadêmica) teve poucas oportunidades e interesse de se dedicar à pesquisa relativa ao teatro popular e a suas formas. Talvez, entre todos os motivos que pudessem ser arrolados nesse sentido, o ideológico e o classista sejam os mais determinantes, embora sempre camufl ados por inúmeras peripécias estético-gramatológicas e por uma abstrata e canonizada qualidade. Desse modo, no Brasil, há um número infi nitamente signifi cativo de produções teatrais ligadas ao popular, mas que não fi gura em nenhuma das raras e panorâmicas históricas dedicadas à linguagem teatral. À luz disso, pode-se afi rmar que as experiências e os sujeitos ligados ao gênero foram subsumidos da história.

Acessar o pouco material existente, além de trabalho detetivesco às parcas fontes referenciais10, exigiria também, tendo em vista os mais variados preconceitos a cercar o gênero, como recomenda Walter Benjamin, uma leitura a contrapelo.

Articulada ao descaso e à escassez de fontes documentais, nas raras oportunidades em que menções são feitas às produções revisteiras, invariavelmente o tom desqualifi cante refere-se a certo 10 Especifi camente, na cidade de São Paulo, talvez o único acervo signifi cati vo que contenha as obras teatrais apresentadas na cidade, sem esquadrinhamentos quanto às suas supostas qualidades, seja o Arquivo Miroel Silveira, da biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tomei contato com esse acervo, literalmente raptado pelo professor Miroel Silveira de algum corredor do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda Polícia (DEIP-SP) na mencionada biblioteca. Em tese, o acervo consiste em cópias de textos teatrais enviados pelos arti stas e produtores teatrais ao anti go órgão de censura, que cobre o período do governo de Arthur Bernardes até a criação da Nova República, quando a censura foi exti nta. Na década de 1990, quando pesquisava exatamente os espetáculos de revista apresentados na cidade de São Paulo, de 1926 a 1946, tomei contato com o acervo do arquivo e surpreendi-me com a quanti dade de espetáculos revisteiros apresentados na cidade de São Paulo. A despeito de a totalidade do material de história do teatro rejeitar o gênero teatral ou afi rmar que o “fenômeno revisteiro” fora circunscrito à cidade do Rio de Janeiro, consegui ter acesso a mais de 400 peças efeti vamente censuradas e montadas na cidade.

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“mal gosto intrínseco ao gênero”, de seus artistas e dos espectadores que prestigiaram tais subprodutos artísticos.11 A argumentação mais recorrente (utilizada largamente pelos críticos e teóricos de plantão) passa por questões como rebaixamentos e escatologias verbais, ambiguidades e insinuações sexuais, apologias gratuitas ao baixo ventre ou ao grotesco, incitação a comportamentos transgressivos ao bom gosto e à moral vigentes etc. Decorrente de certo apartheid estético, no qual invariavelmente o artista brasileiro é comparado a algum europeu ou norte-americano, a inferiorização, apresentada de modo quase natural, não se refere ao contexto, mas toma a obra em si, sem aterramentos históricos. Para ilustrar essas observações e fugir das generalizações, deixando claras as fronteiras antepostas e nada naturais na análise estética, algumas afi rmações concretas podem ajudar a entender o que cerca e quase impede o acesso a determinadas obras e experiências. Alfredo Mesquita, ao comentar parte do teatro de seu tempo, afi rma:

Quanto ao teatro profi ssional, não se pode dizer que havia em São Paulo, pois companhias da época, quase todas itinerantes, tinham seu centro no Rio. Além disso, dentro dessas companhias grassava a pobreza e a miséria. A melhor delas foi a de Leopoldo Fróes.

[...] Era um teatro pobre, completamente sem pretensão alguma. O teatro tipicamente brasileiro, dentro da linha do teatro de costumes de Martins Pena, assim como no teatro engraçado e autêntico de Arthur Azevedo, era bom e bastante adequado aos atores nacionais. Além de ser um teatro barato, destinado a um público pequeno-burguês, possuía uma unidade, pois os atores já conheciam o que estavam fazendo. Mas esse teatro não era levado a sério pela intelectualidade, dado seu caráter moralista e familiar. [...] Diferente em nível de Leopoldo Fróes, e cômico excelente, Procópio tinha o mesmo gênero, sempre os mesmos truques, sempre um pouco canastrão e sem a menor consciência profi ssional. Logo que ele saiu da companhia de Oduvaldo Vianna e Abigail Maia criou uma própria, com montagens paupérrimas, atrizes horrorosas, na base da art déco cabocla, onde só se salvava ele. [...] a classe teatral daquele tempo era marginalizada e se sentia inferiorizada.

11 Na revista Cultura Crí-ti -ca, 3. Revista Cultural da Apropuc (São Paulo: Apropuc, 1o semestre de 2006) consta o texto de minha autoria – Peripécias de certa revista teatral brasileira: da críti ca risível das idiossincrasias dos poderosos ao umbigo da vedete – em que apresento alguns desses comentários. Disponível em: <htt p://www.apropucsp.org.br/ed_ante_rcc.htm>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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[...] Os outros atores que chegaram a trabalhar com Procópio [...] eu achava péssimos: Átila de Moraes, Delorges Caminha, Palmerim e outros. [...]

Jaime Costa, outro da época, vi muito pouco e jamais gostei como ator, era vulgar e primário. Eu o vi mais tarde, no Rio, em A morte do caixeiro viajante, um espetáculo péssimo, todo errado. Dulcina era de um grande mau gosto. Depois de se casar com Odilon, talvez o pior dos piores, a lástima da lástima, continuou com seus papéis de mocinha levada da breca. [...] Outra companhia além da de Dulcina, era a do Raul Roulien e Laura Suarez. [...] Em seguida, havia a última expressão do teatro nacional: a pornográfi ca e reles Dercy Gonçalves. [...]

Se o teatro de comédia daquele tempo era pobre, o de revista então era miserável. As girls eram lamentáveis, coitadas. Todas e sem exceção tinham sinais de injeção nas coxas, cicatrizes de cesarianas, manchas roxas de pancada provavelmente. [...] Os sketches eram pornográfi cos, as piadas sujas e o público se desfazia em gargalhadas. (MESQUITA, 1977: 18-24)

Alfredo Mesquita poderia não apreciar certas formas e experiências teatrais e fazer-lhes ressalvas. Entretanto, a adjetivação pesada aponta o preconceito generalista “incrustado nas entranhas” do intelectual-artista. Do mesmo modo como para datas e períodos, o conceito de classe não é coisa nem ideia. Alfredo Mesquita regula sua apreensão estética por embreantes de um primado classista. A respeito desse tipo de procedimento ou olhar em que a capacidade avaliativa esbarra no desclassifi catório, lembra Edward Thompson que a classe acontece quando alguns homens:

[...] como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens, cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente.” (1978: 10)

Ainda de acordo com o historiador, o conceito classe compreende um fenômeno histórico:

[...] que unifi ca uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno HISTÓRICO. Não vejo a classe como uma “estrutura“, nem

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mesmo como “categoria“, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja evidência pode ser discutida) nas relações humanas. (THOMPSON, I978: 78)

Por intermédio de estilo mais elegante e ponderado, sem deixar de ser contundente – e também lamentar-se, inconformadamente, pelo que percebe quanto ao gosto do público médio brasileiro –, Decio de Almeida Prado, ao comentar sobre o trabalho de uma das atrizes mais atacadas por Alfredo Mesquita, afi rma, acerca da montagem de A dama das Camélias apresentada pela atriz-comediante Dercy Gonçalves:

Como fenômeno teatral, o êxito de Dercy, ou de Alda Garrido, ou de Oscarito, são indícios do desequilíbrio provocado pelo crescimento do nosso teatro. Passamos abruptamente demais, talvez, das “chanchadas” nacionais ao repertório clássico, e o público parece conservar, secreta ou confessadamente, uma certa nostalgia da graça simples de outrora. Fingimos que adoramos as comédias francesas, porém o que faz rir de fato uma plateia brasileira, mas rir de perder o fôlego, é algo intraduzível, incompreensível em qualquer outra língua e qualquer outro teatro, algo de muito mais elementar e rudimentar do que a graça europeia. Signifi cativo, a esse propósito, é a circunstância de que as estreias de Dercy são as que atraem maior número de atores de outras companhias, inclusive das companhias jovens, que afetam só dar valor ao grande teatro. Peças de vanguarda, companhias estrangeiras, tudo isso só atinge de forma superfi cial, um tanto da boca para fora. Mas basta Dercy aparecer em cena, ei-los positivamente transportados, divertindo-se como nunca jamais haviam sonhado. (PRADO, apud ARÊAS, 1990: 85)

Nos discursos de Alfredo Mesquita e de Decio de Almeida Prado, além dos aspectos mencionados, existe um desconforto muito grande quanto aos expedientes pressupostos pela troca de experiência de certo teatro popular. Decio de Almeida Prado, grande mestre das palavras, refere-se reticentemente a isso com: “[...] algo intraduzível, incompreensível em qualquer outra língua e qualquer outro teatro, algo de muito mais elementar e rudimentar [...].” Além de o crítico pensar o teatro como manifestação e depuração de certo espírito, concebe-o como missão civilizatória. Esse mal-estar, portanto, passa pelo estético, mas esbarra fundamentalmente, vale a insistência, nos escaninhos de classe.

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Diversos têm sido os alertas dos mais variados pensadores, segundo os quais, no mundo da cultura, não se lê apenas uma obra, mas lê-se a obra e as tantas leituras dela já feitas. Desse modo, se as únicas leituras de que dispõe um leitor, em universo restrito, apresentam a obra a partir desses pressupostos (ou como Roberto Schwarz aponta, em vários dos seus textos, como o “das ideias fora do lugar”), evidentemente, embora jamais naturalmente, o teatro de revista continuará a ser encarado, no máximo, como subproduto, como obra sem nenhuma elaboração, de caráter apelativo, folclórica... Claro que diversas obras podem ser categorizadas no conjunto de adjetivos; do mesmo modo, o drama também poderá sê-lo. Independente de fi liações estéticas ou de gênero, como sabemos todos, há obras que têm qualidade e outras, não. Não são categorias a priori que determinam a qualidade do que quer que seja.

À luz do exposto, e como tudo o mais na vida, os conceitos precisam ser retomados, desopacizados, mergulhados em seus contextos. Caso não se promova essa tarefa, tudo vira pré-conceito. Desse modo, na condição de rótulo, a confortabilidade pelo “conhecido e legitimado” não intenta uma relação, mas uma sujeição ideológica, cuja dialética pressupõe a tomada do sujeito como objeto e o objeto na condição de sujeito.

Em O 18 Brumário, Karl Marx (1974) afi rma que o caráter trágico dos acontecimentos, ao serem retomados, transformam-se em farsa. Não apenas na História, mas também no âmbito da estética é importante não perder de vista essa afi rmação.

Para concluir, mostrando a força da criação – que pode transformar a farsa em sátira –, premida pela irreverência, iconoclastia, ludicidade e provocação de grande parte da produção revisteira no Brasil, “convoco” Lamartine Babo e a letra de sua deliciosa Canção pra inglês ver, que acabou inserida na revista de mesmo nome, de Freire Jr. e Luís Iglésias, apresentada em 1931.

I love youForget sclaineMaine ItapiruMorguett fi ve Underwood

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I Shellno bond Silva ManoelManoel, Manoel...I love you

To have Steven via CatumbiIndependence lá do ParaguaiStudbaker Jaceguai!

Yes, my glass Salada de alface

Yes, my glass Salada de alface Fly Tox my ‘till..Standard Oil.. Forget not meOff!...

I love youAbacaxi, whisky of chuchu...Malacacheta...

Independence Day...No street-fl esh me estrepei...Elixir de inhame reclame de andaime

Elixir de inhame reclame de andaimeMon Paris je t’aime..Sorvete de crememy girl good nightOi!Double fi ght...Isto parece uma canção de OesteCoisas horríveis lá do far-westDo Thomas Meighan com manteiga.

My sandwich! Eu nunca fui Paulo EscrichMeu nome é Lasky and ClaudJohn Philippe Canaud

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Light and Power& Companhia Limitada...I love youThe boy scott avecboi zebu...Lawrence Tibett com feijão tututrem de cozinha não é trem azul!... (PAIVA, 1991: 365-67).

Referências bibliográfi cas

ADORNO, Theodor. Minima moralia. São Paulo: Ática, 1992.

ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história, In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

MATE, Alexandre. Peripécias de certa revista teatral brasileira: da crítica risível das idiossincrasias dos poderosos ao umbigo da vedete, In: Cultura Crí-ti-ca, 3. Revista Cultural da Apropuc. São Paulo: Apropuc, 1. Disponível em: <http://www.apropucsp.org.br/ed_ante_rcc.htm>. Acesso em: 16 fev. 2012.

MESQUITA, Alfredo et al. Depoimentos II. Rio de Janeiro: MEC/ DAC/ FUNARTE/ SNT, 1977.

PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Viva o rebolado!: vida e morte do teatro de revista brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. (3 vol.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Relatos de uma atriz-cantora pela forma revisteirapor Carol Bezerra12

Resumo: O texto apresenta um relato sobre algumas participações minhas como atriz, cantora e produtora em espetáculos cênico-musicais com base nas pesquisas sobre teatro de revista realizadas desde 1999.

Abstract: This text presents a description about some of my experiences as an actress, singer and producer in Brazilian shows and musicals based on researches concerning the Brazilian revue theatre since 1999.

Palavras-chave: teatro musical, teatro de revista, preconceito.

Keywords: musical theater, revue, prejudice.

O teatro de revista, segundo Roberto Ruiz (1988), ainda não teve na historiografi a ofi cial o enfoque adequado à sua real importância. De acordo com o primeiro importante historiador do gênero no Brasil: “Só a perspectiva do tempo irá contribuir, lentamente, para a melhor compreensão de seu signifi cado e valor, no contexto das manifestações artísticas ocorridas no país” (RUIZ, 1988: 15). E, ainda de acordo com o autor, “[...] a Revista possuía crítica política sufi ciente para incomodar muita gente” (idem: 15).

É assustador como a falta de informação e o pensamento preconceituoso gênero perdura até hoje, não só no meio em relação ao acadêmico – tendo em vista o pequeno número de publicações lançadas pelos sujeitos institucionais –, como na quase totalidade dos profi ssionais ligados ao segmento musical, dito profi ssional. É impressionante o número de colegas de trabalho absolutamente “fi ssurados” com o surgimento de uma suposta e caipira Broadway Brasileira do século XXI. Essa suposição, fundamentada em total 12 Licenciada em artes, com habilitação em cênicas e música, pelo Insti tuto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), arte-educadora na área de musicalização, cantora e atriz. Parti cipa de shows, de musicais brasileiros e de cinema no eixo Rio-São Paulo, com destaque para Pátria armada, de Rodrigo Pitt a e Leonardo Nett o; Divina Elizeth, de João Falcão; Tom & Vinícius, direção de Daniel Herz; Grandes pequeninos, de Jair Oliveira (indicação ao prêmio FEMSA de melhor atriz coadjuvante), e o longa-metragem Noel: poeta da Vila, de Ricardo Van Steen.

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Foto de Bob Sousa. Brava Cia. Cris Lima, Débora Torres, Henrique Alonso, Luciana Gabriel e Sérgio Carozzi no espetáculo Corinthians, meu amor.

desconhecimento histórico, manifesta certo “torcicolo cultural”, como mencionado por intelectuais de respeito, dentre os quais o professor Antonio Candido. Entretanto, não se trata, em um primeiro momento, de criticar indistintamente quem quer que seja, e sim, como já mencionado, construir uma discussão sobre a falta de informação pela não existência de materiais que apresentem a riquíssima experiência musical levada à cena por intermédio do teatro de revista, que é, à luz do exposto e antes de qualquer invasão pseudo-americana, a nossa maior identidade no concernente ao gênero teatro musical.

Comentam historiadores e pesquisadores da forma (Roberto Ruiz, Neyde Veneziano, Cavalcanti...) que muitos daqueles que sabem da existência da revista atêm-se – de modo igualmente equivocado, posto que parcial – quase exclusivamente à existência das vedetes e do momento de declínio do gênero. É claro que a partir de determinado momento histórico, principalmente na experiência

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brasileira durante a década de 1930, as vedetes passaram a se constituir em grande “chamariz” de parte signifi cativa das obras levadas à cena. Getúlio Vargas adorava as vedetes, mas, sobretudo com a criação do Estado Novo (1937), não admitia nenhuma crítica política ao seu governo ou à sua pessoa.

Este fato histórico pode ser evocado como contundência de as vedetes ganharem uma conotação emblemática com relação à forma revisteira. E, não obstante, lê-se sobre o declínio do gênero justifi cado por suposta falta de “qualidade” das produções, ignorando-se completamente os fatores políticos e sociais que levaram não só a revista, mas os artistas que participaram dela, à descaracterização, ao descaso, à falta de estrutura e ao esquecimento.

Dentre vários aspectos absolutamente importantes trazidos pelo gênero, pretende-se aqui destacar o teatro de revista como divulgador da rica musicalidade brasileira caracterizando-se, mesmo, em celeiro dos maiores e mais completos artistas que o Brasil já teve. O conhecimento e a paixão pela revista, posso referir-me a isso deste modo, iniciou-se ainda no processo de graduação, ao tomar contato e aprofundar determinadas questões por meio de um projeto de iniciação científi ca cujo foco era fundamentalmente estudar músicas e dramaturgia de dois dos maiores sucessos da década de 1930: Guerra ao mosquito, de Marques Porto e Luiz Peixoto e Da favela ao Catete, de Freire Júnior. Todo o material reunido com a pesquisa e a continuidade dela nos anos seguintes trouxeram-me um conhecimento signifi cativo da história da cultura, da história do espetáculo e de certa mentalidade de sujeitos que, subsumidos da história, não poucas vezes, acreditaram ser pequeno o que realizaram. Por meio disso, pautei meu processo criativo e minha trajetória como artista, lançando mão, sempre que possível, desses achados.

Desde a década de 1990, quando os citados primeiros estudos se deram, até o presente momento (2012), interesso-me pela designação que historicamente aparece pela primeira vez nas revistas, ou seja, a “mulata”, e pelos diversos subgêneros do

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samba. O contato e a experiência com as obras cênico-musicais traziam-me a certeza e o reconhecimento daquela produção e os desafi os propostos para que a forma sobrevivesse. Assim, com vistas a divulgar o gênero e lançar-me aos desafi os solicitados pelo meu trabalho como produtora e intérprete da cena e do canto – e não são poucas as difi culdades interpostas às mencionadas práticas –, venho me envolvendo em shows, espetáculos musicais, eventos em que se discute a produção revisteira e com o cinema. Destas, as experiências mais signifi cativas para exercitar-me nos citados expedientes foram: a recriação da sambista “mulata” Aracy de Almeida, no longa-metragem Noel: poeta da Vila (2006), de Ricardo Van Steen, com direção musical do maestro Luiz Filipe de Lima; a recriação da “mulata-diva” Elizeth Cardoso, uma das maiores cantoras do nosso País, nos musicais Divina Elizeth (2007), de João Falcão, e Tom & Vinícius (2008), com direção de Daniel Herz (os dois com direção musical de Josimar Carneiro); Revistando 2006, de Isser Korik, com direção musical e versões de Zé Rodrix, e minhas produções independentes dos shows-cênicos Aracy de samba e de Almeida (2007) e Sarambá (2011).

A participação no fi lme, além de me proporcionar a continuação da pesquisa musical, enveredada aqui pelo repertório de Noel Rosa – que mesmo atuando mais em estúdios de gravação, morros e botequins cariocas, não deixou de fl ertar com os quadros revisteiros, cujas composições Gago apaixonado e Mulato bamba fi zeram grande sucesso –, colocou-me em contato com uma ambientação de relevância histórica, ilustrando “em vida real” tudo o que eu havia pesquisado. Além de locações de época praticamente intactas, como a Praça Tiradentes, o Morro da Mangueira, o antigo Cassino Quitandinha, os casarões da Urca, a rua do Ouvidor e seus botequins; a preparação para o fi lme levou-me ainda ao encontro de descendentes das personagens características desses cenários, que possuíam fotos, partituras e narraram-me situações de valor histórico incomensuráveis.

Já nos citados espetáculos musicais, Divina Elizeth e Tom &

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Vinícius, além da possibilidade de riquíssima pesquisa de repertório, o processo de criação das cenas e das personagens, do ponto de vista técnico, estrutural e dramatúrgico, possui muitas características notadamente calcadas em expedientes e convenções encontrados na revista – sem falar na oportunidade de fi car em cartaz em teatros como Carlos Gomes (inaugurado em 1872) e João Caetano (o mais antigo do Rio de Janeiro, de 1813), coisa que, para muitos, pode parecer esvaziado de importância, mas para mim foi uma honra: pisar nos mesmos palcos por onde passaram Araci Cortes, Dercy Gonçalves, Eva Todor, Grande Othelo, Jararaca e Ratinho, Oscarito, Otília Amorim, Virgínia Lane e tantos talentosíssimos artistas que marcaram para sempre a trajetória da revista musical. É importante ressaltar que os espetáculos citados não foram produzidos com a intenção de ser ou aludir ao gênero. Eles foram produzidos, a princípio, como musicais brasileiros biográfi cos. Eu pude estabelecer relações com a forma revisteira por intermédio da análise das escolhas estéticas dos diretores, motivo pelo qual venho relatar aqui a possibilidade de aplicação dos conhecimentos adquiridos com a minha pesquisa e, sobretudo, minha observação da grande infl uência, mesmo que não assumida pelos diretores e produtores, desta linguagem para o musical moderno.

As duas peças – embora com fi o condutor biográfi co, mas não menos crítico em relação ao contexto histórico – são constituídas de uma sucessão de quadros, a maioria cômicos, intercalados com números musicais com repertório de sambas; com prólogo e fi nal apoteóticos. Havia também, nos dois espetáculos, fi guras que poderíamos relacionar ao compère e à comère, que em Divina Elizeth eram narradores que ora relacionavam os acontecimentos biográfi cos aos acontecimentos políticos e sociais – de maneira distanciada e bem-humorada, propondo interessantes discussões acerca da importância da memória nacional –, ora transformavam-se em personagens da vida da cantora. Em Tom & Vinícius, os narradores eram as próprias personagens-título, com as mesmas características dos primeiros, mas sem distanciamento e com menos

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incursões críticas e mais biográfi cas e dramáticas, o que os incluiria na convenção pelo aspecto meramente formal.

Nas duas peças, os números musicais eram organizados da seguinte forma: Prólogo, com apresentação do elenco; apoteoses, com todo o elenco; coplas, em duplas e solos. Em Divina Elizeth, as músicas eram a continuação do conteúdo das cenas, com composições de Custódio Mesquita, Ary Barroso, Carlos Bittencourt, Sinval Silva, Noel Rosa, Henrique Vogeler, Chocolate, Elano de Paula, Baden Powell, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Marcos Valle, Paulo César Pinheiro. No Prólogo, os narradores engravatados (vindos do além) iniciavam um texto explicando que concederiam à plateia a possibilidade de um último show de Elizeth para que ela mesma contasse através das músicas “como ela se via”. Após o texto introdutório, cinco “Elizeths” entravam em cena, “fl utuando” em frente a espelhos, cantando um apoteótico arranjo de Consolação – um dos afro-sambas de Baden Powell. Em Tom & Vinícius, as músicas apenas ilustravam os momentos apontados nas cenas, com destaque para o Prólogo, em que todos cantavam Se todos fossem iguais a você no meio da plateia; para a cena do lançamento do disco Canção do amor demais por Elizeth, ela inicia o samba-canção Chega de saudade, que termina cantado por todo o elenco em cena, e, claro, por toda a plateia num momento de “catarse cultural”; e para a cena do morro com coreografi a para um animado arranjo de O morro não tem vez. Todas as composições eram das personagens-título.

Do ponto de vista da criação de personagem, apoiada em tipos característicos da revista, para construir Aracy de Almeida e Elizeth Cardoso, baseei-me no tipo que ambas já eram em vida: mulatas. Segundo Neyde Veneziano (1991:124), enquanto a vedete tinha a função de cantar e encantar a plateia com glamur, brilhos, paetês, saltos, pernas de fora e penachos na cabeça; a “mulata”, que aparece como a “mucama”, em 1870, e depois se torna a negra alforriada ou mestiça inteligente, é símbolo da mulher com plena consciência dos seus dotes, capaz de seduzir velhos e moços (Mendes, 1982: 147), que diz o que pensa, inventa gírias, brinca com o duplo sentido das

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situações e com erros gramaticais, faz número de plateia, improvisa, canta, dança, manipula as situações pela sagacidade ou pela sedução. É um tipo riquíssimo criado por atrizes-cantoras com muita técnica e multitalentosas – por vezes, brancas, que se pintavam de marrom ou preto para interpretá-las.

Araci Cortes foi, possivelmente, a maior e a mais importante destas atrizes – mulata no palco e na vida –, com enorme extensão vocal. Ela alcançou sucesso estrondoso na década de 1920 e é referência para todas as gerações de cantoras e atrizes que seguiram. Araci foi a responsável pelo lançamento de vários sucessos da nossa música popular: Linda fl or; Aquarela do Brasil; Boneca de piche; No rancho fundo; Na Pavuna; Dá nela; Carinhoso e muitos outros. Era a intérprete favorita do genioso maestro Ary Barroso, e era aclamada pelas plateias que simplesmente não queriam que ela saísse de cena. Ter uma composição cantada por Araci no teatro era garantia de sucesso, e assim o foi com Assis Valente, Lamartine Babo, Duque, Joubert de Carvalho, Henrique Vogeler e até Noel Rosa, que lhe compôs a marcha Dona Araci.

Com base nessas referências, criei uma Aracy de Almeida “mulata-cômica” para o show e “mulata-doce” para o fi lme, e uma Elizeth Cardoso mulata-glamurosa para as duas peças. A trajetória das vidas de Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida é facilmente fundida com a história da música popular brasileira, assim como já explicitado também sobre Araci Cortes. Elizeth gravou vários sucessos de 1930 a 1980 e passou por inúmeras situações musicais em torno das referidas décadas: o teatro de revista, o crescimento do cinema nacional da década de 1950, a gravação do polêmico primeiro disco de bossa-nova (Chega de saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes), acompanhou a evolução dos subgêneros do samba (samba-maxixado, samba-canção, samba exaltação, samba sincopado, samba-enredo, samba-rock e, fi nalmente, o samba-jazz). Já Aracy de Almeida, além de ser uma mulher com atitudes à frente de seu tempo, e de criar com espontaneidade uma forma absolutamente brasileira de cantar – passando para a voz um tipo

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de swing e divisão (relação entre letra e ritmo) do samba que só encontraríamos novamente com João Gilberto, na década de 1960 –, foi responsável pela recuperação da obra de Noel Rosa que, após vinte anos de falecido, já havia caído no esquecimento. Aracy de Almeida também recuperou um importante e gigantesco legado de compositores revisteiros, como Assis Valente, Wilson Batista, Haroldo Barbosa e Ary Barroso.

Foram experiências enriquecedoras; entretanto, por não serem poucos os obstáculos, vez ou outra, certa decepção com a desorganização política da categoria artística e, igualmente, com a falta de interesse dos detentores dos meios de produção (patrocínio) em promover um musical mais próximo daquilo que se pudesse chamar genuinamente brasileiro, titubeei. Decidi enveredar pelo caminho da produção e desenvolvi dois projetos: Araci de Samba e de Almeida, um show cênico para o qual me aproveitei do aprofundamento das pesquisas sobre vida e obra da cantora, e Sarambá, um show sobre a história do samba para dançar, cujo repertório começa nos sambas maxixados lançados na revista, como Sarambá (J. Tomás e Duque, 1929), Tem francesa no morro (Assis Valente, 1932); passando pelos sambas sincopados, como Pisei no despacho e Falsa baiana (Geraldo Pereira); chegando ao samba exaltação É luxo só (Ary Barroso), entre outros, sem deixar de lado sambas de compositores mais novos infl uenciados por esses compositores, como Amor até o fi m (Gilberto Gil).

A paixão decorrente daquele primeiro processo de pesquisa conduziu-me, de modo bastante consciente, para um caminho de compromisso com a memória cultural daquela “gente mulata”. Artistas cuja luta e criação representam momentos signifi cativos da produção cultural genuinamente brasileira. Gente que, a despeito do imenso trabalho e de sua importância, encontra-se subsumida da história. Refl etir sobre a importância da produção e da gente revisteira, retomá-la e trazê-la para os palcos tem sido um de meus intentos e alvos. O processo que venho desenvolvendo não passa por nenhuma bravata ou ato altruísta, trata-se de enveredar em uma espécie de imensa (e real) Atlântida para, de lá, recuperar tesouros inexauríveis.

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Vivemos a ilusão de pertencermos a uma imensa aldeia, elegendo ou copiando formas estrangeiras de gerenciamento de cultura como a única possibilidade de produção de qualidade, favorecendo, com esse discurso, o fomento e o investimento em formas criadas nos países hegemônicos em detrimento das formas nacionais. “Engolimos cópias gringas” muito bem realizadas no aspecto técnico e formal, porém, vazias de identidade. A nossa “Bróduei” é tupiniquim. Ganhamos espelhos, brilhos e paetês em troca da exploração do trabalho e total massacre genocida: o mito da ocupação, desde o século XIX, simplesmente muda os objetos.

Referências bibliográfi cas

MATE, Alexandre. Peripécias de certa revista teatral brasileira: da crítica risível das idiossincrasias dos poderosos ao umbigo da vedete. In: Cultura Crí-ti-ca, 3. Revista Cultural da Apropuc. São Paulo: Apropuc, 1. Disponível em: <http://www.apropucsp.org.br/ed_ante_rcc.htm>. Acesso em: 16 fev. 2012.

MENDES, Miriam Garcia. A personagem negra no teatro brasileiro, entre 1838 e 1888. São Paulo: Ática, 1982.

RUIZ, Roberto. Teatro de revista no Brasil: do início à I Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Inacen, 1988.

VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas: Pontes, Editora da Unicamp, 1991.

______. Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro. Oba! Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

______. De pernas para o ar: teatro de revista em São Paulo. São Paulo: Imprensa Ofi cial do Estado, 2005 (Col. Aplauso).

______. As grandes vedetes do Brasil. São Paulo: Imprensa Ofi cial do Estado, 2010 (Col. Aplauso).

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Bloco III: O TEATRO DE FEIRA

O teatro de feira e sua poética13

por Robson Corrêa de Camargo14

Resumo: Este texto apresenta refl exões sobre as variadas formas das manifestações teatrais realizadas nas feiras francesas entre os séculos XVII e XVIII, e aponta as devidas repercussões desta forma teatral na defi nição daquilo que se deve chamar teatro, drama ou mesmo performance. Apresenta alguns exemplos dos procedimentos de interpretação e da construção do espetáculo dos artistas feirenses, que utilizavam deliberadamente e sem cerimônia todos os estilos existentes e o reelaboravam em nova chave. Um teatro em que não se impunham fronteiras ou fi delidades estilísticas; ao contrário, buscava-se rompê-las, renová-las, ocupá-las e, talvez, subtraí-las. Com o forte caráter gesto-representacional que dinamizava este tipo de espetáculo, o teatro das feiras se compôs como heterogeneidade, é um heterogênero, sem características fi xas e predeterminadas. Em seu método prismático constante, determinado pela utilização aleatória, dialógica e antropofágica de diferentes formas de espetáculo, mostra outras formas dramáticas de unidade composicional, afi rmando-se como um fenômeno central na determinação do que deve ser entendido como teatro.

Abstract: This paper presents refl ections on the various forms of theatrical events held in the French fairs between the seventeenth and eighteenth centuries, and indicates the proper impact of these theatrical forms at the French fairs in the defi nition of what must be called theater, drama or performance. It also, presents some examples of the acting procedures and construction of its performance, which 13 Este trabalho é uma reelaboração de parte de minha pesquisa de doutorado realizada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) que será publicada pela Universidade de Brasília/ Hucitec, com o ti tulo: O gestual no teatro.

14 Professor Adjunto do Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Coordenador do Máskara – Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas em Teatro, Dança e Performance (UFG/CNPq), da Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais (Fapeg) e do Grupo de Trabalho Teorias do Espetáculo e da Recepção da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (Abrace).

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uses deliberately and without any ceremony all existing styles and reworked them into a new permanent key. A theater that is not imposed by stylistic boundaries or allegiances, instead, sought to break them, renew them, occupy them, and maybe subtract them. With the strong gesture-representational momentum of this kind of spectacle, the theater at the fairs was composed by such heterogeneity, that we must call it a heterogender, a gender that is made by using always the difference, profi led without using predetermined or fi xed characteristics. In its constant prismatic method, determined by using at random a constant dialogue with distinct forms of contemporary spectacle, it shows other dramatic forms of compositional unity, asserting itself as a central phenomenon in determination of what should be understood as drama.

Palavras-chave: gestual no teatro, teatro das feiras, França, teatro séculos XVII e XVIII.

Keywords: gestus on drama, drama at fairs, France, drama at XVII and XVIII Century.

O teatro é o lugar das ambiguidades, onde as coisas são tomadas em mais de um sentido. O vocábulo grego theatron estabelece o local físico do espectador, “lugar onde se vai para ver” e onde, simultaneamente, acontece o drama como seu complemento visto, real e imaginário. Aí se defi ne a teatralidade; é teatral tudo o que existe para alguém ver, onde há um olhar intencional, mas, ao mesmo tempo, há de existir uma multiplicidade: o real e o imaginado. Mas que tipo de olhar o fenômeno teatral estabelece? Não é um simples olhar, como olhar um doce ou o trânsito, um afeto, um mito. A palavra teatro deriva do grego theaomai – olhar com atenção, perceber, contemplar (Britannica 1990, vol. 28: 515). Theaomai não signifi ca ver no sentido comum, mas participar de uma experiência intensa, envolvente, meditativa, inquiridora, a fi m de perceber o signifi cado mais profundo; uma cuidadosa e deliberada visão que interpreta e reconfi gura seu objeto. (Theological Dictionary of the New Testament vol.5: 315, 706).

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O teatro, mais do que um local público onde se vê, é o lugar condensado da manifestação das ambiguidades e dos paradoxos humanos, onde as coisas são tomadas em mais de um sentido e observadas por meio de uma experiência intensa, envolvente, inquiridora, uma reelaboração daquilo que é visto, tanto pelos atores e atrizes como pelo público.

O apresentado no palco (nas ruas, nas vitrines, nas pontes, nas praças, nas paredes do edifício, nos rios, nas feiras) é imaginado de outra(s) forma(s) pela plateia. A audiência vê o que não se vê e fi nge não ver o que se vê. Como forma de conhecimento, o teatro desenvolve a visão imaginada, numa experiência vivenciada, projetada, outro olhar. Os atores e sua equipe (visíveis ou invisíveis) trabalham para produzir a ilusão do que não é mostrado; algumas vezes, com certa culpa, procuram dizer que a ilusão é uma ilusão,

Foto de Bob Sousa. Cia. Teatral Boccaccione - Michel Masson e Visinho Juri no espetáculo Ubu rei.

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uma cegueira cultural consentida. Afi rmam em cena: “isto é teatro”, mas isto todos sabem desde o momento que se dirigem à sala, à praça, ao rio, ao barco. Não se distancia o que já é naturalmente distanciado; o estranhamento brechtiano é uma operação estética e não da realidade, pertence à realidade estética. O dito popular reclama: “Não me faça de palhaço!” (veja o que eu sou e não aquilo que você pensa que eu sou). Faz-se teatro, que é uma forma de vida condensada, mas não a vida, mas também é vida.

Toda refl exão que tem o drama (ação intencionalmente apresentada, em forma oculta ou não) como objeto, precisa apoiar-se numa tríade: quem vê, o que se vê e o imaginado. O teatro é, assim, um fenômeno que existe nos espaços tortuosos do presente e do imaginário, nos tempos coletivos e individuais que se formam a partir desses tempos e espaços. Eterno ou pós-moderno, o teatro é sempre ao vivo: um fenômeno mediado de uma experiência sem mediação. Esta vivência ambivalente e paradoxal, possibilitada pela experiência teatral, requer um questionamento constantemente de seu edifício crítico e físico, pois é experiência dinâmica de vida(s) e de cultura(s), permanente, se estabelece no devir.

Se o teatro perambula, como um fantasma, pelos caminhos do ser e do não ser, pois muito dele se forma como não ser, como defi nir os gêneros, estilos, formas, períodos, movimentos que frequentam seus espaços? Não há como! Apenas para fi ns didáticos, pois é um fenômeno sem fronteiras. O primeiro movimento realmente pós-moderno seria colocar abaixo os muros falsamente construídos pela lógica ocidental, retirar o estudo de teatro das estantes e prateleiras: nem moderno, nem pós, nem burguês, nem proletário, nem unitário, nem multifacetado, nem realista, nem teatral, nem realista, nem simbolista, mas ambíguo e paradoxal.

Diante dessa natureza (ambígua e paradoxal), neste ato complexo e sempre público, pois não há drama sem plateia, o que já por si só é um drama, podemos observar o rico movimento teatral realizado nas barracas de feiras francesas, onde se formam alguns dos fundamentos do teatro atual.

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Se os antigos gregos teorizaram sobre seu teatro de maneira tardia, o teatro de feira apresenta ao mundo um espetáculo em multiplicidade que necessita refl exão. O substrato da poética dramática do melodrama e do teatro do século XIX se constrói a partir deste elemento, tido como “marginal” na história do gênero teatral: o teatro das feiras. Ao lado das bananas e dos tomates, da troca de especiarias e condimentos, se experimentava um teatro de todos os gostos, muito além das cortes e de suas unidades de ação ou de tempo.

O melodrama do século XIX, e depois o drama do século XX, retira do teatro realizado nas feiras parisinas nos séculos XVII e XVIII, elementos de sua elaborada técnica de interpretação do ator, a composição de sua gestualidade e, sobretudo, o procedimento de construção de seu espetáculo. Ao reelaborar esta prática teatral, estabelece no palco a relação explícita de cumplicidade com a plateia e, como parte central desse processo, o uso deliberado e sem cerimônia de todos os estilos e a reelaboração permanente em nova chave, era um teatro em que não se impunha fronteiras ou fi delidades estilísticas; ao contrário, buscava-se rompê-las, renová-las, ocupá-las e, talvez, subtraí-las.

A pantomima pública romana que o precedeu – termo que, à época, servia a quase todo tipo de representação teatral, com ou sem fala, com seus leões e mulheres nuas, já aporta um forte caráter gesto-representacional15 ao espetáculo. Como técnica de atuação, aproxima-se da arte da dança, da qual não se separava, pois o dançarino busca a perfeição do gesto como eixo de representação. Como na antiga arte da Índia, dança e teatro não eram distintos.

A antiga pantomima romana recusava a distinção entre corpo e fala, assim como farão os espetáculos do teatro de feira. A palavra escrita e impressa e os direitos monárquicos vão engessar o ator em sua gestualidade e em sua livre movimentação corporal, assim como separar o teatro da ópera, da música, da commedia dell’arte, cada qual com sua casa própria. A escrita desbancava a oralidade. 15 O termo aplica-se para a parte da arte do ator que tem a busca gestual como princípio ou motor dinâmico.

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A corte francesa defi ne um estabelecimento para cada gênero, que praticavam os direitos cedidos pelos monarcas a cada especialidade. Isto será rompido pelo teatro de feira que vai invadir e embaralhar todos os territórios.

A Comédie Française se estabelece como reino do teatro falado e a Opéra, do teatro cantado, até serem fustigados e expropriados pelo teatro de feira. Essa divisão estabeleceu, ao mesmo tempo, o chamado teatro dramático como o reino da palavra falada e o das danças como império do corpo e do movimento.

Se levarmos em conta que a pantomima e o teatro de feira evoluem em meio a uma cultura fundamentalmente oral, em um mundo ainda iletrado, mesmo em sua casta dominante, fi ca mais claro entender o porquê da existência desta cena popular com predominância de gestos e de intensa comunicação com a plateia.

O teatro de feira, na busca do aqui-agora, da presença cênica, da representação física, da luta pela conquista do gosto imediato da plateia diante da representação que se desenvolvia. O uso de uma linguagem devassa em todos os sentidos, devassa do próprio teatro, pois nasceu em contraponto com um certo teatro estabelecido, determina que os libretos da pantomima, como os da commedia dell’arte fossem, no máximo, esquemáticos e sintéticos. Provavelmente, poucos atores sabiam ler. Para que se entenda o teatro de feira devem-se colocar os libretos em segundo plano e olhar para outro texto, o texto espetacular.

Anton Giulio Bragaglia (1930: 43-44) realiza interessante descrição da representação pantomímica em sua evolução à pantomima sem fala. O espetáculo pantomímico sempre esteve ligado à dança, desde a Grécia. Recebeu o nome de orchésis, assim como de quironomia (cheironomía), a pura arte de se exprimir com as mãos. Mãos que, certamente, levavam todo o corpo, o nome implica seu caráter gestual primeiro. A orchésis dividia sua apresentação em cubistica, sferistica e orchestica. A primeira, cubistica, constituía-se em uma ginástica acrobática; a segunda, como se dizia em Roma, saltatio

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cum pila, destreza ou jogos com bola; e a terceira, a orchestica, era a dança teatral que continha a quironomia, uma parte com uma estrutura dramática (diálogos e o desenvolvimento de uma história). Esta última parte, em Roma, chamou-se saltatio. Os caminhos da pantomima romana não separarão a mímica da dança; ao contrário, saltare um canticum, dançar um poema, signifi cava dizê-lo com o gesto.

Este dançar um poema, saltare um cantico, era de fato uma forma de canto falado acompanhada de instrumentos, muito mais próximo à recitação do que ao canto coral, uma forma de atuação que animava a palavra com música moderada e representação viva. O movimento ginástico dos saltimbancos-cantores ou atores-dançarinos viu-se diante da necessidade de expandir ainda mais a voz e adequar a respiração aos movimentos, e isto motivou a que se dividisse o coro.

Estabeleceu-se, assim, uma primeira divisão entre gesto e palavra, com o estabelecimento dos artistas cantores, os Istrioni-Musici e os atores do gesto, Istrioni-Ballerini. Nessa importante arte teatral romana, quase dois milênios antes de Bertolt Brecht, o público não apenas conhecia antecipadamente a história, como seguia com expectativa o desenrolar da representação e da atuação do mimo. O pantomimeiro agia sempre sobre a música, usasse ou não a palavra. O mimo mostrado não utilizava a divisão por cenas, mas por quadros, divididos simplesmente entre os dialogados e os cantados. O mimo sabia recitar e declamar, assim como mimicar o monólogo cantado pelo coro.

A questão do teatro como arte múltipla e variada se potencializa no comércio das feiras. Não havia barracas que vendessem apenas um produto. No início do século XVII, exatamente no mesmo tempo que William Shakespeare e Lope de Vega, que também falavam o idioma das ruas, existia em Paris duas feiras que eram locais constantes de manifestações teatrais de todos os tipos. As feiras de Saint-Germain, que durava de 3 de fevereiro à Páscoa (fi m de março ou abril) e as de Saint-Laurent, durante o verão europeu, do fi m de junho ao fi m de outubro, nas quais se apresentavam artistas

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variados em sucessivos números de dança, canto, malabarismo, acrobacias, mímica, números de bonecos, animais amestrados e pequenas histórias de caráter farsesco.

É importante detalhar que os espetáculos da feira, empreendimentos privados e não permanentes, não eram subvencionados pelo rei nem por sua entourage; ao contrário, dependiam do comércio nas bilheterias. O sucesso era a primeira necessidade de seus espetáculos, que não se propunham apenas a sensibilizar o público, mas a conseguir que este oferecesse algo em troca dessa sensibilização. Não realizavam um teatro de repertório, nem de alternância de peças, como faziam os elencos estabelecidos sob a égide real. Interpretavam a mesma peça até suprir a plateia ou ver esvaziar os assentos. Poucas peças eram representadas mais de sete vezes16, assim como as da Comédie Française.

Como se vê, os fundamentos deste empreendimento (texto, história, representação, atuação etc.), tanto pelo público a que se destinava como pelas condições econômicas que o emulavam, muitas vezes precárias, era totalmente distinto daqueles realizados pelos elencos subvencionados e regulados pela nobre monarquia.

Esta produção no teatro das barracas de feira gerou, em seus produtores, uma enorme pesquisa do que aprazia o gosto popular, do teatro como puro divertimento, da busca do original, da fantasia, do que agradava a vida, do pitoresco, do cômico e do imaginativo, de tudo aquilo que pudesse ser colocado como valor de troca no mercado das ilusões, era uma feira bakhtiniana, não aquela dos minuetos e violas das coreografadas danças da corte.

Neste reino das ruas e da circulação das mercadorias impunha-se uma procura do original, do diverso, da fuga das normas, já que, no terreno da monarquia, pressentindo-se, talvez, sua futura derrocada, elaborava-se uma constante sistematização e regra de seus hábitos, nas danças da corte, nos costumes, nos sapatos e

16 Ver teatro de feira em <htt p://www.foire.net>, relação dos espetáculos na França (Paris e províncias), 1601-1774. <htt p://foires.net/cal/cal.shtml> (últi ma atualização 1999). Org. Barry Russell. Oxford: Briti sh Academy e Oxford Brookes University.

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perucas, e nas formas de representação daquele espetáculo que agradaria a presença real. Leis, éditos, regras de comportamento eram estabelecidos até para o teatro.

Como Andre Blanc (1998: 77) podemos dizer que se estabelecia nas feiras uma forma do imprevisto dentro de uma imaginação que não cessava de se renovar. A improvisação das feiras e de seus teatros não era apenas uma técnica, mas uma nova maneira artística que se estabelecia e rompia os cânones predecessores. Não era apenas o gosto do público ou o aspecto mundano e não regrado desse tipo de espetáculo que determinava a característica de estilo ou de gênero desta forma teatral. Este procedimento inscreve-se em uma atitude cultural que fazia parte do programa libertário de contestação da ordem estabelecida. Afi nal a Liberdade, no programa que seria cantado na Revolução Francesa, não era apenas uma palavra para rimar com Igualdade.

O teatro nas feiras sofreria a perseguição e a censura efetivada por sua Majestade e pelos organismos reais da lei e da ordem, pela Igreja, e mesmo pelos próprios artistas competidores, logicamente aqueles que se encontravam sob a proteção do manto real. Isto vai obrigar o teatro das barracas de feira a utilizar ou experimentar várias formas e estilos de encenações dramáticas: desenvolver personagens que compartilhassem a mesma cena, mas que não poderiam dialogar, juntando-se apenas de forma metafórica num todo; cenas sem fala; diálogos tirados do bolso dos atores em forma de pequenos rolos para serem mostrados ao público ou com cartazes expostos acima da caixa teatral, segurados por crianças vestidas de anjo. O diálogo realizado era não apenas no palco, mas com canções cantadas pelo público, com atores disfarçados que o dirigiam, enquanto no palco havia atores emudecidos, mas atuantes; diálogos curtos e rápidos, sempre com abertura ao exótico.

A criatividade exigida no teatro de feira francês ampliou o repertório de procedimentos teatrais, em relação às técnicas existentes de interpretação do espetáculo e em sua relação com a plateia. Repertório jamais sonhado anteriormente por qualquer gênero teatral.

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Blanc (1998: p.78) aponta que a alma desse teatro era a discordância de tons, juntando decorações e personagens exóticas ou antigas com um diálogo muito familiar e parisiense. As citações paródicas de tragédias célebres e dos espetáculos realizados pelos elencos “ofi ciais” eram constantes, mostrando que esses artistas conheciam as formas teatrais estabelecidas. As réplicas eram rápidas, as canções a serem cantadas pelo público sempre agradáveis e precisavam ser de fácil aceitação, mas o elemento auditivo não vinha mais que complementar este tipo de teatro, no geral, o principal era o complexo gestual a ser vivenciado.

Se os elencos reais subvencionados caminhavam para uma forma estruturada e totalmente regulada de manifestação, o teatro das feiras, por outro lado, iria gerar um modo mutante mais de acordo com as leis de “livre comércio”, o que permitiu sua acomodação a diversos tipos de intervenção, um teatro em devir.

Vamos acompanhar alguns elementos desse processo.

O elemento visual desses espetáculos era dominado pelo pitoresco da decoração, dos truques cênicos e pela mise-en-scène, no qual a alusão ao escatológico, em todos os seus sentidos, era uma constante. Este tipo de espetáculo originado nas feiras, dentro do espírito comercial do deixa fazer, deixa passar, não buscava uma forma pura; ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana, os lazzi, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos, as ironias e piadas a granel.

Nesse tipo de teatro, a assimilação explícita das estruturas dos outros gêneros existentes, como as músicas repetidas de operetas ou das comédias musicais, ou da paródia contínua, traz não apenas a introdução dessas estruturas ou dos elementos destes outros estilos dramáticos, mas também implicitamente uma crítica aos limites preestabelecidos dos gêneros ou formas teatrais contemporâneos. Assim, instala-se uma relação dinâmica entre o enunciado citado e

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o citante, o que torna esta operação de diálogo com outros textos parte fundamental da pantomima dialogada. O teatro da pantomima, mesmo emudecido ou gestual, estará sempre em diálogo. Nessa forma, o que está em questão não é a citação, mas a glosa, o discurso paralelo, a forma na qual ela é realizada, sujeito e objeto do discurso cênico; um gênero que não se estabelece como tal, pois o que tem em comum é um procedimento matriz e não características particulares de estilo, que podem mesmo ser contraditórias entre uma peça e outra.

Em sua procura pelo efeito teatral, pela invenção constante, pela renovação em motocontínuo, o teatro das feiras acabou se produzindo como um local de experimentação das novas formas de manifestação teatral. Assim eram as barracas de feiras, um constante experimentar do diverso, do outro, do estabelecer diferentes “condimentos“, da troca de experiência e de culturas. O sucesso desse procedimento com o público das feiras, ou mesmo, por debilidade das companhias reais, atraiu até a sua plateia mesmo o público das cortes e chegou a receber, algumas vezes, o próprio reconhecimento real. Por mais de uma vez estes comediantes saíram das feiras e apresentaram-se na Ópera, ou mesmo no Palais-Royal, para o duque de Orleans.

Mas voltemos um pouco no tempo para acompanhamento de alguns exemplos que ajudem a entender este dinâmico processo. Já por volta de 1570, numerosas companhias profi ssionais tinham se desenvolvido fora de Paris, nas suas cercanias ou em outras cidades, porém poucas podiam representar na cidade. Brockett (1999: 209) identifi ca a existência de quatrocentas companhias de teatro fora da cidade de Paris entre os anos de 1590 e 1710.

A partir de 1570, companhias visitantes das províncias começam a alugar o Hôtel de La Bourgogne, com seus 1.600 lugares, por curtos períodos, e cada vez mais o teatro foi aumentando sua ocupação temporária. Nem todas as companhias visitantes atuaram nos palcos do Hôtel, mas todas tinham de pagar uma taxa à Confrérie,

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caso se apresentassem dentro dos marcos da cidade. Como ainda não havia luz elétrica, o espetáculo era representado durante o dia, por volta das cinco horas, dando tempo sufi ciente para que a plateia retornasse às suas casas. O programa diário era construído de peças curtas e entretenimento variado, assim como poderia incluir uma peça longa seguida de uma farsa. A música era uma parte constante de todos os desempenhos.

Em 1595, o Parlamento quebra o monopólio teatral da Confrérie, mas apenas permite determinada forma de representação no interior das feiras, formas essas que não possibilitassem competição com os comediantes anteriormente estabelecidos. Isto possibilitou aos atores da província tornarem às feiras de Saint-Germain e de Saint-Laurent, ilhas idiossincráticas, enclave teatral totalmente aberto à grande variedade de companhias e estilos, a desenvolverem um estilo não formalizado.

Os feirantes fundamentaram-se em uma ordenança de François I (1494-1547) que reconhecia na feira o lugar de comércio e jogo. As feiras receberão farsas apresentadas em espetáculos variados, “anunciados” pelas parades, como eram chamados os pequenos números teatrais feitos à porta ou nos balcões externos dos teatros da feira, para aglutinar o público passante e levantar sua curiosidade sobre o espetáculo a ser apresentado, para fazê-lo pagar e entrar em suas tendas.

Cerca de cem anos depois, em 1680, Luís XIV lança o edital que funda a Comédie Française que será assim investida da exclusividade de encenar peças teatrais em Paris, e os demais atores serão proibidos de se estabelecer na cidade, a menos que fossem expressamente autorizados por Sua Majestade.

Inicia-se, então, uma série de medidas restritivas com o fi to de manter o monopólio e impedir o desenvolvimento da representação nos teatros de feira. Estas medidas reais infl uiriam decisivamente no estilo teatral a ser desenvolvido, posteriormente, pela pantomima das feiras.

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Com a expulsão dos atores italianos da commedia dell’arte de Paris, em 1697, propiciou que os “barraqueiros da feira” se apropriassem dos textos e do estilo dos italianos recém-expulsos. Até esta data, o que se via nas feiras era, principalmente, espetáculos com marionetes, apresentação de animais ferozes, saltimbancos e os dançarinos-equilibristas da corda bamba. O sucesso desta nova fase permitiu a ampliação de repertório e a transformação de suas barracas em salas de espetáculo. O público das feiras, animado, vai assistir à nova versão do teatro recém-desaparecido. Os forains (forasteiros, como eram chamados na época; de fora de Paris) interpretavam as peças italianas à sua maneira, misturando ainda mais os estilos. No início, a polícia fechou os olhos e o sucesso de público foi imenso.

A partir daí, começou uma longa e árdua batalha pela existência e desenvolvimento de formas teatrais tradicionalmente dramáticas nas feiras, quase sempre contestadas pela Comédie Française que queria manter seu monopólio. Os atores-dançarinos da feira foram muitas vezes detidos, trazidos perante o tenente-geral da polícia e condenados pelo juiz. Entretanto, apelavam da sentença ao Parlamento, e, neste ínterim, continuavam sua representação sem nada mudar, esperando a decisão fi nal enquanto exauriam o repertório.

Três anos depois, o Parlamento francês retirou das feiras o direito de exibir qualquer texto. Como primeira medida, os forains começaram a apresentar as cenas como se cada um de seus atos se constituísse em uma peça curta independente, sem nenhuma ligação. Desse modo, sob a falsa aparência de peças curtas e independentes, havia uma versão disfarçada de uma peça integral. O público encorajou o subterfúgio e, graças a seu zelo, a decisão do Parlamento fi cou longe de produzir os efeitos desejados.

A Comédie Française era cruel e injusta com os rivais. Se em qualquer barraca dos teatros de feira fosse encenado algum drama que ultrapassasse a pantomima permitida, os responsáveis iriam encontrar duro tratamento.

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Alexandre Bertrand (1684-1723), famoso por suas marionetes, ocupou por alguns dias o Hôtel de La Bourgogne, imediatamente após a expulsão dos italianos. Em 1689, Bertrand comprou a permissão de apresentar seu número em Saint-Germain. Houve tanto sucesso que, no ano seguinte, ele incorporou ao espetáculo uma equipe de comediantes. Mas, apesar de seu protesto, suas instalações foram completamente demolidas pela polícia real.

Com a concorrência aumentando, os atores da Comédie não puderam mais restabelecer sua boa bilheteria: isto ajudou a piorar o seu ânimo. Em 1706 já havia sete estabelecimentos de representação teatral bem estabelecidos em Saint-Germain, e suas programações incluíam os mesmos gêneros de espetáculo: dança de corda, farsas e pequenas comédias que misturavam o italiano e o francês, entremeadas pela dança e intermezzos.

Em 1707, em nome da liberdade de comércio existente nas feiras, um príncipe da Igreja assumiu pessoalmente a causa dos artistas das feiras. Entretanto, apesar da intervenção favorável até do Cardeal d’Estrées, proprietário dos terrenos da Abadia de Saint-Germain des Près, os dançarinos de corda e os farsistas foram censurados. Depois de 1709, qualquer forma de representação de comédia ou farsa por diálogo estava totalmente proibida nas feiras.

É interessante perceber a descrição de um comissário de polícia de um desses espetáculos sem diálogo após a proibição. Ele observava atentamente:

[...] o espetáculo começava por dois dançarinos de corda, seguido de dois acrobatas. Surge então o Doutor que fala sozinho, e sai. Entra em cena um Pierrot que fala sozinho. Outra personagem, Marinet, vem encontrar Pierrot, mas não se falam, depois os dois se retiram. Em seguida Arlequim aparece e fala sozinho em voz alta. Na sequência Pierrot aparece no palco e fala de suas desgraças a si mesmo. Arlequim retira-se, Pierrot fi ca e fala sozinho (ARCHIVES DES COMMUNES, 1887: 233).

A descrição do comissário continua na mesma toada, até que conclui brilhantemente:

[...] não havia diálogos e apenas existiam dois tipos de monólogos: o de um ator ou atriz que falava sem dirigir-se a outras pessoas

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e os monólogos em que atores ou atrizes dirigiam-se a outras pessoas, mas sem obterem resposta (idem).

O claro subterfúgio, ignorado pelo “astuto” policial, em pleno desafi o à autoridade real, premido pela subsistência, entusiasmava público e atores que compactuavam. Se o diálogo falado atrapalhava os ouvidos das autoridades e dos atores da Comédie, nas feiras o monólogo tornou-se a atração principal, como foi chamado: um monólogo à maneira da feira, o monólogo das feiras, um monólogo que não é monólogo. A mudança, como se constata pela descrição do leal comissário, teve como objetivo fazer falar um ator de cada vez e impedir a contracena dialogada. Se um ator falasse, o outro responderia por meio de gestos, mas não com palavras. Outra forma desenvolvida para manter o diálogo consistia na apresentação de um ator em cena dizendo seu texto para sair de cena, em seguida, o que possibilitaria a entrada de um segundo ator, que viria dar a réplica em cena, saindo também para permitir a entrada de outro comediante ou de seu antagonista falador.

Outro procedimento peculiar consistia na presença de dois atores em cena, um falando em voz alta e o outro replicando em voz baixa. Neste caso, o segundo recuperaria em voz alta tudo que o primeiro havia recém-dito. Se a feira já era o local da farsa, ela agora passa a se desenvolver plenamente por meio do irônico procedimento, chamado na época L’art de parler seul inventé par la Comédie Française (A arte de dialogar sozinho criado (ou imposto) pela Comédie).

Era uma batalha dramática. Quando já não havia mais nada a perder, num ato de grande audácia, os forains resolveram apelar ao Grande Conselho da proibição do Parlamento, enquanto os comédiens exigiam a execução da ordem de arresto17 que tinham conseguido. Este apelo também dava algum tempo para que continuassem a distribuir seus pepinos, ou melhor, suas peças.

Apesar do protesto do grande Conselho, que resolveu apreciar

17 Os atores da Comédie conseguiram uma ordem de apreensão dos bens dos feirantes, que acabou não sendo realizada.

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a questão, a Comédie ignorou essa manobra e tentou forçar por manus própria o cumprimento da sentença. Desse modo, os teatros da feira foram invadidos e completamente demolidos, os cenários despedaçados e as poltronas quebradas; entretanto, oito dias mais tarde, tudo voltou a ser como “dantes no quartel de Abrantes”. O público encheu novamente as salas de espetáculos das feiras para aplaudir a sua ressurreição. Tudo se constituía também como material dramatúrgico, de uma dramaturgia participativa.

Nesse ínterim, os atores da Comédie foram condenados a ressarcir os danos por não haverem respeitado a letra dos Altos Conselhos e por terem partido para este gesto “radical” de quebra-quebra. Mas o rei fi nalmente intercedeu e tirou das feiras o pouco de verbo monologar que nelas ainda havia. Em 1710, vetaria o monólogo inventivo e, assim, iniciar-se-ía a fase da pantomima emudecida nas feiras, ou, como veremos, quase muda, pois nada fala mais alto que o gesto.

É aí que surge a pièce à la muette, peça à maneira emudecida, visto que os feirantes passaram a ser condenados à mais pura pantomima imposta pela “Realidade”, sem texto ou monólogo. Estas formas teatrais mudas tiveram por mestres os melhores dramaturgos franceses do período: Alain René Lesage (1668-1747), Louis Fuzelier (1672-1752), D’Orneval (?-1776), e depois Alexis Piron (1689-1773).

Mas a feira não deixaria seus teatros emudecidos por muito tempo. Enquanto interpretavam sem falar, respeitando as ordens reais, os comediantes praticavam a diferença entre escrita e fala e desenrolavam o texto de seus bolsos, mostrando-o à plateia, contendo o indispensável ou indicando apenas o sentido da passagem de uma cena a outra. Os atores podiam recitar, mas desde que fossem palavras sem sentido e que conviriam ao sentido da gestualidade. Entretanto, no teatro tudo signifi ca e, muitas vezes, estes grunhidos lembravam explicitamente a melodia dos versos alexandrinos de várias peças que estavam sendo apresentadas pelos atores reais. Depois, a prática sugeriu que cartazes fossem colocados acima do palco, fazendo com que as pièce a la muette se transformassem em pièce par écriteaux, peças com cartazes.

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Outra descrição policial possibilita visualizar esta forma de espetáculo com cartazes, descrevendo-a melhor que muitas análises críticas. Em 1711, este outro comissário descreveu: note-se que há um palco elevado em cerca de um metro e meio, com candelabros acima e uma orquestra abaixo do nível do palco. A orquestra tem seis ou sete instrumentos. Acima do palco citado, vêm atores e atrizes vestidos como Pierrot ou Arlequim ou com vestuário francês ou outros disfarces. Estes representavam cenas silenciosas sobre temas distintos com cartazes seguros por dois garotos suspensos no ar, que eram levantados e abaixados por cordas e máquinas. Os cartazes citados continham letras de canções que eram cantadas por várias pessoas na plateia, assim que o violino desse a melodia. Estas canções eram escritas nos dois lados do cartaz, servindo tanto como indicação como resposta de um ao outro, dando assim uma explicação das cenas silenciosas.

Como se vê, a história do teatro em muito se deve à presença em sua plateia de dedicadas autoridades eclesiásticas e policiais, já que a outra crítica preocupava-se mais em normatizar os gêneros que olhar o que acontecia nos palcos. A farsa do teatro das feiras tomou uma dimensão importante no processo artístico que se abria, no qual a gestualidade, muitas vezes, acompanhada pela música, iria adquirir importância basilar, sem deixar de lado a palavra falada, cantada ou impressa.

Segundo Margot Berthold (1991: 59) havia cerca de vinte a cinquenta cartazes mostrados por apresentação, e os escritos inicialmente eram em prosa, mas logo veio a ideia de colocá-los em rima com nova letra em cima de canções conhecidas. Afi nal, o teatro da corte era em verso e os comediantes não podiam deixar isso de lado. Dois cantores contratados pela companhia eram colocados espalhados na plateia e davam a melodia ao público que corria a acompanhar. Em meio a este coro geral, no palco, os atores desenvolviam sua gestualidade. Surgia assim um espetáculo que questionava a forma dramática estabelecida no teatro da Comédie, colocando-a em xeque. Um espetáculo épico e com estranhamento épico avant-la-lettre, em pleno século XVIII.

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Em 1713, esta forma de entretenimento tornou-se famosa com a obra em três atos de Réné Lesage, música de Gillier, apresentada por três vezes na Foire de Saint Germain: Arlequin, roi de Sérendib (Arlequim, rei de Sérendib), uma misteriosa ilha árabe, réprésentée par écriteaux (representada por cartazes), como era anunciada na barraca de feira da senhora Baron ou dame Baron.

O texto conta a história de Arlequim e de três ladrões refi nados que roubam totalmente suas posses, com gestos que logicamente se assemelham aos dos nobres da corte. Arlequim também havia se apropriado deste dinheiro, mas por acaso, de um procurador que se afogara. Embora o texto deixe implícito que ele se preocupara em salvar o dinheiro e não o pobre procurador. O texto, descritivo e sem diálogos, apresenta várias personagens: Arlequim, Rei de Sérendib, Mezzetin, o Grande Prêtreffe, o bando de Prêtreffes, Pierrot, o Grande Vizir, o Grande Sacrifi cador, a Ordem do Grande Sacrifi cateur, o Harém do Sultão, o Chefe dos Eunucos, os Ofi ciais do Palácio, um Pintor, um Médico e uma Trupe de Ladrões, acompanhados pelas respectivas mulheres.

O texto assim se inicia:O teatro apresenta um local ermo onde se pode ver rochas escarpadas. Arlequim (só). Arlequim, depois de haver naufragado na Côte de Sérendib, chega à ilha. Ele segura uma bolsa e aparenta estar um pouco consolado com sua desgraça. Isto é expresso por um cartaz onde está escrito:Melodia 144 (air 144): Je laisse à la fortune (Deixo tudo ao destino)18

Auprès de ce rivage, [Perto desta praia,] Hélas! Notre vaisseau, [Ai de mim! Nossa embarcação,]Avec tout l’equipage, [Com toda a bagagem,]Vient de fondre sous l’eau! [Afundou no mar profundo!]Un prucureur du Maine, [Um procurador do Maine,]Dans la limpide plaine, [Naquela límpida planície,]A trouvé son tombeau; [Encontrou sua tumba] Moi, gráce à mon génie, [Mas eu, graças ao meu talento,]J’ai su sauver ma vie, [Soube salvar minha vida]Et l’argent du manseau. [E o dinheiro daquele senhor.]

18 A tradução livre do texto abaixo, de responsabilidade do autor, não procura a fi delidade, mas o sabor da cena com rimas em nosso idioma.

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Uma nota situada ao pé da página do texto publicado descreve como se desenvolve esta cena à ecriteaux:

As letras escritas numa espécie de rolo, basicamente uma tela colada num bastão, registram a letra das coplas, com tipos grossos, contendo o nome da personagem a que pertence o verso. Um rolo desce no centro do palco carregado por duas crianças, vestidas como cupidos. Os garotos, suspensos no ar por meio de contrapesos amarrados em uma corda, desenrolam os cartazes. No momento preciso a orquestra deve dar início da frase melódica aos espectadores, que cantarão o texto escrito, com ajuda de alguns atores espalhados pela plateia, enquanto os atores no palco adéquam seus gestos.

O texto segue descrevendo a ação a ser desenvolvida pela personagem que está no palco:

Depois da copla cantada, Arlequim senta-se na terra e começa a contar seu dinheiro. Enquanto ele realiza a contagem, aproxima-se um homem com uma bandagem nos olhos e uma carabina nos ombros. Faz muitas reverências a Arlequim que, desconfi ado com tanta amabilidade, diz à parte por meio de um cartaz.

Melodia 5 (air 5): Quando o perigo é agradável

Ouf! Je crains fort pour ma fi nance! [Uh! Temo por minhas posses!]Ce drôle a tout l’air d’un voleur. [Este canalha parece ser um ladrão.]Le gésier me bondit de peur [Minha pança se mexe com terror]A chaque révérence. [A cada reverência que ele faz.]

O homem coloca o seu turbante no chão, faz um gesto para Arlequim colocar o dinheiro dentro, e desaparece gritando: gnaff, gnaff.

O texto registrado era descritivo, um roteiro de ações construídas pelo ator e por sua companhia para desenvolver a personagem. Fazia parte da tradição oral que cativava a plateia de seu tempo. Mais afeito ao espetáculo que ao diálogo, o texto preocupava-se mais com as marcações, descrições de ações, pois este diálogo, proibido ou evitado, estava implícito ou explicitamente desenvolvendo-se pela improvisação em um dinâmico jogo teatral.

A plataforma do teatro das barracas de feira não era a de só se antepor ao teatro que possuía a permissão real, embora a formalidade tradicional da Comédie e da Opéra fossem subsídios frutíferos para seus números. A seus atores era exigida prova de destreza, sendo

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a improvisação parte constante de seu método de interpretação. A restrição policial contribuía para estimular a velha tradição do saltimbanco que deveria recorrer em momentos difíceis, mudando a cena, saltando do diálogo improvisado e voltando aos números de entretenimento, dependendo do humor e da determinação das autoridades de plantão.

Este teatro se compôs pela heterogeneidade, é um heterogênero, sem características fi xas predeterminadas. Compõe-se por um método prismático constante, pela utilização aleatória e antropofágica de diferentes formas de espetáculo, o que mostra outra unidade composicional, o que fez com que esta fosse considerada uma “forma dramática impura“, sem os atributos exclusivos que supostamente teriam sido encontrados em formas idealizadas do clássico teatro grego. Infelizmente, não houve policiais que dessem uma sugestão de como realmente a tragédia era encenada, e Aristóteles deixou apenas ligeiras anotações comparativas, que foram preenchidas ao prazer pelos seus escribas e leitores.

Referências bibliográfi cas

ARCHIVES DES COMMUNES, n. 1290. Voy, Campardon. Les Spectacles de la Foire, In: Barberet, 1887.

BLANC, Andre. Le théâtre français du XVIII siècle. Paris: Ellipses, 1998.

BRAGAGLIA, Anton Giulio. Evoluzione del mimo. Milano: Casa Editrice Ceschina, 1930.

BROCKETT, Oscar G. The theatre: an introduction. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1999.

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Experimentar, selecionar, compor e recompor: o jogo da autonomia do ator

por Lúcia Romano19

Resumo: A pesquisa de Vsevolod Meyerhold sobre um ator novo para um novo teatro reúne a experiência prática a um pensamento sobre o teatro e a uma pedagogia centrada no estudo do movimento e seu funcionamento na cena. Experimentar, selecionar, compor e recompor: o jogo da autonomia do ator descreve uma jornada de experimentação inspirada em alguns procedimentos de trabalho do encenador russo, os quais têm raiz no diálogo entre as formas populares e o teatro institucionalizado. A proposta objetiva o ator de rua, considerando suas necessidades expressivas neste território de atuação com implicações estéticas, comunicacionais e políticas próprias.

Abstract: Vsevolod Meyerhold’s research on a new actor for a new theater brings practical experience to a thought about the theater and a pedagogy focused on the study of the movement and its operation at the scene. “Try, select, compose and recompose: the autonomy of the actor playing” describes a journey of trial procedures inspired by some work of Russian director, which are rooted in the dialogue between the forms of popular and institutionalized theater. The proposal aims the street actor, considering his expressive needs, in this area of performance with its own aesthetic, communicational, and political implications.

Palavras-chave: Meyerhold, interpretação, improvisação, teatro de rua.

Keywords: Meyerhold, acting, improvisation, street theatre.

A experiência prática de um determinado coletivo teatral, ou mesmo de um encenador ou de um intérprete, vai sendo depurada no cotidiano de trabalho, num processo contínuo e infi ndo. Difícil imaginar um verdadeiro artista que dê sua pesquisa por fi nalizada, defi nitivamente satisfeito com suas últimas descobertas… 19 Atriz e pesquisadora. Mestre em Comunicação e Semióti ca pela Ponti fí cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Doutora em Teoria Teatral e Literatura Dramáti ca pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); professora de Artes Cênicas no Insti tuto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), nas cadeiras de Interpretação, Improvisação e Parti tura Corporal.

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Essa prática, quando singular e inquieta, logra avançar o espaço em torno daqueles artistas e de seus pares mais próximos. Muitas vezes, atravessa também o tempo, rompendo sua natureza transitória e criando possibilidades de vinculação; lida e relida, vai formando círculos de contaminação antes inimagináveis.

Problemas, tentativas e soluções podem tornar-se “sistematização”, uma versão mais organizada do caos da criação e, talvez por isso, mais predisposta à transmissão. Embora com um caráter de permanência, algumas sistematizações carregam ainda os rastros da experimentação, na maneira como recordam e descrevem procedimentos; testemunham exercícios e toda sorte de propostas de trabalho e os depuram em conceitos; destacam operadores fundamentados na corporeidade, relacionando sua funcionalidade a outros elementos da cena teatral, além daqueles relativos à presença do ator.

Vsevolod Meyerhold é um desses criadores que atravessaram tempo e espaço e ainda continuam a nutrir nossa sede de ousadia e rigor. O encenador russo elaborou expedientes próprios para dar vazão às suas inquietações artísticas e ao desejo de constituir uma utopia teatral, em que a verdade da cena se diferenciaria da verdade da vida e encontraria um modo próprio de dar sentido à experiência

Foto de Bob Sousa. Cia. Antropofágica - elenco do espetáculo-intervenção Karroça Antropofágica.

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humana. A experimentação estética, no seu caso, incluía reconsiderar as relações sociais (e políticas) e rever elementos da tradição teatral.

O teatro de convenção que defendia, de fato, imprimiu intervenções criativas nos terrenos da tradição do teatro e da cultura. Sua personalidade investigativa completava-se num apreço pela sistematização, que acompanhava o passo da experimentação com a linguagem teatral. Por isso, a poética da cena meyerholdiana está tão interligada ao discurso do encenador e aos seus campos de interesse, assim como à constituição de um pensamento sobre a atuação e uma pedagogia, com o treinamento corporal do ator em destaque.

A dedicação em criar caminhos práticos para a constituição de um novo intérprete para um novo teatro indica o quanto o pensamento e a estruturação do fazer teatral de Meyerhold não aspiravam ao lugar egoicamente centrado da canonização, mas sim à disseminação ampla de seus saberes. Ao lado disso, a apropriação de elementos da commedia dell’arte e do teatro de feira também exemplifi cam seu interesse pela riqueza das formas menos “eruditas” da arte teatral, efetuando, ao mesmo tempo, a recriação de suas potências expressivas e signifi cado. O trânsito entre formas “canonizadas”, reguladas pela instituição do teatro, e aquelas “fora da forma”, impunha-se no teatro de Meyerhold pelo desejo (não alheio às implicações políticas dessa inclinação) de criar conexões fortes com o espectador e tornar a cena viva e pulsante, encarnada num ator autoconsciente de seu poder de criação e de comunicação.

*

* *

Em julho de 2011, diante da proposta de conduzir uma experimentação prática sobre os procedimentos de Meyerhold em torno do teatro popular, no encontro As Formas Fora da Forma, imaginei refazer alguns passos do percurso do encenador russo, partindo da refl exão por ele elaborada sobre o teatro de feira e o ator cabotino, para reencontrar em seus textos elementos de trabalho

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que pudessem, como num “retorno”, oferecer subsídios criativos aos atores do teatro de rua de hoje.

Em se tratando de uma atividade sobre artistas de teatro de rua e com esses artistas, a recuperação (ou reinvenção) de alguns procedimentos deveria favorecer um tipo de presença do ator e de jogo de cena que aposta na expressividade dos corpos no espaço e na troca direta com o espectador. Não abrigado numa caixa cênica tradicional, o ator do teatro de rua é elemento mais do que essencial da cena, um verdadeiro mestre na tarefa de ampliar sua expressividade e captar a atenção do espectador em meio ao tumulto da vida em curso.

Considerando a necessidade de autonomia com a qual esse ator é confrontado, a atividade enfocou a exploração das ações de experimentar, selecionar, compor e recompor (ou apresentar) material de movimento (com ou sem o uso de textos e sons). Os convites de experimentação endereçados aos presentes foram:

a) Exercício inspirado em proposta do encenador pedagogo Yuri Alchitz, denominada “maratona”, em que o grupo determina gradações de velocidade no caminhar enquanto ocupa um determinado espaço. Ao estabelecerem as características dos graus 1 a 9, os jogadores vão perceber jeitos de identifi car a gradação sugerida por seus parceiros de grupo e de transitar coletivamente entre cada uma delas. O grupo deve decidir como classifi car as intensidades do andar e, como numa música, construir as variações possíveis.

b) Exercício de decupagem da ação, tendo como inspiração alguns princípios fundamentais para a ideia de movimento na cena de Meyerhold. A ação de deslocamento é progressivamente dividida entre olhar + deslocar; olhar + apontar + deslocar; olhar + apontar + desenhar impulso contrário ao deslocamento + deslocar; olhar + apontar + desenhar impulso contrário ao deslocamento + deslocar + sonorizar (com ruídos ou textos). Enquanto o exercício é realizado, são destacados os princípios em questão sobre o movimento na cena: 1) o corpo todo deve estar presente e envolvido em cada gesto; 2)

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toda ação inclui uma recusa antes de ser efetivada; 3) toda explosão é precedida por um freio; 4) as pernas são molas; 5) o olhar e o gesto ou deslocamento podem ser combinados em harmonia ou em oposição.

c) Exercício de improvisação inspirado na técnica de viewpoints. O grupo é dividido em raias paralelas, em linhas. Cada jogador, em sua linha, propõe um movimento, que será repetido pelo jogador atrás dele. O primeiro jogador vai para o fi m da fi la. O segundo jogador soma à proposta do primeiro uma “continuação”, composta de uma nova ação-movimento, e também vai para o fi m da fi la. Sucessivamente, uma sequência vai sendo construída e memorizada pelo grupo. A acumulação de movimentos é composta em duas rodadas e, então, apresentada pelo grupo que ocupou cada uma das raias. A forma de apresentação é defi nida pelo grupo, em relação ao espectador e ao espaço da sala.

d) Exercício de composição em duplas, recriando elementos de três exercícios biomecânicos de Meyerhold, “atirando o arco”; “golpe com adaga” e “atirar a pedra”. Cada dupla comporá um “estudo” com base na improvisação até a criação de uma sequência passível de reprodução, incluindo os seguintes elementos:

• ações: saltar, cair, correr, bater;• objetos imaginários: arco, bastão, bengala, cesta, espada,

lança, leque, chapéu, véu, capa, xale;• um sinal claro para o início e o fi m da sequência (pode ser

uma marcador sonoro ou de movimento);• ao menos um momento de “ênfase”, marcado por alterações

no ritmo e na tensão;• ao menos um momento de pausa/suspensão;• os movimentos devem ser interligados numa dinâmica de

perguntas e respostas.

As composições devem ser construídas a partir da experimentação, com o mínimo possível de discussão anterior à experiência. Cada dupla apresenta seu estudo num fl uxo contínuo, sem que seja combinada de antemão uma ordem de entradas e saídas, exigindo um acorro mais sutil entre todos os participantes.

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A escolha desse desenvolvimento para a exploração prática seguiu a premissa de Meyerhold de apostar na improvisação para desenvolver a criatividade e a agilidade do ator diante das demandas diversas. Os fragmentos construídos não almejavam apenas explorar aspectos técnicos do movimento, mas também relacionar o corpo ao funcionamento da cena. Em seguida, a seleção de materiais em grupo desafi ou o contato com o outro e a colaboração entre os jogadores, de acordo com os princípios coletivos do fazer teatral. O conhecimento da composição cênica, para além da ação individualizada ou de cunho psicológico, por sua vez, foi tematizado no estudo composto em duplas. Ali, também estiveram presentes os elementos da atuação sintética e os problemas relativos à presença em cena (que Meyerhold objetivava nos exercícios biomecânicos), evitando ainda qualquer traço de modelização.

Na avaliação fi nal, conversamos em grupo sobre a reverberação política do investimento na autonomia do ator e na recuperação da alegria, assim como do recurso às formas populares de teatro. Vale lembrar, para dimensionar a potência da transformação para a qual Meyerhold dedicou sua trajetória, a simplicidade e a pertinênica das perguntas por ele sugeridas ao ator, reinterpretadas por Maria Thais Na cena do dr. Dapertutto: “[...] o que quero, como devo agir, e o que faço? O que pretendo do parceiro, o que causo a ele, o que recebo dele, como reajo?” (Maria Thais, 2009: 148). A dedicação à resposta sincera, na cena, a essas indagações, pode por certo gerar um novo teatro e um novo mundo.

Referência bibliográfi ca

THAIS, Maria. Na cena do dr. Dapertutto: poética e pedagogia em V. E. Meierhold: 1911 a 1916. São Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2009.

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Bloco IV: O TEATRO DE RUA NO BRASIL

Um itinerário do teatro de ruapor Lindolfo Amaral20

Resumo: O texto apresenta uma radiografi a do teatro de rua no Brasil, a partir do itinerário desenvolvido pelo Grupo Imbuaça, fundado na cidade de Aracaju, Sergipe, em 28 de agosto de 1977. O Imbuaça, nome que homenageia o artista popular, embolador Mane Imbuaça, desde o início das suas atividades, vem montando espetáculos inspirados nas manifestações populares. Participou dos mais importantes festivais de teatro, circulando por todo o País e por alguns países da América Latina e Europa. Por meio de sua participação em eventos artísticos e da realização de ofi cinas, seminários e cursos, o grupo viu e ajudou a fazer crescer o teatro de rua brasileiro.

Abstract: This text presents a snapshot of the street theater in Brazil, from the route developed by Imbuaça Group, founded in the city of Aracaju, Sergipe, on August 28, 1977. The Imbuaça – a name that pays homage to the popular artist, “embolador” Mane Imbuaça – entangled from the beginning of its activities, has been creating performances inspired in the popular manifestations since the beginning of its activities. The group participated in the most important theater festivals, circulating throughout the country and some countries of Latin America and Europe. It was through its participation in arts events and workshops, seminars and courses, that the group saw and helped grow the Brazilian street theater.

Palavras-chave: teatro de rua, teatro de grupo, teatro popular.

Keywords: street theatre, theatre group, theatre people

20 Ator do Grupo Imbuaça (SE) desde 1978, tendo dirigido alguns espetáculos do grupo; ministrou ofi cinas e coordenou o Ponto de Cultura Nosso Palco é a Rua. Foi responsável pelo projeto de criação do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Sergipe e atualmente é doutorando em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia.

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Permitam-me os companheiros do teatro de rua fazer uma retrospectiva das ações desenvolvidas nos últimos quarenta anos em nosso País. Poderei cometer algum lapso, não citando acontecimentos ocorridos em todas as regiões brasileiras. Devo esclarecer, no entanto, que esse texto não tem a pretensão de descrever a história do teatro de rua no Brasil, mas situar o leitor em fatos ocorridos principalmente a partir da década de 1970, envolvendo alguns grupos e festivais, numa tentativa de contribuir com a construção da nossa caminhada. Sou do grupo Imbuaça desde janeiro de 1978. Portanto, os acontecimentos aqui narrados têm o sabor da vivência. Assumir a condição de “sou” carrega o tom de pertencimento, de fazer parte dessa história. E como o homem diariamente convive com os sentimentos da dualidade, dentre eles a razão e a emoção, aproveito logo para declarar também que eles estão presentes na minha trajetória, por conseguinte, nesse texto.

Foto de Bob Sousa. Grupo Rosa dos Ventos - Tiago Munhoz e Robson Toma no espetáculo Salti mbembe mambembancos.

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Não há como separar e dizer que a vida isenta o ator/pesquisador dessa dualidade, das contradições que fazem parte dessa trajetória.

A propósito, o título desse texto está relacionado com o roteiro apresentado no Seminário As Formas Fora da Forma, em que cada década – 1970, 1980, 1990 e 2000 – foi denominada de itinerário. O termo por si só possibilita um passeio pelas ações ocorridas na história do teatro de rua, observando o tripé “ação, tempo e espaço”. Isso não signifi ca dizer que as ideias de Aristóteles serão o fi o condutor da narrativa, mas uma forma de vislumbrar os acontecimentos, levando em consideração esses aspectos.

Quando Mário de Andrade realizou suas viagens pelo interior do Brasil (1928-1929), em busca de sua grande paixão que era a música, constatou a força das danças dramáticas brasileiras. Seguindo o seu raciocínio, pode-se perceber que ele também registrou como as manifestações populares do Nordeste (a região que retomou o teatro de rua na década de 1970, de forma sistemática), tinham relação direta com o teatro, pois o sentido da palavra dramática foi utilizado levando em consideração as características dos grupos folclóricos que ele teve a oportunidade de observar. Há uma relação direta com a origem do teatro.21 O pesquisador estabeleceu algumas comparações, dentre elas o cortejo desenvolvido pelos brincantes nessas manifestações:

Esse cortejo, quer pela sua organização quer pelas danças e cantorias que são exclusivas dele, já constitui um elemento especifi camente espetacular. Já é teatro. [...] O cortejo foi também o elemento criador do teatro grego, mas o cortejo das nossas danças dramáticas deriva de costumes religiosos antiquíssimos, de fontes pagãs, a comemoração ritual das Calendas, mesmo princípio do teatro grego, porém anterior a ele. (ANDRADE, 1982, tomo 1: 31)

Para muitos essa citação não é novidade. Mas ela traz um registro importante realizado por Mário de Andrade. É o estabelecimento de uma linha de pensamento relacionando as 21 No livro Teatro de rua, de Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti , traduzido por Renata Baarni, há um capítulo sobre o teatro de rua no Brasil, em que Fernando Peixoto afi rma que: “[...] o teatro de rua está nas raízes mais autênti cas das manifestações da identi dade cultural nacional”. (PEIXOTO, in: CRUCIANI & FALLETTI, 1998: 143).

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manifestações populares com a origem do teatro. Nesse sentido, Mário de Andrade tentou compreender as manifestações do povo observando como cada brincadeira se desenvolvia. Revendo suas anotações não se tem como fugir de um confronto comparativo com o teatro de rua que surgiu no País na segunda metade de década de 1970, principalmente no Nordeste brasileiro. A grande maioria dos grupos que surgiram nesse período e na década seguinte, 1980, utilizou as manifestações populares como referência para a construção dos seus espetáculos de rua.

Itinerário 1970O Teatro Livre da Bahia, coordenado por João Augusto, foi

um dos pioneiros nessa empreitada. A dramaturgia tinha como carro-chefe os folhetos populares da Literatura de Cordel. E a forma de ocupar o espaço da rua que o grupo adotava era a utilização de músicas e danças populares. O jornalista Rogério Menezes publicou uma reportagem no Jornal Movimento, números 110 e 111, cuja circulação era semanal (7 e 15/8/1977), com o título O Palco é a Rua, na qual fez uma retrospectiva do teatro baiano de 1968 a 1977. Ele acompanhou uma das apresentações do Teatro Livre da Bahia realizada em junho de 1977. Seu registro demonstra o quanto as manifestações populares foram importantes nesse processo de trabalho:

O músico começa a tocar e o povo se junta ao redor. Os atores espalham as roupas pelo chão e começam a se maquiar, o pessoal vai chegando com a cara de quem acha aquilo tudo muito estranho. “Parece até carnaval”, diz um deles. A essa altura umas duzentas pessoas estão por ali. O grupo já maquiado e vestido canta e dança uma música junina. Tocador pede outra e entra um samba de roda, e o pessoal bota as mãos nas cadeiras, depois na cabeça, e remexe. A estudante do Colégio Anísio Teixeira ri de boca escancarada. O velho careca olha com cara de quem nunca viu aquilo na vida. Os atores começam o espetáculo. O apresentador abre a boca e grita. “Senhoras e senhores, vai começar...” (MENEZES, 1977: 16)

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E assim tinha início o espetáculo Felismina engole brasa22, do Teatro Livre da Bahia. O registro do jornalista é cuidadoso e rico em detalhes. O que possibilita visualizar como a trupe deu início à sua trajetória na rua, uma vez que o grupo já vinha trabalhando no palco há muitos anos, tendo como sede o Teatro Vila Velha, localizado no Passeio Público, na cidade de Salvador (BA). As músicas escolhidas estavam vinculadas às manifestações populares e identifi cadas imediatamente pelo público. Eram canções juninas, do carnaval e do samba de roda. Isso não ocorreu por acaso. Os mentores do grupo (Benvindo Sequeira, João Augusto, Harildo Deda, Sônia dos Humildes, dentre outros), sempre afi rmaram que a Cultura Popular deveria nortear o teatro de rua, devido a sua riqueza e diversidade de possibilidades. A relação com o público era direta na medida em que ele identifi cava as matrizes populares. É um espelho diante do espectador, em que cada um se sente envolvido com o que está diante dos seus olhos. Foi dessa forma que o grupo conquistou o público e infl uenciou o surgimento de outras experiências.

Em setembro de 1977, o Teatro Livre da Bahia veio a Sergipe para participar do Festival de Arte de São Cristóvão. Evento criado pela Universidade Federal de Sergipe, cuja programação ocorria em três dias, envolvendo espetáculos de teatro, dança, música, bem como exposições, apresentações de fi lmes e feira de artesanato. No dia 24 de setembro, o grupo apresentou os textos A chegada de Lampião no inferno (folheto de José Pacheco) e Oxente gente (baseado nos folhetos A mulher que perdeu a semetria, de autor anônimo, e A briga do fi scal com a fateira (de autoria do poeta José da Costa Leite). Os atores fi zeram um cortejo até a praça do Rosário, dançando e cantando músicas do cancioneiro popular. O público seguiu atrás e entrou na brincadeira. Ao chegarem ao local, formaram uma grande roda, espalharam as roupas pelo chão, defi nindo, assim, o espaço de atuação e criando o limite entre o público e a ação dramática. Os atores tinham um desprendimento muito grande. Incorporavam ao espetáculo as brincadeiras da plateia, envolvendo todos na ação. 22 Texto inspirado no folheto de cordel A mulher que pediu um fi lho ao Diabo, cuja autoria é atribuída a Galdino da Silva, segundo o programa do Teatro Livre da Bahia.

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Tudo era muito descontraído, alegre e envolvente. No meio daquela gente havia diversos jovens que estavam criando um grupo de teatro na cidade de Aracaju. Não havia realizado nenhuma montagem. O momento era de escolha da linha de atuação, pois alguns eram estudantes universitários e estavam envolvidos com o movimento estudantil. Ao verem o espetáculo de rua23, do Teatro Livre da Bahia, não tiveram dúvidas. Escolheram fazer teatro de rua utilizando o folheto popular como dramaturgia. Para tanto, um integrante do Imbuaça (Antonio do Amaral) participou de uma ofi cina de teatro de rua, ministrada em Aracaju por Benvindo Sequeira. E assim, em 1978, o Grupo Imbuaça dava início à sua trajetória de teatro de rua, apresentando o espetáculo Teatro chamado Cordel, com os textos O matuto com o balaio de maxixi, de José Pacheco, adaptação de Antonio do Amaral e O marido que passou o cadeado na boca da mulher, de Cuíca de Santo Amaro, adaptação de João Augusto. A opção do Imbuaça foi seguir os passos do Teatro Livre da Bahia, ou seja, realizar um cortejo com danças e canções populares e, no local previamente escolhido, abrir uma roda, espalhar as roupas e os adereços, criando um limite entre público e ação dramática.

Não havia cenários, o espetáculo acontecia no círculo e os atores se deslocavam obedecendo a uma triangulação, ocupando sempre os espaços vazios da roda. Essa forma foi desenvolvida a partir da ofi cina de teatro de rua, ministrada em Aracaju, nos meses de outubro a dezembro de 1977, por Benvindo Sequeira. O Imbuaça, com seus nove atores (Francisco Carlos, Maria das Dores, Antonio do Amaral, Maurelina, Cícero Alberto, Virgínia Lúcia, José Amaral, Pierre Feitosa e Lindolfo Amaral), começou apresentando o seu espetáculo na periferia de Aracaju e aos poucos foi ocupando espaços no centro da cidade, no Campus da Universidade Federal de Sergipe. Chamou a atenção do púbico, da academia e da imprensa. Em 1979, começou a circular pelos festivais. Os primeiros foram o Festival de Arte de São Cristóvão (SE) e o Festival de Cinema de Penedo (AL), além do Encontro Cultural de Laranjeiras (SE). 23 Nesse mesmo festi val, o grupo apresentou o espetáculo de sala inti tulado Os fuzís da senhora Carrar, de Bertolt Brecht, no Centro Recreati vo Industrial.

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Nessa mesma época (1979), Aracaju recebeu a visita do Teatro Ofi cina, que trouxe um espetáculo de rua para a cidade. O polêmico Ensaio geral para o carnaval do povo, dirigido por Zé Celso, terminou na Delegacia de Polícia, devido à utilização da bandeira do Brasil em uma cena. Esse fato revoltou os estudantes universitários, responsáveis pela vinda do grupo, e o Imbuaça, com isso, percebeu que poderia fazer um espetáculo contestando a situação política vigente. Foi nessa atmosfera que Virgínia Lúcia escreveu, em forma de folheto popular, o texto A história da coroa do meio, para contar a especulação imobiliária que vinha ocorrendo em um bairro da cidade de Aracaju. Com isso, o espetáculo Teatro chamado Cordel adquiriu mais um texto e a trupe começou a ampliar o campo de atuação. As viagens ao interior do Estado e aos demais Estados da região aumentaram.

Itinerário 1980O espetáculo Teatro chamado Cordel começou a circular pelos

festivais de teatro do Nordeste, dentre eles o Festival de Inverno de Campina Grande (PB), Festival Nacional de Teatro do Cabo (PE), Festival de Teatro da Bahia (realizado em Salvador), Festival Regional de Teatro (realizado em Feira de Santana – BA). A repercussão foi imediata, pois não havia grupos trabalhando na rua, e o Teatro Livre da Bahia havia encerrado sua experiência na rua após o falecimento de João Augusto, em novembro de 1979.

Foi a primeira vez que o Festival de Inverno de Campina Grande recebeu um grupo de teatro de rua. A coordenadora do evento, Eneida Agra Maracajá, solicitou ao Imbuaça que também fi zesse uma apresentação no palco do Teatro Severino Cabral. Esse ato foi o primeiro na história da trupe, isto é, realizar um espetáculo concebido para a rua em um palco italiano. Foi um grande desafi o e uma conquista. O grupo levou para o teatro um vendedor de folheto de Cordel, que negociava na feira livre da cidade. E transformou a relação palco/plateia, pois os atores resolveram também ocupar os corredores do teatro, envolvendo o público na ação dramática. A participação do Imbuaça no Festival de Campina Grande (PB)

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foi importante porque possibilitou o surgimento de outros grupos. Assim, surgiram as experiências do Grupo Alegria, Alegria, da cidade de Natal (RN) e o Quem Tem Boca É Pra Gritar, da cidade de Campina Grande (PB). Todos buscaram se alimentar nas fontes populares. E aqueles que não observavam o teatro folclórico com o olhar dramático passaram a perceber as suas possibilidades de investigação, transformando-o em linguagem de pesquisa artística.

Dois grandes pesquisadores, Niomar de Souza Pereira e Clovis Garcia, apontaram essas possibilidades em artigos publicados no Boletim de Leitura da Associação Brasileira de Folclore.24 O primeiro demonstra o quanto são ricas e diversifi cadas as manifestações populares, apresentando inclusive as bases conceituais e os princípios que norteiam o chamado teatro folclórico. Já o segundo apresenta uma vasta lista de grupos e pessoas que vêm trabalhando com o material coletado nas fontes populares brasileiras. E começa citando Ariano Suassuna. Clovis Garcia afi rma:

Essas criações são caracteristicamente nacionais mas, ao mesmo tempo, são universais, pois expressam a natureza humana. Isso explica, por exemplo, o sucesso nacional e internacional de um texto como o “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna (GARCIA, 1994: 38).

Não resta dúvida que Ariano Suassuna é o grande responsável pela introdução do folheto popular em verso na dramaturgia. O sucesso do seu texto Auto da Compadecida no Festival Nacional de Teatro, realizado no Rio de Janeiro, em janeiro de 1957, foi um marco na história do teatro brasileiro. Foi naquele ano que surgiram diversos autores fazendo uso do Cordel para a construção de textos teatrais. Como exemplo, é importante citar Francisco de Assis (Teatro de Arena – SP), Francisco Pereira da Silva (RJ) e João Augusto (BA).25 O que se tem hoje no teatro de rua é a continuidade dessa história. A rua é o espaço mais democrático que se conhece. A ela todas as classes têm acesso, tudo pode acontecer e as fontes populares possibilitam um

24 Boleti m número 4, publicado em junho de 1994 pelo Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima.

25 Esse material é objeto de pesquisa do doutoramento, que está sendo realizado pelo autor desse arti go, na Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da Profa. Dra. Eliene Benicio.

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diálogo direto, pois o público identifi ca-se com o que está posto em cena. A relação que os grupos do Nordeste estabeleceram com o seu público foi sempre direta e no mesmo plano (horizontal).

O Imbuaça seguiu seu caminho pelos festivais. Foram muitos, porém vale citar alguns fora da região Nordeste, para que se possa ter a visão da repercussão do trabalho desenvolvido pelo grupo: Festival de Ponta Grossa (1982), Mambembão (1983), Festival da Confederação Nacional de Teatro Amador – Confenata (1984), Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (1985), Festival Internacional de Teatro e Expressão Ibérica – Fitei (Porto, Matosinhos, Santo Antonio Infesta – Portugal, 1986) e o Encontro Internacional de Teatro de Rua, realizado na cidade do Rio de Janeiro, com as participações dos grupos Tá na Rua e Dia a dia, do Rio de Janeiro; Galpão, de Belo Horizonte (MG); Imbuaça, de Aracaju (SE) e os grupos italianos Tascabile, de Bérgamo e Potlach, de Farassabide. Foi o primeiro evento que reuniu grupos de rua para trocar experiências e apresentar seus espetáculos. Foi muito importante para todos, pois ali abriu-se o caminho para o debate e a refl exão da produção artística. Ali se pôde ver como cada grupo estava desenvolvendo a pesquisa de linguagem e ocupando o espaço da rua.

Ao lembrar das apresentações ocorridas no Largo da Carioca e no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, uma forma era comum em todos os grupos: a ocupação se dava no plano horizontal e não havia grandes cenários. Tudo era muito simples e marcante. A comunhão com o público era imediata. O riso leve e solto era o grande pagamento que todos recebiam a cada instante da atuação. Enquanto isso, os italianos ocupavam planos superiores, levando seus espetáculos para a verticalidade. Albatroz, do Tascabile, utilizou alguns edifícios do Largo da Carioca com seus pássaros vermelhos. Depois começaram a chamar essa ação de ocupação urbana. Um teatro que dialoga com a arquitetura do local. E os brasileiros seguiam seu caminho buscando olhar para seu público no mesmo plano. Como o tempo é o senhor da memória, ele faz lembrar de um

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passado não muito distante e compará-la a um instante presente. Muita coisa mudou, mas a resistência continua existindo para diversos grupos. E isso signifi ca manter-se no mesmo plano (horizontal), sem grandes aparatos de cenografi a. O fazer teatro de rua sem patrocínio de empresas que termina gerando uma dependência econômica.

Itinerário 1990Os anos 1990 começaram com novidades para o Imbuaça.

O grupo foi convidado para participar do Festival de Teatro de Belo Horizonte e do Festival Internacional de Teatro do Equador. Duas experiências importantes. Na primeira, o Imbuaça consolidou uma relação afetiva com o Grupo Galpão, que se mantém até hoje. Já a viagem ao Equador26 possibilitou ao Imbuaça conhecer grupos sul-americanos que realizavam os seus espetáculos inspirados na Cultura Popular. Teatro com o olhar no campo e nas nações indígenas. Outro fato importante foi o encontro com a Diretora María Escudero (1926 – 2005)27. O grupo voltou ao Brasil revitalizado e seguro de que o seu trabalho estava cumprindo a função de colocar em cena o universo popular, pois os espetáculos apresentados, mesmo em língua portuguesa (As irmãs tenebrosas e Teatro chamado Cordel), tiveram excelente receptividade. E o debate após as apresentações reuniu muita gente interessada em conhecer melhor o teatro brasileiro, fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo.

No ano seguinte, o grupo voltou ao Fitei, realizado na cidade do Porto, em Portugal. Dessa vez, o Imbuaça conheceu grupos de rua da Espanha, França e Portugal. Eram espetáculos gigantescos, com uma parafernália de equipamentos de cenário, som e luz. Impossível para os grupos que não dispõem de patrocínio realizar tais produções. Ver aquilo tudo diante dos olhos foi muito bonito. Observar as possibilidades de ocupação da rua foi interessante, mas 26 O Imbuaça circulou por cinco cidades equatorianas, dentre elas Guayaquil, Manta, Portoviejo e Quito.

27 Foi docente da Faculdade de Teatro da Universidade de Córdoba (Argenti na), cidade onde, em 1964, fundou o grupo Libre Teatro Libre. Em 1975, foi expulsa da Faculdade devido às suas ideias consideradas subversivas. Fugiu de sua pátria e exilou-se em Quito, onde trabalhou com diversos grupos, dentre eles, o Malayerba.

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uma coisa chamou a atenção. Esse é o teatro europeu que jamais deveria ser copiado, pois ele não se relacionaria com a geografi a brasileira. São espetáculos-eventos circunscritos a um determinado espaço, sem a possibilidade de circulação por grandes regiões.

O Brasil assistiu ao crescimento do teatro de rua com o surgimento de eventos específi cos que possibilitaram o encontro de grupos, a troca de experiências e a demonstração de trabalhos. Vale lembrar alguns deles: Mostra de Teatro de Rua de Porto Alegre (RS), em 1991;28 Em Campinas (SP), aconteceu o Encontro Nacional de Teatro de Rua; e na cidade de Ribeirão Preto (SP) surgiu o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo, com a marcante presença do teatro de rua Ói Nóis Aqui Traveis, de Porto Alegre (RS); do Fora do Sério, de Ribeirão Preto (SP); do Tá na Rua, do Rio de Janeiro (RJ); do Galpão, de Belo Horizonte (MG) e do Imbuaça, de Aracaju (SE). O evento, que teve a coordenação dos atores do Fora do Sério, foi muito importante para a organização política dos grupos, bem como para a construção de um movimento que pudesse congregar todos em torno de propostas comuns. Foi desse movimento que surgiu a revista Máscara e a realização de outros encontros (Ribeirão Preto, em 1993, e em São Paulo, em 1998, com a coordenação da Cooperativa Paulista de Teatro e dos atores dos Parlapatões, Patifes & Paspalhões).

Em 1992, o grupo deu início a uma nova forma de trabalho, convidando diretores para desenvolver atividades em sua sede recém-conquistada pela ocupação de um espaço público abandonado. Esse fato só ocorreu graças ao companheiro Ilo Krugli que, diante de uma fogueira em homenagem a São Pedro (29 de junho de 1991), contou como se deu a conquista do espaço do Ventoforte, em São Paulo. Foi nessa nova sede que o Imbuaça montou o espetáculo A farsa dos opostos, com a direção do potiguar João Marcelino. Esse trabalho circulou por todo o Brasil, e com isso o grupo percebeu o quanto o teatro de rua cresceu em todo o País. Muitos grupos surgiram em todas as regiões brasileiras. Foi sem sombra de dúvida

28 Em 2010, Jessé Oliveira lançou um livro contando a história do Teatro de Rua em Porto Alegre.

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a década de consolidação do teatro. Contraditoriamente, foi também a que começou com o desmonte do Ministério da Cultura, durante o governo do presidente Fernando Collor de Melo, e que viu renascer a força das ruas.

No programa do espetáculo A farsa dos opostos (1992), João Marcelino publicou um texto que tem importante signifi cado para o teatro de rua que o Imbuaça vem fazendo, pois exprime o sentido do teatro que, ao investigar a tradição do povo, expõe o que ela tem de conteúdo e das possibilidades de comunicação que estabelece com o seu público:

O Imbuaça está na rua representando a todos. No jogo da sedução, na verdade e na mentira, nos opressores e oprimidos, no sacro e no profano, no vermelho e no azul. Tudo isso apresentado de forma como habituamos a ver a vida e a arte. A culpa deste espetáculo é do Pastoril, do Mamulengo, dos Dramas Circences, dos palhaços, do carnaval, do Candomblé, da novela do rádio, do desenho em quadrinhos, enfi m, a culpa é do Brasil (PEIXOTO, apud MARCELINO, 1992: 150-1).

João Marcelino, em seu texto, apresenta diversas matrizes que infl uenciaram o teatro de rua no Brasil e serviram de inspiração para a construção de uma dramaturgia marcadamente voltada à Cultura Popular. Vale citar alguns autores, como Ariano Suassuna, Joaquim Cardoso, Luiz Marinho, Altimar Pimentel, Osvald Barroso, João Augusto, Racine Santos, Francisco Pereira da Silva, Hermilo Borba Filho, Vital Santos, Benvindo Sequeira, que beberam nessas fontes e produziram textos que estão ocupando os palcos e as ruas do mundo. As aventuras de Pedro Malazartes, de Racine Santos, montagem do Grupo Alegria, Alegria, de Natal (RN), teve mais de duas mil apresentações. O Imbuaça, vez em quando, tem trabalhado com a dramaturgia de cordel produzida por João Augusto29. Recentemente, o Grupo Ser Tão Teatro, da cidade de João Pessoa (PB), montou o texto O coronel de Macambira, do pernambucano Joaquim Cardoso. São exemplos que demonstram a utilização de textos cuja estrutura dramática foi concebida com base nas matrizes populares.29 A sua dramaturgia foi objeto de estudo da dissertação de Mestrado inti tulada Na trilha da cultura popular: a dramaturgia de João Augusto, defendida por Lindolfo Amaral, sob orientação da Profa. Dra. Eliene Benício, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2005.

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Não há uma dramaturgia específi ca para a rua. Amir Haddad sempre defendeu que o espetáculo de rua deve ser aberto, permitindo a participação, ou melhor, a interferência do público. É a linha que ele adota no Grupo Tá na Rua, do Rio de Janeiro (RJ). Outros grupos seguem caminhos diversifi cados, como Ói Nóis Aqui Traveis, da cidade de Porto Alegre (RS) e Grupo Galpão, de Belo Horizonte (MG), que já trabalharam textos de Bertolt Brecht e de William Shakespeare, respectivamente. Essa questão da dramaturgia pode ser um fator interessante para se analisar o teatro de rua brasileiro, pois os espetáculos concebidos a partir de um autor seguem uma construção fechada. E, na sua maioria, as montagens são fechadas (como estrutura dramática), em um espaço previamente estabelecido, ou seja, não são espetáculos itinerantes.

Mas, retomando o itinerário 1990, um fato marcou profundamente o início dessa década. Foi a estreia do espetáculo Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, sob a direção de Gabriel Villela, que deu grande impulso ao teatro de rua no Brasil. A montagem trouxe pela primeira vez uma estrutura cenográfi ca ousada para as produções brasileiras. O automóvel do grupo (Veraneio) foi utilizado como cenário e o espetáculo foi concebido nos planos horizontal e vertical. Esse fato surpreendeu a todos, inclusive a crítica. Não é possível mensurar, mas é provável que a repercussão dessa montagem tenha proporcionado a formação de diversos grupos de teatro de rua pelo Brasil. O surgimento de grupos na década de 1990 foi muito grande e os eventos destinados ao teatro de rua começaram a surgir em todo o País.

Parati e Angra dos Reis são duas cidades do Rio de Janeiro que começaram a organizar festivais de teatro, destinando parte das suas programações ao teatro de rua. Já os Festivais Internacionais de Londrina (PR) e Belo Horizonte (MG) começaram a trazer espetáculos de rua de outros países e integrá-los em suas programações, juntamente com os espetáculos brasileiros. Esse fato acabou gerando troca de experiências entre os grupos que participavam desses eventos. O número crescente de espetáculos e de grupos de

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teatro de rua possibilitou a criação de eventos específi cos em todas as regiões do País, como festivais, mostras, seminários e ofi cinas, congregando as produções e ampliando os espaços.

Itinerário 2000O teatro de rua entrou no século XXI consolidando o seu

espaço. Hoje praticamente todos os eventos que ocorrem na área do teatro têm a participação de espetáculos de rua. O que era uma atividade esporádica, no início da década de 1970, passou a ser uma prática cotidiana. Com a chegada da equipe de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura surgiram os editais para as Artes Cênicas e para o Projeto Cultura Viva (2004). Grande parte dos grupos de teatro tornou-se Pontos de Cultura. Tal fato também gerou uma série de problemas, principalmente na área burocrática. O Ministério não tinha infraestrutura para implantar um projeto tão amplo e os grupos não estavam preparados para atender às exigências documentais.

Já que foi citado um fato relacionado ao Governo Federal e à consequente mudança de concepção sobre políticas públicas, convém também lembrar que o teatro de rua brasileiro tem marcadamente a sua história relacionada com fatos políticos ocorridos no País. Ditadura em pleno vigor e o teatro voltou às ruas (1977). Dessa vez para fi car, pois suas ações passaram a ser contínuas. Anos 1980 e a luta pelas eleições diretas ocupou as ruas. O teatro de rua ampliou seus espaços, com o surgimento de grupos por todo o País. Anos 1990, os caras pintadas invadiram as ruas exigindo a saída do presidente Collor. O teatro de rua organizou-se com o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo (1991). Século XXI, a consolidação da democracia no País com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República. Esse fato possibilitou uma radical mudança no Ministério da Cultura. Por outro lado, o teatro de rua criou a Rede Brasileira de Teatro de Rua, que tem como principal canal de comunicação a internet.

Há de se lembrar que muita coisa mudou no campo da produção artística e na área de atuação. Se no início o grupo chegava

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ao espaço para se apresentar com seus fi gurinos e adereços, hoje a estrutura é bem diferente. As produções cresceram e o uso de equipamentos de sonorização e de iluminação tornou-se comum entre os grupos. Isso criou outras demandas. Liberação de espaço físico para realização das apresentações é um problema que até então não ocorria. E passou a ser um ato comum em quase todas as regiões brasileiras. A repressão política que havia sobre as ações do teatro de rua na década de 1970 tornou-se econômica. A cobrança de taxas exorbitantes para apresentação de espetáculos em alguns espaços já começou a inviabilizar algumas ações.

Por outro lado, o espetáculo que acontecia de forma modesta no plano horizontal, hoje ocupa espaços verticais. A cada momento há novidade na concepção cênica, como o uso do rappel e de máquinas pesadas em cena. Como exemplo dessas novas práticas vale citar os espetáculos O voo das fêmeas e Mitologia do clã, do Grupo Falos & Stercus, de Porto Alegre (RS), e Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido, do Grupo Teatro que Roda, de Goiânia (GO).

Outro fato que convém lembrar é a infl uência que os festivais exerceram e exercem sobre a produção do teatro de rua brasileiro. Esse fato já foi comentado, mas vale a pena registrar que o Teatro Livre da Bahia começou a desenvolver suas experiências na rua depois de ter participado do Festival de Nancy, na França, em 1975, e ter tido a oportunidade de observar os grupos europeus atuando na rua. A vinda de grupos ao Brasil e a participação de grupos brasileiros em festivais estrangeiros infl uenciaram as práticas existentes. Muitos optaram por mergulhar na tradição popular. Aquelas registradas por Mário de Andrade. Outros optaram por um teatro que dialogue com o espaço urbano. Entre esses dois caminhos há inúmeras outras experiências diferentes que contribuíram para a diversidade do nosso teatro.

Subtexto, Revista de Teatro do Galpão Cine Horta, prestou um importante serviço para a história do teatro ao mapear os grupos de teatro do Brasil, cujo primeiro esboço foi publicado na edição de novembro de 2007. É uma radiografi a dos grupos e dos espetáculos

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existentes em todos os Estados brasileiros. Esse documento possibilitou vislumbrar como cada região está trabalhando e também tem auxiliado na construção da memória mais recente do teatro. O diretor e pesquisador André Carreira fez a apresentação da Subtexto, com o texto intitulado Teatro de grupo: diversidade e renovação do teatro no Brasil. Quem teve acesso à revista constatou a situação do teatro de rua em cada região. Do Acre ao Rio Grande do Sul. Comparando com o início desse itinerário, é possível observar que o crescimento do teatro foi muito grande, mas ainda há muito para se conquistar. Uma luta que só está nos primeiros passos é a Lei de Fomento para os Grupos do Brasil. Editais que possibilitem a manutenção do grupo, um dos grandes anseios daqueles que trabalham coletivamente. Fazer teatro nesse País é um grande desafi o; manter um grupo por mais de trinta anos é um verdadeiro ato de resistência. Que dias melhores os grupos possam trilhar e que o teatro de rua viva sem enfrentar tantas barreiras, seja na ocupação de espaços públicos, seja na manutenção de suas ações.

Referências bibliográfi cas

AMARAL, Lindolfo. Na trilha da cultura popular: a dramaturgia de cordel de João Augusto. Dissertação (Mestrado) – Salvador: UFBA, 2005.

_____. A construção da memória – Imbuaça 30 anos. Prêmio Myriam Muniz, Aracaju: Ed. J. Andrade, 2007.

ANDRADE, Mário. Danças dramáticas do Brasil. Edição organizada por Oneyda Alvarenga, 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

CARREIRA, André. et al. Subtexto. Revista de Teatro do Galpão Cine Horto. n. 7, 2007.

CRUCIANI, Fabrizio; FALLETTI, Clelia. Teatro de rua. São Paulo: Hucitec, 1998.

OLIVEIRA, Jessé. Memória do teatro de rua em Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Ueba, 2010.

PEREIRA, Niomar; GARCIA, Clovis. O teatro folclórico. Boletim de Leitura – Associação Brasileira de Folclore, São Paulo, 1994.

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A improvisação, o ator e a commedia dell’artepor Ana Rosa Tezza30

Resumo: O artigo trata da improvisação como processo de criação do teatro da commedia dell’arte, da função essencial do ator e sua trajetória social na história do teatro. Traz ainda uma refl exão sobre o ofício desse tipo de ator e sua relação com o público, o espaço e a sociedade.

Abstract: This article talks about the improvisation as the creative process of the commedia dell’arte, the essential function of the actor in the same, and its social journey in the same offi ce in theater history. It also brings a refl ection on the craft of this type of actor and his relationship with the public, space and society.

Palavras-chave: commedia dell’arte, improvisação, ator-autor, teatro.

Keywords: commedia dell’arte, improvisation, actor-author, theater.

A commedia dell’arte tem sido referência na construção da história do teatro ocidental desde o seu aparecimento no século XVI. Esse gênero teatral surgiu na Itália em contraposição ao teatro literário culto ou à comédia erudita, e tem como base o trabalho do ator, que constrói seu espetáculo prescindindo do texto, seguindo apenas um roteiro (canovaccio), um esboço que norteia sua criação.

Anterior ao aparecimento da commedia dell’arte como a conhecemos hoje (considerando que esse esboço já existia em certas formas de teatro praticado em espaços públicos, inclusive feiras, entre acrobatas e prestidigitadores), o teatro dos humanistas31 toma lugar nas academias e nos palácios, tendo como fi m principal a declamação do

30 Mestre em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Atuou em Santi ago do Chile na Companhia de Teatro Sombrero Verde, sob a direção de Andrés Peres Araya. Integrou, como atriz e pesquisadora, o Núcleo de Criação Teatral do Ateliê de Criação Teatral (ACT), em 2001. Atualmente, dirige a Ave Lola Espaço de Criação e faz parte do Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.

31 “Se fôssemos escolher um marco para a ‘Renascença’ do teatro, a data seria 1486. É o ano em que a primeira tragédia de Sêneca foi montada em Roma pelos humanistas e a primeira comédia de Plauto pelo duque de Ferrara. E foi nesse ano também que saiu do prelo a De Architectura (Dez Livros Sobre a Arquitetura), de Vitrúvio, uma contribuição essencial para plasmar o palco e o teatro segundo o modelo da Anti guidade” (BERTHOLD, 2000: 270).

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texto: “O teatro dos primeiros humanistas parecia muito modesto. O texto interessava mais que qualquer esforço artístico em relação aos efeitos do palco” (BERTHOLD, 2000: 271).

Nesse contexto, os autores teatrais eram fi guras dominantes desse teatro. Segundo os acadêmicos da época, eram homens que serviam de referência para um modelo culto, tão almejado pela aristocracia e pela classe intelectual da época:

“Sêneca, Terêncio e Plauto eram mestres da linguagem latina e do discurso fl uente, protótipos de um modo culto de vida como padrão de tudo o que o drama tinha a contribuir para a nova imagem do homem” (idem, ibidem).

A commedia dell’arte subverte a relação hierárquica que há entre a importância do texto e a do trabalho do ator. A ruptura nessa relação hierárquica se dá na medida em que a base do acontecimento teatral, na linguagem proposta pela commedia dell’arte, é criação do ator em determinada situação. O ator deve, com base em um roteiro de ações, ou seu canovaccio, dar forma cênica à história a ser contada, considerando simultaneamente o jogo entre os atores com quem contracena, a plateia e o roteiro, que deve seguir:

Commedia dell’Arte – Comédia da habilidade. Isto quer dizer arte mimética segundo a inspiração do momento, improvisação ágil, rude e burlesca, jogo teatral primitivo tal como na Antiguidade os atelanos haviam apresentado em seus palcos itinerantes: o grotesco de tipos segundo esquemas básicos de confl itos humanos, demasiadamente humanos, a inesgotável, infi nitamente variável, e, em última análise, sempre inalterada matéria-prima dos comediantes no grande teatro do mundo. Mas isso também signifi ca domínio artístico dos meios de expressão do corpo, reservatório de cenas prontas para a apresentação e modelos de situações, combinações engenhosas, adaptação espontânea do gracejo à situação do momento (BERTHOLD, 2000: 353).

A improvisação como base do trabalho teatral é uma característica determinante da commedia dell’arte. Por isso, a partir de agora, o conceito de improvisação será utilizado com frequência nesse artigo. Vale esclarecer sob quais aspectos ele é visto, na medida em que o tema improvisação rende, até hoje, inúmeras discussões.

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Segundo o especialista Mario Apollonio, assim como outros teóricos, a improvisação é inerente ao ato de interpretar, e existe em maior ou menor quantidade em qualquer gênero teatral:

Entre as várias formas de atuação artística existe uma diferença quantitativa, não qualitativa; que a improvisação, o estímulo criativo, a inspiração da Musa ou em uma palavra a sugestão, pela qual a emoção se torna comunicável, existe sempre, mas em maior ou menor grau (APPOLLONIO apud CHACRA, 1983: 61).

Dessa forma, e complementando a afi rmação por meio da defi nição de Patrice Pavis, a improvisação se caracteriza na:

Técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e “inventado” no calor da ação. Há muitos graus de improvisação: a invenção de um texto a partir de um canovaccio conhecido e muito preciso (assim na Commedia dell’Arte), o jogo dramático a partir de um tema ou de uma senha (PAVIS, 1999: 205).

Diante dessa abertura sobre o que seja improvisação, esse trabalho aborda a “improvisação” como ato que engloba criação e execução de uma cena, cujo procedimento está claramente “[...] delimitado pelo desenvolvimento temático, o que já não é

Foto de Bob Sousa. Grupo Rosa dos Ventos - Fernando Ávila, Gabriel Mungo e Tiago Munhoz no espetáculo Salti mbembe mambembancos.

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absolutamente livre, e decorre da competência do artista que não pode subestimar a lei da coerência e da harmonia, sob pena de perder a direção” (APOLLONIO apud CHACRA, 1983: 24).

Segundo Dario Fo, os atores da commedia dell’arte pouco improvisavam: “[...] os cômicos não possuíam sequer a tão decantada arte inatingível de inventar de improviso diante do público situações de diálogos de extraordinário frescor e atualidade” (FO, 1999: 17). Se tomarmos como verdadeiro o conceito que restringe a improvisação à ação de interpretar algo de maneira espontânea, que não faça parte do repertório de ações do ator, ou seja, se usarmos essa premissa para defi nir improvisação, a afi rmativa acima é verdadeira, pois os comediantes dell’arte possuíam um enorme compêndio de:

[...] diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo [...] Todas essas ‘tiradas’ poderiam ser adaptadas a situações diversas, inclusive sendo deslocadas ou recitadas em sequência em um diálogo (FO, 1999: 17).

Por outro lado, ampliando-se esse conceito, pode-se levar em conta as palavras-chave utilizadas por Apollonio, apud Chacra (1983): “estímulo criativo”, “inspiração” e “sugestão”. Assim, de modo amplo, pode-se dizer que improvisação é todo ato de decidir entre os numerosos diálogos de repertório, truques e acrobacias a serem utilizados, e de adaptá-los conforme o andamento da cena, sempre tomando em conta a plateia visada, além do outro ator.

Ainda que o senso comum recaia sobre a ideia segundo a qual a improvisação só existe quando o ator desfruta de total liberdade, momento em que pode executar qualquer gesto ou ação, em qualquer direção, apenas guiado por um tema, tanto Pavis (1999) quanto Apollonio (1983) indicam que a improvisação também pode acontecer quando o ator está circundado por códigos gestuais preestabelecidos ou quando é guiado por um roteiro de ações concretas ao longo da obra.

Outro aspecto da improvisação que nos interessa é perceber esse procedimento não só no momento de apresentação da obra, mas também no momento de sua criação. Em outras palavras, a

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commedia dell’arte era construída a partir dos canovacci que serviam de base para que o ator elaborasse então uma série de cenas, gags que acabavam por dar o corpo para esse esqueleto já existente. Se, por um lado, os atores da commedia dell’arte lançavam mão de um repertório preexistente criado e preparado por eles, atores, por outro, custa imaginar que era exclusivamente com pena e papel na mão que esses artistas criavam suas cenas.

Com seus estudos sobre a natureza da improvisação, Chacra ajuda a elucidar o ato de criação desse ator:

Para o cômico dell’arte a palavra escrita está longe da falada, a arte cênica anotada daquela atuada. Ele é um ator-autor, diferente do autor-dramaturgo: este cria individualmente, numa relação puramente subjetiva com o imaginário, no silêncio e no isolamento da literatura: aquele, ao contrário, cria no átimo de representação, num borbulhar de emoções que emanam de si e da assistência (CHACRA, 1983, p. 62).

A partir dessa ideia o ator exerce o papel de autor da obra porque é responsável por preencher e dar forma cênica ao espetáculo, inclusive determinar o tempo que este deve durar. Levando-se em conta a forma com que esse ator elabora seu repertório – quer durante o ensaio (treinamento, preparação), quer durante a apresentação da obra –, pode-se entender que nesse processo criativo a improvisação exerce papel fundamental. Afi nal, ela está presente na elaboração das gags feitas e pré-armadas pelos atores, no momento de suas escolhas, durante o espetáculo, assim como na ação de adaptar e conduzir as cenas conforme a recepção do público.

Assim, considera-se a improvisação como toda decisão racional ou intuitiva que leve o ator a executar determinada ação física ou verbal no calor da cena, seja ela construída com base em um roteiro, seja por um texto dramático com diálogos estruturados e indicações de cena. A improvisação está no momento em que o ator cria o como executar esta ou aquela ação. Se ela ocorre durante o ensaio ou durante a apresentação da obra, isso é – em minha análise de L’Age d’or [A idade de ouro], assim como o é para Apollonio – um ato de improvisação.

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Característica determinante da commedia dell’arte, a improvisação possibilita ao ator enorme poder de criação que interfere diretamente no resultado dramatúrgico da obra, considerando que os textos previamente escritos não eram mais do que esboços que guiavam o elenco para uma única direção narrativa.

Tendo a improvisação como base fundamental de todo o seu trabalho, os procedimentos praticados pela commedia dell’arte eram inconcebíveis para o teatro dos humanistas, já que a liberdade que os comediantes tinham nas escolhas de tema e a própria forma burlesca32 de apresentação se opunham aos objetivos moralizantes do teatro praticado no meio acadêmico. Os autores humanistas propunham que a obra servisse de modelo para as pessoas de sua época, mas priorizavam o ambiente aristocrático, conforme modelos gregos, e, nesse afã, o teatro foi se afastando cada vez mais da realidade vivida pelas pessoas simples, e provavelmente perdendo o contato com a audiência. Com isso abriu mão de um dos aspectos fundamentais para a preservação do teatro vivo.

Ao longo da história do teatro percebe-se que um dos aspectos imprescindíveis para a sua sobrevivência é a capacidade de se comunicar com seu tempo e com o público. É no confronto entre duas linguagens teatrais antagônicas, o dito teatro dos humanistas e a commedia dell’arte, que a segunda ganha seu espaço, não só junto ao povo e aos burgueses, mas também junto ao meio “culto” e aristocrático. O texto carregado de ensinamentos sobre as virtudes e regras morais dos humanistas cede lugar a outra forma teatral.

A commedia dell’arte propõe uma forma leve e dinâmica, apresentando uma maneira de fazer teatro em que o jogo improvisacional, o espaço para a representação33 e as convenções estabelecidas entre ator e audiência ditam suas regras. Os assuntos 32 “O burlesco é uma forma de cômico exagerado que emprega expressões triviais para falar de realidades nobres ou elevadas, mascarando assim um gênero sério por meio de um pasti che grotesco ou vulgar: é a explicitação das coisas mais sérias por expressões totalmente cômicas e ridículas” (PAVIS, 1999: 35).

33 “O teatro não representa algo preexistente, que teria existência autônoma (o texto) e que se apresentaria uma segunda vez nos palcos. É preciso tomar a cena como acontecimento único, construção que remete a si mesma e que não imita um mundo de ideias” (PAVIS, 1999: 339).

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abordados pelos comediantes dell’arte eram contemporâneos, próximos à realidade das pessoas de sua época, e apesar de serem abordados com aparente simplicidade e comicidade, não deixavam de constituir questões profundas e universais que se mostravam pelas “personagens-tipo” (máscaras).

Nas máscaras típicas da commedia dell’arte, entre outras personagens, Arlecchino explicita por meio de suas peripécias sua luta pela sobrevivência e permanência na sociedade a que pertence, como também sua fragilidade, suas necessidades básicas como comer, dormir, sentir prazer, ainda que seja enganando. Assim ele mostra sua humanidade.

Essas características permitem que esse tipo de teatro seja facilmente endereçado a seu público, seja ele “culto”, aristocrático, estrangeiro, ou não. Enfi m, o teatro dos humanistas dá lugar à commedia dell’arte, que revela de uma maneira ou de outra as inúmeras possibilidades de relação entre os seres humanos de todas as classes sociais, de forma divertida e eloquente, sem necessariamente aludir a modelos de comportamentos virtuosos ou a apologias à moral.

A commedia dell’arte é um gênero teatral que tem sua origem na arte das feiras e das ruas. Seus ascendentes são os saltimbancos, os malabaristas, mimos e acrobatas. Nasce das manifestações populares e, no entanto, é ela, a commedia, que atribuiu ao teatro improvisado a qualidade de arte, e aos seus praticantes, a qualidade de atores profi ssionais.

A commedia dell’arte é representada por atores que sabem usar o gesto corporal e o movimento com precisão e facilidade. Trabalham com diferentes timbres de voz e garantem em sua enunciação enorme variação de ritmos e altura para dar às personagens mais graça e dinamismo. Ao contrário do teatro humanista, os comediantes dell’arte não recitam textos, mas os interpretam por meio de seu corpo e sua voz expressiva, artifi cializando o gesto e recobrando a teatralidade que havia fi cado, por algum tempo, esquecida pelos

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humanistas. Estes, por sua vez, centraram sua atenção no texto escrito, na sua enunciação correta e clara e na “mensagem” que ele deveria trazer.

Os comediantes dell’arte, por prescindirem do texto e usarem apenas um roteiro que os guiava ao longo do espetáculo, acabaram por desenvolver enorme capacidade de jogo em cena. Os atores estabeleciam relação direta com a plateia através da topicalidade34. Os canovacci eram construídos a partir de situações de amor, a questão sempre se dava em torno de um apaixonado que via seu amor impossibilitado por problemas geralmente econômicos e de classe social.

No entanto, os lazzi (tiradas cômicas) ou as gags introduzidas pelos atores eram pertinentes à sua época, contendo, por vezes, citações de situações acontecidas na cidade, notícias sobre as conquistas de guerra do momento, entre outras informações. Os canovacci eram extremamente simples como estrutura dramatúrgica, propiciando leitura fácil e próxima ao público deste tipo de espetáculo. Outro aspecto que colaborava para essa relação entre o público e os atores era o fato de os espetáculos serem apresentados também em espaços abertos, como nas feiras e nas ruas movimentadas.

Para suprir as exigências de um espetáculo em espaço público, os comediantes dell’arte, ao contrário da ideia que a palavra “improvisação” possa dar, eram profi ssionais preparados e capacitados para um trabalho teatral extremamente complexo:

Com a Commedia dell’Arte, aparece uma organização de atores especializados, graças a uma preparação técnica, mímica, vocal, coreográfi ca, acrobática, e também com frequência uma preparação cultural. Havia alguns que falavam diversas línguas e eram músicos consumados. Toda esta preparação fornecia-lhes a base de um trabalho improvisacional, onde, quase sempre, chegavam a uma improvisação excelente. Não se tratava de atores improvisados, mas sim de atores que exercitavam sua arte all’improviso (CHACRA, 1983: 30).

34 Topicalidade [sic]: substanti vo referente a assuntos e temas nos quais há interesse específi co em uma época e que, ao longo do tempo, tornam-se obscuros, ou seja, “datados”; em língua inglesa, também se uti liza o adjeti vo “topical” na críti ca literária (SHAW, 1972, p. 380).

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Para os comediantes dell’arte, que se apresentavam para uma plateia heterogênea, improvisar era mais do que uma opção estilística ou estética. No caso da commedia dell’arte, a improvisação passava a ser uma questão de sobrevivência, pois só usando desse artifício e muita técnica é que a commedia pôde chegar a se comunicar com efi cácia em ambientes tão diferentes.

Com a commedia o teatro ganha um ator que vive para seu ofício e por ele, que o desenvolve na medida em que o pratica, estudando e criando um vasto repertório, um ator que inclui entre os itens de aprimoramento técnico a capacidade de improvisar, que encontra em seu tempo o assunto que levará à cena, de forma estilizada, convencionada, jocosa e hilária.

O ator da commedia dell’arte não pode abrir mão dos artifícios que sua linguagem lhe oferece: a mímica, a voz forjada para que se escute ao ar livre, o gesto codifi cado conforme a máscara, o corpo como possibilidade de escultura, a vida como estímulo para sua criação e não como espelho para uma cópia, a fala como possibilidade metafórica, a presença do público como observador e partícipe do jogo, da cena e do teatro que então se estabelece.

Referências bibliográfi cas

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva, 1983.

FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac-São Paulo, 1999.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

SHAW, Henry. Dictionary of literary terms. New York: Mc Graw-Hill, 1972.TEZZA, Ana Rosa. L’Âge d’Or [A idade de ouro], 1975; Le Tartuffe [O Tartufo], 1995-96: Elementos da commedia dell’arte no processo criativo do Théâtre du Soleil. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Santa Catarina: Ceart-Udesc: Santa Catarina, 2007.

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Bloco V: MATÉRIAS DE COLABORADORES

Histórias circenses: composições de subjetividadespor Manoela Maria Valério e Tiago Cassoli35

Resumo: O presente artigo pretende pensar, primordialmente, as faces do circo em diferentes momentos históricos, sem, contudo, apontar-lhe uma origem, segundo a perspectiva genealógica de Michel Foucault. Percorre, para tanto, a produção de subjetividades circenses com recortes de análise que se compõem a partir de pesquisas históricas e das muitas vozes do diário de bordo, importante ferramenta de trabalho, que provocou inúmeras indagações: como o circo, hoje, fala de nosso tempo? Que encontros são possíveis num solo do contemporâneo? Que modos de vida, que subjetividades são inventadas no universo circense?

Abstract: This article seeks to think, primarily, the faces of the circus in diferents historical times, without, however give it an origin according the genealogic perspective of Michel Foucault. The article goes through the production of circus subjectivities, with fragments of analysis which are composed by historical researches and the plenty of voices of the logbook, which was an important work tool that stimulated an oodles of question such as: how does the circus, today, talks about our time? Which kind of meetings are possible on the contemporary soil? What manners of life and which subjectivities, are created inside of circus universe?

Palavras-chave: artes circenses, trajetórias do circo, subjetivações.

Keywords: circensian arts, trajectories of the circus, subjectivations.

35 Manoela Maria Valério é psicóloga clínica, graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp – Campus Assis), com mestrado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Fundou, em 2001, a organização não governamental Circuito de Interação de Redes (Circus), integrando sua diretoria desde então. É docente nas Faculdades Integradas de Ourinhos. Tiago Cassoli é graduado em Psicologia pela Unesp – Campus Assis, com mestrado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Atualmente é doutorando em Psicologia pela Unesp – Campus Assis. É fundador e integrante da diretoria da organização não governamental Circus. É docente nas Faculdades Integradas de Ourinhos.

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O presente artigo decorre da dissertação de mestrado de um dos autores36, incorporando a ela um recorte que, em sua proposta, vem pensar as subjetividades circenses, tendo como fi os norteadores passagens da história do circo. Busca-se, nessa arte, não uma forma fi xa, mas algumas forças que, num determinado momento, podem suscitar vibrações, intensidades e, nessa mesma lógica, ao se conectarem, diluem esta potência, produzindo subjetividades homogeneizadas. Permeia a escrita a seguinte questão: como a subjetividade circense muda historicamente e de que maneira ela é fabricada de modos variados em diferentes momentos da história?

Para tanto, é utilizado o diário de bordo produzido nos trajetos de um grupo que realiza o espetáculo circense, com relatos, conversas, cartas e entrevistas. Isto entra em composição a outras produções de escritos e imagens em encontros com circenses, em fóruns de discussão e também algumas pesquisas que tratam de circo. Uma narrativa existencial por entre o circo, eis a principal

36 Manoela Maria Valério. Passagens circenses. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Insti tuto de Ciências Humanas e Filosofi a. Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2004.

Foto de Bob Sousa. Grupo Off Sina - Lilian Moraes e Richard Righetti no espetáculo E o palhaço o que é?

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intenção desta pesquisa. Narrativa que encontra diversos problemas: a história do circo, como ele está localizado no mundo hoje, suas diferentes constituições. Escrever, enfi m, sobre circo e transitar entre as questões que dizem respeito ao que é fazer circo hoje, e de sua inserção na vida. Um cotidiano da experiência circense que talvez possa ser afi rmado: uma cartografi a circense. Para este artigo, a proposta é considerar, nesse universo, uma questão: como se constrói uma história da arte circense, considerando como fi o narrativo uma diversidade de encontros: o circo que se experimenta, o circo que se fala, o circo que se inventa?

Para pensar esses encontros, um modo de entender o circo, hoje, é buscar alguns sinais. O circo, grosso modo, trouxe por certo tempo histórico uma forma que poderia ser dita fi xa, e, portanto, única, verdadeira. Uma concepção que provocou e ainda incita a afi rmação: “O circo é o espetáculo que ocorre sob a lona, com números de variedades seguidos uns aos outros, o resto é pura derivação desta verdade”.37

Quiçá a fi na inquietude do mundo permita admitir que circo não esteja localizado numa forma. Ele abusa dos fi gurinos de seu tempo e talvez possa ser experimentado por aquele que nasce sob a lona. Mas há ruas, festas, públicos, escolas e projetos culturais, há escritos e conversas, uma pluralidade de mundos abertos onde o circo insiste em existir. O circo é vivo e está presente em tantos processos, habita o passado e o futuro, é presente! Ele acontece onde menos se espera, como um devir, um estilo, uma afi rmação. Esquenta as praças e faz vibrar o coração da cidade! Dos circos modernos do século XVIII aos do XXI, de circo pequeno ao grande, dos esquecidos aos sempre lembrados, venerados, o circo vive e há tempos que, em todo canto, pode ser dia de circo.

Expõem-se, dessa maneira, questões que transitam no texto, atentando, no entanto, que estão abertas o sufi ciente para não soarem únicas. Elas se propõem, aqui, a um contorno subjetivo em 37 “Circo sem lona não é circo”. “Fazer circo fora do lugar dele desde sempre, não é nada de circo... circo é a gente aqui, debaixo da lona, no trailer.” “A gente é pai de tudo isso aí”. São algumas frases ditas por circenses conhecidos como tradicionais” (Diário de bordo, 2006).

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que inevitavelmente consistem muitas vozes, um recorte no tempo, uma singularidade. Pois, “[...] mesmo individual a construção do plano é uma política, ela engaja, necessariamente, um ‘coletivo’, agenciamentos coletivos, um conjunto de devires sociais” (DELEUZE e PARNET, 1998: 107).

Começos e adendosPara situar o universo circense serão apresentadas algumas

de suas constituições. Depois disso, será feita uma análise da arte circense nos dias de hoje. Este recorte se dá por uma possibilidade de contar história, dentre essas muitas que se ouve do circo, naquilo que há de minoritário. Suspeita-se que essas histórias revelem um pouco as causas de seu menosprezo:

Os invisíveis da história e que, no entanto, sempre estiveram lá, nas poucas inscrições onde foi registrada a rápida passagem de suas existências por alguém que muito apressado ocupou-se deles; dos feitos sem glória dessa gente sem fama, mal posta, mal-dita e sempre malfadada [...] Essas minorias que nada têm a ver com quantidades: a produção de certas variações singulares que escapam tanto das homogeneidades dominantes quanto das particularidades da segregação, e atravessam tudo aquilo que nos constitui enquanto Brasil (LOBO, 1997: 1 e 12).

Localizar, em uma linha do tempo, a data de origem do circo seria um despropósito. Uma vez que a história contada, como se sabe, é entremeada por disputas de saberes e poderes e, portanto, aquilo que é transmitido é fruto dessa luta, que busca eternizar vencedores, os que ousaram num determinado momento, estratégico, concentrar ali todo o possível. Como se fosse possível. O conhecimento só é possível sob a forma de uma variedade de atos que, em essência, são múltiplos, “[...] atos pelos quais o ser humano se apodera violentamente de um certo número de coisas, reage a um certo número de situações, lhes impõe relações de força” (FOUCAULT, 1999: 25).

Neste caso, pretende-se, de alguma forma, não compactuar com essa produção da verdade, afi rmando de antemão: são recortes, perspectivas da história do circo que estão sendo trabalhadas.

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Quando se entra no universo circense observa-se com veemência a presença de inúmeras disputas. As práticas circenses estariam no âmbito das artes? É entretenimento? Circo é arte ou diversão? Que história do circo ou das artes pode ser contada, registrada e que culmina em tantas interrogações? Porém, não interessa aqui buscar respostas para essas questões, mas analisar algumas linhas que podem levar para outros lugares, sem julgamentos de valor, sem julgamentos morais. Falar do circo naquilo que tange às suas criações, aos seus estilos de vida; naquilo que, como um modo de expressão, cria campos de sensibilidade, propõe um conjunto de intensidades possíveis, possibilita afetos. Marcar alguns movimentos, registrar certas produções de subjetividades, entendendo que:

[...] as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Por isto cada coisa tem sua geografi a, sua cartografi a, seu diagrama. O que há de interessante, mesmo numa pessoa, são as linhas que a compõem, ou que ela compõe, que ela toma emprestado ou que ela cria (DELEUZE, 1992: 47).

A pesquisa aqui apresentada procura entender a distinção entre a moral e a ética. A moral se refere a um “[...] conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-se a valores transcendentes (é certo, é errado)” (Idem, 1992: 47). A ética, por sua vez, está mais ligada ao que Michel Foucault ou Friedrich Nietzsche chamam “estilos de vida” ou, para Gilles Deleuze, “modos de existência“. Está ligada a um conjunto de regras facultativas, capazes de resistir ao poder e de se furtar ao saber:

[São regras] que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica. Dizemos isto, fazemos aquilo: que modos de existência isto implica? [Afi nal], há coisas que só se pode fazer ou dizer levado por uma baixeza de alma, uma vida rancorosa ou por vingança contra a vida. Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro (Idem, 1992: 126).

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Um pouco mais e entendendo a ética no sentido de ethos como modo ou estilo de existência:

[...] a ideia de uma experiência ético-estética que não se esgota na rigidez dos códigos morais, nos quais são sacralizadas as veneráveis categorias do negativo, tais como a norma, o limite, a falta: tal experiência deve se situar no plano das relações consigo mesmo (rapport à soi), e determinar o modo como o indivíduo se constitui como sujeito de suas próprias ações ao arrepio das identidades sedimentadoras e das universalizações opressivas (GIACÓIA, 1993: 354).

A arte também cabe bem a este propósito. O que tem valor ou quanto vale? De onde vêm tais juízos de valor? De um povo, de uma elite, de uma erudição? Sendo assim, afi rma-se: aquilo que de alguma forma se inventa, aquilo que produz possíveis reinvenções do cotidiano, que cria mundos, pode ser uma arte:

[...] lá onde não há mais vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é afi rmar e ramifi car o acaso, ao invés de dividi-lo para dominá-lo, para apostar, para ganhar. Este jogo que não existe a não ser no pensamento, e que não tem outro resultado além da obra de arte, é também aquilo pelo que o pensamento e a arte são reais e perturbam a realidade, a moralidade e a economia do mundo (DELEUZE, 2003: 63).

Estilos e polêmicas

A história da arte circense não possui linearidade, tem vários começos e fi nais diversos. Está morrendo e nascendo, sempre. No Brasil, assim como em diversos países, constantemente emana da boca de alguns circenses ou interessados nesta arte decretos como: “O circo morreu! Agora não tem mais circo não!”, “O que tem agora já não é mais circo”, “Temos de recuperar o circo!”.

Pode-se entender um pouco esse lamento, mas não compartilhá-lo. Parece carregar uma dor saudosista que, por vezes, impede o novo de surgir. Ou talvez não consiga impedir, mas anula e ignora quaisquer mudanças: para que o novo surja, o velho deve morrer; para que este exista, aquele não pode acontecer.

Mas o circo está em plena atividade, apesar de não ser incorreto

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salientar que um estilo de circo, mais especifi camente o circo tradicional,38 vem passando por difi culdades para continuar sua itinerância. Antes, uma nota: o que designa este conceito de tradição no circo?

Os circos tradicionais tiveram grande destaque no Brasil e em outros países entre o fi m do século XIX até meados do século XX. Hoje a estimativa é de que exista um número bem menor. Para os circenses brasileiros, essa redução se deve, entre outros fatores, à extinção de animais no espetáculo, à concorrência da mídia, especialmente televisiva, à questão da infância, aos altos custos para circular nas estradas brasileiras, assim como às exigências e normas das cidades para recebê-los.

Circos itinerantes de grande, médio e pequeno porte, escolas de formação profi ssionalizante ou academias de treinamento, escolas e projetos que utilizam a arte circense com proposta de inclusão social – circo social39 –, artistas de rua, grupos e trupes circenses. Essa atuação nos diversos espaços afi rma sua vitalidade, sua existência em constante transformação nessa roda paradoxal de nascer e morrer, ao mesmo tempo. E, contudo, porque não se deixa esmorecer, na fala de um dono de circo: “A gente tá aí lutando, fi rme e forte, a praça sempre recebe a gente, de um jeito ou de outro, o circo tá vivo” (Diário de bordo, 2006).

38 Circo tradicional é o nome dado a uma forma e esti lo de circo. A ideia de tradição se deu a parti r de uma composição de fatores em que tradicionais são aqueles nascidos em família de circo, ou que a essas famílias se uniram, e que exerceram seu trabalho principalmente no circo de lona, mambembe, ou tradicional. São assim consti tuídos por um grupo familiar que não se pauta unicamente em vínculos consanguíneos, mas por pessoas que possuem, sob a lona, uma relação singular de trabalho, de educação, de transmissão da arte circense de geração para geração, possibilitando práti cas muito diferenciadas na atual cultura. Nestes circos, geralmente, a montagem de um espetáculo é dividida em duas partes; na primeira, números variados de risco e de superação de limites corporais, como o malabarismo, as acrobacias aéreas e de solo, os números de equilíbrio, o contorcionismo, a pirofagia, intercalados por entradas e reprises da fi gura principal do espetáculo, os palhaços e alinhavados pelo mestre de cerimônia, ou apresentador. Na segunda parte, alguns circos exibem, de igual maneira, números de variedades, mas outros circos apresentam ao público um espetáculo de teatro com peças do repertório circense. Vale lembrar que a pausa do espetáculo é o momento em que os arti stas vestem-se de vendedores de pipoca, maçã do amor, churros, pastel, guloseimas clássicas do universo circense.

39 Proposta de uti lizar “[...] o circo como ferramenta de inclusão social de jovens de classes populares”. Atualmente presente em organizações não governamentais que trabalham no âmbito da arte educação. Tiago CASSOLI. Do perigo das ruas ao risco do picadeiro: circo social e práti cas educacionais não governamentais. Niterói/RJ. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Insti tuto de Ciências Humanas e Filosofi a – Universidade Federal Fluminense, 2006.

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Insistências infames, sorrateirasDurante muitos anos, os principais registros da existência

de circos compuseram-se de propagandas dos espetáculos, de fotografi as, de algumas reclamações, de denúncias ou elogios de moradores e de representantes legais das cidades. Mas um modo bastante comum no Brasil foi, e ainda é, a transmissão das histórias do circo em seu próprio universo, em suas famílias, debaixo da lona ou nas trocas entre os próprios circos:

O álbum de fotografi as, que também inclui folhetos, cartazes, recortes de jornais, entre outros documentos, tem um valor inestimável para os circenses, principalmente para os velhos. Omitidos da história da arte, sem verbete nas enciclopédias, eles têm em seu álbum a única prova de um tempo de glória, quando eram aplaudidos por reis, governadores, interventores, bispos, prefeitos [...]. O amor de um circense pelo seu álbum de fotografi as é um amor quase carnal (AVANZI; TAMAOKI, 2004: 12).

E motivo de dores também:

Há pouco uma conversa com o artista, hoje professor de circo. Ao lado uma lona e ele passando seus ensinamentos num arame ali montado. Subia e caía quando tentava acompanhar seus passos ao mesmo tempo em que o ouvia contar tantas de suas histórias:– Olha, vou contar uma coisa, que tristeza... Uma tristeza grande mesmo. No tempo do meu circo, não tinha muito essas fi lmadoras sabe. Aí não tem jeito, não adianta. Ah, se eu tivesse fi lmado aquilo tudo! Porque eu conto pra você aqui, mas você não vai saber o que era. Aqueles bichos, leão, macacos, o globo da morte, o trapézio de voo. Eu fazia uma corda bamba que você não acredita! Se eu tivesse fi lmado tudo aquilo. É uma pena.– Mas e as fotografi as que você me mostrou ontem?– Nossa! Minhas fotografi as. Aquelas que você viu é o que restou. Eu tinha dois álbuns cheios de fotos lindas, muito bonitas mesmo. Eu guardava numa gaveta dentro do trailer, ali bem guardadinhas. Aí me acontece uma tragédia: teve um vazamento na caixa de água do banheiro e vazou direto pra dentro desta gaveta. Ah minha fi lha, quando abri aquela gaveta você não imagina a tristeza que eu senti naquela hora. Nossa! Tinha desmanchado tudo, acabou tudo ali. Hoje não tenho como mostrar essas coisas pra alguém (AVANZI; TAMAOKI, 2004: 12).

Vale-se ainda de uma transmissão que, acompanhada por estes registros, pauta-se principalmente na oralidade:

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Sempre ouvimos as “histórias de circo”, às vezes víamos fotografi as ou alguns recortes de jornais, mas nunca havia um livro para ler, assim como não havia nada semelhante a estas histórias em nossos livros escolares. Tratava-se da história do “povo do circo” que ninguém mais conhecia (SILVA, 1996: 8).

No circo tradicional, as técnicas como malabarismo, acrobacias, palhaços são transmitidas cotidianamente dos mais velhos para os mais novos, com os ensaios, os treinos, os exercícios e durante os espetáculos. Da mesma forma, o estilo de vida é fruto de uma convivência de tempos. A maioria dos artistas desse circo faz ou, no mínimo, sabe fazer trabalhos de montagem e manutenção da estrutura. Ser artista, armar e desarmar a lona, construir os aparelhos e mantê-los em ordem, dentre outras coisas, é ter serragem no sangue.40 Nesta confi guração, há pessoas que se aprimoram em funções não apenas relacionadas à execução dos números, isto é, elas aprendem a negociar com prefeitos, padres, delegados; a costurar fi gurinos, cozinhar, vender pipocas, doces, fi car na bilheteria etc:

Toda a estrutura do circo – do pau de roda ao mastro, da empanada às barracas, frente, bilheteria etc. – era construída, confeccionada, armada e desarmada pelos próprios artistas. E assim tinha que ser, pois só os circenses dominavam esse conhecimento. Fôssemos seguir as instruções e exigências de alguns fi scais que cruzaram nosso caminho, e o circo caía (AVANZI; TAMAOKI, 2004: 128).

Comecei a trabalhar ofi cialmente aos seis anos de idade, fazia nessa época duble rola com meu pai e contorcionismo. Em meados da década de 1980, éramos sete crianças no fundo do circo: três fi lhos do saudoso palhaço Jurubéba (capa do livro Palhaços, de Mario Bolognesi) que fi cou muitos anos na companhia do meu pai, os demais eram eu e meus irmãos. Ensaiávamos toda manhã com exceção de domingo. Os números de picadeiro fi cavam por conta do meu pai, com retoques de Miriam (madrinha, tia e amada) no contorcionismo. Já o teatro fi cava por conta do meu tio Abílio Jr. – o palhaço Faísca – e minha avó Aparecida Ayres. Ah... Esqueci de dizer! Venho de um circo que apresentava teatro na segunda parte do espetáculo.41

40 A serragem é espalhada no solo do circo, quando armado, e dissemina inclusive um cheiro característi co naquele espaço. “Ter serragem no sangue” signifi ca um esti lo de vida, é saber viver o circo em seus diversos aspectos.

41 Isiely Ayres. Disponível em: <htt p://www.pindoramacircus.org.br>. Acesso em abril de 2007.

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Há neste entremeio certas sutilezas de um modo de vida do circense. As histórias que, por vezes, se tem acesso falam de um circense guerreiro, colocando-o na posição de herói por ter vencido todas as adversidades, muitas delas quase insuportáveis para a grande maioria. Eis que surge um protótipo de vencedor. Em sentido oposto, mas na mesma lógica, há aquela história que o revela como um ser bizarro, alheio às regras sociais, incivilizado, o que, de alguma forma, deve ser deixado à margem, pois que vagabundear é seu destino.

Pensamentos que o defi nem: herói ou bandido?

Para a sociedade [...] o artista de circo não era nada, [...] o artista era um renegado [...] no meu tempo de moleque, o povo renegava a gente de todo o jeito. Nós chegávamos numa praça, armava o circo perto de um terreno assim...as vizinhas gritavam: “Prendam as galinhas que o circo está chegando...“, era isso que eles achavam que a gente era: marginal, bando de vagabundo que andava pelo mundo [...] (SILVA, 1996:128).

Mas o que talvez possa passar ao largo de tais julgamentos que traga o que há de minoritário neste herói bandido/guerreiro vagabundo nesse modo de vida?

Picolino era um palhaço que incendiava o público com sua arte. Era o dono do Circo Nerino, que fez várias praças brasileiras entre 1913 e 1964. Circo que nasceu do encontro de Armandine Ribolá, de família francesa que trabalhava em circo de cavalinhos42 e como saltimbancos pela Europa, com Nerino Avanzi, descendente de uma família italiana que trabalhava em teatros e óperas. Uniram-se no Brasil, dando origem ao Circo Nerino, que fez história no País. Roger Avanzi, fi lho do casal, hoje tem 83 anos. Suas lembranças foram publicadas em livro (AVANZI; TAMAOKI, 2004). Quando o pai de Roger – Nerino, ou palhaço Picolino –, com mais de setenta anos, já não tinha forças para participar dos espetáculos, Roger então relatou como passou a ser palhaço, pois os artistas acreditavam que o Circo Nerino não viveria sem Picolino. Roger passou a vestir o mesmo fi gurino, a fazer a mesma maquiagem e a usar o mesmo 42 Circo em que as acrobacias sobre cavalo são a principal atração.

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nome: Picolino. A passagem do palhaço-pai para o palhaço-fi lho vale a pena ser contada:

Nunca mais fui o mesmo [...] eu era uma coisa e depois do Picolino passei a ser outra. Mudei o pensamento, o modo de agir, a concepção do mundo, tudo. Parece que o palhaço se entranhou na minha pessoa. Virei palhaço entranhado. Eu não sei explicar como isso aconteceu. Talvez uma pessoa muito instruída, bastante sabida, consiga explicar essa transformação (AVANZI; TAMAOKI, 2004: 261).

Esse mesmo palhaço, em 1o de setembro de 2006, assistia a um espetáculo de circo em São Paulo. Com o olhar atento de uma criança que já havia passado dos oitenta anos, agora ele aplaudia como público. Nas arquibancadas de um novo circo43, a doçura de quem não deixa de se encantar com o mundo. Na saída do circo, ele disse: “Eu adoro circo, e quando o circo é muito bom eu gosto mais ainda!44

Origem do circo?É muito comum observar no discurso de alguns pesquisadores

e circenses a proposta de contar uma história milenar do circo buscando suas origens em tempos imemoriais, o que não condiz com a perspectiva adotada nesta pesquisa que perpassa a noção de que “[...] a história não tem continuidade evolutiva, mas múltiplas e impuras proveniências.” (LOBO, 1997: 8) Nessa busca de origem primeira do circo afi rma-se, por exemplo, que a história de expressões, hoje nomeadas circenses, podem ser percebidas desde a Antiguidade. Alguns vão para o passado da China, onde foram descobertas pinturas de quase cinco mil anos, com desenhos de acrobatas, contorcionistas, equilibristas. Viajam para o Egito, afi rmando que existem nas pirâmides pinturas de malabaristas e de paradistas. Na Índia, veem os números

43 O adjeti vo novo vem, hoje, marcando alguns circos, como o Cirque du Soleil, do Canadá. Entretanto vale salientar que sempre que havia novidades, em todos os tempos das histórias de circo, a propaganda divulgava: “Novo” espetáculo, “Novo” número, como um chamariz de público. (Informações colhidas em um encontro/curso com Ermínia Silva, na Escola Nacional de Circo, no segundo semestre de 2006).

44 Essa observação foi feita por Roger sobre o espetáculo do qual ele fi zera parte da plateia. Sentei-me atrás dele e assisti aos “dois espetáculos“, ao Soleil e ao velho Roger. (Diário de Bordo, 2006)

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de contorção e saltos que fazem parte dos milenares espetáculos sagrados, com danças, música e canto. Na Grécia, as paradas de mão, o equilíbrio mão a mão, os números de força e o contorcionismo, que eram modalidades olímpicas, como sendo as origens do circo.

Mais adiante, com uma mesma forma de contar essa história, surge o Circo Máximo de Roma, destruído em um incêndio. Em 40 a.C.; na mesma região foi construído o Coliseu, onde eram apresentadas excentricidades como homens louros nórdicos, animais exóticos, engolidores de fogo, gladiadores, entre outros. Dizem que a arte circense provém dos jogos (olimpíadas) que aconteciam na Grécia e dos espetáculos realizados pelos gladiadores romanos. Nestes, as proezas acrobáticas eram realizadas com frequência pelos atletas da época, além de exposição de animais até então desconhecidos pelo público, que de certa forma simbolizavam a coragem daqueles que o demonstravam. “Em Roma, os espetáculos circenses caracterizavam-se pelos duelos entre os gladiadores. Os combates entre homens e até mesmo feras levavam multidões aos anfi teatros romanos”.45

Entretanto, essas “evidências” da presença do circo em diferentes momentos históricos, num primeiro momento, assemelham-se à tentativa de transformar essa arte em algo imutável. Talvez a pretensão de buscar as origens mais antigas do circo se refi ra à tentativa de instaurá-lo num certo movimento de eternidade. Mas o corpo que se contorcia na Grécia ou na China pouco se aproxima de tempos mais recentes. A presença da religiosidade ou dos jogos romanos aponta essa distância:

A ligação dos jogos romanos com a religião e o estreito vínculo entre eles e uma política estatal são elementos que diferenciam a natureza das atividades romanas daquelas próprias do circo europeu, tal como fi cou conhecido a partir do século XVIII. Outro ponto discordante diz respeito ao caráter competitivo que permeava as exibições públicas em Roma, que as aproximava da atividade esportiva e as distanciavam da arte, tal como ocorre nos circos. Nos números circenses há – pode-se dizer – uma retomada das proezas esportivas e a transformação delas em espetáculo (BOLOGNESI, 2003: 30).

45 Essas informações esparsas foram extraídas de alguns sites, dentre eles: <htt p://www.pindoramacircus.arq.br/circos/circolona/memoria/garcia/estado1.htm>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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Dessa forma, a busca da origem é questionável. Em outra cultura há outro corpo contorcionista, objetos manipulados no ar não se traduzem nos mesmos malabarismos, o fogo devorado estabelece outras relações com o mundo. Parece que:

Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente“, o “aquilo mesmo“ de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfi m uma identidade primeira (FOUCAULT, 1979: 17)

Transcorrido algum tempo, esta história se aproximará de tempos mais recentes, com um recorte em meados de 1700.

Circo modernoDe antemão, essa história nos orienta entendendo que

“atrás das coisas” há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de fi guras que lhe eram estranhas (FOUCAULT, 1979). Pesquisas indicam que saltimbancos do século XVIII acompanhavam praças e feiras medievais com suas exibições de malabarismos, acrobacias, números cômicos, dentre outros. Esses artistas circularam por diversos lugarejos, especialmente locais públicos com grande circulação de pessoas. Nos festivais e feiras, lá estavam eles, com suas tralhas cheias de arte.46 No século XVIII, marcado por grandes transformações socioeconômicas, as feiras começaram a perder o posto de local de circulação e simultaneamente emergiu uma sociedade industrial. O espaço público interiorizou-se, ou seja, surgiram locais adequados para cada manifestação ou expressão de trabalho. Do grande caldeirão de misturas medievais, emergiram as especifi cidades industriais, locais separados para cada procura (BAKHTIN, 1999).

46 Referência ao fi lme O séti mo selo, de Ingmar Bergman (1967).

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Nesse cenário, militares fora de seus postos de trabalho passaram a exibir suas destrezas equestres. De uma disciplina militar que os constituíram cavaleiros, passaram aos poucos a adentrar o mundo das exibições artísticas com façanhas acrobáticas sobre cavalos. Esses novos artistas também passaram a habitar as ruas já consagradas pelos saltimbancos, pois, “[...] desde 1758, na Inglaterra, já se organizavam espetáculos ao ar livre, com homens em pé sobre o dorso de um ou mais cavalos”. (BOLOGNESI, 2003: 31).

Neste contexto está inserido Philip Astley, subofi cial da cavalaria britânica. Em 1780 ele inaugurou o Astley’s Amphitheatre em Londres (Inglaterra), um espaço fechado onde se reuniam ex-ofi ciais do exército britânico para exibições acrobáticas sobre cavalos. “Os exímios montadores, dispensados ou reformados do Exército da Inglaterra, puderam seguir carreira profi ssional, desta feita como artistas.” (Idem, 2003: 31)

A novidade que consagrou Astley como criador do circo moderno, segundo alguns historiadores, foi o fato de ele ter inserido nesse recinto fechado uma arena de treze metros de diâmetro que, devido à sua forma circular, possibilitava a exibição do artista sobre o dorso do cavalo na circunferência desse espaço. Esse chão em círculo, benefi ciado pela força centrípeta, facilitava o equilíbrio do artista sobre os cavalos. Foi com base nesse desenho circular que se criou o que ainda hoje é uma peculiaridade dos circos: o picadeiro. Nesses espetáculos, tidos como circo de cavalinhos, “[...] prevaleciam os exercícios com cavalos, a ação equestre possibilitou as montagens dos hipodramas. Com estrutura próxima ao melodrama, o cavalo possibilitou uma ação feérica com combates e galopes, enfatizando o confronto entre heróis e vilões, sob o efeito permanente da música a complementar o ambiente emocional do espetáculo (BOLOGNESI, 2002: 2).

Nesse período, Charles Hughes, também cavaleiro e ex-artista de Astley, inaugurou uma das primeiras companhias de espetáculo do mundo, denominada Royal Circus. Desde então, o nome Circus passou a caracterizar esse tipo de espetáculo realizado no picadeiro.

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Mas esta razão formal não responde a todas as causas que fi zeram surgir o circo. É importante lembrar que Antonio Franconi (1737?-1836), italiano bastante envolvido com o ambiente dos espetáculos populares, veio a ser um dos responsáveis pela introdução desses elementos no espetáculo de circo (BOLOGNESI, 2003). Dentre as análises feitas, supõe-se que nesse processo ocorra uma fusão do espetáculo dos militares com a arte dos saltimbancos. A partir dessa fusão o espetáculo começou a contar com números acrobáticos sobre cavalos, com malabaristas, contorcionistas, pirofagistas, palhaços das ruas. É comum afi rmar que uma das possíveis disseminações do circo a partir de então tenha se dado em função desse caráter itinerante dos saltimbancos, que estavam atentos aos locais de circulação de pessoas. Bolognesi reafi rma:

Ao perceber a monotonia das apresentações exclusivamente equestres o espetáculo circense adotou a diversidade da arte dos saltimbancos, uma vez que as novas regras de comercialização da economia e da cultura provocaram o esvaziamento das feiras e suas práticas culturais, disponibilizando um número razoável de artistas saltadores, acrobatas, prestidigitadores, engolidores de fogo etc. No interior de um espaço fechado, com a cobrança de ingressos, a habilidade sobre o cavalo associou-se aos saltimbancos errantes, dando origem ao circo moderno e seu espetáculo. (Idem: 1)

Essa ideia se faz presente por toda Europa e pelas Américas. Nos Estados Unidos da América, o espetáculo acontece não apenas em anfi teatros fechados, mas também sob a estrutura da lona, que poderia ser armada e desarmada com mais agilidade e, assim, chegar aos mais diversos lugares (SILVA, 1996).

A união da arte equestre com os ambulantes que estavam com seus “dias contados” nas feiras modifi cou a ordem militar. Houve um movimento contínuo de troca e transformações. No contexto da realidade comercial, o circo e seu espetáculo, por exemplo, vão desenvolver modos peculiares de manifestação que nada têm em comum com a origem aristocrática. Uma delas é o nomadismo, absolutamente avesso ao sedentarismo da nobreza, e que veio a ser a característica principal do circo. Outra, ainda, diz respeito à diversidade dos espetáculos circenses, contrariamente à rigidez dos gêneros de espetáculo que o século XVIII e sua estética cultuavam (BOLOGNESI, 2003: 43).

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Talvez pareçam não bastar a afi rmação de que saltimbancos e militares carregam estilos que lhes são próprios, ou seja, ao militar a disciplina, a relação com o cavalo; ao mambembe, saltimbanco, o nomadismo, a agilidade de movimentação, como se fossem rígidos em seus estilos, como se fossem claras as diferenças, como água e vinho que, ao se misturarem, tornam-se outra bebida. O vinho tem suas águas e quem sabe se a própria água não terá também sua dose de torpor? A relação do saltimbanco com o cavalo e do militar como artista não estaria ligada a uma época em que haveria misturas antes mesmo de elas terem sido experimentadas? Toma-se a dúvida: “[...] não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer?” (BENJAMIN, 1985: 223)

Enfi m, encerrando por aqui esta questão, o que se sabe é que surgiram esses modos de espetáculo pelo mundo, que muito se assemelham à imagem que ainda se tem de circo, aproximando-se assim da atualidade. Principalmente dos circos de lona, anteriormente apresentados, conhecidos ainda como circo tradicional, que executam os números em sequências, intercalados pelo mestre de cerimônia, ou apresentador, e que tiveram grande presença também no Brasil, especialmente entre o fi m do século XIX até meados do século XX.

Das lonas para as escolas, para vários lugaresUm século depois do aparecimento do circo moderno, por

volta dos anos 1960 ou 1970, surgiu um movimento em vários lugares do mundo, denominado novo circo ou circo contemporâneo. A designação novo tinha a pretensão de legitimar diferenças na constituição do espetáculo, assim como na organização das relações entre os artistas, em comparação com o circo tradicional. Esse movimento surgiu especialmente por iniciativa de circenses que saíram dos espaços tradicionais do circo para construir outro modo de transmissão da arte, antes restringida basicamente às antigas famílias circenses e agora trabalhada em escolas de arte.

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Um exemplo é Annie Fratellini, integrante de uma das grandes famílias do circo francês – os Fratellini –, que fundou a Escola de Circo Annie Fratellini em 1974, aberta a todas as pessoas e responsável pela formação de novos artistas. Na Austrália, surgiu o Circus Oz em 1977. No Brasil, em São Paulo, a Escola Piolin foi fundada em 1978 por Abelardo Pinto, o palhaço Piolin. Alunos-artistas formaram trupes, escolas, projetos, e esse novo circo se fez presente por todo o mundo. No ano de 1982, em Québec (Canadá) surgiu o Club des Talons Hauts, grupo de artistas em pernas de pau, malabaristas e pirofagistas. Em 1984, esse grupo realizou o primeiro espetáculo do Cirque du Soleil, transformada em grande empresa circense atualmente conhecida em muitos lugares. Artistas de várias áreas como teatro, dança, coreógrafos, diretores e pessoas que não possuíam ligações diretas com o circo passaram a ter outras possibilidade de conhecer esses saberes.

Desta mistura, um novo circo. Um exemplo é a fi gura do mestre de cerimônia, que já não é fundamental. Os números são intercalados por outras cenas, por artistas como o palhaço, ou simplesmente por um jogo de luzes e sons que preenchem esses espaços. Outra questão refere-se à criação de espetáculos temáticos em que os artistas passam a interpretar personagens compostas com técnicas do teatro e misturadas às técnicas circenses.47 Os animais, fi guras centrais dos circos do século XIX e XX, agora não estão mais presentes nessas novas confi gurações do espetáculo, contribuindo sobremaneira para as campanhas de proibição desses animais nos circos. E o picadeiro, espaço que simboliza o espetáculo circense, também não é mais fundamental. O circo vai para a escola, para galpões, para os mais variados palcos e ruas.

Observa-se que essa novidade está ligada às transformações do universo circense ao longo do tempo, e que as comparações são difíceis de ser feitas. Perguntas sugerem disputas entre os artistas, permeando frases do tipo: “O circo tradicional é que é circo”. Ou ainda: “Esse novo circo não é circo, nem tem nada de novo”.

47 Cf. Jan Rok Achard. O futuro das artes circenses. Arti go apresentado no Festi val Internacional de Acrobacia de Wuqiao. Montreal, 1997. CD ROM.

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Mas no circo de agora as peculiaridades de outros tempos estão vivas. A música, a dança, a iluminação, a teatralização, e o corpo extravasando os limites cotidianamente instaurados. E a sedução de novas plateias pode ser exemplifi cada pelo Cirque du Soleil que, no Brasil, consegue lotar arquibancadas com ingressos bastante caros, selecionando um público elitizado. Em um circo pequeno, os ingressos valem bem menos e a diferença entre eles (variação) também é pequena. As possíveis novidades talvez estejam relacionadas às diferentes misturas, aos modos de conectar essas características, já que o sujeito de hoje é um sujeito novo porque o contexto social, político e econômico, enfi m, toda a cultura desse tempo é, apesar de marcas de outrora, uma nova cultura.

Circo no BrasilOs saberes circenses no Brasil permanecem e se ampliam

principalmente pela transmissão oral, como já comentado. Saberes técnicos, assim como suas histórias, trajetos, personagens, estilo de vida, foram e ainda são preservados no interior deste universo:

Lá no nosso circo a gente sempre se reúne à noite e papai vai contando várias histórias do circo prá gente. Fica uma rodona assim, todos ali ouvindo e conhecendo mais como era, sabe. A gente vai aprendendo sempre assim, e aí tem gente mais velha

até crianças que vão conhecendo desde pequenininhos.48

Os registros são principalmente fotografi as e recortes de jornais, e as pesquisas que vêm sendo realizadas utilizam-se desses fragmentos para compor o que seria uma forma de produzir a história de um passado. Ainda assim são escassos e contam especialmente a história de grandes circos, daqueles que fi caram marcados pelo tempo de vida, pelo tempo de atividade. É com base nesse material que publicações e trabalhos têm sido produzidos.49 Surge aí a história do

48 Entrevista com arti sta de família circense, do Circo Trapézio. Hoje ela ainda mora no circo – em seu trailer –; além dos espetáculos que realiza, é professora na Escola Nacional de Circo-Rio de Janeiro. (Diário de bordo, 2004)

49 Ver alguns exemplos no site do Pindorama Circus: <htt p://www.pindoramacircus.com.br>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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circo. É uma história. Conta-se que as primeiras notícias ou registros sobre números circenses em terras brasileiras são do século XVIII:

Em 1727, Dom Frei Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, com jurisdição em Minas, escreveu ao Santo Ofício pedindo orientações para agir contra os grandes males causados pelos ciganos que infestavam a capitania. Além de roubos e práticas heréticas, realizavam, com enorme aparato, comédias e óperas imorais e de conteúdo frontalmente ofensivo aos sagrados preceitos da Igreja. Há também notícias da existência de vários espetáculos picarescos de grupos ciganos (DUARTE, 1995: 81)

Nos séculos XVIII e XIX, ciganos e saltimbancos por aqui se apresentavam. Os ciganos, perseguidos especialmente na Península Ibérica, traçavam seus percursos levando espetáculos de ilusionismo, doma de animais e números com cavalos. Os saltimbancos, vindos de outros locais da Europa, carregavam consigo a herança das apresentações artísticas nas feiras medievais, em festas populares ou religiosas. Dessa forma, ambos cultivaram a terra que passou a ser terreno fértil para a então arte circense:

Famílias circenses admitem a possibilidade de sua origem cigana. Isto se deve ao fato de que houve, e ainda há preconceito e perseguição aos grupos ciganos, de forma mais acirrada em relação aos artistas de modo geral e, em particular, aos circenses. Estes eram recebidos num clima misto de receio e fascínio, não sendo alvo da intolerância aguda que atinge os ciganos. Até porque o circense situava-se num território diverso daquele do cigano (SILVA, 1996: 104).

Já no século XX, momento em que o Brasil passou por intenso processo de transformações econômicas e sociais, notadamente em decorrência dos Ciclos da Borracha e do Café, várias companhias circenses europeias visitaram a América do Sul. Muitas vezes integravam-se aos artistas mambembes, percorrendo o litoral e o interior do País, percebendo o território brasileiro como campo de recepção dessa arte. Com as práticas dessa nova organização artística, caracterizada por famílias circenses, ao longo do tempo foi sendo difundida a ideia de tradição circense. “Ser tradicional signifi ca pertencer a uma forma particular de fazer circo, signifi ca ter passado pelo ritual de aprendizagem total do circo, não apenas

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de seu número, mas de todos os aspectos que envolvem a sua manutenção.” (Idem: 60)

No cotidiano, meu pai e meu tio eram, além de artistas, empresários, secretários e “peludinhos” – brinco, pois assim são chamados os que montam e desmontam circos. No Astley esse trabalho era de todos os homens, a começar pelo dono. Já as mulheres, como numa tribo, nas mudanças cuidam dos trailers, nas temporadas cozinham e preparam as vendas, e para mim, de vez em quando, tinha um trabalho de offi ce girl. [...] Como secretários eles faziam as praças, solicitavam água e energia elétrica, tudo devidamente pago, com exceção do terreno, que de vez em quando é permutado com ingressos. O circo também recebe alguns patrocínios do comércio local em forma de acordos pessoais, não burocráticos.50

As histórias de quem viveu ou vive no circo por uma determinada época retratam um pouco desse estilo, ou seja, “Ser de circo é ser bom de picadeiro e de fundo de circo”, pensamento que revela certa sabedoria conquistada nas experiências. Bom de picadeiro porque é um artista, e é no picadeiro que se expressa, que mostra sua arte, suas invenções e criações. Ser bom de fundo de circo traduz-se na capacidade que uma pessoa tem de tirar o fi gurino e a própria maquiagem e bater a estaca para fi ncar a estrutura no chão, amarrar os nós, costurar a lona, cozinhar, vender pipoca no intervalo, negociar com a cidade, deixar a cidade. Saber chegar a um lugar e deixá-lo quando for preciso, viver a fi nitude dos encontros.

Por volta da década de 1970, os saberes começaram a romper as lonas e virar escola. Tratando-se de Brasil, as primeiras escolas de circo contrataram circenses que não estavam mais trabalhando em circos e, com isso, abriram novo campo de trabalho para esse artista, agora professor. Os saberes que vinham sendo produzidos sob a lona começaram a ser transmitidos ao novo público. Artistas do teatro, da dança, ou mesmo quaisquer pessoas interessadas numa especialidade artística passaram a compor o universo de circenses.

Há alguns exemplos de escolas no Brasil, como a Academia Piolin de Artes Circenses que, em 1978, surgiu como a primeira

50 Isiely Ayres. Disponível em: <htt p://www.pindoramacircus.com.br/novo/textos/textos_interna.asp?cod_texto=39> Acesso em: 16 fev. 2012.

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escola de circo instalada no País, no Estádio do Pacaembu em São Paulo (SP). A propósito, esta escola foi fundada por Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, que nasceu sob a lona de um circo armado na cidade de Ribeirão Preto (SP) no dia 27 de março de 1897. Piolin encantou o público de sua época e foi, na efervescência de 1922, incorporado ao Movimento Modernista como um grande artista da cultura brasileira. Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, dentre outros, foram alguns de seus assíduos espectadores e amigos. Em homenagem a Piolin, comemora-se o dia 27 de março como dia do circo. Todavia, a Escola Piolin foi fechada após três anos de sua inauguração por falta de incentivos fi nanceiros. Em 1982, fundou-se a Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro, a mais antiga, ainda em atividade. Vale destacar também a Escola Picolino de Artes do Circo, em Salvador (BA), e outras tantas surgem pelo País.51

Destas escolas saem principalmente pessoas que formam grupos de circo ou mesmo artistas independentes, confi gurando espetáculos de rua e de teatros fechados. A itinerância, a lona e o picadeiro, marcas do circo tradicional, já não são as únicas características pertinentes ao universo circense. Atualmente, como anunciado, a arte circense está presente em diversas formas e com as mais variadas propostas e funções. Circos itinerantes de grande, médio e pequeno porte, escolas de formação profi ssionalizante ou academias de treinamento, escolas e projetos que utilizam a arte circense com proposta de inclusão social – o circo-social –, artistas de rua, grupos e trupes circenses.

Evidencia-se uma disputa nesse universo para saber “quem afi nal agora é de circo?” Os tradicionais – nome dado àqueles nascidos em famílias de circo – ou os artistas que aprendem uma ou outra técnica? Ou, ainda, quem usa o circo para fi ns fi lantrópicos – circo social? E os artistas de rua, de teatros? Hoje essas discussões são infi nitas em encontros de circenses. Destaquemos um exemplo do ponto de vista dos artistas considerados tradicionais:

51 Pindorama Circus. Disponível em: <htt p://www.pindoramacircus.com.br/novo/escolas/escolas.asp>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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– Você vê diferenças no artista que se forma na escola com aquele de circo tradicional?– Olha, na técnica até que não, tem uns até que muitas vezes são melhores que uns circenses. Mas tem uma diferença que aqui não tem como passar. É coisa de quem vive mesmo no circo. Tem uma ética no circo, que aqui não tem. E isso faz diferença na vida aí fora sabe. Tem muita gente que sai daqui muito bom, mas essa coisa do circo é difícil.– Me fala desta ética, como é isso?– Ah, é uma espécie de um jeito de viver sabe. De respeito, de conhecimento de várias coisas do mundo do circo. Por exemplo, um artista tradicional nunca vai sentar de costas para o picadeiro. Mesmo se não tiver tendo espetáculo, ele não senta de costas. É uma lenda do circo, que a gente aprende lá dentro, sabe? Dizem que não é bom, não dá sorte, essas coisas. Então, são estas lendas. Você nunca vai ver um artista tradicional sentado de costa pro picadeiro.Um outro senhor nascido no circo diz:– Ah! Tem muita diferença; antes o artista sabia de tudo, não fi cava só aprendendo técnica. Sabia também se virar lá fora (aponta pra fora da lona). Hoje os alunos sabem mesmo é uma técnica, mas do universo do circo sabem pouco (Diário de Bordo, 2006).

Do ponto de vista das “novidades” no circo, sejam alunos ou coordenadores de projeto, vale destacar o seguinte:

Um aluno diz que “– Esses professores tradicionais são muito teimosos, não aceitam nada de novo, acham que só o que eles sabem é que é realmente bom.”E um coordenador de ofi cina de circo reafi rma que “– Esse pessoal é meio truncado. Eles têm muito o que aprender com os mais ousados, com os mais novos.” Outro coordenador de circo social diz que “– O Soleil dá mais do que os tradicionais de circo que só deram a experiência.”Uma terceira conversa com coordenadora de circo social aponta que “– Esse jeito que eles ensinam dentro do circo é muito cruel, a criança dentro do circo não tem escolha, tem que virar artista desde a hora que nasce. Além do que a forma que eles ensinam as técnicas tem violência, eles até batem nas pessoas que não aprendem. Sofre muito. E a liberdade de escolher o que quer ser, onde fi ca? (Diário de Bordo, 2006).

Mas como se deu esse processo? Que tipo de forças contribuíram para que o circo rompesse as lonas e ocupasse outros espaços? A forma de transmissão do saber circense pode produzir

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os mais diversos efeitos nesta arte. Quais são as implicações para quem deixa de lado o modo tradicional de transmissão da arte circense, produzida cotidianamente, e envereda pelo mundo de uma escola, de uma ofi cina semanal, de um grupo de teatro, de um projeto fi lantrópico?

O aluno de ofi cina de circo relata: “– Comecei a fazer pra cuidar do meu corpo, afi nal, os exercícios modelam legal. Agora faço ainda porque é legal, a gente não tem que ter compromisso com nada, sabe? É só diversão, não tem que se preocupar com nada aqui.Aluno de ofi cina de circo: “– Faço porque não consigo me adaptar à academia convencional; agora, o circo é mais legal e o corpo fi ca diferente.Aluno de ofi cina de circo: “– É massa, é um lugar que tem um monte de gatinha e a gente fi ca como portô52 e é bom. Além do mais não tem nada sério aqui (Diário de Bordo, 2005).Aluno de ofi cina de circo e integrante de trupe: “– Você tá fazendo circo pra quê?– Ah... nem sei!”Integrante de trupe circense: “– O que você quer nesta trupe? Não sei dizer. Tô aqui por diversão. Se não rolar grana não fi co.Integrante de trupe circense: “– Mas eu não nasci no circo, não sou de circo, mas queria poder viver disso, fazer circo pro resto de minha vida.” (Diário de Bordo, 2005).

Discussões, intrigas, desacordos, competições e afi nidades vão surgindo e continuam sendo discutidas, fomentadas, transformadas. Entretanto, a pretensão deste artigo é lançar questões como: o quê desse universo circense pode passar ao largo dessas questões? Passagens aleatórias do circo mas conectadas ao presente podem provocar ou criar singularidades, considerando as subjetividades produzidas a todo momento. O que há ali de potente que irrompe o tempo, se transforma, recria-se e inventa outros modos de expressão? O que acontece? Desses afetos que não se fi xam, não possuem forma única, não são de ninguém, mas que no bojo de uma espécie de nomadismo, de encontros e desencontros, passam, sem cessar, passam. E em alguma sintonia com o contemporâneo e com alguns pedaços de mundo, a história não linear conta, fabrica, mas não pretende se encerrar: o que se passa neste universo circense?

52 Portô é o acrobata do circo que, nos exercícios de acrobacias, segura o volante. O portô é o “for-te” que segura o peso do volante que executa os números acrobáti cos. É aquele que, no trapézio aéreo, apara o voo do volante.

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Decio de Almeida Prado, o circo e outros gêneros “menores”por Rodrigo Morais Leite53

Resumo: O presente artigo tem como objetivo a análise de uma pequena parcela da crítica e da historiografi a de Decio de Almeida Prado, notório estudioso do teatro brasileiro, circunscrita a temas que só poderiam aparecer de modo periférico em sua obra, como o circo e outros gêneros das artes cênicas – geralmente considerados “menores” segundo uma certa visão de classe. Dividido em quatro partes – “As crônicas”, “Um crítico elitista e conservador”, “O teatro e a salvação pelo popular” e “O palhaço no teatro” –, este trabalho aborda, inicialmente, as críticas que Decio de Almeida Prado escreveu sobre espetáculos de circo, passando, em seguida, ao exame de alguns pressupostos teóricos de sua historiografi a para, enfi m, se deter sobre as críticas de teatro com elementos circenses.

Abstract: This paper aims to analyze a small part of the critics and historiography of Decio de Almeida Prado, a well-known scholar of Brazilian theatre. This piece is limited to issues that might appear peripheral to the work, such as circuses and other genres of performing arts often considered “minor” according to a certain vision of class. Divided into four parts (“The Chronicles”, “An elitist and conservative critic,” “The theater and salvation by popular request” and “The Joker in the theater”), this paper discusses the criticism that Decio de Almeida Prado produced on circus performances, moving on to the examination of some theoretical assumptions of its history; and fi nishes with the critique of theater with circus elements.

Palavras-chave: Decio de Almeida Prado, circo, circo-teatro, historiografi a teatral, palhaçaria.

Keywords: Decio de Almeida Prado, circus, circus-theater, theater historiógrafo, palhaçaria.

53 Bacharel em Jornalismo pela Ponti fí cia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em Literatura e Críti ca Literária pela Ponti fí cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é aluno regular do Mestrado em Artes Cênicas da Unesp, cuja dissertação (tí tulo provisório) é Decio de Almeida Prado e a Historiografi a Teatral Brasileira.

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As crônicasDecio de Almeida Prado, notório crítico e historiador do teatro

brasileiro, iniciou sua carreira em 1941, na revista Clima, veículo de curta duração criado por ele e por outros jovens egressos da recém-fundada Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, como Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes e Lorival Gomes Machado. Surgia, então, uma importante geração de intelectuais, posto que, nos anos vindouros, todos eles se tornaram verdadeiros próceres em suas respectivas áreas de estudo. Finda sua experiência na revista, extinta em 1944, Decio de Almeida Prado tornou-se, a partir de 1946, crítico teatral do jornal O Estado de S. Paulo, onde permaneceu por vinte e dois anos (até 1968), quando abandonou a crítica, no auge de seu prestígio, para se dedicar à carreira acadêmica.

Até 1959, quando passou a se chamar simplesmente “Teatro”, sua seção naquele jornal – não assinada, como era comum na imprensa da época – intitulava-se “Palcos e Circos”. Talvez em virtude da escassez de apresentações teatrais na São Paulo dos anos quarenta e cinquenta do século passado, o conceito de espetáculo que norteava a coluna de Decio de Almeida Prado, que, aliás, não tinha periodicidade alguma, era mais abrangente do que o observado no jornalismo impresso de hoje, com suas colunas assinadas e seções fi xas e segmentadas, fruto da sobrevalorizada especialização profi ssional, tão típica da contemporaneidade. Com efeito, embora o teatro prevalecesse de modo incontestável, nos primeiros tempos de sua atividade de crítico do “Estadão”, Decio de Almeida Prado, vez ou outra, cedia espaço para tratar de outras manifestações de arte cênica, como o circo. Essas aberturas a espetáculos de diversa ordem não se manteve no decorrer do tempo: à medida que os anos foram se passando, elas foram se tornando cada vez mais raras, até que o teatro adquirisse pleno monopólio, daí a mudança do nome da coluna a partir de 195954.

De acordo com Ana Bernstein, autora de A crítica cúmplice – Decio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno, os

54 Somente em 1964 a coluna passou a ser assinada.

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textos de Decio “[...] que tratam de espetáculos de circo e patinação no gelo se destacam entre os mais deliciosos exemplos de crítica que produziu, dando total vazão à imaginação e à poesia. Neles visualizamos toda a magia do picadeiro, em tudo o que este possui de extraordinário e espetacular” (BERNSTEIN, 2005: 91).

Das poucas “crônicas” que o crítico paulista escreveu, nessa fase relativamente curta de sua longa carreira intelectual, a respeito de espetáculos especifi camente de circo, pois outra coisa é teatro com elementos circenses, somente duas foram salvas do esquecimento destinado a gêneros por excelência jornalísticos (portanto efêmeros) como a crítica e a crônica, adquirindo sobrevida nas páginas supostamente perduráveis do livro impresso. Antes, porém, de citá-las, um pequeno parêntese: grafamos “crônicas” com aspas por dois motivos: em primeiro lugar porque, à época em que elas foram escritas, esse termo tinha uma conotação mais ampla, designando também o que hoje é denominado somente de crítica; em segundo lugar porque as críticas de Decio de Almeida Prado que tratam de circo são, na verdade, muito mais crônicas do que críticas, de acordo com o sentido algo restrito que a palavra adquiriu mais recentemente. São elas: “Hoje tem goiabada...”, publicada em sua primeira coletânea de críticas, que abarca o período de 1946 a 1954, intitulada Apresentação do teatro brasileiro moderno (1956); e “Circo acrobático chinês”, incluída no volume Teatro em progresso (1964) que vai de 1955 a 1964.

Em ambos os textos, malgrado a (aparente) falta de preocupação do crítico com o elemento judicativo, uma vez que estaria mais interessado em contemplar do que em avaliar seu objeto – outra qualidade, aliás, típica do que hoje é designado crônica – não se pode dizer que eles não contenham alguns reveladores juízos de valor, que nos permitem ao menos vislumbrar como Decio de Almeida Prado encarava a arte circense. Vejamos, por exemplo, o primeiro parágrafo de “Hoje tem goiabada...”, que é de 1952 e versa sobre um espetáculo cujo nome ou procedência do circo, estranhamente, não é mencionado:

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Há de novo um circo em São Paulo. Não o circo sedentário, cansado de aventuras, instalado comercialmente na vida, resignado a viver das sobras do teatro e do rádio, a que já nos vamos acostumando no Brasil. Mas o circo ontem e de sempre, o circo de cavalinhos, com animais raros, trapézios volantes, chineses malabaristas, mulheres forçudas e homens de meio metro – ou dois metros e meio (PRADO, 2001: 361).

Percebemos, antes de mais nada, que Decio de Almeida Prado estabelece uma distinção entre o que seria “o circo ontem e de sempre”, com outro circo por ele qualifi cado pejorativamente de “sedentário”, “cansado” e “resignado”. O que compõe e o que desabilita os espetáculos desse outro circo, além do fato de ele não ser itinerante, infelizmente ele não diz.

Adiante, na parte fi nal desse texto deveras curto, depois de descrever, de maneira bastante singela, todo o encanto das diversas atrações que viu, Decio de Almeida Prado detém-se sobre um aspecto do circo ao qual ele já havia se referido de passagem, um dos itens que diferenciariam, por assim dizer, o circo “de sempre”, daquele “cansado” e “resignado”: os animais raros. “Sem contar que o circo, em matéria de bichos, revela uma simpática preferência pelas gaffes da natureza; referimo-nos, por exemplo, a bichos cujo corpo e cabeça são apenas as duas extremidades de uma parte preciosa e essencial chamada pescoço (sim, a girafa existe: meninos eu vi!)” (PRADO, 2001: 362).

Não é à toa que nos atemos a esse detalhe, aparentemente sem muita signifi cação. É que, posteriormente, em 1958, ano em que a seção de Decio de Almeida Prado estava prestes a mudar de nome, quando foi publicada a crônica “Circo acrobático chinês”, ele voltou a conferir certo destaque a tal aspecto, desta vez, contudo, num sentido diametralmente oposto ao da crônica anterior. Explicando: se, na primeira, o crítico aponta a exibição de animais exóticos como sendo uma das principais atrações de um valoroso espetáculo de circo, na segunda, ao procurar estabelecer um contraponto entre o circo chinês e o nosso, ele ressalta não a presença, mas a total ausência de qualquer bicho no espetáculo a que assistiu – levado no

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Teatro Municipal de São Paulo, informemos de passagem. A citação seguinte, retirada do último parágrafo do texto, é esclarecedora a esse respeito:

O circo chinês não apresenta elefantes, lhamas, ursos equilibristas, macacos e focas amestradas. Não é preciso. Muito antes de o espetáculo terminar já estamos amplamente persuadidos de que o animal mais estranho, exótico, improvável, imprevisível, inconcebível da natureza – é o homem mesmo. Diante de um acrobata chinês, para que a girafa? (PRADO, 2002: 112)

Num espaço de seis anos, a girafa deixou de ser o símbolo da exuberância circense para ser vista como algo supérfl uo, a ponto de se louvar sua ausência. Sendo “Circo acrobático chinês” uma crônica que tem como mote a comparação entre o circo brasileiro (ou, quiçá, ocidental) e o chinês – calcado, é claro, só naquela “amostra” a que Decio de Almeida Prado teve acesso – é mais ou menos natural que o elogio dirigido a um implique direta ou indiretamente desvalorização do outro. Se dissermos que a crítica é bastante elogiosa em relação ao espetáculo apresentado pelos artistas chineses, não é difícil deduzir que ela acaba sendo às vezes severa com relação ao circo que lhe era até então conhecido. Nesse sentido, o melhor exemplo se dá quando o crítico comenta (para enaltecer, é claro) a música do espetáculo:

Não iremos a ponto de dizer que a introdução sinfônica nos tenha deliciado os ouvidos [...], mas confessamos que o comentário musical subsequente pontuava com tanta exatidão o que acontecia em cena, dando o ritmo e guiando cada movimento, que, do meio para o fi m, as valsas e as marchas militares dos nossos circos começaram a parecer, em retrospecção, elementos bem pobres e pouco expressivos de ilustração musical da mímica (PRADO, 2002: 111).

Semelhantes lacunas, contradições e analogias temerárias que até esta altura do trabalho procuramos expor, retiradas de uma porção mínima da obra de Decio de Almeida Prado, não se devem, é importante ressaltar, a incompetência técnica. O problema, acreditamos, é de ordem diversa. Preliminarmente, pelo fato de ele ter sido, no máximo, um analista de circo bissexto, isto é, um crítico de teatro que de vez em

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quando escrevia sobre um espetáculo de circo, e mesmo assim num período relativamente curto de uma carreira de vinte e dois anos, não produziu e, por conseguinte, não refl etiu o necessário à elaboração de uma teoria da matéria em questão. Embora, muito provavelmente, entendesse o sufi ciente do assunto, suas observações a respeito dele não obedeciam a nenhuma plataforma conceitual, por mais ampla que fosse. É isso, basicamente, o que explica, senão justifi ca, as incongruências supracitadas.

Um crítico elitista e conservadorAcusado de elitista e conservador, por não se interessar, ou

pouco se interessar, por gêneros teatrais considerados populares, como a revista e o circo-teatro, tais omissões devem ser analisadas sob dois ângulos distintos, cada qual relacionado a uma vertente da obra de Decio de Almeida Prado, a saber, a crítica e a historiográfi ca. Com relação àquela, acreditamos já ter realizado parcialmente tal objetivo, deixando claro o caráter esporádico, lúdico e ocasional daqueles seus textos citados até aqui. Vocação inequívoca para a crítica de teatro, que lhe absorvia todas as energias, as críticas-crônicas que escreveu sobre espetáculos de circo foram, fazendo uso de uma expressão popular, um “lucro” a mais. Em suma, pelo menos no que concerne à crítica, Decio de Almeida Prado não pode ser acusado de não ter feito aquilo que jamais se propôs, de fato, a fazer.

Já em relação à sua obra historiográfi ca, não há como negar que algumas censuras lhe podem ser feitas no sentido referido logo acima: obliterar gêneros tidos como populares, aos quais, seguramente, o circo se insere. Todavia, como quaisquer censuras, elas precisam ser bem matizadas, sob pena de incorremos em graves injustiças e incorreções, a principal delas, conforme veremos adiante, o anacronismo. Antes, um rápido esclarecimento: embora ambos façam parte de um mesmo universo artístico, designado genericamente de artes cênicas, teatro e circo não são a mesma coisa; logo, cada qual exige formação especializada daqueles que optam por estudar um ou outro. Sendo assim, desqualifi car a obra

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historiográfi ca de Decio de Almeida Prado por ela nada conter sobre a história do circo no Brasil é, no mínimo, um despropósito, pois uma coisa é produzir uma história do teatro, outra uma história do circo. Sob o ponto vista de um observador contemporâneo, pensamos que a lacuna mais grave refere-se à omissão total do circo-teatro, tão em voga na primeira metade do século passado e que, aí sim, poderia ter sido incluído no “raio de ação” de seus estudos, na medida em que ele está dentro do âmbito do drama.

Como sabem os que já se “embrenharam” por sua historiografi a, Decio de Almeida Prado jamais escreveu um grande tratado abarcando toda a história do teatro brasileiro. Analisando essa vertente de sua obra como um todo, percebemos que todos os períodos históricos de nosso teatro foram nela contemplados, de modo não obstante esparso e um tanto quanto desmedido, ou seja, concentrado muito mais em alguns períodos do que em outros. Seus estudos mais importantes, aqueles que poderíamos chamar de magnos, assim como de outros intelectuais da chamada “Geração Clima”, estão focados em dois momentos: primeiro, o romantismo; depois, o modernismo. Estamos falando de trabalhos como João Caetano (1972), Teatro brasileiro moderno (1988) e O drama romântico brasileiro (1996).

Se tomarmos, conforme afi rmam alguns historiadores do circo e do circo-teatro no Brasil, como Roberto Ruiz e outros, a data de 1918, quando a gripe espanhola “atracou” por essas plagas, como o marco inaugural do teatro de pavilhão55, mesmo ressaltando a fragilidade de defi nições assim tão peremptórias, verifi camos que o auge do circo-teatro não coincide nem com o período romântico, é óbvio, nem com o período de implantação do modernismo no teatro brasileiro – admitindo a data de 1943, ano da estreia de Vestido de noiva, de Nélson Rodrigues, como seu marco, de acordo com certo ponto de vista da historiografi a teatral brasileira. Decio de Almeida Prado jamais lançou um livro que se dedicasse a examinar

55 Outra forma de se referir ao circo-teatro, por causa da plataforma onde aconteciam as encenações, fi xada de modo anexo ao picadeiro.

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em profundidade esse momento específi co do teatro brasileiro. Se quisermos saber algo a respeito dele por meio de sua obra, devemos procurar alguns ensaios publicados em coletâneas híbridas, como Peças, pessoas, personagens (1993) e Seres, coisas, lugares (1997). Dos diversos e variados ensaios incluídos nessas coletâneas, alguns a tratar inclusive de futebol, dois dissertam a respeito de assuntos que, de uma forma ou de outra, implicam a necessidade de um exame do teatro feito nas primeiras décadas do século XX: “Procópio Ferreira (Um pouco de teoria, Um pouco de prática)” e “O teatro e o modernismo”, ambos incluídos em Peças, pessoas, personagens.

O primeiro deles, que antes fora publicado num opúsculo intitulado Procópio Ferreira – A graça do velho teatro, como não poderia deixar de ser, centra-se na carreira do ator, um dos mais famosos nos anos vinte, trinta e quarenta do século passado, cujo nome é citado nos dois títulos atribuídos ao ensaio. Entretanto, conforme atestam os dois subtítulos, o estudo extrapola seu objeto específi co, na medida em que busca fazer uma análise geral do teatro brasileiro nos tempos do apogeu da carreira de Procópio Ferreira.

Nesse sentido, trata-se menos de uma biografi a profi ssional do que de uma exegese de caráter historiográfi co, cujo tema é aquele teatro que, para Decio de Almeida Prado, prevaleceu entre o fi m da Primeira Guerra Mundial (1918), até mais ou menos a estreia de Vestido de noiva, que ele costumava chamar de “velho teatro”, cujo símbolo maior, sempre de acordo com sua interpretação, seria Procópio Ferreira. Nele encontraríamos uma espécie de síntese de um teatro centrado na fi gura do primeiro ator, ao redor do qual tudo girava. Um teatro quase monopolizado, em sua dramaturgia, pela comédia de costumes, portanto obcecado pelo riso e visto por todos (público e profi ssionais da área) como diversão ligeira.

Outras características que ainda poderíamos elencar: a importância secundária do texto, o uso do ponto, os “tipos” mais ou menos fi xos (ingênua, coquete, galã, vilão...), o desconhecimento das atribuições de um encenador. Salvo engano, todas elas, umas mais, outras menos, também servem para designar o circo-teatro,

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cujo auge foi concomitante ao período áureo da carreira de Procópio Ferreira. Aliás, nada demais no fato de o circo-teatro estar em sintonia, o que equivale dizer comungar certas qualidades, com o teatro de sua época. Independente disso, de acordo com o que insinuamos anteriormente, nenhuma palavra sobre Benjamin de Oliveira e Alfredo Spinelli, supostamente os inventores do circo-teatro. A modalidade, digamos assim, não é sequer mencionada.

Lapsos como esse geralmente são creditados a um manifesto elitismo do autor, intelectual formado na USP e, ainda por cima, membro de uma família tradicional paulista. Que Decio de Almeida Prado fazia parte de uma elite, tanto econômica como intelectual, e que essa origem patrícia se refl etia em seu modo de pensar – o que se costuma chamar de consciência de classe – não resta dúvida. Num trabalho chamado Refl exões sobre a crítica teatral nos jornais – Decio de Almeida Prado e o Problema da apreciação da obra artística no jornalismo cultural, Maria Cecília Garcia, em que pese sua pesquisa ater-se somente à crítica de Decio, analisada na ótica de Mikhail Bakhtin, resumiu bem essa questão:

Como Bakhtin, ressaltamos a natureza social da linguagem. Ela é a primeira voz a conformar um discurso, a voz que lhe serve de esteio. As ideias estéticas de Decio de Almeida Prado foram profundamente infl uenciadas por sua posição social – era fi lho de uma família quatrocentona de São Paulo, cujo pai era médico, amante da poesia e do teatro [...] (GARCIA, 2004:134).

Não negamos que determinados vácuos observados na historiografi a de Decio de Almeida Prado, dos quais o circo-teatro seria mais um, assim como o teatro de revista e outros gêneros “menores”, tenham origem numa visão aristocrática de vida e arte. Contudo, é necessário que façamos a seguinte ressalva: tais censuras, todas relativamente recentes, que procuram “julgar” uma determinada obra por aquilo que ela contém e por aquilo que ela não contém, estão impregnadas de teorias e fi losofi as ditas pós-modernas, portanto posteriores ao período de formação intelectual do autor que nos interessa. Devido à avassaladora infl uência no pensamento contemporâneo de fi lósofos como Jacques Derrida, Michel Foucault

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e outros, preocupados em desconstruir discursos tidos como paradigmáticos, é natural que a obra de um Decio de Almeida Prado, considerada canônica em seu restrito universo, seja reavaliada sob novos ditames, mais afi nados com os valores que guiam o mundo em que hoje vivemos.

Semelhante releitura, que cada geração que se sucede no decorrer do tempo costuma empreender dos “clássicos” que lhe foram legados, é legítima desde que não incorra num pecado venal, já mencionado, de passagem, lá atrás: o anacronismo. Não se pode exigir de um determinado autor aquilo que ele não poderia ter dado. Por um motivo simples: as limitações inerentes de sua época. Assim como não se pode condenar Isaac Newton por não ter conhecido a física quântica, ou Karl Marx por não ter conhecido a psicanálise, não se pode simplesmente condenar a obra historiográfi ca de Decio de Almeida Prado pelo fato de ele ignorar temas que só recentemente adquiriram, digamos, dignidade epistemológica, ou seja, passaram a ser objeto de pesquisas acadêmicas.

Malgrado todas as lacunas observadas, e outras que poderíamos facilmente levantar, não se pode asseverar que Decio de Almeida Prado desprezava por completo o circo. Se assim o fosse, este trabalho não teria sentido. Para corroborar nossa insólita tese – que se propôs a dissertar sobre um assunto que só poderia ser encontrado de maneira dispersa, porém não acidental, na obra de um crítico e historiador de teatro – resta-nos abordar o já citado ensaio O teatro e o modernismo, que nos apresenta alguns aspectos interessantes dessa relação exposta no título, toda ela entremeada, ver-se-á, pelo circo, donde se compreende por que ele nos interessa. Como espécie de epílogo, arremataremos este artigo com algumas considerações que também reputamos relevantes a respeito de um tema absolutamente correlato à arte circense: a palhaçaria. Para tanto, faremos uso de críticas escritas por Decio de Almeida Prado sobre espetáculos com elementos circenses, o que é praticamente o mesmo que dizer espetáculos com palhaços. Uma, em especial, nos foi extremamente útil: Uma mulher e três palhaços, de Marcel

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Achard, espetáculo de 1954 dirigido por José Renato nos primórdios do Teatro de Arena (SP), por ele fundado no ano anterior.

O teatro e a “salvação pelo popular”Escrito em 1972, por ocasião do cinquentenário da Semana de

Arte Moderna, O teatro e o modernismo é um texto que procura “[...] estabelecer nexos entre o teatro que se desejava fazer na década de [19]20 e o que se fez efetivamente entre 1940 e 1970” (PRADO, 1993: 9). Nele, Decio de Almeida Prado principia por lamentar a tão propalada ausência do teatro entre as artes representadas na histórica exposição realizada no Teatro Municipal de São Paulo (sic). Trata-se, é claro, de um recurso retórico do ensaísta, na medida em que, no restante do trabalho, o que se busca é exatamente refutar essa interpretação, mostrando que entre o teatro e o modernismo (sobretudo o da primeira geração) há “[...] mais vínculos profundos do que sonha a nossa habitual historiografi a” (PRADO, 1993: 15).

Se lembrarmos que, para Decio de Almeida Prado, o teatro só iniciou sua modernização vinte e um anos depois da Semana de Arte Moderna, com a encenação de Zbigniew Ziembinski para Vestido de noiva, o amálgama a entrelaçar esses dois momentos capitais da história cultural brasileira relaciona-se a uma parcela da obra de dois modernistas da linha de frente do movimento: Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. Aquele pela obra dramática (O rei da vela, O homem e o cavalo, A morta); este pela obra de crítica teatral, ou, melhor seria dizermos, teoria teatral (Terra roxa e outras terras, cavaquinho e saxofone).

Sem descartar o primeiro, do qual comentaremos a seguir, para o que nos propusemos fazer nos interessa mais de perto o que Decio de Almeida Prado escreve sobre o segundo. Para ele, Antônio de Alcântara Machado foi uma espécie de profeta do moderno teatro brasileiro, mas um profeta que, infelizmente, pregou no deserto, já que suas ideias não tiveram grande repercussão nem antes nem depois de sua morte (1935), mesmo após a introdução do modernismo no

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teatro brasileiro. Resumindo ao máximo toda uma argumentação que, embora perfeitamente inteligível, não deixa de ser complexa, na ótica de Antônio de Alcântara Machado o teatro brasileiro dos anos 1920, com suas farsas e comédias de costumes, chegara a uma espécie de beco sem saída, a partir do qual não se podia mais avançar. O espectador brasileiro simplesmente não se reconhecia mais naquilo que se via nos palcos da época. Faltava à dramaturgia brasileira... brasileiros, pois ela desconhecia a fi gura do cangaceiro, do bicheiro, do proletário, do imigrante, do industrial etc.

Para que a cena nacional pudesse de fato representar o brasileiro como ele é, com suas qualidades e defeitos, sem recalques – proposta cara aos primeiros modernistas – Antônio de Alcântara Machado propunha a salvação pelo popular, ou seja, propunha que o teatro brasileiro, partindo do zero, absorvesse aquelas formas “menores”, como o teatro de revista e o circo, formas nas quais ainda se podia encontrar uma imagem mais ou menos autêntica do brasileiro. Vem daí a sua admiração, compartilhada com outros modernistas, pelo palhaço Piolin, do circo Alcebíades. Decio de Almeida Prado cita um trecho de Terra roxa e outras terras (1926) que sintetiza muito bem o pensamento de Antônio de Alcântara Machado, tipicamente modernista, no sentido de valorizar aquilo que é tido como primitivo e exaltar até supostos defeitos atribuídos aos brasileiros (vide Macunaíma, herói sem nenhum caráter).

São Paulo tem visto companhias nacionais de toda sorte. Incontáveis. De todas elas, a única, bem nacional, bem mesmo, é a do Piolim! Ali no Circo Alcebíades! Palavra. Piolim, sim, é brasileiro. Representa Dioguinho, O Tenente Galinha, Piolim sócio do Diabo e outras coisas assim, que ele chama de pantomimas, deliciosamente ingênuas, brasileiras até ali (apud PRADO, 1993: 22).

Antes, porém, que semelhante “redenção” sucedesse, seria necessário que o teatro brasileiro se universalizasse, atualizando-se principalmente no que tange à sua dramaturgia. Segundo Decio de Almeida Prado, Antônio de Alcântara Machado praticamente previu toda a evolução do teatro brasileiro, com a exceção de que a universalização, pelo menos num primeiro momento, se daria mais pela

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encenação (Ziembinski) do que pela dramaturgia. A ideia básica, que pode parecer paradoxal mas não é, se levarmos em conta que Antônio de Alcântara Machado foi uma espécie de crítico “pau-brasil”, era a seguinte: uma vez em sintonia com o teatro de vanguarda europeu, o teatro brasileiro iria, fatalmente, se nacionalizar, se abrasileirar.

Na visão de Decio de Almeida Prado, se Vestido de noiva representa o momento de universalização, O rei da vela, montagem de José Celso Martinez Corrêa para o texto de Oswald de Andrade, representa o momento seguinte, da nacionalização idealizada por Antônio de Alcântara Machado.

Escrita em 1933, a primeira edição da peça saiu em 1937; a montagem é de 1967. Desprezada à época da publicação, seriam necessários trinta anos para que O rei da vela, “descoberta” por um encenador de outra geração e com outra sensibilidade artística, ganhasse vida no palco e ensejasse o advento de um importante movimento cultural como o Tropicalismo. Na famosa encenação do Teatro Ofi cina (SP), José Celso Martinez Corrêa utilizou, para cada um dos três atos da peça, um modelo estético diferente, respectivamente o circo, o teatro de revista e a ópera (buffa). É curioso observar que, talvez devido à infl uência de Antônio de Alcântara Machado, Decio de Almeida Prado só tece reservas para o terceiro ato, precisamente aquele que renega o popular e se apropria de um modelo aristocrático de arte. “Já os dois outros estilos do espetáculo fl uíam naturalmente das sugestões do texto: a ferocidade e o grotesco do circo, para o primeiro ato; a comicidade canalha da revista, para o segundo” (PRADO, 1993: 38).

Contudo, apesar da valorização dessas manifestações artísticas populares, derradeiro reservatório de nacionalidade, nem Antônio de Alcântara Machado nem Decio de Almeida Prado eram críticos que poderiam ser classifi cados como “populares”, no sentido de não distinguirem (e, por extensão, não hierarquizarem) popular de erudito. Por detrás do uso metafórico da palavra “espelho”, nos extratos de texto que se seguem, é possível perceber uma indisfarçável visão aristocrática de arte, compartilhada por ambos. Numa passagem citada por Decio de Almeida Prado, Antônio de

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Alcântara Machado afi rma: “Brasileirismo só existe na revista e na burleta. [...] O espírito do nosso povo tem nelas o seu espelhinho de turco, ordinário e barato” (apud PRADO, 1993: 22). Um pouco adiante, é o próprio Decio de Almeida Prado quem afi rma:

Se o teatro tivesse a coragem de encarar face a face o Brasil, sem nunca desviar os olhos, sem nada falsear ou omitir, talvez pudéssemos celebrar então o nascimento de uma verdadeira dramaturgia nacional. As “graças e desgraças da descivilização brasileira” teriam encontrado fi nalmente o seu melhor espelho, mais revelador porventura do que os ingênuos e encantadores vidrilhos do circo, e certamente menos deformante do que o “espelhinho de turco” do teatro de revista (PRADO, 1993: 25).

Convenhamos, basta observar nossos grifos para captar a moral da fábula: embora admirassem o circo e congêneres – formas que “exalariam” uma brasilidade tida como espontânea e despretensiosa, perfeitas para “arejar” o nosso teatro – em suas escalas de valores, os dois críticos não as igualavam a este último, considerado o “melhor” espelho.

O palhaço no teatroConforme havíamos prometido, fi nalizaremos este trabalho

com algumas considerações a respeito de palhaçaria na obra de Decio de Almeida Prado. Vejamos, antes de fazê-las, uma passagem de um texto a que já nos referimos: a crítica do espetáculo Uma mulher e três palhaços.

José Renato, sentindo que era impossível tratar os dois clowns de maneira realista, recorreu a uma marcação exuberantíssima, quase de dança, expediente de que os nossos encenadores sempre lançam mão quando desejam fugir ao naturalismo estrito. Acontece, entretanto, que o estilo da pantomima do circo é outro, tão longe da dança quanto da naturalidade da vida. Um estilo de picadeiro, se quiserem, amplo, exagerado, feito de gestos desastrados, de movimentos mecânicos, de acrobacia grotesca, mas um estilo seco, econômico, sem nada da euforia de movimentos, da riqueza e desperdício de gesticulação, adotada pelos atores da Companhia de Teatro de Arena. Afi nal de contas, a palavra, até no circo, tem uma força, um valor, que é preciso respeitar, não a sufocando sob a agitação física constante (PRADO, 2001: 213).

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Infl uenciado que foi pelos ideais do diretor francês Jacques Copeau, Decio de Almeida Prado sempre valorizou bastante o texto no teatro, mesmo não desprezando, é claro, a encenação. O trecho acima indica que o crítico, de certa forma, estendia os conceitos que lhe eram caros também para o circo, por acreditar que, seja em que registro cênico for, a palavra vem em primeiro lugar; o gestual deve, conquanto, estar a serviço dela, para não dizer submisso a ela. Com efeito, ao dar tanto valor ao texto, “até no circo”, podemos deduzir, ou pelo menos intuir, que Decio de Almeida Prado tinha uma opinião um tanto peculiar e “classizada” sobre o palhaço.

Ao contrário do que o senso comum pode fazer crer, que a palhaçaria seria um “mero” recurso humorístico de tipo circense, um meio para se atingir um fi m (o riso), o autor que nos interessa via o palhaço como uma personagem circense – uma personagem-tipo, seguramente, mas uma personagem. Partindo desse princípio, podemos asseverar, não sem posteriormente darmos mais um exemplo, para sustentar melhor nossa peroração, que para Decio de Almeida Prado o palhaço é engraçado por si só; o artista que o encarna, para obter o máximo de rendimento, deve não somente dominar certos recursos técnicos próprios do métier, mas dominá-los e utilizá-los a serviço da personagem. E isso vale até para o caso de a personagem ser muda, pois quando Decio de Almeida Prado fala de texto, não necessariamente se trata de texto verbal. Pode ser também um texto visual, isto é, uma concepção visual cuidadosamente elaborada antes de se materializar no palco, no picadeiro e mesmo no cinema. Essa concepção, é importante ressaltar, deve servir para compor a personagem, delineá-la para o espectador, advindo daí a emoção e o riso. O que não pode é a “euforia de movimentos”, o “desperdício de gesticulação” a serviço de nada.

Para que tudo isso que estamos a explanar fi que mais claro, citaremos um fragmento extraído de uma crítica de Decio de Almeida Prado sobre um espetáculo protagonizado por Procópio Ferreira, de 1952, intitulado “Essa Mulher é Minha” (de Raimundo Magalhães Júnior), em que o famoso ator-cômico é comparado a ninguém mais

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ninguém menos que Charles Chaplin. A comparação, em princípio absurda, possivelmente sintetiza bem o pensamento de Decio de Almeida Prado sobre a estética clownesca:

A melhor qualidade de riso, no teatro, provém não diretamente do ator mas da personagem, nascendo da perspicácia posta na sua composição. Como nas boas caricaturas, rimos porque nos surpreendemos a compreender melhor alguma coisa, vendo-a sob uma luz inesperadamente exata. Carlitos é quase um clown, deformando e estilizando violentamente tudo em que toca; e se, no entanto, rimos e nos emocionamos com ele, é porque através da sua excêntrica fi gura percebemos o patético e o ridículo que acompanha sempre fi elmente a todo homem. Procópio, infelizmente, não atingiu ainda esta espécie de riso. A sua graça é geralmente superfi cial, à fl or da pele, sem penetrar, sem marcar, sem inventar um tipo que fi que na memória (PRADO, 2001: 80).

Diante do que foi exposto, não estaríamos “forçando a nota” caso afi rmássemos que, para Decio de Almeida Prado, o circo, com sua estética única, embora considerada inferior à do teatro, presta-se perfeitamente a este como fonte de inspiração, desde que a apropriação do picadeiro pelo palco, em geral restrita à fi gura do palhaço, não se realize como mero ornamento. Ela deveria, impreterivelmente, ter função dramática, algo que, espera-se, nos é dado por um texto, seja ele de que tipo for. Aparentemente, o arrebatamento visual, tão característico do circo, uma vez “transplantado” para o palco, não lhe interessa como tal. E é neste ponto que adentramos no cerne da problemática circo versus teatro na “poética” de Decio de Almeida Prado, quando passamos a compreender que o circo, para servir ao teatro, deveria submeter-se a um certo tipo de teatro, que poderíamos designar, de modo bem genérico, de dramático. Nenhum problema, não fosse o simples fato de o circo já ter nascido e ser por excelência uma arte pós-dramática. Mas isso é outra questão...

De qualquer forma, agora que estamos prestes a teclar o ponto-fi nal deste trabalho, podemos ajuizar, em vista de tudo o que foi argumentado, que Decio de Almeida Prado, quando solicitado, por diversos fatores, a adentrar em temas como o circo e correlatos,

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cumpriu com dignidade essa missão, apesar dos lapsos aqui indicados e, na medida do possível, contextualizados. Resultado do tempo em que se formou intelectualmente, além, é claro, de suas idiossincrasias, esses lapsos poderiam, no entanto, ser interpretados como mais uma prova da sapiência de Blaise Pascal, que, lá na França do século XVII, cunhou uma máxima bastante adequada para se defi nir a fi gura de Decio de Almeida Prado que aqui tentamos, partindo de um viés bem específi co, esboçar: “Ele tinha os defeitos próprios de suas virtudes.”

Referências bibliográfi cas

BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice – Decio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005.

GARCIA. Maria Cecília. Refl exões sobre a crítica teatral nos jornais – Decio de Almeida Prado e o problema da apreciação da obra artística no jornalismo cultural. São Paulo: Mackenzie, 2004.

PRADO, Decio de Almeida. “Procópio Ferreira (Um pouco de teoria, um pouco de prática)”. In: Peças, pessoas, personagens – O teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. “O teatro e o modernismo”. In: Peças, pessoas, personagens – O teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. “Essa mulher é minha”. In: Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001.

______. “Hoje tem goiabada”. In: Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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______. “Circo acrobático chinês”. In: Teatro em progresso. São Paulo: Perspectiva, 2002.

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A noite dos palhaços mudos: uma análiseLilia Nemes Bastos56

Resumo: O artigo apresenta uma análise descritiva do espetáculo A noite dos palhaços mudos, criado pela Cia. La Mínima (Domingos Montagner e Fernando Sampaio) e dirigido por Álvaro Assad com base na história em quadrinhos homônima do cartunista Laerte. Partindo de uma comparação entre o espetáculo e os quadrinhos, a análise detém-se em alguns elementos da cena (atuações, objetos, fi gurinos, maquiagem etc.) e propõe articulá-los em uma visão de conjunto marcada pelo alogismo, pela comicidade e pelo lúdico.

Abstract: This article presents a descriptive analysis of the play A noite dos palhaços mudos, created by the Brazilian theatre company La Mínima (Domingos Montagner e Fernando Sampaio), directed by Álvaro Assad and inspired in a comic strip of Laerte. Starting from a comparison between the play and the comic strip, the analysis focus on some scenic elements (acting, space, costumes, make-up etc.) and attempts to articulate them in an illogical, comical and ludic point of view.

Palavras-chave: La Mínima, Laerte, palhaço, comicidade, teatro.

Keywords: La Mínima, Laerte, clown, comic, theatre.

A noite dos palhaços mudos é um espetáculo cênico da Cia. La Mínima, de São Paulo, formada por Domingos Montagner e Fernando Sampaio. A peça estreou em 2008 no Espaço Parlapatões (São Paulo – SP), onde cumpriu quatro temporadas entre maio e dezembro de 2008, e foi apresentada em diversos festivais de artes cênicas no Brasil. Em 2010, A noite dos palhaços mudos integrou uma mostra do repertório da Cia. La Mínima no Teatro Cleyde Yáconis (São Paulo – SP). Em 2011, o espetáculo excursionou por unidades do Serviço Social da Indústria (Sesi) no Estado de São Paulo e foi apresentado quatro vezes consecutivas na cidade do Rio de Janeiro.

56 Atriz formada pelo Indac Escola de Atores e mestranda em artes cênicas pelo Insti tuto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), sob orientação do Prof. Dr. Mario Fernando Bolognesi.

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Descrito como “fenômeno de público”57, A noite dos palhaços mudos é um espetáculo de destaque na cena paulistana. A Cia. La Mínima, que já fora premiada por Piratas do Tietê, O fi lme (APCA de Melhor Espetáculo Infanto-Juvenil) e por À la carte (APCA de Melhor Espetáculo com Técnicas Circenses e Prêmio Em Cena Brasil do Ministério da Cultura), recebeu por A noite dos palhaços mudos, os prêmios: Shell de Teatro SP (Melhor Ator para Domingos Montagner e Fernando Sampaio em 2009), Prêmio de Melhor Espetáculo de Sala Convencional e Melhor Elenco através do Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro 2008, Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz de Incentivo à Montagem (2007) e Prêmio PAC de Montagem Teatral (2007), além de quatro indicações ao Prêmio Shell 2008 e seis indicações ao Prêmio Coca-Cola FEMSA de Teatro 2008.58

Além de Domingos Montagner e Fernando Sampaio, atores e criadores do roteiro, participaram da montagem: Álvaro Assad (direção, roteiro e preparação mímica), Fábio Espósito (atuação e colaboração), Paulo Rogério Lopes (colaboração), Wagner Freire (iluminação), Inês Sacay (fi gurinos), Maria Cecília Meyer (adereços), Marcelo Pellegrini (música original), Volkane (assessoria técnica de magia), Sérgio Rocha (coreografi a), Luciana Lima (programação visual e administração) e Mariana Goulart (produção executiva). Domingos Montagner também foi responsável pela cenografi a59.

A criação do espetáculo60 teve como ponto de partida a história em quadrinhos A noite dos palhaços mudos, do cartunista Laerte Coutinho, publicada no livro Os piratas do Tietê e outras barbaridades (1994).

57 Jeff erson del Rios. “O misterioso silêncio dos palhaços“. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 jul. 2008. Notí cias. Disponível em: <htt p://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080724/not_imp211103,0.php>. Acesso em: 16 fev. 2012.

58 LA MÍNIMA. Site. Disponível em: <htt p://www.laminima.com.br/laminima/repertorio/palhacos_mudos/index.htm> e <htt p://www.laminima.com.br/laminima/agenda/index.htm>. Acesso em: 16 fev. 2012.

59 LA MÍNIMA. La Mínima, registro de um repertório. São Paulo: Edição dos Autores, 2010, p. 69.

60 Videoclipe do espetáculo. Disponível em: <htt p://www.youtube.com/watch?v=rq-KERd6zxw>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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As personagens da história de Laerte61 são três palhaços e diversos homens vestidos de terno. A história tem início com o encontro de dois palhaços em um cenário urbano, durante a noite. Percebemos que eles não querem ser vistos e têm alguma missão secreta a cumprir. Sob a liderança de um deles, a dupla caminha, pé ante pé, até os altos muros de um casarão imponente. Depois de esforços e trapalhadas para transpor o muro, os palhaços entram na casa, sobem escadarias íngremes, chocam-se algumas vezes ao transporem uma porta e chegam a uma cozinha, onde começam uma procura por não se sabe o quê. Os dois entram na boca de um forno e, por dentro dele, deslocam-se até um quarto abarrotado de folhetos nos quais lemos “Morte aos palhaços”, “Ameaça” e “Ao povo”. Sons de passos no corredor alertam os palhaços para a chegada de dois homens vestidos de terno.62 Subitamente, eles nocauteiam e despem os homens, vestem seus ternos e dirigem-se confi antes a um lugar povoado por outros homens de terno. O disfarce dos palhaços não deixa de evidenciar ao leitor narizes e sapatos desproporcionais, excêntricos chapéus e feições não realistas, mas a identidade da dupla passa despercebida na história, despertando apenas leve suspeita. No momento em que os palhaços iniciam sua aparição social, os homens de terno começam a falar de uma execução iminente. Em um grande saguão, vemos um terceiro palhaço preso por cordas e um homem de terno sobre um palanque fazendo um discurso:

Por anos e anos, uma praga infi ltrou-se neste país! Os palhaços mudos (um outro homem de terno grita Morte!)... Estes seres ignóbeis, com sua obstinada e teimosa mudez ameaçam as bases da nossa sociedade, nossa religião e nossas famílias!! Nós, os próceres da sociedade, temos travado luta sem quartel pelo extermínio da praga dos palhaços mudos! E graças a Deus, pegamos um deles!! Todos hão de acabar assim, serrados como chouriço!63

61 LAERTE. A noite dos palhaços mudos. Disponível em: <htt p://www2.uol.com.br/laerte/personagens/palhacos/parte1.html>. Acesso em: 16 fev. 2012.

62 Na imagem, fi ca fl agrante o contraste entre as formas geometrizadas e não realistas do desenho dos palhaços, e o esti lo orgânico e detalhado com o qual Laerte desenha os homens.

63 LAERTE. A noite dos palhaços mudos. Disponível em: <htt p://www2.uol.com.br/laerte/personagens/palhacos/parte10.html>. Acesso em: 18 jan. 2012.

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Quando o terceiro palhaço está prestes a ser serrado, os dois palhaços disfarçados tomam a serra das mãos do orador, um deles desenha um círculo no chão – espécie de picadeiro improvisado, separando palhaços e homens – e o outro inicia demonstrações com a serra: equilíbrio sobre o nariz, envergamento do metal... até que uma das pontas da serra escapa da mão do palhaço e fi ca fora de controle, emitindo um barulho ensurdecedor. O outro palhaço joga um balde d’água nos homens e, na confusão, os três palhaços fogem, mas são encurralados no alto de uma torre. O terceiro palhaço salta pela janela utilizando suas largas calças como paraquedas, o outro palhaço pula com o auxílio de um guarda-chuva, mas um deles é capturado. Já no chão, os dois palhaços ouvem um estampido [Bang!] vindo da torre e deduzem que seu companheiro foi assassinado. Uma horda de homens irados, gritando “Morte aos palhaços mudos!!” e “Que sirva de exemplo”, despeja o corpo do palhaço do lado de fora da casa. Os homens vão embora e os palhaços choram desesperadamente, até que o suposto morto oferece um lenço para eles assoarem o nariz. Ao devolver o lenço encharcado ao “morto”, que já se encontra de pé, eles se dão conta de que seu amigo, na verdade, está vivo! O ex-defunto retira com facilidade uma bala de revólver do próprio corpo e o trio sai caminhando com satisfação. Mas antes de ir embora, um dos palhaços volta ao casarão, toca insistentemente a campainha e os três palhaços saem correndo. Os homens de terno, do lado de dentro dos portões, gritam: “Malditos palhaços! Vocês nos pagam!”, “Vem cá!! Vem cá”, “Aaaah!”, e a história chega ao fi m.

A adaptação da história pela Cia. La Mínima reduziu a três os atores da trama: dois palhaços mudos (Domingos Montagner e Fernando Sampaio) e um homem de terno (Fábio Espósito, William Amaral ou Fernando Paz). A função dramática do terceiro palhaço – ser raptado e detonar o confronto – foi condensada em um objeto: o nariz vermelho. Símbolo dos palhaços em geral, ou de um tipo de palhaço conhecido como Augusto, cuja característica fundamental é a estupidez (BOLOGNESI, 2003: 73-4), o nariz vermelho pode ser compreendido, por relação metonímica, como um palhaço ou como o

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atributo que faz de alguém um palhaço. Um procedimento de síntese também aconteceu na personifi cação dos inúmeros homens de terno da história original em um único ator.64 Contudo, o ator e a encenação multiplicam esta personagem por meio da voz, dos gestos e do uso de bonecos, construindo para o espectador a sugestão de que há vários caça-palhaços na história.

O espetáculo começa com os dois palhaços em fuga e a captura de um deles (Fernando Sampaio) pelo homem de terno. O palhaço tem seu nariz postiço cortado pelo homem, mas escapa de uma possível execução. Desconsolado com a falta do nariz, ele tenta se estrangular puxando uma corda com as próprias mãos, na impossibilidade de prendê-la em algum lugar. O outro palhaço (Domingos Montagner) aparece, compreende a situação e, inesperadamente, entrega uma bomba para viabilizar o suicídio do companheiro. Eis que soa um despertador no bolso do palhaço com nariz (Montagner), impelindo-o a realizar um número de mágica (o aparecimento de um sutiã a partir de dois lenços amarrados); depois disso, ele convence o amigo a segui-lo numa empreitada. Entra em cena um pequeno portão, de aproximadamente 40 cm de altura. Os dois palhaços realizam uma série de trapalhadas para transpô-lo. Em seguida, eles equilibram-se em um lugar alto para alcançar uma janela propositadamente destrancada pelo homem de terno.

A mímica das personagens sugere que eles correm o risco de cair. Nessa situação, soa novamente o despertador do palhaço (Montagner), impelindo-o a realizar mais um número de mágica (tirar canudinhos da boca). Quando eles conseguem entrar pela janela, um alarme dispara e eles fogem, saindo de cena. No palco, surgem duas estruturas retangulares com persianas. O homem aparece comandando diversos procedimentos de segurança via microfone e celular, mas acaba apenas pedindo uma pizza com refrigerante.

64 Uma sugestão dessa ideia parece visível na maneira como Laerte caracteriza os homens com a mesma vesti menta e com as mesmas intenções, constrói semelhanças entre suas ati tudes corporais e os distribui no espaço de maneira a misturar suas silhuetas. Este recurso nos parece especialmente ressaltado na página 12 da história em quadrinhos. LAERTE. Op. cit., Disponível em: <htt p://www2.uol.com.br/laerte/personagens/palhacos/parte12.html>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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Os palhaços encontram um manequim ostentando o nariz roubado, mas são surpreendidos pelo homem e fi ngem-se de bonecos para despistá-lo. Com golpes raivosos, o homem tira o manequim de cena e os palhaços escapam de sua ira. Posicionados atrás das estruturas retangulares, os palhaços brincam de abrir e fechar as persianas, revelando ao público breves palhaçadas (colocar o dedo no nariz, ser sufocado por um guarda-chuva aberto etc.). Depois de trapalhadas para passar por baixo das persianas, eles descobrem que a abertura de portas (imaginárias) leva a um lugar onde se ouvem muitas vozes (efeito de som). Embalados pelos gestos de abrir e fechar a porta imaginária, eles realizam uma coreografi a de dança e saem de cena. Dois homens (o ator Espósito, Amaral ou Paz multiplicado pelas pernas de um boneco) surgem falando uma língua ininteligível atrás das persianas. Um dos palhaços (Montagner) golpeia os homens e apossa-se de seus ternos.

Os palhaços vestem os ternos e vão ao espaço de convívio social, caracterizado pela música, pela sonoplastia e pelo gestual dos atores-personagens. Eles cumprimentam amigavelmente o homem. O despertador soa novamente e, para afl ição de seu comparsa, um dos palhaços (Montagner) realiza um número de música, sendo capturado na sequência. Diante de um púlpito sobre o qual está o nariz vermelho, o homem faz o discurso a respeito da caça aos palhaços mudos de modo quase idêntico ao texto de Laerte. O palhaço capturado (Montagner) é trazido sobre uma mesa para ser serrado ao meio, tendo sobre o peito uma estrutura sobre a qual será enfi ada a serra. O outro palhaço (Sampaio) ajuda o homem a segurar a serra e depois a substitui por uma serra elétrica, mas a vítima (Montagner) fi ca ilesa à ação da máquina e o homem sai inacreditavelmente satisfeito, como se houvesse cumprido a execução. Os palhaços recuperam o nariz que fi cara sobre o púlpito, mas o alarme soa novamente, defl agrando uma luta entre a dupla e os caçadores de palhaço. O embate é representado pelos dedos dos atores e pela manipulação de veículos de brinquedo sobre uma mesa. Acossados no alto de uma torre (a mesa), os palhaços parecem estar

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sem saída. Um deles (Sampaio) oferece seu guarda-chuva para que o amigo possa saltar e amortecer a queda. Antes de saltar, o outro (Montagner) presenteia o companheiro com seu despertador, que o palhaço (Sampaio) guarda dentro do casaco.

Ouve-se o som de um tiro e o palhaço a salvo (Montagner) chora a morte do amigo, despejado no chão pelo homem. O suposto morto ergue um lenço para o companheiro assoar o nariz e mostra a ele que o despertador funcionara como escudo, impedindo que a bala o atingisse. Antes de saírem triunfantes, os palhaços tocam a campainha do casarão e saem correndo. Instantes depois, o homem aparece para atender à porta e esbraveja contra os palhaços. Uma bomba desliza pelo espaço cênico e explode na cara do homem. A peça termina com o som da explosão e um blackout.

A encenação preserva o mote da fábula construída por Laerte – “o confl ito” entre os palhaços mudos e os caça-palhaços –, e mantém pontos centrais de seu desenvolvimento: 1. Os palhaços invadem a casa para realizar o resgate (do nariz, no espetáculo, ou do terceiro palhaço, na história em quadrinhos). 2. Os palhaços atacam dois homens e disfarçam-se com seus ternos. 3. Um homem discursa contra os palhaços mudos e inicia o processo de execução de um deles. 4. Os palhaços impedem a execução e escapam para uma torre dentro da casa. 5. Encurralados na torre, os palhaços saltam pela janela, mas um deles parece ter sido assassinado com um tiro. 6. O palhaço que se supunha morto está vivo e os dois (no espetáculo) ou três (nos quadrinhos) comemoram a vitória com uma travessura: tocar a campainha da casa e sair correndo, para desespero dos caça-palhaços.

O espetáculo tem duração de 60 minutos e é destinado a espaços fechados de apresentação em palco italiano. Esse tipo de espaço cênico propõe um enquadramento que dialoga com o formato retangular dos quadrinhos. A caixa cênica, o pano de fundo, o linóleo sobre o chão e as pernas65 são dispostos na cor preta. A companhia 65 No jargão das artes cênicas, as “pernas” são armações de tecido dispostas verti calmente no palco para encobrir a visão da coxia e delimitar a área de representação. PERNA. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Disponível em: <htt p://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=perna&stype=k>. Acesso em: 26 jan. 2012.

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exige que o palco tenha as seguintes dimensões mínimas: 7,5 m de largura, 6,5 m de profundidade e 4,0 m de altura.

A ação cênica tem início com o palco vazio. Ao longo da peça, entram e saem objetos que sugerem ao público diferentes lugares da fábula e funcionam como suporte para a atuação: o miniportão da casa dos caça-palhaços, as estruturas retangulares com persianas no interior da casa, o púlpito sobre o qual o homem exibe o nariz e faz seu discurso etc. Conforme Patrice Pavis, entendemos por objetos os elementos manipuláveis pelo ator (PAVIS, 2010: 174), embora os atores também possam se comportar como coisa (idem: 11). A compreensão de Pavis inclui nesta categoria acessórios, cenário, telões e mesmo fi gurinos, considerando a mutabilidade de tratamento que um mesmo elemento pode receber ao longo de um espetáculo.66

Em A noite dos palhaços mudos, a iluminação funciona ocasionalmente como objeto quando projeta a forma de uma lua no pano de fundo (cena inicial da peça) ou quando desenha os contornos de uma janela pela qual os palhaços vão passar, por exemplo. A encenação de Álvaro Assad é bem sintética no uso de objetos. Em geral, eles ocupam uma pequena área do espaço cênico e estão sempre a serviço da atuação.

Em quase toda a peça, a área visível de representação fi ca circunscrita aos limites do palco, com apenas uma intervenção do caça-palhaços ao nível da plateia, momentos antes de seu discurso contra os palhaços mudos. Algumas intervenções sonoras sem correspondente visual ampliam a área de representação para as coxias, sugerindo ações e personagens invisíveis ao público: a explosão da bomba com a qual o palhaço (Sampaio) iria se suicidar, um cachorro latindo quando os palhaços tentam pular o portão, o ataque de um dos palhaços (Montagner) aos homens de terno, as ameaças verbais e o tiro desferido contra o palhaço (Sampaio).

Em grande parte do espetáculo, os espaços simbolizados na

66 O nariz do palhaço, por exemplo, é o elemento central da maquiagem/máscara do ator Fernando Sampaio, mas desconectado de seu rosto e posto sobre o púlpito do inimigo, surge como objeto e metáfora da captura do palhaço.

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peça (o portão da casa, o interior da casa etc.) são compartilhados pelas personagens em momentos distintos, descrevendo ações que se desenrolam no tempo de maneira linear. No conjunto do espetáculo, são poucas as cenas em que palhaços e homem de terno dividem o palco. O desenvolvimento da história envolve especialmente o revezamento entre cenas dos palhaços e cenas do homem de terno, com entradas e saídas pelas laterais do palco, e alguns escurecimentos da iluminação geral nas transições. Esta alternância das personagens no quadro visual do espectador infunde agilidade ao tempo-ritmo67 do espetáculo. Podemos sugerir também que a encenação organiza-se em pequenos quadros ou cortes sucessivos no tempo, como a história em quadrinhos de Laerte.

A linguagem verbal está presente no espetáculo de maneira restrita, como atributo exclusivo do homem, enquanto os palhaços não produzem nenhum som vocal. O gesto, compreendido como movimento corporal produzido pelo ator, na maioria dos casos de forma voluntária (PAVIS, 2008: 184), é o recurso fundamental de desenvolvimento da história. Os atores, sobretudo os que representam os palhaços mudos (Domingos Montagner e Fernando Sampaio), recorrem à linguagem gestual da mímica para tornar suas ações compreensíveis ao público. Segundo Patrice Pavis, a mímica baseia-se numa codifi cação do gesto e da personagem. O gestual é depurado e organizado sequencialmente pelo mímico de modo a conduzir o olhar do espectador por um percurso legível, sem grandes ambiguidades de signifi cação (PAVIS, 2010: 115-17). Os gestos dos palhaços são, em sua maioria, representativos, ou seja, têm o propósito de imitar ações, estados e coisas. Este padrão gestual é rompido quando eles realizam uma coreografi a de dança na qual os gestos não têm a intenção de representar um conteúdo verbalizável.

Desde a primeira cena da peça, parece-nos bastante claro que os atores Domingos Montagner e Fernando Sampaio representam 67 Segundo Patrice Pavis, o tempo-ritmo, conceito desenvolvido pelo ator e encenador russo Constanti n Stanislavski, indica a impressão de rapidez ou lenti dão de um espetáculo. Trata-se de uma noção invisível e interior produzida por diferentes meios, como a sucessão acelerada de réplicas (uma fala começa antes do término da outra) e a desaceleração propiciada pela reincidência das mesmas informações. Patrice Pavis. A análise dos espetáculos. Op.cit, p. 135.

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“palhaços”, ou seja, personagens cômicas que conciliam uma caracterização externa reconhecível com um comportamento tolo, ridículo e insólito. Em relação a outros tipos cômicos como o Arlequim da commedia dell’arte, a composição do palhaço é mais suscetível a variações de acordo com a subjetividade e os atributos físicos dos atores, ao mesmo tempo que expressa uma personagem-tipo presente na memória de todos (PANTANO, 2007:52-5). Observadas de maneira global, as imagens dos dois palhaços (Montagner e Sampaio) apresentam diversos elementos convergentes: a excentricidade e o não realismo, a ênfase no nariz vermelho ou em sua ausência – o esparadrapo no rosto do palhaço mutilado (Sampaio) –, a maquiagem em preto e branco ressaltando as áreas da boca e dos olhos, os sapatos excessivamente compridos, que deformam o corpo e o andar. A gestualidade reitera o aspecto não realista dos fi gurinos e da maquiagem. Os gestos são amplos, hiperbólicos, articulam uma exploração variada dos eixos de inclinação corporal (verticalidade, obliquidade e horizontalidade) e envolvem acrobacias68 como rolamentos e equilíbrio em duas alturas (Sampaio fi ca em pé sobre os ombros de Montagner).

Diversos deslocamentos e atitudes corporais dos dois palhaços descrevem uma mesma confi guração ou são interrelacionados, compondo uma trajetória precisa e articulada. A música funciona inúmeras vezes como partitura para a movimentação corporal, marcando as pausas, a velocidade e a densidade dos gestos. Os sentimentos e estados das personagens são “fi sicalizados” de maneira superlativa. Recorremos aqui ao termo “fi sicalizar”, utilizado por Viola Spolin, para enfatizar uma atuação calcada na comunicação física direta, em contraste com uma abordagem de cunho intelectual ou psicológico (SPOLIN, 2005: 14-5).

Esses elementos convergentes na aparência e na atuação de Montagner e Sampaio fazem que os palhaços sejam percebidos como dupla, como unidade dentro da representação. Ao mesmo tempo, os fi gurinos, a maquiagem, a gestualidade e as funções exercidas

68 Segundo Ermínia Silva, acrobacias são demonstrações de ginásti ca que podem incluir exercícios de força, equilíbrio, contorcionismo, saltos e/ou rolamentos. Ermínia Silva. Respeitável público... O circo em cena. Rio de Janeiro: Funarte, 2009, p. 47.

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por eles na trama são diferenciadas. O palhaço representado por Montagner tem breves arroubos de liderança e racionalidade. É ele quem decide empreender o “resgate nasal” e é ele quem auxilia o comparsa desgovernado a caminhar na direção da janela, por exemplo. Sampaio encarna um palhaço mais atrapalhado, bobo e licencioso em sua comicidade: nas breves cenas atrás da persiana, por exemplo, ele põe o dedo no nariz e cheira a mão depois de coçar os fundilhos. O fi gurino da personagem de Sampaio compõe-se de peças em tamanho grande (gravata, calça e sapatos) que valorizam a desproporção entre o corpo e a roupa. A barriga postiça e o chapéu arredondado sugerem uma fi gura ligeiramente roliça, achatada e disforme. O fi gurino utilizado por Montagner indica vetores distintos. O macacão inteiriço, o chapéu cônico, a ausência de barriga e o encurtamento da calça, revelando parte da canela, encompridam a silhueta.

Há também uma inadequação entre o corpo e a roupa, que parece curta demais, enquanto que o fi gurino de Sampaio parece largo demais. Esses contrastes do fi gurino potencializam a diferença de altura entre Sampaio e Montagner, que pode ser percebida como cômica. Para Henri Bergson, a diferença radical de estatura entre duas pessoas é risível porque faz pensar na vaidade de alguém querendo elevar-se à altura do outro (BERGSON, 1987: 90). Os fi gurinos e as atuações de Sampaio e Montagner sugerem ainda outro contraste, de natureza complementar, entre dois tipos tradicionais de palhaço: o Branco e o Augusto. Na história do circo, o Branco apresenta-se geralmente com uma maquiagem de cor branca em todo o rosto, vestes elegantes e ar aristocrático. Paladino da ordem e da civilização, ele ridiculariza e trapaceia o Augusto, tipo de aparência desleixada, vestes muito maiores do que o corpo e possuidor de um desproporcional nariz vermelho. Augusto é o dominado, o trapalhão, o marginal (PANTANO, 2007: 43-4). O chapéu cônico, o macacão inteiriço e certa ascendência em relação ao outro palhaço são atributos que aproximam o personagem de Domingos Montagner das expressões do palhaço Branco, enquanto o perfi l mais atrapalhado e as vestes exageradas da personagem de Fernando Sampaio aproximam-no do Augusto. Esta dinâmica

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Branco/Montagner e Augusto/Sampaio está presente em outros trabalhos da Cia. La Mínima.69

No espetáculo A noite dos palhaços mudos, a dualidade Branco/Augusto parece atenuada pela existência de outra personagem que detona os confl itos: o caça-palhaços. Vestido de terno, fi gurino cotidiano e representativo do poder na sociedade atual, e sem nenhuma maquiagem visível, ele apresenta-se como uma personagem mais próxima do mundo real. Sua maneira de andar é natural e sua gestualidade é, em geral, comedida. Contudo, essa aparência de naturalidade cai por terra com a revelação paulatina de suas excentricidades, de seu ódio irracional contra os palhaços mudos e do desdobramento de seus gestos e de sua voz em múltiplos caça-palhaços. Com timbres vocais diferentes e um movimento sintético dos braços e mãos, ele cria convenções para representar os outros caça-palhaços.

As atuações em A noite dos palhaços mudos desenvolvem-se no sentido da tipifi cação das personagens, ou seja, revelam tipos reconhecíveis pelo público – os palhaços e o vilão –, que condensam características humanas essenciais, não individualizadas; as características das personagens são mantidas ao longo da peça, em contraste com um tipo de atuação que busca ressaltar a dimensão multifacetada e contraditória das personagens.

O caráter irreal e absurdo da história original de Laerte é mantido e exacerbado na encenação realizada por Álvaro Assad e pela Cia. La Mínima. Ambas as obras explicitam ao leitor/espectador seu caráter não realista, a começar pela apresentação dos palhaços como espécie natural ou subespécie humana, e não como profi ssionais que exercem o ofício de palhaço. Na história em quadrinhos, o tratamento gráfi co dos palhaços e as ações executadas por eles (entrar na boca do forno, amortecer uma queda por meio de um guarda-chuva etc.) reforçam a irrealidade. O discurso proferido por um dos caça-palhaços é pomposo, porém marcado por certa irracionalidade: “Estes seres ignóbeis, com sua obstinada e teimosa mudez, ameaçam as bases da nossa sociedade, nossa religião

69 Mario Fernando Bolognesi. “Apresentação”. In: LA MÍNIMA. Registro de um repertório. São Paulo: 2010.

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e nossas famílias!!”70 Em que sentido os palhaços e sua mudez corrompem a sociedade, a religião e a família? Nem o discurso nem as imagens esclarecem essa questão, provavelmente para explicitar a irracionalidade do ódio nutrido pelos homens de terno em relação aos palhaços mudos.

Ao captar o tom absurdo da história de Laerte, a encenação faz do alogismo um motivo fundamental e uma fonte profícua de comicidade. O teórico russo Vladimir Propp, em Comicidade e riso, entende o alogismo como a estupidez, a desconexão, a incapacidade de observar corretamente causas e efeitos, meios e fi ns e a preponderância de um mecanismo de pensamento em relação ao seu conteúdo. Quando o alogismo é expresso espontaneamente ou revelado por outrem, ele desperta o riso, segundo o autor (PROPP, 1992: 107-10). No espetáculo, o alogismo aparece frequentemente como fruto da estupidez das personagens, mas também como resultado de uma maneira lúdica e nonsense de agir. Podemos destacar alguns recursos de exploração do alogismo no espetáculo.

Um deles é a inserção de números de mágica como elementos da ação cênica. Sob o comando de um despertador que carrega consigo, um dos palhaços (Montagner) realiza dois números de ilusionismo ao longo da trama: o aparecimento de um sutiã a partir de lenços amarrados e a retirada de uma enorme fi leira de canudinhos de dentro de sua boca. Por meio de um truque velado ao público, a mágica permite a confi guração de ações impossíveis no mundo real. O alogismo é ressaltado pela realização dos números nos momentos mais tensos ou inadequados da trama: quando um dos palhaços (Sampaio) está segurando uma bomba prestes a explodir (mágica do sutiã) e quando os dois palhaços estão correndo o risco de despencar de um lugar alto (canudinhos). O imperativo de realizar um número de mágica, música ou dança sobrepuja o caminho lógico de desenvolvimento da história e reforça o aspecto lúdico do enredo, abrindo espaço para a comicidade.

70 LAERTE. A noite dos palhaços mudos. Disponível em: <htt p://www2.uol.com.br/laerte/personagens/palhacos/parte10.html>. Acesso em: 18 jan. 2012.

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A noite dos palhaços mudos não é um espetáculo linear como a história em quadrinhos. O “confl ito central da peça“, – o embate entre palhaços mudos e caça-palhaços –, é interrompido ou subvertido em vários momentos. Além dos números realizados pelos palhaços, uma passagem emblemática é a sequência na qual o homem de terno reage à invasão da casa, no início da peça. Os palhaços entram pela janela, o alarme soa e eles saem de cena, fugindo. O homem entra em cena em seguida, com um microfone de cabeça (headset) e um telefone celular. Valendo-se de uma convenção calcada na alternância de timbres vocais, na reprodução vocal de sons eletrônicos e no revezamento de objetos (microfone e celular), o ator-personagem desdobra-se em dois e entabula um diálogo a respeito de complexos procedimentos de segurança. De repente, as manobras táticas acabam no pedido de uma pizza, refrigerante Tubaína dois litros e troco para R$ 10,00. Os canudinhos do número de mágica feito anteriormente pelo palhaço são levados para a refeição.

Os objetos de cena também guardam a marca do alogismo. Um dos primeiros objetos a aparecer na peça é o pequeno portão da casa dos caça-palhaços.

No fi m do espetáculo, os objetos cênicos são, de fato, brinquedos de criança: carrinhos, helicóptero e bonecos. Manipulando os objetos sobre uma mesa, os atores representam uma perseguição aos palhaços com direito a saltos mortais – os dedos que fazem piruetas no ar –, corrida de carros, explosões e ações em câmera lenta. Mais uma vez a variação vocal permite ao homem multiplicar-se, exercendo a função fi ccional de vários caça-palhaços.

A encenação de Álvaro Assad funciona como um todo coerente e articulado, no qual cada elemento cênico (objetos, fi gurinos, atuação etc.) converge para o espírito alógico e lúdico da representação. O espaço cênico predominantemente vazio é preenchido, recortado e expandido pela atuação criativa e precisa dos intérpretes. Os atores destacam-se como os elementos fundamentais do espetáculo, os artífi ces de uma brincadeira construída em público. A obra revela abertamente seu caráter de convenção, teatralidade e fantasia.

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Apropriando-nos da análise de Patrice Pavis a respeito de outro espetáculo, podemos dizer que a encenação de Álvaro Assad nos mantém “[...] conscientes de que se trata de teatro, que tanto o cenário quanto os protagonistas são falsos, ou seja, são objetos estéticos e não uma fotografi a da realidade” (2010: 108). Henri Bergson associa a comédia a um brinquedo e estabelece uma relação contínua entre o prazer de brincar, na criança, e o mesmo prazer no adulto (BOLOGNESI, 2003). A teatralidade e o espírito de síntese dominantes em A noite dos palhaços mudos solicitam a participação ativa do espectador, convidando-o, mesmo que indiretamente, a entrar na brincadeira.

Referências bibliográfi cas

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a signifi cação do cômico. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.DEL RIOS, Jefferson. “O misterioso silêncio dos palhaços”. O Estado de S.

Paulo, São Paulo, 24 jul. 2008. Notícias. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080724/not_imp211103,0.php> Acesso em: 16 fev. 2012.

LAERTE. Piratas do Tietê e outras barbaridades. Rio de Janeiro: Ensaio, 1994.

LA MÍNIMA. La Mínima: registro de um repertório. São Paulo: [s.n.], 2010.LA MÍNIMA. Site. Disponível em: <http://www.laminima.com.br>. Acesso

em: 16 fev. 2012.PANTANO, Andréia Aparecida. A personagem Palhaço. São Paulo: Editora

Unesp, 2007.PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.______. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.SILVA, Ermínia. Respeitável público... o circo em cena. Rio de Janeiro:

Funarte, 2009.SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,

2005.

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O repertório formal do agitproppor Iná Camargo Costa71

Este texto é baseado nos trabalhos sobre o agitprop soviético desenvolvidos na década de 1970 por um dos grupos de pesquisadores do Centre National de la Recherche Scientifi que (CNRS) e publicados na coletânea em quatro volumes Le théâtre d’agit-prop de 1917 à 1932.72 Para não o sobrecarregar de notas, informamos os autores e títulos dos ensaios mais diretamente consultados: Introdução geral de Philippe Ivernel, As fases históricas do agitprop soviético de Jean-Pierre Morel e Métodos e formas específi cas de Claudine Amiard-Chevrel. Este último contém as informações centrais, como se pode verifi car pelo próprio título.

Para evitar mal entendidos, é bom avisar desde logo que a função geral do teatro de agitprop soviético era política em sentido próprio, isto é, tratava-se de uma atividade determinada e patrocinada pelo Estado revolucionário tendo como fi nalidade a construção do poder soviético. Especifi cando um pouco mais: os militantes do teatro de agitprop estavam vinculados ao programa político da revolução e defi niam suas prioridades a partir dele. Tendo surgido no bojo da guerra civil, este teatro inicialmente cumpriu a função de ganhar apoio e adeptos para a causa revolucionária e, portanto, de combater no plano simbólico os seus inimigos (imperialismo, burguesia e exércitos brancos). A par disso, cumpriu também a função de informar e treinar a população para participar ativamente do poder soviético, uma vez que se tratava da construção de uma forma de democracia participativa mundialmente inédita.73 É preciso ainda registrar que, dadas as dimensões da Rússia em 1917, mais as difi culdades econômicas para a constituição de uma imprensa que atingisse a todos os interessados, bem como a inexistência

71 Professora livre docente da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, responsável por esta tradução.

72 Claude Amey et al. Le théâtre d’agit-prop de 1917 à 1932. Lausanne: La Cité – L’Âge d’Homme, 1977.

73 Os sovietes foram inventados pela população russa na Revolução de 1905.

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de meios de comunicação como os que hoje conhecemos (rádio, telégrafo etc., ainda eram monopólio das forças armadas), o recurso ao teatro como meio de propaganda política chega a ser quase que óbvio, até porque o índice de analfabetismo ainda era muito alto, sobretudo entre os camponeses.

No interesse de evitar um grau abusivo de abstração, cabe registrar que o teatro de agitprop começou durante a guerra civil que se seguiu à tomada do poder pelos sovietes e à criação do Exército Vermelho. Tratava-se do “braço artístico” do exército revolucionário. Não é demais dizer que seu momento próprio é a guerra civil e que suas formas mais originais e mais radicais surgiram neste período. Seu segundo momento, o do pós-guerra, corresponde à consolidação da revolução vitoriosa (depois de 1921) e produz avanços e recuos: desaparece a maioria dos grupos; outros são criados e integrados aos mecanismos do poder; ocorre a sistematização e a formalização de diversos procedimentos. Depois de 1927, quando o stalinismo já conseguira dominar o Partido Comunista e o Estado Soviético, a atividade entrou em declínio, começou a ser combatida, inclusive no sentido físico (recalcitrantes são assassinados) e acaba sendo proibida em 1932. Em 1934 o realismo socialista é proclamado como a “arte da revolução”.

As formas de agitprop a seguir estão enumeradas mais ou menos em ordem cronológica. As primeiras surgiram já na guerra civil e as últimas se desenvolveram na segunda metade da década de 1920, sem prejuízo dos conjuntos-intersecção. Não custa insistir: depois de 1932 até o assunto foi proibido na União Soviética.

1. Processo de agitaçãoEncenação de um tribunal, no qual réu, promotor, defensor e

juiz fazem parte do elenco, e as testemunhas e o júri são convidados da plateia. O ponto de partida é um crime imaginário. A tarefa do promotor é especifi cá-lo, a do defensor é apresentar os argumentos em defesa do réu. A partir deste instante, começam as improvisações,

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que incluem a participação dos integrantes da plateia dispostos a fi gurar como testemunhas.

Seu objetivo prioritário, inspirado na experiência de 1905, quando o soviete desempenhou funções de tribunal de pequenas causas, é o treinamento para participação na construção do poder soviético, uma vez que a assistência é convidada a examinar casos, opinar sobre ações de interesse geral, a falar em público e a votar com conhecimento de causa.

2. Teatro jornalOriginalmente era apenas leitura de jornal em voz alta, dado

o número elevado de analfabetos. Num segundo momento, atores profi ssionais foram convidados ou convocados para realizar essas leituras. Finalmente, passou-se à forma mundialmente conhecida, na qual encena-se uma edição completa de jornal com todas as suas seções, do editorial à crônica literária.

Tendo por objetivo prioritário a informação e a agitação, esta foi a forma por excelência do agitprop durante a guerra civil.

3. Peça de agitaçãoPeças curtas (10 a 15 minutos) centradas num único tópico.

Suas “personagens” são funções sociais. O fi gurino é constituído por uma roupa básica e adereços simples como chapéus e símbolos (de países, classes sociais etc.). Normalmente dispensa adereços de cena ou usa no máximo bancos e objetos de fácil transporte.

Por sua agilidade, esta forma se prestou basicamente à agitação de questões da ordem do dia. Servia para ilustrar propostas em debate ou para divulgar questões de urgência.

4. Peças dialéticasIluminam sem resolver confl itos da vida privada, profi ssional

ou política pelo critério da oposição velho (capitalismo)/novo

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(socialismo). A ligação entre episódios se faz pela lógica interna da situação, não necessariamente em ordem cronológica. A cena se desenvolve através de antecipações e digressões – o resultado é uma montagem. Não interessa a psicologia, o foco são as contradições das personagens. Após a apresentação, realizam-se debates.

Seu objetivo é mais abertamente didático (no sentido de formação): trata-se de treinar e aprofundar a capacidade de pensar dialeticamente, examinando situações, condicionantes e contradições.

5. Peças alegóricasPartem do pressuposto (medieval-popular) de que qualquer

conceito ou instituição pode ser “personifi cado”. Um ator pode ser o Capitalismo, a Burguesia, o Proletariado, uma Doença, o Partido, o Sindicato, o Comércio Exterior e assim por diante. Têm muito em comum com as peças de agitação, principalmente os conteúdos da ordem do dia e o caráter de intervenção breve e sumária.

6. Cenifi caçõesCorrespondem a uma atualização peculiar do teatro de revista

(que existe desde pelo menos o século XVIII). Seu eixo temático é algum acontecimento histórico, como a Revolução de Outubro. Outros temas: Comuna de Paris, Revolução Francesa, Guerra Mundial. É a matriz original do teatro-documentário, pois usa como material documentos de todos os tipos (relatos, discursos, pesquisas) e obras de fi cção pré-existentes.

Eram realizadas principalmente em celebrações festivas, como o próprio aniversário da Revolução, tendo por objetivo, portanto, o cultivo da memória histórica.

7. Montagem literáriaColagem de textos pré-existentes de qualquer tipo. Desde

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capítulos de romances ou textos teóricos até discursos, notícias de jornal, poemas, contos, crônicas, cenas de peças teatrais etc. A seleção do material é feita por recorte temático.

Pode ser realizada em vários formatos, desde a simples declamação (coro e solos) até em espetáculos com cenário, fi gurino, projeções, números de circo e ginástica.

8. Melodrama revolucionárioO melodrama faz parte da tradição cultural proletária desde

meados do século XIX, cultivado que foi principalmente por socialistas e anarquistas. Durante a revolução, passou a tratar das questões da ordem do dia a partir da sua estrutura básica: herói/heroína x adversário, ou vilão. Alguns temas: a guerra civil (família dividida entre apoiadores da revolução e adversários); necessidade de apoiar materialmente o Exército Vermelho; denúncia das pilhagens e demais ações dos bandos de cossacos etc.

Seu principal público foi constituído pelo exército e pela marinha vermelhos.

9. VaudevilleTodos os números do teatro de variedades – do esquete

de agitação às acrobacias e demais modalidades, inclusive ventriloquismo – tendo como eixo os assuntos da revolução.

10. OperetaTeatro cômico-musical sobre aspectos da vida cotidiana,

mantendo a marca histórica do gênero: por mais graves que sejam os problemas tratados, acaba tudo bem (happy end).

Uma inovação: solos (declamação ou canto) comentados por números de ginástica.

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11. Cabaré vermelhoFusão da experiência do cabaré anterior à Revolução de

Outubro com o Teatro Jornal. Os números musicais seguiam a pauta revolucionária, tratando de temas de agitação política e de costumes (crítica ao alcoolismo e demais problemas sociais). Humor, sátira e paródia eram suas marcas fundamentais.

Aqui é radicalizado o papel do Mestre de Cerimônias, cujo humor feroz tem função assumidamente didática: trata-se de arrasar por todos os meios o inimigo da nova sociedade em construção.

12. Marionete vermelhoO gênero tem uma longa história na luta de classes. Sofreu

rigorosíssimas restrições na França durante o Segundo Império.

Na Rússia, desde que surgiu, Petruchka (o Pierrô da commedia dell’arte) é o vingador dos oprimidos, setor social de onde provém.

Sua marca é a conversa com o público e, na versão de agitprop, instiga-o a fazer intervenções (usar a própria voz, fazer denúncias etc.). Tradicionalmente, era o protetor do camponês pobre, ao qual dava conselhos. No agitprop, seus aliados são os camponeses, operários, soldados e marinheiros vermelhos e suas vítimas são os latifundiários, operadores do mercado negro, banqueiros, diplomatas, chefes dos Estados inimigos etc.

A novidade introduzida pela Revolução foi a interpretação de canções revolucionárias.

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O que há para além dos muros que nos impõem?por Adailtom Alves Teixeira74

Resumo: O texto apresenta algumas observações críticas de duas passagens do encontro As Formas Fora da Forma. O primeiro destaque refere-se à fala de João das Neves acerca do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) e à Carta de Princípios, escrita por Carlos Estevam Martins, para alimentar discussões internas e que foi tomada como documento ofi cial do CPC. O segundo ponto relaciona-se à fala de Lindolfo do Amaral, em sua participação na mesa sobre teatro de rua, na qual o autor destaca a importância do Movimento Brasileiro de Teatro de Rua.

Abstract: This paper presents some critical comments of two passages of the meeting As Formas Fora da Forma. The fi rst mention is made respect to the speech of João das Neves of the CPC-UNE and the Charter of Principles, written by Carlos Estevan Martins, to feed the internal discussions and that was taken as an offi cial document of the CPC. The second point refers to the speech of Lindolfo do Amaral in his participation at the table about on the street theater in which the author emphasizes the importance of the Brazilian Movement of Street Theater.

Palavras-chave: teatro de rua, Movimento Brasileiro de Teatro de Rua, Centro Popular de Cutura, UNE, João das Neves.

Keywords: street theater, Brazilian Movement of Street Theatre, Center for Popular Culture, UNE, João das Neves.

Não havia exigências em termo de criação estética, e a fi losofi a dominante do CPC era essa: a forma interessava enquanto expressão do artista. O que interessava era o conteúdo e a forma servia apenas enquanto comunicação com o público. Foi daí que surgiu esta concepção do CPC de que deveríamos usar as formas populares e rechear estas formas com o melhor conteúdo ideológico possível.

Carlos Estevam Martins apud Julián Boal. As imagens de um teatro popular.

74 Mestre em Artes pelo Insti tuto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, integrante do Núcleo Paulistano e Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua e do grupo de teatro Buraco d`Oráculo.

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Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.

Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX.

O III Encontro de Estudos Teatrais e 2o Fórum de Teatro de Rua, com o tema As Formas Fora da Forma, ocorrido entre 4 e 8 de julho de 2011, no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), foi revelador sob vários aspectos. Reuniram-se grandes pesquisadores do circo, do teatro de revista, do teatro de feira, do agitprop (agitação e propaganda) e do teatro de rua e, ao longo do evento, foram apresentadas muitas informações que não são encontradas na maioria dos livros de história do teatro.

Merecem destaque dois pontos importantes. O primeiro deles refere-se às informações trazidas por João das Neves sobre os Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que funcionou de dezembro de 1961 a abril de 1964. Em sua curta existência, a UNE teve signifi cativa produção artística, sobretudo teatral.

O encontro ocorrido em 6 de julho tinha à mesa Robson Camargo Corrêa, Maria Thaís, José Fernando Azevedo e João das Neves, último a falar, cujo tema era o CPC. João iniciou sua fala destacando ser, historicamente, recente a existência da classe operária brasileira, passando ao surgimento do CPC, nascido de uma dissidência do Teatro de Arena. O texto A mais valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho e Chico de Assis, é considerado o marco dessa dissidência. Esses dois artistas procuraram os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiro (ISEB). Eles encontraram o sociólogo Carlos Estevam Martins, com quem travaram parceria. Até aí tudo bem, de certo modo essa história parece estar bem registrada. No entanto, João das Neves frisou um ponto muito importante que, segundo ele, vem sendo negligenciado pelos historiadores do teatro daquele período: trata-se da Carta de Princípios escrita por Carlos Estevam Martins.

O documento de Martins, segundo João das Neves, havia sido escrito para alimentar as discussões internas do CPC. Depois

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de publicado, esse documento vem sendo analisado como se ele traduzisse o pensamento do próprio CPC. João das Neves fez um alerta sério: o CPC ainda é analisado sem a recorrência às fontes primárias e com certo olhar da elite intelectualizada.

João das Neves chamou atenção para o fato de que a história vem sendo escrita sem levar em conta o relato das pessoas que participaram ativamente daquele processo, utilizando-se apenas documentos escritos, o que, na prática, não dá conta de toda a realidade nem abarca a complexidade inerente àquele movimento. Afi nal, ainda segundo João das Neves, não havia um CPC único. O CPC não seguia as proposições da UNE. Cada núcleo era independente. Por fi m, no debate com os presentes, João explicou que a opção do CPC pela rua se deu por questões econômicas (era mais barato) e porque é na rua que o povo está.

O segundo ponto a ser destacado está ligado ao 2o Fórum de Teatro de Rua, realizado em 7 de julho, com a participação de Ana Rosa Tezza, Hélio Fróes, Licko Turle e Lindolfo Amaral – professor universitário e integrante do Grupo Imbuaça, de Sergipe, coletivo que participou do Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo (MBTG), no início dos anos 1990. Diversas questões foram suscitadas por Lindolfo Amaral. Uma delas relacionava-se ao nosso olhar quase acostumado a ver com os olhos do colonizador. Ele se referiu também a questões ligadas à verticalidade no teatro de rua. Para ele, até 1987, havia apenas horizontalidade. Com a vinda do Teatro Tascabile e do Teatro Potlhach, ambos da Itália, começou a ser considerada a verticalização no teatro de rua brasileiro. Exemplo disso é o uso de prédios na dramaturgia. Mas a contribuição para o MBTG foi fundamental, pois, segundo Lindolfo Amaral, o Movimento era “puxado” pelo teatro de rua. Ou seja, o teatro de rua esteve à frente de um movimento nacional de grupos em uma época em que não havia as facilidades tecnológicas que existem hoje. Até onde se sabe, essa informação é novidade, e como não houve praticamente nenhuma produção teórica sobre o MBTG, sua história é pouco conhecida.

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O MBTG foi criado em plena era Collor (1990-1992)75, com o objetivo de estimular a troca e o apoio mútuo entre os grupos. O grupo Fora do Sério, de Ribeirão Preto (SP), sediou os dois primeiros encontros, ocorridos em 1991 e 1993. Além disso, produziu dois números da revista Máscara. Na edição no 2, o editorial Existindo na instabilidade apresentava o porquê da existência da publicação e do MBTG. Havia um “desejo comum” de que o teatro se manifestasse “[...] como uma arte acessível a todas as classes sociais, e que os homens, mulheres e crianças de todas as idades [pudessem] comunicar-se através dele” (1993: 3). Infelizmente, o MBTG realizou apenas três encontros, o último deles em 1997, em São Paulo, na Mostra de Teatro de Grupo, organizada pela Cooperativa Paulista de Teatro.

Recuperar essas histórias é fundamental para a memória do teatro brasileiro. Saber que o CPC, apesar de ter um objetivo comum, foi diverso em sua maneira de ser, demonstra que não há um único ponto de vista sobre a história. Por sua vez, recuperar a memória do teatro de rua, responsável por criar um movimento nacional ainda na década de 1990, é de suma importância para os movimentos atuais. Saber que ambos os movimentos são populares e que objetivavam chegar a todas as pessoas pode gerar desafi os, pois todos os fazedores de teatro de grupo de hoje têm dívida com aqueles que nos antecederam. Não podemos esquecer o fi o da história nem perder de vista o espectador, pois ele ainda precisa ser conquistado, como alerta o camarada Bertolt Brecht em Meu espectador:

Recentemente encontrei meu espectador.Na rua poeirentaEle segurava nas mãos uma máquina britadeira.Por um segundoLevantou o olhar. Então, abri rapidamente meu teatroEntre as casas. EleOlhou expectante.Na cantina

75 Em 1989, depois de 29 anos sem eleições diretas, o alagoano Fernando Collor de Mello, então candidato pelo Parti do da Reconstrução Nacional (PRN), foi eleito com 42,75% dos votos válidos, contra 37,86% dos votos de Luiz Inácio Lula da Silva, do Parti do dos Trabalhadores (PT). A campanha apresentava modelos opostos: Collor pautava-se pela redução do papel do Estado e Lula propunha forte atuação do Estado, especialmente no que se referia à economia.

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Encontrei-o de novo. De pé no balcão.Coberto de suor, bebia. Na mãoUma fatia de pão. Abri rapidamente meu teatro. EleOlhou maravilhado.HojeTive novamente a sorte. Diante da estaçãoEu o vi, empurrando por coronhas de fuzisSob o som dos tambores, para a guerra.No meio da multidãoAbri meu teatro. Sobre os ombrosEle olhou:Acenou com a cabeça.

Referências bibliográfi cas

BOAL, Julián. As imagens de um teatro popular. São Paulo: Hucitec, 2000.BRECHT, Bertolt. Poemas: 1913-1956. Tradução de Cesar Souza. São

Paulo: Brasiliense, 1986.MÁSCARA. Revista de Teatro. Ribeirão Preto. Ano II, n. 2, junho, 1993.TEIXEIRA, Adailtom Alves. A rua como palco: o teatro de rua em São Paulo,

seu público e a imprensa escrita. Monografi a de Iniciação Científi ca. São Paulo: Universidade Cruzeiro do Sul, 2008.

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No Brique da Redenção: uma experiência de teatro de rua como arte pública

por Licko Turle76

Resumo: Este artigo pretende descrever e analisar o efeito político e educativo para a cidade de Porto Alegre (RS) provocado pela intervenção de dez espetáculos teatrais de grupos diferentes em um só dia no parque público Brique da Redenção durante a terceira edição do Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre, em 2011.

Abstract: This article aims to describe and analyze the political and educational effects for the residents of the city of the Porto Alegre-(RS) caused by the intervention of ten different theater groups, in one single day, in a public park Brique da Redenção during the third edition of the Street Theater Streets of the Porto Alegre, 2011.

Palavras-chave: arte pública, teatro de rua, democracia.

Keywords: public art, street theater, democracy.

Em 1991, Denis Guénoun escreveu um ensaio intitulado A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro77 em que desenvolve a tese segundo a qual a experiência teatral requer, para sua realização, uma reunião de espectadores: “[...] um público, coletivo, efetivamente reunido” (GUÉNOUN, 2003: 13), convocada publicamente uma vez que o teatro é, nessa perspectiva, uma atividade pública. Em função da natureza essencialmente pública do teatro, Guénoun formula a tese de que “[...] a convocação, de forma pública, e a realização de uma reunião, seja qual for o seu objeto, é um ato político” (idem: 14), observando, desse modo, que é a natureza coletiva do teatro semelhante a uma assembleia, reunião pública, ajuntamento, ou seja, é a sua constituição “física”, a característica fundamental que faz dele uma atividade intrinsecamente política. Segundo Guénoun, o princípio político do teatro vai sendo esquecido à medida que o palco vai-se

76 Ator e pesquisador (pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

77 Ensaio traduzido por Fati ma Saadi e publicado pelo Teatro do Pequeno Gesto, Série Folheti m/Ensaios, em 2003.

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iluminando, em oposição à penumbra à qual a plateia é gradualmente deixada. O próprio teatro esquece-se de que o “político”, nele, não é o representado, mas a própria representação.

O ato político de convocar para uma representação pode suscitar muitos locais geografi camente distintos – uma rua ou um edifício –, mas é sempre política a escolha desse lugar (afastado, central etc.), da hora (dia, noite, horário de lazer ou de trabalho), da composição e forma da assembleia, pois “[...] cada uma destas características traduz uma relação muito precisa com a organização da cidade e formula uma espécie de discurso em relação a ela – consciente, deliberado, explícito ou não” (idem: 16).

Guénoun chama a atenção para o fato de que o lugar da representação – por ser sempre uma opção, em última análise, política – ordena, prescreve e dirige o representado. As condições espaço-temporais da convocação para a assembleia do teatro são, no seu entender, “as primeiras marcas da política”, sendo a arquitetura aquela arte arquipolítica que ordena o teatro em primeiro lugar.

É a partir deste raciocínio que este trabalho pretende descrever o que ocorreu no dia 10 de abril de 2011, quando a programação do III Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre78 (RS) estava concentrada no Brique da Redenção, uma tradicional feira dominical realizada há mais de trinta anos na Avenida José Bonifácio, em Porto Alegre, que comercializa artesanato, antiguidades, artes plásticas e alimentos. A feira é, também, um local onde os artistas de rua fazem “ponto e vendem” suas habilidades poéticas, musicais, capoeirísticas, acrobáticas, performáticas que transformam o Monumento ao Expedicionário em espaço cênico para as suas apresentações.

Naquele dia, quando os espetáculos de teatro de rua programados ou não pelo Festival começaram a se apresentar, o que antes era uma multidão ou uma aglomeração de indivíduos isolados ao poucos foi se transformando em público espectador com sentimento concreto de sua existência coletiva, se vendo e se reconhecendo como grupo que percebe suas próprias reações,

78 Ver site: <htt p://www.ft rpa.com.br>. Acesso em: 16 fev. 2012.

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as emoções que o percorrem, o contágio do riso, da afl ição, da expectativa. As rodas que se formaram, uma após outra em torno dos artistas, lembravam a arquitetura circular, forma original do teatro e revelava a afi nidade de origem entre o teatro e a democracia no sentido de assembleia que delibera, que decide a respeito de sua história. São reuniões voluntárias de uma comunidade para discutir suas questões por meio do teatro de rua, como arte pública.

Podemos entender este fenômeno recorrendo mais uma vez a Guénoun. O autor afi rma que a imensa maioria dos teatros foi construída segundo um desenho circular porque o círculo é uma boa disposição para ver e ouvir, e os edifícios teatrais procuram refazer essa organização espacial que se dá em locais de grande circulação, de forma espontânea pela aglomeração de curiosos em torno de um artista de rua, fi xando-a. O círculo está na origem da representação teatral e é uma estrutura que permite ao público que se veja, se reconheça e se fale não como massa, mas como indivíduos, porque é a forma das assembleias livres, que se pressupõem uma comunidade consciente de si mesma e capaz de decidir o seu destino.

As várias rodas (círculo) que se fi zeram para assistir aos espetáculos – fechadas completamente – reproduziam, temporariamente, o estado democrático com participação coletiva da cerimônia teatral de forma horizontal. Momentos revolucionários em que o político da representação, da mobilização de um desejo comunitário, proclamado publicamente, afi rmou-se sem prudência, com alegria, e na assembleia de espectadores era visível: o circulo do político originário do teatro estava restaurado.

A simples programação de dez apresentações teatrais seguidas em um mesmo local ressignifi cou o lugar transformando-o em uma ágora ou tribuna popular, onde os temas abordados – generosamente ofertados ao público pelos coletivos artísticos – eram assistidos e criticados pela plateia, produzindo novos conhecimentos e saberes, provocando prazer e refl exão sobre a sociedade. Esta interferência no cotidiano urbano da junção do Parque Farroupilha com o Brique da Redenção, operada pela programação do III Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre, permitiu-nos denominá-la

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Arte Pública, numa proposta de apropriação deste conceito das artes plásticas.

O termo “Arte Pública” entrou para o vocabulário da crítica de arte na década 1970, acompanhando de perto as políticas de fi nanciamento criadas para a arte em espaços públicos. No campo das artes plásticas, fala-se de uma arte em espaços públicos, ainda que o termo possa designar também interferências artísticas em espaços organizados de acordo com critérios privados, como hospitais e aeroportos. A ideia geral é de que se trata de arte fi sicamente acessível, que modifi ca a paisagem circundante, de modo permanente ou temporário.

Defi nir uma arte que seja pública exige considerar as difi culdades que rondam esse conceito, cuja noção pode abranger diferentes signifi cações: em sentido literal, por exemplo, estão sob a denominação “arte pública” os monumentos instalados nas ruas e praças das cidades, que são, em princípio, de acesso livre à população, além das obras que pertencem a museus, galerias e acervos. Já o sentido corrente refere-se à arte realizada fora dos espaços tradicionalmente dedicados a ela79. Para tentar delimitar o alcance do termo, portanto, verifi ca-se que é preciso uma aproximação entre vários campos conceituais que interligam a arte à história, à política, ao urbanismo.

Diversos artistas sublinham o caráter engajado da arte pública, que visa a alterar a paisagem ordinária e, no caso das cidades, a interferir na fi sionomia urbana, recuperando espaços degradados e promovendo o debate cívico.

As características da Arte Pública presente no teatro de rua são:a) a localização da obra de arte em local de grande circulação;b) a conversão voluntária público em público de arte.

A primeira refere-se à acessibilidade física e econômica que o teatro de rua proporciona ao ser realizado gratuitamente nos espaços públicos. A segunda é sobre a dinâmica de ruptura da ordem 79 O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e David Alfaro Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da Arte Pública em função de seu compromisso políti co e de seu apelo visual.

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vigente no espaço público que o teatro de rua proporciona, ao criar um território lúdico em meio aos fl uxos cotidianos e às convenções da cidade. O cidadão que interrompe o seu trajeto para assistir a um espetáculo (e é por meio desse ato voluntário, convertido em público de teatro) torna-se, a partir desse momento, partícipe de um ato transgressor. E esta transgressão se torna ainda mais aguda se, além de simplesmente assistir ao espetáculo, imóvel, de um local fi xo, o espectador for levado a atuar de algum modo, devido à própria dinâmica do espetáculo. Ao deslocar-se para buscar um ponto de vista privilegiado, para escapar de uma cena que lhe pareça perigosa etc., ele reconfi gura a lógica da cidade, cria para ela um novo traçado, encontra outras possibilidades que até então não constavam de seu inventário de funções cotidianas para a rua. Na reconstrução lúdica do espaço urbano, um poste de luz se transforma em totem; a faixa de pedestres, um rio; um prédio é transmutado em precipício. O espetáculo transforma o familiar em desconhecido, revelando para o pedestre incauto a possibilidade de recriar o mundo.

Durante todo aquele dia, o Festival reuniu, metonimicamente, a pólis, constituiu o fato teatral porque o teatro de rua instaurou a democracia com um público livre para ser politicamente ativo, predisposto pela aptidão (real ou fi ctícia) para a deliberação e para a decisão política. Para nós, este é o objetivo da arte pública. Este foi o objetivo do III Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre.

Referências bibliográfi cas

GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras – uma ideia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

SILVA, Fernando Pedro da. Arte pública – diálogo com as comunidades. Belo Horizonte: C/Arte, 2005.

TURLE, Licko. Teatro de rua é arte pública: uma proposta de construção conceitual. 2011. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

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Foto de Bob Sousa. Cia. Estável - Daniela Giampietro no espetáculo Homem cavalo & sociedade anônima.

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Bloco VI: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS

São transcritas a seguir algumas obras, bem como alguns excertos, apresentadas no evento As Formas Fora da Forma.

Vá ser bom fotógrafo assim lá em casa79. Trata-se de um texto publicado no Jornal da Tarde (SP), sem nenhuma referência, bastante característico de esquetes do teatro de revista. De qualquer modo, como o texto se organiza fundamentalmente a partir de ambiguidade, sua inserção no evento e seu registro aqui expressam cabalmente sua elaboração.

Num determinado país, cujo regime era ditatorial, havia um decreto favorecendo a natalidade. Necessitando de mão de obra, criaram uma lei que obrigava os casais a terem fi lhos. Previram também uma tolerância de 5 anos. Para os casais infratores, o governo destacaria um agente reprodutor.Lá um belo dia, num lar feliz, marido e mulher dialogam.

Mulher – Querido, hoje completamos o quinto ano de aniversário do nosso casamento.Marido – É, e infelizmente não tivemos um herdeiro.Mulher – Será que eles vão mandar o tal agente?Marido – Eu não sei...Mulher – E se ele vier?Marido – Bem, não posso fazer nada!Mulher – Eu, menos ainda.Marido – Vou sair, já estou atrasado para o trabalho.Mulher – Certo!Logo após a saída do marido, batem à porta. A mulher abre e encontra um homem à sua frente. Era um fotógrafo que se enganara de endereço.Fotógrafo – Bom dia. Eu sou...Mulher – Ah! Já sei... Pode entrar.Fotógrafo – Seu marido está em casa?Mulher – Não, ele foi trabalhar.Fotógrafo – Presumo que ele esteja a par...Mulher – Sim, ele está a par e também concorda.Fotógrafo – Então, ótimo. Vamos começar?Mulher – Credo... Assim... Tão rápido?Fotógrafo – Preciso ser breve. Tenho ainda outras 16 casas para visitar.Mulher – Pôxa, o senhor aguenta?Fotógrafo – Aguento, sim. Gosto muito do meu trabalho. Ele me dá um imenso prazer.Mulher – Bem... Já que é assim, então, vamos...

79 Alexandre Mate coletou e adaptou todos os excertos apresentados na sequência.

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Fotógrafo – Permita-me sugerir: uma no quarto, duas no tapete, duas no sofá, uma no corredor, duas na cozinha e uma última no banheiro...Mulher – Credo! Não é muito!?...Fotógrafo – Na primeira tentativa a gente acerta na mosca. É rápido.Mulher (bastante sem jeito) – O senhor já visitou alguma casa neste bairro?Fotógrafo – Não, mas tenho comigo algumas amostras dos meus últimos feitos (mostrando fotos de crianças em um álbum). São belas, não!?Mulher – Puxa! Como são belos esses bebês... Foi o senhor quem fez?Fotógrafo – Sim, este aqui, por exemplo, foi conseguida na porta de um supermercado.Mulher – Credo, que horror!!! Não lhe parece um tanto público?Fotógrafo – Sim, mas a mãe era uma famosa atriz e queria publicidade.Mulher – Credo! Que horror!!!Fotógrafo – Foi um dos serviços mais duros que já fi z!Mulher – Imagino...Fotógrafo – Esta foi feita em uma roda-gigante, em parque de diversões, em pleno inverno.Mulher – Jesus, Maria, José!!! Como o senhor conseguiu?Fotógrafo – Não foi fácil... Como se não bastasse o frio de rachar os ossos, tinha uma verdadeira multidão à nossa volta... Por cima, por baixo... Em toda parte... Quase não consigo acabar...Mulher – Ainda bem que sou discreta e não quero que ninguém nos veja...Fotógrafo – Ótimo, eu também prefi ro assim. Então, se me der licença, vou armar meu tripé.Mulher – Tripé!?!? Credo, para quê?!Fotógrafo – Bem, madame, é necessário. O meu aparelho, além de pesado, depois de pronto, para funcionar, mede quase um metro...Imaginando “aquilo tudo” a Mulher desmaia.

“Pirandello presta-se a pilhérias”, da revista Zaz Traz, de Luiz Carlos Júnior e Victor Carvalho, com músicas de Juan Moreno. Certifi cado de aprovação da Divisão de Censura, no 573, foi exarado em 13/3/1927. Segundo pesquisas no jornal Folha da Manhã, esta obra apresenta uma adaptação dos melhores quadros de várias revistas do período. O esquete em epígrafe, dos autores brasileiros, é um excelente exemplo de elaboração formal. Antes de ele ser apresentado, os compadres – representando os autores –, reclamam da censura e da Polícia, sobretudo por conta de terem vetado o nu previsto no esquete (crítica moral). Assim, o “expediente da reclamação“, além de revelar os mecanismos censórios, também aponta como era possível tapear o público com bestiológicos. Desse modo, chamam

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um ator e uma atriz para que ambos improvisem e apresentem outro esquete. Pensam em uma improvisação utilizando exclusivamente as letras Z, H, K, e fi nalmente optam pela letra P. Assim, criam o esquete (p.35-37, no original), com as seguintes personagens: Paulo Procópio Prado, Paulina Pires Pitanga e Ponto.80

Paulina – Palmas! (vai abrir) Paulo.Paulo – Paulina.Paulina (tomando um ar sério) – Precisamos palestrar.Paulo (perplexo) – Por quê?Paulina – Porque padeço.Paulo – Padeces?Paulina – Padeço por Paulo.Paulo (tomando-lhe a mão ternamente) – Pobrezinha! Precisas paciência.Paulina – Paciência! Paciência!Paulo (caçoando com meiguice) Parece paixão.Paulina (zangada) – Preferias pilhéria! Perverso!Paulo (sorrindo) – Preferia palavras pacífi cas.Paulina (exaltando-se) – Peste.Paulo – Psiu.Paulina (continuando) – Patife. Perjuro.Paulo (tapando-lhe a boca com um beijo) – Para, por polidez.Paulina (entregando-se) – Pertenço-te.Paulo (continuando a beijá-la) – Pareço perdido... preso.Paulina (erguendo-se) – Por pulso pulsante.Paulo (vencido) – Pede, pronto, pede! Pinta programa principesco, países, povoações, paisagens pródigas, projetos promissores.Paulina – Partamos.Paulo – Para países pitorescos? Pura preciosa paixão.Paulina (num ímpeto) – Para Paris!Paulo (desconcertado) – Paris?Paulina (fi rme) – Paris.Paulo (consigo) – Pobre pateta! Paulo, Paulo, prepara-te para pagar paixões perigosas.Paulina (abraçando-o, com lábia) – Prometeste-me.Paulo (encarando-a) – Prometi. Prometi! Pois, prometi! Pronto! Partir por Paulo, parece partir por Paris.Paulina (como na cidade) – Partir por Paulo para Paris.Paulo – Parabéns, perdição! Perdoa-me.Paulina (abraçando-o e beijando-o) – Paulo, Paulo, príncipe poderoso, perfeito! Paulina pertence-te.Paulo (puxando um lenço branco do bolso e agitando-o como bandeira) – Paz! Parlamentemos.

80 Material coletado por Alexandre Mate no Arquivo Miroel Silveira, em São Paulo (SP).

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Paulina – Perfeitamente. Parlamentemos.Paulo – Primeiro preciso possuir provas positivas.Paulina (beijando-o, imediatamente) – Pois pronto.Paulo – Para poder partir.Paulina – Preparada!Paulo – Preparado para possível porvir perigoso.Paulina – Pedes-me profecias?Paulo – Peço-te palavras pensadas. Provas patentes. Provocações. Prazeres preteridos por pesares...Paulina – Por que pedes provocações, pesares?Paulo – Para poder prometer partir para Paris.Paulina (concorda e muito amorosa) – Pois pronto. Paremos. Prometo procurar provas positivas para prender-te.Paulo – Perfeitamente.Paulina (quer falar qualquer coisa. Chega mesmo a esboçar um gesto, mas não consegue dizer nada. Tenta novamente sem conseguir. Anda nervosamente pelo palco. Corre com os dedos uma estante de livros e toma um deles na mão. Volta-se para Paulo, mostrando-lhe o livro) – Plutarco.Paulo (surpreso) – Plutarco?Paulina (tentando continuar) – Paradigma para pessoas puras. Perfeições..., portento.Paulo – Paulina, por que Plutarco? Pareces presa.Paulina (atira-se nervosamente sobre uma cadeira) Paulo, peça papel. Passou-me. Procurei Plutarco procurar palavras principiadas por P para poder prosseguir. Passei precipitada por páginas povoadas por perigosas palavras pornográfi cas, proibidas pela polícia. Pragas provocadoras... Pareciam prontas para pular pelo palco, pela plateia. Parei petrifi cada. Pungente pavor prostrava-me. Parecia pouco provável poder prosseguir. P, P, P, percebes, Paulo?Paulo – Paulina, parece pilhéria! Público pagou. Podem profl igar procedimento pouco polido. Podem patear. Perdemos posições, papéis.Paulina – Piedade, Paulo.Paulo – Providência! Público pode perfeitamente perdoar (dirige-se ao Ponto). Ponto, prossigamos. Prossegue pelo pedaço partido.Ponto (mostra a cabeça com o cabelo desgrenhado pela caixa) – Pipocas, parece proposital. Procuram pateadas, palermas? Prejudicando peça. Provocando público.Paulo – Por que pregas? Prefere precipitar perdas?Paulina – Perdoem-me.Ponto (saltando fora da guarita) – Patifes! Pagarão prejuízos. Peça pareceu plateia patear. Pouca polidez pública.Paulina e Paulo – Porcos!Paulina – Profi ssão pungente. Passa-se por provas pavorosas...Ponto – Pretendiam partir para Paris. Pois podem partir para... put...

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(interrompe-se em tempo).Paulo – Polidez. Pareces peixeiro, praguejas. Proferes palavras pesadíssimas. Põe o ponto prudentemente.Paulina – Prepara-te para pancada.Paulo – Pulso por pulso.Paulina – Pugilato.Ponto – Para perto!Paulo (aproximando-se) – Perfeitamente. Pronto, principiemos.Paula – Pelo público. Por que provocar protestos? Polícia pode prender.Empresário (entra em cena) – Parem, parem! (mostra o fundo do palco). Partam pelo palco prevendo pancadaria popular. Prédio possui porta posterior para perigo. Pressa (os personagens saem. Ao público) Peço perdão perante público prejudicado. Poderão procurar preço pago pelas poltronas. (Ao Maquinista) Pano! Pano! (cai o pano. Paulina abrindo a cortina) Perdoem-me por provocar puro Pirandello. Peço palmas, por piedade.

“Amor de cowboy”, esquete da revista Na Hora H, de 1936, escrita por Luiz Iglésias, Freire Júnior e Carlos Bittencourt. Trata-se de uma copla que apresenta as tentativas de sedução de um homem, cuja fala – como era bastante comum – investia em uma espécie de fala sem sentido, mas “caprichada na retórica”. A mulher, como se percebe, é bastante segura de si e do que quer. Oportunista, a Eva da história sabe exatamente qual “chave” pedir para atender aos desejos de Pedro e, juntos, entrarem no Paraíso.

Eva (entrando perseguida) – Deixe-me, deixe-me, cavalheiro! Vá plantar favas!Pedro (à parte) – São favas contadas, é só mostrar-lhe o “milho”.Eva – O Senhor não se enxerga?Pedro – Como hei de vislumbrar a minha ínfi ma pessoa se os meus glóbulos são minúsculos diante da sua maiúscula beleza?Eva (à parte) – Mas que sujeito xarope!Pedro – Serei tudo o que quiser!Eva – Acho bom o Senhor retroceder.Pedro – Por que? Se em mim lateja a necessidade inestancável de proferir-lhe uns vocábulos picodológicos da trompa do estáquio dos seus mimosos orifícios auriouculares?Eva – Escute uma coisa, cavalheiro. O Senhor já atravessou a avenida Rio Branco às cinco horas da tarde?Pedro – Como não, Senhorita: tenho transposto tudo!Eva – E ainda não encontrou um chofer que lhe desse uma trombada? Pedro – Não, Senhorita. Porque a luminosidade da íris veicular dos seus olhos paralisa todo o trânsito, abrindo pista ao Ford V8, no circuito de meus passos.

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Eva – Mas será o Benedito?Pedro – Sou eu mesmo, Senhorita, sou eu! Mas faça do “Inferno de Dante” da minha vida o paraíso celeste da minha existência... (pensando) Que bonito o que eu disse!Eva – O Senhor sabe ser insistente.Pedro – Olhe Senhorita, mais vale um homem todavia nunca do que outro jamais sem comparação alguma.Eva – O Senhor está louco.Pedro – Ora, todavia, como não devê-lo-ía de sê-lo se as antenas de sua íris ressequidas são refratárias a toda a humanidade. Se nos ventrículos de seu coração os fl uídos do amor não têm ação preponderante? (pensando) Que bonito o que eu disse! Eva – Que arsenal de besteiras!Pedro – Não sou eu quem lhe professa a palidez anêmica destas proposições, quem as irradia é o disco circular da circulação do meu sangue ferido pelas agulhas dos diafragmas do amor... (pensando) Que lindo o que eu disse! Eva (à parte) – Bem, não há outro remédio senão aturar esta injeção. (alto) Finalmente, Quem é o Senhor?Pedro – Vou exibir-lhe as minhas credenciaisEu sou vulgo Zé Metralhada fazenda da harmonia.Eva – E em que trabalha?Pedro – Eu trabalho na vacariaJá fui cowboyde Niteróino cocoré não sou “paca”no faroeste, heróiEu já fi z um virar vacaEva – Oh, seu lorotaisso é potocaEu gosto mesmo é de nota.Pedro (mostrando-lhe um maço de notas) – Pois tenho muitas pelegaspra conquistar minhas negas Eva (cedendo) – como eu gosto de vocêmeu marrom glacê!Pedro – Pois eu também, ma frufruEu te I Love you.Eva – Mercedes BenzO amor se enleiaPedro – Vamos ver a Lua cheiaapanhar na praiaO tatu pela areia

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“Os marimbondos”, copla inserida na revista Dona Boa (dois atos e 30 quadros), de Jerônimo Castilho, Alfredo Breda e Lamartine Babo. O certifi cado expedido pela Divisão de Censura é número 1238, de 4 de junho de 1930. A obra montada pela Companhia de Revistas Margarida Marx foi levada à cena no então tradicionalíssimo Theatro Cassino Antarctica. Novamente, como no esquete anterior, a mulher é interesseira e capaz de objetividade quanto aos seus desejos.

Ele – Os marimbondo avoou, pousô no tacho, eu butei a mão pru baixo. Marimbondo me ferraram. Meti os pé, me avorocei, comi poeira, fui caí na capoeira e as galinha me sujaram.Ela – Eu tava pondo as carne seca na panela quando abri minha janela, tu me oiô atravessado.Ele – Foi, naturalmente. Que bobagem Sinhá Biriba, não pudia oiá pra riba. Com os dois oio tudo inchado.Ela – Tu me qué bem?Ele – Eh, eh, meu bem.Ela – Si vem arguém?Ele – Não vem ninguém.Ela – Sim, mas porém...Ele – Ti dou um vintém.Ela – Eu quero é cem.Ele – Ti dou também.Ela – Mas tu não tem!Ele – Mas vô furtá.Ela – Onde é que tá?Ele – Vou procurá.Ela – Si os guarda vê?Ele – Vem me prendê.Ela – Dispois então...Ele – Tem nada não.Ela – Mas tem é que fazê.Ele – Se defendê.Ela – Beiço taí.Ele – E...Ela – Pode mordê.

Esquete sem nome da revista Brasil Terra Adorada, de 1932, escrita por Jardel Jércolis com músicas compiladas. Apesar de o processo de eleição já ter sido realizado, e o governo de Getúlio Vargas ter garantido a continuidade do processo democrático, o esquete aponta, claramente, o processo de cooptação pela força de um sujeito ébrio.

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O certifi cado em São Paulo foi expedido sob o número 2195, de 8 de janeiro.

Bêbado (entrando da esquerda) – Comigo ninguém se meta, eu sou de qualidade. É no duro, sem tretas. Sou politizado de verdade (bebe). Isto agora está mudado, já ninguém se entende, o País está virado, o destino assim o quis (bebe). Viva o Dr. Washington Luís: o maior brasileiro do mundo e suas adjacências!1ο Transeunte – Como? Que disse? Você tem coragem de dar vivas a quem arruinou o país? Se não fosse o glorioso 3 de outubro...Bêbado – Viva o Doutor Washington Luís!1ο Transeunte (dando uma bofetada) – Tome seu merecido castigo, mau brasileiro. Quem tiver senso comum só pode vivar ao verdadeiro salvador da pátria: Viva o Doutor Getúlio Vargas!Bêbado (interrompendo) – Convenceu-me. Tem verdadeiros argumentos. Viva o Doutor Getúlio Vargas! Viva o salvador da pátria!1ο Transeunte – Viva! (sai)Bêbado – Como eu sou transviado... Viva o Doutor Getúlio Vargas!2ο Transeunte – Viva quem?Bêbado – Viva o Doutor Getúlio Vargas!2ο Transeunte – Então, você pensa que apenas o Doutor Getúlio Vargas salvou o Brasil? E os mineiros, também não ajudaram? O maior homem do Brasil é o Doutor Arthur Bernardes! Bêbado (depois de beber) – De Minas, só o queijo! 2ο Transeunte (dando-lhe uma forte botetada) – Tome... Para que aprenda. Viva o Doutor Arthur Bernardes!Bêbado (no chão) – Viva! (levantando-se) Seu argumento é fortíssimo. Tens toda a razão: Viva o Doutor Arthur Bernardes!2ο Transeunte (entusiasmado, sai gritando) – Viva! Viva! (sai)Bêbado – A verdade salta à tona d’água. O 3 de Outubro foi glorioso, todo mundo fez força. Viva o Doutor Arthur Bernardes! Tara-ta-chim, ta-chim, ta-chim!!!3ο Transeunte – Viva quem?Bêbado – Viva o Doutor Arthur Bernardes!3ο Transeunte – E para os do Norte, você não dá vivas?!Bêbado – Do Norte? Só conheço a Clevelândia!3ο Transeunte (dando-lhe uma bofetada) – Viva o maior brasileiro de todos os tempos: Juarez Távora!Bêbado (no chão) – Tens razão. Os seus argumentos são fortíssimos. Viva! Viva o maior brasileiro de todos os tempos: Juarez Távora!3ο Transeunte (saindo) – Viva!Bêbado (a custo se incorpora dando demonstrações do mal que as bofetadas lhe fi zeram) – Viva! Viva! 4ο Transeunte (repara no bêbado e começa a rir) – Viva! Viva!Bêbado – Viva! Viva!4ο Transeunte – Viva! Viva! Mas viva quem?Bêbado – Diz você primeiro que eu acompanho...

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Estou Nessa Marmita!, revista em dois atos e trinta quadros, de Nino Nelo, com músicas de diversos autores. Trata-se de uma revista paulistana, criada e apresentada por Nino Nelo, dono da Companhia Chantecler de Grandes Espetáculos de Revistas Alegres. Parte das revistas de Nelo era apresentada na zona leste da cidade, especialmente no Brás. A revista em epígrafe, sob o certifi cado de número 1710, de 12 de maio de 1933, foi apresentada no Theatro Cassino Antarctica. O esquete mostra uma reunião de operários; nesse período, por injunções do imposto pelo governo de Getúlio Vargas, pode-se ter um retrato do trabalhador preguiçoso, cuja matemática é surpreendente.

A cena representa a Sede da Sociedade Operária Morre de Fome Mas Não Trabalho. Há um quadro negro onde um operário, com giz, destaca, escrevendo, o que o Presidente mandar. Evidentemente, os trabalhadores da reunião são os espectadores da revista.Presidente – Meus amigos, nós operários somos eternos explorados. Trabalhar sempre para encher as pingburras dos patrões. Abaixo os patrões!Todos – Abaixo!Presidente – Viva o operariado!Todos – Viva! Viva!Presidente – Meus amigos, o ano tem 365 dias. Sim, 365 longos dias (Operário escreve o número). Porém, nós só trabalharemos 8 horas diárias; portanto, 8 é 1/3 de 24h; portanto, 1/3 de 365 é 121 dias... Senhores, são 121 dias de trabalho insano, derramando nosso suor em 121 dias ininterruptos.1ο Operário – Senhor Presidente, não se esqueça que o ano tem 54 domingos (A uma ordem do Presidente, o Operário escreve).Presidente – É isso mesmo... 67 dias a fi o derramando o suor de nosso corpo.2ο Operário – Não vamos desistir da hora do almoço. Uma hora por dia, em 365 dias, são 15 dias a menos. (A uma ordem do Presidente, o Operário destaca o número).3ο Operário – Peço a palavra: é fundamental não esquecer o sábado inglês. Isto é: meio-dia de serviço. Então, 54 sábados, são 27 dias de descanso.Presidente – Restam, portanto, 25 dias de trabalho. Mas nós, no Brasil, num ano temos 24 dias de feriado e consagrado aos santos... Portanto, nesses dias não se deve trabalhar.Todos – Muito bem! Muito bem!Presidente – Portanto, fi ca um dia de trabalho. Este é o dia 1ο de Maio, Dia do Trabalho e do descanso.Todos – Viva o trabalho. Viva!!

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A Mulata, revista em dois atos de Max Porto e Júlio Cristóval. O certifi cado tem o número 1754, de 16 de setembro de 1932, e foi apresentada pela Companhia Permanente do Teatro Colombo, no Teatro Colombo (Brás). Bastante recorrente no fi m da década de 1920 e início da de 1930 foram algumas coplas fazendo apologia à cocaína, popularmente conhecida com o nome de Cristina. De fato, nesse período, a “musa” de homens e mulheres da noite foi bastante cantada. Assim aparece na obra mencionada:

Mademoiselle – Sonha. Põe no seu sonho a cançãonessa envenenada ilusão.Deixa que a cocaína fatalvista de exaltação o seu mal.

Viciado – O calor de seu ardente beijoTem doçura da loucura. Nela o amor aplaca o meu desejo Sempre exaltado de pecado

Mademoiselle – Dar-lhe-ei a vida, se quiseresOh, meu lindo sonho infi ndo.Sou a mais divina das mulheres,Flor da rua, sou só sua.

Viciado – Sonha. Põe no seu sonho a cançãonessa envenenada ilusão.

Mademoiselle – Deixa que a cocaínaVista de exaustão o seu mal

Viciado – Sonho...Coro – Põe no seu sonho a cançãoViciado – dessaCoro – envenenada ilusão.Mademoiselle – DeixaCoro – que a cocaína fatalMademoiselle – vistaMademoiselle, Coro, Viciado – de exaustão o seu mal.

Sai Despacho!, de Benjamin de Oliveira. Trata-se de obra cuja estreia ocorreu em maio de 1921. A obra é apresentada por Oliveira como uma revista, dividida em 1 prólogo, 1 quadro e 2 atos.81 A versão a seguir corresponde a uma adaptação proposta pelos estudantes que

81 Com alguma revisão em relação ao original consultado, a íntegra do texto, dentre outras fontes, pode ser encontrada na tese de Daniel Marques da Silva. O palhaço negro que dançou a chula para o Marechal de Ferro: Benjamim de Oliveira e a consolidação do circo-teatro no Brasil – mecanismos e estratégias artí sti cas como forma de integração social na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Unirio, 2004.

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a apresentaram no evento promovido no Instituto de Artes da Unesp.

PRÓLOGOPrimeira cena

Uma galeria infernal riquíssima. É dia de festa no inferno, aniversário da princesa Diabelina. Ao subir o pano devem estar em cena todos que participarem do reinado infernal, os quais descem ao picadeiro e cantam.

Coro geral – Com pompa e magnifi cência A rainha esplendorosaVai receber em audiência A princesa bela e formosa

Salve, grande rei e imortalQue nas trevas arvora seu pendorE que no mundo esparge grande malQue corre os povos o amor

Diabelina entrandoO canalha cessa tudoAi vem el rei chifrudoO diabo mais velho!

E depressa esconder chavelhoE depressa esconder chavelhoSalve o grande rei imortal

Que nas trevas arvora seu pendorE que no mundo esparge grande malQue corre os povos o amor

Segunda CenaOs mesmos e a família real descem ao picadeiroSatanás – Raios os partam! Obrigado fi lhos do averno. Como sabeis, hoje é aniversário da minha fi lha. Portanto, tudo será perdoado. Quem assim ordena é minha fi lha.Ocorre um grande tumulto com a chegada do Coro de Diabos.Satanás – Calma! Raios os partam!

Terceira cena1ο Diabo – Salve a futura herdeira do trono!Coro de Diabos – Salve!2o Diabo – Os presentes que temos recebido para a nossa princesa têm dedos incalculáveis.3o Diabo – Pedras preciosas, nunca vistas.4o Diabo – E as pérolas? Que são desconhecidas!

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Rainha – Vê fi lha? Nunca ouve no inferno um festim como este.Coro de Diabos – Nunca!Satanás – Será lembrado por muito tempo. E com letras de ouro será gravado no livro infernal. Antes preciso anunciar-vos que eu, imperador infernal, vou desempenhar para a variedade e grandeza de nossa missão, nos destinos da humanidade.Coro de Diabos – Muito Bem. (Coro de Diabos cochicham entre si)

Quarta cenaSatanás – O que vocês, seres infernais, estão cochichando?Coro de Diabos – Nada não, majestade! (empurram o 1o Diabo mais à frente)1ο Diabo – Majestade, nós, diabos infernais, pedimos permissão para entregar-lhe um presente em nome dos diabos pescadores, pois desejamos saudar vossa alteza!Princesa – Que entrem.

Quinta cenaCoro de Pescadores entra trazendo um enorme tubarão. (grande confusão)Família Real – Que maravilha!!!Diabelina – Obrigado, dignos pescadores. Que lindo! Vamos comer??A música começar a tocar, enquanto o Cozinheiro passa o facão na barriga do tubarão, com a fi nalidade de abri-lo, aparece Anacleto. Satanás – É um caso imprevisto

Quem é que mandou...Coro – É arte do outro criador Rainha e Princesa – O que será?Coro – No bucho do tubarãoSatanás – O que vem a ser isto (bis)Coro – Aqui está de corpo e alma um mortal

Vamos ver com calmaSatanás – Então, que tal?Coro – É um maganão

Dentro do bucho Do tubarão

Rei e Rainha – Então...Satanás – Coisa nunca vista no Inferno! É grande agouro!! Matéria de um mortal.Princesa – Pai, o que vem a ser mortal?Satanás – Filha, mortal é um povo que vive n’outro planeta criado pelo outro!Princesa (reparando) Mas... os mortais são todos assim?Satanás – Não, fi lha, esse está nesse estado, pois uma matéria sem espírito é um corpo sem vida...

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Princesa – Sem vida? O que quer dizer isto, pai?Satanás – Um corpo sem vida... quer dizer... Ahh, depois te explico!!Princesa – Pai, tinha vontade de ver um corpo com vida.Satanás – Bem, como prometi que no dia de hoje serias atendida em todos os pedido que satisfaça a vontade de minha fi lha. Quero que esgotem as ciências infernais encarnando de novo o espírito nesta matéria. Queremos saber o que aqui veio fazer este corpo com alma.2o Diabo – Vou aplicar o elixir da vida. (aplica o elixir da vida em Anacleto).Satanás – Falai!Anacleto – (dando um pulo) Conheceu, papudo! Comigo vocês não podem.Todos – Ah! Ah! AH!Princesa – Como são engraçados os mortais!Anacleto – Ah! Acharam engraçado? Vocês não viram o resto!Satanás – Qual a tua missão, e o que vens aqui fazer?Anacleto – Sei lá. Eu não sei onde estou! (Reparando) Ah, agora reparo, estou na caverna dos tenentes.Satanás – Engana-te, estás no inferno.Anacleto – O que me diz senhor?Satanás – Olha bem na minha fi sionomia.Anacleto – Não é desagradável!Satanás – Nunca o foi. Vamos a saber quem enviou-te pra cá.Anacleto – Com certeza foi ela!Todos – Ela quem?Anacleto – A Juvelina!Rainha – Quem é esta que acabas de falar?Anacleto – Vocês não a conhecem... ela ia ser minha sogra, mas como eu andava desempregado... por fi nal já se opunha ao meu casamento com a fi lha, para dá-la como esposa a um condutor da Light. E um dia eu fui visitá-la e o diabo da velha deu-me um refresco e eu pus-me a dormir e só agora é que pude acordar.Satanás – E o rótulo que trazes nas costas?!!Anacleto – Um rótulo? (tenta pegá-lo).Satanás (pegando o papel nas costas de Anacleto com os dizeres: SAI, DESPACHO!).Anacleto – Ah! Então foi ela que me despachou. Isto agora está em moda. Em todas as ruas se encontra um embrulho, vai se ver, Sai despacho!!Anacleto – É a moda vulgar corrente

É essa terra lá de baixoDizer-se a todos somente

Coro – Sai despacho!Anacleto – Essa frase corriqueira

Em toda conversa encaixo

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Diga de toda a maneiraCoro – Sai despacho!Anacleto – Se o grão chefe do País

Sem jeito empurra o fachoDiga de toda maneira

Coro – Sai despacho!Anacleto – Quando é o namorado

Arbusto que já deu cachoDiz a noiva em desagrado.

Coro – Sai despacho!Anacleto – Se juntos de uma mocinha

Perigo de amor lhe achoDigo assim em tom baixinho

Coro – Sai despacho!Anacleto – Se é então velha gaiteira

Dessa com cara de tachoDigo mais outra maneira

Coro – Sai despacho!Anacleto – Esse dito é já corrente

Em toda conversa encaixoDigo eu, diz toda gente

Coro – Sai despacho!Anacleto – Pois é meu chefe! Você é que não conhece aquilo por lá?Satanás – Só não conhecia o tal despacho.Anacleto – Aquilo está muito estragado... O povo já não tem mais crença.Satanás – Nem é preciso.Anacleto – Então onde vamos parar com isso?Satanás – Vem parar aqui. Pois não sabes que a maior parte daquilo me pertence? E não dará muito tempo pra que o outro desapareça.Anacleto – Se o senhor vê o Leme como fi ca depois da meia noite!Satanás – Tudo aquilo é meu.Anacleto – Não há mais respeito.Satanás – É do meu programa.Anacleto – As mulheres não respeitam mais os maridos.Satanás – É do meu programa.Anacleto – Tragédias e mais tragédias.Satanás – É do meu programa.Anacleto – Desastre na estrada de ferro, famílias inteiras choram a perda dos seus entes queridos vítimas nesse desastres. E as jogatinas, então?Satanás – É do meu programa.Anacleto – É... Mas este programa a polícia rasga.Satanás – Dos mortais é a única que me faz barreira..

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Anacleto – E o bicho? Eles lá-ban-ca mais vão presos.Princesa – Mas que progresso.Satanás – Eu desde que semeei, nunca mais por lá apareci, nem é preciso pois tenho auxiliares em quantidade. Bom, mortal, já te ouvimos com toda atenção. Tens que voltar para teu planeta, não podes fi car aqui.Anacleto – (à parte) Safa! Nem no inferno me querem. (Alto) Ô seu chefe, eu lá não arranjo nada.Princesa – Papai, eu lhe peço, compadeça-se deste infeliz.Satanás – Que hei de fazer por ele, fi lha?Princesa (acariciando-o) – Papai, quando quer faz tudo... Olha, papai, desejava conhecer este planeta que se chama Terra.Rainha – Estais louca, fi lha?Princesa – Eu que aqui nasci e nunca daqui saí.Rainha – Mas fi lha, não ouvistes este mortal dizer que lá está tudo corrompido?Coro de Diabos – É verdade!Princesa – Lembra que hoje é meu aniversário e é o último pedido que lhe faço. Deixa que o acompanhe, quem sabe não lhe poço ser útil.Satanás (a rainha) – Não podemos recusar o seu pedido. (Alto) Olá, o seu Sai Despacho. Vá pra sua terra e consinto que minha fi lha te acompanhe, a fi m de conhecer os meus feitos na terra e te arranjar uma boa colocação.Anacleto – Ela lá não conhece ninguém?Satanás – Ô idiota, pois tu sabes que quem tiver a seu lado uma mulher bonita não lhe faltará colocações?Anacleto – Então vou casar com tua fi lha?Satanás – Não. Ela passará como tua esposa. Daqui a 15 dias ela deve estar de volta ao inferno. Faço isso pra ser agradável à minha fi lha, e pra tu veres que o diabo não é tão mau. Filha, quando queres partir?Princesa – Já, sem perda de tempo.Rainha (à parte) – Filha (tirando do colar que traz no pescoço uma chave), a ti quero te dar um presente que será muito útil.Princesa – Sim, querida mamãe, aceitarei de bom grado.Rainha faz sinal para os diabos com os dedos, dos quais 4 correm em direção à princesa e levantam-na bruscamente. O outro diabo sai de cena e volta com um cinto de castidade, o qual é colocado em Diabelina.Rainha – Filha, a ti concedo esta chave, pois esta chave é muito importante e guarda algo muito valioso. Tome nota nas minhas palavras, não consinta que nenhum mortal ponha as mãos nela. Pois se tal acontecer tu fi carás presa por lá e nunca mais verás tua mãe e sobre ti terás sempre a maldição infernal. (Pegando uma sombrinha). Princesa – Descansa, mãe, que saberei guardá-la.Rainha – Filha, leve esta sombrinha do averno, todas as vezes que desejar

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fi car invisível a qualquer mortal, é só abri-la. E... fi lha... cuidado com os mortais, eles têm manha.Satanás – Podem partir. Olha que são 15 dias.Anacleto – Ela estará de volta...Coro de Despedida – Vai partir

Bela DiabelinaPara terra ir conhecer (bis)Porém breveVolte aquiBoa robusta a valerEmbarque sem mais demoraTempo não há que perderPois só falta meia horaPra viagem ir empreender

Com os mortais tenha cautelaQue eles manha sabem terNão vá algum magricelaPelos lábios perder...

Anacleto e Diabelina se encaminham em direção à plateia e fazem um jogo com ela.

FIM

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Rebento – Revista de Artes do Espetáculo publica artigos, ensaios e resenhas na área das artes do espetáculos, com interlocuções com as Ciências Humanas em geral. Solicita-se aos colaboradores, entretanto, que sigam as seguintes indicações:

1. O material para publicação deverá ser encaminhado em duas vias impressas e uma em CD, em formato “doc” ou “rtf”. Os artigos deverão conter no máximo 20 páginas; as resenhas, até 6 páginas. Os textos deverão ser digitados com letra Times New Roman tamanho 12, em espaço 1,5.

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3. A simples remessa de originais implica autorização para publicação. 4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do

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Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012

Revista de Artes do Espetáculo no 3 - março de 2012

Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura

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