Revista de Historia-158

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA ECONÔMICA número 158 1º semestre de 2008 ISSN 0034-8309

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA ECONÔMICA

REVISTA DE HISTÓRIA - 1º semestre de 2008

158

número 158 1º semestre de 2008 ISSN 0034-8309

Artigos

Carlos Barros 09 Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la historia

Juliana Bastos Marques 43 O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografi a antiga

Néri de Barros Almeida 67 O adultério na Legenda Áurea (c.1270). Imagem feminina e afetividade marital no final da era gregoriana

Carlos Leonardo Kelmer Mathias 89 Nos ventos do comércio negreiro: a participação dos trafi cantes baianos nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo (1711-1730)

Marco Antonio Silveira 131 Acumulando forças: luta pela alforria e demandas políticas na capitania de Minas Gerais (1750-1808)

Cláudia Moraes Trindade 157 A reforma prisional na Bahia oitocentista

Luiz Geraldo Silva 199 Um projeto para a nação. Tensões e intenções políticas nas “províncias do norte” (1817-1824)

Fabricio Pereira da Silva 217 Utopia dividida. A crise do PCB (1979-1992)

Maria da Conceição Francisca Pires 247 Graúna: um canto feminino de autocrítica na caatinga

Wagner Costa Ribeiro 277 Ordenamento jurídico para a proteção do patrimônio natural do Brasil

Resenhas Maximiliano M. Menz 303 CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais.

Produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807).

Rodrigo Faustinoni Bonciani 309 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia.

Tereza Maria Spyer Dulci 315 MOURA, Cristina Patriota de. O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização.

319 Normas de Publicação

& Silvia Helena Zanirato

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitora: Profa Dra Suely Vilela

Vice-Reitor: Prof. Dr. Franco Maria Lajolo

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Gabriel CohnVice-Diretor: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Profa Dra Maria Helena Rolim CapelatoSuplente: Prof. Dr. Marcos Napolitano

REVISTA DE HISTÓRIANúmero 158 (Terceira Série) – 1º semestre de 2008 – ISSN 0034-8309

CONSELHO EDITORIALCarlos Alberto de Moura R. Zeron (editor)Eduardo Natalino dos SantosGabriela Pellegrino SoaresJoão Paulo Garrido PimentaMaria Cristina Cortez WissenbachMary Anne JunqueiraRafael de Bivar Marquese

PRODUçÃOSecretário: Joceley Vieira de SouzaWebdesign, diagramação, normalização, projeto gráfico do miolo e capa: Joceley Vieira de SouzaRevisão: Regina M. NogueiraCONSELHO CONSULTIVOÂngela de Castro Gomes (Universidade Federal Fluminense / CPDOC / Fundação Getúlio Vargas)Barbara Weinstein (University of Maryland - EUA)Eliana Regina de Freitas Dutra (Universidade Federal de Minas Gerais)Emília Viotti da Costa (Universidade de São Paulo / Yale University - EUA)Guillermo Palacios (Colegio de México - México)João José Reis (Universidade Federal da Bahia)Luís Miguel Carolino (Museu de Astronomia / Conselho Nacional de Pesquisa)Marcus J. M. de Carvalho (Universidade Federal do Pernambuco)Maria Emília Madeira Santos (Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa - Portugal) Rafael Sagredo (Pontificia Universidad Católica de Chile - Chile)Robert Slenes (Universidade Estadual de Campinas)Serge Gruzinski (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - França)Sueann Caulfield (University of Michigan - EUA)Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (Universidade de São Paulo)

Órgão Oficial do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-FFLCH/USPFundada em 1950 pelo Professor Eurípedes Simões de Paula, seu diretor até seu falecimento em 1977

© Copyright 2008 dos autores. Os direitos de publicação desta edição são da Universidade de São Paulo – Humanitas Publicações-FFLCH/USP – novembro/2008

www.usp.br/revistadehistoria

Este número contou com o apoio financeiro do Programa de Pós-Graduação em História Social - FFLCH/USP

Endereços para correspondência:Conselho Editorial:Av. Professor Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilCaixa Postal 8.105 – FAX: (011) 3032-2314Tel.: (011) 3091-3701 – 3091-3731 ramal 229e-mail: [email protected]

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4 Revista de História 158 (1º semestre de 2008)

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Revista de História / Departamento de História. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. n. 1 (1950). São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 1950-

Nova Série - 1º semestre, 1983 Terceira Série - 1º semestre, 1998.

Semestral ISSN 0034-8309

1. História I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História.

CDD 900

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Artigos

Carlos Barros 09 Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la historia

Juliana Bastos Marques 43 O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga

Néri de Barros Almeida 67 O adultério na Legenda áurea (c.1270).Imagem feminina e afetividade marital no final da era gregoriana

Carlos Leonardo Kelmer Mathias 89 Nos ventos do comércio negreiro: a participação dos traficantes baianos nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo (1711-1730)

Marco Antonio Silveira 131 Acumulando forças: luta pela alforria e demandas políticas na Capitania de Minas Gerais (1750-1808)

Cláudia Moraes Trindade 157 A r e f o r m a p r i s i o n a l n a B a h i a oitocentista

Luiz Geraldo Silva 199 Um projeto para a nação. Tensões e intenções políticas nas "províncias do Norte" (1817-1824)

Fabricio Pereira da Silva 217 Utopia dividida. A crise do PCB (1979-1992)

Maria da Conceição Francisca Pires 247 Graúna: um canto feminino de autocrítica na caatinga

Wagner Costa Ribeiro 277 Ordenamento jurídico para a proteção do patrimônio natural do Brasil

Resenhas Maximiliano M. Menz 303 CARRARA, Angelo Alves. Minas e

currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807).

Rodrigo Faustinoni Bonciani 309 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia.

e Silvia Helena Zanirato

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Tereza Maria Spyer Dulci 315 MOURA, Cristina Patriota de. O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização.

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ARTIGOS

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PROPueSTAS PARA el nuevO PARAdIGmA educATIvO de lA HISTORIA1

Carlos BarrosUniversidad de Santiago de Compostela

ResumenCarlos Barros defiende la necesidad de un nuevo paradigma educativo de la historia en alianza con el nuevo paradigma historiográfico propuesto por la red internacional Historia a Debate, basado simultáneamente en tres ejes: 1) una educación en com-petencias, en el manejo de las fuentes históricas desde la enseñanza secundaria, y ajena por tanto al mercantilismo propagado de manera fundamentalista por la OCDE y otras instituciones internacionales; 2) una educación en valores universales desde la historia; 3) una educación crítica y plural de las historias nacionales y mundial. Reflexiones y propuestas que tienen en cuenta los debates en marcha sobre la unifi-cación del espacio europeo de la educación superior.

Palabras clavesParadigma • educación • historia • enseñanza • historiografia.

AbstractCarlos Barros defends the need for a new educational paradigm of history in alliance with the new paradigm historiographical proposed by the international network History under Debate, based simultaneously on three axes: 1) an education in competences, in handling historical sources from the secondary education, and therefore outside the spread of commercialism fundamentalist way by the OECD and other international ins-titutions; 2) an education in universal values from history; 3) an education critique and plural of histories national and global. Reflections and proposals which take into account the discussions under way on the unification of the European area of higher education.

KeywordsParadigm • education • history • teaching • historiography.

1 Versión escrita y ampliada de la ponencia en el Seminari Internacional Taula d’Història – El valor social i educativo de la història, organizado por Joaquín Prats <http://www.ub.es/histodidactica> y el Departament de Didàctica de les Ciències Socials. Universitat de Barcelona, 9 de julio de 2007.

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Las propuestas y reflexiones que hoy ponemos a debate sobre el qué, el cómo y el por qué de la enseñanza de la historia en el nuevo siglo, responden a un doble interés: 1) poner en valor, didácticamente, algunos de los consensos sobre la escritura de la historia ya establecidos en el Manifiesto de Historia a Debate de 2001;2)2 recoger, en el contexto del nuevo paradigma historiográfico que defendemos, debates y aportaciones recientes de la metodología didáctica y la epistemología pedagógica, donde se está forzando “desde arriba” la for-mación de un new paradigm educativo, convergente en unos aspectos pero divergente en otros que son esenciales, con lo que estamos defendiendo para la escritura de la historia y las proposiciones didácticas y pedagógicas que vienen a continuación.

Nuestro objetivo es contribuir desde el oficio de historiador a la actualiza-ción de la didáctica de nuestra disciplina, tarea que nos compete también como profesores de una universidad cada vez más implicada, y más presionada a implicarse, en la innovación docente. Queremos también avanzar elementos para la incorporación de un nuevo punto de consenso, sobre la enseñanza de la historia, en el Manifiesto de nuestra red historiográfica, con el fin de completar el ciclo de la investigación e implementación social del conocimiento histórico, cuya falta de continuidad es uno de los problemas agudos que han de resolver los nuevos paradigmas de la historia investigada y enseñada.

The new paradigmEl origen de buena parte de las “novedades” didáctico-pedagógicas actuales

está, aun que no siempre se diga claramente, en el New paradigm in education difundido ampliamente desde los EE.UU. en el mundo anglosajón, en el con-texto doble de aprendizaje laboral basado en competencias3 y posmodernismo académico, con aportaciones útiles y graves defectos de fondo y forma. Este new paradigm ha tenido una explícita acogida en sectores de la academia la-

2 Hicimos una primera aproximación en La nueva historiografía y la enseñanza de la historia, videoconferencia (20/9/2002) para la Maestría en Educación de la Universidad Virtual de Mon-terrey, México <video y trascripción disponibles en http://www.h-debate.com/videos/videos/mexico.htm>; versión en italiano, “La nuova storiografia e l’insegnamento della storia”, Storia e Futuro. Revista de Storia e Storiografia, Bologna, nº 5, ottobre de 2004, pp. 1-6 <http://www.storiaefuturo.com/pdf/59.pdf>.3 El origen del concepto de competencias educativas está en el artículo del psicólogo cognitivo norteamericano, especialista en gestión empresarial, MCCLELLAND, David, Testing for com-petence rather than for intelligence. American Psychologist, nº 28, 1973, p. 1-14.

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tinoamericana, y otra más implícita de orden administrativo en Europa, como muestra el polémico e importante proyecto para la enseñanza superior Tuning educational structures in Europe4 y la “recomendación” categórica de la Unión Europea a favor de la educación por competencias,5 especialmente en la edu-cación secundaria. Urge a ambos lados del Atlántico entrar en el debate sobre el consenso teórico-metodológico en marcha, con apoyo institucional, sobre la enseñanza en el siglo XXI, que tome en consideración los sucesivos intentos a lo largo del siglo XX, desde John Deway a Paulo Freire, de una “nueva escuela”, a la cual debemos los profesores no seguir aún enseñando con la regla en la mano la lista de los reyes godos. Prolongadas e intensas experiencias de renovación pedagógica, difundidas y aplicadas sobre todo en los años 60 y 70, suelen ser “olvidadas”6 por los partidarios más conservadores del nuevo paradigma an-glosajón, cuando no “apropiadas” en su vertiente constructivista, previamente expurgada de lo que pueda tener de compromiso ético y epistemología social. Dimensiones estas, próximas en su momento al materialismo histórico, que siguen siendo hoy necesarias, en otro contexto y con otros contenidos, en todo nuevo paradigma que se precie, si se quiere hacer frente con éxito al rampante

4 Proyecto financiado por la Comisión Europea, en el marco del programa Erasmus-Sócrates, coordinado por profesores de las universidades de Deusto y Groningen, cara a la convergencia en el Espacio Europeo de Educación Superior; véanse las conclusiones de la Comisión de Historia en http://www.relint.deusto.es/TUNINGProject/spanish/doc2_fase1.asp.5 El Parlamento y el Consejo europeos hizeran una “recomendación” el 18 de diciembre de 2006 sobre las ocho “competencias básicas para el aprendizaje”, elaborado por la Comisión Europea el 10 de noviembre de 2005 <europa.eu.int/eur-lex/lex/LexUriServ/site/es/com/2005/com2005_0548es01.pdf>, que el Gobierno español puso en práctica en la Ley Orgánica de Edu-cación (LOE) que entra en vigor este curso 2007/2008, competencias motivadas ante todo por la educación para el empleo, y también espíritu empresarial, formación para la vida y el ejercicio de la ciudadanía; visión crítica en PAGÈS, Joan. Un itinerario por el mundo de las competencias en ciencias sociales, geografía e historia a través de los distintos currículos. Iber. Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, nº 52, 2007, p. 29-39.6 Por ejemplo, AGUERRONDO, Inés. Un nuevo paradigma de la educación para el siglo XXI. Reformas educativas en Argentina y Canadá. Trama social, gestión y agentes de cambio. Bue-nos Aires, 2000, <http://www.oei.es/administracion/aguerrondo.htm>; la necesidad de un nuevo paradigma está bien planteada por parte de la autora argentina, pero descalifica como “resabios sesentistas” los cambios del paradigma educativo que vivió el siglo XX, terminando por proponer un doble itinerario, una escuela para ricos y otra para pobres, algo parecido a lo que se propuso sin éxito en España en la segunda legislatura del PP.

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retorno7 de la escuela conductivista y tradicional,8 de un lado, y a los retos de la sociedad de la información,9 la globalización y las nuevas tecnologías.

Alianza didáctica / historiografíaIvo Matozzi organizó, en la universidad de Bologna, los días 19-20 de

octubre de 2004, un congreso internacional en base a la siguiente cuestión: Storiografia e insegnamento della storia: è possibile una nuova alleanza? Desde luego, respondimos algunos, invitados a hablar sobre el nuevo paradig-ma de la historia y su relación con su enseñanza.10 La superación de la crisis de la historiografía, de la historia enseñada y del aprendizaje de la historia,11 ha de superarse necesariamente de forma conexa. De mismo modo que, en los años 60 y 70, la eclosión de la nueva historia y la nueva didáctica fueron fenómenos paralelos e conectados entre sí, en el marco del florecimiento de las ciencias humanas y sociales. Lo que son hoy nuestras disciplinas, en cuanto a investigación y licenciaturas, ¿no se lo debemos acaso a las grandes escuelas innovadoras del siglo XX, vinculadas a los movimientos sociales, políticos y culturales, que fueron alcanzando su apogeo después de la II Guerra Mundial? Escuelas y movimientos que entraron ciertamente en crisis, a fines de los años 70, y fueron después rebasados por los profundos cambios históricos, a los que non estuvieron ajenas las ciencias sociales, que precedieron y siguieron a la caída

7 Ejemplo de denuncia es el Manifiesto (2001) de los profesores de Geografía e Historia de la Comunidad Valenciana contra la vuelta al currículo decimonónico, cronológico e historicista, promovido por la contrarreforma escolar de 2000 (cuya aplicación fue suspendida por el Partido Socialista Obrero Español en 2004, y sustituida por la actual LOE), véase en www.ub.es/geocrit/b3w-283.htm.8 En principio, el adversario común de todos los partidarios de un nuevo paradigma es la enseñanza autoritaria de la historia de tipo memorístico, cronológico, acontecimental, centrada en “grandes figuras” al servicio exclusivo del Estado-nación.9 Considerar como la Unión Europea que el eje central de la adaptación de la educación a la so-ciedad del conocimiento son las competencias laborales y empresariales <europa.eu.int/eur-lex/lex/LexUriServ/site/es/com/2005/com2005_0548es01.pdf>, es un craso error – también para el proyecto europeo – que indica, entre otras cosas, lo lejos que están aún las instituciones europeas (Comisión, Consejo y Parlamento) de la sociedad civil, a causa de su limitada visión neoliberal del proceso de globalización, cuando menos en su proyección educativa. 10 Nuovi paradigmi della ricerca storica. Storiografia e insegnamento della storia: è possibile una nuova alleanza? Bologna, 20 de octubre de 2004 <audio disponible en http://www.h-debate.com/Spanish/presentaciones/lugares/bologna.htm>.11 MATTOZZI, Ivo. Le ragioni di un convegno internazionale, disponible en http://www.storiairreer.it/IRRE/materiali/PresentazioneStoriografia04.rtf.

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del muro de Berlín. Ahora bien, malo vendrá que bueno me hará: dos décadas después del aprovechado y desmentido vaticinio del “final de la historia”,12 el subsiguiente regreso de las viejas escuelas positivistas en historia, pedagogía y otras ciencias humanas, y la incapacidad reconstructora del posmodernismo, nos obligan a reevaluar y recuperar de forma crítica, y autocrítica, la experiencia de las vanguardias del pasado siglo.

El nuevo paradigma historiográfico que propugnamos13 precisa interactuar con la nueva didáctica de la historia porque es el signo (global) de los tiempos, apoyándose en los conceptos de paradigma, comunidad de especialistas y revolución científica (cambio de paradigmas) elaborados por la historiografía pospositivista de la ciencia.14 Sin renunciar, ni la educación ni la historia, a sus definiciones científicas, nacidas hace más un siglo y precisadas por lo tanto de una severa actualización de sus epistemológicas de referencia, si queremos que la sinergia que proponemos sea efectiva.

De todos modos, lo que más comparten la historia y la didáctica de la historia es, obviamente, la temática y la noción de historia. En realidad, la investigación y la enseñanza son, o deberían ser, fases consecutivas e interrelacionadas de un mismo proceso de conocimiento histórico. No obstante, hasta hoy la educación histórica e historiográfica de nuevos profesores e investigadores (enseñanza superior) y de nuevos ciudadanos (enseñanzas medias) no ha recibido la misma consideración académica o pública que la historia como investigación.

La docencia es, se quiera o no, una parte cardinal del proceso de conocer la historia, salvo que se niegue su carácter social, reduciendo el saber histórico a la pura erudición. La enseñanza de la historia, y sus comunidades de apren-dizaje, es una actividad creativa y difícil que condiciona, y retroalimenta, la fase investigadora del proceso de reconstrucción del pasado. Interconexiones

12 SANMARTÍN, Israel, The end of History looking back and thinking ahead. In: BARROS, Carlos and MCCRANK, Lawrence J. (eds.) History under debate. International reflection on the discipline. New York, 2000, p. 253-259.13 No estamos de acuerdo con los que, ejerciendo la justa y necesaria crítica del condicionamiento de la reforma educativa europea por los intereses empresariales, renuncian a ofrecer nuevas alter-nativas, ignorando la historia de la renovación pedagógica y metiendo en el mismo saco todo lo que suene a “nuevo paradigma educativo”, e-learning, aprender habilidades o formación continua, v.g. GARCÍA FERNÁNDEZ, Jorge Felipe. Algunas consideraciones acerca del proyecto Tuning educational structures in Europe. Madri: Universidad Complutense <http://firgoa.usc.es/drupal/node/25877>.14 Véase El paradigma común de los historiadores del siglo XX. Medievalismo. Madrid, nº 7, 1997, p. 235-262 <http://www.h-debate.com/cbarros/spanish/paradigma_comun.htm>.

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disciplinares y funcionales que todavía no (re) conocemos bien: faltan inves-tigaciones mixtas15 que relacionen historia investigada e historia enseñada desde un punto de vista tipo temático, metodológico, histórico e historiográfico. Tenemos, pues, que aplicar la interdisciplinariedad a nuestra propia disciplina, estableciendo puentes entre sus diversos segmentos, inscritos a menudo en otros campos académicos,16 practicando una suerte de intradisciplinariedad17 que haga rentable la cooperación de la historia con otras ciencias sociales,18 ciencias de la educación, en el caso que nos ocupa.

Este tipo de alianza académica entre la historia y la didáctica de la historia, entre la investigación y la enseñanza, es aplicable como índice de calidad en cualquier otra materia de estudio. El neoconstructivismo anglosajón no pro-mueve, sin embargo, estas interdisciplinariedades cercanas. Las ciencias de la educación pasaron de inspirarse en la psicología, primero conductista, después cognitiva, a seguir los códigos pedagógicos del mundo de la empresa, extraídos de una rama del cognitivismo,19 asumiendo como principio rector de cualquier aprendizaje la adquisición de competencias. Planteado de manera fundamenta-lista esta versión del nuevo paradigma orientada al mercado laboral, cualquiera que sea la temática docente, obstaculiza la búsqueda de cierta coherencia entre la investigación y la docencia, los contenidos y los métodos de aprendizaje, cuestión capital en aquellas disciplinas – como la historia – más alejadas de los estudios laborales, técnicos y empresariales (business school).

Desde las comunidades académicas vecinas debemos apostar por convergen-cias transversales que sirvan de contrapunto a aquellas directrices tecnocráticas y economicistas que puedan lesionar el presente y el futuro de nuestra disciplina

15 Véase La historia mixta como historia global, disponible en http://www.h-debate.com/cbarros/spanish/articulos/historia_medieval/mixta.htm.16 La pertenencia de un investigador a dos comunidades académicas distintas enriquece a ambas, debería ser una práctica habitual y lo será en la medida en que superemos el gremialismo que genera la fragmentación académica, especialmente arraigado en España, todo hay que decirlo.17 Punto IV del Manifiesto historiográfico de Historia a Debate, disponible en portugués del Brasil en http://www.h-debate.com/Spanish/manifiesto/manifiesto_had.htm.18 De intradisciplinariedad para superar el conocimiento histórico fraccionado poco o nada se dice en el proyecto Tuning, cuyas querencias posmodernas se manifiestan de nuevo al proponer la crítica literaria, y la historia del lenguaje, como la primera habilidad que los alumnos universitarios de historia han de importar de “otras ciencias humanas” por delante de otras ramas de la historia, de la sociología o de la antropología, véase el Anexo 2 del documento de la Comisión de Historia. Puntos comunes de referencia para los cursos y currículos de Historia, disponible en http://www.relint.deusto.es/TUNINGProject/spanish/doc2_fase1.asp.19 Véase la referencia de la nota 3.

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histórica, y de la educación en general. Es menester, a tal fin, superar prejuicios y suspicacias existentes entre historiadores y “didactas”, docentes universitarios y docentes medios etc., fruto de evoluciones separadas en el ámbito disciplinar e institucional, pese a una formación inicial común en historia que toca potenciar, sobrepasando la noción tradicional de la comunidad académica de historiadores y profesores de historia, como algo restringida a los investigadores y docentes vinculados a las licenciaturas universitarias de historia.

Estamos planteando por lo tanto una coalición entre iguales, lo que resulta en general más hacedero entre profesores universitarios, aun perteneciendo a áreas, licenciaturas y departamentos distintos, que con los colegas de enseñanzas medias,20 pese a ser los más implicados en la problemática didáctica, por obli-gación y vocación (menos frecuente en la enseñanza superior). Relaciones, por lo tanto, horizontales e bilaterales tanto académica como epistemológicamente. No se trata de aplicar, sin más, como en los años 60 y 70, un “modelo historio-gráfico” surgido de la reflexión o la investigación histórica a la enseñanza como de intercambiar avances y dificultades en un proceso conjunto (sujeto a debate permanente) de reconstrucción de un nuevo paradigma que busque relacionar la historia con su enseñanza.21 Todos escribimos, enseñamos y divulgamos la historia, en diferentes dosis, enfoques y estilos. Entendemos la historia como una “ciencia con sujeto”:22 social (agentes del pasado y del presente), historiográfico (historiadores) y docente (profesores). El principal sujeto docente de la historia está, sin duda, en la educación secundaria: hay que incluir al profesorado medio en la comunidad de historiadores por medio de aquellos sectores más vinculados a la innovación docente, la reflexión historiográfica y/o la investigación histórica, como ya está ocurriendo en la red temática Historia a Debate.

20 Véase la conclusión nº 8 del III Congreso de la red temática Historia a Debate sobre la urgencia de “ampliar la comunidad académica de historiadores a la investigación y la enseñanza de la historia no universitaria” disponible en www.h-debate.com/cbarros/spanish/articulos/nuevo_paradigma/conclusiones_3had/primeras%20conclusiones.htm.21 En nuestra intervención boloñesa (véase la nota 10) preconizamos lugares de encuentro, debate y consenso, como Historia a Debate y este Taula de la Història en que estamos, más allá de la especialidad y del estatus académico, demandando de los docentes medios la función de mediado-res entre la sociedad civil y la historiografía, pero también opiniones críticas y alternativas sobre la historia que se debe investigar en la universidad, y sus enfoques. El nuevo paradigma del la investigación histórica. Storiografia e insegnamento della storia: è possibile una nuova alleanza? <http://www.h-debate.com/Spanish/presentaciones/lugares/bologna.htm>.22 Punto I del Manifiesto historiográfico de Historia a Debate.

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Ahora bien, abarcar de manera concurrente la investigación y la docencia, las enseñanzas superior y media, entraña considerar también sus diferencias: (1) la mayor cercanía del sujeto docente a la ciudadanía, especialmente en la enseñanza secundaria; y, en consecuencia, (2) un mayor control administrativo del conocimiento histórico que se enseña y de su metodología de aprendizaje.23 A diferencia de la investigación histórica,24 el contenido de los planes de estudio de las asignaturas de historia, y su didáctica, están por razones políticas y cul-turales determinadas por ley en la enseñanza secundaria, y en menor medida en la enseñanza superior.25 Es por ello que la alianza historia investigada / historia enseñada que planteamos, en el marco de los nuevos paradigmas en construcción, tanto en historia como en educación, habría de permitir una mayor autonomía de la sociedad académica frente a la sociedad política y sus intereses, no siempre eficientes y a veces no coincidentes además con las mayorías sociales y el futuro de la historia. Movilización y convergencia académica inter e intradisciplinar que ha de situar asimismo entre sus objetivos, una participación más transparente y democrática del profesorado en la toma pública de decisiones que afectan a nuestro trabajo y función social.

el papel público de la historiaLa transición histórica, global y civilizatoria, que estamos viviendo coloca a

la historia profesional en una tesitura paradójica por razones externas (cambios

23 Por su dimensión política, son más conocidas las batallas por los contenidos de la historia que se enseña, pero non son menos importantes las relativas a la forma de enseñar, donde también se implica para bien y para mal la administración, sobre todo en la educación obligatoria; no hay más que ver la rapidez con que el Gobierno de España aplicó a la LOE la educación por com-petencias “recomendada” por la Unión Europea, y la libertad que van a tener los Estados para decidir contenidos y competencias en el proceso de convergencia de la enseñanza universitaria (véanse las notas 5 y 25). 24 La investigación en la universidad está más sujeta a la libertad de cátedra, si bien resulta eficaz-mente condicionada, por la vía de las subvenciones, por una radical discriminación (ante todo en la Unión Europea) entre líneas prioritarias y no prioritarias (donde suele estar la historia), y por un anticuado sistema de evaluación de proyectos (no sólo España) que contradice, con harta frecuencia, los criterios legales de objetividad e impulso de la investigación innovadora (no sólo en Historia).25 La Comisión de Historia del proyecto europeo Tunning deja en manos de los Estados miembros lo fundamental de los currícula universitarios, reduciendo al mínimo las consideraciones comunes de tipo general (véase la nota 80), con lo que se va a perder una buena ocasión, entre otras cosas, de en-señar históricamente a los ciudadanos de Europa el carácter plural de la identidades colectivas, algo vital para que se desarrolle una identidad europea (véase también nota 108) por encima de los Es-tados-nación que seguirán naturalmente centrando los planes de estudio en sus historias nacionales.

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en la conexión historia-sociedad) e internas (crisis de paradigmas), íntimamente relacionadas, de forma que la prolongación de lo segundo obstaculiza que la historia académica lleve la iniciativa cara a la sociedad, en temas que le son propios, lo que si se hizo en la transición del siglo XIX al siglo XX, y poste-riormente en los cruciales años 60 y 70.26

La aceleración de la historia que siguió a los cambios 1989-1991 en la Europa del Este, dando al traste con el “fin de la historia” proclamando oportu-namente por los neocons norteamericanos, produjo un “retorno de la historia”27 con dos rasgos complementarios y sólo aparentemente contradictorios: auge de los “usos públicos de la historia” y, simultáneamente, el regreso al positivismo decimonónico de una parte de la academia historiográfica, lo que agudiza el corporativismo de los historiadores, aislando a nuestra disciplina y entorpecien-do que pueda responder, adecuadamente, a las nuevas demandas históricas e historiográficas de la sociedad.

Como es sabido, el interés político por la historia es propio de las coyunturas de grandes cambios, resultando acrecentado en este momento por la dimensión global de las mutaciones, en su doble sentido de mundial y total (afecta a todos los ámbitos de la vida), transformando a los medios de comunicación y edición en nuevos sujetos políticos de la historia, junto con las viejas instituciones y los viejos y nuevos movimientos sociales. La reacción de las comunidades de historiadores, ante este retorno público de la historia, tiene su complejidad: 1) aprovechamiento individual – aunque minoritario – de las nuevas oportunidades de publicación y presencia en los medios, subvenciones, premios etc.; previa adaptación en ocasiones a los gustos historiográficos de instituciones y merca-dos político-culturales; 2) rechazo puntual y gremial de la intromisión de los agentes políticos, económicos y sociales en el “terreno” de los historiadores, que empuja a historiadores de oficio hacia las añejas creencias positivistas de que “la historia es conocer el pasado tal como fue” (Ranke) o que “la historia se hace con documentos” (Langlois y Seignobos), que imaginábamos (está claro que erróneamente) superadas gracias a la escuela de Annales y la historiografía

26 En las dos revoluciones científicas que hubieran en nuestra disciplina, una en el siglo XIX y otra en el siglo XX, nos beneficiamos de la existencia de unos paradigmas ilustrados que encuadraban las ciencias sociales, el positivismo y el marxismo, pero la transición del silgo XX al siglo XXI todavía no ha generado algo parecido.27 El retorno de la historia. Historia a debate. I. Cambio de siglo. Santiago, 2000, p. 153-173 <www.h-debate.com/cbarros/spanish/articulos/nuevo_paradigma/retornohistoria.htm>.

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marxista; 3) aprovechamiento colectivo del interés renovado por la historia y los nuevos medios para crear nuevas experiencias y tendencias historiográficas que respondan a las necesidades históricas actuales de tipo cultural, social y político, es el caso de corrientes como Historia a Debate, la “idea histórica de España” y la recuperación de la memoria histórica,28 o las norteamericanas Public History29 y Historians against the War.30

Peligroso reduccionismo de la historia profesional a la empiria que deja terreno libre, al presente, a los poderes interesados en escribir la historia pasada, presente y futura, pretendiendo reubicar a los historiadores como simples técni-cos especialistas en archivos y fuentes, académicos enclaustrados, proveedores de datos históricos pero no pensadores de la historia, lo que correspondería en determinados temas a políticos y otros productores de ideología. Aceptar esta “división del trabajo” es el mayor error que la historia investigada y enseñada puede cometer, ¿cómo vamos a enseñar a los alumnos a “pensar la historia” si nosotros no lo practicamos? Cuando se dice que “la historia hay que dejarla a los historiadores”, se nos está ofreciendo un regalo envenenado, porque tal cosa no es posible31 ni deseable,32 suele esgrimirse además para encubrir segundas intenciones.33 Recordemos que el supuesto monopolio del historiador académico sobre la historia escrita, su neutralidad per se y la no interferencia, se planteó en el siglo XIX cuando los historiadores están fundamentalmente comprometidos con los grandes proyectos nacionales, empezando por el fundador el positivismo historiográfico, Leopold von Ranke. Pero en el último siglo la historiografía se ha hecho más autónoma, crítica y plural, también en sus relaciones con la sociedad y las instituciones, ¿a quién le puede beneficiar una marcha atrás?

28 Véase la conclusión nº 6 del III Congreso de la red temática Historia a Debate sobre “el dina-mismo y la autonomía de la historiografía española en la última década”, disponible en www.h-debate.com/cbarros/spanish/articulos/nuevo_paradigma/conclusiones_3had/primeras%20conclusiones.htm.29 Véase la nota 35.30 Más información en http://www.historiansagainstwar.org.31 Cuando una cuestión histórica está de actualidad, sobran sujetos no académicos que quieren intervenir en su interpretación y escritura, cuando no llevar la iniciativa de su puesta en valor, como en el caso citado de la “idea histórica de España” entre 1996 y 2004.32 El presentismo de la sociedad de la información hace que el futuro de la historia dependa más que nunca de su presente utilidad social y política.33 Lo de que “hay que dejar la historia a los historiadores” ha sido un argumento repetido para rebajar o impedir, en el Parlamento español, una inconclusa “ley de memoria histórica”, que tendría por finalidad restablecer la dignidad de los republicanos desaparecidos en la guerra civil y su causa democrática, el antecedente más reciente de la democracia actual.

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Sin renunciar al rigor y la honestidad en el uso de las fuentes que distingue el historiador de oficio, el interés de la historia como disciplina34 debería incen-tivarnos a tomar más la iniciativa de su uso público35 cuando las circunstancias, el tema o el enfoque lo requieran, en competencia con otros cultivadores de la historia. Aceptamos como una bendición para nuestra disciplina el renovado gusto público por el pasado,36 mejor dicho, por determinados aspectos y en-foques del pasado, desde diversos y a veces contrapuestos medios políticos e institucionales, mediáticos y sociales, independientemente de las motivaciones y el grado de rigor – o de mitificación – de dichos acercamientos. Abandonando actitudes que puede sentirse como prepotentes, sin dejar de lado las aportacio-nes extra-académicas sobre la historia que nos han de enseñar mucho sobre la relación del historiador y su contexto, la recepción actual de los hechos pasados, la interacción cambiante entre pasado y presente, pasado y futuro, lo que hace de la historia algo vivo, en suma. Sin historiadores en la arena pública,37 la alternativa será la banalización de la historia como un producto más del debate ideológico y la sociedad de consumo.38

34 El papel subalterno de los historiadores en el “debate de las humanidades” (1996-1997) auspiciado por el primer Gobierno del Partido Popular, explica también que el interés público en favor de la historia, y otras humanidades, no supusiera finalmente más horas y profesores de historia en los institutos ni más medios para la investigación de la historia en las universidades. 35 En la academia norteamericana se ha desarrollado, desde los años 80, una public history <http://www.ncph.org/index.html> entendida como historia aplicada a una audiencia no académica, dedicada a la gestión y difusión del patrimonio y de la memoria colectiva, la difusión del conoci-miento histórico a través de TV y medios digitales, trabajando desde instituciones académicas y no académicas (universidades, archivos, museos, asociaciones, instituciones culturales y políticas, media), promoviendo la responsabilidad pública de los historiadores y abriendo nuevas salidas profesionales para los licenciados; lo mejor de este planteamiento historiográfico es su carácter colectivo y el énfasis que pone en hacer accesible la información histórica al público en general; se trata de actividades que se hacen asimismo entre nosotros pero no tienen, desde luego, el mismo grado de coordinación y valoración, dentro y fuera de la universidad; echamos de menos, en cualquier caso, en esta nueva corriente historiográfica anglosajona referencias claras sobre: 1) los valores historiográficos, éticos y públicos que guían la public history; 2) las consecuencias teóricas que implica para la redefinición de lo qué es un historiador, esta (positiva) ampliación del oficio que parecen proponer los historian public; 3) las relaciones historia académica / historia pública, entre los que investigan la historia y los que aplican, gestionan y difunden la historia, entre la historia y la política de la historia, en suma. 36 El apogeo en España de las revistas de divulgación histórica, con un nivel aceptable y alta difusión, es otro síntoma del “retorno de la historia” y también consecuencia del peso público de las últimas tendencias vinculadas a los actores políticos-sociales, especialmente la “idea histórica de España”.37 Lo que implica cambios de actitud e sensibilidad, incluso de forma de escribir la historia, no siempre fáciles para un historiador de formación exclusivamente académica y especializada.38 Ya está sucediendo, véase si no el bajísimo nivel historiográfico de los libros de historia que

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El elemento decisivo del espacio público de la historia, son las escuelas: en ningún otro lugar es más conveniente que el profesor de historia actúe como un historiador público, comprometido con la tarea de hacer de los alumnos parte activa del sujeto de la historia que se aprende y que se hace. Para ello es preciso reclamar motu propio el carácter público de la historia que investiga-mos y enseñamos en las instituciones públicas del Estado. Hacemos nuestra la reivindicación del “valor social y educativo del conocimiento histórico” del Manifiesto del Seminario Internacional de Didáctica de la Historia (Barcelona, 10/7/2007),39 y la demanda primordial de que la “historia sea una materia que ocupe un lugar importante en el currículum educativo general, desde el inicio de la educación primaria hasta la universidad”. Materia histórica que, a su vez, si queremos predicar con el ejemplo, ha de ser consecuencia de una historiografía y una pedagogía, de una investigación y una difusión de la historia basada en valores universales de “justicia e igualdad, paz y democracia”,40 lo que nos obliga a salir de los cuarteles académicos de invierno, debatir y, cuando sea preciso, tomar partido.

el disputado papel del profesorNi tanto ni tan poco: ni el profesor autoritario de la escuela tradicional,

vinculado a la enseñanza de la historia basada en la memorización de grandes nombres, fechas y batallas, “clases magistrales” y alumnos pasivos; ni el profesor como el simple facilitador41 y coordinador del autoaprendizaje de los alumnos de la escuela posmoderna, que proclama el “todo vale” en cuanto a historia en-señada, incluyendo el contenido corrientemente tradicional42 de la historia oficial correspondiente. Sostenemos que el papel activo del alumno es complementario

tratan de reivindicar, 80 años después, la interpretación franquista de la II República y la guerra civil españolas.39 Véase http://www.taulahistoria.org/castellano/.40 Véase el punto XVI sobre la actualización del concepto “compromiso del historiador” en el Manifiesto historiográfico de Historia a Debate.41 En Estados Unidos y América Latina, existe abundante bibliografía y recursos en Internet sobre el facilitator como figura esencial del new management, también en el sistema educativo, con sus pautas de comportamiento “neutro” etc., es considerada una nueva profesión y existe una asociación internacional desde 1994. 42 Una forma reciente de tradicionalismo educativo es el “enciclopedismo”, una inflación de la materia docente que, pretendiendo abarcar, por ejemplo, “toda la historia de España”, no deja tiempo para las innovaciones docentes (ni para la historia inmediata), véase el Manifiesto de los profesores valencianos de 2001 (nota 7).

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con la función docente y social del profesor,43 pero no puede reemplazarla, como se pretende, ni siquiera con la valiosa ayuda de la red. Alumnos y maestros ac-tivos, y comprometidos, son unos y otros imprescindibles, al mismo tiempo, si lo que se quiere son unas comunidades de aprendizaje realmente inteligentes.44 Rebajar el profesor de historia a monitor de clases prácticas, testigo mudo sobre todo de aquello que implique interpretación,45 tiene sus consecuencias perversas: abrir la puerta a un mayor control administrativo de una materia tan esencial para formación de los ciudadanos,46 no se trata de una propuesta políticamente inocente.47 Aunque lo peor es que la “comunidad de aprendizaje” entendida a la moda anarco-conservadora conduce a un fracaso pedagógico48 que beneficia a las tendencias restauradoras de la escuela autoritaria.49

Otra cosa es reubicar el papel del profesor en un contexto de mayor actividad del alumno, donde aprende por su propia experiencia y el debate colectivo, rol que variará según el formato de cada actividad: trabajos colectivos y prácticos, clases teóricas, tutorías etc. Una cosa está clara, las lecciones, y por lo tanto el

43 El realce del valor social y educativo de la historia que reivindicábamos en el apartado anterior del texto pasa necesariamente por la potenciación y dignificación social, educativa y laboral de los profesores de historia.44 Según el Diccionario de la Real Academia Española, “inteligencia” es “capacidad de com-prender, conocimiento, capacidad de resolver problemas, habilidad, destreza, experiencia…”; atributos que exigen un sistema docente participativo pero articulado por profesores activos: es una perogrullada pero hay que decirlo. 45 En febrero de 2005 participamos en el I Encuentro Internacional sobre la docencia de la historia en el bachillerato, organizado por la Secretaria de Docencia de la Universidad Autónoma del Estado de México; en una sugerente simulación de un “aula inteligente” – constructivista, según las normas – formada por los propios maestros, los coordinadores entendían que debían solamente organizar la mesa, facilitar las intervenciones de los que hacían de alumnos y guardarse su opinión.46 PAGÈS, Joan, Un itinerario por el mundo de las competencias en ciencias sociales, geografía e historia a través de los distintos currículos, p. 30. 47 El perfil de los profesores de historia, en institutos de enseñanza media (y de titularidad públi-ca, en las privadas no suele haber historia, salvo las creadas por los jesuitas), es y sigue siendo mayoritariamente progresista, como todos sabemos, con lo que la minusvaloración “desde arriba” del papel del profesor tiene una indudable dimensión político-ideológica. 48 La resistencia del profesor a una educación por competencias, impuesta administrativamente, se puede agrandar con las propuestas excesivas, faltas de realismo y espíritu de síntesis, convirtiendo en papel mojado las “nuevas directrices”, pasó algo así con reformas anteriores.49 Del mismo modo que volvió, en los años 80, la cronología después del “fracaso” de la enseñanza estructuralista de la historia, cada vez encontramos más en los planes de estudio una historia narra-tiva de “grandes acontecimientos” y “grandes figuras”, al tiempo que se alzan voces conservadoras a favor del regreso del profesor-rey: la propuesta Nicolas Sarkozy, durante su campaña electoral para la Presidencia de Francia, de que los alumnos se levanten cuando el profesor entra en el aula, entre otras lindezas, es todo un signo.

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programar formal, han de ocupar menos tiempo para dejar espacio para las acti-vidades colaborativas de los alumnos, donde aprenden a aprender, distribuyendo la temática (necesariamente selectiva) entre ambos tipos de actividad docente.

Veremos en el próximo apartado, con todo, como este papel activo de los alumnos ha sido preocupación común de todos los movimientos de renovación didáctica-pedagógica que nos han precedido. La obtención de resultados co-lectivos exige la acción del profesor, en todo momento, y la predisposición y motivación de los alumnos, condicionados ambos por la tradición pedagógica de cada nivel educativo, institución y país. En la encuesta50 hecha acerca del proceso de Bolonia, se hallaron dos modelos didácticos, el latino (Francia, España) y el anglosajón (Inglaterra, Irlanda), sobre los que giran el resto, inclinándose Italia y Alemania hacia el eje latino. En el caso inglés, se exige a los estudiantes que se organizen en “grupos autónomos de investigación en los que ellos mismos deben definir sus temas, encontrar los materiales necesarios para abordarlos y preparar informes”, mientras que en la Europa sureña el interés profesoral se concentra en definir los contenidos de las asignaturas,51 con cierto desinterés por la metodología docente, lo que muestra la pervivencia del sistema tradicional de contenidos transmitidos por el profesor y el estudio por el manual, que resulta reforzado por oposición si la alternativa es el profesor como facilitador.

En esto como en tantas cosas, el paradigma educativo es realmente nuevo si encuentra una síntesis52 que haga posible el consenso, impulsando a la vez el papel de los alumnos y del profesor, lo que se concreta en la necesidad de combinar inteligentemente: saberes y competencias en los currículos y la prác-tica docente, por un lado; competencias y valores, por el otro. No es esto lo que persiguen las directrices administrativas de influencia anglosajona,53 que propagan la OCDE y la Unión Europea, cuando hablan de pasar del profesor al facilitador, de los conocimientos a las competencias, tratando ambos conceptos

50 Proyecto Tuning. Grupo del área temática de Historia. Puntos comunes de referencia para los cursos y currículos de Historia, p. 171< http://www.relint.deusto.es/TUNINGProject/spanish/doc2_fase1.asp>.51 De ahí el exceso enciclopedista que comentábamos en la nota 42.52 Todavía se confunde síntesis con eclecticismo o, lo que es peor, con “tercera vía” o middle point, ignorando que todo es síntesis y nada se produce ex novo.53 El debate sobre el nuevo paradigma educativo es, en buena medida, un debate sobre tradiciones nacionales y geoestratégicas de tipo pedagógico-didáctico, influidas por tradiciones y realidades diversas de tipo filosófico, político e ideológico.

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como excluyentes, y restringiendo al mínimo54 los valores éticos y profesionales explícitos que han de sustentar la nueva forma de enseñar.

competencias y tendenciasNo negamos que la idea laboralista55 de que la educación ha de dotar a los

alumnos, en los diversos niveles de enseñanza, de competencias, habilidades o destrezas, puede suponer un avance didáctico siempre y cuando se articule coherentemente con las propuestas y enfoques del conocimiento a transmitir, y los valores de referencia, lo cual exige una rectificación a fondo de la versión anglosajona, que resuelva las contradicciones de fondo,56 de un new paradigm admitido acríticamente por las administraciones,57 con la subsiguiente infrava-loración, más o menos interesada, de las propias tradiciones renovadoras.

La presión política y económica a favor de una educación por competencias, pensada por sus más altos promotores para adecuar todavía más la universidad (más allá de los estudios económico-empresariales) y las enseñanzas medias (más allá de la formación profesional) al mercado de trabajo,58 puede coadyu-var paradójicamente al viejo empeño innovador de enseñar críticamente a los alumnos cómo funcionan las cosas, si conjuremos la intencionalidad tecnocrática

54 Atrapados entre las directrices administrativas para imponer en la universidad el “aprendizaje de competencias”, a partir de la experiencia inglesa, y el interés – que ellos reconocen como unánime en Europa – sobre “la necesidad de definir las razones éticas y heurísticas para el estudio, aprendizaje y enseñanza de la historia”, el Grupo de Historia del proyecto Tuning ha incluido, finalmente, en sus sugerencias y propuestas, como objetivo general del estudio de la historia, “la adquisición de una visión racional y crítica del pasado con el objeto de estar capacitado [el alumno] para comprender [les falta decir ‘críticamente’] el presente y para ejercer de forma cabal la ciudadanía”; versión mo-derada (falta curiosamente lo de “construir el futuro”) de las tradiciones histórico-políticas europeas que han engendrado, y difundido por el mundo, la idea del progreso y el concepto de ciudadanía.55 La enseñanza directa para el mercado laboral se ha centrado siempre en capacitar al alumno haciéndole competente en habilidades prácticas para al trabajo manual, administrativo etc.; al pretenderse ahora su generalización a todo tipo de enseñanza, las destrezas manuales y técnicas pasan a ser más intelectuales, conservando un “pecado original” productivista que tiene su parte positiva como el trabajo con fuentes en historia. 56 Hipermodernista en lo tocante a preparación competencial y eficiente de los futuros trabajadores o emprendedores; posmodernista por dejación de los valores ilustrados y legitimación del “todo vale”. 57 No siempre son administraciones de matiz conservador y neoliberal que saben lo que hacen, muchas veces se trata de seguir la moda, ignorando la filosofía subyacente, la estrechez de miras y los efectos potencialmente perversos de una educación en competencias puras.58 Afortunadamente la difusión y aplicación de la implementación de la “educación por competen-cias” se está dando en un momento en que el fundamentalismo del mercado está de capa caída, ¿será por eso que tiene que soportar la educación pública, vital para nuestro futuro, estos coletazos?

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de sesgo neoliberal, contradictoria con los valores universales y deontológicos de una nueva Ilustración global,59 destinada en opinión de muchos a orientar la docencia de las ciencias humanas y sociales en el nuevo siglo. De momento la impuesta educación por competencias, y otras innovaciones recientes en metodología docente, son intencionadamente extrañas, señaladamente en la enseñanza media,60 a los debates temáticos y organizativos sobre los currículos, dejando por omisión – pero no conscientemente – a las posiciones tradicionales y las autoridades competentes los contenidos de la enseñanza y la distribución del tiempo escolar.61

Un ejemplo concreto: las ocho “competencias básicas para el aprendizaje” que según la “recomendación” de la Comisión y el Parlamento europeos han de orientar en lo educativo a los Estados miembros, y que el gobierno español ya introdujo en la Ley Orgánica de Educación (media) que acaba justamente de entrar en vigor en algunas comunidades autónomas: “comunicación en la lengua materna (1); comunicación en lenguas extranjeras (2); competencia matemática y competencias básicas en ciencia y tecnología (3); competencia digital (4); aprender a aprender (5); competencias interpersonales, intercultu-rales y sociales, y competencia cívica (6); espíritu de empresa (7), y expresión cultural (8)”.62 Nada que objetar como principios psicopedagógicos siempre útiles, si acaso que son un poco vagos de tan generales. El problema es todo lo que excluye (contenidos), oculta (valores mercantiles) y promueve (facilitación) esta entronización de las competencias como panacea educativa.

Algunos contenidos aparecen camuflados como objeto de las competencias (lenguas, matemáticas, tecnología, digital), por razones instrumentales de tipo laboral competitivo; pero nada se dice de “competencias” historiográficas, filo-sóficas, geográficas o sociológicas, por ejemplo. Los valores ni se mencionan en el núcleo duro de la “recomendación” didáctico-pedagógica, quitando dos casos:

59 ¿Qué sentido tiene la historia como disciplina académica y ciencia social, sin la reconstrucción de la idea de progreso, y por lo tanto de la relación pasado / presente / futuro, en el nuevo contexto de la globalización? 60 En cambio, el European Credit Transfer System (ECTS) del proceso de Bolonia supone un cambio importante del empleo del tiempo en la Universidad, reduciendo en principio las clases magistrales, falta ver con todo su aplicación.61 Es una queja general, y justa, entre los profesores de medias que la longitud enciclopédica de la materia a impartir no deja tiempo para las clases interactivas, el trabajo con fuentes, Internet o la historia fuera del aula, véase la nota 42.62 Véase el documento completo (10/11/2005) en europa.eu.int/eur-lex/lex/LexUriServ/site/es/com/2005/com2005_0548es01.pdf, y también la nota 5.

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el “espíritu de empresa”, algo nuevo en instituciones públicas como instrucción básica sobre la enseñanza que han de recibir todos los niños y niñas en edad escolar; y la “competencia cívica”, a modo de coletilla de las “competencias interpersonales” y planteada más como destreza que como valor democrático, con la idea de asegurar que el alumno/a aprenda en la escuela el sistema político en el que deberá participar de mayor.

Por suerte, la práctica ya está abriendo brechas en el bunker de la ortodoxia educativo-competencial: (1) en la difusión y aplicación de las competencias básicas de la UE, no suelen aparecer alusiones a algo tan descabellado como preparar básicamente a todos los alumnos para ser empresarios; y (2) la “com-petencia cívica” reconvertida en “educación para la ciudadanía y los derechos humanos”, más vinculada a valores que a un pragmatismo político, sabedores como somos que la participación ciudadana es, ante todo, cuestión de derechos y convicciones ético-políticas. Aún así, la reconducción del proceso global de reforma educativa en curso no va a ser fácil ni indolora, y no debería concluir el debate, que recién está en sus comienzos y durará años, hasta que se reemplace el nuevo paradigma de las competencias por el nuevo paradigma de los saberes, los valores y las competencias, donde cada uno de estos tres criterios educativos valga tanto como el otro, combinándose entre ellos en dosis dependientes del tipo de materia a enseñar y sus contextos. Mezcla química que supieron aplicar ya en su tiempo las corrientes renovadoras, complementándose entre sí, en el marco del paradigma común de los profesores del siglo XX.

Precisamos, pues, retomar críticamente los intentos reformadores de la escuela a lo largo del pasado siglo, que fueron capaces de fusionar – o lo in-tentaron al menos – el método de aprendizaje, con la historia de la didáctica, la teoría pedagógica y la interacción social: primera enseñanza de los años 60-70 que urge evocar. Recuperación de la memoria didáctica y pedagógica que nos obliga a calibrar éxitos, fracasos63 y por encima de todo el contexto actual, muy

63 El relativo fracaso de los constructivistas fue tal vez centrarse en la psicología como inspiración y en la metodología como obsesión, relegando el resto; el marxismo pedagógico, cuyas máximas expresiones se dieron en América Latina y la Unión Soviética, resultó afectado por la crisis general del marxismo y la caída del Muro, precisando ahora sus aportes de compromiso y determinación social un desarrollo más complejo y actual; ahora bien, gran parte del fracaso de las reformas educativas, no fueron tanto culpa de las tendencias pedagógicas y/o historiográficas como de las políticas que seleccionaron y aplicaron contenidos y métodos burocráticamente, y así lo juzga la sociedad, incluidos docentes y discentes, y así juzgarán en el futuro.

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distinto a 30 o 40 años atrás, marcado por una transición histórica inédita, la revolución de las comunicaciones y demás globalizaciones en marcha.

Las tendencias pedagógicas emergentes de aquellos años lograron, con su convergencia, algo que ahora echamos en falta, y ya comentamos: innovar los métodos y los contenidos a la vez,64 la práctica y la teoría, al tiempo que la ma-yor parte de sus protagonistas vivieron su época como académicos, profesores y ciudadanos comprometidos con valores de progreso, ocupando algunos65 puestos de gestión pública de la educación (Piaget, Bruner, Freire)66 con el afán de llevar a los hechos sus ideas reformadoras. Innovadores que sabían que se enfrentaban a una enseñanza tradicional, tanto en la técnica de aprender como en el saber trasmitido, sostenidas más o menos directamente por ideologías y poderes de índole conservadora. Hoy las coordenadas son más complicadas, multidimensionales, pero no por eso la herencia recibida, que vamos a repasar someramente,67 es menos ineludible.

Es obligado comenzar por la hoy olvidada, y fundacional, New School del norteamericano John Dewey (1859-1952), de cierta influencia hasta la I Guerra Mundial, que predicaba, desde una filosofía ilustrada (el construc-tivismo kantiano), una educación más práctica que atendiese al interés del propio alumno, actuando el profesor como orientador, al tiempo que se oponía de manera ejemplar – incluso para hoy – a la escuela tradicional en cuanto a los fundamentos de su discurso y militaba socialmente en favor de las causas progresistas del momento.

La pedagogía de la liberación del brasileño Paulo Freire (1929-1997), socialista cristiano y humanista, próximo al marxismo, perseguido por los regimenes militares, abarcaba en su planteamiento renovador tanto la teoría como el método, denunciaba que no existía una pedagogía neutra y proponía una educación popular que tuviera por objeto crear una conciencia política entre

64 En la medida en que no se logró en aquellos (véase la nota 73), necesitamos ahora volver de nuevo, como en una espiral, a la síntesis equilibrada.65 Otros iniciaron en la clandestinidad su lucha democrática por una nueva escuela como el movi-miento de renovación pedagógica Rosa Sensat de Barcelona, todavía activo (véase la nota 111).66 Políticos y partidos buscaban, y buscan, académicos de las ciencias de la educación, para legislar y gestionar tan importante sector para cualquier Estado, poniendo a prueba reformas (y contrar-reformas), generando de un modo u otro información valiosa sobre la relación entre política y pedagogía, modelos de sociedad y modelos didácticos, ineludible para situar nuestros debates, propuestas y reflexiones en su preciso contexto. 67 Repaso necesario para los lectores que no estén especializados en didáctica o pedagogía.

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los oprimidos, buscando – igual que Dewey – un educando activo (respetando su autonomía y saberes, de los que habría de aprender el propio educador) en base al diálogo permanente entre profesor y alumnos (pedagogía de la pregunta).

La psicopedagogía cognitiva del psicólogo evolutivo y epistemólogo sui-zo Jean Piaget (1896-1980) se planteaba el interrogante de cómo los sujetos conocen, en sus diferentes estadios, e insistía asimismo en el papel activo del alumno, desechando la coerción como “el peor de los métodos pedagógicos”, que proponía sustituir por el “ejemplo”, así como cambiar los manuales por obras de referencia y educar de manera experimental, “probando uno mismo”. Constructivismo psicológico, influido por Dewey, que sentenciaba: “Una verdad aprendida no es más que una verdad a medias mientras que la verdad entera debe ser reconquistada, reconstruida o redescubierta por el propio alumno”.68

La teoría constructivista del aprendizaje del psicólogo estadounidense Jero-me Bruner (1915-actualidad) precisa, siguiendo a Piaget, las estrategias cogniti-vas y de formación de conceptos en los alumnos, porfiando en el aprendizaje por descubrimiento, extrapolación y llenado de vacíos por parte del alumno, diálogo activo profesor-alumnos y currículo espiral, volviendo progresivamente sobre los contenidos, explicando estructuras antes que hechos y actores. Animador de la reforma educativa en los EE.UU. y asesor del presidente Kennedy, en un reciente viaje a Madrid69 manifestó soberanamente su fidelidad a un construc-tivismo ilustrado y liberal,70 nada que ver con el desencanto posmoderno, se mostró como un optimista71 (a los 92 años, lo que tiene más mérito) que no elude el compromiso.72 Bruner apuesta de entrada, como era de esperar, por la com-

68 MUNARI, Alberto, Jean Piaget (1896-1980). Perspectivas: revista trimestral de educación comparada. París: Unesco, vol. XXIV, nº 1-2, 1994, p. 315-332 <www.ibe.unesco.org/publica-tions/ThinkersPdf/piagets.PDF>.69 Donde aceptó asesorar en temas educativos al candidato socialista a la alcaldía de Madrid, prestándose a una entrevista en El País el 9 de abril de 2007 <http://www.elpais.com/articulo/educacion/Hay/evitar/alumnos/aburran/escuelas/elpepuedu/20070409elpepiedu_5/Tes>.70 “Enseñar las distintas maneras de pensar y los distintos mundos, distintas maneras”; “todos los hombres son creados iguales… El Estado no puede decirte en que creer”, ídem.71 En contra de la opinión pesimista de muchos profesores sobre la educación en España, dice: “No estoy de acuerdo. Todo ha mejorado mucho. Se habla de ello en otros países. Sólo hay que volver un poco la vista atrás para comprenderlo”; y también contradice eso de que los alumnos españoles estén desmotivados: “los niños españoles tienen una enorme curiosidad… El problema es que… se aburren”, ídem.72 Sobre la posición de la Iglesia española de que los alumnos aprendan obligatoriamente religión: “Yo tengo una mentalidad muy anglosajona, creo en la separación entre la iglesia y el estado… Cada uno debe elegir su propio Dios”; apoya la escuela para emigrantes, integrar la cultura lo-

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binación de competencias y conocimiento73 pero le interesa más, como a todos los constructivistas (herencia que la pedagogía de las competencias extremó al máximo) los métodos del aprendizaje que los contenidos de la enseñanza.74 Inclinación suprema por las técnicas de enseñanza75 fundamentada, justo es aclararlo, en criterios de eficacia pedagógica y no en la política economicista de sujetar la educación al mercado.

La Epistemología social de la educación de Lev Vigotsky (1896-1934), psicólogo bielorruso, marxista no ortodoxo, introduce el contexto social76 en el proceso educativo (con críticas a Piaget), difundiéndose en Occidente en los 60 y 70, e influyendo en Bruner (traductor de su obra principal al inglés) y otros modernizadores de la educación, tanto marxistas como constructivistas. Apoya el aprendizaje colectivo pero destaca aún más el papel de los mediadores, familia y sobre todo profesores, destinados a guiar al niño para que pueda desarrollar capacidades cognitivas.

En conclusión, como reacción a la didáctica tradicional, conductista y em-pirista, se desplegaron internacionalmente a lo largo del siglo XX dos grandes corrientes renovadoras, una cognitiva-constructivista y otra marxista,77 compar-tiendo ambas un paradigma común sobre una escuela anti-autoritaria, animadora

cal… pero con ciertos límites, no contesta directamente a la pregunta sobre educación y política, reduciéndose a reivindicar que “debatir es bueno” y exige más fondos para la enseñanza.73 Le preguntan “¿qué piensa del debate sobre si destrezas o contenidos”, y contesta: “Creo que la mejor manera de enseñar es utilizar ambas”, “hay que pensar en qué conocimientos” pero también “el proceso de conocer”, ídem.74 “Hay que conseguir primero un entendimiento, una comprensión, unas formas y luego quizá intentar perfeccionar esos contenidos”; jerarquía de intereses constructivistas que, desequilibran-do la síntesis prometida destrezas/contenidos, remata por dejar el tema de la reproducción del saber (contenidos) al Estado; preguntado por la nueva asignatura Educación para la ciudadanía, responde que conoce el actual debate Partido Popular/Partido Socialista Obrero Español, piensa que “la asignatura es buena idea” pero insiste una vez más que “lo que hay que ver y analizar es como enseñarla. Se puede enseñar de una manera estúpida o de una manera muy inteligente”, valorando de nuevo la metodología antes que nada, ídem.75 Igual que pasa con la historia y otras compartimentaciones institucionales, fenómeno de frag-mentación académica contra el que hay que luchar, la especialización en didáctica, deja de lado sin querer otros aspectos del proceso de conocimiento y enseñanza, y más todavía si la didáctica es de signo cognitivo-constructivista.76 La interacción escuela y sociedad es hoy muy relevante que nunca por determinar problemas agudos de la enseñanza actual (multiculturalismo, drogas, desempleo, violencia, indisciplina etc.), sobre los que volveremos. 77 La didáctica marxista de los 60 y 70 reprodujo de forma moderada (por la unidad de su objeto) el movimiento pendular, típico del marxismo del siglo XX, entre objetivismo (Vigostky, de influencia más académica) y subjetivismo (Freire, de influencia más político-social).

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de un aprendizaje colaborativo y sensible a su función social. Desconocer esta herencia, o descalificarla como “resabios sesentistas”,78 es un claro indicio de la intencionalidad conservadora del nuevo paradigma educativo basado subs-tancialmente en competencias, además del error práctico de subvalorar el grado de irreversibilidad de las aportaciones innovadoras de los años 60 y 70. La ex-periencia del proyecto Tuning es significativa, al tener que introducir elementos de “educación en valores”79 y aceptar la diversidad de modelos didácticos en Europa, en su mayoría interesados por los contenidos;80 en contradicción con las directrices – inflexible en origen – sobre la “educación en competencias”81 de procedencia angloamericana, pero extrañas al constructivismo ilustrado de los pioneros norteamericanos John Dewey y Jerome Bruner.

Resumiremos, por último, algunas de nuestras reflexiones sobre esta tarea de recobrar de manera reivindicativa, pero autocrítica, la experiencia de las vanguardias pedagógico-didácticas del pasado siglo, al igual que hicimos con los paralelos movimientos historiográficos:82 1) la renovación pedagógica del siglo XX, plural pero convergente, ha triunfado relativamente, ya que no es-tamos didácticamente en el siglo XIX, pero tampoco en los años anteriores y posteriores a 1968, y está a debate de nuevo lo esencial del qué, el cómo y el por qué enseñar la historia; 2) el cambio de contexto social, político y cultural de un siglo a otro, y la aceleración histórica que todavía estamos viviendo, en-gendra nuevas preguntas, trastoca muchas de las que nos hacíamos hace 40 o más años y restringe la eficacia de las viejas respuestas. Y mientras conservan cierta continuidad y se reubican las viejas contribuciones del constructivismo y el marxismo, surgen nuevas tendencias como la escuela posmoderna y empresa-rial de las competencias o la vuelta a la escuela tradicional (alimentada por las “historias oficiales” de tipo político y el retorno historiográfico correspondiente), coincidentes precisamente en su tentativa, en parte lograda, de minorizar la

78 Véase la nota 6.79 Véase la nota 54.80 El acuerdo de la Comisión de Historia sobre el minicurrículo troncal europeo dice que hay que “aprovechar al máximo la rica diversidad de sus tradiciones en enseñanza, aprendizaje e inves-tigación, es obvio que el principio fundamental ha de ser preservar dicha diversidad”, Proyecto Tuning. Puntos comunes de referencia para los cursos y currículos de Historia, p. 172.81 Con todo, la capacidad de influencia del profesorado para forzar una síntesis circunstancial, no es la misma en la enseñanza media: los profesores de instituto enmiendan las orientaciones administrativas más bien en la fase de aplicación. 82 Véase el punto X del Manifiesto historiográfico de Historia a Debate.

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veterana influencia marxista reconduciendo a su ex-aliado, el constructivismo liberal-progresista de Dewey y Bruner, hacia la competencia del mercado; 3) en tal tesitura, sobra cualquier nostalgia, autocomplacencia o actitud resistencial que nos impida entrar en el debate y las propuestas de los nuevos paradigmas del siglo XXI, adornando con citas rituales a las “nuevas escuelas”, y sus represen-tantes, que nos formaron la perplejidad que nos producen los nuevos desafíos y realidades, y nuestras propias prácticas; 4) el paradigma común constructivista y marxista cultivó en conjunto la teoría de la educación y la metodología del aprendizaje, la pedagogía y la didáctica, pero poco o nada el saber a trasmitir, el contenido de las materias a enseñar, algo fundamental y siempre polémico en el caso de la historia, dejando los saberes y su orientación a los especialistas cor-respondientes (los historiadores, en nuestro caso), la lucha cultural e ideológica (en la mejor de las hipótesis) y las autoridades administrativas, siempre celosas de sus prerrogativas en políticas educativas. De ahí que a los historiadores nos sonara como nuevo la reciente defensa, desde la didáctica de la historia, de una mayor conexión – incluso una alianza – de la historia enseñada con la historia investigada;83 5) a tenor de los problemas y avances acumulados, y de los tiem-pos que vivimos, el nuevo paradigma ha de ser global o no será. En contra del fundamentalista new paradigm de las competencias, con el apoyo de políticos neoliberales decididos en que la relación de la enseñanza y la universidad con la empresa sea el factor hegemónico de nuestro futuro educativo, es factible y urgente un nuevo paradigma – que significa consenso, no lo olvidemos – que se sostenga en la amplia sociedad académica de los profesores y los historia-dores.84 Articulando el papel activo de los alumnos y el nuevo protagonismo de los profesores, los saberes y las competencias, los valores y las ciencias, las actividades digitales y presenciales. Un nuevo consenso didáctico-historiográfico que genere ideas nuevas para problemas nuevos y reformule nuestras mejores tradiciones, vertebrando lo más interesante y novedoso en historia, didáctica, pedagogía y organización escolar (empleo selectivo del tiempo), sin olvidar la dignificación del oficio de profesor de historia, en todos los estadios.

83 Véase la nota 11, y también VALLS, Rafael. Conciencia histórica y enseñanza de la historia (en la educación obligatoria). Historia a Debate. Nuevos paradigmas, tomo II, 2000, p. 178.84 Lo que ya está sucediendo una gran parte de las ideas aquí expuestas para el debate son mante-nidas en conjunto o por separado por otros profesores, historiadores y especialistas en didáctica o pedagogía, lo sabemos porque los hemos oído y leído.

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Aprender con fuentesUn beneficio “inesperado” para los estudios de historia en la enseñanza

secundaria de la educación por competencias es el impulso que supone del tra-bajo con fuentes de los alumnos. En realidad el constructivismo, según vimos (Piaget), ya había planteado la necesidad de educar experimentalmente, y las ciencias de la naturaleza lo venían y vienen practicando. Lo nuevo es que, al ser de aplicación general el axioma sagrado de las competencias, se fomente “desde arriba” una formación temprana de los alumnos de historia en el trabajo con fuentes, algo específico de los historiadores de oficio, que, paradójicamen-te, tienen su futuro profesional como tales mayormente en la función pública, fuera del mercado.85

Naturalmente, el profesor de enseñanza media no puede orientar a los alum-nos en el trabajo con fuentes (escritas, orales, arqueológicas, patrimoniales, ico-nográficas, audiovisuales) sin un mínimo de información histórica y contextual sobre el tema, en papel o en red, lo que reafirma la alianza didáctico-historiográ-fica de que hablamos, que encuentra así un nuevo campo de convergencia entre historia enseñada e historia investigada: un paso adelante, en definitiva, para garantizar al mejor nivel la continuidad del proceso de conocimiento histórico desde la universidad a la ciudadanía, y viceversa.

El aprendizaje del alumno por sí mismo, manejando fuentes semejantes a las utilizadas por los historiadores, implica nuevas exigencias y posibilidades al profesorado:86 formación historiográfica continua; mayor conexión educación / investigación, enseñanza media / universidad:87 y promoción, a todos los efectos, de la figura del profesor-investigador en las enseñanzas medias.88 Procurando

85 Últimamente surgen pequeñas empresas de jóvenes historiadores que ofrecen a particulares e instituciones servicios de paleografía, búsquedas en archivos, publicaciones, pequeñas investiga-ciones y gestión cultural, fenómeno interesante de historia aplicada (y fuente de salidas laborales) que habremos de divulgar y desarrollar, si bien ello no contradice la realidad – que reivindicamos – del carácter mayoritariamente público, en cuanto a financiación y objetivos, de la investigación profesional y de la enseñanza de la historia.86 Al profesor de secundaria se le exige ahora más formación, actividad docente y conocimientos como investigador, al tiempo que es ninguneado en su función social y docente por la frecuente desatención en la práctica, por parte del Estado, y en la teoría por la “novedad” de los facilitadores.87 La Universidad Nacional Autónoma de México, por ejemplo, integra en su seno la enseñanza secundaria a través de la Escuela Nacional Preparatoria <http://dgenp.unam.mx> y el Colegio de Ciencias y Humanidades <http://www.cch.unam.mx>.88 Que debería serle permitido y facilitado continuar su carrera docente e investigadora en la enseñanza superior, como reivindican los sindicatos de profesores.

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formas nuevas de institucionalización de la ampliación de la comunidad acadé-mica de historiadores, desde la óptica bidireccional que venimos practicando en Historia a Debate.89 Integrar más y mejor el profesorado de medias junto con el profesorado de universidad, en el ámbito de la investigación, es una necesidad objetiva de la funcionalidad y calidad del proceso educativo e investigador90 que – cuanto menos en España – no ha reclamado todavía la atención de los poderes públicos.

Un sistema educativo que pretende poner el acento en las destrezas labo-rales para facilitar la inserción en el mercado, al aplicarse a las humanidades y las ciencias sociales se encuentra con que tiene que centrarse en desenvolver destrezas intelectuales, sobre todo cuando se trata de disciplinas ajenas al mundo de la empresa, la tecnología o las ciencias aplicadas, con una función pública y social vinculada al saber, que los planes I+D+i suelen confinar en lo que de-nominan “promoción general del conocimiento”. Ahí es dónde se puede hacer rentable, de rebote, para la historia y demás “saberes improductivos” – según la ortodoxia neoliberal – la educación en clave de competencias, que planteada necesariamente alrededor de competencias intelectuales resulta más compatible con una educación en valores críticos, solidarios y democráticos. En suma, el nuevo paradigma de competencias, conocimientos y valores, que preconiza-mos es más viable en historia que en otras materias menos “marginales”, para el “gran hermano” competencial. El autoaprendizaje con fuentes, bajo la guía del profesor, puede reunir de entrada cierto consenso entre las viejas y nuevas tendencias didáctico-pedagógicas, marxismo, constructivismo y “educación por competencias” siempre que el interés por las fuentes vaya parejo con el interés por los contenidos y los valores, para lo cual es indispensables evitar y seguir combatiendo la “idolatría de las fuentes” de que hablaba Marc Bloch.

La adquisición de habilidades historiográficas por parte de los alumnos de la escuela secundaria enseña al estudiante cómo se hace la historia, adoptando el punto de vista del autor – en lugar de lector – ante los libros de historia, lo que no siempre se consigue en la universidad. Desarrollando así un verdadero – por autoaprendido – sentido crítico sobre la escritura de la historia, de especial

89 Véase la nota 20.90 Una parte creciente de las tesis doctorales de historia leídas en la universidad española son ya realizadas por profesores de historia en la enseñanza media, y tienen la ventaja añadida de ser con frecuencia obra de investigadores experimentados.

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valor cuando se trata de historias oficiales, presentes por ley y/o el principio de autoridad académica, en las asignaturas de historia.

La aptitud asumida precozmente para familiarizarse con diversos tipos de fuentes, extraer datos, contextualizar unas y otros y participar incluso en la re-dacción y discusión de los resultados, por muy elemental que sea, desmitifica el trabajo del historiador, identifica tendencias, prepara mejor al estudiante para la enseñanza superior, animando vocaciones para los estudios universitarios de his-toria, destrabando el camino para profundizar en la educación con fuentes en la universidad, donde todavía predominan los trabajos puramente bibliográficos de los alumnos. Habrá para ello, por consiguiente, que sacar experiencias de la parte positiva del modelo anglosajón (inglés y nórdico, sobre todo), sin dejar los con-tenidos de la historia a la escuela secundaria,91 o a decidir por no se sabe quién.

El trabajo con fuentes puede orientarse según la idea decimonónica de Langlois y Seignobos de que la “historia se hace con documentos” (escritos, por supuesto) y punto, o aceptar la diversificación de fuentes escritas, desde el documento oficial hasta la literatura coetánea, pasando por las fuentes orales, la cultura material y las fuentes artísticas, audiovisuales y digitales. Educar con fuentes, y una bibliografía mínima, comporta a estas alturas una triple actualiza-ción historiográfica: enseñar la historia como una “ciencia con sujeto”, procurar aproximaciones globales y analizar el presente a la manera de los historiadores.92

Es menester combatir desde la escuela – sin echar el niño con el agua sucia – el mito positivista de que el uso de fuentes asegura conocer la verdad histórica “tal como fue” (Ranke). Trasmitiéndole un concepto actualizado de ciencia, el alumno ha de aprender que la verdad de la historia que escribimos está condicionada, no sólo por el contexto actual y los intereses políticos y sociales,93 sino también por el propio historiador.94 Ubicando la comunidad de

91 Contenidos en secundaria – memorizando, seguramente – y competencias en la universidad, opción contradictoria con las supremas “competencias básicas”, avalada curiosamente – en aras de la diversidad, suponemos – por el proyecto Tuning, véase Puntos comunes de referencia para los cursos y currículos de Historia, p. 170-171.92 Véase las referencias de las notas 2 y 10.93 Proyecto Tuning, p. 173.94 Lo que no quiere decir que la historia que hacemos sea mentira, las fuentes junto con la inter-pretación, experiencia y rigor del investigador, garantizan una conocimiento cierto pero revisable, opinable y superable, parcial; parcialidad y precisión no son antitéticos: el sesgo de una obra de historia suele venir del enfoque historiográfico aplicado, los valores del propio autor, la propia intencionalidad de su investigación (académica, mediática, política, religiosa…) ; de ahí que sea necesario combinar a menudo diversas fuentes bibliográficas (y diferentes fuentes primarias, cada

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aprendizaje, y ante todo el sujeto docente, entre los participantes de la escritura continua, plural y comunitaria, de la verdad histórica, que también está fundada en ideas e imaginación,95 haciendo realidad el enunciado: el historiador descubre su objeto conforme lo construye y enseña.96

Enseñar a pensar la historia de manera global, en la doble acepción de mundial y total,97 es una reclamación de nuestro tiempo y una estrategia de futuro. La revolución de las comunicaciones nos está habituando a percibir y sintetizar información diversa, paradójica98 y compleja, la historia investigada y enseñada no puede ir a la zaga, ha de analizarse y aprenderse de manera también diversa, paradójica y compleja, interrelacionando niveles, factores y actores, involucrando fuentes de diferente tipo y parcialidad, ensayando explicaciones de conjunto. Para lo cual tenemos que practicar la reivindicada intradisciplinari-dad entre especialidades historiográficas (enlazadas en algunos casos con otras disciplinas), que ponga en evidencia la capacidad investigadora y didáctica de la historia para integrar otras ciencias sociales.99 Tenemos que confesar, de todas formas, que el problema de la parcelación del saber histórico está más en la investigación, día a día más especializada,100 que en la historia enseñada, cuando epistemológicamente debería ser lo contrario: nuestro sistema universitario e investigador sigue estimulando en la práctica la especialización cronológica y temática.101 Conseguir aproximaciones más globales de la historia102 es, por lo

una con su parcialidad específica).95 “La historia se hace con documentos y con ideas, con fuentes y con imaginación”. LE GOFF, Jacques. Tiempo, trabajo y cultura en el Occidente Medieval. Madrid, 1983, p. 7.96 Véase Por un nuevo concepto de la historia como ciencia en www.h-debate.com/Spanish/presentaciones/lugares/quito.htm.97 “Historia total” tal como la entendieron el marxismo y la escuela de Annales, noción historiográ-fica que apremia retomar ahora, con nuevos enfoques, formas y métodos, ante el imparable avance de la fragmentación (véase al punto 5 de Manifiesto historiográfico de Historia a Debate). 98 Etimológicamente la palabra ‘paradoja’ significa lo “contrario a la opinión recibida y común”, estado de opinión bastante determinada – todavía – por el principio cartesiano de no contradicción; se dice corrientemente que una expresión es paradójica porque contiene elementos contradictorios, y de manera más avanzada se entiende por paradoja es una falsa o aparente contradicción, según la nueva lógica trans-racional.99 Véase la referencia de la nota 39.100 Véase Historia a Debate, un paradigma global para la escritura de la historia en www.h-debate.com/congresos/3/videos/menu.htm.101 La parcelación de la historiografía académica sigue siendo un grave problema – falta de hilo conductor y enfoque común – a la hora de publicar historias generales de ámbito regional, nacional, europeo e universal, sea para la enseñanza sea para una difusión más amplia. 102 Véase la referencia de la nota 15.

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tanto, una cuestión pendiente que han de resolver, de manera interrelacionada, los nuevos paradigmas de la historia y de su enseñanza.

La necesidad de educar de manera global, en el siglo de la globalización, es presentada en los Estados Unidos, como otra variante del nuevo paradigma de la enseñanza, denominada “educación holística”,103 al margen de la educación por competencias (que no suelen nombrar). Esta propuesta parte de una ética humanista de inspiración religiosa,104 es crítica con “la visión reduccionista cognoscivista considerando al ser humano en su totalidad” y se apoya – justa-mente – en la ciencia de la complejidad para justificar el cambio de paradigmas y definir el concepto de totalidad.105 Nuestra posición es llevar el holismo más allá: enseñar nueva historia global (contenidos); incluir el hombre educando y educador como parte de la humanidad, social y políticamente organizada (valores); asumir que estamos en una economía de mercado, que rige – parcial-mente – la oferta y demanda laboral y profesional (competencias), aunque tal regulación económica incumbe menos a la historia que a otras materias.

Nuestra tercera propuesta de actualización historiográfica educativa guarda relación con la historia inmediata: comprender el presente desde una óptica histórica, examinar los hechos actuales o recientes de relevancia histórica, em-pleando fuentes directas (prensa, TV, Internet) y el propio testimonio y opinión de los miembros de la unidad de aprendizaje. Demostrando que la historia no es solamente “cosa del pasado” y que también ellos hacen la historia, formando mejor de este modo a los futuros ciudadanos como sujetos históricos.

No se trata únicamente de poner ejemplos de actualidad para interesar en los alumnos sobre la historia pasada, evitar el aburrimiento y lograr mayor participación (todo el mundo tiene algo que decir sobre hechos que están su-cediendo), lo que no es poco, sino de asumir una novedad historiográfica, el consenso creciente entre los historiadores más avanzados acerca de la inclusión del mismo presente, o de hechos recientes que cambian la visión del pasado

103 El holismo considera el “todo” distinto de las “partes”: una buena idea, pues, para rebatir a aquellos que, instalados en su propio fragmento, consideran “eclecticismo” (término antidialéctico que quiere decir adoptar posiciones intermedias o conciliar opuestos) todo intento de reconstruir totalidades, lo que se descalifica como pretensión “utópica”. 104 Los valores laicos y religiosos son obviamente conciliables y legítimos, han de formar parte de una escuela plural en una sociedad democrática, siempre y cuando se respete la separación Iglesia / Estado y la preeminencia del poder público y sus leyes.105 Más información en http://www.geocities.com/ed_holista/index.htm (castellano), http://www.holistic-education.net (inglés).

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(historiografía inmediata), en nuestro objeto de investigación, y por lo tanto de docencia.106 Como consecuencia de la celeridad histórica propia de nuestra época, y de la instantaneidad de la sociedad de la información, el presente se hace inmediatamente pasado. Nos queda corto ahora lo de entender el presente por el pasado, y el pasado por el presente, se puede y se debe investigar y com-prender la propia actualidad con la metodología (adaptada) de los historiadores, a sabiendas de que el proceso que estudiamos está inacabado, y que por fuerza toda investigación de historia inmediata es participativa, sujetas a revisiones futuras, como toda historiografía y didáctica pluralista y comprometida.107 Transformar la novedad historiográfica (en proceso de debate y aplicación) en novedad didáctica, debatir (entre los profesores y con los alumnos) dicha propo-sición, llevarlo a la práctica en el aula, divulgando los resultados, e incorporar experiencias de historia del presente, actual, reciente o inmediata, remontándose tan atrás como haga falta, en las ponencias de innovación docente que solemos presentar en los congresos. La historia que enseñamos ganará con ello, con toda seguridad, en actualidad y cercanía.

educar en valoresUna de las cuestiones clave que tiene que resolver el nuevo paradigma edu-

cativo es encontrar una interrelación, coherente y eficiente, entre la “educación en competencias” y la “educación en valores”.108 Sinergia más problemática en el ámbito europeo que en los ámbitos nacionales, por la crisis de valores (Europa de los mercaderes vs. Europa social) y de perspectiva política por la

106 Para introducir la historia inmediata, de manera institucional, hay que dar la batalla de los con-tenidos, prolongando la historia de España y la historia contemporánea en verdad hasta el mundo actual, cuando menos hasta el 11 S y la guerra de Irak, el 11 M y la recuperación de la memoria histórica, poniéndolo en práctica desde ya en nuestras clases.107 En América Latina, por la propia efervescencia histórica que están viviendo una serie de países, y el alto grado de compromiso por parte de no pocos historiadores, la historia inmediata parece estar más al día que en Europa, de hecho el concepto de historia inmediata de Historia a Debate se ha basado originalmente en ejemplos latinoamericanos, véase ¿Es posible una historia inmediata? en www.h-debate.com/cbarros/spanish/articulos/mentalidades/inmediata.htm.108 En esto el fracaso del proyecto Tuning es claro, como ya vimos, al introducir por la puerta pequeña la educación en valores, como resulta evidente incluso para sus defensores más inteligen-tes: “Hubiera sido de desear que el propio proyecto hubiera colocado al menos al mismo nivel la educación en competencias y la educación en valores y hubiera hecho explícitos algunos valores definitorios de la identidad europea a la que se aspira, pero no ha sido así”. TUDELA, Pío, y otros, Las competencias en el nuevo paradigma educativo para Europa, p. 11, disponible en www.ugr.es/~psicolo/docs_espacioeuropeo/analisis_de_competencias_europa.doc.

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que atraviesa la construcción europea, imposibilitada por el momento de do-tarse de una verdadera Constitución. Mientras que los Estados que financian la enseñanza obligan, en diverso modo y grado, a que ésta siga los criterios polí-ticamente correctos, marcados por la Constitución, y sean útiles para promover las identidades nacionales, con lo que la enseñanza pública no puede obviar, como sueñan en sus nubes los didactas neoliberales, la educación en valores, especialmente las ciencias humanas y sociales.

Dicho de otro modo, la concepción de hacer girar, principal y soberanamen-te, la educación del siglo XXI sobre las competencias laborales o empresariales está abocada al fracaso,109 por razones funcionales, legales y de mentalidad, en los países donde existe un marco democrático estable y un fuerte poder público, un Estado de bienestar y una sociedad civil activa. Los valores que subyacen en la idea original de competencia, destreza o habilidad, como subordinación del aprendizaje al mercado de trabajo,110 se ocultan precisamente porque chocan frontalmente con valores esenciales de la enseñanza pública111 y con la razón de ser de la propia universidad. En nuestra opinión, sólo una “educación en competencias y valores”, o “en valores y competencias”, según la inclinación que se le quiera dar, pueda alcanzar el consenso suficiente en las comunidades educativas para poder hablar de un mayoritario y eficaz “nuevo paradigma edu-cativo” (que tiene su tercera pata en la “educación en contenidos”, que siguen siendo imprescindibles, trufados eso sí de competencias y valores). Único modo además de conciliar en la teoría y en la práctica el papel activo de los alumnos, objeto de las competencias, con el papel activo del profesor, sujeto principal de los valores y de los contenidos.

La reciente implantación en España por ley, y en otros países europeos, de una asignatura específica de “Educación para la ciudadanía”, no exime – más bien lo contrario – la enseñanza de la historia y otras ciencias sociales y

109 No le ayuda demasiado al pragmático neoliberalismo educativo el capote filosófico posmoderno con sus elevadas dosis de pesimismo y desencanto ante la crisis de una enseñanza publica que tiene en la modernidad y la ilustración sus bases primigenias, lo que no debería olvidarse.110 Por tratarse de competencias intelectuales y heurísticas, los efectos nocivos de la subordinación al mercado de la enseñanza de la historia, y de otras ciencias sociales, son más bien indirectos: infravaloración de los grandes valores y de sus depositarios; desequilibrio de medios y horas de clases a favor de materias de mayor utilidad “práctica”; desarrollo de universidades privadas, que eliminan de sus planes de estudio los estudios histórico-sociales, en detrimento de las públicas.111 Sirva de referencia el Manifiesto Por una educación pública (Barcelona, 2005), del movimiento de renovación pedagógica Rosa Sensat, que actualiza el texto con el mismo título de 1975 <http://www.rosasensat.org/Declaracion.pdf>.

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naturales, sobre la base de valores universales de paz y democracia, justicia e igualdad, tolerancia y pluralismo, derechos humanos, de género y opción sexual, respeto del medio natural así como de las diferentes identidades étnicas, religiosas y nacionales. Derechos y deberes que no se comprenden sin aprender historia, maestra de vida, partiendo de la experiencia individual y colectiva de los alumnos. La finalidad, en este caso, no es ya adquirir ya tanto destrezas como debatir e interiorizar convicciones morales, políticas y sociales, con la participación activa de los alumnos, sin que el profesor deba mostrarse neutro tratándose de valores y criterios fundamentales para una educación sana y to-lerante, democrática y humanista, ilustrada y sostenida por la verdad histórica que conocemos.

Ya precisamos que el simple uso de fuentes históricas no llega para definir la verdad histórica, cuenta y mucho la selección de temas, enfoques y fuentes, la forma de obtener los datos, siempre interpretables de suerte diversa... Ahora bien, pluralidad historiográfica no quiere decir que “todo vale” por igual en rigor y valores. No se puede ocultar que el descubrimiento de América por parte de españoles y portugueses fue una conquista colonial, por mucho que se valore, aquí y allá, lo que tuvo de positivo para los americanos – y más todavía para las metrópolis – el encuentro de las dos civilizaciones. No se puede ocultar que el golpe militar en España del 18 de julio de 1936 fue un levantamiento contra un gobierno democráticamente elegido, que desató una cruenta guerra civil, una feroz represión y una larga dictadura, por mucho que se respete la opinión contraria (reactivada últimamente por parte de una neoderecha no académica), y se busquen los antecedentes históricos de las dos Españas, que explican pero no legitiman el franquismo. Sobra decir que una historia enseñada desde valores universales, desde un punto de vista actual, hace necesario también una historia investigada desde valores deontológicos para que nadie pueda instrumentalizarla para justificar lo injustificable.

Los valores escolares no surgen espontáneamente de los alumnos, obligan a una orientación del profesor, textos de referencia, prácticas y debates…, cuan-do menos para dar a conocer las opciones e interpretaciones principales, y sus consecuencias, en el caso de temas polémicos. Si hace un tiempo esta educación en valores fue deseable, hoy es impostergable para hacer frente con éxito a los problemas que asedian a la enseñanza obligatoria, inducidos en buena parte por una sociedad en proceso de cambio: fracaso escolar, indisciplina; violencia, acoso, drogadicción; desempleo, familias desestructuradas; inmigración, mul-

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ticulturalismo; brecha social y digital. En un contexto así, ¿en qué cabeza cabe que la solución a la crisis de la escuela – y a la desmotivación y el cansancio de los profesores – pasa por las competencias mercantiles y los facilitadores?

Aula en redEn trance de concluir estas reflexiones y propuestas en pro de un nuevo

paradigma educativo que no se imponga administrativamente, que tenga en cuenta la situación real de la enseñanza, nuestras mejores tradiciones y la opinión colectiva del profesorado de secundaria, extrañará que no haya hablado todavía de Internet,112 cuyo uso en la enseñanza alcanza ya cierto nivel de acuerdo sobre su importancia entre profesores y especialistas en didáctica, cuestionándose más que nada la falta de formación, ganas, medios y tiempo para hacer de las clases de historia una escuela sin fronteras: una aula en red.

El motivo de dejar el paradigma digital para el final es evitar que el lector piense que el uso de las nuevas tecnologías de la información y la comunica-ción (TIC) es la nueva receta para el déficit de innovación docente. La verdad es que, como argumentamos antes, el nuevo paradigma educativo es global, en el sentido de integral, o no será, tampoco en lo digital: la innovación no puede ser parcial. Se puede navegar mucho por Internet (competencia digital) e ir retrasado en el resto: saberes y valores. De hecho un número importantes de las webs de historia, algunas entre las más visitadas, propagan contenidos tradicionales típicos de una historia de grandes hombres, batallas y aconteci-mientos; escaseando las que muestran algún interés por los métodos y enfoques historiográficos, y sus debates actuales. De qué vale pues asimilar y ejercitar la habilidad técnica para acceder a la información en Internet, si no se aprende a valorar y discriminar los datos obtenidos. En resumen: TIC más contenidos más valores; autoaprendizaje del alumno más instrucción del profesor para que nadie se pierda en la telaraña.

Por lo demás, aprender a moverse en la red, el uso de buscadores y otros recursos para consultar información, fuentes, imágenes y bibliografía, sobre un

112 Más aún considerando mi función de coordinador de la red temática Historia a Debate <www.h-debate.com>, que “reúne” cada día digitalmente a ocho mil historiadores, profesores y estudiantes de historia de todo el mundo; y cuya página web ha tenido cerca de cuatro millones de visitas totales, desde 1999, y mantiene precisamente, desde 2000, entre sus debates uno sobre “¿Qué historia enseñar en el siglo XXI?” donde ha habido ya 114 participaciones de historiadores y profesores de diversos países a día de hoy (25/9/07).

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tema histórico determinado, participar en las redes temáticas de la Web 2.0, es una competencia básica para los alumnos de hoy y para nada aburrida para estas nuevas generaciones. Forma ideal, por otro lado, para alargar la comunidad de aprendizaje al mundo entero, promover la autonomía del alumno y acceder a novedades113 y materiales que no están disponibles a menudo en formato papel, más caro y menos accesible.

Evidentemente, la competencia informática y comunicativa por Internet, y otras tecnologías digitales, es tarea de la escuela en su conjunto, pero su utilización en las clases de historia depende sobremanera del desarrollo de experiencias concretas y recursos específicos, de lo que se han dado buenos ejemplos en este seminario de innovación docente de la Taula d’Història de la Universidad de Barcelona.

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113 Se puede decir que lo que es nuevo y no está en Internet, no es nuevo.

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Recebido: outubro/2007 - Aprovado: setembro/2008

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O cOnceitO de tempOralidade e sua aplicaçãO na histOriOgrafia antiga

Juliana Bastos MarquesPós-doutoranda-FFLCH/USP e bolsista da Fapesp

resumoEste artigo discute, em um primeiro momento, o conceito de temporalidade e de suas definições e aplicações, bem como algumas contradições inerentes a ele. Como objetivo principal, busca atualizar a discussão sobre como entender o uso da temporalidade dentro do contexto da historiografia antiga, fazendo uma crítica às associações da historiografia greco-romana com a idéia de ciclo e de seu contraponto na historiografia judaico-cristã com a linearidade. Por fim, sugerimos que é possível ler essas duas diferentes formas de historiografia invertendo seus conceitos comuns de temporalidade, demonstrando assim que tal paradoxo nada mais é do que reflexo dos paradoxos gerais do conceito teórico de temporalidade.

palavras-chavesHistoriografia antiga • tempo • temporalidade • ciclo • decadência.

abstractThis article presents, in the first place, a debate on the concepts, definitions and applica-tions of temporality, as well as some of its innate contradictions. The main goal here is to update the discussion about how to understand temporality within the context of Ancient historiography, reviewing the associations of Greek and Roman historiography with the idea of cycle and of its counterpoint, Jewish-Christian historiography, with linearity. Lastly, we suggest that it is possible to read these two different forms of historiography also as an inversion of their associated ideas, thereby demonstrating that this paradox is nothing more than a reflection of the general paradoxes within the concept of temporality itself.

KeywordsAncient historiography • time • temporality • cycle • decadence.

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Arnaldo Momigliano foi um dos poucos estudiosos do mundo clássico a refletir sistematicamente sobre o tema da intuição de tempo na historiografia antiga.1 Estudos prévios geralmente se centraram na dicotomia específica entre o que a tradição clássica definiu como períodos áureos e outros de decadência em relação a eles. Isso se deu até meados ou mesmo fim do século XX no campo da literatura, através da definição dos cânones estilísticos em grego e em latim, e, no campo da história, pelo debate tradicional e em processo de superação de mecanismos de sucessão das “civilizações” antigas, tanto em termos políticos como sócio-culturais.2 No plano do debate teórico propriamente dito sobre tem-po, com pontos de contato fortemente presentes com a filosofia e a antropologia, consolidou-se uma oposição entre conceitos pagão e judaico-cristão de tempo, os quais apresentariam um caráter cíclico ou linear, respectivamente.3

O propósito deste artigo é rever tais concepções consolidadas de tempo na historiografia antiga, no sentido de apontar como suas dicotomias na verdade se encontram e apresentam relações muito mais complexas do que a princípio se apresentam. A oposição entre tempo cíclico pagão e tempo linear judaico-cristão, bem como entre conceitos de auge e decadência no mundo antigo, não é totalmente rígida, e pretendemos demonstrar que, ao desenvolver cada um destes conceitos, encontramos pontos em comum exatamente com os outros aos quais se opõem. Ao considerarmos o debate teórico e metafísico sobre a noção de tempo, encontramos exatamente esse mesmo paradoxo e assim po-demos entender melhor os motivos pelos quais as dicotomias acima não são na verdade tão rigorosas. Por fim, o uso do termo “temporalidade” nesta reflexão surge como mais completo do que apenas o mais genérico “tempo”, pois per-

1 O tema aparece constantemente na série de palestras compilada em The classical foundations of modern historiography. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1990, que expressa suas idéias principais já no período de maturidade intelectual do historiador.2 GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politeia. V. 3, n. 1. Vitória da Conquista , 2003, p. 41-62.3 Também define Mazzarino: “Una buona parte dell’indagine moderna – soprattutto della più recente – ha parlato, sulla base di Agostino, di una temporalità circolare pagana, di contro a una temporalità lineare giudaica e infine cristiana. La temporalità pagana consisterebbe nella dottrina dell’Eterno Ritorno; quella giudaica e cristiana in una linea che nel cristianesimo (ossia, nell’età medioevale e moderna) trova come punto di riferimento la Parousia, esprimendosi nel calcolo degli anni Ante Christum e Post Christum natum. La temporalità giudaica e cristiana darebbe un senso alla storia; nella temporalità pagana, la storia non avrebbe un suo significato, perché tutto eternamente ritorna”. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico. Vol. 3. Roma-Bari: Editori Laterza, 1990, p. 350. Analisaremos Santo Agostinho e a idéia de eterno retorno em Mircea Eliade adiante.

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mite ao historiador trabalhar também com a relação entre tempo, memória e a formação do relato histórico.

Passemos em primeiro lugar à última das questões elencadas acima, pois se trata da nomenclatura que determina as idéias fundamentais do debate: definir o que queremos dizer com “temporalidade”, pois ela é diferente de “tempo”. Compreenderemos a seguir suas especificidades na narrativa histórica antiga.

tempo e temporalidadeQualquer definição única que se dê à idéia de tempo é indubitavelmente

insuficiente para explicá-lo, pois toda racionalização de sua natureza nos leva sempre a certos problemas insolúveis. Assim, o pensamento humano se obriga a limitá-lo em concepções que nos parecem opostas e, ou as aceita conjunta-mente, ou prefere uma em detrimento da outra. Trata-se da dicotomia entre o tempo físico, absoluto, alheio à consciência e à vontade, e o tempo psicológico, relativo à experiência e à percepção do ser humano.

Se o tempo físico independe de nós, pois é o tempo da natureza, ele na verdade sequer precisaria ou mesmo poderia ser por nós percebido. É o presente absoluto da ação, já que não é passado nem futuro. O passado não existe, pois já se foi; o futuro também não existe, pois ainda não acontece. Assim, estes dois conceitos apenas fazem sentido dentro da experiência vivida, dentro da racionalização e consciência do seu decorrer – constituem, portanto, o valor da memória e da projeção, causa e conseqüência do momento presente, medido pelo ser humano –, ou seja, o tempo psicológico. Isso significa, em primeiro lugar, que só o presente é real, mas também que qualquer tempo por nós vi-vido só tem sentido se comparado com o tempo que ainda não é, ou não mais existe – o que se constitui no processo fundamental da consciência humana e, num plano mais restrito e aqui relevante, da apreensão da história. Este tempo é, em suma, a temporalidade.4

4 COMTE-SPONVILLE, André. O ser-tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 30: “O tempo precisa da alma, não para não ser o que ele é (o tempo presente), mas para ser o que já não é ou ainda não é (a soma de um passado e de um futuro), em outras palavras, para ser o que nós chamamos de tempo: ele necessita da alma, não para ser o tempo real, o tempo do mundo, ou da natureza, mas para ser, e é bastante lógico, o tempo... da alma.”. E assim ele define a tempo-ralidade, na página seguinte: “... a unidade – na consciência, por ela, para ela – do passado, do presente e do futuro”.

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Podemos exemplificar citando Santo Agostinho (354-430 d.C.), que foi um dos principais autores antigos a refletir diretamente, em suas Confissões,5 sobre a natureza do tempo. Ele é referência fundamental para o debate, pois adapta as conclusões metafísicas de Platão ao pensamento cristão e oferece uma reflexão sistemática sobre o tema, inédita até então, analisando as contradições entre presente, passado e futuro. Santo Agostinho trata do tempo que a consciência humana apreende que é, portanto, a temporalidade e não o tempo “em si”, já que este não a determina, por ser apenas possível como um presente absoluto.

Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda não o posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estive-rem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda já não estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória.6

Mesmo depois de séculos de debate sobre a natureza do tempo,7 ainda a mesma conclusão de que a temporalidade prevalece em importância para a cons-ciência humana sobre o tempo pode ser vista, por exemplo, em Heidegger:

5 Todo o Livro XI é dedicado à questão da definição do tempo e do papel de Deus na Criação. Sobre a análise específica da natureza do tempo, ver especialmente o trecho 10-27.6 Confissões, XI, 18: “si enim sunt futura et praeterita, volo scire, ubi sint. quod si nondum valeo, scio tamen, ubicumque sunt, non ibi ea futura esse aut praeterita, sed praesentia. nam si et ibi futura sunt, nondum ibi sunt, si et ibi praeterita sunt, iam non ibi sunt. ubicumque ergo sunt, quaecumque sunt, non sunt nisi praesentia. quamquam praeterita cum vera narrantur, ex memoria proferuntur non res ipsae, quae praeterierunt, sed verba concepta ex imaginibus earum, quae in animo velut vestigia per sensus praetereundo fixerunt. pueritia quippe mea, quae iam non est, in tempore pra-eterito est, quod iam non est; imaginem vero eius, cum eam recolo et narro, in praesenti tempore intueor, quia est adhuc in memoria mea.” Tradução de J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrósio de Pina, S. J. Santo Agostinho. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril, 1973, p. 246.7 Para um resumo, ver POMIAN, Kryzstof. Tempo/temporalidade. In: ROMANO, Ruggiero. (dir.) Enciclopédia Einaudi, vol. 29. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, especialmente p. 36-78.

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Tempo é ser-aí. (...) O ser-aí sempre está num modo de seu possível ser temporal. (...) O ser-aí não é o tempo, mas a temporalidade. O enunciado fundamental: o tempo é temporal, é, por isso, a autêntica determinação – e ele não é uma tautologia, porque o ser da temporalidade significa uma realidade desigual. O ser-aí é o seu passar, é a sua possibilidade no seu antecipar a este passar. Neste antecipar sou eu o tempo automaticamente, tenho tempo. Na medida em que o tempo sempre é meu, existem muitos tempos. O tempo é destituído de sentido; tempo é temporal.8

Encontramos as raízes da percepção teórica e abstrata da temporalidade não apenas no plano intelectual, mas, também, a partir da realidade cotidiana, a partir do processo, bastante lento, da quantificação temporal que surge pro-gressivamente a partir do século XIV com a invenção dos primeiros relógios mecânicos e a valorização da contagem do tempo no cotidiano. Sendo assim, poderemos verificar que há um movimento paralelo entre a complexidade crescente desta contagem, que se faz progressivamente através dos séculos pela medição de minutos e segundos com a sofisticação dos aparelhos cronográficos, e a sofisticação do conceito abstrato de tempo, refletido tanto no pensamento filosófico quanto na física.

O estágio atual da reflexão sobre a idéia de tempo, num plano mais amplo, parte basicamente de dois pontos principais, que são a teoria física de Isaac Newton e o uso disseminado da cronometria a partir do século XIV9 e da inven-ção do relógio de pêndulo por Christian Huygens no século XVII. A importância primordial de tais fatos constitui-se pela desvinculação da temporalidade do cunho eminentemente religioso e elementar do cotidiano medieval e também na abstração e quantificação do tempo “absoluto”. Este passa, então, a ser o

8 HEIDDEGER, Martin. O conceito de tempo. Tradução de Marco Aurélio Werle. Cadernos de Tradução, nº 2, Departamento de Filosofia – USP, 1997, p. 36-37: “Zeit ist Dasein. (...) Das Dasein ist immer in einer Weise seines möglichen Zeitlichseins. (...) Das Dasein ist nicht die Zeit, sondern die Zeitlichkeit. Die Grundaussage: die Zeit ist zeitlich, ist daher die eigentlichste Bestimmung – und sie ist keine Tautologie, weil das Sein der Zeitlichkeit ungleiche Wirklichkeit bedeutet. Das Dasein ist sein Vorbei, ist seine Möglichkeit im Vorlaufen zu diesem Vorbei. In diesem Vorlaufen bin ich die Zeit eigentlich, habe ich Zeit. Sofern die Zeit je meinige ist, gibt es viele Zeiten. Die Zeit ist sinnlos; Zeit ist zeitlich.”9 “…o século XIV é a época mais importante da história do tempo da Antigüidade ao início do nosso século. Mas não só por ter assistido ao esboço das transformações da arquitetura do tempo: a sua importância deriva do fato de que começaram então a modificar-se as atitudes face ao tempo, à vida, à morte, ao passado e ao futuro.” POMIAN, K., op. cit., p. 29.

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elemento fundamental na construção de uma idéia de ciência independente da experiência humana, tal como hoje a vemos.

Newton concebia apenas uma forma básica de tempo como verdadeira, dividida em um tempo absoluto (matemático) e outro relativo (medição). Este tempo físico seria assim para ele apenas uma quantidade mensurável absoluta, bem como o espaço.10 Embora seus conceitos tenham sobrevivido sem abalos no campo da física até o século XX, dentro do debate filosófico não tardou a retomada e defesa da idéia de tempo psicológico, em Leibnitz, Hume e espe-cialmente Kant.11

Com o desenvolvimento da ciência no século XVIII, as concepções de tempo em geral foram progressivamente sendo tomadas pelo campo da física, tanto que hoje o diálogo entre Bergson, Husserl, Boltzmann e Prigogine12 é não só perfeitamente possível como até mesmo obrigatório. Não se pode mais conceber que o tempo físico absoluto da ciência não seja determinante na concepção e existência em si do universo. É, porém, um tempo que acaba se confundindo com a temporalidade subjetiva, enquanto seja apreendido pelo ser humano.

Einstein demonstrou que, diferentemente da idéia de Newton, o tempo abso-luto é também relativo. Sua teoria, de grandes implicações para a metafísica do tempo, é ainda apenas uma das correntes científicas atuais que revolucionaram sua definição. As outras, que veremos muito brevemente, são a física quântica, a termodinâmica e a teoria evolucionária de Darwin.

A Teoria da Evolução foi um marco fundamental no processo de formação da concepção atual de temporalidade. A idéia da origem humana passava até então pelo mito e pela transmissão de determinadas cosmogonias, nas quais o tempo mítico é nebuloso e cronologicamente pouco preciso. E isso é válido não só na Antigüidade pagã, pois a concepção da civilização cristã também foi baseada em uma idéia de tempo mítico. Somente a partir da Teoria da Evolução surge o conceito da origem humana como um longo e lento processo natural, mensurável a partir do método científico.

10 Sir Isaac Newton’s mathematical principles (Principia Mathematica 1687). Tradução de A. Moore, University of California Press, 1947, p. 6: “Absolute, true, and mathematical time of itself and from its own nature... flows equably without relation to anything external.”11 Na parte sobre tempo da Crítica da razão pura, 1787.12 Boltzmann (1844-1906) e Prigogine (1917-2003), físico e químico, respectivamente, dedicados ao desenvolvimento da termodinâmica.

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A revolução da física no século XX trouxe mais elementos para a questão. Em primeiro lugar, a Teoria Geral da Relatividade de certa forma destrói a idéia de tempo totalmente absoluto e independente, ainda que, para fins práticos de cálculo, a física newtoniana continue a ter valor para uma escala mediana de espaço. A física quântica surge como oposto de Einstein, na medida em que subverte a ordem e a lógica dos acontecimentos no plano molecular. Mas, prin-cipalmente a Segunda Lei da Termodinâmica se mostra como o elemento que restabelece e dá nova forma aos pontos principais do conceito de tempo.

Basicamente, essa lei prevê a liberação de energia, como entropia, em qualquer sistema dentro de um tempo linearmente considerado. A implicação básica disso é que, em primeiro lugar, o tempo é irreversível e que, portanto, sua flecha aponta sempre para o futuro – o que a Relatividade não consegue provar. Em segundo lugar, o que é uma conseqüência teórica, mas apenas conjectural, o tempo possivelmente terá um fim, quando toda a energia do universo for liberada e a entropia atingir seu nível máximo.

O aumento da entropia prevê que um sistema considerado, seja o universo, um corpo humano ou uma xícara de café, passe da ordem para o caos. O melhor exemplo disso é a teoria do Big Bang. Porém, a Teoria da Evolução diz que o uni-verso progride, racionaliza-se e passa do caos para a ordem. Como podemos evi-tar a contradição? Provou-se que o caos na verdade tem uma tendência à ordem e que apresenta ciclos temporais, como no caso por exemplo do relógio químico.13 Se a flecha do tempo da termodinâmica é irreversível, ela engloba a existência de quaisquer processos cíclicos em toda parte do universo,14 ou seja, temos portanto que os dois planos fundamentais do tempo são essencialmente interdependentes. E assim, tanto o tempo da física quanto o psicológico, a temporalidade dos filó-sofos, se constituem em uma estrutura que é ao mesmo tempo linear e cíclica.15

13 COVENEY, P. & HIGHFIELD, R. The arrow of time. London: Flamingo, 1990, p. 182-184.14 Idem, p. 36: “... the Second Law of Thermodynamics not only furnishes an arrow of time but also has within it the seeds of the temporal cycles and patterns which we discern in the world around us... Time’s arrow represents progress: each instant is branded with an individual marque. But the metaphor of time’s cycle is vitally important in seeking patterns within natural phenomena which are ruled by the same laws.”15 Como conclui Norbert Elias: “Por si só, a expressão ‘tempo da natureza’, cotejada com ‘tempo social’, já dá a impressão de que o primeiro tipo de tempo é ‘real’, enquanto o segundo se reduzi-ria a uma convenção arbitrária. A dificuldade está em que o ‘tempo’ em si não entra no esquema conceitual desse dualismo. Tal como outros dados, ele se furta a qualquer classificação como ‘natural’ ou ‘social’, ‘subjetivo’ ou ‘objetivo’, pois é uma coisa e a outra”. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 94.

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Voltemos à História. Também neste plano é possível encontrar a mesma conseqüência demonstrada acima sobre a natureza do tempo, de que ele se constitui em dois planos opostos, porém entrecruzados. Agora, retomando o uso do termo temporalidade, mais adequado à construção do discurso histórico, veremos como ele se apresenta na Antigüidade e como se dão as inter-relações entre seus diferentes sentidos.

tempo e história na antigüidadeO conceito de temporalidade determina hoje a forma da narrativa e dos

processos históricos. A História, como disciplina, apresenta atualmente várias formas de uma Zeitauffassung, intuição do tempo, haja vista o pensamento de autores como Marx, Hegel, Braudel e da hermenêutica do século XX, como é o caso de Paul Ricoeur.16 Entretanto, a sistematização e reflexão sobre o papel do tempo é um elemento recente na essência da História.

O tempo, como elemento fundamental da História, é construído e não dado como condição primordial desta.17 O conceito original de ιστορια (his-toría) entre os gregos sequer se baseia na reflexão sobre a natureza do tempo. Etimologicamente, o termo significa “pesquisa, informação, relato”. Heródoto dá importância à investigação dos fatos que pretende narrar e sua atitude, apre-sentada pelo verbo historeô, demonstra que sua função primordial é buscar as narrativas dos eventos, relatar o que vê e ouve em suas viagens e pesquisas, e assim preservar os fatos mais memoráveis para transmiti-los à posteridade.18 A importância do relato tem nesse sentido uma associação muito mais próxima com a etnografia do que com a reflexão filosófica - ainda que privilegie a busca da verdade em oposição ao mito, o que torna desde já a narrativa histórica distinta do texto etnográfico. Aliás, se podemos notar, parte quase que exclusivamente

16 RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Éditions du Seuil, 1983. Para análise, ver LEAL, Iva-nhoé Albuquerque. História e ação na teoria da narratividade de Paul Ricoeur. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.17 FORNARA, Charles W. The nature of History in Ancient Greece and Rome. Berkeley/London: University of California Press, 1983, p. 91: “... to the Greeks and Romans, ‘history’ was not an aspect of time; ‘the past’ and history were no more intrinsically related than were ‘the present’ and history. The relation was identical for both ‘history’, was written both of the present and of the past.”18 Veja-se o caso de Tucídides: “... if one thing is certain it is that when Thucydides said that he collected and wrote things down, he did not know that this made him a historian. Why not? Because the words ‘historian’ or ‘history’ did not yet exist, as technical expressions for what Thucydides was doing”. HORNBLOWER, Simon. Thucydides. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1987, p. 12.

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da filosofia o estudo do conceito de tempo na Antigüidade – este é o seu campo próprio de definição.19

Podemos buscar a origem da importância da temporalidade no conceito atual de história, diferentemente do encontrado em Heródoto e Tucídides no desenvolvimento da cronologia e da genealogia.20 A primeira se preocupou exclusivamente com o estabelecimento de sistemas de contagem e sistemati-zação de períodos e eventos, como no caso da contagem dos anos através do calendário olímpico, elaborada por Timeu (c. 356 – 260 a.C.).21 Já a segunda é caracterizada pelo relato da tradição de feitos heróicos, misturando lendas e mitos, da qual a Teogonia de Hesíodo (c. 700 a.C.) é o melhor exemplo. Por-tanto, podemos praticamente descartar a influência de Homero22 e começar a traçar os antecedentes da “temporalidade histórica” que nos interessa com os Trabalhos e os dias e o ciclo das Idades que apresenta.23

Este texto de Hesíodo é o primeiro exemplo de narrativa centrada na im-portância do decorrer do tempo, mesmo que ainda não adquira as caracterís-ticas de obra histórica – já que não há compromisso sistemático com o relato “verdadeiro” em oposição ao “mítico”. É também um típico representante da associação entre pensamento greco-romano e tempo cíclico opostos ao tempo linear judaico-cristão, sobre a qual falaremos adiante. No texto de Hesíodo (Os Trabalhos e os dias, parágrafos 109 a 201), há uma sucessão de cinco raças ou idades dos homens: a primeira e mais elevada é a Idade de Ouro, na época de Cronos, na qual não existia a velhice. Depois surge a Idade de Prata, quando

19 Como exemplo, veja-se ARISTÓTELES, Física, 4, 14.20 Para uma análise e crítica da divisão de sub-gêneros historiográficos feita por Jacoby, ver FORNARA, Charles W., op. cit., e MARINCOLA, John. Genre, convention and innovation in Greco-Roman historiography. In: KRAUS, C. S. (ed.). The limits of historiography – Genre and narrative in Ancient historical texts. Leiden/Boston/Köln: Brill, 1999, p. 281-324.21 O mesmo Timeu que é duramente criticado por Políbio no livro XII de suas Histórias.22 “... não se acha praticamente em Homero pensamento sistemático acerca das origens do mundo ou dos homens. De maneira geral, o tempo dos poemas homéricos não é tanto um contínuo abs-trato e sem qualidades mas antes um fenômeno prenhe de atividade.” LLOYD, G. E. R. O tempo no pensamento grego. In: RICOEUR, Paul (ed.). As culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 139.23 Veremos adiante como há pontos de contato entre essa tradição grega e os conceitos judaico-cristãos, mas veja-se Pattaro: “… o tempo se acha relacionado, na literatura cristã primitiva, ao tema das idades do mundo. As sutis variantes dessa concepção dizem geralmente respeito à história da salvação, que costuma ser dividida em quatro períodos sucessivos, a saber: a idade da lei natural, a da lei mosaica, a da graça e a da glória.” PATTARO, Germano. A concepção cristã do tempo. In: RICOEUR, Paul (ed.). As culturas e o tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 197-198.

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os homens, insolentes perante os deuses, viviam cem anos na infância, mas morriam logo após a adolescência. Segue-se a Idade do Bronze, estritamente associada à guerra, e a Idade dos Heróis, também de caráter belicoso, mas jus-ta e valorosa.24 A Idade de Ferro seria a própria época de Hesíodo, em que os homens trabalhavam dia e noite e envelheciam rapidamente. Ainda uma raça futura é prevista, raça esta em que os homens já nascerão de cabelos brancos e não terão vergonha ou respeito. Segundo Martin,25 podemos inclusive detectar dois ciclos distintos de apogeu e decadência, sendo o primeiro as idades de Ouro, Prata e Bronze, e o segundo a Idade dos Heróis, decaída na do Ferro e na última que virá. Nota-se claramente o movimento de declínio demonstrado na seqüência dos metais e das raças correspondentes, de um passado glorioso a um presente degenerado.26

Dentro da tradição historiográfica grega, os momentos nos quais a reflexão sistemática sobre a temporalidade está presente na narrativa são restritos ou circunstanciais. Podemos sugerir ainda a definição de dois planos de desenvol-vimento distintos, dentro dos objetivos de nossa reflexão.

Primeiramente, com Heródoto e Tucídides, temos a sucessão de fatos na narrativa de um evento – específico em Tucídides, múltiplos em Heródoto. Isso na Zeitgeschichte grega (“história contemporânea”, como assim definia Felix Jacoby) não representa uma forma extensa de temporalidade, justamente porque o objetivo do texto era centrar-se em causas e efeitos de uma realida-de contemporânea – nesse sentido, a história grega é a história do presente.27

24 “The Age of Heroes is clearly an intrusion into an older sequence based on metals. No doubt the intrusion was at least partly the result of chronological schemes and synchronization: when it was realized that the heroes of Homer, such as Achilles, Agamemnon and Odysseus, would have to be placed in a mere Age of Bronze, a special slot for them was inserted that interrupted the decline”. LUCE, T. J. Greek historians. London: Routledge, 1997, p. 12.25 MARTIN, R. H. The golden age and the KUKLOS GENESEwN (Cyclical Theory) in Greek and Latin literature. Greece & Rome. Vol. 12, n. 35/36, 1943, p. 70. Lloyd, op. cit., não vê seis idades, mas apenas cinco.26 Já Finley vê o relato de Hesíodo como totalmente atemporal. FINLEY, Moses. Mito, memória e história. In: Uso e abuso da História. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 8-10.27 “The most important sub-genre of all for Jacoby was contemporary history (Zeitgeschichte), the writers of which he defined as ‘those authors who without local restriction narrated the general Greek history of their own time or up to their own time.“The distinguishing marks of Zeitgeschichte are: (i) a narrative mainly of the author’s own time, irrespective of where it begins; (ii) a viewpoint from the Greek side; and (iii) a panhellenic treatment, i.e., embracing events of all the Greek city-states. (…) After Thucydides, writers of Zeitgeschichte chose either to write up individual wars, or to continue the chronicling of contemporary history now focused not on a particular event but rather on a chosen segment of time, as Xenophon did in the Hellenica and as the many serial

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Mesmo quando encontramos por exemplo a Archaeologia no início do relato de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso, tal preocupação com a narrativa de uma temporalidade extensa não corresponde à concepção total de sua obra. Existe, porém, uma explicação bastante coerente para este fato em Tucídides que ele utiliza como argumento: a importância de se estabelecer a verdade so-bre os fatos impede o historiador de conseguir testemunhos satisfatórios para períodos muito distantes do passado e, por isso, a Archaeologia é apenas uma pequena parte de seu texto. No caso de Tucídides, o que realmente lhe importa é a presença não do perene dos fatos mas sim do imutável das almas, a physis, como causa última do conflito, stasis.28 O segundo plano, em que encontramos Políbio, seria a intuição de causa e efeito como processo histórico mais longo inerente à estrutura da narrativa. Tal contexto surge com a ampliação do arco temporal em obras históricas a partir do período helenístico – as “histórias universais” do próprio Políbio e, por exemplo, Posidônio e Diodoro Sículo.

A reflexão de caráter teórico sobre temporalidade na Antigüidade está de muitas formas confinada a planos restritos e mesmo a percepção cotidiana do tempo não o toma sempre como um valor metafísico fundamental. A Zeitges-chichte grega de Heródoto e Tucídides se abre para novos modelos de narrativa com o passar do tempo, mas isto não significa que incorpore uma conceituação mais sistemática das estruturas de tempo na história. O surgimento da história universal no período helenístico teve Políbio como melhor representante, ainda que sua idéia de ciclos temporais esteja essencialmente vinculada ao debate filosófico sobre as instituições políticas, que os definem,29 e não com o desen-volvimento da historía de Heródoto.

A história romana, porém, teria em si a possibilidade de uma conceituação de temporalidade muito maior do que a grega, pois se trata essencialmente da história do desenvolvimento de uma cidade, Roma. De fato, os historiadores

continuators in Greek history attest. Histories centered on individuals (…) also qualify, provided that they are not limited by a local focus.” MARINCOLA, John., op. cit, p. 287.28 Sobre Heródoto, o mesmo problema: “[ele apresentava] a mentality that did not see the world as a sequence of events with causes, but rather saw the permanent in a variety of times, places, and changing circumstances; saw, in a word, a recurrent and meaningful process”. HUNTER, V. Past and process in Herodotus and Thucydides. Princeton: Princeton University Press, 1982, p. 177.29 MOMIGLIANO, A. Ensayos de historiografía antigua y moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 166: Já que “... fuera de los capítulos constitucionales, en el resto de su historia Polibio actua como si no tuviera ninguna visión cíclica de la historia”, (...) “Me gusta-ría tomar a Polibio como una instancia del hecho de que los filósofos griegos solían pensar en términos de ciclos, peo los historiadores griegos no.”

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romanos expressaram, ainda que às vezes ocasionalmente, uma grande preo-cupação com o desenvolvimento de Roma: seu início, o presente e uma certa ansiedade quanto à possibilidade de seu fim. Ainda assim, mesmo com tal ênfase, não podemos dizer que os relatos sobre o passado em Tito Lívio, Salústio ou Tácito abstraiam sistematicamente a idéia de temporalidade.

Tomemos que exista, portanto, na Antigüidade greco-romana, uma reflexão sistemática sobre o tempo “físico” apenas no campo da filosofia, e de formas da temporalidade, em certas instâncias pontuais, em historiadores como Políbio. Essas formas são de fato como veremos, cíclicas. Aliás, o fato mesmo desta própria reflexão existir é a razão inicial para que se associe com freqüência tal idéia de temporalidade ao pensamento greco-romano. Porém, isso não signifi-ca necessariamente que o conceito cíclico de tempo seja o único presente, ao contrário da linearidade do tempo judaico-cristão. O que ocorre é justamente o desenvolvimento também da reflexão sistemática deste último como um pro-cesso único, irreversível e com sentido definido. Ou seja, afirmar que os pagãos concebiam a circularidade não necessariamente os exclui da possibilidade de compreender formas lineares de tempo.

Assim, o debate atual sobre essas duas concepções - cíclica e linear - tornou-se uma boa oportunidade para desfazer a rigidez que tem sido formada em torno de suas caracterizações. Obviamente, temos que reconhecer que as associações originais não deixam de ter um sentido, corroboradas por todo o conjunto de reflexões mencionado – Hesíodo e Políbio ainda são fortes exemplos de pensamento cíclico pagão. Entretanto, quanto mais se encontram falhas em tais associações de conceitos, mais isso significa, em última instância, que é impossível fazer uma distinção absoluta entre as duas concepções de tempo. Primeiro, porque a concepção linear nasce da cíclica, como veremos adiante, e segundo, porque não existe nenhuma teorização tão desenvolvida na Antigüidade que não permita uma certa flexibilidade entre os dois conceitos.30

30 PRESS, Gerald A. The development of the idea of history in Antiquity. Kingston/Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1982, p. 21-22: “... the linear-cyclic account seems incorrect, using as it does a definition utterly alien to antiquity. Although there may be, in some transhistorical sense, a logical connection between the idea of time and the idea of history, the ancients, as a matter of historical fact, did not see them as connected (...). While some writers of historical works say that events repeat themselves and some philosophers speculate about cosmic cycles, there are also other views expressed and no one says that history is circular, repetitious, or meaningless.”

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linearidadeO surgimento da idéia de tempo unidirecional, de sentido fixo e único, foi

de certa forma possível através da consolidação do monoteísmo judaico, no qual se pressupõe o poder e a vontade de um deus único que, dessa forma, cria não só o universo como também o tempo. Mircea Eliade interpreta o desenvolvi-mento do conceito de linearidade entre o povo judeu através da importância da Aliança e da questão do sofrimento:31 é a forma de punição divina, expressão da “ira” de Yahveh. Segundo Eliade, o sofrimento só pode ser compreendido e suportado na medida em que se sabe o seu propósito, ou seja, é a expressão da vontade divina, e assim dá valor ao movimento da História.

Até este ponto poderíamos ainda fazer um paralelo com o mundo dos deuses greco-romanos, já que a vontade deles, cuja razão pode ou não ser co-nhecida, determina importantes acontecimentos na vida cotidiana – no mundo greco-romano, também se sofre por conta da vontade dos deuses. Basta citar, por exemplo, a popularidade do culto à deusa Fortuna que representa uma aceitação do conceito da imprevisibilidade da sorte entre os romanos. Entre-tanto, há diferenças fundamentais. A primeira é a Aliança de Deus com o povo judeu, um evento único na história, que jamais se repetirá. A partir da Aliança, um evento passado determinante nas ações do presente, o pensamento judaico (e posteriormente cristão, com alterações) fixa a singularidade do tempo e da história. Ainda mais, traz um aspecto novo na percepção de temporalidade entre os antigos: aqui existe a espera de uma revelação divina que se fará em um futuro indeterminado. Os profetas desempenham um papel importante nisso, pois ratificam a idéia da vontade onipotente de Deus ao terem suas profecias realizadas, dando assim um sentido absolutamente unidimensional à história do povo escolhido - seu passado, presente e principalmente futuro. Tal conceito é expandido ainda mais pelo Cristianismo, pois Santo Agostinho mesmo diz que a vinda de Cristo prova como a vontade de Deus é única, e que a paixão, o perdão dos pecados e a ressurreição só poderiam ocorrer uma única vez.32 A segunda vinda de Cristo e o Juízo Final, por conseguinte, poriam um fim à história.

31 ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo, Mercuryo, 1992, p. 95 e seguintes.32 De Civitate Dei, XII, 13: “Semel enim Christus mortuus est pro peccatis nostris; surgens autem a mortuis iam non moritur, et mors ei ultra non dominabitur, et nos post resurrectionem semper cum Domino erimus”. “Pois Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados e, ressuscitando dos mortos, já não mais pode morrer. Assim como a morte não teve mais domínio sobre ele, nós mesmos depois da ressurreição estaremos com Deus para sempre.”

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Porém, é falso ver um sentido de progresso definido nessa tal suposta linea-ridade cristã, em que presumivelmente a humanidade segue se desenvolvendo de forma positiva rumo a uma escatologia redentora. Muito pelo contrário, espera-se um sentido de decadência da humanidade que culmina num defectus finis, em contraposição ao paraíso perfeito do início - uma proposição que vemos desde Daniel até o Apocalipse. Aí está o próprio sentido da redenção.

Por mais paradoxal que seja, encontramos aqui a contradição principal que poderia, a rigor, demonstrar que o tempo linear propriamente dito na verdade não existe, como concepção histórica cristã: se a história tem um começo, a redenção pressupõe o seu fim, e não só o tempo é limitado como ele retoma, no Juízo Final, um estado perfeito inicial. A eternidade não é a princípio histórica, mas sim parte da natureza de Deus e, portanto, não pode ser usada para definir uma linearidade per se.33 Assim, o tempo linear cristão seria apenas o tempo “cíclico” de um só ciclo,34 pois não se repete.

Mazzarino fornece ainda dois argumentos para corroborar a idéia de que a linearidade judaico-cristã contém elementos da intuição pagã de temporalidade. Em primeiro lugar, o uso da contagem linear do tempo a partir dos anos, antes e depois de Cristo, o que seria a princípio um uso eminentemente linear, que se consolidou até hoje, tem antecedentes na cronografia grega. Poderíamos ir além de Mazzarino e lembrar que as datações judaica e islâmica também utilizam o mecanismo do tempo contado em relação ao antes e depois de um evento, mas também, por exemplo, o mesmo ocorre com todo o cálculo romano utilizado nos anais, relacionados ao tempo decorrido com a fundação de Roma. Afinal, não há uma diferença fundamental de intuição da temporalidade entre esses dois mundos, “la diferenza consiste, piuttosto, nella diversità dei fatti che si pongono a base dell’èra”.35 No Novo Testamento encontramos um conceito indubitavelmente cíclico.36 A Segunda Epístola de são Pedro, ao tratar da espera pelo Juízo Final, traz claramente a idéia de um tempo que é substituído por outro, onde as estruturas do mundo ainda existem, ainda que renovadas: “O que

33 De novo santo Agostinho, Confessiones XI.34 Dentro de duas eternidades atemporais. ELIADE, Mircea,. op. cit., p. 101: “... tempo finito, um fragmento (embora também seja cíclico) entre duas eternidades atemporais.” Cf. PATTARO, Germano. op. cit., p. 199: “... a realização escatológica arrasta o passado em direção a um futuro cujo ponto de chegada, o dia do Apocalipse, será o ponto culminante de toda a história acabada.” – ainda que Pattaro não admita a mesma visão de Eliade.35 MAZZARINO, Santo, op. cit., vol. 3, p. 354.36 Ibid., p. 419.

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nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”.37 É claro que não se trata de um céu e uma terra idênticos aos do mundo atual, mas há ainda uma idéia de caráter circular. Tudo isso significa que o pensamento judaico-cristão ainda dependeu de conceitos e referências temporais também encontrados no mundo greco-romano.

cicloA importância do esquema cíclico para se compreender a história deriva

de uma reflexão paradoxalmente não-característica do pensamento histórico. O ciclo, e aqui retomamos os conceitos de Mircea Eliade, seria uma resposta à indeterminação da história, uma forma de se contornar o medo das conseqüências imprevisíveis das atitudes no presente, da instabilidade e da mudança em direção ao desconhecido. Seria também, dessa forma, a negação do fim do universo. Afinal o que é um ciclo, senão períodos dentro da existência do universo ou da humanidade que surgem, se desenvolvem e degeneram a um ponto tal que a superação de sua crise implica em outro ciclo idêntico ou semelhante, portanto até certo ponto previsível?

Porém, uma distinção entre categorias cíclicas relativas ao “universo” e à “humanidade” é importante: trata-se de considerar respectivamente um tipo de ciclo cosmogônico em que cada um de seus períodos é exatamente idêntico aos outros, e outro histórico, em que a repetição de algumas estruturas, sejam políticas ou de outra forma institucionais, prevê necessariamente algum tipo de sucessão no desenvolvimento de uma determinada sociedade, o que, em última instância, também acaba revelando um sentido de linearidade – uma “sucessão linear” de ciclos.

O primeiro tipo, o ciclo do universo, é exemplificado pela concepção temporal dos estóicos, baseada na visão pitagórica do universo. Sua idéia de coincidência absoluta dos ciclos está relacionada com a teoria matemática da perfeição do círculo, da imutabilidade ideal e harmoniosa presente no mundo. A mudança para os estóicos é, nesse sentido, desestabilizadora, e mesmo que exista alguma noção de progresso dentro de cada ciclo, nada do que nele resulta é essencialmente válido, pois jamais destruirá a igualdade predeterminada dos

37 2 Pedro, 3:13, “novus vero caelos et terram novam secundum promissum ipsius expectamus, in quibus iustitia habitat.”. Vulgata.

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períodos38 - a mudança é inerente a uma permanência que sempre se repete. Nesse sentido, a decadência e o fim não são necessariamente uma visão pes-simista do mundo, já que a isso se segue um novo, e idêntico, ciclo. Sêneca é um dos autores que tratam dessa questão e, particularmente, é um dos poucos antigos a considerar a possibilidade do progresso para a humanidade. Apenas, nada do que fosse resultado desse progresso teria realmente um valor definitivo de mudança para a melhoria do mundo:

Tudo o que a longa indulgência da fortuna cultivou, tudo o que foi des-tacado acima do resto das coisas, tudo o que é nobre e belo, mesmo os reinos das grandes nações, tudo será levado à ruína um dia. 39

O segundo tipo de tempo cíclico é aquele diretamente vinculado à história. A idéia pode ocorrer como o ciclo das instituições políticas de Políbio, ou den-tro da existência de um determinado império, cidade ou influência de alguma cidade-estado - ou seja, sempre em torno da ação do poder.40 Na verdade, pelo fato deste tipo não pressupor uma rigorosa identidade entre seus diferentes períodos, como nos ciclos estóicos, podemos dizer que existiria neste esquema uma espécie de “progresso” em alguma direção qualquer. Não que tal progresso seja necessariamente uma forma de desenvolvimento para melhor em relação ao ciclo anterior, mas há sim uma mudança de estados – um tipo particular de continuum em uma direção determinada, ascendente ou descendente.

38 BURY, John B. The idea of progress - An inquiry into its origin and growth. New York: Dover, 1987, p. 18-19 [sobre a importância da Moira, ou Pronoia - providência - para os estóicos]: “Moira meant a fixed order in the universe; (...) It was this order which kept things in their places, assig-ned to each its proper sphere and function, and drew a definite line, for instance, between men and gods. Human progress towards perfection - towards an ideal of omniscience, or an ideal of happiness, would have been a breaking down of the bars which divide the human from the divine. Human nature does not alter; it is fixed by Moira.”39 “quicquid tam longa fortunae indulgentia excoluit, quicquid supra ceteros extulit, nobilia pariter atque adornata magnarumque gentium regna pessum dabit” . Naturales quaestiones III, 29, 9, citado e analisado em EDELSTEIN, Ludwig. The idea of progress in classical Antiquity. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1965, p. 173.40 Outro ciclo possível é o “biológico”, como em Floro, que traça uma metáfora da história como a vida de um ser – através de seu nascimento, juventude, apogeu, velhice e morte. Ver RUCH, M. Le thème de la croissance organique dans la pensée historique des Romains, de Caton à Florus. In: Aufstieg und Niedergang der römischen Welt. I.2, 1972, p. 827-841 e HAVAS, László. Élements du biologisme dans la conception historique de Tacite. In: Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II, 33.4, p. 2949-2986.

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Políbio considera que existem mudanças no tipo de governo, que seguem obrigatoriamente um certo padrão (monarquia-tirania, aristocracia-oligarquia, democracia-oclocracia),41 e são determinadas pelo desenvolvimento das institui-ções políticas, culminando de forma inevitável em uma decadência dos costumes e da moral. Porém, cada vez que ocorre um desses ciclos, seu desenvolvimento significa que nada será igual ao anterior. O caso mais importante que ele utiliza, de Roma durante as Guerras Púnicas, é exemplar: a constituição mista romana surgiu através da coincidência de uma série de fatores por conta do desenvol-vimento da organização social da cidade, mas jamais será novamente idêntica à do período em que Políbio vive. Isso é verdade porque há sempre um quadro de fatores externos e internos em uma determinada situação que nunca é idêntico ou imutável. Em última instância, se existe para Políbio algo que jamais muda, é o processo de corrupção do caráter moral individual dentro de uma sociedade. A decadência advém sempre do luxo e da ganância provenientes do máximo desenvolvimento dentro de uma estrutura política determinada - e este sim é um topos na Antigüidade. Porém, como vimos, o problema de Políbio é justamente a falta de sistematização de seu argumento em sua visão geral da história.42

progresso e decadência em romaO conceito de circularidade não pressupõe necessariamente nenhum tipo

de progresso contínuo e duradouro. De fato, a noção de que não tenha existido um sentido verdadeiro de progresso no mundo greco-romano é bastante conso-lidada na historiografia atual.43 Há, no entanto, alguns sinais de sua existência na Antigüidade, ainda que sem a importância que o conceito assumiu após o Renascimento.44 O progresso em geral é sentido em períodos de prosperida-

41 Esquema bastante comum dentro do pensamento político grego, especialmente em Aristóteles. Note-se porém que o termo “oclocracia” é inédito até Políbio (cf. Lidell-Scott).42 Cf. nota 25, assim como aponta Starn: “If Rome, through the mixed constitution Polybius des-cribed, could escape the downward turn of the cycle as he suggested, if the cyclical plan hardly entered his actual historical narrative, then Polybian cyclism may be taken for a theoretical exercise, another case of historians’ indiscriminate borrowing, or for fashionable philosophical talk.” STARN, Randolph. Meaning levels in the theme of historical decline. History and theory. Vol. 14, n. 1, 1975, p. 19.43 Para um resumo dessa visão, ver BURY, John B., op. cit. Uma abordagem contrastante está em EDELSTEIN, Ludwig. op. cit.44 LE GOFF, Jacques. Passado/presente. In: ROMANO, R. (dir.) Enciclopedia Einaudi – memória/história. Vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 301: “... na Antigüidade pagã predominava a valorização do passado, paralelamente à idéia de um presente decadente; (...) na Idade Média, o

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de, paz e desenvolvimento, mas toma forma especialmente entre os filósofos antigos em relação ao desenvolvimento técnico-científico – o que é próprio especialmente do período helenístico. O progresso é também uma forma de expressão do poder e, na sua relação com a idéia de decadência, é definido por interesses de determinados grupos na sua promoção. Exemplos adequados para isso podem ser encontrados com grande freqüência e facilidade na histó-ria contemporânea, mas uma forma típica no mundo antigo era a propaganda política, literária e religiosa em torno de Augusto, com o surgimento de uma “Idade de Ouro” romana.

Na verdade, não seria realmente adequado tratar o período de Augusto, visto como “progresso” pelos romanos, em relação a uma República decadente. O contraponto fundamental do conceito antigo de decadência, e romano em particular, é na realidade a idéia de renovação, um tempo virtuoso que retoma o passado exemplar, depois do ponto máximo de um período de declínio.45 A decadência não necessariamente significa uma postura pessimista e sem espe-rança, mas sim traz um clima otimista para aqueles que percebem estes sinais: ela prenuncia o advento de um novo período, necessariamente reabilitador. Nesse sentido, a concepção romana de tempo pode sem dúvida ser interpretada como cíclica,46 como vemos no surgimento da nova era prenunciada pela Quarta Écloga de Virgílio:

Já chega a última idade cantada pela Sibila de Cumas,e começa de novo o grande ciclo dos séculos.Já retorna a Justiça, e os tempos em que reina Saturno,

presente está encerrado entre o peso do passado e a esperança de um futuro escatológico; (...) no Renascimento, o investimento é feito no presente e (...), do século XVII ao XIX, a ideologia do progresso volta para o futuro a valorização do tempo”. Para um histórico da questão a partir do século XIX, ver HERMAN, A. The idea of decline in western History. New York: Free Press, 1997.45 Para o papel de Augusto nessa renovação e os paralelos construídos com o passado, veja-se a discussão apresentada em MARQUES, Juliana Bastos. Rômulo, Camilo, Augusto: a Roma renovada de Tito Lívio. In: LESSA, Fábio de Souza; BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. (orgs.). Memória e festa. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 427-434.46 “Na Antigüidade, em que o sentimento e a idéia de progresso são praticamente inexistentes, o conceito de decadência não tem verdadeiro contraponto, mas, numa perspectiva religiosa, pode, como acontece em várias épocas do Império Romano, transformar-se, por exemplo, em base e inspiração de um programa político; a idéia de renovatio aparece por vezes como um antídoto de ruína”. LE GOFF, Jacques, Decadência. In: ROMANO, R. (dir.). Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 394.

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já uma nova raça desce do alto dos céus.47

O contexto da Quarta Écloga é, no entanto, bastante específico. Ela remete politicamente ao período de paz e expectativa que corresponde à afirmação do poder de Otaviano (ainda em 40 a.C.), mas tem referências que vão desde a astrologia até as antigas tradições dos Oráculos Sibilinos. A seqüência das eras em seus “ciclos” se refere ao conceito de magnus annus que consiste em um período de anos delimitado pela ocorrência sucessiva da mesma disposição de todos os corpos celestes no céu.48 Outra leitura considera a tradição etrusca de dez séculos de existência para uma nação, incorporada nos Oráculos Sibilinos.49 Seja como for, este é um exemplo da preocupação romana com o correr do seu tempo, com a consolidação de seu passado e a definição de seu futuro. Tais tradições, como também a das águias vistas por Rômulo,50 que determinariam um ciclo de doze séculos para o império romano (ou 120 anos, dependendo da interpretação de cada fonte), são absolutamente originais em relação aos gregos e também fundamentais para determinar a grande expectativa dos romanos com o seu destino. E em cada época essa expectativa se caracteriza de forma diferente, de acordo com a realidade vivida: se para Tácito o fim do império certamente virá,51 para Virgílio cada fim se configura num novo começo. “Imperium sine fine dedi”, diz Júpiter na Eneida (1, 279).52

47 “Ultima Cumaei venit iam carminis aetas;magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna,iam nova progenies caelo demittitur alto.”Para análise, ver CARCOPINO, Jérome. Virgile et le mystère de la IVe églogue. Paris: L’Artisan du Livre, 1930.48 Cf. Cícero, De Republica, VI, 25.49 Orac. Sib. 4.47, 8.199. “That the doctrine of saecula was in some form incorporated into the Roman Sibylline tradition is clear from the fact that the dates of the Ludi Saeculares, e.g. in 249 and 149 B.C., were fixed after consultation of the Sibylline Books (Hor. C.S. 5). If the length of a saeculum was officially recognized as 110 years at this time (Hor., ib., 21), then there would have been an expectation that 40/39 B. C. would begin a new age”. COLEMAN, R. (ed.). Vergil, Eclo-gues (Cambridge Greek and Latin Classics). Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 131.50 Cf. TITO LÍVIO, I, 6-7 e Plutarco, Vida de Rômulo, 9.51 Cf. TÁCITO. Germania, 33, com comentário de RIVES, James. Germania. Clarendon Ancient History Series. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 258-260.52 “E foi só depois da publicação da Eneida que Roma passou a ser chamada de urbs aeterna, com Augusto sendo proclamado o segundo fundador da cidade. (...) Nasceu então a esperança que Roma era capaz de regenerar-se periodicamente, ad infinitum.” ELIADE, Mircea., op. cit., p. 116.

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Uma das mais significativas características do desenvolvimento da consciên-cia histórica romana é a valorização do passado em relação ao presente,53 através da importância do mos maiorum e dos exemplos virtuosos dos antepassados, construídos pela tradição. Ou seja, tal valorização se revela pelo processo de mitificação das origens de Roma, apresentado, por exemplo, em Tito Lívio, e se estende através da consolidação do culto religioso aos antepassados, da importância da memória e do modelo ideal e nostálgico de virtus. Mas, se é verdade que tal ponto é constante dentro do imaginário romano, segue-se logicamente que, por mais que haja um certo movimento de renovação, este nunca é suficientemente bom para substituir de maneira plenamente satisfató-ria o remoto e perfeitamente virtuoso passado – em particular na questão dos costumes e do caráter moral. Tal conclusão poderia demonstrar agora, dentro de nosso exercício teórico, que a historiografia romana é, na verdade, funda-mentalmente linear, pois a renovação, embora remeta à idéia de ciclo, é sempre diferente do passado e pressuporia, assim, uma linearidade intrínseca através de uma sucessão. Vemos assim que é possível demonstrar a validade dos dois aspectos opostos de tempo na história romana, o ciclo e a linha, já que, como afirmamos no início, são afinal de contas conceitos indissolúveis dentro da percepção de temporalidade.

Podemos perceber também a linearidade através de algumas caracterís-ticas peculiares do desenvolvimento da cidade e do Império. É importante destacar mais uma vez que a história de Roma é fundamentalmente a história do desenvolvimento de uma cidade, ainda nem que com isso posteriormente sua importância se dilua através da expansão gradativa de outras regiões do Império. É sempre a partir desse foco principal que os historiadores romanos traçam suas abordagens.54 Para tanto, e também para todo o imaginário romano, trata-se de considerar as origens, o desenvolvimento e, portanto, a duração de sua existência. Por isso é tão mais importante para o mundo latino a projeção do futuro em comparação com Zeitgeschichte grega.55

53 Ainda que levemos em conta a euforia literária da “Idade de Ouro” augustana.54 Diferentemente do que fazem os historiadores gregos: “The chief question in the minds of the Latins was one which Greek historiography had never attempted to deal (except incidentally and superficially), for the decline of a city-state or kingdom was sufficiently accounted for in the context of ecumenical history by its defeat in war.” FORNARA, Charles W., op. cit., p. 84.55 “O pressentimento de um fim ‘cientificamente’ previsível, da forma como se encontra em Políbio (ou entendido em termos éticos, como em Cícero e Salústio), estabelecia, já na cultura da Roma republicana, uma estreita correlação entre o conceito de decadência e o da previsibilidade

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Na verdade, a oposição entre ciclo e linha neste contexto, justamente pela forma como se interconectam, se põe como um falso problema. É possível, como vimos acima, demonstrar os dois lados dentro das características da historiografia romana. Se Tácito menciona a circularidade da história,56 certa-mente há também elementos claramente lineares em seu texto. Sendo assim, Tácito representa de maneira exemplar a questão que colocamos neste artigo - ou seja, a alternância entre circularidade e linearidade como conceitos tem-porais na historiografia antiga apenas vem a demonstrar um aspecto particular da inter-relação essencial entre esses mesmos conceitos nas outras instâncias de apreensão da temporalidade, inviabilizando em essência uma polarização esquemática. Resumindo, citemos Pomian: “Na prática do historiador (...) nunca se encontram os processos cíclicos, lineares ou estacionários em estado puro. O problema filosófico tradicional – o tempo da história é cíclico, linear ou estacionário? – não tem sentido simplesmente. Porque as três topologias do tempo, que por certo temos o direito de dissociar e opor para as exigências de uma análise lógica, estão na realidade ligadas uma à outra.”57

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Recebido: agosto/2007 - Aprovado: setembro/2008

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O adultériO na legenda Áurea (c. 1270)imagem feminina e afetividade marital

nO final da era gregOriana

Néri de Barros Almeida Universidade Estadual de Campinas

resumoEntre os séculos XI e XIII, a reforma gregoriana procedeu a uma vasta reorganização disciplinar da cristandade. Um de seus desdobramentos mais marcantes aconteceu no âmbito sacramental. A sacramentalização do matrimônio ocupou lugar cuja impor-tância ainda está por ser desvendada pelos estudos relativos à Era Gregoriana.1 Esta sacramentalização tornou mais aguda a necessidade de consideração do problema dos pecados sexuais, em especial, do adultério.

Palavras-chaves:Adultério • casamento • reforma gregoriana.

abstractThe Gregorian reformation performed a large disciplinary reorganization of the christianity from the XIth to the XIIIth century. One of its most important conse-quences happened at the sacramental field. The introduction of the matrimony in the sacramental field played a role whose importance is not yet revealed by the studies on the Gregorian Era. This sacramentalization made more pressing the necessity of considering the problem of sexual sin, especially, the problem of adultery.

KeywordsAdultery • marriage • gregorian reformation.

1 A cronologia da Era Gregoriana varia segundo os autores. Consideramos aqui o período de refor-mas institucionais romanas que vai de meados do século XI ao terceiro quarto do século XIII, tendo em vista as mudanças no sistema canônico e em suas formas de elaboração e autenticação.

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Peter Brown mostrou como, no pensamento tardo-antigo, a sexualidade esteve presente como instância de disciplinamento interior para o exercício da gestão pública de uma ordem instituída. Cedo, a sexualidade se impôs à comunidade cristã como meio de inscrição do cristianismo no espaço pú-blico, através do sinal distintivo que o celibato representava sobre o corpo de sua liderança.2 Durante a Idade Média, a sexualidade permanece instrumento para este disciplinamento interior e exterior, realizando um modelo pretendido de ordem social. Porém, neste caso, as prescrições rigoristas se generalizaram em escalas diversas pelo conjunto da sociedade, embora sempre tendo, como núcleo, homens da Igreja.

Apenas entre o final do século XI e o final do século XII, quando se dá a estrita proibição do casamento dos padres3 e ganha pulso o processo de sacra-mentalização do casamento,4 passa a manifestar-se um ordenamento eclesiástico mais eficiente das práticas sexuais maritais. Dentre os diversos alvos disciplina-res da Igreja então, o casamento não pode ser considerado um alvo menor. Ao pretender disciplinar a sexualidade transgressora extra-marital, por exemplo, a Igreja tocava num problema antigo e difícil, a tradição de desigualdade dos gêneros face à punição das práticas sexuais transgressoras, notadamente o adultério – situação experimentada à revelia das prescrições neo-testamentárias5

2 BROWN, P. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.3 “A situação mais freqüente em matéria de castidade é, no entanto, muito simplesmente, o casamen-to dos padres. Os concílios e outras prescrições dos séculos VI e VII foram, durante muito tempo, inoperantes: casar-se é para um padre coisa normal e corrente. No século VIII, as episcopissae (mulheres de bispos), presbiteriae (mulheres de padres) etc. governam a vida interior de seus maridos e são honradas. Nos séculos IX e X, os membros do clero deixaram de casar, obrigados a isso pela legislação, a partir de então severamente aplicada – devem separar-se das esposas –, mas passaram do casamento ao concubinato, situação então perfeitamente tolerada, quando estável e monogâmica... No entanto, esta situação não dura muito. São exercidas múltiplas pressões nos curas para os obrigar a mudar; a dos eremitas inspirados, a da arraia miúda dos campos (influenciada pelos eremitas, 1020-1030), a dos mosteiros locais que superintendem certas paróquias (950-1050) e, finalmente, a dos bispos (1050-1150). A partir de 1030, o clero começa a reagrupar-se nas aldeias fortificadas onde forma comunidades (colegiadas) que servem também as modestas capelas rurais; no século XII, a vida comum torna-se a forma normal da vida clerical. A evolução concluiu-se em 1150”. BERNOS, M. et alii. O fruto proibido. Lisboa: Ed. 70, s\d, p. 100 e 127.4 Um dos referenciais cronológicos relevantes desta história foi a incorporação do matrimônio na lista dos sacramentos pelo papa Luciano III em 1184.5 Diversas passagens do Novo Testamento insistem na condenação do adultério tanto masculino quanto feminino (Mateus 5:31-32 e 19:9, Marcos 10: 11-12, Lucas 16:18, João 8: 3-11, Romanos 7:2-3 e I Coríntios 7:10-11;39).

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e dos esforços da própria Igreja. Atuar contrariamente a esta desigualdade “na-turalizada” pelas práticas sociais significava alterar uma esfera fundamental do poder familiar e masculino. O problema do adultério permite, assim, acompanhar as oscilações que caracterizaram as relações entre a autoridade eclesiástica e o poder público em esferas diversas de sua manifestação.

Até o século XII, a igualdade dos seres humanos no pecado não havia chegado a ameaçar a desigualdade entre os sexos na culpabilização por delitos sexuais. A despeito da culpa universal e da salvação comum, o próprio clero, sobretudo monástico, reforçou a imagem da mulher como ser que induz ao pe-cado sexual. Por outro lado, a Idade Média herdou da Antigüidade e aperfeiçoou com sua espiritualização e moralização das práticas sexuais, notadamente do casamento, certa aproximação jurídica entre adultério e prostituição. Segundo a Lex Julia Adulteriis (18 d.c.), a conjux ingênua ou claríssima poderia se subtrair das penas por adultério apresentando-se à Justiça como prostituta. Sob Teodósio (346-395), os culpados de adultério eram conduzidos publicamente a um lugar de prostituição. A lei romana também definia a prostituição de forma bastante ampla como sendo a prática de uma pessoa que concedia favores sexuais livre-mente, sem a especificação de qualquer recebimento para tal.6

Podemos observar confusões semelhantes na Legenda Aurea,7 coletânea hagiográfica composta pelo teólogo dominicano e futuro bispo de Gênova, Jacopo da Varazze. Nesta obra, o termo prostituição pode aplicar-se generi-camente aos pecados sexuais femininos. Mulheres como santa Teodora, cujo pecado é o adultério, podem também aparecer qualificadas como prostitutas. A legenda de santa Maria Madalena mostra, com clareza, de que forma o perfil da mulher luxuriosa, de vida sexual e social independente, se confunde com o da prostituta. Apenas as legendas de santa Maria Egipcíaca8 e de santa Taís9 deixam

6 VACANDART, E. Adultère. Diccionnaire d’archeologie e de liturgie chretienne, p. 547-549 e BRUNDAGE, J. A. Law, sex and christian society in medieval Europe. Chicago\London: Uni-versity of Chicago Press, 1987, p. 30 e 44. SCHMITT-PANTEL, P. L’âne, l’adultère et la citè. In: LE GOFF, J. e SCMITT, J. C. (orgs.). Le charivari. Paris\New York: Mouton\La Haue, 1981, p. 120, constata, nos julgamentos públicos contra réus de adultério de cidades antigas gregas, a identificação tanto do homem como da mulher com a figura da prostituta.7 JACOPO DA VARAZZE. Legenda Aurea. Giovanni Paolo Maggioni (ed.). Firenze: Sismel/Edizioni del Galluzzo, 1999. Todas as legendas mencionadas em nosso texto foram extraídas da edição Maggioni. Dessa forma, as citações de legendas que se seguem acompanham a numeração e a paginação estabelecidas pelo editor italiano.8 De Sancta Maria Egyptiaca, LIV, p. 374-377.9 De Sancta Thaysi, CXLVIII, p. 1038-1040.

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claro o recebimento de pagamento pelo uso do corpo destas santas pecadoras. À época de Jacopo da Varazze, as mudanças sociais e econômicas cada vez mais levavam à superação da concepção moralizante da prostituta em favor de sua identificação como a mulher semi-confinada aos lupanares – que proliferam nas cidades de então – que vende seu corpo. A despeito da importância desse contexto para o estabelecimento de uma identidade estrita da atividade das prostitutas – passo significativo para uma melhor definição e enquadramento jurídico dos pecados femininos –,10 de modo geral, a prostituição na Legenda Aurea ainda diz respeito à moralidade e não ao comércio.

Pela via de heranças várias, acolhidas, ordenadas e promovidas pelos am-bientes monásticos, a desigualdade entre homens e mulheres face ao adultério cristalizou-se a ponto deste tornar-se um pecado feminino por excelência. A Lex Julia Adulteriis foi um dos legados antigos à desigualdade entre homens e mulheres adúlteros. De acordo com ela, os homens podiam ter relações extra-maritais com concubinas e prostitutas sem se tornarem alvo de penalidades. Era-lhes vedado, no entanto, o intercurso extra-marital com mulheres da aris-tocracia.11 Os juristas romanos pré-cristãos entendiam o adultério como um crime da mulher casada que tinha relações sexuais com qualquer um que não fosse seu marido. No entanto, a inexistência de vínculos legais nas ligações entre escravos e entre homens livres e suas concubinas impedia estas mulheres de serem submetidas a julgamento por adultério.12

A tradição judaica impulsionara as práticas no mesmo sentido. Nela, embora o casal adúltero devesse ser punido igualmente com a morte,13 a esposa estava impossibilitada de mover ação de adultério contra seu marido.14 Neste segundo caso, a valorização da castidade feminina - não apenas das mulheres casadas, como também das viúvas e mulheres solteiras - decorria de imperativos de pu-

10 KARRAS, R. M. Holy harlots: prostitutes saints in medieval legend. Journal of the History of Sexuality, 1, 1990, p. 8-11.11 Segundo SIVAN, H. Le corps d’une pécheresse, le prix de la piété. La politique de l’adultère dans l’Atiquité tardive. Annales HSS, 2, 1998, p. 234, o termo legal adulter, quando aplicado a um homem, diz respeito, na Roma antiga, aos “amantes celibatários de mulheres casadas, por definição, um homem casado que tinha uma ligação extra-marital não era um adulter”. Em cidades gregas, o adultério masculino era configurado apenas quando se tratava de relações extra-maritais com a mulher de outro cidadão. A união com mulheres – casadas ou solteiras – de outra condição social não configurava adultério do cidadão casado (SCHMITT-PANTEL, P., op. cit., p. 120-121).12 BRUNDAGE, J. A., op. cit., p. 30-32.13 Levíticos 20:10 e Deuteronômio 22:22.14 VACANDART, E., op. cit., p. 546-547.

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reza religiosa, artifício utilizado face ao perigo de absorção pelas comunidades circundantes.15 Nas leis germânicas, temos igualmente a feminilização do crime de adultério, costumeiramente tratado como matéria doméstica. Poucos códigos germânicos previam a penalização do adultério masculino.16 As prescrições paulinas e as mudanças jurídicas ocorridas na época de Constantino, favoráveis à equiparação dos gêneros face ao adultério,17 foram ineficazes para mudar o peso dessas heranças sobre as práticas cristãs.

Desde as primeiras regulamentações canônicas dos pecados sexuais, ho-mens e mulheres estiveram sujeitos às mesmas penas por adultério; além disso, buscou-se estimular a denúncia feminina dos crimes sexuais de seus esposos aos padres. No entanto, o adultério continuou sendo uma prática que adquiria significado social maior quando considerada do lado feminino. Assim, durante boa parte da Idade Média, vemos uma preocupação desigual com a punição dos desregramentos sexuais. A essencialidade das trocas matrimoniais, como veículo de estabelecimento de pactos de poder no período, reforçou a imagem da sexualidade como foco de controle da feminilidade, situação que fazia do repúdio uma prática corrente e unilateral da aristocracia. A despeito da censu-ra bíblica ao repúdio, por outras razões que não a prostituição,18 este vigorou firmemente durante boa parte da Idade Média. Apenas a partir da Idade Média central, podemos constatar, nas prescrições canônicas, um avanço na equi-paração de homens e mulheres no casamento, fato que se torna perceptível na importância dada pelo Decreto (Concordia Discordantium Canonum) de Graciano (1140) ao débito conjugal e no estabelecimento do consentimento mútuo como elemento fundamental para a efetivação da união matrimonial, com Inocêncio III. Esta tentativa de equiparação entre os sexos teria inevitável repercussão na forma como eram até então encarados, na prática, os pecados sexuais femininos e masculinos. Complexa pela própria amplitude secular da matéria que a compõe, a Legenda Aurea ordenada por Jacopo da Varazze não se furta ao contexto em que antigos princípios cristãos – como o da igualdade dos seres humanos frente ao pecado – adquirem projeção nova em uma Igreja

15 JAEGER, N. Il diritto nella Bibbia. Giustizia individuale e sociale nell’Antico e nel Nuovo Testamento. Assisi: Edizioni pro civitate christiana, 1960, p. 116-117.16 BRUNDAGE, J. A., op. cit., p. 132-133.17 PILOSU, M. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995, p. 168.18 Mateus 19:7-9.

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papal que se lançara, desde meados do século XI, numa investida ideológica de envergadura social mais ampla e arriscada.

Jacopo da Varazze não formaliza um discurso exortativo sobre o adultério na Legenda Aurea. O problema aparece em sua narrativa atrelado a situações de múltiplo interesse. No conjunto, porém, este aparecimento difuso do adultério não deixa de revelar um posicionamento sobre a questão que é comum a todo o texto. Situações adulterinas e menções ao termo “adultério” e seus correlatos apa-recem na Legenda Aurea ao longo de quatorze das cento e setenta e seis legendas que podem ser atribuídas a Jacopo da Varazze. Apenas em nove dessas legendas o adultério - efetivo ou presumido - integra o desencadeamento dos aconteci-mentos, embora não constitua o alvo central da narrativa. Esta última é sempre voltada para a defesa da excelência da castidade e da eficácia da penitência à qual aparecem sempre submetidos primeiramente os “grandes”. Os episódios dizem respeito a adultérios da realeza e da aristocracia - em que estão incluídos os santos e seus familiares - de infiéis (muçulmanos) e hereges (arianos) de alta extração social. Assim, o tema do adultério consolida um texto interno à obra de Jacopo da Varazze, dirigido contra os focos de indisciplina na aristocracia, aos quais contrapõe um quadro idealizado de relações, submetido estritamente à autoridade pública do clero. Os relatos podem ser classificados em quatro grupos:

1. adultérios da realeza, efetivos ou presumidos

1.1 Legenda de são Lourenço:19 o imperador Henrique II (973-1024), que fizera voto de castidade com sua esposa, futura santa Cunegunda, instigado pelo diabo, suspeita que esta o trai com um soldado. Submete-a injuriosamen-te ao ordálio durante o qual lhe bate no queixo indignado diante de sua alegação de inocência. Quando da morte do imperador, estes atos pesam negativamente na balança que mede seus atos. Henrique II é resgatado dos demônios por são Lourenço que coloca na balança uma urna de ouro que o imperador doara à igreja de Eischstat, consagrada ao santo.

1.2. Legenda de são Pelágio:20 no relato imediatamente anterior à conversão ao catolicismo do rei lombardo Adaloardo, casado com uma piedosa cristã, Jacopo da Varazze conta como um outro rei lombardo, Albuíno (?-573),

19 De Sancto Laurentio Martyre, CXIII, p. 764-765. 20 De Sancto Pelagio Papa, CLXXVII, p. 1259-1260.

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depois de matar o rei dos gépidas e desposar sua filha Rosamunda, obrigou-a a beber em uma taça feita com o crânio de seu pai instigando-a jocosamente com a frase: “bebe com teu pai”. Movida por um ódio violento, Rosamunda se instala secretamente no leito da amante de um dos comandantes de Abu-íno. Ao revelar quem era, utiliza a traição involuntária do comandante para levá-lo a dar morte ao rei. O oficial, pressionado, encomenda o assassinato no qual a rainha colabora dificultando o acesso do rei às armas colocadas próximas a sua cama. Rosamunda foge para Ravena com o comandante que leva consigo o tesouro do palácio. Lá, ela se enamora pelo prefeito da cidade e decide então matar o oficial. Este, percebendo-se envenenado, obriga-a a beber da mesma poção.

1.3. Legenda de são Pelágio:21 a mulher de Oto III (980-1002), enamorada por um conde, deseja “prostituir-se” com ele. Ao ser rejeitada, difama o conde junto ao imperador que o condena a morte sem ouvi-lo. Posteriormente, a condessa, cumprindo uma promessa feita ao marido, acusa o imperador de morte injusta e oferece-se para prová-lo por meio do ordálio. O pontífice e os próceres se opõem ao ordálio dando tempo para que o imperador exa-mine com cuidado a denúncia que fora feita pela rainha. Como resultado, a calúnia é confirmada. A rainha é condenada a ser queimada viva na fogueira e a viúva recebe quatro castelos do imperador.

1.4. Legenda da decapitação de são João Batista:22 narra como Herodes, a cami-nho de Roma, passa pela casa de seu irmão Filipe e combina secretamente com sua cunhada Herodias repudiar sua mulher e depois casar-se com ela, contrariando a lei judaica segundo a qual não se deve desposar a esposa do irmão enquanto este vive.23 A mulher de Herodes, filha do rei Aretas de Damasco, ao saber deste plano, volta para sua terra natal. Da situação resulta a inimizade deste rei para com Herodes. A legenda desenvolve o episódio bíblico do adultério e incesto de Herodes e Herodias, valorizando a culpa desta na decapitação de são João. Quando o ocioso Herodes cai em desgraça, após humilhar a Herodes Antipas, este irmão de Herodias manifesta-se para acolhê-la. Esta, porém, prefere seguir também na adversidade ao marido

21 Idem, p. 1275.22 De decollatione Sancti Iohannis Baptiste, CXXI, p. 874-875.23 Levíticos 20:21.

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que acompanhara na prosperidade. Assim, parte com Herodes para o exílio em Lyon, onde os dois morrem depois de viverem miseravelmente.

2. Santos que têm esposas e mãe envolvidas em falsos casos de adultério

2.1. Legenda de santo Eustáquio:24 santo Eustáquio, originalmente chamado Plácido, comandante militar do imperador Trajano, juntamente com sua esposa, destacava-se no exercício da misericórdia, embora fosse pagão. Por isso, durante uma caçada ao cervo, recebe do próprio Cristo exortação para tornar-se cristão com sua família. De volta à sua casa, no leito, revela à esposa a visão que tivera e ouve dela um relato equivalente. Ambos são batizados juntamente com seus dois filhos pelo bispo de Roma e recebem os nomes de Eustáquio, Teopista, Agapito e Teopisto. Depois disso, Eustáquio tem outra visão em que o futuro lhe é revelado. Numa trajetória semelhante à de Jó, Eustáquio terá de, através de tentações, se submeter à humildade para, finalmente, depois de provada sua paciência, voltar a ser exaltado. Depois de perder tudo, Eustáquio parte com a família em um navio. Lá, o comandante, movido pelo desejo pela bela Teopista, obriga o santo a fugir com os filhos. Na fuga, Eustáquio tem os filhos levados por feras e lamenta por ter tido a mulher raptada (ablata). Depois de muitas reviravoltas que permitem que sua mulher não seja tocada pelo comandante e que seus filhos sejam salvos, seguidas coincidências revelam a origem de cada um dos membros da família, promovendo sua reunião e o restabelecimento de sua posição social. Logo depois, morto Trajano, Adriano os obriga a sacrificar. Diante de sua recusa, a família é submetida ao martírio.

2.2. Legenda de são Clemente:25 legenda com enredo semelhante ao da ante-rior que narra a conversão do santo, de seus pais e de seus dois irmãos. A conversão é promovida à custa da prova da superioridade da providência divina face aos engodos e limitações da filosofia, da magia e da astrologia. Ainda na infância, o santo, futuro sucessor de são Pedro, tem sua família dispersa quando sua bela mãe, Macidiana, é obrigada a fugir do assédio de seu cunhado. O pai de Clemente que, a partir do que lhe contara seu próprio irmão, passara a vida acreditando que sua esposa tivesse fugido

24 De Sancto Eustachio, CLVII, p. 1090-1098.25 De Sancto Clemente, CLVI, p. 1188-1195.

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por amor a um escravo, defende a inocência de Macidiana, uma vez que o adultério da mesma teria sido determinado pelo contexto astrológico de seu nascimento. À predestinação e inimputabilidade dos crimes, defendidas pelo pai de Clemente, são Pedro contrapõe o fato da preservação da vida e castidade de Macidiana. Assim, depois de anos de separação e sofrimentos, são Pedro reúne novamente a família do santo.

2.3. Legenda de são Juliano:26 Juliano, ainda jovem, sabendo, por meio da profecia que ouve de um cervo durante uma caçada que seria o responsável pela morte dos pais, foge de casa. Anos depois, já casado, sua esposa recebe um casal que identifica como seus sogros, aos quais, por hospitalidade, ofe-rece seu leito conjugal. Chegando em casa, o santo se depara com o casal adormecido. Julgando tratar-se de sua esposa e um amante em adultério, aproxima-se silenciosamente de ambos e os mata com a espada. O escla-recimento da situação leva o santo para uma vida de caridade, penitência e trabalho, na qual é seguido voluntariamente por sua esposa. Esta o chama a partir de então de “irmão” e passa a compartilhar de sua dor. Certo dia, o santo encontra um leproso à morte e o coloca em seu próprio leito. O doente então se transforma em um ser vivificado e revela que a penitência de Juliano fora aceita e que logo ele e sua esposa repousariam no Senhor.

3. adultérios efetivo e presumido de santos

3.1. Legenda de santa Teodora:27 invejoso da santidade de Teodora, mulher ca-sada de Alexandria, o diabo desperta em certo homem desejo por ela. Este lança mão de todos os recursos para conquistá-la. Enfim, por intermédio de uma feiticeira que convence Teodora de que Deus não via o que se passava após o pôr-do-sol, esta aceita recebê-lo durante a noite. Logo depois, Teodora procura uma monja que a alerta de seu erro. Movida pelo arrependimento, Teodora abandona secretamente sua casa, veste-se de homem e ingressa em um mosteiro masculino. Aí é acusada de engravidar uma moça, sendo expulsa da comunidade com a criança cuja paternidade lhe é atribuída. Depois de passar por inúmeras tentações – durante as quais o diabo a chama indistintamente de “prostituta” e “adúltera” – e de realizar milagres, Teodora

26 De Santo Iuliano, XXX, p. 209-217.27 De Sancta Theodora, LXXXVIII, p. 611-615.

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é reincorporada à comunidade monástica. Decorrido pouco tempo, a santa morre, vindo à tona o segredo de sua sexualidade. Providencialmente, o marido é avisado de sua morte. Depois de reencontrar a esposa, ele decide passar o resto de seus dias no mosteiro, vindo a ocupar a mesma cela que fora de Teodora e dando continuidade à educação de seu filho adotivo. Este, depois de adulto, torna-se abade do mesmo mosteiro.

3.2. Legenda de santa Margarida:28 casada, Margarida abandona o marido na noite de núpcias e, depois de cortar os cabelos e vestir roupas masculinas, ingressa em um mosteiro com o nome de Pelágio. Por sua retidão, Pelágio é escolhido provisor do mosteiro feminino. Nele, uma monja, que era men-sageira do lugar e que, incitada pelo diabo, cometera adultério, o acusa de ser o adúltero que a engravidara. A morte de Pelágio revela a verdade.

4. menções ao adultério fora do contexto de sua realização ou presunção objetiva

4.1. Legenda de uma virgem de Antioquia:29 narrativa baseada em santo Am-brósio que argumenta longamente em defesa da fé e da castidade face ao adultério e à prostituição que aparecem equiparados na legenda. Abordada para que aceitasse um pretendente, a bela santa se nega. Seus perseguidores pressionam-na para que escolha entre a fé no Deus cristão e a castidade, o que dá lugar às considerações da santa de que, escolhendo negar sua fé, se manteria virgem, porém, se tornaria adúltera. A santa conclui pela superio-ridade da declaração de fé frente à pureza do corpo, lembrando das figuras veterotestamentárias de Raabe, a prostituta que encontrou a salvação ao ajudar os servos do Senhor e de Judite que, pelo bem de seu povo, preparou-se para seduzir um adúltero sem ser por isso tomada como adúltera. Por milagre, a virgem é salva do lupanar por um soldado que troca de roupas com ela. Com a fuga da santa, os homens que entram adúlteros no lupanar saem dele castos. Assim, segundo o texto, vencendo seu próprio sexo, a virgem preferiu se tornar mártir a adúltera e entregou-se aos carrascos.

4.2. Legenda de são Lourenço:30 baseado em João Beleth, Jacopo da Varazze explica a mudança das vigílias em jejuns devido às desordens - dentre as

28 De Sancta Margarita dicta Pelagio, CXLVII, p. 1036-1037.29 De virgine quadam antiochena, LX, p. 415-420.30 De Sancto Laurentio martyre, CXIII, p. 773.

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quais o adultério - que aconteciam à noite no interior dos templos quando os cristãos para lá se dirigiam com suas esposas e filhas.

4.3. Legenda de são Paulo:31 durante sua passagem por Mitilene o apóstolo foi picado na mão por uma víbora. Conta-se que, a partir de então, o hospe-deiro do santo e seus descendentes passaram a não mais padecerem com os ataques dos animais venenosos. Estes, então, passaram a colocar víboras junto aos filhos recém-nascidos de suas esposas a fim de verificar se eram legítimos.

4.4. Legenda de são Paulo:32 menção aos efeitos da passagem e da pregação de Paulo pelas localidades: desaparecimento dos tiranos, das armadilhas dos falsos irmãos, dos adúlteros, dos ladrões, dos homicidas; como o sol em relação às trevas, diante de sua presença a verdade renascia e o adultério e outras abominações desapareciam.

4.5. Legenda de são Pelágio:33 referindo-se aos costumes dos muçulmanos, destaca que estes podem ter quatro mulheres legítimas e repudiar e reto-mar cada uma até três vezes e que podem ter quantas escravas quiserem e vendê-las a menos que estejam grávidas deles. Podem tomar esposas em sua própria família, o que é considerado positivo, uma vez que aprofunda seus laços de amizade. Entre os muçulmanos, os adúlteros são apedrejados e os fornicadores condenados a oitenta açoites. Maomé pretendia que lhe tinha sido permitido por Deus aproximar-se das mulheres dos outros, a fim de gerar homens virtuosos e profetas. Um de seus escravos proibira a mulher de falar com o Profeta e, ao vê-la fazendo-o, imediatamente a repudiou. Por causa disso, Maomé, temendo a reação do povo, produziu um documento que disse trazido do céu em que se dizia que a mulher repudiada seria daquele que a recolhesse.

4.6. Legenda de santo Ambrósio:34 relato da Historia tripartite dá conta de que santo Ambrósio de Milão compara o assassínio de cinco mil pessoas ordenado pelo imperador Teodósio como reprimenda contra a morte de alguns juízes de Tessalônica sem a averiguação dos reais responsáveis,

31 De Santo Paulo apostolo, LXXXV, p. 577.32 Idem, p. 593.33 De Sancto Pelagio papa, CLXXVII, p. 1265.34 De Sancto Ambrosio, LV, p. 389.

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ao adultério e homicídio cometidos por Davi. Em seguida o imperador se submete à penitência pública e à limitação de sua participação nos ofícios aos lugares devidos aos demais fiéis.

4.7. Legenda de são Mateus:35 novamente o adultério e o homicídio cometidos por Davi são lembrados no tratamento do tema da penitência e de seu poder transformador que teria feito do rei pecador, profeta e salmista.

4.8. Legenda dos santos Barlaão e Josafá:36 são Barlaão, acusado de induzir o filho de um rei ao erro, enumera os erros e abominações na adoração aos deuses, entre eles o adultério de Vênus, ora com Marte, ora com Adônis, e as transformações de Júpiter em animal para cometer adultério.

4.9. Legenda de são Vicente:37 o juiz Daciano, diante da resistência do santo aos suplícios que lhe eram infringidos, ataca os carrascos, lembrando sua eficácia anterior em obter tudo de adúlteros e parricidas mediante tortura.

* * *Numa observação de conjunto, a mulher na Legenda Aurea parece muito

próxima da visão que dela transmitiram os padres do deserto. Fosse ela pecadora ou não, o caráter vicioso da natureza feminina é um dos marcos de sua consi-deração na obra do dominicano Jacopo da Varazze. A sexualidade é o princípio ativo da teia de pecados femininos. Sua beleza inspira a luxúria de outros e a sua própria, como na vida de santa Maria Madalena.38 Por isso, convertidas, as santas pecadoras se travestem e ingressam em comunidades religiosas masculinas,39 ou então, penitentes, se desfiguram no ascetismo40 até não poderem mais ser identificadas como mulheres. A penitência eficaz do pecado dessas santas só pode ser atingida mediante o rompimento da tutela masculina tradicional de pais, maridos e irmãos e com sua submissão à tutela divina e difusa do paren-tesco espiritual. Dessa forma, o desejo de santificação feminina revela-se um meio veemente de requisição de autonomia física, espiritual e social. Funciona,

35 De Sancto Matheo, CXXXVI, p. 962-963.36 De Sanctis Barlaam et Iosaphat, CLXXVI, p. 1250.37 De Sancto Vincentio, XXV, p. 175.38 De Sancta Maria Magdalena, XCII, p. 628-642.39 De Sancta Marina Virgine, LXXIX, p. 534-535; De Sancta Margarita dicta Pelagius, CXLVII, p. 1036-1037; Sancta Theodora, LXXXVIII, p. 610-615.40 De Sancta Pelagia, CXLVI, p. 1033-1035 e De Sancta Maria Egyptiaca, LIV, p. 374-377.

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assim, como um contraponto à sexualidade desregrada como única opção de manifestação da vontade feminina, como acontece com as rainhas adúlteras. No entanto, esse apelo não deixa de fazer-se através da negação da feminilidade. Penitenciando-se de sua vida de prostituição, santa Taís41 encerra-se em uma minúscula cela, onde se confunde com os excrementos que se avolumam junto a seu corpo por anos. Fora da tutela masculina que assegura, pelo controle da castidade das mulheres, o prestígio e solidez das trocas políticas, essas santas são concebidas, pelos escritos masculinizados da Idade Média, como dominadoras e críticas privilegiadas de sua sexualidade.

A natureza sexual da mulher torna-a sempre responsável pelo conluio sexual desregrado e, portanto, pelos pecados sexuais de seus parceiros. No caso do adultério e incesto de Herodes, o narrador, seguindo João Crisósto-mo, é enfático ao ressaltar as responsabilidades de Herodias. Sua condição de homicida complementa de forma pouco surpreendente a face monstruosa da adúltera. Enquanto os homens são sexualmente tentados, as mulheres são po-tencialmente tentadoras. As legendas de santa Pelágia,42 de santa Taís e de santa Maria Madalena igualmente associam a seu perfil a avidez pelas riquezas e sua exibição. Assim, ao menos parte do tratamento da figura feminina coloca-se, primeiramente, como uma mensagem destinada à moralização das mulheres e à temerização dos homens.

A herança monástica fala alto nessa visão da feminilidade, mas a ela se sobrepõem outros níveis de leitura, não apenas em razão da natureza hetero-gênea da tradição cristã, mas também pela atualização que o contexto impõe à leitura da mesma. Santas pecadoras e virgens se irmanam na vitória que obtêm sobre o próprio sexo quando se masculinizam. Este princípio monástico de que a possibilidade de libertação do sexo existe dentro do masculino, no entanto, se circunscreve ao masculino submetido aos votos religiosos. Dessa maneira, as legendas associam, embora timidamente, os homens às faltas sexuais femini-nas, uma vez que é preciso fugir de si e fugir deles para fugir ao sexo. Assim, não podemos considerar o texto de Jacopo da Varazze como mera repetição de modelos antigos. Dominicano de prestígio político e teológico que lhe valeram a condição de arcebispo de Gênova, Jacopo da Varazze não era inconsciente dos propósitos inovadores da Igreja de seu tempo. Já no final do século XII,

41 De Sancta Thaysi, CXLVIII, p. 1038-1040.42 De Sancta Pelagia, CXLVI, p. 1033-1035.

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acontece um movimento que pretende promover a reabilitação das prostitutas que tem um de seus expoentes em Inocêncio III (1198-1216). A despeito da oposição doutrinária, este papa teve importante papel na exortação sobre a importância da conversão das prostitutas, chegando a prometer a remissão dos pecados àqueles que com elas se casassem.43

A mesma reabilitação foi proposta de forma mais sutil para as adúlteras que também passaram, ao menos do ponto de vista canônico, a serem vistas como equivalentes a seus parceiros, face aos pecados sexuais. Essa atitude retomava antigas posições cristãs nunca implementadas de maneira plena. Já no século VI, acentuaram-se as investidas da Igreja para retirar da esfera doméstica o julga-mento das causas sexuais, como o adultério. Estas práticas passaram a ser alvo de penalidades canônicas que, em caso da publicidade do adultério, resultavam em penas públicas de humilhação e penitência. O adultério era encarado mais como uma falha moral que como crime público, o que reservava, aos ofenso-res, remédios espirituais em vez da execução pública e da violência familiar, marital e paterna. Mediante a penitência, esperava-se que o marido retomasse a esposa adúltera. Recusar-se a fazê-lo constituía pecado. Na prática, porém, a legislação imperial atesta a perseverança do antigo costume que admitia ao marido o direito de matar a esposa adúltera. A Novela 117 de Justiniano tenta propor, como opção ao marido, o direito de confinar a esposa em um convento pelo período de dois anos, ao final do qual poderia, ou não, retomá-la. Este segundo caso obrigava a mulher a passar o resto de seus dias na clausura. Neste mesmo código, o homem que cometesse adultério estava sujeito a penalidades mais suaves, embora já fosse visto como transgressor. Este perdia o direito de dispor de propriedades e dotes nupciais e fornecia à esposa o direito de mover ação de divórcio contra ele.

Entre 1140 e 1234, a lei canônica, de rudimentar e confusa, torna-se um sistema legal mais complexo e eficiente. A Igreja consegue, então, impor a quase unanimidade em torno da competência de suas cortes e juízes para lidar com questões de separação, divórcio e validade dos casamentos. Naquele momento, pela primeira vez, canonistas e legisladores tentaram impor penalidades criminais à fornicação bem como ao adultério. Fazem-no recuperando antigas atribuições requisitadas pelo poder imperial. Passava-se a coibir o assassinato da esposa adúltera, a custo da imputação de sua morte ao marido, e previa-se a privação

43 PILOSU, M., op. cit., p. 94.

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da respeitabilidade pública (infâmia) e do direito jurídico de testemunhar, aos acusados de ofensas sexuais (adultério, bigamia, rapto, prostituição, alcoviteiris-mo, sexo com não cristãos, relações homossexuais, bestialidade e masturbação).

A despeito disso, as implicações do adultério não eram as mesmas para homens e mulheres. Na prática, esperava-se que o marido expulsasse sua esposa, sob o risco de incorrer em impiedade. A esposa, por sua vez, se era desonrada pelo adultério do marido, não tinha seu direito ao divórcio admitido. Nesta matéria, a lei civil se desenvolverá firmemente atrelada às prescrições canônicas.44 As penas para casos de adultério previam a deposição dos clérigos, a excomunhão dos leigos, a imposição de humilhações públicas (vestir roupas rasgadas, ter a cabeça raspada, receber chibatadas do poder civil), penitências (quarenta dias de jejum por sete anos consecutivos), a expulsão da esposa pelo marido que poderia reter seu dote. A persistência no erro poderia levar à perda do direito à comunhão até a morte do companheiro legítimo. A parte inocente do casal poderia, por sua vez, internar-se em um mosteiro, sem o consentimento do cônjuge. No entanto, em casos em que o adultério não se tornasse de conhe-cimento comum, priorizava-se a comutação das penas públicas em penitências discretas que não expusessem a transgressão.45

A discrição eclesiástica, face ao conteúdo da confissão recomendada pelo IV Concílio de Latrão, resulta na proteção à mulher adúltera e, conseqüente-mente, numa tendência à equiparação dos gêneros frente aos delitos sexuais. O novo conceito de confissão que aparece em 1215 insiste no “... segredo acerca do pecado relativamente a terceiros, especialmente nas instituições como os conventos e no seio do matrimônio”.46 O discurso pastoral de Jacopo da Varazze acompanha implicitamente este processo. Um primeiro sinal disso aparece no quadro que delineia as culpas adulterinas. Nele, a mulher não é a única res-ponsável pelos casos de adultério. Ao lado dos desejos e pecados femininos, o adultério e seus escândalos surgem movidos pela desconfiança de maridos e reis injustos que caluniam suas esposas ou se dobram aos caluniadores que investem contra a integridade do matrimônio. A vida de Teodora, única santa adúltera da Legenda Áurea, detalha este quadro de tentativa de partilha, entre os sexos, da culpa por delitos sexuais.

44 A partir dos séculos XII-XIII crescem os esforços das autoridades públicas laicas no sentido de estender sua jurisdição sobre as atividades sexuais consideradas ilícitas.45 BRUNDAGE, J. A. op. cit., 1987, p. 3, 59, 68, 119, 207, 307, 389, 482.46 PILOSU, M. op. cit., Lisboa: Estampa, 1995, p. 102-103.

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As santas mártires da Legenda Aurea têm uma surpreendente similaridade de caráter com seus colegas santos. São moralmente inabaláveis, resolutas, oradoras intelectualmente brilhantes e destemidas. Aproximam-se dos santos também pela recusa à sexualidade. O repúdio a toda iniciativa amorosa se soma à masculinização de suas atitudes, representação da santidade feminina que encontra seu clímax na vida das santas travestidas em monge. Pertencente a esse grupo, a vida de santa Teodora, porém, parece vencer distâncias do fosso que existe entre o universo sexualizado das mulheres e as vítimas masculinas da condição feminina. Seu pecado não evoca um rompimento completo com seu companheiro. A narrativa da história de sua vida de dedicação religiosa é pontuada pela lembrança que ela e seu marido têm um do outro. A ligação entre eles não é desfeita, seja pelo adultério ou pela vida religiosa, o que se confirma quando o marido substitui Teodora em sua cela e dá prosseguimento à educação do menino que ela criava como filho.

A vida de Teodora não fala de mulheres e homens separadamente, mas do casal. Nesse caso, podemos observar uma das razões da pequena atenção dada por Jacopo da Varazze ao adultério. Seu discurso se concentra na natu-reza e solidez das relações entre marido e esposa que supera a existência do pecado. A legenda de Santa Teodora pode, dessa forma, apresentar uma visão mais condescendente da mulher. No entanto, esta só se dá na medida em que o enfoque deixa de ser o da sexualidade. Assim, a ligação entre Teodora e seu marido é mantida e valorizada, estabelece contigüidade e complementaridade entre suas atitudes, na medida em que é uma relação primeiramente espiritual. Esta ligação é o fundamento da ligação que não se dissolve. O mesmo quadro aparece em outras das legendas mencionadas, como veremos.

As escolhas que o registro legendário feito por Jacopo da Varazze eviden-ciam aproximam-no dos reformistas romanos mais radicais. O movimento refor-mista que traduz a “liberdade da Igreja” em termos de “paz da Igreja” pretende disciplinar os núcleos de “violência” e “desordem” representados pelos infiéis e pelos cristãos que agridem aos bens e à autoridade eclesiática, mas também se volta para a domesticidade, aprofundando, ao mesmo tempo em que toca, as dimensões familiares e íntimas da sociedade cristã a ser disciplinada. Inaugura, assim, o universo da sexualidade como gerador de espaço interior e espaço da intimidade, levando a forma social nova que quis inaugurar para o segredo das consciências e corações.

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A relativização da visão da mulher como potencialmente perniciosa também se relativiza no caso de personagens que não são santas. Observando a caracte-rização dos leigos na obra, podemos afirmar que a tolerância acompanha a obra moralizadora e didática. Os leigos estão duplamente protegidos: pelo casamento e pelo perdão viabilizado pela penitência. Ao lado das pecadoras, aparece um grupo importante de mulheres que – embora não sendo santas – em nada pa-recem desaprovadas por Jacopo da Varazze. São as mulheres casadas que já se tornaram mães. Essas mulheres, diferentemente das recém-casadas ainda sem filhos e das viúvas jovens também sem filhos – às quais ronda o mal na Legenda Aurea – estavam fora do circuíto das desconfianças públicas acerca do bom uso de sua sexualidade. O matrimônio e a maternidade aprovavam essas mulheres e suas relações carnais, pois atestavam submissão da concupiscência nas mesmas e, de certa forma, garantiam sua indisponibilidade para práticas extraconjugais.

A benevolência para com as mulheres casadas liga-se historicamente àquela dirigida às pecadoras. Embora a ampliação do perdão a essas mulheres também seja acompanhada por um aumento da rejeição às mulheres que fogem aos qua-dros de transgressão controlados pelo clero, essa flexibilização da hierarquia dos pecados favorece a remissão relativa da imagem feminina associada à luxúria. Observemos que a soberba, a luxúria e a avareza são pecados imputados às san-tas que são meretrizes penitentes e expõem conjuntamente o ponto mais baixo da condição de pecado das mulheres. A relativização do perfil luxurioso se dá de forma clara no perdão estendido a Teodora. De que maneira essa proposta de perdão ao adultério feminino atingiu a domesticidade, não sabemos. Mas temos conhecimento da eficiência relativa do perdão estendido às prostitutas nos séculos XII e XIII. O subtexto do dominicano Jacopo da Varazze é assim registro de um dos espaços de poder – pouco visível mas capital – em que se deu, se não a vitória completa dos ideais gregorianos mais radicais, ao menos a derrota cultural do monasticismo.

A obtenção do perdão por Teodora difere, de forma importante, daquele obtido pelas demais santas pecadoras. A relação penitencial das meretrizes se reduz a Deus, objeto de suas ofensas e do qual se busca obter o perdão. O pe-cado de Teodora, no entanto, arrola uma terceira personagem. É essencial em sua legenda o relato do destino do marido, paralelo à sua história de reclusão. O mesmo acontece nas demais legendas em que existe adultério. Esse pecado sempre diz respeito ao destino – de remissão ou condenação – não apenas daquele que pecou, mas do casal. O perdão e fidelidade do marido tornam-se

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lição de autodomínio daquele que, como “cabeça da esposa”, deve ser seu orientador e espelho de seu próprio autodomínio. A Legenda Aurea exige essa fidelidade matrimonial de ambos: marido e esposa. Tal mensagem veiculada à mais difundida coletânea hagiográfica medieval testemunha a atuação da Igreja e, particularmente, das ordens mendicantes no processo de promoção da imagem feminina e dos laços emocionais entre o casal, como veículo de disciplinamento espiritual e social. O perdão e a fidelidade do marido de Teodora e dos esposos de supostas adúlteras aos laços conjugais são os meios através dos quais esses homens expressam seu autodomínio e através dos quais vêm a santificar-se.

Através do adultério, Jacopo da Varazze defende a importância da indis-solubilidade do laço matrimonial. Os casos de falso adultério ilustrados pela acusação de Henrique II contra sua esposa inocente evocam a responsabilidade do marido que pode, nesse caso, efetivamente levar a mulher a perder-se. Por-tanto, o casamento é lugar de aperfeiçoamento, em que cada cônjuge é guardião da saúde espiritual do outro. Esse quadro das relações matrimoniais idealiza o casamento como espaço da felicidade, coincidindo o ápice da espirituali-zação com o da satisfação pessoal. Nos casos de falso adultério, o clímax da felicidade e da vida religiosa se dá no restabelecimento da unidade do casal. Todavia, a proximidade física não é diretamente relacionada à santidade. O companheirismo de Herodes e Herodias é proporcional ao seu aprofundamento nas misérias espirituais. Embora o companheirismo deste casal seja tocante, o adultério retira deste consenso de vontades toda legitimidade. Esta pode, única e exclusivamente, ser estabelecida pelo julgamento dos sacerdotes em promover a indissolubilidade do casamento.

Nos casos de adultério que envolvem reis que aparecem na Legenda Aurea, ocorre a dissolução da ligação conjugal, através da divulgação pública do caso e de sua exposição a recursos judiciais tradicionais, redundando, invariavel-mente, na repreensão ou condenação divina daquele que cometeu o adultério sem arrependimento, ou daquele que injustamente o presumiu. Aos recursos da lei civil e da violência familiar, a Legenda Aurea propõe a reabilitação da penitência canônica e um igualmente íntimo entendimento doméstico.

A presunção de adultério na vida dos santos difere dos exemplos reais por nunca implicar num rompimento do laço matrimonial, vindo este a se recompor em sua plenitude através da reaproximação física dos esposos, mesmo depois das maiores agruras. Nesses casos, o adultério catalisa o encontro do indivíduo com seu destino de santidade, por meio da fidelidade à ligação matrimonial e

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familiar. Ser receptivo à reunião do casal depois de sua dissolução e das sus-peitas de infidelidade significa realizar a vontade de Deus. O caso de Teodora novamente é exemplar. Apesar da inexistência de filhos naturais de seu casa-mento, a vida da santa precisa que esse reencontro se realize mesmo depois de sua morte. O laço estabelecido entre homem e mulher pelo sacramento do matrimônio é indissolúvel. Ele faz de Teodora, de seu marido e da criança uma família verdadeira porque fundamentada no espírito.

Um dos alvos visados por Jacopo da Varazze através dos exemplos de adultério por ele selecionados é a crítica ao costume aristocrático de repúdio das esposas e, sobretudo, o uso do adultério como pretexto para tal. No discur-so do eclesiástico, o repúdio aparece como a face masculina do adultério. O dominicano retrata com dureza o repúdio. A rebeldia canônica e a resistência aos limites do casamento cristão fazem do aristocrata que repudia sua esposa, mencionado na legenda dedicada a são Gregório, um adepto da magia e do demonismo,47 atributos reservados, na compilação genovesa, apenas aos seres mais perversos. O perfil dos infiéis muçulmanos na Legenda Aurea fundamenta-se, em boa parte, em práticas matrimoniais permissivas à endogamia, à dissolu-bilidade das uniões, à poligamia e ao repúdio. O repúdio é fonte de desordem, de injustiça, inimizade e violência, como ilustram as trajetórias de Herodes e Herodias e Marco Antônio e Cleópatra, entre outras.48 O problema do adultério se situa, portanto, simultaneamente neste domínio público da ordem cristã e naquele da ordem interior. No final da Era Gregoriana, sua relevância se revela no quadro mais amplo da definição da comunidade e da interioridade cristãs, então associadas.

Os exemplos apresentados mostram que a cautela do dominicano ao tratar do adultério diz menos respeito ao seu desinteresse pelo tema do que à dificul-dade de atingir seu público-alvo prioritário, os homens. Através da violência perniciosa, representada pelo rapto – forma de casamento e aliança forçadas, presente nas histórias de são Juliano, Henrique II e Albuíno –, ou o exercício

47 Curiosamente, como no caso de Teodora, temos novamente a mediação de um agente mágico con-corrente ao cristianismo, defendendo ligações carnais consideradas ilícitas pela doutrina da Igreja. De Sancto Gregorio, XLVI, p. 299-300.48 Além dos casos mencionados de repúdio, a Legenda Aurea traz um último exemplo que reforça o sentido global até o momento apontado. Trata-se da degeneração das relações de afinidade exis-tentes entre Otávio e Antônio, motivada pela lascívia deste. Para tomar Cleópatra como esposa, Antônio teria repudiado a irmã de Otávio, ocasionando sua reação, de conhecido desfecho trágico. De Sancto Petro ad vincula, CVI, p. 704-705.

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indevido do poder e da justiça – lembremos dos exemplos de Henrique II, Otto III, Davi e Teodósio –, os homens induzem ao adultério ou lhe dão foro de verdade, fomentando seu potencial de perturbação social. Impermeáveis aos fundamentos sobrenaturais da paz e da justiça, sobrepõem-se aos mediadores do sagrado e punem sem misericórdia e sem direito legítimo, delitos que deve-riam ser tratados pela temperança canônica. O adultério, pecado da intimidade para os religiosos, deve ser curado na domesticidade sem o recurso à violência. O pecado do adultério não anda sozinho. O incesto, o repúdio, a violência, o regicídio, o parricídio, o assassinato em geral, a injustiça, a calúnia, a traição, a usurpação, a tirania, o acompanham como podemos ver nos casos documenta-dos. Seus desdobramentos públicos são consideráveis. A proposta eclesiástica de julgamento espiritual das causas de adultério repercutia simultaneamente no disciplinamento da intimidade e da autoridade laica. Mesmo que resolvidos na domesticidade, os dramas maritais projetam uma concepção pública que ultrapassa os limites da autoridade familiar. Esta resolução respeita princípios gerais divulgados como universais e geridos por especialistas que educam as sensibilidades numa pastoral que se intimiza e tende assim a projetar a subje-tividade no domínio público.49

Na legenda de santa Teodora, Jacopo da Varazze defende a reconciliação do casal face ao adultério alegando a igualdade de valor de todas as faltas e a indissolubilidade da ligação matrimonial cuja legalidade, para ele, independe da consumação carnal, de sua interrupção justificada e da geração de filhos. Portanto, nega também o repúdio baseado na esterilidade. As uniões de Teodora, de Eustáquio, do pai de são Clemente e de Juliano com seus cônjuges não é de-pendente da existência de uma prole. O casal, e não a família, é o fundamento da unidade que é preciso preservar. A extensão do perdão e a aparente indulgência confirmam a inalterabilidade dos laços matrimoniais. Jacopo da Varazze pretende combater o adultério através da promoção de um laço idealizado entre homem e mulher. Laço criado pelo próprio casamento e constituído por uma forte tensão sentimental que alinhava os relatos nos quais famílias e casais – santos ou não – são apresentados. Essa teia sentimental constitui o núcleo sensibilizador do público para sua visão das relações entre os sexos.

49 A respeito das relações entre a subjetividade e o domínio público neste período, ver CHIFFO-LEAU, Jacques. ‘Ecclesia de occultis non iudicat’? L’Église, le secret et l’occulte du XIIe au XVe siècle. Micrologus, 14, 2005, p. 359-481.

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A firmeza da ligação entre os santos e suas esposas e filhos, a despeito da suspeita ou da consumação do adultério, fala aos leigos sobre a penitência e o perdão disponíveis aos pecadores, mas também da importância do casamento e da existência de um fundamento espiritual para o mesmo. Esse fundamento o torna fonte de santidade. Nos casos apresentados, o adultério acarreta a desa-gregação do casal. Contudo, a conclusão de cada relato diz para os leigos que a definitiva dissolução dos laços que unem o casal é impossível. Recobrindo de sentimentos essa união, que não é necessariamente física - mas que efetivamente o é para a maioria dos leigos -, o discurso de Jacopo da Varazze aponta para o sexo um lugar sob a esfera do sagrado, enraizando as relações sociais e sobre-naturais envolvidas, na deliberação íntima e secreta de homens e mulheres.

O sucesso da Legenda Aurea50 não pode ser tomado como prova do acolhi-mento de suas considerações a respeito do adultério. A despeito dos testemunhos de sua ampla circulação, não é possível estabelecer os critérios de leitura da obra. Mencionamos as dificuldades sociais para a adoção da perspectiva radical de Jacopo da Varazze. Por hora, é possível notar, que a reforma da Igreja abriu este domínio das práticas e concepções laicas à discussão, bem como os paradigmas monásticos e sua recusa do sexo. O modelo da legenda de santa Teodora para o adultério encontra-se isolado na Legenda Aurea, embora, como tentamos mostrar, esteja ligado de forma coerente às reflexões sobre o casamento que veicula. As legendas aqui apresentadas advogam a estrita indissolubilidade do casamento e a compatibilidade entre o sexo e a santidade em seus domínios. A tensão espiritual que, juntamente com o consentimento e o sexo, constitui o casal substitui a família como garantia da solidez do casamento. A partir do controle dos termos dessa ligação emocional se estabelece um dos fundamentos de uma ordem social que refunda o espaço público na afetividade.

50 Chegaram até nós mais de mil manuscritos da obra. Número verdadeiramente notável para os registros do período que testemunha a amplitude de sua circulação. Estes manuscritos aparecem escritos em latim, mas também numa variedade significativa de línguas vernáculas, o que aponta para a diversificação de seus ambientes de leitura que, desde o último quartel do século XIII, atinge a domesticidade dos laicos letrados. DUNN-LARDEAU, Brenda (dir.). Prefácio, em idem. Legenda aurea: sept siècles de diffusion. Montréal-Paris: Bellarmin-Vrin, 1986, p. 14.

Recebido: março/2007 - Aprovado: setembro/2008

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Nos veNtos do comércio Negreiro: a participação dos traficaNtes baiaNos Nas procurações passadas No termo de

vila do carmo, 1711-1730

Carlos Leonardo Kelmer MathiasDoutorando em História-UFRJ/Bolsista CNPq

resumoO objetivo do artigo é estudar a participação dos traficantes residentes na capitania da Bahia nas escrituras de “procuração bastante” emitidas no termo de Vila do Carmo entre 1711 e 1725, excetuando o período entre 1721 e 1725. Essa documentação está sob custódia do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana.

palavras-chaveProcuração • tráfico • escravo.

abstractThe article analyzes the participation of the slave traders living en captainship of Bahia in the letters of attorney emitted in the term of Vila do Carmo between 1711 and 1725, except the period between 1721 and 1725. That documentation is under guard of the archive of the Casa Setecentista de Mariana.

KeywordsLetter of attorney • trade • slave.

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Na maré das primeiras notícias dos achados de ouro na região das “minas gerais”, teve vez e efeito o engendramento de vários circuitos mercantis nos quais, direta ou indiretamente, acabaram por tomar parte várias regiões do globo. De Goa às capitanias brasileiras, passando por Benguela, Luanda, Costa da Mina, Lisboa, Londres ou Amsterdã, todos, em diferentes graus, acabaram por se beneficiar das descobertas auríferas. Indubitavelmente, no comércio das almas repousa uma das principais chaves para a compreensão desse processo.

O presente artigo tem por objetivo lançar luz em alguns desses circuitos mercantis, notadamente aqueles mais diretamente envolvidos nas rotas do ouro. Em boa verdade, no bojo dos desvendamentos dos veios auríferos em regiões como Vila do Carmo, Vila Rica, Caeté e mesmo Sabará, concorreram portugue-ses, fluminenses, baianos e paulistas. Nada mais natural do que esperar serem esses os primeiros protagonistas atuantes em tais circuitos.

Nesses termos, a região mineradora não será aqui analisada de modo oblíquo, fechada em si mesma. Tampouco pretendo percebê-la subordinada a tal ou tal praça mercantil. No que respeita aos limites geográficos do Brasil colônia, entendo que as descobertas auríferas contribuíram para a formação de um eixo mercantil sediado, fundamentalmente, em três pontos, a saber: a cidade de Salvador, a comarca de Vila Rica e a cidade do Rio de Janeiro. Com isso, não pretendo excluir a inserção e atuação da capitania de São Paulo, de Pernambuco ou das demais comarcas componentes da capitania mineira desse eixo principal. Entre 1716 e 1717, o registro do Rio Grande, no caminho para São Paulo, respondeu pela maior parte dos gêneros de secos e de molhados que entraram em Minas. No mesmo período, o caminho do sertão da Bahia e Pernambuco destacou-se no abastecimento de escravos, totalizando cerca de 800. Sabe-se que, entre 1718 e 1719, 200 escravos entraram por este caminho para a Vila de Sabará, na comarca de Rio das Velhas. No que tange ao Rio de Janeiro, é seguro afirmar, segundo Ângelo Alves Carrara, que já em 1728 essa praça surge como o principal centro abastecedor da capitania mineira.1

Ao delimitar por central o eixo compreendido entre Salvador, comarca de Vila Rica e Rio de Janeiro, tenho em mente, como o próprio título do artigo sugere, o trato negreiro por norte. E isto se deve por algumas razões, dentre elas: 1) mesmo que o número total de fazendas secas e molhadas, cavalos, mulas e

1 CARRARA, Ângelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674 – 1808. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007, p. 117-119.

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gados que entrassem na capitania sobrepujassem o de escravos, dificilmente a soma daqueles valores superaria os valores oriundos das entradas de negros – fato provavelmente característico de toda sociedade baseada no tráfico de escravos;2 2) durante o período ora analisado, os escravos responderam, em média, por 43,4% da composição das riquezas inventariadas no termo de Vila do Carmo;3 3) o grosso do financiamento e do controle do tráfico atlântico de escravos escapava ao domínio metropolitano, transformando tal negócio na principal forma de acumulação endógena à colônia.4 Tal delineamento também justifica a não inclusão de São Paulo nesse eixo, uma vez que essa capitania não era uma das principais fornecedoras de escravos para a região das minas, cabendo a capitanias do Rio de Janeiro e Bahia/Pernambuco esse papel. Diga-se de passagem, não foi por nada que, dentre os 9.309 procuradores nomeados no termo de Vila do Carmo, apenas 4,09% o foram para a região paulista, não obstante nem todas as procurações visarem atividades comerciais. A despeito dos efeitos provenientes da guerra dos Emboabas de 1709, creio repousar nessa não atuação da capitania paulista, como centro abastecedor de mão-de-obra escrava para a região das minas, o principal motivo para tão diminuta porcentagem.

2 Segundo Antônio Carlos Jucá de Sampaio, havia um imposto específico sobre os escravos desti-nados à região das minas. Não obstante, também incidia uma taxa sobre a entrada dos mesmos na capitania, taxa essa inserida no imposto das “entradas”. Sobre o primeiro ponto, ver SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 151. Acerca do segundo, ver CÓDICE Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, vol. II, 1999. Coordenação-geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos, p. 95; ROMEIRO, Adriana & BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário histórico das Minas Gerais: período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 106-108.3 KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. A cor negra do ouro: circuitos mercantis e hierarquias sociais na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2007, cap. 3.4 Vale destacar que, no concernente ao Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII, o tráfico passou a ser progressivamente controlado pelos comerciantes fluminenses, sendo que havia uma rede de negócios na qual participavam também negociantes reinóis; mesmo porque, nas primeiras décadas do século XVIII, a comunidade de comerciantes atlânticos no Rio de Janeiro estava se formando. Segundo Pierre Verger, na Bahia, o controle do tráfico por traficantes residentes na cidade já ocorria há mais tempo. Ver SAMPAIO, op. cit., passim; VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987; FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, cap. 4º e FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 159-160.

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Assim sendo, e em função dos “efeitos de arraste” causados pela mineração no conjunto da economia colonial brasileira,5 a delimitação do eixo aqui esta-belecido se pauta pela noção de “espaço econômico”, largamente empregada e debatida pela historiografia hipano-americana. Segundo Ângelo Carrara, e de forma resumida,

o espaço econômico equivale ao âmbito da circulação de mercadorias, à ex-tensão dos circuitos mercantis. É exatamente este o seu conteúdo: a rede de circulação de mercadorias, o conjunto de lugares comercialmente articula-dos através de rotas determinadas. Se o mercado é o conjunto de relações mercantis, o espaço econômico é a expressão geográfica do mercado.6

Tal noção coaduna-se perfeitamente ao conceito de região expressado por Eric Van Young. Segundo o autor, uma região agrícola ou econômica não coin-cide necessariamente com as divisões políticas ou administrativas, nem mesmo com as topográficas. Dessa forma, a região adquire a dimensão de “um espaço geográfico com fronteiras determinadas pelo alcance efetivo de alguma classe de sistema cujas partes se inter-relacionam entre si mais do que com outras partes situadas fora do sistema”. Nesses termos, a região é delimitada conforme a área de mercado e os circuitos mercantis os quais influenciam essa mesma área.7

No que respeita aos objetivos e enquadramentos da pesquisa em questão, percebo o eixo composto pela capitania da Bahia (e Pernambuco), pela comarca de Vila Rica e pela capitania do Rio de Janeiro como um único “espaço econô-mico” articulado, na sua essência, em função do tráfico negreiro e do ouro das minas. Tratam-se de rotas bastante específicas, concentradas ora em caminhos terrestres, ora em vias marítimas. Para além da parte americana, essas rotas englobavam, mais diretamente, a costa africana e a Índia, por intermédio de seus têxteis. Nesse emaranhado de redes e entrepostos comerciais, os circuitos mer-cantis ganhavam razão de ser ao ligarem diferentes paragens do globo entre si.

5 A idéia de efeito de arraste é devedora da obra de Margarita Suárez, quem trabalhou tais efeitos para o conjunto da economia andina. Ver SUÁREZ, Margarita. Desafíos transatlánticos: mercaderes, banqueros y el estado en el Peru virreinal, 1600-1700. Peru: Fondo de Cultura Económica, 2001.6 Acerca da discussão da noção de “espaço econômico”, ver CARRARA, op. cit., p. 54-55 [itálicos do autor].7 YOUNG, Eric Van. La cuidad y el campo en el México del siglo XVIII: la economía rural de la región de Guadalajara, 1675-1820. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 15-36.

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Segundo Fernand Braudel, “os circuitos mercantis são iguais aos circuitos elétricos: só funcionam fechados”; caso contrário, estão condenados a desapa-recer. Conforme o autor, “sendo a troca reciprocidade, a cada trajeto de A a B corresponde uma certa volta, tão complicada e sinuosa quanto se queira, de B a A. A troca se fecha então sobre si própria. Há circuito”. Porém, não escapa ao autor a dificuldade em se fechar tais circuitos – nos quais o crédito tem papel central –, muito menos a complexidade própria ao comércio triangular havido no Atlântico entre os séculos XVII e XVIII.8 O que dizer então dos traficantes brasileiros, os quais compravam têxteis em Salvador provenientes da Índia com intuito de os trocarem por escravos na costa de Benguela, retornarem ao Brasil para, enfim, vendê-los em Minas – por vezes via Rio de Janeiro – em troca de ouro?

Percebe-se a amplidão e complexidade dos circuitos mercantis que, muitas vezes, tinham na capitania mineira seu fim último. Homens interligados a agentes mercantis situados em vários pontos de vários circuitos, unidos pela conjuntura favorável dos descobrimentos auríferos, valeram-se do tráfico negreiro como principal – ou ao menos o mais rendoso –meio de acesso ao ouro. Já foi dito “que os grandes mercadores, embora pouco numerosos, se apoderaram das chaves do comércio de longa distância, a posição estratégica mais representativa”. Jogando com os preços de mercados distintos e afastados entre si, esses homens estavam aptos a obter os maiores lucros.9 Se assim for, os grandes traficantes e aqueles ligados ao financiamento de tais empresas surgiram como os beneficiários por excelência dos achados de finais do século XVII. Por conseguinte, e dentro do “espaço econômico” aqui determinado, as capitanias da Bahia e do Rio de Janeiro igualmente o foram.

a geografia do tráfico atlântico de escravosEm 1723, os membros da câmara de Goa queixaram-se dos comerciantes

baianos que conduziam o comércio de têxteis em Moçambique. Tal queixa referia-se a comerciantes como Baltazar Álvares de Araújo, agente baseado na Bahia a serviço de Francisco Pinheiro, quem enviou um carregamento de tecidos europeus de Salvador para Moçambique em 1719.10 Em 2 de julho de

8 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: os jogos das trocas. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 117-122.9 BRAUDEL, op. cit., p. 353-356.10 FERREIRA, Roquinaldo. Transforming atlantic slaving: Trade, warfare and territorial control

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1728, o capitão e senhor de escravos Antônio de Siqueira Rondon – dono, em sociedade com João Mateus Rondon, de um sítio com 21 escravos na freguesia de Camargos,11 termo de Vila do Carmo – nomeou, dentre outros, dois procu-radores para a cidade da Bahia.12 Eram eles, o sargento-mor Luis Tenório de Molina e o comerciante Baltazar Álvares de Araújo.13 Além de ter sido homem poderoso atuante na capitania mineira nas primeiras décadas do século XVIII,14 o sargento-mor Luis Tenório de Molina estabeleceu sociedade com Manoel dos Santos Freitas, Caetano de Sousa Sá, Manoel Gonçalves Machado e Manoel da Costa Granja para uma empresa negreira em 1733, a qual desembarcou na Bahia cerca de 307 escravos. Conforme se verá, Manoel Gonçalves Machado atuou em outras quatro viagens negreiras entre 1721 e 1740, sendo responsável pelo desembarque na Bahia de 1.347 africanos.15

Não seria prudente afirmar ter havido qualquer tipo de ligação entre Antônio de Siqueira Rondon e os demais traficantes sócios de Luis Tenório de Molina, muito menos entre Siqueira Rondon e o comércio de têxteis em Moçambique. Sem embargo, delineiam-se circuitos em cujos meandros o ouro esvaia-se da

in Angola, 1650-1800. Los Angeles: Tese de doutorado, University of Califórnia, 2003, p. 61. Entre 1710 e 1713, pelo menos 10 navios saíram da Bahia diretamente para Moçambique, na Costa Oriental da África.11 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, Livro de nota 03, Escritura de compra e venda, 05/07/1714.12 Os procuradores eram indivíduos responsáveis por representarem os interesses do outorgante em toda e qualquer ação civil ou comercial. Apresento dois exemplos das incumbências dos pro-curadores. Após a relação dos indivíduos nomeados, segue: “mostradores que serão deste poder aos quais disse dava, e outorgava, cedia e trespassava todo o seu livre e comprido poder mandado geral e especial com bastante direito se requer e alegar todo seu direito e justiça para que por ele outorgasse em seu nome e como ele próprio em pessoa possam os ditos seus procuradores acima nomeados todos juntos ou qualquer deles de per se de cobrarem, receberem, acordarem e a seus poderes houve toda sua fazenda bens móveis e de raiz, dívidas, dinheiro, ouro, prata, açúcares, escravos, encomendas, carregação, seus (?) e coisas outras de qualquer qualidade”. Por vezes se acrescia: “poderão apelar e agravar vir com embargos isentar suspeições a quaisquer juízes e oficiais de justiça, ouvir sentenças e das que forem a seu favor estar por elas, e das contra ele apelar e agravar e segui-las até moral cada, cobrarem, arrecadarem todas suas dívidas de todas as pessoas que obrigadas lhe forem, dar quitações públicas”.13 ACSM, LN 29, Escritura de procuração bastante, 02/07/1728. 14 KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da revolta mineira de Vila Rica, c. 1709 – c. 1736. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2005, passim (Dis-sertação de mestrado).15 ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON, David; and KLEIN, Herbert. The trans-Atlantic slave trade: a Dataset on CD-ROM, 1999. ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHAR-DSON, David; and FLORENTINO, Manolo. The Trans-Atlantic slave trade: a dataset on-line (TSTD). Agradeço a Alexandre Vieira Ribeiro por ter gentilmente me cedido o referido banco de dados.

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capitania e concorria para dar vida a esses mesmos circuitos. Nesses termos, a própria geografia do tráfico negreiro lança luz sobre os circuitos nos quais o ouro atuava.

O impacto das descobertas auríferas se fez sentir em várias partes do mundo setecentista. Particularmente no que respeita às pretensões do corrente artigo, interessa-me medi-lo junto ao tráfico negreiro. Aqui, não se pretende perceber a atuação dos traficantes brasileiros na costa africana de modo bipolar: por um lado, ter-se-iam os baianos e pernambucanos restritos à região da África Ocidental e, por outro, os fluminenses monopolizando o trato na África Centro-Ocidental. Nos dias de hoje, tal divisão não mais se sustenta. Já em 1703, d. Rodrigo da Costa, então governador-geral do Brasil, deu conta ao rei sobre o contrabando de ouro na Costa da Mina por intermédio de traficantes fluminen-ses. Escreveu d. Rodrigo:

os moradores do Rio de Janeiro, e das capitanias suas anexas, continuam a mandar, há poucos anos, várias embarcações a resgatar escravos a Costa da Mina, o que até agora não faziam... achei que a maior importância das duas carregações era ouro em pó e em barras; e que o negócio que haviam de fazer com os negros da dita Costa, levando para isso os gêneros costumados, o fazem com os estrangeiros [ingleses, franceses e holande-ses] que nela V. Majestade, pela perda que isso tem, por ser certo que a maior parte do ouro que vai é por quintas, assim de não ser conveniente que os estrangeiros sejam senhores dele por troca de escravos que estão roubando às nossas embarcações.16

No mesmo ano veio a resposta régia proibindo que navios provenientes do Rio de Janeiro ou “dos portos das capitanias do sul” singrassem rumo à Costa da Mina, África Ocidental.17 Contudo, em nada adiantou a determinação régia, pois, entre 1722 e 1731, 113 navios aportaram no Recife provenientes da Costa da Mina, desembarcando cerca de 22.270 escravos. Em sua maioria, tais cativos foram adquiridos por intermédio do tabaco de terceira qualidade produzido na Bahia e em Pernambuco. A importância de tal gênero era tamanha que “os navios procedentes do Rio de Janeiro paravam em Recife para pegar tabaco antes de partirem para a África Ocidental”. Daqueles vinte e dois mil africanos

16 Arquivo Estadual da Bahia, 07, doc. 108. Apud. VERGER, Pierre, op. cit., p. 39-40.17 AEB, 07, doc. 218. Apud, ibidem.

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aportados no Recife, muitos estavam endereçados à capitania fluminense, onde comerciantes residentes por lá os vendiam para senhores em Minas Gerais. Dessa forma, os traficantes pernambucanos resguardavam sua cota no ouro mineiro, utilizando parte deste para negociar na África Ocidental, novamente.18

Em 1721, dois navios aportaram no Rio de Janeiro provenientes da África Ocidental com cerca de 800 escravos, os quais foram vendidos em apenas dois dias. Entre 1722 e 1725, oito navios arribaram na capitania fluminense perfa-zendo um total de 2.642 negros provenientes da África Ocidental. Por fim, entre 1725 e 1727, 5.700 escravos chegaram ao Rio de Janeiro, todos procedentes da África Ocidental. Tendo em conta que não se produzia tabaco na capitania do Rio de Janeiro, esses comerciantes o adquiriam na Bahia e em Pernambuco de duas formas: ou no caminho para a África, ou importando-o previamente daquelas duas capitanias.19

A atuação de traficantes baianos e pernambucanos na região da África Centro-Ocidental também ocorria. Em meados do século XVIII, comerciantes com licença para irem resgatar africanos na Costa da Mina acabaram por fazê-lo em Benguela. Ao que parece, esses homens, por vezes, atuavam em ambas as paragens. Foi o caso, por exemplo, de Manoel Alves de Carvalho que, entre 1749 e 1750, remeteu duas galeras para a África Ocidental e duas para a África Central Atlântica. Igualmente, João Lourenço Veloso despachou, entre os anos de 1745 e 1750, um navio para a região da Costa da Mina e outro para Benguela.20 Nesses termos, a tabela 1 não chega a causar muita estranheza.

18 FERREIRA, op. cit., p. 94-95.19 Idem, p. 95-96.20 RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador, 1680-1830. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2005, p. 38 (Dissertação de mestrado inédita).

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tabela 1 distribuição (%) dos escravos na capitania de minas gerais

conforme região de origem, 1713-1756

Região de origem Nº de escravos %

África Ocidental 2.538 60,4

África Centro-Ocidental 1.595 37,96

África Oriental 69 1,64

Total de escravos 4.202 100

Fonte: ACSM, Inventários post-mortem, 1º e 2º ofícios.

Da produção de tabaco nas capitanias do Nordeste, baianos, pernambucanos e fluminenses se valeram para adquirir escravos na Costa da Mina. Naquelas paragens, além do comércio escravo-tabaco, o ouro levado clandestinamente nas barcas, galeras, bergantins e sumacas era comercializado, muitas vezes junto aos ingleses, aos franceses e mesmo aos holandeses. Na viagem de volta, após um primeiro desembarque em Recife ou em Salvador, seguido de transações comerciais, muitos dos escravos mareavam para o Rio de Janeiro, donde ru-mavam, alguns deles, para as Gerais. Ouro em troca de escravo. Pagamento à vista ou à prazo. E novamente os circuitos negreiros em que o ouro fluía eram postos na ordem do dia.

Se, por um lado, a tabela 1 revela ser bastante arriscado mensurar o peso das capitanias da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro no abastecimento de Minas, conforme a região de origem dos escravos presentes nos inventários post-mortem – mesmo porque a porcentagem de escravos desembarcados na Bahia e em Pernambuco provenientes de Luanda, ao longo do século XVIII, se manteve relativamente estável, ainda que em proporções inferiores às do Rio de Janeiro21 –, por outro, lança luz sobre a importância do tabaco no engendramento dos circuitos negreiros nos quais o ouro fluía. Para além, a tabela indica que, não obstante o uso da geribita fluminense no trato com a África Centro-Ocidental, o

21 MILLER, Joseph. A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII. In: PANTOJA, Selma & SARAIVA, José (orgs.). Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999, p.56-61.

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tabaco em muito contribuiu para o estreitamento das ligações entre comerciantes do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco, concorrendo, dessa forma, para a formação do “espaço econômico” aqui trabalhado.

Conforme a tabela 1, o tráfico negreiro na Costa da Mina foi bastante ativo nas primeiras décadas do século XVIII. Contudo, o comércio nessa região guar-dava, conforme já apontado por d. Rodrigo da Costa, o perigo do descaminho do ouro para os cofres de nações estrangeiras. No alvorecer do século XVIII, os ingleses, os franceses e os holandeses forneciam escravos aos navios por-tugueses em troca de ouro.22 A título de exemplo, entre 1720 e 1722, o diretor inglês da Royal African Company, em transação com José de Torres – um dos mais importantes traficantes residentes na praça de Salvador e com forte influ-ência na costa africana –, formou três carregamentos de escravos; o primeiro em 1720, no valor de ₤716-12-4 ½; o segundo em 1721, no valor de ₤759-12-3 e perfazendo um total de 99 escravos; o último em 1722, no valor de ₤1.380 para 234 escravos.23 Com essa aproximação, os ingleses obtinham ouro e tabaco provenientes das capitanias de Minas Gerais e da Bahia.24

Recorrentemente, navios negreiros brasileiros eram alvos de apreensões e saques por parte dos holandeses. Tais incursões acabaram por gerar menores expectativas de sucesso na empresa traficante, contribuindo para uma diminuição das viagens. Segundo Alexandre Vieira Ribeiro,

ao iniciar a década de vinte inverteu-se a tendência de crescimento das saídas de negreiros de Salvador observadas nas primeiras décadas do século. Entre os anos de 1708-1712 o número médio era de aproximada-mente 25 expedições realizadas por ano, total que subiu para uma média anual de 30 no lustro de 1713-1717. No qüinqüênio seguinte (1718-1722) essa média caiu para 20 chegando a apenas 10 partidas anuais no período de 1733-1737.25

A situação agravou-se a tal ponto que, em 25 de maio de 1731, proibiram-se os navios brasileiros de comercializarem com os holandeses no castelo de São Jorge da Mina. Porém, em 20 de maio de 1734, o vice-rei escrevia para Lisboa

22 VERGER, op. cit., p. 39.23 VERGER, op. cit., p. 44-45.24 Idem, p. 137.25 RIBEIRO, op. cit., p. 24-25.

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dando conta que “as embarcações do Brasil continuavam a ir ao castelo da Mina para pagar os direitos impostos pelos holandeses”.26 Valendo-se de seus direitos exclusivos comerciais estabelecidos desde meados do século XVII, os holandeses cobravam uma taxa de 10% sobre o fumo levado pelos traficantes brasileiros a ser comercializado na Costa da Mina.27 Entre 1715 e 1756, nada menos que quinhentos navios pagaram a referida taxa aos batavos, o que não impediu o ataque holandês a vários navios provenientes do Brasil.28 Porém, não somente o tabaco era o alvo dos holandeses. Em carta de meados da década de 1730, o desembargador Wenceslau Pereira da Silva, em parecer enviado ao reino acerca dos “meios convenientes para suspender a ruína dos três principais gêneros do comércio do Brasil”, deu conta da forma pela qual o ouro escoava para os cofres holandeses. Escreveu o desembargador:

muito mais proveitoso é aquele negócio [o comércio da Costa da Mina] para os holandeses e zelandeses interessados na Companhia da Mina que tem ali estabelecido o seu comércio com os negros, os provém de gêneros e drogas, de que se agradam, de que se escolhem e no que interessam grandes avanços, revendendo-os depois aos nossos portugueses a troco de ouro. O mesmo negócio fazem negros instruídos pelos holandeses, a cujas mãos vai parar o ouro que se extrai do Brasil.29

Os achados auríferos em Minas também causaram um impacto no tráfico na Costa Centro-Ocidental. Em Luanda, por exemplo, os mercadores souberam jogar com a variação do preço do escravo nas diferentes cidades do Brasil. O aumento do preço no Rio de Janeiro levou os comerciantes a diminuírem o envio de navios para a Bahia e Pernambuco. Em 1699, um comboio de navios com destino à capitania de Pernambuco alterou sua rota para a capitania flu-minense, pois “nenhum comerciante quis despachar escravos para o nordeste brasileiro”. O mesmo fez o governador de Angola, Luiz César de Menezes – homem profundamente envolvido com o comércio negreiro –, em relação a um de seus navios envolvidos no tráfico. Em 1700, Menezes deu conta a seu agente sediado em Pernambuco de que a demanda por escravos no Rio era o centro

26 VERGER, op. cit., p. 71-78.27 Acerca de tais direitos comerciais ver VERGER, op. cit., notadamente capítulos I e II.28 FERREIRA, op. cit., p. 89.29 Arquivo Histórico Ultramarino, doc. da Bahia 347. Apud: VERGER, op. cit., p. 91-94.

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de gravidade por detrás do tráfico em Luanda. Nesses termos, não obstante as várias tentativas lisboetas de impedir tal redirecionamento na geografia do tráfico, os navios continuavam a navegar para o Rio em detrimento da Bahia e Pernambuco. Mesmo aqueles os quais aportavam nas capitanias do Nordeste enviavam seus escravos para a capitania fluminense quer por terra, quer por mar, perfazendo, no início do século XVIII, cerca de 6.000 escravos desembarcados na praça do Rio de Janeiro.30

A concordar com Roquinaldo Ferreira, o ouro foi peça fundamental no tráfico negreiro. Segundo o autor, em 1722, o vice-rei, Vasco César de Mene-zes, estimou em 90 arrobas o total de ouro levado anualmente para a África a partir dos portos brasileiros. Entre 1724 e 1728, conforme Robin Law, 5.845 onças (56:112$000) foram utilizados na compra de escravos junto a mercadores britânicos.31 Na Bahia, os senhores de engenho, além de se queixarem dos altos preços dos escravos, davam conta de que os traficantes preferiam vender os negros “aos mineradores, que pagavam em ouro, e não a eles, que só podiam pagar em açúcar ou em promessas baseadas na safra do ano seguinte”.32

Analisando uma junta formada em 1735 pelo governador do Rio de Janeiro “com a intenção de decidir sobre a manutenção, ou não, do envio de ouro, prata e dinheiro para a África” – no que se acordou “permitir aos ditos homens de negócio fazerem as remessas que lhes pediam seus constituintes das peças de ouro e prata e dinheiro”,33 não obstante o fato de que os metais preciosos en-viados para Angola acabavam por serem direcionados para os navios de nações estrangeiras–, Antônio Carlos Jucá conclui:

essa decisão, que só é surpreendente para aqueles que ainda acreditam na miragem do “exclusivo metropolitano”, mostrava-se absolutamente coerente com a necessidade de se preservar o fluxo contínuo de escra-vos que se destinavam à capitania fluminense, como também às regiões mineradoras.34

30 FERREIRA, op. cit., p. 35-39. Acerca do envio de escravos de Pernambuco e Bahia para o Rio ver também SAMPAIO, op. cit., p. 170-173.31 FERREIRA, op. cit., p. 96-97.32 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 166.33 ARQUIVO NACIONAL, Publicações históricas, v. 7, p. 122. Apud: SAMPAIO, op. cit., p. 165.34 SAMPAIO, op. cit., p. 166.

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Assim sendo, o tráfico negreiro e o ouro das Gerais acabavam por incitar circuitos mercantis que, além de escaparem ao controle metropolitano, con-corriam para unir – ou reforçar uniões preexistentes –, diferentes paragens do globo. Os comerciantes da Ásia igualmente procuravam lucrar com o comércio de escravos em Angola. Consoante Joseph Miller, sem o apoio financeiro inglês, o qual facultaria aos comerciantes asiáticos o acesso direto ao ouro brasileiro, esses negociantes perceberam, no comércio com o Rio de Janeiro, uma alter-nativa para tanto. Segundo o autor, “aproveitando-se do que parecia ser uma demanda insaciável por algodão indiano na África, eles [os comerciantes asiá-ticos] compraram escravos em Luanda e os venderam por ouro na América”.35 Porém, não se pode perder de vista a utilização da cachaça fluminense no tráfico negreiro. Além de constituir o “maior volume na transação dos comerciantes do Rio em suas trocas por escravos angolanos”, a cachaça garantia àqueles traficantes “um papel autônomo no tráfico angolano, quase intocável pelo poder do capital comercial metropolitano em Luanda”.36

Conforme anteriormente enunciado, os têxteis indianos também desempe-nharam destacado papel nesses circuitos mercantis. Roquinaldo Ferreira chega a comparar sua importância à geritiba e ao tabaco. Todavia, destaca uma forte diferença nos circuitos envolvendo tais bens. Enquanto os dois últimos foram comercializados diretamente entre Brasil e África, as importações dos têxteis provenientes da Ásia estavam ligadas a redes comerciais com dimensões além do Atlântico Sul, unindo Portugal, Brasil e Ásia – a carreira da Índia. E chama a aten-ção para o fato segundo o qual, na busca por uma melhor compreensão de como esses têxteis intensificaram o comércio direto entre Brasil e Angola, não se pode prescindir de compreender as transformações ocorridas na carreira da Índia.37

De acordo com o acima exposto, não é nenhuma novidade na historiografia o fato de que as descobertas auríferas engendraram vários circuitos mercantis os quais ligavam diferentes partes do globo e nos quais o ouro esvaia-se para outros países. O que pretendi com tal exposição foi demonstrar a importância de se manter agentes mercantis em paragens nevrálgicas a tais circuitos, notadamente Salvador (Recife), Rio de Janeiro, Costa da Mina, Luanda (Benguela). Entendo que tal importância se deveu a um fator bastante simples: no que respeita à pri-

35 MILLER, op. cit., p. 19.36 Idem, p. 25-26.37 FERREIRA, op. cit., p. 50-51.

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meira metade do século XVIII, nas veias dos circuitos mercantis negreiros corria, em essência, o ouro da capitania mineira. Quanto menos para obter escravos, por detrás do tabaco, da geritiba e mesmo dos têxteis indianos, pulsava o desejo latente de reter para si parte do que se extraia em regiões como Vila do Carmo, Vila Rica, Vila Nova da Rainha do Caeté e Vila Nova de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. E a possibilidade de lucro era imensa. Por exemplo, em 1688, a geritiba brasileira que chegava a Luanda era comercializada por 2$250 por barril.38 Em meados do século XVIII, um escravo era resgatado na costa africana por 6$000.39 Entre 1711 e 1720, um escravo no Rio de Janeiro custa-va, em média, cerca de 197$609, sendo que na Bahia valia, aproximadamente, 180$000.40 No termo de Vila do Carmo para o mesmo período, um escravo era vendido, em média, por 345$399.41

Em 1715, o sobrinho e agente de Francisco Pinheiro, Antônio Pinheiro Neto, deu conta de um carregamento de escravos procedente da Costa da Mina e vendido no Rio de Janeiro. Após terem sido subtraídos 97$420 referentes a despesas com escravos e 1:322$902 concernentes ao capitão do navio, ao agente mercantil e ao caixeiro, restou líquido para Francisco Pinheiro 9:667$198.42

Conforme observado anteriormente, além de altamente lucrativo, o “co-mércio da carne humana” consistia em um dos principais meios de acumulação endógena à colônia – nesse processo, o ouro ocupou o papel central. Longe de ter sido remetido integralmente para Portugal, Inglaterra, Holanda ou qualquer outra paragem, parte do ouro produzido na colônia permaneceu na colônia. E o fez via tráfico negreiro, fechando vários circuitos mercantis nos quais atua-vam traficantes e agentes mercantis residentes em diferentes partes do globo.

38 CURTO, José. Vinho verso cachaça: a luta luso-brasiliera pelo comércio de álcool e de escravos em Luanda. In: PANTOJA, Selma & SARAIVA, José (orgs.), op. cit., p. 82.39 RIBEIRO, op. cit., p. 77.40 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750. In: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 298 e SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001, p. 210, respectivamente. Ambos autores retiram os valores médios a partir do valor pago por um escravo adulto do sexo masculino para obter sua liberdade.41 ACSM, LN 01-15, ECV.42 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O fidalgo-mercador Francisco Pinheiro e o “negócio da carne humana”, 1707-1715 (mimeo), p. 22. O texto encontra-se publicado em GUIMARÃES, C. G. O fidalgo-mercador Francisco Pinheiro e o negócio de carne humana, 1707-1715. In: Promontoria. Algarve, 2005, p. 109-134.

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Nesses circuitos, o ouro saía, quer transfigurado em tabaco, em geritiba ou em tecidos indianos, quer em sua forma natural, para, então, voltar tingido de preto. Uma vez aqui, via Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, recobrava seu brilho dourado.43

a conformidade das procuraçõesDocumentação ainda pouco trabalhada na historiografia brasileira para o

período colonial, as escrituras de “procuração bastante” são valiosos registros das interações político-econômicas de uma dada localidade. Mais precisamente, permitem traçar o mapa geográfico de tais interações. Dentre as informações de maior importância oferecidas por tal documentação estão: o nome do outorgante, o local de sua residência, o nome dos procuradores e a localidade para a qual estavam sendo nomeados. Infelizmente, nas procurações registradas no termo de Vila do Carmo não constavam o ofício do outorgante, mas tão-somente sua patente militar. Por vezes, registrava-se se o indivíduo era padre, doutor ou escravo forro. Igualmente lamentável é a ausência do ofício dos nomeados procuradores. Para suprir tal lacuna, busquei identificar os traficantes de escra-vos nomeados para a capitania da Bahia junto ao banco de dados TSTD. Outra informação raramente registrada nas procurações era a finalidade específica para a qual um dado indivíduo estava sendo nomeado procurador – excetuam-se as procurações de casamento. Mormente, concedia-se plenos poderes ao procura-dor para cuidar dos interesses do outorgante nos campos políticos, jurídicos e econômicos.44 Feitos tais esclarecimentos, apresento o padrão das procurações passadas para o Rio de Janeiro, Bahia, Reino e São Paulo.

Segundo Alexandre Vieira Ribeiro, por volta de 1725, a participação baiana no abastecimento de escravos para a região das minas perdeu espaço para a capitania fluminense.45 De principal centro abastecedor de mão-de-obra – logo com maiores possibilidades de participação no ouro da capitania mineira –, a

43 Saliento que não estou a desconsiderar todo o comércio de abastecimento alimentício voltado para a capitania de Minas Gerais. Porém, não creio que tal comércio sobrepujasse, em termos de valores e lucros, os circuitos mercantis provenientes do tráfico negreiro. A aquiescer com Antônio Carlos Jucá de Sampaio, produzir alimentos para a região das minas figurava “como a melhor forma para muitos de participar, ainda que fracamente, da conjuntura extremamente favorável por que passava a capitania”. SAMPAIO, Antônio Carlos. Na encruzilhada do império..., op. cit., p. 133 [grifos meus].44 Para um exemplo de procuração ver nota 12.45 RIBEIRO, op. cit., p. 27.

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Bahia passou a desempenhar “um papel complementar para o atendimento da demanda na região das Gerais”.46 O gráfico 1.1 traz à baila a participação das quatro principais regiões externas à capitania mineira nas procurações emitidas a partir do termo de Vila do Carmo.

gráfico 1 - participação das quatro principais regiões externas à capitania mineira nas procurações emitidas a partir do termo de vila do carmo, 1711-1730

Fonte: ACSM, LN 1-15 e 25-35, EPB.

De saída, faz-se necessário uma rápida explicação da metodologia adotada na montagem do gráfico acima. Em primeiro lugar, um outorgante poderia no-mear em uma mesma escritura mais de um procurador para várias localidades. Diga-se de passagem, essa prática revelou-se bastante comum na análise de tal documentação. A título de exemplo, em 11 de julho de 1711, João Romeu de Carvalho registrou uma escritura de procuração com a qual nomeou quarenta e quatro procuradores distribuídos da seguinte maneira: nove para a cidade da Bahia, quatro para os currais do rio São Francisco – comarca do Rio das Velhas

46 RIBEIRO, Alexandre Vieira. O comércio transatlântico de escravos da Bahia, p. 10. Trata-se da versão em português do texto inédito do autor, o qual será publicado, posteriormente, em um livro organizado por David Eltis a ser editado pela Yale. Agradeço a Alexandre Vieira Ribeiro por ter gentilmente me facultado o acesso ao texto em questão.

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–, quatro para a vila de Cachoeira – capitania da Bahia –, três para a vila de Jaguaripe – capitania da Bahia –, quatro para a cidade do Rio de Janeiro, nove para a cidade de São Paulo, quatro para regiões internas de Minas Gerais, quatro para a cidade de Lisboa, um para a vila de Viana – distrito de Braga – e dois para a região de Angola.47 No exemplo acima, considerei três nomeações para a região da Bahia, uma para o Rio de Janeiro, uma para São Paulo, duas para o reino e uma para a África.

A opção por tal metodologia justifica-se na medida em que entendo a no-meação de diferentes procuradores para diferentes localidades de uma mesma capitania como indicativa da diversidade de interesses do outorgante na capitania em questão. Ademais, creio que a escolha empreendida contribui para um melhor detalhamento da importância e da inserção das diversas regiões no quadro mais geral estabelecido a partir da análise do perfil das procurações passadas no termo de Vila do Carmo. Assim sendo, o gráfico acima não mensura a porcentagem de participação das regiões consideradas frente ao total de escrituras. Mas, tão-somente a freqüência com que tais regiões aparecem nas procurações.

Em segundo lugar, urge destacar o caráter conjuntural dos dados apresen-tados. Afora a lacuna concernente ao período entre 1721 e 1725,48 não me é permitido, por exemplo, tecer maiores considerações sobre o comportamento das capitanias da Bahia e Pernambuco nas procurações para o período posterior a 1730. Conforme o gráfico em questão, essas capitanias fecham o qüinqüênio de 1726-1730 com uma orientação decrescente nas suas participações frente ao total das escrituras. Se esse quadro tende a permanecer ou não, é impossível averiguar no presente momento da pesquisa.

Passando ao gráfico em si, observa-se que das 1.013 escrituras de procu-ração passadas no termo de Vila do Carmo entre 1711 e 1730 – com intervalo dos anos compreendidos entre 1721 e 1725 –, em 30% delas foram nomeados procuradores para as capitanias da Bahia e de Pernambuco. Em detalhe, para o período de 1711 até 1720, as regiões da Bahia e Pernambuco responderam por 176 aparições frente a um total de 611 escrituras. Posteriormente, entre 1726 e 1730, tem-se 129 citações para 402 escrituras. Em verdade, longe de uma diminuição da participação daquelas regiões nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo – o que seria de se esperar tendo em conta a perda de

47 ACSM, LN 01, EPB , 01/07/1711.48 Ressalto que futuramente a pesquisa empreendida suprirá o período em questão.

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espaço no abastecimento de escravos em relação à capitania fluminense –, o que se observa é um aumento no percentual da freqüência de nomeações para as capitanias da Bahia e de Pernambuco – de 28,8% no primeiro período para 32,08% no segundo. A explicação para esse aparente paradoxo reside, quiçá, na própria flutuação dos desembarques de escravos na capitania. A tabela 2 avança nesse sentido.

Conforme a tabela, até o início da década de 1720, o afluxo anual de africa-nos para a capitania baiana, embora apresentando uma linha cujo desempenho aponte para um decrescimento, manteve-se elevado. Após um período de queda em tal afluxo, o número de desembarques na região, entre a segunda metade da década de vinte até o início da seguinte, passou por um revigoramento, para então ser sobrepujado pela capitania fluminense nos anos vindouros.49

tabela 2 – Número de escravos desembarcados nas capitanias da bahia e rio de Janeiro, 1710-1732

Ano Bahia Rio de Janeiro1711 5350 42001712 7624 42001713 8782 42001714 8564 42001715 6542 42001716 6977 42001717 7231 42001718 6072 42001719 5542 42001720 4556 42001721 5673 42001722 4736 42001723 4381 42001724 4866 42001725 4496 42001726 7211 57001727 5659 57001728 5659 57001729 3743 57001730 6783 57001731 3591 32501732 5135 3103

Fonte: RIBEIRO, op. cit., p. 127-131.

Infelizmente, não disponho dos dados relativos às procurações para o inter-valo de 1721 e 1725. Contudo, creio ser possível atrelar o aumento percentual

49 Para o movimento de africanos desembarcados nas capitanias da Bahia e do Rio de Janeiro a partir de 1732 ver RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos..., op. cit., p. 127-131.

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da participação das capitanias da Bahia e de Pernambuco nas procurações pas-sadas no termo de Vila do Carmo, entre 1726 e 1730, a esse revival do número de escravos importados vivido na região entre 1726 e 1728. Ainda mais tendo em conta que das 245 escrituras nomeadas para a cidade da Bahia, em 21,22% delas os procuradores eram traficantes de escravos.50

Ademais, o cruzamento do gráfico 1 com a tabela 2 revela um dado digno de nota. Conforme o primeiro, em 36,62% das procurações ora analisadas foram nomeados procuradores para a capitania do Rio de Janeiro. Tal constatação ganha relevo quando se comparam as freqüências das capitanias da Bahia e de Pernambuco com a fluminense. De acordo com o acima exposto, para os períodos de 1711-1720 e 1726-1730, as primeiras capitanias responderam, res-pectivamente, por 28,8% e 32,08% das nomeações. Para a capitania do Rio de Janeiro, essas porcentagens são de 38,78% e 33,33%. Porém, a tabela 2 revela que durante todo o período compreendido entre 1711 e 1732, em somente um ano – 1729 – o número de escravos desembarcados no porto do Rio superou em grande medida aqueles desembarcados na Bahia. Se somente por volta do final da década de 1720 o Rio superou a Bahia como o principal centro abastecedor de Minas, os dados acerca da freqüência das procurações emitidas no termo de Vila do Carmo ganham uma dimensão inusitada.

Pode-se argumentar, por exemplo, que a proibição da circulação de mer-cadoria pelo caminho do Sertão da Bahia entre 1699 e 1714 tenha contribuído para tal perfil.51 Contudo, e conforme os gráficos 1 e 2, mesmo para o período posterior a 1714, quando o caminho é novamente liberado, a capitania fluminense permanece superando a baiana nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo. Outra possível objeção seria relacionada à metodologia empregada na elaboração do gráfico 1, que poderia promover uma distorção nos dados. Nesse sentido, apresento o gráfico 2.

50 Cheguei a tal porcentagem promovendo o cruzamento dos 1.214 nomes de procuradores no-meados para a cidade da Bahia com os traficantes listados no banco de dados TSTD, entre 1691 e 1740; acerca do mesmo conferir nota 15.51Acerca da proibição e liberação do caminho, ver CARRARA, op. cit., p. 124-132 e CAMPOS, Maria Verônica, Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado”, 1693 a 1737. São Paulo: USP, FFLCH, 2002, p. 136-137 (Tese de doutoramento inédita).

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gráfico 2 participação (%) das quatro principais regiões externas à capitania mineira nas procurações emitidas

a partir do termo de vila do carmo conforme o número de procuradores nomeados, 1711-1730

Fonte: ACSM, LN 1-15 e 25-35, EPB.

Não obstante a superação de procuradores nomeados para as capitanias baia-nas e pernambucanas frente à fluminense na segunda metade da década de vinte – fato surpreendente que pode ser atribuído ao revival do tráfico naquelas regiões –, o gráfico 2 torna bastante clara a supremacia da capitania fluminense frente às capitanias da Bahia e de Pernambuco. Essa preponderância do Rio de Janeiro sobre as regiões do Nordeste deixa de causar estranheza considerando, por exem-plo, o movimento das mercadorias conforme os registros de entrada em Minas.

Pela tabela 3, percebe-se que, desde meados da década de 1710, se o Rio de Janeiro não era o principal centro abastecedor da capitania mineira – dado que a capitania de São Paulo valia-se do caminho Velho –, já dava sinais de assumir as formas de uma das “principais encruzilhadas do império”.52 E é exatamente no processo a partir do qual a capitania fluminense viria a se tornar uma das mais importantes paragens do império que reside o segredo do elevado número de procurações e procuradores nomeados para a capitania já a partir de 1711.

52 SAMPAIO, Antônio Carlos. Na encruzilhada do império..., op. cit., p. 174.

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Não é por nada que, das 371 procurações passadas para o Rio de Janeiro, em 55,79% delas foram nomeados ou homens de negócio ou mercadores, e em 36,65%, senhores de engenho.53

tabela 3importação de mercadorias pela capitania de minas, 1716-1717

Discriminação Caminhos Novo e Velho Caminho do Sertão da Bahia

Secos 1.165 210

Molhados 8.887 1.350

Escravos 269 778

Fonte: CARRARA, op. cit., p. 117.

A fim de uma melhor aproximação da importância dos circuitos mercantis

negreiros no abastecimento de escravos para a região de Minas, valho-me dos dados provenientes dos valores dos contratos de arrematação das entradas para Minas,54 dos valores dos contratos dos direitos dos escravos que vão para a capitania e dos movimentos de entrada de escravos nas capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia. Segundo Alexandre Ribeiro Vieira, a partir de 1732, o nú-mero de escravos desembarcados no porto do Rio de Janeiro superou de forma definitiva aqueles desembarcados no porto de Salvador.55 Se a isso somarmos, conforme dados de Maurício Goulart, que entre 1739 e 1759, dos cerca de 6.000 escravos enviados anualmente para a capitania de Minas, a capitania fluminense foi responsável por 65% do total, ficando os outros 35% a cargo da capitania baiana,56 os valores dos contratos dos direitos dos escravos que vão para Minas ganham uma natureza amplamente contraditória. Consoante Antônio Carlos

53 Tais porcentagens somente puderam ser obtidas graças ao esforço do professor Antônio Carlos Jucá de Sampaio em cruzar os procuradores nomeados para a capitania do Rio de Janeiro por mim encontrados com os seus próprios dados, esforço pelo o qual sou imensamente grato.54 Tratava-se de um “contrato de arrecadação do tributo sobre mercadorias que entram nas regiões mineradoras da América portuguesa, cuja cobrança se faz nos registros ou contagens. As tarifas são diferenciadas para os diversos tipos de mercadorias e bens, incidentes inclusive sobre os escravos”. CÓDICE Costa Matoso, op. cit., vol. II, p. 88-89 e p. 94. Ver também ROMEIRO, Adriana & BOTELHO, Ângela Vianna, op. cit., p. 106-107.55 RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos..., op. cit., p. 27.56 GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 170. Apud: RIBEIRO, Alexandre Vieira. O comércio transatlântico de escravos da Bahia, p. 10.

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Jucá de Sampaio, nunca, entre 1725 e 1748, o valor dos contratos dos direitos dos escravos arrematados no Rio de Janeiro superaram o valor dos mesmos na Bahia. Ou a capitania fluminense possuía uma incrível capacidade de absorver os 6.323 escravos os quais em média desembarcaram na capitania entre 1725 e 1748,57 ou a explicação para esses números reside em outro ponto.

Observando os valores dos contratos das entradas para Minas, Antônio Carlos Jucá observa, a partir de 1727, uma forte superação no valor dos con-tratos dos caminhos Novo e Velho em relação ao caminho do Sertão da Bahia e Pernambuco.58 Se os valores das arrematações desses contratos servem como indicativo da superação de tal ou tal praça no abastecimento das Gerais, então já por volta de 1720, a Bahia não tinha como competir com o Rio de Janeiro. Em documento datado de 1724, d. Lourenço de Almeida, então governador da capitania mineira, deu conta de que Sebastião Barbosa Prado arrematou o contrato do caminho da Bahia, que estava arrematado a 92:160$000,59 por 153:600$000.60 Por volta de 1729, o mesmo governador deu conta de que, em 1723, o contrato dos caminhos Novo e Velho, que estava arrematado a 122:880$000, o foi por 159:744$000.61 A essa altura, a predominância da ca-pitania do Rio de Janeiro sobre as capitanias da Bahia e de Pernambuco já não causa estranheza alguma.

O que se observa é algo intrigante. No momento em que as capitanias da Bahia e de Pernambuco figuram como os principais portos negreiros da colônia, a capitania do Rio de Janeiro recebe o maior número de procurações provenientes da comarca mineira detentora do maior número de escravos até meados do século XVIII.62 E mais, o valor do contrato das entradas provenien-tes dos caminhos Novo e Velho já vinha superando os valores dos contratos do caminho do Sertão da Bahia desde 1720. Tais dados indicam, em primeiro lugar, que não se pode desconsiderar o peso do mercado de abastecimento de

57 A média fluminense foi retirada a partir de RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos..., op. cit., p. 127-131. O período compreendido entre 1725 e 1748 deve-se em função dos anos escolhidos por Sampaio para a análise do valor dos contratos dos direitos dos escravos que vão para as Minas. Os anos escolhidos foram: 1725, 1729, 1732, 1740, 1745 e 1748. SAMPAIO, Antônio Carlos. Na encruzilhada do império..., op. cit., p. 150.58 SAMPAIO, Antônio Carlos. Na encruzilhada do império..., op. cit., p. 149.59 O valor do contrato foi dado em arrobas. Converti à razão de 1$500/oitava em função de ter sido esta a razão utilizada por Antônio Carlos Jucá na conversão por ele empreendida. 60 AHU, MG, cx. 5, doc. 83. 61 AHU, MG, cx. 14, doc. 67.62 Acerca do mapa da capitação ver CARRARA, op. cit., p. 327.

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secos e molhados dirigido para a região das Minas. Segundo, tendo em conta a forte concentração da empresa traficante, não havia a necessidade de se nomear vários procuradores envolvidos em tais atividades. Contudo, constituindo-se o tráfico como o principal instrumento de acumulação interna à colônia, e tendo em conta o alto preço pago pelo escravo em Minas quando comparado com o preço do mesmo no Rio e na Bahia, creio que a principal explicação para os números acima apresentados reside na própria geografia do tráfico, quer na colônia, quer na África.

De acordo com o anteriormente demonstrado, tanto os traficantes fluminen-ses não limitavam seu raio de ação na região da África Centro-Ocidental, como seus congêneres baianos e pernambucanos não o faziam na África Ocidental. Mais importante, havia uma rota, bastante ativa, na qual traficantes e agentes mercantis residentes na Bahia e em Pernambuco enviavam seus carregamentos de africanos para o Rio de Janeiro e, de lá, para a capitania de Minas. Motivos para a existência de tal rota não faltavam: 1) em 1699, a coroa proibiu o uso do caminho do Sertão da Bahia – o que necessariamente não impediu a remessa de escravos por tal caminho; 2) os traficantes baianos e pernambucanos podiam – tal qual o governador de Angola, Luiz César de Menezes – estar atraídos pelos melhores preços alcançados pelos escravos no Rio de Janeiro; 3) os próprios traficantes fluminenses, buscando uma inserção na Costa da Mina, mantinham agentes mercantis na Bahia para adquirir tabaco. Enfim, a rota Bahia – Rio de Janeiro, em perfeita sintonia com os “ventos negreiros” do Atlântico Sul,63 pro-via a capitania fluminense com parte dos escravos que para a capitania baiana rumavam, e contribuía, de forma contundente, para a formação e consolidação do “espaço econômico” anteriormente estabelecido. Não se deve perder de vista: no imposto de entrada em Minas também o escravo era taxado. Nesse sentido, a superação do valor dos contratos dos caminhos Novo e Velho em relação ao contrato do caminho do Sertão da Bahia e Pernambuco ganha nova dimensão.

Conforme dito no início deste artigo, não é interesse meu estabelecer hierarquias entre tal e tal praça no abastecimento da região de Minas. O que pretendi com a exposição acima foi realçar o dinamismo proveniente do “espaço econômico” costurado com linhas douradas nas rotas do tráfico negreiro. Nesse sentido, entendo não ser possível compreender os circuitos mercantis mineiros

63 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 57-63.

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sem compreender os circuitos mercantis fluminenses e baianos os quais, por sua vez, não se tornam inteligíveis sem compreender os circuitos africanos e a carreira da Índia. Sem mencionar a importância das chegadas e partidas das frotas do e para o reino. Em conclusão, a seguir darei vez à análise tanto dos indivíduos residentes no termo de Vila do Carmo que estavam a passar procu-rações para a capitania da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, quanto dos traficantes baianos mais nomeados nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo. Arrisco dizer que creio não causará espanto o fato de, por via de regra, sempre se nomearem procuradores tanto para a cidade da Bahia como para a do Rio de Janeiro.

o caso da cidade da bahiaConforme visto acima, o tráfico atlântico de escravos e o ouro em muito

contribuíram para a interação do “espaço econômico” apresentado. As desco-bertas auríferas promoveram um rearranjo nos circuitos econômicos vigentes, até então se constituindo o tráfico negreiro em uma das molas angulares de tal processo. No alvorecer do século XVIII, intentando estabelecer um controle sobre esse processo, a Coroa buscou limitar o número de escravos enviados de Angola e da Bahia para o Rio de Janeiro, objetivando, com isso, resguardar ca-pitanias como a de São Paulo. Em 9 de agosto de 1706, o Conselho Ultramarino deu conta ao rei d. João V sobre o que informou o governador e capitão-geral do Brasil, Luis César de Menezes. Acerca do alvará régio de 20 de janeiro de 1701, pelo qual “dos negros que de Angola forem para o Rio de Janeiro se tirem duzentos todos os anos para os paulistas”, escreveu Luis César:

publicado este alvará achou meu antecessor, D. Rodrigo da Costa, que para ser observado era necessário acrescentar-lhe mais circunstâncias e penas que foram a de ser queimada a embarcação que dessa cidade [Bahia] e seus distritos levasse negros para o Rio de Janeiro e mais capitanias do sul sem ordem deste governo e o mestre da embarcação degredado por seis anos para Angola e o senhor da embarcação pagaria da cadeia desta cidade 600 mil réis para as obras públicas dela, que de tudo mandou deitar um bando que V. Majestade foi servido aprovar.64

64 AHU, BA, avulsos, cx. 5, doc. 438.

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Conforme o governador-geral, em 1703 “se fez 3 tomadias de negros”. Em 1704 e 1705, uma sumaca por ano. O motivo do número pequeno de tomadias é justificado:

se livrão de levar os negros em sumacas que estas, como são embarcações grandes e de registro, não saem para fora sem despacho e exame, que lhes fazem os oficiais de justiça; e os levam em barcos pequenos, que saem e entram sem registro quando querem, assim desta Bahia, como de seu dilatado Recôncavo, sem temor de serem tomadas, as horas que lhe parece, levando quantos querem, como se não foram proibidos termos, em que fica sem remédio, vulnerado o dito bando por V. Majestade aprovado.65

Do acima exposto, interessa realçar a comunhão entre os circuitos negrei-ros e os circuitos do ouro os quais, conforme já apontado, concorreram para o estabelecimento de estreitos laços entre as regiões da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Uma das peças-chave desse processo, os traficantes de escravos desempenharam o papel primeiro nesses circuitos, qual seja: adquirir escravos na costa africana e remetê-los à capitania mineira, direta ou indiretamente. No que respeita aos traficantes baianos, por vezes outorgantes sediados em Minas os nomearam para seus procuradores na cidade da Bahia. Vejamos a tabela 4.

Em primeiro lugar, as ressalvas. Para os períodos compreendidos entre 1700-1710 e 1731-1740, não adicionei a coluna A. O motivo para tanto é bastante simples: o primeiro livro de nota presente no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana data de 1710, o que inviabiliza o acesso a procurações passadas antes de tal ano. Evidentemente, isso não significa a inexistência de ligações entre residentes em Minas e traficantes baianos. Como ainda não realizei a pesquisa para além do ano de 1730, logicamente não trabalhei com nenhuma procuração pós-30. Daí não haver a coluna A para esse período. Entretanto, no que respeita às viagens negreiras empreendidas pelos procuradores traficantes, assim como ao número de escravos por eles desembarcados, optei por considerar os pré-1710 e pós-1730, pois a admissão desses anos na análise concorre para uma melhor compreensão, não apenas da inserção dos traficantes no comércio negreiro, mas também das estratégias dos outorgantes mineiros para nomear seus procuradores.

65 Idem.

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tabela 4participação dos traficantes baianos nas procurações passadas no termo de vila do carmo, 1711 – 1730

Traficantes1700-1710 1711-1720 1721-1730 1731-1740

B C A B C A B C B C

Antônio Correa Seixas 1 1 390 8 2.822

Antônio dos Santos 1 1 307 2 796

Antônio Gonçalves da Rocha 1 307 2

Domingos da Costa Guimarães 3 921 3 1 307

Domingos de Azeredo Coutinho 3 1 307 4

Félix de Lemos Coimbra 1 11 3.062

Francisco de Barros Rego 2 3 1.180

Francisco Lopes Vilas Boas 1 307 2

Francisco Veloso 1 307 1

Francisco Xavier da Silveira 1 1 307 7 2.564

Gonçalo de Brito Barros 2 614 1 1

João Ferreira de Sousa 1 307 27 8.306 8 21 6.763 9 3.657

João Lopes Fiúza 1 307 1

João Pereira de Vasconcelos 1 1 307

José de Araújo Rocha 1 307 2 614 1

Lourenço da Costa Ferreira 1 307 1

Manoel da Costa de Oliveira 1 1 307 5 1.989

Manoel Fernandes da Costa 1 6 3 921 9 3.837

Manoel Gomes Lisboa 1 307 4 2 614

Manoel Gonçalves Machado 3 2 705 3 949

Manoel Gonçalves Viana 5 1.628 2 23 7.029 2 20 6.547 1 219

Manoel Nunes Pereira 1 273 1 2 614 1 277

Manoel Ramos Aires Leme 8 2.457 2

Pedro da Silva de Macedo 2 2 614 2 955

Silvestre Ramos Bandeira 1 4 1.513

Simão Álvares Santos 1 307 1

Total 25 7.769 17 58 17.757 35 66 20.844 54 20.758

Fonte: ACSM, LN 1-15 e 25-35, EPB e TSTD.Legenda: A – nº. de nomeações para procurador no período; B – nº. de viagens realizadas no período; C – total de escravos desembarcado no período.

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Pela tabela 4, mormente se emitia procuração para um traficante, ou antes, ou ao longo de suas atividades no trato. Nos nove casos em que a procuração fez-se após o término da atuação do procurador no comércio negreiro – excetuei Domingos de Azevedo Coutinho –, observa-se tratarem-se, em sete ocorrências, de traficantes especuladores, aqueles que participaram em apenas uma ou duas viagens – provavelmente movidos pela boa conjuntura proveniente das descobertas do ouro.66 Das 203 viagens empreendidas no período, 124 compreenderam-se entre 1711 e 1730. No decênio seguinte, embora o número de idas ao continente africano tenha diminuído em relação ao período anterior, o número de desembarques teve um aumento proporcional. Tais números revelam serem estes alguns dos traficantes mais atuantes no período abordado. Esse fato pode ser confirmado tendo em conta que, dos vinte e cinco nomeados, sete eram traficantes especuladores, ou seja, responsáveis por um número menor de escravos desembarcado no período. Ainda assim, esses homens responderam por 22,93% dos 292.670 escravos desembarcados na Bahia entre 1700 e 1740.67 A conclusão torna-se ainda mais contun-dente quando observamos em detalhe relação entre o total de escravos desembarcados pelos traficantes acima com o total geral. A tabela 5 aborda a questão.

tabela 5participação (%) do número de escravos desembarcados na bahia pelos traficantes nomeados no

termo de vila do carmo frente ao total desembarcado, 1700-17401700-1710 1711-1720 1721-1730 1731-1740

A 81.010 84.712 67.263 59.685B 7.769 17.757 20.844 20.758C 9,59 20,96 30,98 34,77

Fonte: Tabela 4 e TSTD.Legenda: A – total de escravos no período; B – nº. de escravos desembarcados pelos procuradores traficantes; C – porcentagem de B em A.

66 Conforme Manolo Florentino, os traficantes especuladores seriam aqueles que realizaram no máximo duas viagens à África. Nas palavras do autor: “como era de se esperar, em termos gerais a participação destes comerciantes não especializados e aventureiros se pautava pela intensificação dos investimentos em momentos de maior demanda, e, portanto, de maior cotação dos escravos no mercado brasileiro. Era quando eles assumiam o papel estrutural antes mencionado, que os tornava imprescindíveis ao bom funcionamento das importações de mão-de-obra e da própria economia escravista”. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras, op. cit., p. 153.67 TSTD. Alexandre Vieira Ribeiro apresenta números inferiores acerca do total de escravos desem-barcados na Bahia. Segundo o autor a soma daria 217.970, o que aumentaria a porcentagem de 22,93 para 30,79. Cf. RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador, op. cit., p. 127-131. Contudo, preferi manter os números do TSTD, pois identifiquei e retirei as informações sobre os traficantes presentes na tabela 5 a partir do banco de dados TSTD.

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A partir da tabela 5, observa-se um contínuo aumento na participação dos traficantes nomeados frente ao total de escravos desembarcados. A tabela 6 ajuda a compreender esse fenômeno. A explicação reside, provavelmente, no aumento das escrituras passadas a esses comerciantes, signo quer do aumento das atividades extrativas e agropecuárias na capitania mineira, quer da elevação do preço do escravo no termo de Vila do Carmo. O acréscimo da freqüência dos traficantes nas escrituras está em perfeita conformidade com o movimento geral das mesmas. De acordo com a tabela 6, a partir do final da década de 1720, ocorre tanto um aumento percentual nas escrituras passadas para a cidade da Bahia, como nos procuradores nomeados para a localidade.

tabela 6

movimento geral das procurações e dos procuradores para a cidade da bahia - 1711-1730

Procurações Índice Procuradores Índice

1711 3 18 17 221712 8 50 24 321713 18 112 82 1091714 13 81 47 621715 11 68 36 481716 6 37 25 331717 19 118 85 1131718 16 100 62 821719 25 156 112 1491720 21 131 121 1611726 20 125 98 1301727 18 112 89 1181728 34 212 133 1771729 18 112 79 1051730 17 106 122 162

Fonte: ACSM, LN 1-15 e 25-35, EPB.

Dentre os traficantes de escravos nomeados por procuradores no termo de Vila do Carmo para a cidade da Bahia, Manoel Gonçalves Viana ocupou destacada posição. Entre 1701 e 1740, Manoel Gonçalves foi responsável por 49 viagens negreiras, sendo quatro delas como sócio secundário de outros traficantes. Nesse período, desembarcou no porto de Salvador nada menos do

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que 15.423 escravos. Sua atuação centralizou-se entre os anos de 1710 e 1730, período no qual realizou 43 viagens abrangendo 13.576 escravos.68 Coincidência ou não, todas as quatros vezes em que foi nomeado procurador ocorreram no seu período de maior atuação no tráfico Atlântico de escravos.

Em 20 de junho de 1719, o capitão Manoel Mendes de Almeida nomeou seis procuradores para a comarca de Vila Rica, quatro para a comarca do Rio das Mortes, três para a cidade de São Paulo, dois para a Vila de Santos, quatro para a cidade do Rio de Janeiro – dois deles homens de negócio, dentre os quais Paulo Carvalho da Silva (negociantes da família Almeida Jordão, umas das mais poderosas residente na capitania fluminense)69 –, três para a cidade da Bahia – nos quais incluíam-se Manoel Gonçalves Viana e José Gonçalves Viana (provavelmente parente de Manoel) –, um para a cidade de Olinda e nove para o reino – três para a cidade do Porto e seis para a cidade de Lisboa.70 Quase um ano após ter passado a escritura acima, em 11 de maio de 1720, o capitão Manoel Mendes de Almeida vendeu, no termo de Vila do Carmo, 16 escravos pela quantia de 6:6120$000, a serem pagos em dois anos – cerca de pouco mais de 400$000 por escravo.71 Se tais escravos foram fruto de transações realizadas, especificamente, entre Manoel Mendes e Manoel Gonçalves, nada posso afirmar. Contudo, entendo ser este um exemplo dos circuitos mercantis em que o tráfico e o ouro das minas interligavam-se.

Em 22 de junho de 1719, o capitão João Carneiro Pereira nomeou oito procuradores para a capitania de Minas Gerais, três para a cidade do Rio de Janeiro – sendo um homem de negócio e outro senhor de engenho e membro da nobreza da terra–,72 seis para a cidade da Bahia e dez para o reino – cinco para a cidade de Lisboa e cinco para a Vila de Sá.73 Manoel Gonçalves Viana também foi representante dos interesses do sargento-mor Bento Ferraz Lima na cidade da Bahia. Em 19 de janeiro de 1726, Bento Ferraz nomeou quinze

68 Banco de dados TSTD.69 Acerca de a família Almeida Jordão ver SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. A família Almeida Jor-dão na formação da comunidade mercantil carioca (c.1690 - c.1750). In: Anais do VI Congresso de História Econômica e 7ª Conferência Internacional de História de Empresas. Conservatória, 2005.70 ACSM, LN 09, EPB, 20/06/1719.71 ACSM, LN 13, ECV, 11/05/1720. 72 Acerca da noção de “nobreza da terra”, ver FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). In: Topoí: Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 1, 2000, p. 45-122.73 ACSM, LN 09, EPB, 22/06/1719.

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procuradores para a comarca de Vila Rica, quatro para a cidade do Rio de Janeiro, quatro para a Vila de Santos, dois para a cidade de São Paulo, sete para a cidade da Bahia, quatro para a capitania de Pernambuco e cinco para o reino – quatro para a cidade de Lisboa e um para o distrito de Viana do Castelo, província do Minho.74 Senhor de engenho e minerador, o sargento-mor Bento Ferraz Lima integrou o grupo dos grandes potentados de Minas nas primeiras décadas do século XVIII.75

Os três exemplos acima demarcam a potencialidade do raio de ação dentro do qual atuavam circuitos como o do tráfico atlântico de escravos e o do ouro. Sem desconsiderar o mercado de abastecimento proveniente da capitania de São Paulo – que de qualquer forma passava pela capitania fluminense –, nem possíveis negócios (mercantis ou não) a serem realizados no reino, o “espaço econômico” formado a partir das descobertas auríferas, o qual interligava as três principais capitanias do Brasil naquele momento (Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro), traz à baila a interação, direta ou indireta, entre traficantes residentes na Bahia, poderosos senhores de engenho e mineradores atuantes em Minas Gerais e grandes homens de negócio do Rio de Janeiro.

Das quatro procurações em que Manoel Gonçalves Viana fora nomeado procurador, a única que foge ao padrão acima foi passada por Constantino da Mota, em 6 de setembro de 1728. Por ela, foram nomeados apenas quatro procuradores, e todos eles para a cidade da Bahia. Por outro lado, trata-se da única procuração em que dois traficantes foram nomeados. Além de Manoel Gonçalves, Constantino da Mota nomeou seu procurador na cidade da Bahia Antônio Correa Seixas,76 responsável por nove viagens à costa africana entre 1721 e 1740, tendo desembarcado na Bahia cerca de 3.200 escravos.77

Aliás, é exatamente na conformidade das procurações onde reside um dos segredos para se desvendar as formas de atuação desses homens dentro do “espaço econômico” aqui sugerido. A título de exemplo, observando a procuração passada por João Carneiro na qual Manoel Gonçalves Viana surge como procurador, percebe-se a nomeação de um senhor de engenho e membro

74 ACSM, LN 26, EPB, 19/01/1726.75 Ver KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses..., op. cit., p. 111; ANASTASIA, Carla. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998, p. 100-104.76 ACSM, LN 31, EPB, 06/09/1728.77 Banco de dados TSTD.

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da nobreza da terra no Rio de Janeiro. Trata-se do capitão-mor Manoel Pereira Ramos. Entre atividades de compra, venda e crédito realizadas entre 1711 e 1720 – excetuando apenas uma escritura de dívida, obrigação e hipoteca passada em 11 de julho de 1727 –, Manoel Pereira foi responsável pelo giro, no termo de Vila do Carmo, de 87:519$859,78 quantia a qual o transformava no segundo maior agente mercantil do período compreendido entre 1711 e 1730 (salvo os anos de 1721 até 1725).

Das onze escrituras de procuração em que aparece ora como outorgante, ora como procurador, em nenhuma delas Manoel Pereira nomeia ou é nomeado para as capitanias da Bahia ou Pernambuco. Porém, ao analisar os procuradores nomeados por Manoel Pereira para o termo de Vila do Carmo com os indivíduos nomeados pelos procuradores de Manoel Pereira, ganha-se uma nova dimensão das ligações indiretas entre Manoel Pereira e a capitania baiana.

Em 2 de fevereiro de 1719, o capitão-mor Manoel Pereira Ramos nomeou, entre outros procuradores, o mestre-de-campo Manoel de Queirós Monteiro – poderoso potentado em Minas, membro da rede de Manoel Nunes Viana, arrematante de contrato e sócio do sargento-mor Luis Tenório de Molina79 (an-teriormente citado como sócio de uma viagem negreira em 1733) – e Luis da Silva.80 Este último mantinha cinco procuradores na cidade da Bahia e dois na Vila da Cachoeira, todos nomeados em 1717.81 O mestre-de-campo Manoel de Queirós conservava, por sua vez, dezesseis procuradores na cidade da Bahia, sendo um deles traficante de escravos, um coronel, um sargento-mor, quatro capitães, três “solicitadores de causas”, três doutores, um padre e um desem-bargador da Relação da Bahia.82 Logicamente, não posso afirmar estarem os procuradores de Manoel de Queirós ou de Luis da Silva a serviço do capitão-mor Manoel Pereira Ramos. Por outro lado, negar completamente tal possibilidade me parece tão absurdo quanto afirmá-la com veemência.

Manoel Fernandes da Costa, o terceiro traficante nomeado no termo de Vila do Carmo que mais empreendeu viagens negreiras, foi também o segundo mais

78 ACSM, LN 1-15 e 25-35.79 Acerca do mestre-de-campo Manoel de Queirós ver KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses..., op. cit., e CAMPOS, op. cit.80 ACSM, LN 10, EPB, 02/02/1719.81 ACSM, LN 07, EPB, 30/08/1717. 82 ACSM, LN 05, EPB, 16/02/1717; LN 10, EPB, 05/04/1719; LN 11, EPB, 10/12/1719; LN 26, EPB, 26/02/1726.

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vezes nomeado, sete no total. Responsável por doze viagens entre 1721 e 1740 – sendo nove delas entre 1731 e 1740 –, e pelo desembarque, em Salvador, de cerca de 4.700 escravos,83 Manoel Fernandes realizou sua primeira travessia atlântica em 1726, exatamente o ano a partir do qual recebeu o grosso de suas nomeações como procurador. A única a escapar de tal perfil foi a procuração passada pelo capitão João da Costa Ferreira, quem, em 27 de agosto de 1718, nomeou dez procuradores para a comarca de Vila Rica, seis para a cidade do Rio de Janeiro – sendo um homem de negócio, um mercador, dois familiares do Santo Ofício, um senhor de engenho e um membro da nobreza da terra –, quatro para a cidade da Bahia e doze para o reino – seis para a cidade de Lisboa, cinco para a cidade do Porto e um para a Vila de Viana, província do Minho.84

Dentre os demais outorgantes, em 29 de janeiro de 1726, o capitão e senhor de engenho Salvador da Cunha de Carvalho nomeou treze procuradores para a comarca de Vila Rica, cinco para a cidade da Bahia, dois para a cidade do Rio de Janeiro e um para a Vila de Santos, o sargento-mor Torquato Teixeira de Carvalho.85 O sargento-mor Torquato Teixeira de Carvalho foi homem po-deroso no alvorecer das Minas. Dentre as várias cartas patentes a ele passadas e os postos ocupados na governança, em 1714 recebeu o comando da fortaleza de Ipanema, na Vila de Santos.86 Entre 1711 e 1720, movimentou, através de escrituras de compra e venda e de crédito, cerca de quarenta contos de réis no termo de Vila do Carmo,87 dos quais quinze contos referiam-se a uma venda de um engenho com terras minerais e 37 escravos ao próprio capitão Salvador da Cunha de Carvalho.88

Em 6 de junho de 1726, Manoel Fernandes da Costa foi novamente nome-ado procurador na cidade da Bahia, desta feita por José Rodrigues Lima que nomeou procuradores para as comarcas de Vila Rica e Rio das Velhas, para as capitanias da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo.89 Os demais outorgan-tes os quais nomearam Manoel Fernandes por procurador foram: Francisco

83 Banco de dados TSTD.84 ACSM, LN 08, EPB, 27/09/1718.85 ACSM, LN 26, EPB, 29/01/1726.86 KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses..., op. cit., p. 50-51.87 ACSM, LN 1-15.88 ACSM, LN 13, ECV, 20/09/1720. Ao que parece, esta foi a última transação realizada por Torquato Teixeira no termo de Vila do Carmo, haja vista que a partir de 1726 ele viria a ser nomeado por procurador em oito ocasiões, todas elas para a Vila de Santos. ACSM, LN 26, 28, 31 e 33, EPB.89 ACSM, LN 26, EPB, 06/06/1726.

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Rodrigues Filgueiras,90 Matias Lopes da Silveira,91 José Gomes Ferreira92 – os dois últimos também nomearam homens de negócio para o Rio de Janeiro –, e o mestre-de-campo Francisco Ferreira de Sá.93

Francisco Ferreira de Sá revelou-se dono da maior fortuna inventariada no termo de Vila do Carmo entre 1713 e 1756, com um monte-mor no valor de 56:990$235. Dentre seus bens constavam metais preciosos e dinheiro, bens móveis, 20 porcos, 13 cavalos, várias moradas de casas, um moinho de moer milho, um sítio de agricultura e uma roda de minerar. Entre suas dívidas, 24 passivas e 49 ativas, distribuídas pelas capitanias de Minas e do Rio de Janei-ro. Por fim, era senhor de 124 escravos, o que o tornava o dono do segundo maior plantel inventariado.94 Ao longo de sua vida, passou quatro procurações, nomeando um total de sessenta e nove procuradores, assim distribuídos: vinte e quatro para a comarca de Vila Rica, cinco para a comarca do Rio das Velhas, três para a comarca do Serro do Frio, onze para a cidade de São Paulo – sen-do um deles o já citado capitão Manoel Mendes de Almeida –, quinze para a cidade da Bahia – dentre eles o sargento-mor Luis Tenório de Molina – e onze para a cidade do Rio de Janeiro – sendo dois homens de negócio, um senhor de engenho e membro da nobreza da terra, um familiar do Santo Ofício e Antônio Rodrigues Souto,95 para quem devia 548$590.96

Assim como Manoel Gonçalves Viana, Manoel Fernandes da Costa esteve às voltas com membros pertencentes às elites social e econômica do termo de Vila do Carmo. Por sua vez, tais membros não restringiram sua ligação aos traficantes baianos. Conforme anteriormente demonstrado, esses sujeitos se relacionavam com homens de negócio, senhores de engenho e familiares do Santo Ofício residentes na praça fluminense. Assim sendo, através de suas cadeias de nomeações de procuradores, os potentados sediados na capitania do ouro acabavam por interligar, direta ou indiretamente, os traficantes baianos aos homens de negócio e senhores do engenho no Rio de Janeiro. Logicamen-te, com isso não pretendo excluir a ligação direta entre esses dois grupos. Por

90 ACSM, LN 26, EPB, 05/09/1726.91 ACSM, LN 29, EPB, 15/10/1727.92 ACSM, LN 29, EPB, 01/04/1728.93 ACSM, LN 34, EPB, 22/10/1730.94 ACSM, Inventário post-mortem, 1º of., cód. 87, auto 1842.95 ACSM, LN 03, EPB, 11/1713; LN 30, EPB, 12/1728; LN 34, EPB, 12/09/1730 e LN 34, EPB, 22/10/1730.96 ACSM, IPM, 1º of., cód. 87, auto 1842.

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exemplo, entre 1724 e 1730, das dezoito fianças de embarcações concedidas no Rio de Janeiro para o Nordeste, sete o foram por homens de negócio.97 Além do mais, já foram discutidas no presente artigo as interações entre as capitanias da Bahia e de Pernambuco com a capitania do Rio de Janeiro por conta do tráfico atlântico de escravos.

Analisando mais atentamente o inventário do mestre-de-campo Francisco Ferreira de Sá, a natureza desse circuito mercantil no qual o tráfico de escravos interagia com o ouro das minas adquire mais complexidade. Dos 124 escravos componentes do plantel, 17,21% eram crioulos e 82,79% africanos. Dentre os últimos, 1,98% provinham da África Oriental, 25,74% da África Centro-Ocidental e 72,28% da África Ocidental. Não obstante a inserção da capitania fluminense na costa ocidental da África, não é possível negar que o plantel de Francisco Ferreira fosse composto, em sua maioria, de escravos provenientes das capitanias da Bahia ou de Pernambuco, fato reforçado tendo em mente sua nomeação como procurador de um traficante do peso de Manoel Fernandes da Costa. Até aqui, nada muito fora do normal.

Contudo, observando a relação dos credores e devedores do mestre-de-campo, não há quaisquer dívidas endereçadas às capitanias do Nordeste. Por outro lado, Francisco Ferreira possuía ativos e passivos na capitania fluminense da ordem de mais de 1:100$000. O que importa não é necessariamente o valor dos créditos, mas o papel desempenhado pelas capitanias da Bahia e do Rio de Janeiro em suas interações nos circuitos econômicos ora estudados. Se por um lado a capitania baiana desempenha o papel de grande abastecedora de escravos para a região das minas entre 1711 e 1730, por outro, a fluminense surge como credora da mesma.98 Com isso não pretendo operar reducionismos, mas tão-somente apresentar uma visão mais geral da dinâmica das três capitanias em destaque dentro do “espaço econômico” anteriormente delimitado. Tendo em conta que, pelo menos desde 1720, o Rio de Janeiro já desempenhava a função de principal centro abastecedor de Minas Gerais, tal quadro não é de todo inu-sitado. O que se observa é a profunda interação havida entre as capitanias da Bahia (Pernambuco) e do Rio de Janeiro promovida pela inserção das mesmas nas rotas do ouro via, fundamentalmente, o tráfico atlântico de escravos.

97 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. Na encruzilhada do império..., op. cit., p. 240.98 Ver KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. A cor negra do ouro..., op. cit., cap. 2.

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Acerca dos traficantes nomeados no termo de Vila do Carmo, João Fer-reira de Sousa merece uma atenção especial. Entre 1719 e 1730, foi nomeado como procurador em oito ocasiões, sendo sete delas entre 1726 e 1730. O capitão Domingos Nunes Neto – homem poderoso na capitania mineira em seu alvorecer –,99 na mesma escritura em que nomeava João Ferreira de Sousa seu procurador na cidade da Bahia elegia sete procuradores na comarca de Vila Rica, dois na comarca do Rio das Velhas, três para a capitania do Rio de Janeiro – sendo dois homens de negócio –, três para a capitania da Bahia e treze para o reino – quatro para a cidade de Lisboa, três para a cidade do Porto e o restante para a província de Entre Douro e Minho.100 Dentre transações de compra e venda e crédito, o capitão Domingos Nunes foi responsável por um volume superior a 35:000$000, transacionando 105 escravos no termo de Vila do Carmo, comprando e vendendo propriedades que faziam fronteira com o já citado Bento Ferraz Lima.101 Francisco Rodrigues de Miranda, além de nomear João Ferreira, também nomeou, em 9 de julho de 1727, dois procuradores para a capitania mineira, três para a capitania fluminense – sendo dois homens de negócio –, três para a capitania baiana – sendo dois traficantes – e quinze para o reino.102 Em 26 de fevereiro de 1728, Francisco Rodrigues vendeu um sítio com terras minerais, engenho de pilão, roça e dezessete escravos na freguesia do Sumidouro por 13:000$000.103

Os demais outorgantes a nomear João Ferreira por procurador na cidade da Bahia foram: Domingos Rodrigues Nunes (quatro procuradores para a cidade da Bahia), Antônio de tal (cinco procuradores para a cidade da Bahia, cinco procuradores para a cidade do Rio de Janeiro – sendo um homem de negócio – e oito procuradores para o reino), o alferes Francisco Rodrigues Feliciano (seis procuradores para a comarca de Vila Rica, quatro para a cidade do Rio de Janeiro – sendo dois homens de negócio – e quatro para a cidade da Bahia – sendo dois traficantes de escravos), o doutor Domingos Duarte Pereira (onze para a capitania mineira, três para a capitania baiana e dois para a cidade do Rio de Janeiro), André Barbosa de Barros (cinco para a capitania de Minas e

99 KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses..., op. cit., p. 64.100 ACSM, LN 10, EPB, 05/06/1719.101 ACSM, LN 10, ECV, 24/05/1719; LN 33, ECV, 23/07/1729; LN 37, Escritura de crédito, 13/08/1727.102 ACSM, LN 28, EPB, 09/07/1727.103 ACSM, LN 29, ECV, 26/02/1728.

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dois para a da Bahia) e, por último, Manoel de Guerra Brito (dezesseis para a comarca do Rio das Velhas, vinte e dois para a comarca de Vila Rica, seis para a cidade do Rio de Janeiro – sendo dois homens de negócio – quatorze para a cidade da Bahia – sendo dois traficantes – e dezoito para o reino).104

Em primeiro lugar, tais nomeações reforçam a comum prática de se nomear sempre um traficante na Bahia e ao menos um homem de negócio no Rio de Janeiro, o que, por seu turno, reafirma a ligação entre ambas as capitanias por intermédio de Minas Gerais confluindo, cada vez mais, para a configuração do “espaço econômico” fruto dos circuitos mercantis do tráfico negreiro e do ouro. Os casos acima contribuem igualmente para a percepção dos estreitos laços entre alguns dos mais destacados potentados mineiros com os traficantes baianos e os homens de negócio residentes na praça fluminense.

Quando se compara João Ferreira de Sousa com os outros dois traficantes acima mencionados – Manoel Gonçalves Viana e Manoel Fernandes da Costa –, o que se percebe é a sua maior atuação no tráfico. Entre 1700 e 1740, João Fer-reira respondeu por 50 viagens negreiras – sendo uma como sócio secundário – e pelo desembarque de 19.033 escravos na capitania baiana.105 Contudo, há de se ter cuidado no trato com João Ferreira. Em 27 de setembro de 1729, o provedor da Alfândega da cidade da Bahia, Domingos da Costa de Almeida, deu conta ao rei sobre o falecimento do guarda-mor da Alfândega João Ferreira de Sousa, em junho do mesmo ano.106 Também obtive notícias de um João Ferreira de Sousa, caixeiro e administrador do contrato dos reais dízimos da Bahia, arrematado por Manoel Martins Leão em 1719. Segundo o documento, caixeiro e arrema-tante estavam a dever 44:287$710 para a Fazenda Real.107 De qualquer forma, tendo sido o traficante, o guarda-mor ou o caixeiro e administrador do contrato, percebe-se a estratégia dos outorgantes acima de buscarem pessoas igualmente influentes e ocupantes de cargos chaves na governança para serem seus pro-curadores. Porém, não se pode generalizar. A tabela abaixo avança na questão.

104 ACSM, LN 26, EPB, 30/06/1726; LN 31, EPB, 04/1728; LN 29, EPB, 04/05/1728; LN 31, EPB, 11/08/1728; LN 31, EPB, 30/08/1728; LN 34, EPB, 07//09/1730.105 Banco de dados TSTD.106 AHU, BA, avulsos, cx. 24, doc. 64.107 AHU, BA, avulsos, cx. 23, doc. 2105.

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tabela 7ocupação e titulação geral (à exceção dos traficantes) dos procuradores nomeados para a cidade

da bahia, 1711 – 1730

Militar Especializado Governança Religioso

A B A B A B A B

48 116 62 490 5 23 18 37

Fonte: ACSM, LN 1-15 e 25-35, EPB.

Legenda: A – número de procuradores nomeados B – total de nomeados no grupo social em apreço tendo em conta a repetição dos procuradores

Excetuar os traficantes da tabela acima se justifica não apenas por já terem sido trabalhados, mas, fundamentalmente, por estarem distribuídos entre mili-tares, requerentes de causa e até um desembargador da Relação da Bahia. Nesse sentido, um campo à parte específico para os traficantes acabaria por distorcer o quadro mais geral expresso pela tabela 7. Por ele, percebe-se a predominância exercida por indivíduos doutos, como licenciados, requerentes de causa, doutores e bacharéis. Tendo em conta que os procuradores eram indivíduos responsáveis por representar os interesses do outorgante em toda e qualquer ação civil ou comercial, seria de se esperar a hegemonia de tais homens. No que concerne ao segundo grupo com maior freqüência nas procurações, dos treze traficantes para os quais pude identificar patente ou cargo, oito eram militares, fato que pode ter contribuído para esse grupo ocupar a segunda posição entre as ocupações dos procuradores. De mais a mais, a ocupação de patentes militares entre os indivíduos pertencentes aos mais altos estratos sociais era bastante comum.

A tabela 7 também permite tecer considerações acerca das estratégias empreendidas pelos outorgantes na escolha por seus procuradores. A título de exemplo, os quatro indivíduos mais freqüentes entre os procuradores nomeados para a cidade da Bahia foram: o doutor Francisco Correia Ximenes com setenta e quatro nomeações; Antônio Correia Ximenes, doutor e irmão de Francisco Correia, nomeado em sessenta e sete procurações; José de Araújo Pinto, doutor e feito procurador em cinqüenta e nove ocasiões; e Diogo Fernandes Roxo, requerente de causa nomeado em cinqüenta e uma procurações. Esses quatro indivíduos sozinhos responderam por mais de 51% das procurações passadas a letrados. O forte monopólio exercido por eles não pode ser atribuído a uma falta de homens eruditos na cidade da Bahia, haja vista que por lá foram nomeados

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dois bacharéis, nove licenciados, onze requerentes de causa e quarenta douto-res. Essa alta concentração nas nomeações dos indivíduos letrados revela que, no momento de se nomear um procurador especializado em assuntos jurídicos das mais diversas naturezas, os outorgantes optavam pelos procuradores mais reconhecidos, pouco arriscando em nomear um sujeito talvez menos influente ou importante na localidade de destino.

Outra conclusão passível de ser aferida a partir da tabela 7 diz respeito à composição das procurações. Habitualmente, nomeavam-se um ou dois letrados facultados a resolverem questões mais gerais de ordem jurídica para, então, nomearem-se procuradores específicos – na maioria das vezes pessoas conhe-cidas dos outorgantes –, incumbidos de questões específicas. Não é por acaso que, em toda procuração na qual fora nomeado um traficante, também o fora um letrado. Por fim, gostaria de destacar a atuação dos indivíduos integrantes do grupo aqui denominado governança.

Nos postos de governança, incluem-se três cargos, quais sejam: guarda-mor da alfândega,108 guarda-mor da Relação da Bahia e desembargador da Relação da Bahia. Sendo o cargo de maior importância entre todos os procuradores nomeados, os desembargadores eram ministros letrados providos pelo rei para atuar nos tribunais superiores – Relação da Bahia, Relação de Goa, Relação do Porto, Casa da Suplicação, Conselho Ultramarino, Mesa da Consciência e Desembargo do Paço. No que concerne à colônia, os desembargadores deviam “tomar conhecimento dos agravos e apelações de decisões de ouvidores, pro-vedores, intendentes, juízes e governadores”. Nomeados para dois triênios, deviam fazer visitas às capitanias, sempre em dupla, e “tirar residência dos funcionários régios”. Não poderiam tomar afilhados e nem “responder cartas de pretendentes”. Sobretudo, somente poderiam ser suspensos de suas funções por ordem régia.109 Além de tais atribuições, por vezes os desembargadores

108 Trata-se de José Ferreira de Sousa. No atual estágio da pesquisa ainda não me foi possível identificar precisamente se era o traficante, o guarda-mor ou o caixeiro-administrador. É bastante provável que o guarda-mor e o caixeiro sejam a mesma pessoa, mas, por hora, prefiro não tecer maiores considerações, além das acima expostas, sobre José Ferreira. Acerca das atribuições de um guarda-mor da alfândega ver SALGADO, Graça (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 163.109 CÓDICE Costa Matoso, op. cit., vol. II, p. 91. Sobre a Relação da Bahia, Stuart Schwartz con-tinua a ser referência. SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes, 1609 – 1751. São Paulo: Perspectiva, 1979, passim.

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da Relação da Bahia eram enviados para as regiões africanas com o intuito de conduzir residências e devassas.110

Nesses termos, obter um desembargador da Relação da Bahia como procu-rador facultava ao outorgante o acesso não apenas à mais alta instância jurídica da colônia, como também a um canal direto com o rei e demais tribunais. Em uma sociedade regida pelos valores e práticas característicos de um “antigo regime nos trópicos”,111 ter por procurador um desembargador facultava ao outorgante uma posição privilegiada não apenas na defesa de seus interesses, como também poderia lhe garantir privilégios políticos e econômicos frente ao restante da sociedade.

Não por acaso, em apenas quatro procurações nomeou-se um desembargador como procurador – sendo que somente o desembargador Luis de Siqueira da Gama representou os interesses de mais de um outorgante. Os demais desem-bargadores foram Antônio Sanches Pereira e João Pereira de Vasconcelos.112 Essa pouca representatividade do cargo nas procurações aponta para a existência de uma proximidade – para não utilizar a expressão rede –, entre o outorgante e o procurador. O que não necessariamente ocorria, por exemplo, na nomea-ção dos irmãos doutores Correia Ximenes. A proximidade entre outorgante e desembargador ainda poderia viabilizar ao primeiro ter um representante seu ocupando os mais altos cargos na administração do império. Segundo Stuart Schwartz, após a passagem pela Relação da Bahia, comumente o magistrado era cotado para assumir postos na Relação do Porto, na Casa da Suplicação ou, após experiência adquirida nesses tribunais, tornar-se membro do Conselho Ultramarino.113

Luis de Siqueira Gama, após formar-se em direito canônico e ter atuado como juiz de fora por duas ocasiões, assumiu o posto de desembargador da

110 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial, op. cit., p. 203.111 Acerca da noção de “antigo regime nos trópico” ver FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.112 ACSM, LN 07, EPB, 31/07/1717. Embora o nome de João Pereira de Vasconcelos não consta na lista elaborada por Stuart Schwartz com os desembargadores da Relação da Bahia entre 1609 e 1758, seu nome aparece citado como desembargador em vários requerimentos no Arquivo His-tórico Ultramarino da Bahia. Ver, por exemplo, AHU, BA, avulsos, cx. 24, doc. 2201. Acerca da lista elaborada por Schwartz, cf. SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial, op. cit., p. 309-325.113 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial..., op. cit., p. 245.

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Relação da Bahia em 1719.114 Em 13 de março de 1719, fora feito procurador na cidade da Bahia pelo capitão-mor Pedro Rodrigues Sanches – o qual, na mesma procuração, nomeou dois homens de negócio para a capitania fluminense – e, em outubro do mesmo ano, pelo capitão José Ferreira Pinto – quem, igualmente, nomeou para a capitania do Rio de Janeiro um familiar do Santo Ofício, um senhor de engenho e membro da nobreza da terra, um arrematante de contrato e dois homens de negócio (um dos quais também era procurador do capitão-mor Pedro Rodrigues Sanches).115 Após servir na Relação da Bahia, Luis de Siqueira – que havia se casado, na Vila de Santos, com Catarina Álvares da Cunha –, atuou na Relação do Porto e, posteriormente, na Casa da Suplicação.116

Antônio Sanches Pereira, feito desembargador em 1713, era cavaleiro pro-fesso da Ordem de Cristo. Após sua passagem pela Relação da Bahia, assumiu um cargo na Casa da Suplicação.117 Sua nomeação para procurador ocorreu em 1719. O outorgante foi o já citado mestre-de-campo Manoel de Queirós Monteiro, homem às voltas com traficantes baianos, poderosos mineiros e senhores de engenho do Rio de Janeiro.118 Entre escrituras de compra e venda, Manoel de Queirós foi responsável por uma movimentação financeira de mais de 42 contos de réis no termo de Vila do Carmo, transacionando um total de 82 escravos.119 O mestre-de-campo, por sua vez, representou os interesses de vinte e nove pessoas, sendo nomeado procurador para as comarcas de Vila Rica, Rio das Morte e Serro do Frio. Também recebeu uma nomeação para a capitania da Bahia e uma para a capitania de São Paulo.120

Dentre os outorgantes de Manoel de Queirós há os já citados: Pedro Ro-drigues Sanches, Manoel Pereira Ramos, Luis Tenório de Molina, Torquato Teixeira de Carvalho e Salvador da Cunha de Carvalho. Afora esses, nomes como o sargento-mor Francisco Barreto Bicudo, Guilherme Mainarde da Silva, o sargento-mor Domingos Pinto Magalhães, envolvidos com grandes transações no termo de Vila do Carmo – ou através de escrituras de compra e venda, ou de crédito –, figuraram entre seus outorgantes. Todos às voltas, na

114 Idem, p. 319.115 ACSM, LN 09, EPB, 13/03/1719; LN 11, EPB, 10/1719, respectivamente.116 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial..., op. cit., p. 306 e p. 319.117 Idem, p. 318.118 ACSM, LN 10, EPB, 05/04/1719.119 ACSM, LN 02, ECV, 02/1712; LN 04, ECV, 24/04/1715; LN 31, ECV, 10/05/1728; LN 33, ECV, 27/05/1729.120 ACSM, LN 01, 03; 04; 07; 09; 10; 13; 14; 26; 29; 30; 31; 32; 33; 34, EPB.

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capitania baiana, com traficantes, militares de altas patentes, bacharéis, doutores, desembargadores da Relação, guardas-mores da Relação etc. Todos às voltas, na capitania fluminense, com homens de negócio, mercadores, senhores de engenho e membros da nobreza da terra, familiares do Santo Ofício, fiadores de embarcações etc. Todos membros de fortes redes estabelecidas em Minas e com ramificações para além da capitania, quiçá, ultramarinas. Por fim, destaco o mais ilustre outorgante do mestre-de-campo Manoel de Queirós Monteiro: o governador da capitania mineira, d. Brás Baltasar da Silveira.121 Além do mestre-de-campo, também representavam os interesses do governador, o sargento-mor Luis Tenório de Molina, o coronel Caetano Álvares Rodrigues e o mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães. Conforme já foi dito certa vez: a nobreza “vive em bandos”...122

121 ACSM, LN 07, EPB, 10/10/1717.122 FRAGOSO, João. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII – algumas notas de pesquisa. Revista Tempo. Niterói, vol. 15, 2003, p. 11- 35. Mais recentemente, FRAGOSO, João Luis Ribeiro. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, 1600-1750). PPGHIS: Rio de Janeiro, 2005, passim (Tese de professor titular).

Recebido: setembro/2007 - Aprovado: setembro/2008

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AcumulAndo forçAs: lutA pelA AlforriA e demAndAs políticAs

nA cApitAniA de minAs GerAis (1750-1808)

Marco Antonio SilveiraDoutor em História Social-FFLCH/USP

Prof. adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto

resumoO artigo tem por objetivo demonstrar que a expansão demográfica e econômica das populações de ascendência africana na Capitania de Minas Gerais da segunda metade do século XVIII foi acompanhada da organização política de grupos de negros e mestiços em torno de irmandades e tropas. Valendo-se fundamentalmente de petições enviadas ao Conselho Ultramarino, o texto procura ressaltar a capacidade de tais grupos de, através da formulação de um discurso crítico, acumular força política.

palavras-chavesMinas Gerais • alforria • ascensão social.

AbstractThe article aims to demonstrate how the demographic, as well as the economical expansion of African descent population in the Captaincy of Minas Gerais, along the second half of the eighteenth century, was accompanied by the political articulation of black and mestizo groups around brotherhoods and troops. Referring specifically to petitions sent to Conselho Ultramarino, it is the intent of this text to emphasize the ability of these groups to gather political strength through the formulation of a critical discourse.

KeywordsMinas Gerais • emancipation • social ascension.

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Alguns dos principais historiadores que se dedicaram ao estudo da vida confrarial na Minas setecentista ressaltaram que as irmandades de negros e mulatos, mesmo constituindo focos privilegiados de coesão grupal e política numa capitania desprovida de ordens regulares, mantiveram-se sempre nos limites estabelecidos pela ordem vigente. Dentre os fatores que justificariam esse quadro destacam-se geralmente o sucesso das estratégias regalistas de controle das associações religiosas, os conflitos existentes entre os diferentes grupos étnicos e raciais submetidos ao cativeiro e a inexistência de fontes que demonstrassem a organização de discursos ou movimentos de caráter con-testatório.1 Este artigo, recorrendo a algumas petições enviadas ao Conselho Ultramarino, procura sugerir, embora de forma incipiente, que a significativa expansão demográfica e econômica das populações de ascendência africana no decorrer do século XVIII e a sua organização em torno de tropas e irmandades permitiram o desenvolvimento de um discurso identitário crítico em relação às condições políticas da época e à escravidão. O ponto de vista que fundamenta as observações a seguir é o de que a historiografia, ancorando suas análises na documentação oficial e numa expectativa finalista, deixou de compreender algumas das práticas e argumentações da época como estratégias factíveis e potencialmente radicais de luta política.

A intensa entrada de africanos na região das minas no período que se seguiu à descoberta do ouro redundou, como se sabe, na constituição do maior plantel de escravos da América portuguesa e, conseqüentemente, na formação de um expressivo contingente populacional composto por indivíduos negros. O número de escravos da Capitania que, na década de 1730, já havia atingido a cifra de cem mil homens e mulheres, permaneceu elevado durante toda a centúria, ex-plicando em parte o fenômeno da multiplicação das irmandades de negros. No período colonial, foram instituídas pelo menos 62 associações dedicadas a Nossa Senhora do Rosário – um recorde dentre as inúmeras irmandades mineiras de então – e 20 à Senhora das Mercês.2 Um dos resultados mais significativos dessa rápida expansão demográfica, sentido de forma especial na segunda metade do

1 Cf. SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Univer-sidade de Minas Gerais, 1963; BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte, 1972; SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. 2ª ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978 [1976]; BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986.2 Os números correspondem às irmandades identificadas por Caio César Boschi na extensa pesquisa em que se baseou seu livro. Cf. BOSCHI. Os leigos e o poder, op. cit., p. 187.

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século, foi o aumento contínuo e gradual da gente mestiça. Em 1776, os negros e os pardos da Capitania somavam, respectivamente, metade e um quarto da população total.3 O impacto dos grupos mestiços na sociedade como um todo e nos diversos segmentos econômicos que a compunham esteve certamente na raiz do surgimento de irmandades como as de São José, São Francisco de Paula, São Gonçalo Garcia e da Arquiconfraria do Cordão.

O cenário caracterizado pela marcante presença de negros e pardos nas várias partes das Minas desdobrou-se na adoção, por parte da Coroa, de dois tipos distintos de política de controle social. De um lado, as autoridades pro-moveram e incentivaram constantemente o recurso a medidas estritamente repressivas que coibissem crimes, desordens e revoltas. É vasta a legislação que, derivada do pânico sofrido pelos habitantes de vilas e arraiais, almejou reprimir a vadiagem, o contrabando e as atividades de grupos aquilombados. De outro lado, porém, a Coroa desde cedo procurou intervir na organização da sociedade valendo-se de dispositivos institucionais e simbólicos aptos a pro-mover uma integração administrada dos indivíduos negros, mestiços e forros que alcançavam algum sucesso nos seus afazeres.4 A política de integração patrocinada pela Coroa coadunava-se com o grau de diversificação alcançado pela economia das Minas e com o fato de que parte importante dos descendentes de africanos acomodava-se e, em alguns casos, prosperava com o exercício de atividades produtivas, comerciais e burocráticas. Assim, a par da guerra mo-lecular que grassava cotidianamente nas Minas, forjaram-se meios através dos

3 Os dados, retirados da conhecida Tábua dos habitantes da Capitania de Minas Gerais, são, como os levantamentos da mesma espécie feitos no século XVIII, questionáveis, mas permitem que se avalie o peso das populações negras e mestiças em Minas. Cf. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 300. Embora a palavra “mestiço” pudesse designar outros grupos étnicos e raciais na Minas setecentista, ela será tomada aqui como sinônimo de “pardo”, “mulato” e “cabra”.4 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. 2ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1986; Norma e conflito. São Paulo: Cia. das Letras, Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999; FURTADO, Júnia. O Livro da Capa Verde. São Paulo: Annablume, 1996; FIGUEIREDO, Luciano. O aves-so da memória. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: Edunb, 1993; GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista. São Paulo: Ícone, 1988; Escravismo e rebeldia escrava: quilombos nas Minas Gerais do século XVIII. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil. Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 324-38; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Autoridades ambivalentes: o Estado do Brasil e a contribuição africana para “a boa ordem na República”. In: SILVA, M. B. Nizza da, op. cit., p. 105-23; VALLEJOS, Julio Pinto. Slave control and slave resistance in Colonial Minas Gerais. In: PALMER, Colin A. (ed.). The worlds of unfree labour. Aldershot: Ashgate, 1998, p. 171-204.

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quais as lutas em torno da estratificação social foram travadas em termos mais jurídicos e políticos. As pressões por reconhecimento exercidas pela camada de negros e mestiços, expressas em inúmeras petições enviadas ao Conselho Ultramarino, demonstram vivamente esse aspecto.5 Em 1762, por exemplo, os camaristas da Vila do Príncipe se queixaram ao monarca pelo não cumprimento, em alguns anos anteriores, da ordem de 1726 que proibia aos mulatos o acesso aos principais ofícios concelhios. O desrespeito à ordem resultava, segundo os camaristas, de “[…] haverem subornos nas eleições, com empenhos de alguns que padecem essa nota […]”.6

Conflitos dessa natureza, como foi sugerido acima, faziam sentido na época em decorrência do fortalecimento demográfico e político de alguns grupos de mestiços em Minas. Sua ascensão social e econômica passou a significar para os brancos uma ameaça concreta em função da concorrência que enfrentavam na disputa pelos recursos materiais e simbólicos disponíveis. Poucos anos antes da representação da Vila do Príncipe, os homens pardos da Confraria do Senhor São José de Vila Rica escreveram ao rei solicitando o direito de usar espadim à cinta.7 Uma dúvida surgira quando da divulgação na América da Pragmática de 24 de maio de 1749, que proibiu a regalia a negros e pessoas de baixa condição, sem contudo fazer menção expressa ao caso dos pardos.

5 Para uma análise mais extensa sobre a organização, entre a gente liberta e de ascendência africana, de formas políticas e jurídicas de luta social nas Minas, cf. SILVEIRA, Marco Antonio. Soberania e luta social: negros e mestiços libertos na Capitania de Minas Gerais (1709-63), mimeo. Nesse artigo são apresentadas e discutidas diversas petições enviadas ao Conselho Ultramarino em defesa dos interesses de negros, mestiços e forros.6 Representação dos oficiais da Câmara de Vila do Príncipe contra o casamento dos brancos com os mulatos e vice-versa, solicitando ordem régia sobre este assunto (28.04.1762) - Arquivo Histórico Ultramarino/Minas Gerais (AHU/MG), caixa 80, documento 32. John Russell-Wood descreve episódio parecido ocorrido alguns anos antes em Vila Rica: “Em 1748, o procurador do Senado de Vila Rica apresentou um protesto formal pelo fato de mulatos estarem servindo de juízes da vintena em algumas paróquias dos subúrbios da vila, e declarou que tais nomeações eram preju-diciais ‘ao bem público’. Requereu que os nomeados fossem suspensos. O que é interessante é que tais nomeações não se deviam à falta de homens brancos ou a algum descuido. A seleção dos juízes era rigorosa [...] Os vereadores, a 26 de junho de 1748, não levaram em conta esta objeção baseados no fato de que os mulatos, se ‘fossem homens de bom procedimento e não prejudicassem o bem comum, pudessem servir porque a bondade da lei não consiste no acidente mas sim no bom procedimento’. O Senado observou que a experiência mostrara que os brancos se recusavam a ocupar este cargo”. RUSSELL-WOOD, A. J. R.. Autoridades ambivalentes, op. cit., p. 109-10.7 Requerimento dos homens pardos da Confraria de São José de Vila Rica das Minas solicitando o direito de usar espadim à cinta (06.03.1758) – AHU/MG, caixa 73, documento 20; Consulta do Con-selho Ultramarino sobre a petição dos homens pardos da Confraria do Senhor São José de Vila Rica das Minas Gerais para poderem usar espadim (13.03.1758) – AHU/MG, caixa 73, documento 27.

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Os peticionários consideravam-se excluídos da proibição porque, além de não terem sido diretamente referidos na lei, eram

legítimos vassalos de VMaj e nacionais daqueles domínios, onde vivem com reto procedimento; uns são mestres aprovados pela Câmara da dita vila em seus ofícios mecânicos, e subordinados a estes trabalham vários oficiais e aprendizes; outros se vêem constituídos mestres em artes liberais, como os músicos, que o seu efetivo exercício e trabalho é pelos templos do Senhor e procissões públicas, onde certamente é grande indecência irem de capote, não se atrevendo vestir em corpo por se verem privados do adorno e compostura dos seus espadins, com que sempre se trataram; e finalmente outros, aspirando a mais, se acham mestres em gramática, cirurgia e medicina, e na honrosa ocupação de mineiros, sendo muitos destes filhos de homens nobres, que como tais são reconhecidos […].8

O requerimento dos pardos de Vila Rica, embora atinente a uma lei defini-da em parte pela exclusão racial, destacava a emergência social e econômica dos grupos nele envolvidos e sua capacidade de organizar-se politicamente. Mais ainda, é de se notar o uso da Confraria de São José como instrumento de pressão social e política. No entanto, a petição parece reforçar a tese de que a concorrência social resultante da promoção de indivíduos de ascendência africana implicava também o estabelecimento de clivagens irreconciliáveis entre negros e pardos.9 A ausência de menção a africanos e crioulos pode ser explicada em boa medida pelas próprias circunstâncias da Pragmática que, de cara, havia excluído os negros do uso do espadim. Porém, os mestiços possuíam reivindicações muito particulares, já que, diferentemente dos negros, podiam valorizar o fato de serem filhos de brancos e, em alguns casos, de brancos nobres. Algumas de suas conquistas ou pretensões, como a de servir o posto de juiz de ofício, tornar-se vintena ou até ocupar os principais cargos concelhios (mesmo por via de suborno), achavam-se bem mais distantes de crioulos e principalmen-

8 Requerimento dos homens pardos da Confraria de São José de Vila Rica das Minas solicitando o direito de usar espadim à cinta (06.03.1758).9 Sobre os conflitos entre africanos, crioulos e pardos, cf. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 45, 54, 70, 102-3 e RUSSELL-WOOD. Escravos e libertos no Brasil colonial. Trad. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 125, 323, 332. Sobre o contraponto entre escravos e libertos, cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser es-cravo no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, cap. A mentalidade do libertando e a do liberto.

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te de africanos. Além disso, as clivagens no interior das populações mestiças também eram decisivas e baseavam-se em pelo menos três critérios distintos: a qualidade do ofício desempenhado, a propriedade e a ascendência. Afastar-se das atividades manuais e tornar-se um proprietário bem-sucedido, objetivos mais facilmente alcançados sob o patrocínio de um pai branco reputado, balizavam, em termos gerais, a melhor trajetória de branqueamento. Assim, percebe-se no requerimento dos irmãos de São José a indicação de quatro grupos diferentes, organizados em dois níveis. O primeiro, mais abaixo, constituía-se de mestres artesãos e de músicos, grupos alheios a funções vis porque, respectivamente, comandavam trabalhadores e dedicavam-se a uma arte liberal. O segundo, “as-pirando a mais”, era composto por mestres em gramática, cirurgia e medicina, bem como por mineiros, sendo muitos deles filhos de brancos nobres. Não por acaso, os conselheiros acataram o parecer do procurador da Fazenda, para quem os suplicantes não deveriam ser excluídos da Pragmática somente pela cor, devendo-se-lhes “[…] permitir ou negar o uso da espada segundo a vida e exercício que tiverem, de sorte que se reputem como os brancos e tragam espada os que não exercem ofício e emprego vil […]”.10

A reforma nas tropas de auxiliares no ano de 1766 ratificou a força social adquirida pelos mestiços, organizando-os em terços e reconhecendo o prestí-gio de alguns deles ao torná-los oficiais.11 Desde então, parte significativa dos documentos enviados ao Conselho Ultramarino dizia respeito a pedidos de concessão ou confirmação de patentes de homens pardos. Aliás, a freqüência com que o termo “pardo” começou a despontar nas fontes oficiais sugere que a conotação pejorativa sintetizada na palavra “mulato” vinha sendo posta à prova. Em agosto de 1783, o governador d. Rodrigo de Meneses, respondendo a uma solicitação do Conselho Ultramarino, informou sobre o estado do terço de infantaria dos homens pardos da Vila de São José dizendo que sua “[…] utilidade, e a de semelhantes corpos, é constante para a pronta execução das

10 Consulta do Conselho Ultramarino sobre a petição dos homens pardos da Confraria do Senhor São José de Vila Rica das Minas Gerais para poderem usar espadim (13.03.1758).11 Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, a Carta régia de 22 de março de 1766, que abrangia a América portuguesa, “[...] reiterou a formação de terços auxiliares e de ordenanças, insistindo que todos os moradores, ‘nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos ingénuos e libertos’, servis-sem nas tropas auxiliares. Cada um dos terços seria disciplinado por um sargento-mor escolhido entre os oficiais da tropa paga, vencendo o mesmo soldo que receberia nas tropas regulares”, In: SILVA, M. B. N. da Silva (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 601.

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ordens do serviço de V. Majestade”.12 O mestre de campo do terço, Joaquim Pereira da Silva, era, segundo o governador, “[…] o homem da sua qualidade mais benemérito que tem aquela vila e termo […]”.13 Joaquim Pereira, antes de tornar-se mestre de campo, havia servido como capitão da ordenança do distrito dos Corgos e capela do padre Gaspar, no termo de São José, e como sargento-mor da infantaria auxiliar da mesma vila.14

De acordo com a lista de soldados enviada por d. Rodrigo, na qual o nome de cada um deles era acompanhado pela respectiva filiação e naturalidade, Joaquim Pereira, no referido ano de 1783, liderava, com a ajuda de oficiais menores, um total de 727 pardos, dos quais apenas 187 eram filhos de pais incógnitos e 15 eram expostos. Ou seja, mais de 70% dos soldados podiam identificar publicamente os pais, dado ainda mais importante quando se constata que mais de 80% deles tinham nascido no próprio termo da Vila de São José. Assim, o período em que a sociedade mineira pareceu sedimentar-se implicou também a constituição de grupos de pardos mais conscientes de seu valor e de sua identidade. Seria, contudo, exagero dizer que as medidas de integração administrada indicavam a vitória inquestionável das políticas da Coroa voltadas para a exploração colonial, para o domínio dos territórios americanos e para a acomodação de negros e mestiços. Alguns dos requerimentos enviados ao Conselho Ultramarino demonstram a formação entre eles de uma consciência política mais definida e de uma disposição maior para pressionar as autoridades. Sedimentação social, portanto, não significou necessariamente ordem e obe-diência, mas também conflito e questionamento. Dentre os temas que estavam em jogo encontravam-se o fim de determinadas restrições raciais, a valorização dos nascidos no país e a crítica a alguns dos limites da escravidão.

A intensidade e o alcance da pressão política exercida pelos mestiços de Minas, bem como o peso que nela cabia à identidade devocional, ficam patentes

12 Carta de Rodrigo José de Meneses para d. Maria I informando sobre o estado do Terço de Infantaria Auxiliar dos Homens Pardos da Vila de São José (01.08.1783) – AHU/MG, caixa 119, documento 65.13 Idem.14 Requerimento de Joaquim Pereira da Silva, capitão da Ordenança de Pé dos Homens Pardos Libertos do distrito dos Corgos e capela do pe. Gaspar, termo da Vila de São José, pedindo sua confirmação no exercício do referido posto (22.10.1776) – AHU/MG, caixa 110, documento 38; Requerimento de Joaquim Pereira da Silva, pedindo carta patente de confirmação do posto de mestre de campo do Terço de Infantaria Auxiliar dos Homens Pardos Libertos, do termo da Vila de São José do Rio das Mortes (19.06.1782) – AHU/MG, caixa 118, documento 46.

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no requerimento de 1786 dos pardos da irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del Rei sobre o direito de poderem libertar as irmãs e os irmãos es-cravos.15 Os peticionários voltavam-se indignados contra os senhores mineiros que se negavam a alforriar seus cativos pardos mesmo quando estes possuíam o valor exigido. Os argumentos arrolados para contrariar tal atitude mostram o quanto se achavam informados alguns mestiços a respeito das questões políticas e judiciais de sua época, valendo-se para isso do contato com letrados. Em pri-meiro lugar, os irmãos de São Gonçalo Garcia procuraram contradizer a opinião de que ninguém era obrigado a vender coisa sua, ressaltando, de uma parte, que a liberdade era um direito natural e, de outra, que o direito de propriedade podia ser limitado quando pedia a pública utilidade. Nesses termos, a alforria na América deveria ser concedida a quem tivesse condições de pagá-la porque implicava “grande utilidade” aos domínios de Sua Majestade:

porque adquire novos vassalos úteis ao Estado, novos agricultores para as terras, novos povoadores para os sertões, novos descobridores para as minas de ouro, novos oficiais em todo o gênero de manufaturas para o comércio e, enfim, o benefício público para tantos infelizes que, podendo viver em liberdade sem prejuízo de seus senhores, estão em um cativeiro tanto mais penoso quanto é mais injusto.16

Em seguida, os peticionários argumentaram que, se as Ordenações obriga-vam o senhor a vender seu escravo mouro para resgatar um cristão, o mesmo deveria ocorrer com o senhor do cativo cristão, pois o escravo mouro não merecia melhor tratamento do que aquele que vivia na cristandade.17 Ademais,

15 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de libertar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786) – AHU/MG, caixa 125, documento 20. Este documento é parcialmente transcrito e comentado em BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte, 1972, p. 112-6.16 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de liber-tar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786).17 Os peticionários citaram o conhecido parágrafo 4 do título XI do livro 4º das Ordenações que afirmava o seguinte: “E porque em favor da liberdade são muitas coisas outorgadas contra as regras gerais: se alguma pessoa tiver algum mouro cativo, o qual seja pedido para na verdade se haver de dar e resgatar algum cristão cativo em terra de mouros, que por tal mouro se haja de cobrar e remir: mandamos que a pessoa que tal mouro tiver seja obrigado de o vender e seja

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entre os próprios mouros, “com toda a sua barbaridade”, o cativo cristão era logo libertado quando oferecia ao senhor o seu preço. Os irmãos de São Gonçalo lembraram ainda que reis de Portugal haviam concedido à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário sediada na Corte o privilégio de libertar seus membros cativos, e isso em Lisboa, “[…] onde os cativeiros não eram tão freqüentes nem tão rigorosos […]”.18

Os argumentos apontados acima compunham um conjunto de recursos tradicionalmente aplicados nos debates em torno da escravidão nos domínios portugueses ultramarinos. Em linhas gerais, advinham das discussões teológicas, de regras estabelecidas nas Ordenações Filipinas ou, como no último caso, de legislação formulada por antigos monarcas.19 Um outro argumento, porém, tinha a marca do seu tempo: a evocação da lei de 16 de janeiro de 1773 que procurou pôr fim à escravidão no Reino. As medidas de Sebastião José de Carvalho e Melo concernentes ao desenvolvimento industrial no Reino, à eliminação de resíduos feudais, à criação de companhias de comércio monopolistas e à ampliação do poder aquisitivo da população agrícola, entre outras, articulavam-se ao objetivo mais geral (mas nem por isso menos consistente) de inserir Portugal nos quadros da civilização. Nesse contexto, o ministro patrocinou a adoção de alvarás que pusessem fim à escravidão no Reino, embora não na América, procurando a um só tempo identificar a sociedade lusa com as formas civilizadas expressas

para isso pela Justiça constrangido”. Esse título era comumente utilizado em processos judiciais envolvendo a liberdade de escravos em Minas. Cf. SILVEIRA, Marco Antonio. Herança maldita: a invenção da moral cativa na colônia (Vila Rica, 1780-1810). Pós-História. Assis: Unesp, volume 11, 2003, p. 61-90.18 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de liber-tar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786).19 A apropriação de argumentos letrados com o intuito de questionar alguns dos limites da es-cravidão não se circunscreveu ao século XVIII. Hebe Maria Matos analisa o caso do mestiço Lourenço da Silva Mendonça que, identificado como procurador de uma influente irmandade de pretos e de todos os homens pardos de Portugal, Castela e Brasil, apresentou-se ao papa em 1682 levando duas cartas de recomendação e duas petições. Nestas últimas, além de descrever torturas e maus-tratos que caracterizavam o “diabólico abuso da instituição da escravidão”, argumentava que, embora o papa tivesse outrora permitido o cativeiro de pagãos, tal permissão não poderia se estender aos seus descendentes já nascidos no seio da cristandade. Cf. MATOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 143-62.

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pelos princípios iluministas da época e circunscrever práticas e instituições bárbaras às áreas coloniais.20

De fato, embora as idéias ilustradas tenham sido adaptadas à defesa da escravidão, o antiescravismo vinha ganhando consistência em países como a França, especialmente após a Revolução e, sobretudo, na Inglaterra.21 As estratégias pombalinas, conciliando a duras penas mercantilismo e ilustração, visavam à eliminação gradual do cativeiro no Reino sem que, no entanto, se colocasse em causa a sua legitimidade no Brasil. Assim, em 19 de setembro de 1761, um alvará proibiu o transporte de cativos da América, da África e da Ásia para Portugal, tornando obrigatória a concessão da alforria nos casos em que a lei fosse desrespeitada. Alguns anos mais tarde, em 16 de janeiro de 1773, um novo alvará determinou que os escravos cujas mães e avós também haviam sido escravas permanecessem sob cativeiro, mas que aqueles cuja es-cravidão viesse das bisavós fossem declarados livres. Por sua vez, as crianças que nascessem de escravas da data da lei em diante também seriam declaradas livres. Ademais, todos os indivíduos alforriados por determinação do alvará se achariam hábeis para quaisquer ofícios, honras e dignidades, não padecendo a

20 Para uma revisão historiográfica sobre a abolição em Portugal, em que são questionadas as hipó-teses de que almejaria o desenvolvimento industrial do Reino ou o suprimento de escravos para as colônias, cf. SILVA, Luiz Geraldo. Esperança de liberdade. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774). Revista de História. São Paulo: Departamento de História/USP, 2001, n. 144, p. 107-49. Para o autor, “Ao que parece, as Luzes chegaram a Portugal no século XVIII como uma maneira de ajustar o velho Reino em termos de paridade com as ‘Cortes polidas’ da Europa; nesse caso, ‘civilizar’ o corpo social significava extirpar a anômala instituição do escravismo, diminuir os contrastes sociais, bem como expulsar para a periferia do império, para o mundo não civilizado, as formas de sujeição pessoal que deveriam tão somente impulsionar o comércio e a produção coloniais. O mais importante era Portugal, finalmente, graças às Luzes, encontrar-se com a Europa, e não mais ter sua população vista como os cafres daquele continente, tal como formulou, no século XVII, o Padre Antônio Vieira” (p. 116). Cf. ainda NOVAIS, Fernando A. A extinção da escravatura em Portugal no quadro da política pombalina. In: Aproximações. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 83-103; SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 384. Renato Pinto Venâncio, por sua vez, questiona tanto o caráter abo-licionista das medidas pombalinas quanto sua aplicação prática. Cf. Pombal aboliu a escravidão em Portugal? Uma sondagem nos registros de óbitos da Sé de Lisboa. In : Anais da XXIV Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba/PR, 2004, p. 33-6. Para Venâncio, “[...] é absurdo afirmar que Pombal extinguiu a escravidão em Portugal, ou mesmo que houvesse uma deliberada política visando alcançar tal objetivo” (p. 34).21 Cf. DAVIS, David Brion. El problema de la esclavitud en la cultura occidental. Trad. Buenos Aires: Paidós, 1968, em especial capítulos XIII e XIV; MARQUESE, Rafael B. Feitores do corpo, missionários da mente. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, em especial a parte II, A teoria ilustrada da administração de escravos.

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nota de libertos.22 Em outras palavras, a lei de 1773 extinguiu a perpetuidade do cativeiro e divisou a eliminação da categoria de liberto em Portugal. Entre as justificativas para a decisão estava a de que a infâmia da escravidão não poderia alcançar os descendentes além do termo fixado pelas leis nos casos de crimes de lesa-majestade. Como no capítulo das Ordenações relativo a tais delitos as penas e a infâmia recaíam sobre os filhos e os netos somente, parecia um excesso não conceder a liberdade aos bisnetos de escravas.23

A razão de Estado explica as contradições da lei de 1773 quando confron-tada à situação vigente no Brasil, pois muitos dos argumentos que embasavam a sua aplicação em Portugal poderiam também ser apropriados na América.24 O que estava em jogo, evidentemente, era o fato de que a política pombalina pressupunha a eficiência de uma exploração colonial fundada no cativeiro. Tais contradições, contudo, não passaram despercebidas aos peticionários de São Gonçalo Garcia e aos letrados que os auxiliaram. O argumento de sua petição era o de que muitos dos pardos cujos senhores recusavam alforriar

deviam ser compreendidos na lei de dezesseis de janeiro de 1773, por serem escravos já desde o terceiro, quarto e quinto avô, não lhe[s] valendo o indulto da mesma lei por ser nestas infelicíssimas capitanias interpretada por homens cheios de ambição, ricos, poderosos e que ocupam os cargos públicos e da justiça, os quais querem e decidem que só para os Algarves se publicou a referida lei (como se a razão nela não fosse idêntica nas províncias de Portugal e nas capitanias da América).25

Ainda que se deva sempre evitar o anacronismo de atribuir, aos homens e às mulheres do passado, interpretações do presente, parece inverossímil que os peticionários desconhecessem em absoluto motivações de Estado por detrás das contradições apontadas. Seja como for, a tópica dos senhores ambiciosos

22 NOVAIS, F. A., op. cit., p. 94-100.23 O parágrafo 13 do título VI do livro 4º, depois de ordenar que os filhos dos criminosos de lesa-majestade ficassem infamados para sempre, completa: “E esta pena haverão pela maldade que seu pai cometeu. E o mesmo será nos netos somente, cujo avô cometeu o dito crime”.24 Segundo NOVAIS, F. A., op. cit., p. 94, referindo-se à legislação pombalina sobre a escravidão, “[…] não eram princípios éticos, mas a razão do Estado, que orientava a política ultramarina”.25 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de libertar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786). Grifo meu.

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e enganadores abria outras trilhas de contestação. Além de, possivelmente, servirem como crítica disfarçada à política ultramarina da Coroa, ajudavam a explorar favoravelmente os discursos sobre o governo dos escravos.

No século XVIII, Jorge Benci, André João Antonil e Manoel Ribeiro Rocha haviam discursado sobre os modos pelos quais os senhores cristãos deviam tratar seus escravos.26 Como se sabe, seus textos fundavam-se na legitimidade do cativeiro enquanto instituição, avançando na crítica aos excessos praticados por senhores inescrupulosos. No último quartel da centúria, época em que se elaborou a petição dos irmãos de São Gonçalo Garcia, o debate sobre o governo dos escravos, em certa medida como resposta aos antiescravistas, havia incor-porado alguns princípios ilustrados e em especial os conceitos de humanidade e de interesse. A defesa do direito que tinham todos os seres humanos de serem tratados com certa dignidade conjugou-se, assim, com a idéia de que a busca do interesse individual exigiria o controle das paixões e a adoção de atitudes racio-nais.27 Por ambos os motivos, o tratamento dos cativos demandaria cuidados e a recusa de atitudes movidas pelo ódio e pela cólera. É possível que esses novos lugares-comuns estivessem presentes no requerimento de 1786, no qual, por exemplo, atribuía-se a ausência de moderação dos castigos em Minas à “suma dureza e falta de humanidade dos tirânicos senhores”.28 Por outro lado, a tese de que a libertação dos escravos capazes de comprar a alforria mostrava-se positiva ao Estado por gerar vassalos úteis parece demonstrar que os peticionários esta-vam atentos às mudanças nos paradigmas epistemológicos da época, calcadas na valorização de noções tais como as de utilidade e interesse.29

26 BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977; ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1982; ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado. Petrópolis: Vozes, 1992. Cf. MARQUESE, R. B., op. cit., parte I, A teoria cristã do governos dos escravos.27 Cf. MARQUESE, R. B., op. cit., p. 87-94.28 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de libertar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786). A lei de 1773, articulando antigas e novas concepções, criticava as “Pessoas tão faltas de sentimentos de Humanidade, e de Religião”; ao fazer referência à “nota distintiva de libertos”, caracterizava-a como algo que “[...] a superstição dos Romanos estabeleceu nos seus costumes, e que a União Cristã, e a sociedade civil faz[em] hoje intolerável no Meu Reino, como o tem sido em todos os outros da Europa”. Alvará de dezasseis de janeiro de mil setecentos e setenta e três. In: SILVA, Luiz Geraldo, op. cit., p. 145.29 Cf., sobre episódios da segunda metade dos setecentos, referentes à defesa de letrados ao direito de determinados cativos alcançarem a liberdade por possuírem recursos para comprá-la, SILVA,

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O certo é que, após a defesa da aplicação da lei de 1773 ao Brasil, seguiam-se na petição de São Gonçalo algumas denúncias contra o comportamento abusivo dos senhores. A primeira delas dizia respeito aos açoites excessivos e às “prisões de ferros”. A segunda era a de que muitos senhores não alfor-riavam suas escravas pardas porque queriam obrigá-las a viver com eles um concubinato involuntário. Na mesma linha, uma terceira denúncia se referia ao uso que os senhores faziam das mesmas pardas ao empurrá-las para uma vida escandalosa. Para isso, deixavam-nas à míngua, aproveitando-se depois dos lucros e dos filhos nascidos da prostituição. A maneira indecorosa com que os senhores se aproveitavam da coartação constituía uma quarta denúncia. Segundo os peticionários, os senhores concediam liberdade de movimento aos escravos pardos para que estes lhes pagassem, depois de um certo tempo, um valor bastante superior ao seu preço,

o que eles aceitam por amor da liberdade; e tanto que lhes chega a notícia de que o escravo tem adquirido alguma coisa considerável, o fazem tornar ao cativeiro, roubando-lhe tudo o que encontram, encobrindo estes furtos com a afetada razão de que tudo o que o escravo adquire é para seu senhor,

Maria Beatriz Nizza da. A luta pela alforria. In: SILVA, M. B. Nizza da (org.). Brasil. Colonização e escravidão, op. cit., p. 296-307. A autora menciona o caso de um negro forro de São Paulo, em 1789, que, desejando alforriar a mulher, enviou uma petição ao governador Melo Castro e Men-donça: “Mas, apesar da interferência da autoridade máxima da capitania, a senhora da escrava relutava em alforriá-la, o que levou Melo Castro e Mendonça a escrever ao ouvidor de Paranaguá: ‘A justiça e a humanidade me fizeram interessar nesta alforria, tanto porque a escrava se achava judicialmente avaliada, como porque o marido se oferecia a depositar em Juízo a importância de sua avaliação’. E terminava dizendo ao ouvidor que se encarregasse da questão, ‘fazendo entrar nesses corações ímpios sentimentos de compaixão e ternura por uma classe de indivíduos que Deus não deve fazer desgraçados, visto que em tudo o mais nos são semelhantes” (p. 300). O mesmo vocabulário foi utilizado num caso maranhense de 1774, no qual um mulato se via diante da resistência de seu senhor em aceitar a compra da liberdade: “Começa o ouvidor por falar dos sentimentos ‘inteiramente contrários às leis da humanidade’ expressos pelo senhor do escravo, para em seguida contrapor os conceitos de ‘estado natural’ e ‘Direito das Gentes’: ‘Todos sabem que a escravidão é diametralmente oposta e repugnante à liberdade dos homens considerados segundo o seu estado natural e que eles têm um certo e incontestável direito para a poderem reivindicar’” (p. 301). Este último tópico, como se viu, foi expressamente apresentado pelos peticionários de São Gonçalo Garcia. Ressalte-se ainda a semelhança de seus argumentos sobre a utilidade dos vassalos com os apresentados na lei de 1773, que cita “[...] os prejuízos que resultam ao Estado de ter tantos Vassalos lesos, baldados, e inúteis, quantos são aqueles miseráveis, que a sua infeliz condição faz incapazes para os Ofícios públicos; para o Comércio; para a Agricultura; e para os tratos, e contratos de todas as espécies”. Alvará de dezasseis de janeiro de mil setecentos e setenta e três. In: SILVA, Luiz Geraldo, op. cit., p. 145.

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quebrada assim a fé, a promessa [?], a palavra, a estipulação […].30

Por fim, uma última denúncia era a de que, quando os escravos chegavam à velhice, após terem servido muitos anos a seus senhores, eram lançados fora de casa e obrigados a mendigar o seu sustento.

Os cinco argumentos dos peticionários de São Gonçalo Garcia - o apelo ao direito natural, a utilidade pública, os merecimentos do cristão, a obtenção do mesmo privilégio concedido ao Rosário de Lisboa e a aplicação da lei de 1773 no Brasil -, assim como as cinco denúncias – os castigos excessivos, o concubinato involuntário, a prostituição indesejada, a quebra do contrato de coartação e o abandono na velhice -, apontam, portanto, para a existência de um discurso sistematizado que expressava o ponto de vista de parte das populações escravas e libertas. Os brancos não mais monologavam. Certamente o que mais chama a atenção nesse discurso é como, apesar do uso de trâmites políticos e de opiniões convencionais, ele não deixava de explorar ambigüamente algumas contradições da instituição escravista. Atentos a isso, os conselheiros aprovaram o seguinte parecer do procurador da Fazenda:

Conheço que a favor da liberdade se concede algumas vezes poderem-se obrigar os senhores a venderem os escravos; porém, conheço também que, se se dar [sic] esta faculdade a algumas irmandades, resultam inquietações e prejuízos. Vejo o que muitas vezes sucede à América de se concorrerem as escravidões pelo triste motivo de se julgarem necessárias; contudo, não me parece conveniente conceder-se à irmandade suplicante a graça que pede, e somente que SMaj pode fazer-lhe a de lhe permitir que, constando e provando ela legitimamente que com algum escravo seu irmão pratica seu senhor algum dos excessos que se referem neste requerimento, possa obrigá-lo a que o venda por um preço justo e legítimo.31

A tese de que o cativeiro na América era um mal necessário permeou todo o debate sobre a escravidão quando este esteve sob a influência dos princípios

30 Requerimento da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João del Rei, solicitando a d. Maria I a mercê de conceder à referida irmandade o poder de libertar os seus irmãos e irmãs que forem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786).31 Idem.

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iluministas, sendo constantemente evocado pelos críticos do antiescravismo.32 O procurador, nesse contexto, mostrou-se atento à necessidade de manter em pé a legitimidade do cativeiro no Novo Mundo, ratificando a idéia de que a alforria era dádiva e não direito. O conteúdo de seu parecer espelhava a am-bigüidade contida na petição dos devotos de São Gonçalo que, por uma parte, evocavam tópicos concernentes ao bom governo dos escravos, mas, por outra, reforçavam a tese do direito natural à liberdade e demandavam a aplicação no Brasil de uma lei de caráter abolicionista.33 De toda forma, o fato é que o acesso de negros e mestiços ao universo dos letrados criou as condições para que eles travassem um debate com a Corte e com os brancos em geral. O uso que fizeram dos meios políticos convencionais e o afinco com que pleitearam mercês e privilégios não implicaram necessariamente uma adesão acrítica à ordem imposta pelo Estado luso. Identificar a participação nas instituições e nos mecanismos estatais da época como mera aceitação do status quo é esvaziar o significado cotidiano das lutas sociais. Olhar de longe, traçar a linha que levou a escravidão até o final do século XIX e concluir, por fim, pela inocuidade desse debate na Minas setecentista é certamente uma atitude anacrônica. Quando se analisam detidamente os inúmeros processos judiciais envolvendo escravos e os conteúdos de petições remetidas ao Conselho Ultramarino, vinculando-os com as relações sociais e institucionais que os perpassavam, parece emergir um quadro marcado pela recorrência de certos argumentos e pela adoção de estratégias de acumulação de forças.

32 Cf. DAVIS, D. B., op. cit., MARQUESE, R. B., op. cit.; NEVES, Guilherme Pereira das. Páli-das e oblíquas luzes: J. J. da C. de Azeredo Coutinho e a Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos. In: SILVA, M. B. Nizza da Silva (org.). Brasil. Colonização e escravidão, op. cit., p. 349-70.33 Essa ambigüidade aparece também no uso das palavras “escravidão” e “escravidões”, parecendo referir-se, respectivamente, a uma instituição e a tipos ou casos individuais. Nas primeiras linhas da lei de 1773, falava-se dos “[...] grandes inconvenientes, que a estes Reinos se seguiam de se perpetuar neles a Escravidão dos Homens pretos [...]”; mais abaixo, aludindo-se ao fato de alguns senhores lusos obrigarem suas cativas a terem filhos, destacava-se “[...] a grande indecência, que as ditas Escravidões inferem aos meus Vassalos [...]”.Alvará de dezasseis de janeiro de mil setecentos e setenta e três In: SILVA, Luiz Geraldo, op. cit., p. 145. Dessa forma, para se acabar definitivamente com a “escravidão dos homens pretos” no Reino, era preciso atalhar as “escra-vidões” resultantes do nascimento de crianças cativas. Se a lei de 1761 havia tentado pôr fim à instituição escravista em Portugal constrangendo o tráfico negreiro, a de 1773 almejava conso-lidar tal intento pondo limites à reprodução natural do cativeiro. No caso do parecer referente à petição dos pardos de São Gonçalo, o procurador, captando sua ambigüidade, defendia a opinião de que permitir generalizadamente que as irmandades fossem autônomas para atalhar escravidões implicaria “inquietações e prejuízos” para a escravidão.

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Conquanto a petição de São Gonçalo Garcia dissesse respeito explicitamente às populações pardas, seus argumentos tinham um caráter mais geral e, por isso, alguns deles apareceram também em documentos em defesa de negros. Esse é o caso, por exemplo, das extraordinárias petições da década de 1750 elaboradas e levadas pessoalmente à Corte pelo crioulo José Inácio Marçal Coutinho, em defesa dos libertos da Capitania de Minas Gerais.34 Apesar das documentadas cizânias existentes, em vários lugares e épocas da colonização européia na América, entre pardos, crioulos e africanos de diferentes etnias, é digno de nota o ecletismo de algumas das petições do período, pois nelas, de um lado, as identidades forra e escrava apareciam acima das diferenças de qualidade e, de outro, a identidade devocional era colocada acima das próprias diferenças de condição. Parte das petições escritas em nome dos negros e mestiços de Minas Gerais foi provavelmente elaborada por letrados brancos. Se bem que nelas não haja referências explícitas a doutores, sua participação torna-se patente pela acuidade das teses jurídicas evocadas. Certamente parte desses letrados esteve a serviço de irmandades de africanos e de seus descendentes na América. As congregações de pretos, crioulos e pardos poderiam mais facilmente mobilizar os recursos necessários ao pagamento de advogados e dos trâmites burocráticos. Ainda que padrinhos, protetores e vizinhos pudessem patrocinar demandas in-dividuais e coletivas, as irmandades e as tropas, de acordo com as informações contidas nos próprios requerimentos, pareciam consistir nas principais formas de apoio e organização das camadas de escravos e libertos. Representações indivi-duais, como a de Manoel de Sousa Porto, morador na freguesia das Congonhas da Vila de Sabará, deixam implícita a presença de letrados.35 Manoel escreveu ao monarca em 1758 queixando-se de que, depois de servir por muitos anos a seu senhor, este se recusava a vendê-lo a uma liberta que pretendia alforriá-lo pelo expressivo valor de 200 oitavas de ouro para com ele se casar. Como era comum em casos relativos a cativeiro, o requerimento de Manoel de Sousa fez

34 Requerimento dos crioulos, pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo a d. José I a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé (07.01.1756) – AHU/MG, caixa 69, documento 05; Requerimento de José Inácio Marçal Coutinho (17.08.1761) – AHU/MG, caixa 79, documento 15. Cf., sobre as referidas petições, SILVEIRA, Marco Antonio. Soberania e luta social, op. cit.35 Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, códice 126, p. 21s.

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menção “[…] às leis régias deste Reino que dizem respeito à liberdade […]”, mas foi também além, apresentando um outro argumento importante.36

Afirmando-se natural do gentio da Guiné, região da Costa da Mina, disse que fora “[…] enganado e vendido enganosamente […]”, e que viera parar na cidade da Bahia aos cinco anos, onde, na posse de segundo senhor, foi batizado e passou a viver segundo as obrigações de cristão.37 Pelas circunstâncias que lhe causaram a perda da liberdade, requeria então que o rei obrigasse o senhor a vendê-lo pelas 200 oitavas,

pois no comum sentir dos doutores, não se mostrando título ou origem legal e verdadeira da coisa possuída, fica o perseguidor sem domínio dela; e por estes termos parece não estar o suplicante obrigado ao rigor do dito cativeiro, aonde se acha e serve há mais de 20 anos, que na forma das Bulas Pontifícias bastava o tempo de dez anos.38

A petição de Manoel de Sousa, portanto, fazia uso das discussões sobre a legitimidade ou não do cativeiro, recuperando a tese de que, não tendo ele resultado de guerra justa, de venda por extrema necessidade ou do ventre de mãe escrava, dever-se-ia considerá-lo ilegítimo e devolver o injustiçado à liber-dade.39 Algumas décadas mais tarde, como se viu, o eixo da discussão tenderia a deslocar-se contemplando a idéia de que o cativeiro era um mal necessário. Mas o requerimento, ao utilizar uma tese que objetivava justificar a posse de cativos, expunha abertamente suas contradições. O fato de o monarca ter despachado favoravelmente ao suplicante, mandando que fosse contemplado, depois de averiguada a veracidade das suas informações, sugere que esse tipo de argumen-tação letrada fazia parte do jogo, mas não exclui o papel que tais reivindicações exerciam na formação de uma certa consciência de direitos e identidades entre os negros e os mestiços de Minas. Pode-se mesmo propor - embora tal proposta

36 Idem. Sobre o uso do recurso às petições por cativos e libertos, cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. . Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos de origem africana na América portuguesa. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 215-33.37 Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, códice 126, p. 21s.38 Idem.39 Cf., sobre o debate acerca da legitimidade da escravidão, ZERON, Carlos Alberto M. La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Brésil, tese de doutorado apresentada à ÉHESC, 1998.

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dependa de estudos mais aprofundados - que casos individuais como o de Manoel de Sousa Porto fossem apoiados pelas irmandades ou por outros patrocinadores pelo que significavam em termos de afirmação política.

A presença de letrados brancos, no entanto, não impediu, e talvez tenha mesmo estimulado, a existência de documentos que, se não foram diretamente escritos por alguns dos próprios interessados, pelo menos contaram com a participação efetiva deles. Além do caso de José Inácio Marçal Coutinho, há o exemplo da carta de 1796, do pardo Miguel Ferreira de Sousa, morador em Mariana, sobre as injustiças sofridas pelos homens pardos e pretos libertos da Capitania.40 O missivista, no final do documento, pedia “[…] perdão de alguma palavra mal dita por rudezia [sic] do meu juízo […]”,41 indicando ter participado mais de perto de sua elaboração. Miguel Ferreira retomou as tópicas relativas à utilidade dos serviços dos forros, lembrando que eles combatiam quilombolas e índios nos matos e descobriam o ouro e outras riquezas das Minas. Citou nominalmente os regimentos e terços de homens pardos e pretos auxiliares e de ordenanças que, desde a ordem régia de 22 de março de 1766, eram os que, fardados e armados à própria custa, defendiam as povoações, faziam diligên-cias em lugares distantes como o Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso, e combatiam nas guerras contra os espanhóis. Mostrando-se conhecedor da conturbada conjuntura de poucos anos antes, Miguel Ferreira lembrou ainda que “[…] na classe dos referidos homens pardos e pretos nunca houveram rebeliões em coisa [?] alguma, nem ainda por leve imaginação em coisas de desobediências, inconfidência, respeito às leis de VMaj […]”.42 E lembrou os que exercitavam as “artes da música” nos festejos das aclamações de reis e rainhas e dos nascimentos dos infantes.

Apesar de todos os seus esforços, os libertos mineiros, segundo o missivis-ta, não eram devidamente recompensados e reconhecidos. Quando requeriam

40 Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a d. Maria I a situação dos homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles justiça” (19.06.1796) – AHU/MG, caixa 142, documento 23. Este documento foi, em diferentes perspectivas, discutido em SOUZA, Laura de Mello e. Coartação. Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: Norma e conflito, Belo Horizonte: Ed. da UFMG, p. 151-74, e em GROSSI, Ramon Fernandes. O “dar o seu a cada um”, tese de doutorado apresentada à UFMG, Belo Horizonte, 2005, p. 205-39.41 Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a d. Maria I a situação dos homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles justiça (19.06.1796).42 Idem.

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“terras de planta” para nelas trabalharem, eram preteridos pelos homens brancos que nem ao menos lhes pagavam os salários. Não tinham acesso às ocupações honrosas da República, pois não lhes eram concedidos ofícios públicos, quer nas Câmaras, quer no Tribunal da Junta da Real Fazenda. Alguns escravos continuavam a viver em perpétuo cativeiro porque os brancos não queriam admitir que a lei de 1773, cuja cópia fora anexada, também cabia aos “pardos e pretos nacionais” da Capitania. E mesmo os que conseguiam com a ajuda dos pais comprar a liberdade por muito dinheiro, além de não serem admitidos nos empregos públicos, chegava a tal ponto a sua miséria que

nem sequer os admitem nas ordens 3ªs e irmandades do Sacramento e ou-tras por modo de desprezo, e mal permitem a que os ditos tenham alguma irmandade separada, sem serem unidas com eles, e ainda algumas das ditas são regidas e administradas pelos mesmos homens brancos com o pretexto de zeladores, fundando seus zelos somente em guardarem os dinheiros das ditas irmandades, fazendo com os ditos dinheiros seus negócios, de sorte que alguns não dão contas e ficam as irmandades perdendo.43

Enfim, Miguel Ferreira retomou boa parte das tópicas gestadas no decorrer de todo o século XVIII, colocando-se um tom acima em suas reivindicações. Procurou caracterizar positivamente o grupo de libertos ao qual pertencia e considerou inaceitáveis as exclusões praticadas nas Câmaras e nas congrega-ções religiosas dos brancos. As mudanças demográficas da segunda metade da centúria, geradoras da explosão do número de mestiços e forros em Minas, explicam em parte que, na década de 1790, a defesa do fim das formas mais arraigadas de segregação se tornasse possível. Mas a mudança do tom havia resultado também do acúmulo de forças no debate político das décadas anterio-res. No centro desse debate achavam-se as tropas e algumas das irmandades de negros e mestiços da Capitania, constantemente citadas nas petições. A crítica de Miguel Ferreira à tentativa dos homens brancos de controlar as irmandades dos africanos e seus descendentes ajuda a compreender o significado mais pro-fundo dos conflitos travados por seus dirigentes contra autoridades, capelães, vigários e outros indivíduos brancos.44 Muitas irmandades atuavam não apenas

43 Idem.44 Cf., sobre os conflitos com corregedores e capelães, AGUIAR, Marcos Magalhães. Vila Rica dos confrades, dissertação de mestrado apresentada à USP, São Paulo, 1994.

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como meios de proteção e caridade junto a seus membros, mas também como instrumentos eficazes de pressão política e de luta social.

Ao requerimento de Miguel Ferreira - que, além da aplicação da lei de 1773 em Minas, pedia fossem os libertos devidamente remunerados - a Coroa tam-bém respondeu com a recusa. Para isso contribuiu sensivelmente a informação que Bernardo José de Lorena, governador da Capitania na época, remeteu a d. Rodrigo de Sousa Coutinho, afirmando que a carta era “tudo uma patranha e um bando de mentiras”.45 De acordo com o governador, o alvará de 1773 nunca coubera ao Brasil, as sesmarias eram repartidas com igualdade, havendo nas Minas pardos com lavras e escravos que não sofriam nenhum tipo de embaraço. E desqualificou o peticionário classificando-o como “[…] um velho pobre e de má conduta, segundo me constou, que teve para si que em fazer tal petição não perdia senão uma folha de papel”.46 Mas Bernardo José de Lorena talvez tenha exagerado na dose. Miguel Ferreira, como ele mesmo informou em sua petição, era capitão do terço dos pardos de Mariana, tendo servido como soldado na tropa paga do Rio de Janeiro. Alfabetizado, como tudo indica, provavelmente beneficiou-se do fato de ter tido como pai o capitão de ordenança Vicente Ferreira de Souza que servira como vereador na sede do Bispado mineiro. Pleiteou na mesma petição ser nomeado sargento-mor pago do terço a que pertencia. Numa devassa tirada contra ele pela mesma época, fica sugerida uma certa liderança de Miguel Ferreira, pois alguns escravos fugiram de seus donos ao saberem que ele havia mandado ao rei uma carta para se tornarem forros todos os que haviam servido mais de dez anos a seus senhores.47

45 Carta de Bernardo José de Lorena a d. Rodrigo de Sousa Coutinho a respeito das queixas feitas pelos homens pardos e pretos libertos das Minas Gerais, o que tudo era uma mentira deles (17.04.1798) – AHU/MG, caixa 144, documento 21.46 Idem.47 Infelizmente, não tive acesso direto à devassa. Ela é descrita em GROSSI, R. F., op. cit., p. 215-9. Na carta de Miguel Ferreira de Sousa [...] (19.06.1796), não há nenhuma referência à tópica dos dez anos, embora, como sugere o caso de Manoel de Sousa Porto referido acima, ela circulasse entre cativos. Outras importantes informações sobre a pressão política de negros e mestiços podem ser colhidas no trabalho de Grossi. Sua linha interpretativa, contudo, diferente daquela aqui adotada, consiste em parte num bom contraponto às hipóteses tratadas neste artigo. Por exemplo, referindo-se a Miguel Ferreira, afirma o autor na p. 234: “Não acreditamos que ele estava dizendo que os homens com sangue africano deveriam receber um tratamento idêntico às pessoas brancas no momento da ocupação de ‘ofícios públicos’, mas que deveriam ter acesso a uma fatia desse universo, levando em conta os limites colocados à ascensão social da gente de ‘cor’ livre pela hierarquização via ‘sangue’ e ‘qualidade’. Em primeiro lugar, Miguel Ferreira deixava claro que os indivíduos da sua condição queriam distinguir-se socialmente através do recebimento de graças régias, de modo que eles se

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A petição de 1796, embora expressasse mais uma vez a pressão exercida por pardos instruídos, não se circunscrevia a este ou àquele grupo social em particular. Pelo contrário, estendia geralmente seus argumentos à defesa das populações negras e mestiças, sugerindo a existência de elementos identitários comuns acima dos critérios raciais normalmente adotados. É verdade que a valorização dos serviços praticados pelos libertos dava-se à custa da crítica e do combate aos quilombolas, o que aparentemente indica que os peticionários não colocavam em xeque a escravidão em si. Da mesma maneira, a defesa que faziam de sua importância para a manutenção da ordem aponta para uma certa aceitação das normas vigentes. Contudo, é inegável a radicalidade de algumas das demandas encontradas nas petições referidas, especialmente das que diziam respeito à lei de 1773.48 Se, como pediam os requerentes, as regras da abolição em Portugal fossem implantadas no Brasil, o número bastante significativo de escravos nelas contemplados implicaria um impacto nada desprezível nas

integravam à lógica social da diferenciação das pessoas via privilégios, acatando a concepção de que os homens eram efetivamente desiguais”. SOUZA, Laura de Mello e, em Coartação..., op. cit., analisa o episódio de maneira mais nuançada: “Por fantasioso ou anedótico que seja, o episódio expressa o anseio corrente entre os homens de cor – tanto livres quanto escravos – por liberdade jurídica, acesso a cargos e honrarias. O que justificava tal anseio era o fato de cumprirem com suas obrigações civis. Nos documentos, não aparece o vocabulário cidadão, e é dicutível que o conceito fosse, então, de domínio comum. Em última instância, contudo, é de cidadania que se trata, ou melhor, da sua extensão aos homens de cor, livres ou escravos, que faziam a sua parte, cumprindo com suas obrigações”. E conclui: “De fato, aqui residia o engodo e a contradição de uma ordem social que aceitava a alforria, promovia-a até, mas continuava considerando os forros como súditos subalternos, incapazes de governar as vilas ou integrar as irmandades mais prestigiadas – que seguiam sendo, pelo menos de direito, espaço privilegiado dos homens brancos” (p. 156).48 Maria Beatriz Nizza da Silva, em A luta pela alforria, op. cit., refere-se a um caso ocorrido em Salvador em que um homem pardo requeria sua liberdade por ter nascido depois de publicada a “novíssima lei” de 1773. No episódio do Maranhão mencionado acima, o ouvidor citou as “sábias leis que foram promulgadas em Portugal a 19 de setembro de 1761 e em 16 de janeiro do ano próximo passado (1773) pela qual foram habilitados para os empregos públicos todos os libertos por benefício do mesmo alvará” (p. 306). Stuart Schwartz, em Segredos internos, op. cit., p. 384, afirma que a abolição da escravidão no Reino “[...] provocou certa agitação entre os escravos” da América lusa, levando-os a reconhecer “[...] a inerente contradição da abolição do cativeiro em Portugal e da sua continuidade no Brasil. Ocasionalmente os escravos que viajavam de navio até a metrópole tentaram conseguir a liberdade. Uma declaração adicional de Pombal, em 1773, acarretou na Paraíba um movimento entre pardos escravos e livres, no qual procuraram a extensão da abolição ao Brasil”. O evento da Paraíba, significativamente correlato ao que envolveu Miguel Ferreira em 1796 nas Minas, foi discutido por SILVA, Luiz Geraldo em Esperança de liberdade, op. cit.. O autor define os principais envolvidos no episódio como intermediários culturais, sendo todos pardos livres, com profissão e domínio sobre o ler e escrever. Entre as notícias impactantes que circularam na ocasião estava a de que “[...] os pretos haviam de ser admitidos ao serviço da Câmara” (p. 141).

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estruturas produtivas coloniais. Se fosse colocado em prática o argumento de que, em benefício da utilidade do Estado, deviam ser libertados os escravos capazes de pagar sua alforria, o domínio dos senhores sobre seus cativos fica-ria irremediavelmente abalado. O fim das barreiras raciais que, pela lei e pelo costume, impediam o ingresso de descendentes de africanos nas Câmaras, na Real Fazenda ou nas ordens terceiras compostas pelos brancos, por sua vez, dissolveria algumas das bases que regulavam a estratificação social nas Minas. Enfim, se as petições traziam elementos de adesão, traziam também possibili-dades de subversão. É essa ambigüidade que tem sido descurada por parte da historiografia. As pressões exercidas por grupos de negros e mestiços, muitas delas através de meios oficiais, podem ser encaradas como sinais de ingenui-dade, hipocrisia ou adesão à ordem estabelecida, mas nada disso elimina o que representaram em termos de gestação de uma radicalidade potencial.49

Por esse motivo, o governador concluiu sua informação da seguinte ma-neira:

Passo agora a dizer, pelo que observei na primeira Junta de Justiças que fiz, que todos os réus foram pardos e pretos […] Atenta, pois, a justa

49 Nesse sentido, há que se relativizar o modelo explicativo que, concebendo a alforria não como negação, mas como parte constitutiva do quadro institucional escravista, vincula a continuidade deste no Brasil setecentista ao panorama caracterizado - para além da sistematização da legislação e dos instrumentos repressivos - por um menor desequilíbrio demográfico entre brancos e negros, pela ampliação das oportunidades de conquista da liberdade, pela constituição de importantes camadas de mestiços e libertos, e pelo estabelecimento de clivagens identitárias entre mulatos e crioulos, de um lado, e africanos, de outro. Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n. 74, mar/2006, p. 107-23; PATTERSON, Orlando. Slavery and social death. Cambridge: Harvard University Press, 1982; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cul-tural na colônia. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001. A perspectiva sistêmica e de longa duração adotada por R. B. Marquese permite que se perceba como as características citadas articularam-se no Brasil dos séculos XVIII e XIX de modo estrutural, produzindo um “quadro social escravista interno altamente estável”. Contudo, essa aparência de estabilidade é certamente relativizada quando se adota uma perspectiva mais microscópica e apta a captar descontinuidades. O fato de padrões demográficos e aspectos socioeconômicos pulverizarem formas contestatórias mais ou menos radicais, como os quilombos ou o discurso peticionário, apenas nos informa que elas não podiam se organizar mais sistematicamente, e não que essa limitação implicasse necessariamente uma ordem altamente estável. A questão pode ser tratada do ponto de vista da contradição e da ambigüidade. Se houve, por um lado, institucionalização e amortecimento das tensões escravistas, houve também, por outro, um quadro caracterizado pela guerra molecular. Caso contrário, seria difícil compreender o pânico das autoridades da Capitania de Minas Gerais no decorrer dos Sete-centos. O olhar da longa duração pode esvaziar o significado da violência cotidiana.

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lembrança de VExc dos fatos acontecidos nas Antilhas, e atendendo igualmente ao grandíssimo excesso em número que levam pardos e pre-tos sobre os brancos nesta Capitania, parece-me será muito prejudicial se SMaj favorecer mais em geral aquela casta de gente do que a tem já favorecido pelas suas sábias e justíssimas leis […].50

O preconceito racial que estigmatizava negros e mestiços com a pecha da turbulência e da inconstância continuava vigoroso nos últimos anos dos Sete-centos, reaparecendo o temor das autoridades de que se perdesse o controle dos domínios ultramarinos. O problema, porém, não podia mais ser colocado nos termos propostos pelo conde de Assumar ou por d. Lourenço de Almeida nas décadas de 1710 e 1720. Os exemplos das Antilhas ou da conspiração de 1798 na Bahia não equivaliam ao de Palmares. As idéias ilustradas, o antiescravis-mo, a Revolução Francesa, a Independência da América inglesa e as próprias mudanças de mentalidade entre os letrados lusos traziam novos ingredientes a velhas questões. Na conformação de um discurso próprio, grupos de escravos e libertos haviam acentuado o papel imprescindível para a conquista e a defesa do território colonial perpetrado pelos nacionais da terra. Se as camadas dirigentes da açucarocracia nordestina, especialmente a pernambucana, haviam desenvol-vido no decorrer do século XVIII um nativismo que excluía a mestiçagem e subordinava os henriques, os descendentes de africanos da Capitania de Minas Gerais, a despeito de suas divergências, começaram a narrar uma história que os via também como protagonistas.51

O nativismo negro e mestiço do final dos Setecentos podia contar com um universo colonial mais rico e complexo, com a apropriação de discursos jesuíticos, jurídicos e ilustrados sobre a escravidão, com um perfil demográfico favorável, com a estruturação das tropas e das irmandades e com um cenário externo agitado. Essa constatação revela-se ainda mais importante quando se leva em conta que, na segunda metade dos Setecentos, discutiam-se nas Minas propostas reformistas de desenvolvimento das potencialidades locais e que, no

50 Carta de Bernardo José de Lorena a d. Rodrigo de Sousa Coutinho a respeito das queixas feitas pe-los homens pardos e pretos libertos das Minas Gerais, o que tudo era uma mentira deles (17.04.1798).51 Sobre o discurso nativista da açucarocracia, cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, em especial os cap. À custa de nosso sangue, vidas e fazendas e No panteão restaurador. Para um exemplo da atuação política de negros e mestiços na Bahia do início do século XIX, cf. REIS, João José e SILVA, Eduardo Silva, op. cit., cap. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia.

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decorrer do século seguinte, o impacto das idéias liberais e dos debates sobre a formação do Estado Nacional brasileiro conduziu os grupos dirigentes a atentar ao caráter explosivo das pressões políticas exercidas pelos descendentes de africanos.52 Se os grupos dirigentes formularam, na Constituição de 1824, uma definição de cidadania relativamente inclusiva que abarcava os libertos nascidos no Brasil, isso se devia não apenas à percepção de que as clivagens identitárias entre os africanos e seus descendentes haviam se tornado elemento importante para a manutenção do escravismo, mas também ao fato de que, nas décadas anteriores, crioulos e pardos, especialmente, vinham balizando uma luta política cotidiana definida pela acumulação de forças.

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A reformA prisionAl nA BAhiA oitocentistA1

Cláudia Moraes TrindadeDoutoranda em História Social/UFBA

resumoO objetivo deste artigo é contextualizar o início da reforma prisional baiana no século XIX. Discuto as heranças do encarceramento colonial, traço um panorama do quadro prisional da cidade de Salvador e relato a legislação prisional do Brasil recém-independente. Finalmente, também discuto os modelos penitenciários da Europa e Estados Unidos e os debates em torno da implantação da primeira penitenciária da província que recebeu o nome de Casa de Prisão com Trabalho.

palavras-chavesReforma prisional • penitenciária • Casa de Prisão com Trabalho • Bahia séc. XIX.

AbstractThe aim of this article is to contextualize the beginning of the prison reform in Bahia in the nineteenth century. I discuss the legacy of the colonial incarceration policy, I present a survey prison system in Salvador, as well as the legal rules established by the recently independent country. Finally, I also discuss the penitentiary models of Europe and United States and the debates regarding the building of the first penitentiary in the province, named Casa de Prisão com Trabalho (Workhouse Prison).

KeywordsPrison reform • penitentiary • Prison-Workhouse • Bahia 19th century.

1 Este artigo é um desdobramento do primeiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada A Casa de Prisão com Trabalho da Bahia - 1833-1865, concluída em 2007, sob a orientação do prof. dr. João José Reis, a quem sou especialmente grata por seus comentários e indicação de fontes documentais e bibliográficas. A pesquisa contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Os professores Cândido da Costa e Silva, Carlos Eugênio Líbano Soares, Pedro Moraes Trindade e Venétia Durando Braga Rios indicaram fontes documentais e bibliográficas, além de comentarem o texto. Agradeço os comentários feitos a uma versão anterior pelos membros da linha de pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA. Sou igualmente grata aos pareceristas da Revista de História e ao seu editor, o prof. dr. Carlos Alberto de M. R. Zeron, cujas sugestões permitiram melhorar sensivelmente este artigo.

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Nas primeiras décadas do século XIX, ainda predominava na Bahia o sistema prisional instaurado pelos portugueses desde o início da colonização. Esse quadro começou a mudar a partir das décadas de 1820 e 1830, quando a discussão da reforma prisional tomou força em todo o Brasil. Além da influência de modelos europeus e norte-americanos, a Constituição do Império, em 1824, e a promulgação do Código Criminal, em 1830, foram importantes fatores que ajudaram a incluir o Brasil no contexto internacional da reforma prisional.2 Somando-se a esse quadro, o sentimento antilusitano que tomou conta das elites baianas, no período pós-independência, estimulou ainda mais as mudanças no aparato prisional da província. É o que podemos perceber no que foi escrito, em 1832, por uma comissão da Câmara Municipal de Salvador, responsável pelo melhoramento das prisões da cidade:

a ideia de atrazo da nossa civilização, e ainda miserável aluzão aos princi-pios brutaes de um governo estupido, e desumano, qual o que pezou sobre o Brazil ate a epocha de sua Emancipação Politica, restringi-se a lembrar á Camara Municipal que a continuação da existencia da Cadeia Publica desta cidade nada menos importa que a continuação da corrupção fisica e moral não so dos prezos nella, como mesmo do resto dos habitantes.3

No antigo regime prisional a cadeia não tinha o objetivo de reabilitar; tam-pouco havia preocupação com a higiene e separação de presos pela qualidade do delito. O flagelo do corpo do criminoso era o conceito de punição. As ques-tões criminais eram regidas pelo Livro V das Ordenações Filipinas, base legal de todo o Império luso, que vigorou no Brasil até a promulgação do Código Criminal em 1830.4 De acordo com as Ordenações Filipinas, a prisão servia para o infrator aguardar outros tipos de pena, como o açoite, degredo, morte etc.; ou quando se estipulava uma multa para um determinado delito, mantendo

2 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil de 1824, título 8º, artigo 179, parágrafos, 18, 19 e 21; FILGUEIRAS JUNIOR Araujo. Código Criminal do Império do Brazil Annotado. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1876.3 Relatório para o presidente e membros da Câmara Municipal de Salvador, 29.01.1832, Arquivo Municipal de Salvador (doravante AMS), Pareceres de Comissões.4 LARA, Silvia Hunold (org). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Ver também HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 44.

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o indivíduo preso para garantir o pagamento.5 As cadeias localizavam-se nos centros urbanos, integrando-se ao cotidiano da cidade, facilitando a interação do preso com o mundo exterior. Essa era uma situação comum em todo o Império do Brasil. No Rio de Janeiro, a cadeia pública “tinha suas grades voltadas para a rua, o que mostrava aos passantes a terrível situação em que se encontravam os prisioneiros”.6 Essa interação proporcionava as mais diferentes relações entre os presos e os passantes, como na Corte, onde as negras quitandeiras costumavam vender os seus quitutes para os prisioneiros.7 Em São Paulo, a construção de uma calçada de pedra em volta da cadeia pública calhou aos “prisioneiros que viviam, como de praxe, dependurados às grades das suas enxovias a conversar com parentes e amigos [...]”.8 Na Bahia, esse contato foi registrado na cadeia da Relação, pois, ali, o boticário João Ladislau de Figueiredo Mello “conversava da rua com o amigo encarcerado [Cipriano Barata], separados pelas grades e sob a vista do carcereiro que olhava da janela”.9

As esmolas dos passantes, que se sensibilizavam com o sórdido espetáculo, ajudavam os presos a sobreviver, enquanto aqueles que podiam contar com a ajuda de amigos e parentes tinham sua alimentação e a vestimenta garantidas. O poder público era conivente com a ajuda da população, pois apenas fornecia alimentação e roupas para aqueles que não contavam com a família ou amigos e que, por algum motivo, estavam impossibilitados de trabalhar. Eram os chama-dos “presos pobres”. Para alimentá-los, o governo mantinha um contrato com a Santa Casa da Misericórdia que fornecia a alimentação nas cadeias públicas da cidade. A má qualidade da comida da Santa Casa é tema constante, seja em re-presentações de presos às autoridades, seja na correspondência do governo.10

5 SALLA, Fernando. O encarceramento de São Paulo: das enxovias à Penitenciária do Estado. Tese de doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997, p. 20.6 ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. O duplo cativeiro: escravidão urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821. Dissertação de mestrado em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 46.7 Em 1841, uma representação de presos da Casa de Correção da Corte, que se encontrava em construção, citava que as negras quitandeiras vendiam alimentos para eles através das grades. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 395.8 TAUNAY, Affonso de E. História social da cidade de São Paulo no século XIX, 1801-1822. São Paulo: Depto. de Cultura, vol. 3, p. 237, apud SALLA, op. cit., p. 24.9 MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembléia legislativa do Estado da Bahia, 2001, p. 78.10 Requerimento para o Governo da Província cobrando pagamento referente ao contrato de sustento dos presos, Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (doravante ASCMS), Li-

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Além do contato com as visitas e os transeuntes, o preso tinha a possibilida-de de circular por outros ambientes quando obrigado a se ocupar em trabalhos públicos.11 Eram serviços geralmente desempenhados pelos condenados à pena de galés que trabalhavam acorrentados uns aos outros carregando água, desem-penhando serviços de pedreiro, ou até combatendo formigas em lugares públicos e particulares, como aconteceu em São Paulo.12 Para o Rio de Janeiro, Carlos Eugênio Soares descreve as várias modalidades de trabalho forçado e formas de acorrentamento a que os presos, escravos ou não, eram submetidos no dique da ilha de Cobras. Uma dessas formas era o libambo – três ou mais escravos unidos por uma corrente que coletavam água para o abastecimento da ilha.13 Apesar do tratamento a que estavam sujeitos, os presos tinham algum contato com a cidade. Seja trabalhando, conversando com familiares ou comprando alimentos das quitandeiras, eles reproduziam antigos costumes que, mais tarde, os levariam a resistir à submissão das novas regras que seriam impostas pela instituição penitenciária.

Fernando Salla, em seu estudo sobre as prisões de São Paulo, observou que essa interação do preso com o mundo do lado de fora da prisão “revestia a Cadeia de um significado distinto daquele que viria a ter, algumas décadas depois, com a Casa de Correção”.14 O novo significado a que Salla se refere decorreu de uma nova interpretação do conceito de prisão e de punição que movimentou os debates em vários países durante o século XIX. O Brasil, na época, acompanhou uma tendência mundial que era a de reestruturar o aparelho

vro de Registros nº 09/ A-93 fl. 30. Em 1833, o “contrato de sustento dos presos” entre a Santa Casa da Misericórdia e o Governo da Província custava aos cofres públicos “doze conto de reis annuaes”. Numa ocasião, os presos das cadeias do Barbalho e da Correção reclamaram ao chefe de polícia da péssima qualidade da comida da Santa Casa. O mordomo desta instituição alegou “que os presos pobres têm o costume de representar contra a Santa Casa toda vez que sabem que há novo Presidente ou novo Chefe de Policia, preparando até para isso, com reconhecida má fé rações [ilegível], e que lhes não são fornecidas, como por vezes se há verificado”. Mordomo para o chefe de polícia Polycarpio Lopes de Leão, 08.06.1858, ASCMS, Livro de Registros nº 9 / A-93 fl. 210-211.11 Inicialmente, as Ordenações Filipinas determinavam que o condenado a galés fosse remetido às embarcações para remar. Posteriormente, essa pena foi comutada para trabalhos forçados em obras públicas. SALLA, op. cit., p. 39. Não confundir trabalhos forçados com pena de prisão com trabalho, cuja diferença será abordada adiante.12 Sobre os trabalhos forçados em São Paulo, ver SALLA, op. cit., p. 26.13 Para saber mais sobre o libambo, ver SOARES, op. cit., p. 258-259.14 SALLA, op. cit., p. 25. No Brasil oitocentista a instituição penitenciária também era chamada de Casa de Correção ou Casa de Prisão com Trabalho.

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prisional. Comparando as prisões do antigo regime com as penitenciárias, Mi-chelle Perrot escreveu que, “no final do século XIX, coberta de lei, cercada de muros, ela [a prisão] se fecha cada vez mais. A ela não se escapa, assim como dela não se evade”.15

As mudanças no aparelho prisional da Bahia aconteceram lentamente du-rante o século XIX. Atendendo à Lei Imperial de 1828, a Câmara Municipal de Salvador constituiu uma comissão de visitas às prisões e aos estabelecimentos pios que teve o objetivo de informar às autoridades sobre a situação em que se encontravam esses cárceres, além de sugerir os devidos melhoramentos.16 Essa era uma medida complementar ao artigo 179 da Constituição do Império que previa melhores cadeias.17 Em Salvador, a primeira comissão de visitas foi formada em 1829. As outras de que tive notícia foram as de 1832 e 1833. Entre os membros da primeira comissão estavam Antonio Pereira Rebouças, político, advogado, combatente da causa da independência e pai do abolicionista André Rebouças; outro membro era Manoel Maria do Amaral, advogado que, em 1864, governou a província na qualidade de vice-presidente. Da comissão de 1832 fazia parte o médico Manoel Maurício Rebouças, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e irmão de Antonio Pereira Rebouças. Maurício Rebouças esteve também envolvido com os estudos sobre a teoria dos miasmas, muito em voga na época, quando o projeto liberal civilizatório que teve início nas primeiras décadas do século XIX buscou, entre outras medidas, higienizar a morte, pleiteando o enterro dos mortos nos cemitérios.18 Inspecionar e propor

15 PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários mulheres e prisioneiros. 3ª edição, São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 241.16 BRASIL, Lei de 1º de outubro de 1828, “Dá nova forma às Camaras Municipaes, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz”. Esta lei também estabeleceu que todos os assuntos relacionados à manutenção e construção das prisões, assim como aqueles relacionados aos presos, fossem de responsabilidade municipal e que todos os municípios do Im-pério deveriam constituir as comissões de visitas. Sobre essa lei e sua relação com o projeto liberal civilizatório e higienizador em Salvador, ver REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 275-276. 17 BRASIL. Constituição política do Império do Brazil, título 8º parágrafo 21. Estabeleceu que “as Cadêas serão seguras, limpas, bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes”.18 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, 1829, AMS, Câmara; AMS, Pareceres de Comissões. Os pareceres da comissão de 1829 encontram-se completos; o mesmo não ocorre com os de 1832, dos quais localizei grande parte. Quanto aos da comissão de 1833, tive acesso apenas a algumas páginas do relatório. A primeira comissão constituída em 1829 era composta pelos seguintes membros: Gervásio de Souza Vieira, João Duarte Silva Uziel, Antonio Pereira Rebouças, Francisco Manoel Gonçalves da Cunha, Francisco de Paula de Araujo

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mudanças nas cadeias da cidade também fazia parte desse projeto da nova mu-nicipalidade após a lei de 28 de outubro de 1828. As cadeias eram consideradas lugares insalubres e propícios à proliferação de doenças. Médicos, advogados, além dos engenheiros, estiveram presentes nas questões públicas durante o século XIX e, com a reforma prisional, não foi diferente.

Os pareceres dessas comissões de visita informam o estado das prisões religiosas, militares e civis de Salvador, na época em que as discussões sobre a reforma prisional começaram a tomar força na Bahia. Outra importante fonte de informação é a tese de doutoramento do médico João José Barboza d’Oliveira, pai do ilustre Rui Barbosa, sobre a higiene das cadeias, apresentada à Faculdade de Medicina de Salvador em 1843.19 O dr. Barboza visitou as prisões militares e civis de Salvador, alguns anos depois das comissões da Câmara, e registrou em sua tese as impressões de suas visitas.

prisão eclesiástica e cárceres das ordens religiosasAté o ano de 1832, existia em Salvador uma prisão do clero, conhecida

como Aljube, que foi construída, no século XVIII, por ordem do arcebispo José Botelho de Mattos.20 Localizado na Freguesia da Sé, na ladeira que levava o seu nome, seguindo em direção à ladeira da Praça, o Aljube servia exclusivamente

e Almeida e Manoel Maria do Amaral. A comissão de 1832 tinha como membros João Joaquim da Silva, Joaquim José da Rocha Bastos, Luis Tavares de Macedo e Francisco da Silva Azevedo da Roxa Vieira. A comissão de 1833 era constituída por Manoel Maurício Rebouças, Lucio Pereira de Azevedo, Athanazio da Silva Couto, João Antonio Monteiro e João Alexandre de Andrade Silva e Freitas. A composição desta última comissão consta na obra de OLIVEIRA, João José Barboza de. As prisões do paiz, o systema penitencial, ou hygiene penal. These apresentada, e sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia, em 11 de dezembro de 1843. Bahia: Typ. de L. A. Portella e Companhia, 1843. Sobre a implantação dos cemitérios em Salvador, ver REIS, 1991, op. cit. Sobre Manoel Maurício Rebouças, ver, na mesma obra p. 255-256.19 OLIVEIRA, op. cit.20 Aljube, do árabe al-jub, significa cisterna, poço. Prisão de padres, cárcere de foro eclesiástico, caverna, gruta. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 71. É interessante a atribuição do nome Aljube para uma cadeia religiosa, se atentarmos para a interpretação de Thereza Baumann: “[...] o poço tem um peso simbólico expressivo, representa uma via de comunicação entre a terra e o céu e, inclusive, com a vida do além-túmulo [...]. Entre os hebreus é o signo da abundância, a fonte da vida [...]. Mas, ao mesmo tempo, é a imagem do abismo, das profundezas [...]”. BAUMANN, Thereza de B. Da iconografia, da loucura, da história. Revista de História Regional. Ponta Grossa: UFPG, vol. 2, nº 1, 1997, p. 16. A prisão do Aljube também existia em outras províncias como o Rio de Janeiro e Sergipe com data de fundação anterior à de Salvador. Em São Paulo, em 1818, foi reservado um cômodo da cadeia da Relação, que recebeu o nome de Aljube, para servir de prisão aos religiosos. SALLA, op. cit., p. 25.

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para os diocesanos e os cristãos leigos que cometiam delitos relacionados com a Igreja como, por exemplo, concubinato de leigos e clérigos, causas matrimo-niais e testamentárias, heresia etc. Ao vigário geral, um dos auxiliares diretos do arcebispo, cabia “administrar a justiça, julgando delitos e aplicando penas” de acordo com as disposições do Regimento do Auditório Eclesiástico, datado de 1704.21 Em 1829, a comissão de visita da Câmara Municipal constatou que as celas do Aljube ficavam no andar de cima, enquanto que o térreo servia de residência, situação que, segundo os membros da comissão, poderia facilitar a fuga de algum preso, sem contar que a fumaça da cozinha da casa impregnava as celas. Uma nova inspeção em 1832 o considerou uma boa prisão, porém recomendou que as privadas fossem retiradas de dentro das celas.22

Após a Independência do Brasil, a estrutura do poder repressor da Igreja foi abalada, dando início a muitas mudanças. Uma delas foi anunciada pela Portaria de 21 de maio de 1833, expedida pelo arcebispo da Bahia, d. Romualdo Antô-nio de Seixas. O documento dizia que “todas as penas eclesiásticas de prisão, multa ou degredo estavam abolidas”, permanecendo sob a jurisdição da Igreja somente as questões espirituais. Tal medida tornou desnecessária a manutenção do Aljube que foi em seguida desativado.23 Naquele mesmo ano, o clero alugou o prédio para o governo da província que, após realizar algumas adaptações, o transformou numa cadeia pública que também recebeu o nome de Aljube. Retomarei a discussão do Aljube adiante, quando tratar das cadeias civis.

Existiam também os cárceres das ordens religiosas que serviam para punir os religiosos que infringiam as regras internas dos conventos. Neste caso, eram os seus dirigentes quem aplicavam as punições. As ordens religiosas masculinas foram visitadas pelas comissões da Câmara de 1829 e 1832 e obtiveram boa avaliação. Contudo, o governo da Igreja não permitiu que fossem visitadas as or-dens femininas. Ao ter o acesso negado, a comissão se posicionou dizendo “não estar de sua parte remover obstáculos que lhe oppoz o Governo Ecclesiástico”.24 Por fim, concluíram o relatório com um balanço positivo das prisões da Igreja.

21 SILVA, Cândido da Costa e Silva. Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia. Sal-vador: SCT, EDUFBA, 2000, p. 125, 180, passim.22 Atas e mais objetos da comissão de visitas, op. cit., fl. 16rº e Pareceres de comissões, op. cit.23 SILVA, 2000, op. cit., p. 132.24 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, op. cit., fl. 16v.

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prisões militaresSalvador contava com muitas prisões militares, até mesmo pelas inúmeras

fortalezas existentes na cidade. Sendo assim, citarei aquelas que tiveram maior significado nos acontecimentos do século XIX. Eram nas fortalezas que se lo-calizavam os terríveis calabouços, úmidos, sem iluminação e pouco arejados.25 No forte de São Pedro, a comissão de 1829 encontrou dois calabouços que foram considerados péssimos. Em 1843, o dr. Barboza disse ter encontrado na mesma fortaleza, três celas “horrendamente escuras” e “muito calorosas” e todas ocupadas. Uma delas, com 11 soldados “mal vestidos, de camisa e calças sujas, num banho de suor”, era muito baixa, com aproximadamente 5,5 metros de largura e 11 de comprimento. Quase sem iluminação, tinha o chão sujo e o ar impregnado pela “sentina asquerosa e putrida”.26

Sobre o forte do Mar, a comissão de 1829 constatou que as celas ficavam nas abóbadas da fortaleza. Com exceção de cinco celas, destinadas aos militares e consideradas muito quentes, todas as outras eram escuras, com pouco ar e extremamente úmidas.27 Em 1832, a outra comissão declarou que as celas da fortaleza eram “destruidoras das vidas dos encarcerados”.28 Rodeada pelo mar, esta fortaleza foi palco de importantes acontecimentos durante a década de 1830. Em 1832, as autoridades da Corte mandaram de volta à Bahia Cipriano Barata, um preso político indesejado, principalmente pelos métodos que utilizava para resistir às arbitrariedades das autoridades da Corte. Cipriano causava incômodo porque redigia seus jornais de dentro da prisão, aproveitando para denunciar os abusos do poder. Conforme escreve Marco Morel, os tribunais do Rio de Janeiro se viram incompetentes para julgar Cipriano Barata, decidindo por sua transferência para a Bahia, onde foi condenado a dez anos de prisão com trabalho, pena que teria sido comutada para 16 anos de prisão simples.

Em agosto de 1832, Cipriano estava preso no forte do Mar, onde se juntou a outros presos políticos como o sargento-mor Sergio José Veloso, comandante do forte do Mar, o tenente da Marinha Caetano Alvares de Sousa, comandante de um dos navios-prisões, entre outros. Naqueles dias de agosto, Cipriano escolheu

25 Para Salvador, a documentação sugere a existência de calabouços somente nas fortalezas e nos quartéis que, pelo visto, nem sempre ficavam no subterrâneo. Situação diferente do Rio de Janeiro e São Paulo, que faziam uso de calabouços para escravos até mesmo nas penitenciárias.26 OLIVEIRA, op. cit., p. 25.27 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, op. cit., fls. 15-16.28 Pareceres de comissões, op. cit.

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a fortaleza e os companheiros de prisão para testemunharem a cerimônia do seu segundo casamento com Ana Joaquina de Oliveira Barata, de 47 anos, com quem já tinha cinco filhos.29 Os acontecimentos não pararam por aí. Em 1833, presos políticos, com a ajuda da guarnição da fortaleza do Mar, desencadearam a segun-da revolta federalista e Cipriano foi apontado como chefe do motim, embora não estivesse envolvido de fato no episódio.30 Entre as reivindicações dos federalistas estava a reforma do Código Criminal de 1830 e o fim dos navios-prisões, dos quais tratarei adiante.31 A fortaleza do Mar também era requisitada pelo chefe de polícia, quando a prioridade era a segurança. Em 1835, por exemplo, foram mandados para lá cerca de 120 africanos, entre escravos e libertos, implicados no levante dos malês.32 No ano de 1842, enquanto a cadeia da Relação passava por reformas, cerca de cinqüenta presos foram transferidos para a fortaleza do Mar e, segundo o chefe de polícia, ali eles estariam “em perfeita segurança”.33

29 Sobre este episódio e outros da vida de Cipriano Barata, ver MOREL, op. cit., p. 277-278.30 Ibid., p. 282-284.31 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 60.32 Sobre a revolta federalista e a prisão dos africanos ver ibid., p. 57-67 e p. 435.33 Chefe de polícia ao presidente da província, 02.09.1842, APEBa, Chefe de polícia, 1842, maço 2950.

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O Arsenal da Marinha administrava a prisão “dos galés”.34 O motivo de tal denominação se devia ao fato desta prisão abrigar os sentenciados a penas de galés, inclusive presos civis. Em 1829, a comissão da Câmara constatou que a prisão “dos galés” era razoável, embora pequena. No Arsenal também existiam celas reservadas para os oficiais e marinheiros estrangeiros, como, por exemplo, um “quartinho por baixo de uma escada” onde os marinheiros ingleses eram detidos a mando do seu cônsul. Segundo o dr. Barbosa, tal cômodo, que comportava apenas uma pessoa, era privado de ar e com buracos pelo chão em meio à imundície.35

Por último, os navios-prisões que eram administrados pelo Arsenal da Mari-nha e serviam de prisão para presos políticos e militares. Embora o dr. Barboza informe que a comissão da Câmara de 1833 esteve nessas embarcações, não localizei o parecer destas visitas.36 No entanto, outros documentos nos permi-tem conhecer um pouco sobre elas. A mais conhecida, e talvez a mais temida, era a presiganga: o navio-prisão que Cipriano Barata chamou de “idiondo ergastulo”.37 Além deste, outros apelidos foram atribuídos à embarcação, como “Touro de Pirilo”, “Retrato do Inferno” e “Cárcere Horrível da Inquisição”.38 Segundo João Reis, “o navio-prisão derivava seu nome das infames press gangs, grupos a soldo do Estado que na Inglaterra e suas colônias recrutavam marinheiros à força entre a população pobre!”.39 Consta que a presiganga da Bahia teria sido a antiga fragata Piranga, “de inestimáveis serviços prestados à causa da nossa independência, integrando a esquadra de Cochrane [...]”.40 Essa embarcação teria sido transformada em prisão em 1824. Além da Bahia,

34 Segundo o dr. Barboza, a prisão do Arsenal da Marinha foi fundada em 1592. OLIVEIRA, op. cit., p. 26. Não encontrei exatamente o ano da sua extinção; no entanto, ela aparece nas estatísticas dos relatórios de presidente da província até o ano de 1879, época em que abrigava 27 forçados. BAHIA. Relatório do chefe de polícia José Antonio Rocha Viana, p. 8, Falla com que abriu no dia 1.o de maio de 1879 a 2.a sessão da 22.a legislatura da Assembléia Legislativa Provincial da Bahia o exm. sr. dr. Antonio de Araujo de Aragão Bulcão. Bahia: Typ. do Diario da Bahia, 1879. 35 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, op. cit. fl. 26rº. 36 OLIVEIRA, op. cit., p. 23, nota 7.37 Jornal O Portacolo, 09.08.1832.38 SILVA, Alberto. A cidade de Salvador: aspectos seculares. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1971, p. 65. 39 REIS, 2003, op. cit., p. 60.40 SILVA, 1971, op. cit., p. 65.

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existiam presigangas nas províncias de Pernambuco, Pará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo.41

Preso na fortaleza do Mar, Cipriano Barata desafiou as autoridades baianas publicando, enquanto estava preso, em novembro de 1832, o jornal Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel General de Pirajá, mudada despoticamente para o Rio de Janeiro e de lá para o Forte do Mar da Bahia, donde generosa-mente brada Alerta! Como castigo, Cipriano foi transferido para a presigan-ga.42 Inconformado com a sua situação, ele redigiu um extenso requerimento ao ouvidor do Crime, Joaquim de Castro Mascarenhas, solicitando “para que sem demora, nem barulho de muita gente” ele fosse transferido para o forte do Barbalho ou do Mar. Segundo Barata, a “espelunca marítima de horrorosa carnificina” estava “podre”, fazendo com que ele e mais 200 presos corressem perigo de se afogarem “em qualquer furacão, que acometta a presiganga; a qual apezar dos tapumes de carvão pizado com sebo, e chapas de chumbo, e outros remedios, augmentou de repente, e dobrou as agoas e os perigos, e não promete segurança alguma”.43 Cipriano adoeceu e foi transferido para o hospital Militar. Ao se recuperar, foi mandado, novamente, para a fortaleza do Mar.44

Segundo um jornal da época, a presiganga era uma “casa de tormento escura, abafada, quente e imunda; tão imunda e tão quente que os presos tinham que se conservar de todo nus padecendo de enfermidades da pele, como chagas, sarnas e erisipelas, originadas não só pelo ar abafado e miasmas pestilentos que exala o antro, mas ainda pela transpiração de corpos, pois às vezes se contam ali 400 infelizes”. Esta seria a descrição do local onde ficava a maioria dos prisioneiros. Mas tinha ainda o porão da embarcação, reservado para os rebeldes. Era uma “caverna medonha e escura como a noite, permanecia constantemente com 30

41 Dissertação abreviada sobre a horrível masmorra chamada – Preziganga – existente no Rio de Janeiro, datada de 26 e maio de 1829, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lata 48, pasta 12. A autoria desse documento é atribuída a Cipriano Barata. Agradeço a Carlos Eugênio Líbano por disponibilizar cópia do mesmo. Luis Henrique Dias Tavares divulgou este documento em Ecos do porão, Nossa História. Rio de Janeiro: ano 1, nº 12, outubro, 2004, p. 70-74. Sobre a presiganga do Rio de Janeiro, ver ainda SOARES, op. cit., especialmente capítulo 4. A presiganga de São Paulo ficava na cidade portuária de Santos e serviu de prisão, em 1833, para Francisco José de Souza Soares de Andréa que governou a Bahia em 1845. WILDBERGER, Arnoldo. Os presidentes da província da Bahia, efetivos e interinos. Cidade do Salvador: Tipografia Benedi-tina, 1949, p. 273-288.42 MOREL, op. cit., p. 280-281.43 Jornal O Portacolo, 08.08.1832.44 MOREL, op. cit., p. 281.

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a 40 polegadas de água, habitada por uma infinidade de ratos e répteis imundos e venenosos”.45

Outros navios-prisões, embora não levassem o nome de presiganga, também flutuavam nas águas da baía de Todos os Santos. Em 1838, Daniel Roiz de Santa Anna estava preso na fragata Bahiana acusado de ter participado da rebelião que ficou conhecida como Sabinada.46 Em maio de 1838, João Carneiro da Silva Rego e o bacharel João Carneiro da Silva Rego filho estavam presos na corveta 7 de Abril. Eles solicitaram ao governo da província que os transferissem para a cadeia da Relação “ou qualquer outra prisão de terra, onde a lei encontra garantias, e onde os Supplicantes possão recorrer a suas familias [...] e aderir com facilidade meio honesto de subsistência, o que sem duvida não podem fazer onde se achão”.47 O documento não especifica o motivo que os levou para lá, mas, levando em consideração o período e o perfil da dupla, é possível que estivesse relacionado ao movimento da Sabinada. Na mesma corveta estava o sargento Manoel Sebastião de Santa Rita que agonizava devido ao castigo que sofrera de “cento e tantas pranxadas” por ter caluniado um português.48 Não encontrei a data exata da desativação dos navios-prisões, porém, em 1843, o dr. Barboza informou que eles já tinham sido extintos: “felizmente entre nós não ha actualmente esses vastos tumulos fluctuantes. [...]. Queira Deus que ja nunca mais o delirio das victorias civis, nem a sanha da vingança as ressuscite!”.49

Em 1829, época das visitas da primeira comissão da Câmara, a Relação era a única cadeia civil de Salvador. Fundada em 1660, essa cadeia funcionava no subsolo da Câmara Municipal.50 Segundo a comissão, a enxovia masculina era um “pavoroso abismo” onde existiam quase duzentos homens famintos, “cober-tos de nudez, e de miseria, mal alimentados pela Santa Casa da Misericordia.” Num espaço menor e com apenas dois corredores estreitos e em péssimas con-dições de higiene ficava a prisão das mulheres, onde estavam “simultaneamente confundidas as livres, as escravas, as criminosas e as apenas acusadas”.51

45 Jornal O Portacolo, 18.08.1832, apud SILVA, 1971, op. cit., p. 65-66.46 Sobre a Sabinada, ver, SOUZA, Paulo Cezar. A Sabinada: revolta separatista da Bahia (1837). São Paulo: Brasiliense, 1987.47 APEBa, Policia (assuntos), 1832-1841, maço 3109.48 Pranchada é o mesmo que levar golpe de espada ou sabre.49 OLIVEIRA, op. cit., p. 23. 50 Ibid., p. 19.51 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, op. cit., fls. 7v-8v. As medidas originais da enxovia dos homens são 48 pés de comprimento por 26 pés de largura, e as

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Bem próxima das celas do sótão ficava a sala de audiência dos juízes de fora. Em 22 de julho de 1835, alguns meses depois da revolta dos malês, época em que a repressão policial aos africanos era ainda mais violenta, quatro membros da Câmara escreveram ao presidente da província reclamando do carcereiro que castigava os escravos “nas horas das Sessões da Câmara”. Segundo os solicitantes, esta atitude era um “escândalo” e uma “falta de respeito”. Eles pediam que tais castigos fossem transferidos para algum lugar público como, por exemplo, o Campo da Pólvora, onde já existia “um poste”, ou então que o carcereiro açoitasse os escravos em outros horários, evitando assim as “perturba-ções que causam nos trabalhos”. Os escravos continuaram sendo castigados na cadeia, porém, em horários que não “atrapalhassem” as reuniões municipais.52 A proximidade entre os dirigentes da cidade e os presos se repetia em outras prisões da Casa de Câmara e Cadeia do país, como, por exemplo, a de São Paulo, onde as enxovias ficavam embaixo da sala dos juízes: “Os ‘homens bons’ e notáveis que conduziam a vida da cidade tinham a seus pés os criminosos e ao menos algumas vezes por mês, durante as reuniões da Câmara, conviviam muito proximamente com eles, seus ruídos, seus odores”.53

Com a reforma do Código do Processo Criminal, em 1841, as cadeias civis do Império ficaram obrigadas a seguir um regulamento que deveria ser elaborado pela polícia.54 A cadeia da Relação teve o seu implantado em 1843, e o mesmo estipulou que ela deveria ser destinada para infratores de condição livre e distribui os seus presos conforme consta no quadro 1.

distâncias dos corredores 6 pés de largura. Affonso Ruy, em obra que trata da história da Relação da Bahia, sequer mencionou a existência da cadeia. RUY, Affonso. A Relação da Bahia, contri-buição para a História judiciária do Brasil. 2ª edição. Salvador: Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, 1996.52 João Antunes de Azevedo Marques, Marechal Pereira Heitor de Macedo, Lucio Pereira d’Azevedo, Ignacio Accioli e Joaquim Galeão ao vice-presidente da província, 22.07.1835, APEBa, Correspondência recebida da Câmara de Salvador, 1834-1835, maço 1395.53 SALLA, op. cit., p. 25.54 A Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841; Regulamento para a cadeia da Relação da província da Bahia, 17.08.1843, APEBa, Mapa de presos, 1831-1849, maço 6269.

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Quadro 1 - plano de distribuição dos presos na cadeia da relação em 1843

Prisão Presos

Sala livre Para os simplesmente detidos

Sala do oratório Sentenciados

Sótão Simplesmente acusados

Sala fechada Pronunciados em geral

Enxovia dos homens Sentenciados a galés, prisão perpétua e pena de 6 a 20 anos

Entre-portas Libertos africanos em custódia e os pronunciados por crimes menos graves

Prisão das mulheres No 1º andar as pronunciadas e sentenciadas até penas de 6 anos. No 2º andar, sentenciadas acima de 6 anos

Fonte: Regulamento para a cadeia da Relação da província da Bahia, 17.08.1843, APEBa, Mapa de presos, 1831-1849, maço 6269.

Essas mudanças não aliviaram a situação dos presos que continuaram so-frendo privações de alimentos e vestimentas, além de serem maltratados pela superlotação das celas.55 Em 1844, por exemplo, a chamada “sala fechada”, destinada aos presos pronunciados, estava com uma superlotação de 51 homens. O carcereiro escolheu 10 deles, que estavam pronunciados por crime de morte, e os transferiu para a cela da enxovia que, segundo o regulamento, deveria ser exclusiva para sentenciados a pena de galés e outras sentenças com duração entre seis e 20 anos. Nota-se que a separação de presos pela natureza dos crimes, prevista na Constituição, não foi respeitada. A justificativa do carcereiro foi que “reos dessa natureza sempre forão ali conservados [na cela da enxovia]”.56 Os 10 presos transferidos para a enxovia pertenciam a outros termos da província e apenas um era escravo, o índio Felix da Costa, vindo de Ilhéus. Quanto aos que já estavam na enxovia antes da transferência, havia pelo menos cinco sentenciados a pena de galés: um africano liberto, um branco, dois pardos e um crioulo. Os dois primeiros, condenados por roubo de escravos e o restante, por crime de morte. Apenas o africano liberto, de nome Venâncio, era da capital.57

55 OLIVEIRA, op. cit., p. 19.56 Carcereiro Antonio Pereira de Almeida ao chefe de polícia, 13.05.1844, APEBa, Cadeias, 1831-1849, maço 6269.57 Ibid. Chefe de polícia João Joaquim da Silva ao presidente da província, aditamento ao ofício

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A transferência resultou em sérios transtornos para a administração da cadeia. Passadas duas semanas, uma fuga em massa dessa enxovia veio que-brar a rotina da Relação. Na madrugada do dia 6 de junho, alguém avisou ao comandante da guarda que havia um preso na rua, ao lado da cadeia. Imedia-tamente, o fugitivo foi detido e acabou confessando ter se evadido da enxovia com mais 30 companheiros. A proeza se deu pelo buraco de um cano existente dentro da cela e que estava tampado com uma pedra. Em poucas horas, outros 15 fugitivos foram capturados. O restante do grupo teve mais sorte, pelo menos temporariamente, pois o tal cano tinha dois caminhos, um que desembocava em frente ao local onde o preso foi flagrado, e o outro na rua das Verônicas e na ladeira da Praça, onde a polícia encontrou um buraco aberto, indicando a passagem do restante do grupo. A Cavalaria da 1ª Linha e a Artilharia Nacional se uniram com a Guarda Principal para perseguir os fugitivos.58 Entre eles estava o escravo Felix da Costa, que mencionei há pouco, o qual foi logo capturado pelo subdelegado da Conceição da Praia, juntamente com outro companheiro de fuga.59 O comandante não deu trégua e, dois dias depois, mais dois presos foram capturados.60 A última notícia que tive foi que, em 11 de junho, conti-nuavam fugidos 11 presos.61

Dentre as formas de resistência prisional, a fuga era a que mais desafiava a administração das cadeias; daí o empenho do comandante em capturar os fugi-tivos. A desativação da cadeia da Relação já fazia parte dos planos do governo, mas esse episódio parece ter contribuído para que ela fosse definitivamente fechada naquele mesmo ano. Em 1845, seus presos e suas atribuições foram transferidos para o forte do Barbalho que então passou a funcionar como cadeia civil até o ano de 1864.62

informando a fuga, 07.06.1845, APEBa, Correspondência recebida da polícia, 1845, maço 3139-3. No primeiro ofício Felix é classificado como pardo e escravo e no segundo como índio e escravo.58 Chefe de polícia João Joaquim da Silva ao presidente da província, 07.06.1845, APEBa, Cor-respondência recebida da polícia, 1845, maço 3139-3.59 Chefe de polícia João Joaquim da Silva ao presidente da província, aditamento ao ofício infor-mando a fuga, 07.06.1845, Correspondência recebida da polícia, 1845, maço 3139-3.60 Chefe de polícia João Joaquim da Silva ao presidente da província, 09.06.1845, APEBa, Cor-respondência recebida da polícia, 1845, maço 3139-3.61 Chefe de polícia João Joaquim da Silva ao presidente da província, 11.06.1845, APEBa, Cor-respondência recebida da polícia, 1845, maço 3139-3.62 Carcereiro João Caetano Martins ao chefe de polícia, 20.07.1863, APEBa, Relação de presos, 1862-1867, maço 6272; BAHIA. Falla que recitou o presidente da provincia da Bahia, o conse-

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Um ano depois da cadeia do Barbalho substituir a Relação, representantes do Conselho de Salubridade da Província foram examiná-la e o resultado não foi dos melhores. Todas as dez abóbodas que serviam de celas mantinham no mesmo espaço tarimbas e vasos para água e defecções. Além disso, ali estavam “promiscuamente o assassino, o ladrão, o pronunciado, o sentenciado, o detido em custodia, o infractor das disposições policiais, o depositario etc., e com isto, a excepção de segurança, observa-se nellas tudo quanto exprime a idea negativa do artigo 179 parágrafo 21 da Constituição”.63

Outra cadeia civil que merece destaque é a do Aljube que funcionou de 1833 a 1861. Conforme já vimos, o governo da província realizou reformas no prédio antes de inaugurá-lo como cadeia pública. Uma comissão da Câmara reprovou a reforma, alegando que os engenheiros responsáveis haviam desrespeitado a Constituição ao imitarem “servilmente o mesmo plano das antigas Prisões e mesmo para pior”.64 Não ficou claro no que implicava a reprovação, uma vez que a documentação não informa que o Aljube tivesse sido interditado. Ao contrário, ele funcionou com todo vigor por mais de três décadas. Em 1842, foi implantado o primeiro regulamento que o destinou para abrigar os escravos que cometiam infrações policiais. A documentação policial confirma que, durante a existência do Aljube, os escravos eram, preferencialmente, mandados para lá.

lheiro Antonio Ignacio Azevedo, abertura da Assembléa Legislativa da mesma provincia em 2 de fevereiro de 1847. Bahia: Typ. do Guaycurú de D. Guedes Cabral, 1847, p. 41. 63 Jornal O Crepusculo, Conselho de Salubridade Pública. Parecer sobre as prisões da fortaleza do Barbalho, ano de 1846, vol. 3, n. 4, p. 51-52.64 Pareceres de comissões, op. cit.

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Quadro 2 – Distribuição dos presos na cadeia do Aljube em 1842

Prisão Divisão de presos Descrição das celas

nº 1 Escravos pronunciados e sentenciados 9 x 6 m de largura e chão de tijolo

nº 2 Escravos depositados ou que se encontravam fugidos 7, 5 x 6 m de largura, arejada e caiada

nº 3 Escravas compreendidas nos dois itens acima 7 x 6 de largura, chão de tijolos e pouco arejada

nº 4 Uso extraordinário Escura, suja, úmida e de tijolo

Fontes: “Regulamento para a Cadeia da Aljube”, APEBa, Mapa de presos, 1831-1849, maço 6269; Oliveira, op. cit., p. 22-23.

A cela nº 4, de “uso extraordinário”, era destinada para pessoas detidas em flagrante durante a noite. Se o detido fosse de condição livre, deveria ser transferido, no dia seguinte, para a cadeia da Relação. Na maioria das vezes, os regulamentos não retratavam a realidade; era o cotidiano que os adequava ao funcionamento da instituição. Com o passar dos anos, o aumento da população livre da cidade diversificou o perfil dos presos do Aljube, embora a predomi-nância continuasse sendo de escravos.65 No dia 31 de outubro de 1861, o Aljube foi desativado e, a partir de então, a cadeia da Correção passou a ser o principal local de detenção e castigos de escravos.

Ao visitar o forte de Santo Antônio Além do Carmo, localizado na freguesia que leva o seu nome, a comissão de 1829 constatou que o local estava entre-gue aos cuidados de um comandante militar e sem “prestar utilidade publica”. A comissão observou que o local era “proporcionado para uma boa Casa de Correção”.66 Tal recomendação agradou aos vereadores da Câmara que, após algumas reformas, o transformaram numa cadeia pública que passou a funcionar em 1832. A intenção inicial da Câmara era que a fortaleza servisse “interinamen-

65 Relação dos prezos existentes nesta cadeia do Aljube athe 30 de junho de 1854, APEBa, Ca-deias, 1850-1854, maço 6270.66 Atas e mais objetos da comissão de visita das prisões civis e militares, op. cit., fl. 14v.

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te” de penitenciária e abrigasse os sentenciados à pena de prisão com trabalho, atendendo assim a uma das exigências do Código Criminal de 1830.67 Essa idéia não se concretizou e a Casa de Correção funcionou como cadeia ordinária – daí a denominação de cadeia da Correção, como ficou conhecida na documentação policial.68 Nas décadas de 1830 e 1840, o seu movimento ainda era tímido em relação às outras cadeias da cidade. Com a desativação do Aljube, em 1861, o movimento da Correção aumentou consideravelmente. Foi também neste ano que a primeira penitenciária da província, a Casa de Prisão com Trabalho, iniciou suas atividades e passou a abrigar grande parte dos sentenciados da província. Logo depois, em 1864, a cadeia do Barbalho também foi desativada, reduzindo o complexo prisional de Salvador à cadeia de Correção e à Casa de Prisão com Trabalho.

Uma questão que não devemos deixar de abordar se refere à população carcerária. Nos relatórios oficiais, como os das comissões da Câmara e do Con-selho de Salubridade Pública, como também na tese do dr. Barboza, percebe-se a ausência das reivindicações dos presos que, com certeza, não ficaram passivos durante as visitas. Infelizmente, esta é uma característica da documentação oficial. Contudo, existem outros tipos de documentos que revelam de forma mais explícita a participação dos presos nos seus próprios mecanismos de dominação pelo Estado.69 Independentemente do tipo de instituição, cadeia ou penitenciária, os presos estavam longe de aceitar passivamente o tratamento prisional sem protestar contra a injustiça, a violência, a má alimentação, a falta de tratamento médico, a privação das visitas etc. A escrita era um meio muito utilizado por eles. Através de cartas individuais ou coletivas, os presos faziam com que as suas reivindicações chegassem às autoridades e, sem dúvida, este era um meio eficaz de tornar público o que, de outro modo, se encerraria dentro dos muros da prisão. Porém, existiam outros meios de protestos. Na medida em

67 O artigo 46 do Código Criminal estipulou que a pena de prisão com trabalho deveria ser cum-prida dentro das prisões.68 De “cadeia” também eram chamadas o Aljube, a Relação e o Barbalho. Já a Casa de Prisão com Trabalho era denominada de prisão ou penitenciária, nunca de cadeia. Nas primeiras décadas do século XX, a Casa de Correção passou a chamar-se Casa de Detenção. Quanto à Casa de Corre-ção do Santo Antonio servir, interinamente, para condenados a pena de prisão com trabalho, ver APEBa, Câmara de Salvador, 1845-1846, maço 1399.69 Sobre a discussão da participação das classes menos favorecidas nos processos de dominação pelo Estado ver IGNATIEFF, Michael. Instituições totais e classes trabalhadoras: um balanço crítico. Revista Brasileira de História. São Paulo, nº 14, 1987, p. 193.

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que as tentativas de negociação se esgotavam ou se, por algum motivo, essa negociação nem tivesse existido, os presos reagiam de outras formas, através das fugas, das revoltas, das brigas, da insubordinação, enfim, de confrontos diretos que, normalmente, resultavam em represálias da administração ou do próprio chefe de polícia. Neste caso, as punições vinham em forma de violên-cia corporal, reclusão em solitárias, privação das visitas etc. Não é por acaso que a documentação demonstra a preferência dos presos por meios indiretos de enfrentamento, como o uso da escrita, das simulações de doenças, do “bom comportamento”, ou de outros tipos de negociações.70

A vida diária da prisão era construída a partir de relações complexas em que os presos absorviam as normas oficiais, reinterpretavam-nas e as utilizavam a seu favor. Sendo assim, não devemos atribuir somente às classes dirigentes a tentativa de melhorar as prisões. Os presos lutaram contra o sistema opressor, sendo eles os principais responsáveis para que os regulamentos das prisões não fossem seguidos na sua totalidade. Dessa maneira, eles provocavam um clima de desordem nas cadeias que, de certo modo, também estimulou o governo a melhorar o aparelho prisional, até mesmo como forma de legitimação do poder. Seria um equívoco reducionista acreditar que a lei representa apenas o poder da classe dominante. Se assim fosse não seria necessário o historiador estudá-la, pois as questões já estariam resolvidas.71

Procurei até agora apresentar a organização do sistema prisional entre os anos de 1829 e início da década de 1860, período em que, paralelamente, os debates e a construção da Casa de Prisão com Trabalho estavam também acon-tecendo. Tal contextualização é imprescindível para entendermos, de fato, como se deu a reforma prisional baiana que não se resumiu apenas à construção de uma penitenciária. Contudo, acredito ser pertinente contextualizar também a legislação brasileira, bem como os modelos estrangeiros de sistema penitenciário para, finalmente, falarmos da implantação da Casa de Prisão com Trabalho.

70 Sobre resistência de presos e outras questões relativas à comunidade prisional, ver AGUIRRE, Carlos. The criminals of Lima and their worlds: the prison experience, 1850-1935. Durham: Duke University Press, 2005.71 Ver a este respeito THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 358-359.

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A legislação e a reforma prisionalDiferentemente do que muitos acreditam, a reforma prisional no Brasil não

teve início com a Constituição do Império em 1824. Alguns acontecimentos anteriores indicam que esse movimento começou até mesmo antes da indepen-dência do Brasil. Em 1821, Cipriano Barata foi eleito deputado em Salvador e, ao lado de outros deputados brasileiros, seguiu para a Europa onde atuou como relator da comissão sobre os negócios do Brasil nas Cortes de Lisboa. Entre os seus projetos, um deles, apresentado na sessão de 7 de fevereiro de 1822, reivindicava mudanças no aparelho prisional do Brasil. No seu pronunciamento, pediu que a prisão do forte de São Pedro e a “infernal masmorra” do forte do Mar fossem interditadas e os objetos de torturas destruídos. Solicitou que essa ordem fosse imediatamente enviada para a Bahia de Todos os Santos e para o resto do Brasil onde existissem prisões deste tipo.72 Como vimos anteriormente, Cipriano Barata foi um grande conhecedor dos cárceres coloniais. Em 1823, descreveu, no jornal Sentinela da Liberdade, a terrível experiência que viveu nas masmorras das fortalezas. Citou as torturas, os gritos de dor dos prisionei-ros, a convivência com ratos e insetos e o reaproveitamento das “roupas dos enforcados servindo como fronha”.73

Holloway, no seu estudo sobre a polícia no Rio de Janeiro, também desta-cou esse início da década de 1820 como sendo importante para as mudanças que estavam por acontecer: “em maio de 1821, menos de um mês depois de assumir a regência, d. Pedro deu o primeiro passo para regulamentar as práticas policiais e judiciais”.74 Outro autor que também destacou esses acontecimentos foi Edmundo Campos Coelho, informando que os constituintes brasileiros enviaram uma comissão a d. Pedro para que este aprovasse medidas contra o caos da jurisprudência portuguesa na colônia com relação à administração da Justiça. Dentre essas medidas estava aquela que Holloway considerou como um primeiro passo rumo à reforma prisional e criminal, ou seja, a aprovação da Lei de 1821 que garantia os direitos individuais contra a arbitrariedade dos juízes criminais no Brasil.75

72 MOREL, op. cit., p. 125.73 Jornal Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco n° 17, 1823, apud MOREL, op. cit., p. 82.74 HOLLOWAY, op. cit., p. 56. 75 Eis algumas das medidas aprovadas por d. Pedro na Carta da Lei de 23 de maio de 1821: “1°) Que desde sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brasil possa jamais ser presa sem ordem por escrito do juiz ou magistratura criminal do território exceto somente o caso de flagrante delito,

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A Constituição do Império, de 1824, e o Código Criminal, de 1830, pouco acrescentaram aos direitos individuais, além daqueles já estabelecidos nas medidas de 1821. O mesmo ocorreu com relação às cadeias. A Constituição apenas incorporou o que já havia sido determinado pela referida lei, ou seja, a construção de cadeias mais arejadas, limpas, com várias celas, visando separar os réus conforme a natureza de seus crimes. Ficou também estabelecido que fosse elaborado o quanto antes um Código Criminal que viesse a substituir o Livro V das Ordenações Filipinas. A Constituição aboliu as penas corporais, “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”. Essas proibições não se aplicaram todas elas aos escravos, pois o Código Criminal de 1830 reservou para eles o artigo 60, que previa punição com açoites e, em alguns casos, galés e pena de morte: “Art. 60. Si o réo for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a traze-lo com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz designar”.76

Provavelmente referindo-se a este artigo, um reformador francês fez o se-guinte comentário: “A pena de morte, e os açoites, eis ahi todo o código penal dos escravos”.77 A desigualdade da legislação criminal acentuou-se ainda mais com o passar dos anos. Por exemplo, a Lei Imperial, de 10 de junho de 1835,

em que qualquer do povo pode prender o delinquente. 2°) Que nenhum juiz ou magistrado cri-minal possa expedir ordem de prisão sem proceder culpa formada por inquirição sumária de três testemunhas, duas das quais jurem contestes, assim o fato em lei expressa seja declarado culposo, como a designação individual do culpado [...]. 3°) Que quando se acharem presos os que assim forem indiciados criminosos, se lhes faça imediatamente e sucessivamente o processo, que deve findar dentro de quarenta e oito horas peremptórias, improrrogáveis, e contadas no momento da prisão [...]. 4°) Que em caso nenhum, possa alguém ser lançado em segredo ou masmorra estreita, escura, ou infecta, pois a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca as adoecer e fla-gelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final; entendendo-se, todavia, que os juízes e magistrados criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinquentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados ou sofrendo qualquer espécie de tormento [...]”.COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 155-157.76 FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit., p. 48.77 Systema penitenciario, Relatório, Feito em nome da commissão encarregada, pelo Exellentis-simo senhor Presidente da Provincia, de examinar as questões relativas a Casa de Prisão com Trabalho, da Bahia. Salvador: Typographia de Galdino Joze Bizerra, e Companhia, 1847, p. 51. Biblioteca do Mosteiro de São Bento (doravante BMSB), obras raras. Agradeço ao professor João Reis pela localização deste documento.

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previa uma série de punições agravantes para delitos cometidos por escravos, tirando-lhes o direito dos recursos processuais ordinários. Se o escravo matas-se ou ferisse gravemente o seu senhor, o administrador, o feitor ou qualquer pessoa de suas famílias, ele seria condenado à morte sem direito a apelação. A mesma pena era aplicada aos cabeças de insurreição, mas, neste caso, era possível recorrer da sentença. O escravo seria punido com açoites em caso de ferimentos leves, e o número de açoites seria relativo ao grau da agressão.78 Essa lei significou mais uma das muitas medidas tomadas pelas autoridades que temiam a repetição de episódios como a rebelião baiana de 1835, conhecida como revolta dos malês.79 Diferente da Constituição, a legislação criminal não se acanhou em legalizar o tratamento desigual da Justiça perante o escravo.

De um modo geral, as penas estabelecidas pelo novo Código eram de morte, galés, prisão simples, prisão com trabalho, banimento, degredo, desterro para dentro do país, multa, suspensão ou perda de emprego, no caso de funcionários públicos, e açoites para os escravos. Para a maioria dos delitos prevaleceu a pena de prisão com trabalho que deveria ser cumprida em prisões especialmente destinadas para esse fim. Porém, como já mencionado, o artigo 60 fazia com que a pena de prisão com trabalho não fosse aplicada aos escravos, para que fossem preservados interesses dos senhores. As prisões especialmente destinadas para o cumprimento das penas de prisão com trabalho de que trata o Código Criminal eram as penitenciárias, chamadas de Casa de Correção e Casa de Prisão com Trabalho. O Código nada estabeleceu sobre as regras de funcionamento dessas instituições; somente com a reforma do Código de Processo Criminal, em 1841, estas questões ficaram mais definidas.80 De qualquer forma, a construção das penitenciárias foi o principal símbolo da reforma prisional brasileira.

Em 1833, o ministro da Justiça, Honório Hermeto Carneiro Leão, informava sobre o andamento das construções das casas de correção no Brasil: “Não exis-

78 BRASIL. Lei de 10 de junho de 1835, FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit., p. 321. Ver também os Avisos complementares a essa lei que ajustavam os seus artigos de acordo com os casos que iam surgindo e até mesmo tentavam enquadrar certos tipos de delitos dentro desta lei. Por exemplo: “Tendo-se dado em S. Paulo o facto de uns escravos matarem á sua senhora, que por escriptura publica lhes havia dado a liberdade para gozarem depois da morte della, o Trib. da Relação dessa província por Acc. de 24 de Junho de 1874, App. 18, decidio que havião os réos incorrido no art 1º da Lei de 10 de Junho de 1835, [assassinato do senhor] visto que erão de condição escrava quando praticarão o crime de que forão accusados”. FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit., p. 321.79 Sobre o levante dos malês, ver REIS, 2003, op. cit., p. 511.80 A Lei Imperial nº 261, de 3 de dezembro de 1841, reformou o Código do Processo Criminal e foi complementada pelos regulamentos nºs 120, 122 e 147 de 1842.

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tem ainda no Império Casas destinadas para prisão com trabalho; verdade he que na Lei do orçamento do corrente ano financeiro forão decretadas quantias para esse fim; não estou porem informado da aplicação, que nas Províncias se tem dado a essas quantias”.81 A lei do orçamento a que se referiu o ministro era a lei imperial orçamentária de 15 de novembro de 1831 que disponibili-zou verbas para a construção de penitenciárias em todo o Império. Para isso, as províncias deveriam fazer uso do dinheiro entre o mês de julho de 1832 e junho de 1833.82A Bahia aplicou a sua verba em abril de 1833, dando início à construção da Casa de Prisão com Trabalho.

Não foram todas as províncias que construíram casas de correção. Algumas adaptaram oficinas de ofício nas cadeias já existentes, enquanto outras cons-truíram prédios novos. A província do Rio de Janeiro iniciou a construção da sua Casa de Correção em 1834, inaugurando-a em 1850; a província de São Paulo deu início a sua obra em 1838 e, no ano de 1852, começou a receber presos. Já a província do Rio Grande do Sul construiu oficinas na cadeia civil da capital ou Cadeia de Justiça, como também era chamada, e somente a partir de 1896 recebeu oficialmente a denominação de Casa de Correção. A Bahia iniciou a sua obra em 1833 e deu início às atividades em 1861, inaugurando-a oficialmente em 1863.83

Diferentemente das outras províncias, a Bahia chamou oficialmente a sua instituição penitenciária de Casa de Prisão com Trabalho, embora a denomi-nação Casa de Correção fosse utilizada pelos engenheiros além de ser citada em almanaques da época como, por exemplo, o de 1845.84 Provavelmente, a escolha do nome oficial fosse devida ao fato da lei orçamentária de 1831, já citada anteriormente, especificar que a verba seria destinada à construção de

81 BRASIL. Relatório da Repartição dos negócios da justiça apresentado a Assembléia Legislativa na seção ordinária de 1833 pelo respectivo ministro e secretário de Estado Honório Hermeto Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1833.82 BRASIL. Lei de 15 de novembro de 1831, Orça a receita e fixa a despeza para o ano financeiro de 1832-1833. Título II, capítulo 3, artigo 28, § 11. Diario Oficial do Estado da Bahia, Edição Especial do Centenário, 1923, p. 515-517.83 Sobre o Rio de Janeiro, ver PESSOA, Gláucia Tomaz de Aquino. Trabalho e resistência na penitenciária da Corte, 1850-1876. Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2000; para São Paulo, ver SALLA, op. cit., p. 46; sobre Porto Alegre, ver PAIVA, Helena Marisa Vianna. A Casa de Correção de Porto Alegre, 1889-1898. Dissertação de mestrado em História, Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002, p. 5, 59.84 Almanaque civil político e comercial da Cidade da Bahia para o ano de 1845. Edição fac-similar, Salvador: Fundação Cultural, 1998, p. 255.

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uma “Casa de Prisão com Trabalho”, sugerindo assim o nome para o então presidente da província. Uma comissão de estudiosos que examinou as ques-tões penitenciárias da Bahia em 1847 atribuiu a esta mesma lei o motivo da escolha do nome de Casa de Prisão com Trabalho. Outra possibilidade seria de já existir na cidade uma cadeia comum chamada Casa de Correção, localizada no forte Santo Antônio Além do Carmo, não cabendo assim atribuir o mesmo nome para a penitenciária.85

O novo Código Criminal, conforme observou Holloway, “especificava princípios estabelecidos pela Constituição de 1824, concretizando assim um dos principais objetivos dos reformadores liberais”; porém, a realidade do aparelho da Justiça não dava condições de atender à legislação,86 a começar pela falta de instituições para o cumprimento da pena de prisão com trabalho. Neste caso, quando o preso era condenado a esta pena e na província não existisse uma casa de correção, passava a vigorar o artigo 49 do Código Criminal que tinha a seguin-te redação: “enquanto se não estabelecerem as prisões com as commodidades e arranjos necessarios para o trabalho dos reos, as penas de prisão com trabalho serão substituídas pelas de prisão simples, accrescentando-se em tal caso a esta mais a sexta parte do tempo por que aquellas deverião impôr-se”.87

A nova legislação criminal gerou muita polêmica. O ministro da Justiça, Carneiro Leão, por exemplo, posicionou-se contra a pena de prisão com traba-lho: “O Código Criminal não faz quase nenhum uso das penas de morte, galés, degredo, e desterro; a maior parte dos delitos tem a pena de prisão com trabalho, e entretanto não existe no Império huma só Casa para esse fim!!”.88 O ministro também reprovou o artigo 49, citado acima, justificando que os condenados iriam superlotar as cadeias, resultando em risco para a manutenção da ordem interna, além de fazer com que presos condenados permanecessem misturados com presos não condenados. Propôs ainda que o Código Criminal substituísse a pena de prisão com trabalho por outro tipo de pena, como degredo, galés e de morte.

Para o ministro, a eficácia das instituições penitenciárias dos Estados Unidos e da Europa estava muito distante da realidade do Brasil. Ele era a favor que se fizesse mais uso da pena de degredo, porém aplicada de forma diferente daquela

85 Systema penitenciario, op. cit., p. 55. 86 HOLLOWAY, op. cit., p. 67.87 FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit., p. 36-37.88 BRASIL. Relatório da Repartição dos negócios da justiça apresentado a Assembléia Legislativa na seção ordinária de 1833, op. cit., p. 29.

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prevista no Código Criminal. Sua idéia era criar colônias agrícolas para os de-gredados trabalharem na agricultura “debaixo de uma rigorosa administração”. Ainda, segundo o ministro, esse tipo de colônia estaria dando ótimos resultados na Bélgica e na Holanda: “Ahi, alem das Colônias agrícolas forçadas para onde são enviados os condemnados, outras se instituirão, onde são recebidos volun-tariamente os indivíduos, que sem esse asilo se entregarião á mendicidade, e á vadiação nas grandes Cidades [...]”.89 Este era um pensamento comum entre os políticos daquela época, que acreditavam que as colônias agrícolas solucio-nariam o problema da mendicância nas cidades.90 As sugestões do ministro de alterar o Código não foram atendidas; tampouco o sistema de colônias agrícolas obteve êxito no Império.

Como vimos, o Brasil independente continuou escravista e aristocrático, o que significa dizer que as instituições e todo o processo de construção de um novo Estado nacional precisaram se adaptar a essa realidade social, política e econômica. Conforme observou Salvatore, a “brutalidade e os espetáculos sangrentos teriam sido eliminados apenas para o homem livre, continuando para os escravos”.91 Sendo assim, a nova legislação brasileira, inspirada nas idéias liberais, foi estrategicamente elaborada pelos legisladores visando atender a essa demanda. Especificamente falando da reforma prisional, esta pretendia organizar o complexo carcerário a fim de proporcionar condições para que as penas pre-vistas no Código Criminal pudessem ser efetivamente cumpridas, sem que leis constitucionais fossem violadas. Tão importante quanto construir penitenciárias para o cumprimento da pena de prisão com trabalho, era também organizar as cadeias para receber os sentenciados às penas de galés e de açoites – neste caso, me refiro aos escravos. Contudo, veremos mais adiante as dificuldades que os reformadores baianos encontraram para adaptar a Casa de Prisão com Trabalho à legislação criminal brasileira e especificamente ao contexto baiano.

89 Ibid., p. 30-31.90 FRAGA FILHO, op. cit., p. 169-178. Neste capítulo o autor aborda a fundação do Asilo de Mendicidade de Salvador.91 SALVATORE, Ricardo, Penitentiares, visions of class, and export economies. In: SALVATORE, Ricardo e AGUIRRE, Carlos (orgs.). The birth of the penitentiary in Latin America: Essays on criminology, prison reform, and social control, 1830-1940. Austin: University of Texas Press, 1996, p. 200.

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os modelos penitenciários estrangeirosNa Bahia oitocentista quase nada se produzia intelectualmente sem a

influência das idéias estrangeiras, as quais, porém, sofriam adaptação à rea-lidade local. Assim ocorreu com a reforma prisional, quando o Brasil aderiu ao movimento de modernização das prisões, que teve início na Inglaterra e nos Estados Unidos no final do século XVIII.92 As execuções e as torturas em praças públicas, utilizadas para atemorizar quem estivesse planejando novos crimes, foram gradativamente abandonadas pelos países do Ocidente, entrando em cena a penalidade moderna que privava o criminoso do seu bem maior – a liberdade – internando-o numa instituição construída especificamente para recuperá-lo, que recebeu o nome de penitenciária. O seu funcionamento era regido por normas que seriam aplicadas de acordo com o modelo penitenciário escolhido que utilizava elementos como o trabalho, a religião, a disciplina, o uso de uniformes e, sobretudo, o isolamento como método de punição e recu-peração do condenado. Dessa forma, esperava-se criar um “novo homem” que seria devolvido à sociedade com todos os atributos necessários à convivência social, principalmente para o trabalho.

Dois sistemas rivais norte-americanos – Auburn e Pensilvânia – dividiram reformadores de várias partes do mundo. Muitos países enviaram representan-tes para conhecer as experiências norte-americanas, no intuito de adotá-las. Essas visitas resultaram em relatórios que se transformaram em valiosas fontes históricas. Entre os mais conhecidos estão os escritos dos franceses Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont.93 Eles eram defensores do sistema penitenciário conhecido como Pensilvânia, que previa o isolamento contínuo do condenado, ou seja, todas as suas atividades deveriam ser realizadas em completa solidão, incluindo o trabalho. Esse sistema foi repudiado por muitos juristas e médicos que acreditavam que o isolamento total levaria o condenado

92 Sobre a reforma prisional nos Estados Unidos, ver ROTHMAN, David J. Perfecting the prison: United States, 1789-1865. In: MORRIS, Norval; ROTHMAN, David J (orgs.). The Oxford his-tory of the prison. New York: Oxford University Press, 1995, p. 100-116.; sobre a Inglaterra, ver MCGOWEN Randall. The well-ordered prison: England, 1780-1865. In MORRIS; ROTHMAN (orgs.), op. cit., p. 79-109; sobre a França, ver PERROT, 2001, op. cit., p. 235-332, FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 1987, entre outros.93 BEAUMONT, Gustave de; TOCQUEVILLE, Alexis de. Du système pénitentiaire aux États-Unis et de son application en France, suivi d’un appendice sur les colonies pénales et de notes statistiques, 2 vols. Paris: Impr. de H. Fournier, 1833, 2e éd., Paris: C. Gosselin, 1836.

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à loucura ou à morte. No sistema rival, conhecido por Auburn, ou silent system, as atividades eram coletivas e o trabalho realizado em oficinas de ofício no mais absoluto silêncio. Era o que eles chamavam de separação moral já que, fisicamente, estavam reunidos. À noite, eram acomodados em celas individuais. Por volta da década de 1820, as primeiras penitenciárias dos Estados Unidos a adotarem este sistema utilizavam castigos corporais para punir os infratores do silêncio, razão que levou muitos reformadores a defenderem o outro sistema. Porém, algum tempo depois, os castigos corporais foram substituídos por outras formas de punição, como o uso da solitária e a redução alimentar que muitas vezes se resumia a pão e água.

A Igreja foi a principal inspiração dos sistemas penitenciários que se espa-lharam pelo mundo ocidental no século XIX. A palavra penitenciária tem suas origens nas formas e punição do clero desde a Idade Média. Um dicionário do século XIX a definiu como “tribunal da Cúria Romana em que se concedem dispensas e absolvições em nome do papa”. Penitência como “castigo, punição, arrependimento”. Penitenciário como “o cardeal que preside a penitenciária, o eclesiástico que impõe penitência, e absolve de casos reservados”.94 Michelle Perrot, embora não tenha se aprofundado na questão, mencionou a influência das experiências italianas, durante o papado de Clemente XI, na construção do pensamento penitenciário.95 Este papa aplicou, pela primeira vez, as idéias do monge Mabillon que escreveu uma obra intitulada Reflexões sobre as prisões monásticas, publicada em 1695, em que criticava as prisões da Igreja e propunha um regime em que o trabalho, os cuidados com a higiene e outras atividades compusessem as normas disciplinares.96 Clemente XI aprovou essas novas idéias e, com a criação do reformatório de São Miguel, as prisões religiosas em Roma passaram a adotar o isolamento noturno e, durante o dia, as orações e outras atividades laborais passaram a ser realizadas coletivamente.97 Esse regime,

94 CONSTANCIO. Francisco Solano. Novo dicionário da língua portuguesa. Duodécima edição. Paris: E. Belhotte, livreiro de S. M. El-Rei de Portugal, 1884, p. 761. Ver FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 216.95 PERROT, 2001, op. cit., p. 262.96 LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. 2ª edição revista e atualizada. Belo Ho-rizonte: Del Rey Editora, 2001, p. 33-34.97 SHELDEN, Randall G. Arquitetural and disciplinary ideals in the earliest prisions. Arquitetural and Disciplinary I. Disponível em: http://www.sheldensays.com/architectural_and_disciplinary_i.htm. Acesso em 11/06/2006.

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muito semelhante àquele que viria a ser chamado de sistema de Auburn, na década de 1820, já funcionava desde 1773 na penitenciária de Gand, na Bélgica. Esta prisão foi a principal referência de Pedro Weyll, engenheiro que traçou o primeiro projeto da Casa de Prisão com Trabalho da Bahia.98 Contudo, os Es-tados Unidos foram a principal referência mundial nas questões penitenciárias, seguidos da Inglaterra e da França.

Na Inglaterra, o trabalho como elemento regenerador já era discutido deste o final do século XVI, época em que foram construídas as workhouses ou houses of correction, instituições que tinham por objetivo afastar das ruas a crescente população de mendigos e instrumentalizá-los para o trabalho. Segundo McGowen, no início do século XVII já existiam cerca de 170 casas de correção distribuídas pela Inglaterra. O modelo dessas instituições teria sido aproveitado nos mínimos detalhes pela legislação inglesa de 1780 que previa a reforma das prisões. John Howard (1720-1790), um renomado reformador, foi destaque na Inglaterra por ter dedicado toda sua vida à causa das prisões. Howard viajava por todo o país para conhecer de perto as condições dos cárceres.99

Outra importante participação da Inglaterra para as discussões penitenciárias foi o modelo do panóptico, desenvolvido por Jeremy Bentham. Nascido em Londres, em 1748, Bentham estudou Direito, tornou-se um penalista e, com a ajuda do irmão, o engenheiro Samuel Bentham, escreveu O panóptico, fruto de mais de vinte anos de estudos. “Foi meu irmão quem primeiro me deu a idéia da arquitetura de minha prisão”, escreveu Bentham.100 O panóptico não consistia apenas numa arquitetura; era toda uma ideologia de controle social, que podia ser empregada nas escolas, hospitais, prisões e quartéis, ou seja, uma idéia destinada a instrumentalizar o poder nas instituições de controle social. Quando foi publicado O panóptico, em 1786, os debates sobre a reforma pri-sional na Inglaterra estavam no áuge. Porém, neste período, os reformadores não concordavam com a vigilância central proposta na arquitetura de Bentham e, além disso, sua obsessão muitas vezes foi confundida com loucura. Bentham era contra o trabalho como forma de punição. “O pavor de uma prisão não deve prevalecer sobre a idéia do trabalho”. Tampouco aprovava o sistema celular

98 Jornal O Musaico, set/out de 1847, p. 286-289.99 Sobre o assunto, ver MCGOWEN, op. cit., p. 79-109.100 REYBAUD Louis. Éstudes sur les réformateurs sociaux, p. 249, apud PERROT, Michelle. O inspetor Bentham. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Jeremy Bentham, o panótico. Belo Hori-zonte: Autêntica, 2000, p. 122.

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de isolamento contínuo, ou sistema da Pensilvânia, que, naquela altura, era o preferido pelos reformadores. “É um castigo que pode ser útil durante alguns dias para reprimir um espírito de rebelião, mas não se deve prolongá-lo”.101

A maioria das prisões da Europa construídas a partir do modelo panóptico não seguiu totalmente a arquitetura proposta por Bentham. Da mesma forma, as penitenciárias da Corte, de São Paulo e da Bahia tiveram seu projeto ar-quitetônico baseado no modelo do panóptico. No entanto, nenhuma delas foi finalizada de acordo com o plano inicial. Segundo Simon Werret, muitos crí-ticos de Bentham concordam “com a idéia de que o Panóptico constituiu – ou ajudou a constituir – uma nova forma de poder no final do século XVIII”.102 Para Foucault, o panóptico foi um sonho de Bentham que se realizou não ne-cessariamente na sua forma arquitetural, mas como “uma definição das formas de exercício do poder”.103

Os dois sistemas – Auburn e Pensilvânia – dividiram as opiniões dos refor-madores estrangeiros tanto quanto dos reformadores baianos. Entre os defensores do sistema da Pensilvânia estava o governador do Estado da Califórnia, John Fremont, um dos responsáveis pela compra da Ilha de Alcatraz, em 1847, onde foi construída a conhecida prisão que levou o mesmo nome. Segundo Fremont, o isolamento total era o melhor dos sistemas, pois “não seria justo que um homem honrado que por um erro da justiça é atirado à prisão fique arriscado a encon-trar mais tarde um miserável que o trate como igual”.104 Os reformadores Alex Tocqueville e Gustave de Beaumont acreditavam que o sistema da Pensilvânia “produzia homens mais honestos enquanto que o sistema de Auburn produzia cidadãos mais obedientes”.105 Eles se referiam aos efeitos dos severos castigos utilizados para manter o silêncio no sistema de Auburn.

101 Ibid., 130.102 Ibid., p. 154, grifo do autor.103 FOUCAULT, Michel. Prisões e revoltas nas prisões. In: MOTA, Manoel Barros da (org). Michel Foucault, estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 72.104 SEIXAS, Eustaquio Primo de. Considerações sobre o systema penitenciario adoptado pelo Codigo Penal vigente. These apresentada ao concurso para preenchimento de uma vaga aberta no Tribunal de Appellação e Revista do Estado da Bahia em 25 de Outubro de 1897. Bahia: Ty-pographia e Encadernação do Diario da Bahia, 1897, p. 29.105 ROTHMAN. Perfecting, op. cit., p. 124. A discussão sobre o trabalho penal feita por Tocqueville e Beaumont foi estudada por SALLA, Fernando. Os escritos de Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont sobre a prisão: o problema da participação dos negócios privados. Revista Plural. São Paulo: USP, v. 1, n. 1, 1994, p. 1-16.

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Em contrapartida, os simpatizantes do sistema de Auburn alegavam que o isolamento total era contra a natureza humana, além de ser responsável pelos suicídios e pelos casos de alienação mental, tornando esse sistema anticristão. Charles Lucas, o mais conhecido reformador francês, foi um árduo defensor do sistema de Auburn. Num discurso aos representantes da Assembléia Legislativa de Louisiania, o liberal francês François Mignet fez o seguinte pronunciamento contra o sistema da Pensilvânia:

Esses condemnados encerrados por toda a vida em um espaço estreito, mortos para o mundo ao qual não podem voltar, porque o direito de graça não se exerce em seu favor; estranhos à família; submettidos periodica-mente durante muitos mezes a uma inteira solidão e a uma desoladora inacção; nunca podendo respirar um ar puro, nem ver um raio do sol; enterrados em uma cellula como em um tumulo sobre o qual se lê já seu epitaphio, não são punidos mais cruelmente do que os outros que não estão sujeitos a estas terriveis condições? Não é para temer que sua razão succumba, que sua alma, que se quer salvar, chegue ao desespero? Se não é permittido matar o corpo, não se pode com maioria de razão matar a intelligencia; antes ser defuncto do que louco.106

Segundo Michelle Perrot, até 1844 a preferência dos franceses foi, de um modo geral, pelo sistema de Auburn. Depois disso foi aprovado um projeto-lei que estabeleceu o sistema da Pensilvânia para todas as penitenciárias da França.107

A implantação da casa de prisão com trabalho da BahiaAgora que temos uma visão mais ampla do contexto prisional baiano,

assim como das características dos modelos estrangeiros, passo finalmente a expor os principais aspectos do processo de implantação da Casa de Prisão com Trabalho. Em 1833, a Câmara Municipal de Salvador, ao invés da fortaleza do Barbalho ou da Casa Velha da Pólvora, preferiu escolher como local da futura penitenciária uma área pantanosa que correspondia a “100 braças quadradas”

106 MIGNET, François (1796-1884), apud SEIXAS, op. cit., p. 33. Liberal francês, autor da obra MIGNET, F.A.M. History of the French Revolution from 1789 to 1814, (1824). London: G. Bell and Sons, Ltd., 1912. 107 PERROT, 2001, op. cit., p. 235-332. O pensamento de Charles Lucas foi analisado por FOU-CAULT, op. cit., 1987, principalmente na quarta parte, capítulo I.

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localizada “na marinha fronteira ao Engenho da Conceição, pelos fundos da Capela dos Mares”.108 Este local pertencia à freguesia da Nossa Senhora da Penha de França de Itapagipe, periferia da cidade de Salvador.109 Em novembro daquele mesmo ano, o presidente da Câmara recebeu das mãos do arquiteto Pedro Weyll a planta da instituição que foi aprovada pelos vereadores.110 Em janeiro de 1834, a obra teve início e Weyll foi contratado para dirigi-la. O projeto arquitetônico foi inspirado na penitenciária de Gand, na Bélgica, e o sistema escolhido foi o de Auburn, o mesmo adotado naquela prisão. A planta previa um edifício panóptico octogonal, dividido em oito raios, com uma casa central e com capacidade para oitocentos presos. Tinha “296 braças de circuito”, o que corresponde a 541 metros. Um projeto gigantesco para a época.

Com o Ato Adicional de 1834, o governo provincial assumiu a responsa-bilidade da construção, apesar da discordância quanto ao projeto inicial dos vereadores da Câmara. Durante os quase trinta anos de construção, as autoridades não conseguiram chegar a um consenso em relação ao prédio ou às correlatas doutrinas penitenciárias. A indecisão sobre qual sistema penitenciário seguir – Auburn ou Pensilvânia – comprometeu o edifício que ficou reduzido a dois raios e, ainda assim, com sérios problemas na sua arquitetura, pois o projeto arquitetônico deveria estar em harmonia com um ou outro sistema, uma vez que cada um exigia soluções físicas diferentes.

Até os primeiros anos da década de 1840, a obra caminhou lentamente e sem grandes novidades, até a chegada do presidente Francisco José de Souza Soares de Andréa. Em 1844, Andréa assumiu a presidência da província da Bahia, permanecendo no cargo até 1846. Mais tarde se tornaria o barão de Ca-çapava. Na sua administração, Andréa dedicou-se às obras e instrução públicas, sendo o primeiro presidente a demonstrar interesse especial pela Casa de Prisão com Trabalho. Em 21 de setembro de 1846, Andréa convocou uma comissão formada por engenheiros, médicos e juristas para estudar e apresentar soluções para a construção e para os demais assuntos que envolviam a implantação da

108 Systema penitenciario, op. cit., p. 5.109 A partir de 1870, a freguesia da Nossa Senhora da Penha de França de Itapagipe foi desmem-brada e o local da instituição passou a pertencer à freguesia de Nossa Senhora dos Mares. Sobre as freguesias do Arcebispado de São Salvador da Bahia no período de 1549 a 1889, ver SILVA, 2000, op. cit., p. 67-73. Atualmente esta área é conhecida como Baixa do Fiscal e, no edifício da antiga penitenciária, funciona o Hospital de Tratamento e Custódia da Bahia.110 Sessão da Câmara Municipal de 20 de novembro de 1833, fl. 41rº, AMS, Atas de Câmara, 1833-1835.

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Casa de Prisão com Trabalho.111 Para tanto, Andréa elaborou um questionário para ser estudado e respondido pelos estudiosos.

Tal como as respostas, as perguntas também contribuem para entender-mos quais eram as preocupações do poder público com relação à implantação da penitenciária. Duas dessas perguntas são de grande relevância para nossa discussão: “A legislação actual do país se compadece, e até que ponto, com as instituições desse gênero, sendo que modificações na lei requerem a intro-dução do sistema penitencial do país?”112 Outra questionava “qual a regra que se deve seguir na administração e disciplina da prisão, e suas bases”.113 Esta última envolvia a escolha do sistema penitenciário. As respostas chegaram no ano seguinte, num minucioso relatório sustentado por idéias de reformadores estrangeiros como Charles Lucas e Alexis de Toqueville, além de relatos sobre as experiências penitenciárias norte-americanas e européias. Comecemos pela questão da legislação.

A comissão disse ser a primeira vez que um presidente da província tinha se preocupado em examinar “se as nossas leis consentiam transplantar de fora as instituições penitenciárias”, sendo este um “terreno virgem”.114 A comissão lembrou que a palavra sistema penitenciário somente foi citada na legislação brasileira em 1842, no Regulamento nº 120, artigo 458 do parágrafo primeiro.115 A comissão criticou os legisladores do Código Criminal brasileiro.

Em 1841, quando parece que o que inspirava a reforma do codigo do processo era a necessidade de uma repressão mais forte aos crimes, a lei adoptando varias medidas, nem determinam, que o podia, o systema penitenciario, apezar do estar ella assistindo á ereção, em varios pontos do Imperio, de casas penitenciarias: como 11, ou 9 annos antes, em que se terminaram os nossos trabalhos de codificação criminal, o poderia ter feito? Não; os nossos codigos não se lembraram do systema penitenciario:

111 Essa comissão era composta por estudiosos renomados como Casemiro de Sena Madureira, Luiz Maria Alves Falcão Moniz Barretto, Eduardo Ferreira França, João Baptista dos Anjos, Francisco Primo de Souza Aguiar, João Baptista Ferrari e João José Barboza de Oliveira; este último atuou como relator. Systema penitenciario, p. 3.112 Ibid., p. 41.113 Ibid., p. 7.114 Ibid., p. 41.115 Tal artigo, apontado pela comissão, cita o sistema penitenciário de forma indireta ao tratar das apelações. Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, artigo 458. In: Colleção de Leis do Império,1842. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1878, p. 121.

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por este tempo esta doutrina andava tão distante, tão pouco estudada, que quase se póde dizer que então germinava lá ao longe de nós – se então a legislação penal brasileira o ignorava existente, feliz ignorancia! Se o rejeitara obscuro, prudente regeição!116

A comissão sugeriu que fosse criada uma nova lei para reger a questão penitenciária a fim de não se alterar o Código Criminal, o que certamente seria mais demorado.117 Com relação às penas, a comissão destacou que a pena de morte e a prisão perpétua “estão mais ou menos em contradição ao systema penitenciário, o qual parte da idéia opposta á incorrigibilidade do criminoso”, mas que não iriam discutir esse assunto, por estar “além de sua missão”. Quanto às penas de galés, a comissão foi um pouco mais além, dizendo que esta deveria ser automaticamente comutada por pena de prisão com trabalho. Para isso, o artigo 311 do Código Criminal deveria ser ampliado. “Art. 311. A pena de galés temporária será substituída pela de prisão com trabalho pelo mesmo tempo, logo que houver casas de correção nos lugares em que os réos estiverem cumprindo as sentenças”. 118 Como a pena de galés era, sobretudo, aplicada aos escravos, embora não exclusivamente a eles, a comissão fez questão de esclarecer que não estava querendo beneficiá-los e sim lhes tirar um privilégio:

a vida dos galeotes comparada com a dos outros presos é muito melhor, mais sã, e menos constrangida [...] Deste modo convertido o patibulo, ou a calceta na prisão dentro em uma penitenciaria, os escravos não ficarão desherdados de todo do beneficio da regeneração moral, com que o sistema acena, e toda a penalidade que lhes impoem a lei não será só a morte, a galé e a mansilha, apertadas no tristissimo laconismo do barbaro artigo 60 do codigo criminal [...].119

De nada adiantou a sugestão da comissão em comutar a pena de galés para pena de prisão com trabalho. Afinal, o Código era lei imperial. O interessante é

116 Systema penitenciario, op. cit., p. 45.117 Systema penitenciario, op. cit., p. 48.118 FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit., p. 317.119 Systema Penitenciario, op. cit. p. 51. “Art. 60. Si o réo for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a traze-lo com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz designar”, FILGUEIRAS JUNIOR, op. cit. , p. 48.

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que, em 1850, um Aviso imperial veio, em sentido contrário, a alterar o teor do artigo 311. O benefício da comutação da pena foi limitado aos homens livres e os escravos perderam o suposto benefício de cumprir a pena de galés temporária nas penitenciárias: o Aviso dizia que a “substituição [da galés temporária por prisão com trabalho] não pode ser feita a respeito dos escravos: porque, em vista do art. 60, devem continuar a soffrer a pena de galés, visto como lhes não é applicável a de prisão com trabalho: Av. de 9 de agosto de 1850”.120 A intenção de comutar a pena de galés em prisão com trabalho, mais do que beneficiar ou não o escravo, poderia estar relacionada em reduzir as diferenças da legislação, a fim de facilitar a adaptação do sistema penitenciário.

Conforme Aufderheide, as “punições diferenciadas para homens escra-vos e livres significava somente uma implementação parcial das reformas projetadas”.121 Para Ricardo Salvatore, a dualidade do Código Criminal perante o homem livre e o escravo foi um dos principais motivos do fracasso da refor-ma penitenciária no Brasil. Outros motivos citados pelo autor para o suposto fracasso foram a falta de continuidade dos planos do governo, as limitações financeiras e o regionalismo.122 Talvez o que Salvatore chama de fracasso deva ser atribuído ao que normalmente acontecia com as idéias liberais vindas de fora; ou seja, a implantação da penitenciária no Brasil sofreu um processo de adaptação à realidade local.123 O autor ainda arrisca dizer que, no Brasil, a prisão era utilizada como uma “extensão do poder do senhor”.124 Não estou conven-cida quanto a essa sugestão de Salvatore, pois sabemos que, no Brasil, senhor e Estado se encontravam, muitas vezes, em lados opostos.125 Por exemplo, no caso do imperador perdoar o restante da pena de galés perpétua de um escravo, o que era comum numa primeira condenação, o escravo não era restituído à

120 Ibid., p. 317.121 AUFDERHEIDE, Patrícia. Order and violence: social deviance and social control in Brazil, 1780-1840. Tese de doutorado em História, University of Minnesota, Minnesota, 1976, p. 332.122 SALVATORE, Ricardo, Penitentiares, visions of class, and export economies, op.cit., p. 200.123 Sobre o liberalismo, ver MARSON, Izabel Andrade. Liberalismo versus escravidão: reflexões sobre uma relação contraditória. História e Perspectivas, 24 (2002), p. 39-50; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990, SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, entre outros.124 SALVATORE, Ricardo. Penitentiaries, visions of class, and export economies, op. cit., p. 200.125 Sobre este assunto ver SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Escravos, senhores e policiais: o triângulo da desordem no Rio de Janeiro de dom João VI. Revista do Mestrado de História, ano II, Vassouras, (1999).

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escravidão. No ano de 1869, ao comentar essa questão, o conselheiro de Estado José Tomás Nabuco de Araujo observou que “o escravo, condenado a galés perpétuas, está para sempre perdido do senhor”.126 Portanto, o escravo preso era prejuízo para o senhor. Segundo Chalhoub, “as histórias de escravos – e ocasionalmente até libertos – que pensam poder recorrer à polícia no sentido de conseguir alguma proteção, ou mesmo que parecem cometer um crime com o objetivo de escapar a um destino indesejável, se sucedem com uma regulari-dade espantosa”.127 Contudo, essa é uma discussão mais ampla que merece ser abordada em trabalho específico.

Ao trazer à discussão tais questões, não estou a dizer que as idéias peni-tenciárias foram aderidas de forma impensada num contexto em que estariam fora de lugar. Pelo contrário, procuro destacar a complexidade, observada nos debates dos reformadores e autoridades da Bahia, no processo de implantação de um novo conceito de punição que deveria coexistir com práticas do antigo regime prisional, mantidas pelo Código Criminal do Império. A escravidão não dificultou apenas a reforma prisional; ela também foi uma barreira para a reforma jurídica mais ampla. Para Eduardo Pena, a elaboração de um código civil no período imperial não aconteceu por causa dos interesses senhoriais.128

A comissão eleita por Andréa foi bastante clara com relação à dificuldade de conciliar o regime penitenciário com a escravidão. Contudo, os seus mem-bros chegaram à conclusão que tal tarefa não era impossível, afinal os Estados Unidos conviveram com essa situação. Eis a opinião da ilustre comissão sobre tal convivência.

No nosso estado social maiores repugnancias se não descobrem á in-trodução completa da innovação penitenciária, nem os elementos que o compoem são poderosos modificadores do systema. Esse obstáculo, ou essa causa modificadora, que da nossa constituição intima se erguesse, só no elemento escravo poderia consistir. Porém felizmente coetaneos com o Brasil lá estão os Estados Unidos, e a anologia aqui é bem legitima por mais de um titulo. Lá tem-se reparado que um sexto dos habitantes é de

126 Apud CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 179. 127 Ibid., p. 176.128 Ver PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas: Editora Unicamp, 2001.

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pretos, e que estes figuram por metade nas prisões. E, se é de observação que nos Estados do Norte, onde não ha escravos, as doutrinas penitenci-árias, como tudo o mais vicejaram primeiro, e mais rapidas e perfeitas; e que dos 8 ou 9 Estados americanos, que ainda hoje não reformam os seos carceres, 6, ou 7 são de escravos, tambem se tem observado que em alguns Estados do Sul, apesar da escravaria, casas penitenciarias se hão erguido.129

As sugestões de alterar o Código Criminal, bem como de criar uma lei específica para reger as questões penitenciárias, obviamente não saíram do papel. Quanto ao sistema penitenciário que deveria ser implantado na Casa de Prisão com Trabalho, a comissão preferiu o sistema da Pensilvânia. Com essa escolha, a comissão demonstrou não concordar com o contato físico dos presos: “a separação material, em que paredes colocam os encarcerados, atalha lhes todas as desenvolturas, e antecipadamente lhes tira até o mesmo pensamento da resistencia”. Foi alegado também que o trabalho coletivo, característica do sistema de Auburn, estimularia laços de amizade entre os presos, o que facili-taria mais tarde, quando soltos, possíveis parcerias criminosas.130 Entretanto, tal sugestão não significou a última palavra para as autoridades provinciais. Em 1863, o regulamento oficial da Casa de Prisão com Trabalho não adotou na íntegra nenhum dos modelos norte-americanos – Auburn ou Pensilvânia. Eu diria que, no máximo, o sistema de Auburn foi adaptado à realidade local, para não negar totalmente a influência estrangeira.131 As oficinas de ofício, principal característica do sistema penitenciário de Auburn, foram adotadas no regime disciplinar da Casa de Prisão com Trabalho e foram inauguradas em 1865. Infelizmente, não localizei o motivo que levou o governo a recusar o sistema da Pensilvânia, indicado pela comissão de 1847.

Assim como aconteceu em São Paulo e Rio de Janeiro, a Bahia também inaugurou a sua penitenciária com as obras incompletas.132 Na inauguração, em

129 Ibid., p. 26.130 Ibid., p. 16.131 Regulamento da Casa de Prisão com Trabalho da Bahia. Aprovado pelo presidente da provín-cia, o conselheiro Antonio Coelho de Sá e Albuquerque, em 14 de outubro de 1863. Bahia: Typ. Poggetti, de Tourinho, Dias & C, 1863, Bahia: Typ. Poggetti, 1863, BMSB, Obras raras. Sou grata ao professor João Reis pela localização deste documento. 132 A Casa de Correção de São Paulo foi inaugurada em 1852, com apenas um raio construído, com capacidade para 40 presos. Somente em 1855 ficou pronto o segundo raio aumentando a capacidade da Casa para 80 presos. No final da década o terceiro raio foi concluído e a capacidade total da instituição passou para 120 presos. SALLA, op. cit., p. 65-67. A Casa de Correção da Corte foi

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1861, a Casa de Prisão com Trabalho tinha capacidade para duzentos presos e, para acomodá-los, contava com dois raios construídos – leste e oeste – e com 144 celas. O denominado raio do oeste tinha três pavimentos e ali ficariam os aposentos dos funcionários, a enfermaria e a administração, além das cinco oficinas. No outro raio estavam localizadas as celas. O pavimento térreo con-tava com 36, sendo 18 de cada lado, coincidindo com o primeiro andar, que comportava o mesmo número. Em cada cela destes pavimentos foram alojados dois presos, revelando que o isolamento, tão caro às doutrinas penitenciárias, não era seguido. No segundo andar ficavam as celas individuais, em número de 72, sendo 36 em cada lado. Entre elas estavam seis solitárias, utilizadas para as punições disciplinares previstas no regulamento. As celas não eram padro-nizadas e algumas eram fechadas “de alto a baixo, tendo apenas um pequeno postigo por onde o prezo gosa de algum ar”. Nas palavras do administrador, esse quadro tornava as celas um local “de castigo e martirio”.133 Tal descrição nos faz lembrar as cadeias do antigo regime prisional, onde a falta de ar e de luz eram crônicas. Para agravar a situação, as obras impediam o passeio dos presos, fazendo com que os mesmos permanecessem confinados nos cubícu-los, exceto na ocasião da faxina.134 Conforme Roberto Machado, a pouca luz e ventilação nos cárceres são alguns dos elementos que os transformam em locais de doença e de morte.135

Os debates sobre o sistema prisional na Bahia podem ter se assemelhado aos das outras províncias, mas, na prática, a penitenciária baiana teve lá as suas peculiaridades. Por exemplo, cito o fato das casas de Correção da Corte e de São Paulo servirem também como local de castigos de escravos, onde os mesmos eram trancafiados em calabouços.136 Com relação à Bahia, não encontrei evi-dências de escravos sofrendo penas de açoite na Casa de Prisão com Trabalho. Tampouco existiam ali os calabouços. Os escravos eram castigados nas cadeias

inaugurada em 1850, com o primeiro raio ainda incompleto. Depois de pronto, teria capacidade para 200 presos. Suas obras continuaram por mais dezessete anos. PESSOA, op. cit., p. 81.133 Relatório da comissão inspetora para o presidente da província, (25/02/1862), APEBa, Casa de Prisão, 1836-1868, maço 3082; Administrador da CPCT para o chefe de polícia, (22/08/1864), APEBa, Mapa de presos, 1864-1867, maço 6273.134 Relatório da comissão inspetora ao presidente da província, op. cit.135 MACHADO, Roberto et alii. A danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 317.136 Para São Paulo, ver SALLA, op. cit., e para o Rio de Janeiro, ver PESSOA, op. cit.

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e na prisão dos galés do Arsenal de Marinha.137 Embora a pena de prisão com trabalho coubesse apenas a pessoa livre ou liberta, no período de 1861 a 1865, a população carcerária da penitenciária era formada basicamente por homens livres, pardos e crioulos.138 De um total de 111 presos que levantei, no período de 1861 a 1865, apenas 16 eram mulheres.139 Em 1865, elas foram transferidas para a cadeia da Correção que, a partir de então, passou a recebê-las, pelo menos até o final do século XIX.140 Lembre-se que a cadeia da Correção não possuía estrutura compatível com a política do aprisionamento moderno, ou seja, ali a população carcerária cumpria pena aos moldes do antigo regime prisional.

Por fim, é possível dizer que a penalidade moderna foi implantada na Bahia com a inauguração da Casa de Prisão com Trabalho, mas a cadeia da Correção e a prisão dos galés do Arsenal da Marinha continuaram a reproduzir as práti-cas do antigo regime prisional, como o açoitamento de escravos e o trabalho forçado, penas previstas no Código Criminal do Império. Mesmo sem o rigor dos modelos estrangeiros, a construção das penitenciárias, no Brasil oitocen-tista, denominadas casas de correção e, especificamente na Bahia, de Casa de Prisão com Trabalho, anunciou uma nova era na história do sistema prisional brasileiro.

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137 Vários despachos do chefe de polícia para os carcereiros das cadeias da Correção e do Bar-balho autorizam castigos de escravos, APEBa, Polícia, Correspondência expedida, 1861-1862, maço 5745. 138 Sobre o perfil dos presos da Casa de Prisão com Trabalho no período de 1861-1865, ver TRIN-DADE, Cláudia Moraes. A Casa de Prisão com Trabalho da Bahia, 1833-1865. Dissertação de mestrado em História Social, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007, terceiro capítulo.139 Guias de transferência de presos para a CPCT, APEBa, Polícia, Casa de Prisão, 1861-1886, maço 5942; Cento e setenta e dois presos que se achão actualmente recolhidos nesta Casa, (29/09/1865), APEBa, Mapa de presos, 1864-1869, maço 6287; Relação de presos da Cadeia da correção, APEBa, Cadeias, 1857-1861, maço 6271.140 Relatório do administrador interino ao chefe de polícia, (20/09/1865), APEBa, Polícia, Mapa de presos, 1864-1867, maço 6273; SEIXAS, op. cit., p. 51.

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Um projeto para a nação. Tensões e inTenções políTicas nas

“províncias do norTe” (1817-1824)

Luiz Geraldo SilvaUniversidade Federal do Paraná

resumoO presente artigo defende a idéia conforme a qual as discussões travadas nas provín-cias do Norte, entre 1820 e 1824, não acenaram para a constituição de estados ou nações independentes. Antes, elaborou-se ali, ao longo daqueles anos, um projeto para o conjunto do que outrora fora a América portuguesa, ou um projeto para nação brasileira. Assim, o que estava em questão não era a secessão do Império, mas a de-fesa do pacto constitucional e federativo que deveria garantir a unidade do Império, “do Amazonas ao Prata”.

palavras-chavesPernambuco • projetos políticos • nação • Império do Brasil.

abstractThis article suggests that some political groups of provinces of North of Portuguese America, mostly from Pernambuco, didn’t wanted to establish independent nations or states in those parts of Brazil from 1820 to 1824. In fact, there was a political project among the local political groups about the Brazilian nation, and there the principal subject was not the secession from the Empire of Brazil. For them the federal and constitutional principles were the guarantees of the Empire unity, “from Amazonas to Prata”.

KeywordsPernambuco • political projects • nation • Brazil Empire.

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IEm Pernambuco e sua área de influência – as capitanias e, depois, pro-

víncias do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas –, o processo de Independência apresentou trajetória peculiar. Afinal, foi naquela região que eclodira, em 1817, sob a presença da corte joanina nos trópicos, um movimen-to político cujo objetivo era instituir um regime que pretendia ser, ao final de contas, republicano. Neste, amplos setores da sociedade pernambucana e das demais “províncias do Norte” ensejaram uma separação radical da monarquia portuguesa, então organizada sob a forma do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Claro está que a idéia de ruptura com o poder monárquico não surgiu repentinamente em 1817, mas trazia marcas muito antigas, enraizadas na experiência histórica daquele território. Embora todas as partes da América portuguesa possuíssem uma dupla identidade, isto é, regional e lusitana, a região aqui considerada revelava faceta particular. A representação mental da restauração contra o domínio holandês, empreendida no século XVII, ou mes-mo a guerra civil de 1710-1712 – que colocou os senhores de terra sediados em Olinda contra os privilégios dados pela Coroa aos mercadores da vila do Recife –, marcaram sobremaneira a memória e a experiência histórica local. Estes aspectos ainda possuíam um amplo poder de mobilização nas primeiras décadas do século XIX. Ademais, eles se tornaram, então, passíveis de serem reinterpretados à luz das idéias ilustradas amplamente difundidas por aqueles anos em todo mundo atlântico.1

Porém, ao contrário do que sugeriu uma historiografia regional e nativista, 1817 não significou uma antecipação da Independência do Brasil 2 e muito

1 Sobre o impacto do movimento político de 1817 na política regional nos anos imediatamente subseqüentes, àquele evento, ver o estudo de BERNARDES, Denis A. M. O patriotismo cons-titucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo/Recife: Hucitec/Fapesp/Editora da UFPE, 2006, caps. 5 e 6; sobre as duplas identidades das províncias da América portuguesa, a regional e a lusitana, ver o ensaio de JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo de emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos G. (org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 127-175; sobre a construção da identidade de Pernambuco entre os séculos XVII e XIX, ver MELLO, Evaldo Cabral. Rubro veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.2 Uma visão da historiografia regional pode ser buscada em LIMA SOBRINHO, Barbosa. Per-nambuco: da independência à Confederação do Equador. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 1998, p. 24; conforme escreve Oliveira Lima, desde 1817 os pernambucanos tentavam conduzir “o barco do Estado ao porto feliz da independência com a república”. LIMA, Manuel de Oliveira.

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menos representou, como afirmou a historiografia saquarema,3 um movimento separatista, ou uma cisão no interior de um corpo político mais ou menos conso-lidado. Ora, naquele momento os pernambucanos longe estavam de se enxergar em meio a uma luta entre “metrópole e colônia” e, muito menos, o Reino Unido se afigurava a uma “proto-nação brasileira”. Ante tais postulados, faz-se neces-sário situar os termos da experiência republicana de 1817 nos quadros da crise do Antigo Regime na América, o que equivale perceber, por um lado, as formas de enfrentamento político do poder monárquico então disponíveis e, por outro, os modelos capazes de fornecer um quadro institucional que tornasse viável um governo autônomo, ainda que provisório, no interior do Reino Unido.4

Levando-se em consideração as forças políticas que participaram do movi-mento contra a monarquia em 1817, observa-se que o segundo momento vital desta análise é aquele subseqüente ao chamamento das Cortes Constituintes da Nação Portuguesa (1820). Embora dom João tivesse acenado com um perdão real em janeiro de 1818, alguns dos implicados no movimento de 1817 que não haviam sido sentenciados à morte ainda se achavam presos nos cárceres da Bahia em inícios da década de 1820. Foi, então, graças à Revolução do Porto e à formação da Assembléia Constituinte em Lisboa que muitos dos “patriotas” puderam retornar à província e às lides políticas. Na perspectiva, porém, da histografia saquarema, como escreve Varnhagen na década de 1870, “quando começaram a chegar da Bahia as vítimas dos acontecimentos de 1817, pois, por mais que o governador [Luís do Rego Barreto (1817-1821)] procurou atendê-

O movimento da independência. São Paulo: Melhoramentos, 1922, p. 231. 3 A “historiografia saquarema” é definida por Evaldo Cabral de Mello como “a historiografia da corte fluminense e dos seus epígonos na República, para quem a história da nossa emancipação política reduz-se à da construção do Estado unitário. Nesta perspectiva apologética, a unidade do Brasil foi concebida e realizada por alguns indivíduos dotados de grande descortínio político, que tiveram a felicidade de nascer no triângulo Rio-São Paulo-Minas e a quem a pátria ficou devendo o haverem-na salvo da voracidade dos interesses provinciais, como se estes fossem por definição ilegítimos, e do gosto, digamos, ibero-americano, pela turbulência e pela agitação estéreis, como se Eusébio, Paulino ou Rodrigues Torres não fossem representantes de reivindicações tão regionais quanto às de Pernambuco, do Rio Grande do Sul ou do Pará”. Cf: MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Caneca ou a outra Independência. In: Caneca, frei do Amor Divino. 2001. In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 16. 4 Já discuti algumas dessas questões em dois ensaios anteriormente publicados: SILVA, Luiz Ge-raldo. “Pernambucanos, sois portugueses!” Natureza e modelos políticos das revoluções de 1817 e 1824. Almanack Braziliense. São Paulo, v. 1, 2005, p. 67-79; SILVA, Luiz Geraldo. O avesso da Independência: Pernambuco (1817-1824). In: MALERBA, Jurandir (org.). A Independência brasileira. Novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 343-384.

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los, pagando-lhes ordenados e restituindo-os a seus lugares, não se mostravam satisfeitos, e tramavam sem cessar”. Para além das interpretações centradas na figura do príncipe e da perspectiva conformada aos ditames da corte fluminense, houve, na verdade, entre 1821 e 1823, uma retomada das aspirações autono-mistas, ou mesmo sua realização, após estas terem sido represadas pela feroz repressão perpetrada pelo comandante do bloqueio naval ao porto do Recife em 1817, José Ferreira Lobo, e pelo governador Luís do Rego Barreto.5

IIComo se sabe, as Cortes Constituintes, cujo chamamento se deu a partir de

dezembro de 1820, permitiram a formação de governos provinciais de caráter provisório, facultando aos grupos provinciais participar diretamente da admi-nistração de suas “pátrias” – compreendidas pelos contemporâneos como local de nascimento e como territórios dotados de alguns princípios de identidade. Contudo, a adesão de Pernambuco ao constitucionalismo – que se seguiu à de Pará (1° de janeiro de 1821) e Bahia (10 de fevereiro) – não se fez sem con-tradições, violências ou derramamento de sangue. Ali, o governador Luís do Rego Barreto procurou controlar os termos da adesão e impedir o acesso dos grupos políticos locais ao poder da província.6

Em carta de 20 de maio de 1821, Barreto informou a dom João que, ao saber de seu juramento à “Constituição da Monarquia”, dera “todas as ordens necessárias para as eleições dos Deputados desta província para a representação em Cortes, par a par com os outros Representantes da Nação”. Atalhava assim a ação de “alguns facciosos” que espalhavam “doutrinas absurdas, mas que podiam achar partido no povo”. Tais facciosos, ainda conforme Barreto,

... julgaram ser-lhes lícito empreenderem mudanças de Governo, e de administração, feitas tumultuosamente e por homens obscuros e ferozes, que em nada punham a mira, senão em seu próprio interesse, na queda

5 Cf: VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História da independência do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, tomo LXXIX, 1916, [1876], p. 398 (separata). 6 Cf: BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato. Deputados do Brasil nas cortes portuguesas (1821-1822). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999; JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico..., p. 127-130; BERNARDES, Denis A. M. O patriotismo constitucional..., 2000, p. 380-397.

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de pessoas que lhes eram odiosas, e em uma celebridade louca, triste remedo do arrojo heróico dos nossos Restauradores em bem diversas circunstâncias.7

Ademais, o governador afirmou, por um lado, que já havia em Pernambuco grupos políticos formados sob o intuito de compor uma Junta de Governo e que, por outro lado, discutia-se abertamente a nova configuração política da monarquia, posto que

... alguns demagogos levantaram depois do dia 26 de março uma voz de independência, não propriamente de uma separação absoluta, mas o seu fito era, a meu parecer, um Governo Federal, deixando cada Capitania governar-se por si, e por o que eles chamavam Patrícios; este partido ia ganhando prosélitos ... Coroavam-se estes fins com as aparentes pretensões de uma Junta Provisional, eleita pelo povo, mas corriam pelas mãos dos prosélitos do novo sistema listas dos que haviam de ser nomeados.8

Como se percebe, a resistência de Barreto ao novo estado de coisas foi enorme e, ao mesmo tempo, a pressão dos grupos locais no sentido de contro-lar o poder político na província consubstanciava-se na tomada de decisões de caráter prático e em discussões de formas institucionais. Desse modo, somente por meio de uma guerra civil, iniciada, como sempre, ao norte do Recife, e da criação de uma Junta paralela ao governo de Barreto, a qual fora instalada na cidade de Goiana, é que os grupos locais conseguiram isolar o governador no Recife e em Olinda e forçar sua deposição.9

Porém, ao contrário do que esses fatos possam sugerir, faz-se necessário salientar que o período do constitucionalismo luso-brasileiro também não

7 Cf: Carta do governador da capitania de Pernambuco, Luís do Rego Barreto, ao rei d. João VI sobre ter tomado conhecimento do juramento à Constituição e informando as medidas tomadas para a eleição dos deputados da dita capitania que seguirão viagem ao Reino; as dificuldades de se proceder as eleições devido as distâncias das comarcas e os receios do povo; e informando ter reprimido todas as idéias propagadas nesta capitania acerca da instalação de um governo federal. A.H.U – Pernambuco, cx. 281, doc. 19148. Recife, 20 de maio de 1821.8 Cf: Idem, ibidem. 9 Cf: BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato..., p. 57-65; BERNARDES, Denis A. M. Pernambuco e sua área de influência: um território em transformação (1780-1824). In: JANC-SÓ, István (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, p. 379-409.

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representou uma antecipação da Independência política da América portugue-sa. Antes, ele significou um momento de aproximação entre a colônia e sua metrópole, ou entre cada província e a monarquia portuguesa. Este aspecto é claramente observado nos vários documentos elaborados pelas Juntas de Go-verno das províncias e mesmo na carta do governador Luís do Rego Barreto antes mencionada: nela se fala da pretensão dos grupos locais a uma “indepen-dência”, mas “não propriamente de uma separação absoluta”. O objetivo era a autonomia provincial, politicamente viável dentro de um regime federativo, ou “um Governo Federal, deixando cada Capitania governar-se por si”. É falsa, pois, a afirmação segundo a qual a primeira Junta constitucional de Pernambuco, presidida pelo comerciante de grosso trato Gervásio Pires Ferreira (26 de outu-bro de 1821 a 16 de setembro de 1822), como escreve Oliveira Lima, “estava deslizando rapidamente para a anarquia sob pretexto de conquistar a liberdade”. O que esta almejava, acima de tudo, era administrar a província nos marcos da monarquia constitucional o mais amplamente possível, isto é, com forte acento na autonomia provincial. Até então, em nenhum momento se havia pleiteado uma ruptura local, ou mesmo regional, com o Reino Unido. Tal ruptura, para-doxalmente, só aparece no horizonte após fevereiro de 1822, mas por sugestão do príncipe regente e dos próceres do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo.10

Assim, curiosamente, antigos partidários da República de Pernambuco haviam-se conformado com os termos propostos pelas Cortes, de uma monar-quia constitucional com sede em Lisboa. Afinal, manejar as contas da província, aplicar suas rendas como bem quisessem, controlar as forças armadas, projetar reformas educacionais e introduzir mecanismos diferenciados de governo políti-co constituíam aspectos fundamentais para os grupos políticos locais.11 Em suma, aspiravam, sobretudo, à autonomia provincial, como já se disse aqui, a qual se tornara possível graças ao constitucionalismo luso-brasileiro e à disseminação, por estes anos, do princípio federativo. Profissionais liberais, padres, represen-tantes do comércio de grosso trato e produtores ligados ao novo e dinâmico artigo de exportação da província, o algodão, contavam entre aqueles homens. Eles tinham como base territorial o Recife e o norte da província, incluindo a populosa vila de Goiana. Alguns senhores de engenho, sobretudo residentes na Zona da Mata Norte, também perfilavam com aqueles, mas a tendência da

10 Cf: LIMA, Manuel de Oliveira. O movimento da independência..., p. 236. 11 Cf: BERNARDES, Denis A. M. O patriotismo constitucional..., cap. 7.

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açucarocracia será a de ruptura paulatina, ao longo da fase constitucional, com o federalismo provincial.12

Com efeito, é necessário destacar que a possibilidade de governar a província criava diferenças importantes entre antigos inimigos da monarquia bragantina, outrora ombreados em 1817. Ademais, as soluções adotadas nos momentos deci-sivos do conflito contra o Reino Unido haviam gerado tensões profundas entre seus diferentes grupos políticos. Nessa direção, a incorporação de escravos e de homens livres de cor entre partidários e combatentes da ruptura republicana constituía, para alguns, aspecto temerário e perigoso, um expediente de triste memória. É nesse quadro, pois, que as forças políticas oriundas daquele movi-mento tomam direções diversas na época do constitucionalismo luso-brasileiro.13

Sugere-se aqui que este divórcio entre antigos aliados constitui aspecto central para o entendimento do que vem a ser, depois, o processo de indepen-dência em Pernambuco. Freqüentemente, põe-se ênfase demasiada nas idéias e práticas do grupo federalista, isolando-o de uma configuração relacional da qual faziam parte os demais grupos políticos – notadamente aqueles partidários da centralização. Este aspecto, aliás, pode ser atestado pelas inúmeras análises produzidas em torno do pensamento de frei Caneca e de outros militantes “pa-triotas” e radicais.14 Pouco se discute, inversamente, o lado adesista da província, constituído pelos irmãos Cavalcanti, pelos irmãos Gama e pelo morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto. É preciso, pois, não olhar as posições do grupo político que aceitou os termos do projeto do Rio de Janeiro com estranhamento apenas porque Pernambuco e as demais “províncias do Norte” constituíam uma “região de tradição liberal e contestatória”.15 Antes, faz-se necessário sublinhar que havia ali bases tão sólidas para a contestação como para a franca aceitação da causa imperial – a qual, como em poucas províncias do Império, fora ali tão acintosamente vitoriosa.

12 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.13 Cf: CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824. Revista Brasileira de História, vol.18, nº 36, 1998, p. 331-366. 14 Cf: LYRA, Maria de Lourdes Viana. 1998. Pátria do cidadão: a concepção de pátria/nação em frei Caneca. Revista Brasileira de História, vol. 18, nº 36. 15 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Caneca ou a outra Independência. In: Caneca, frei do Amor Divino. 2001. In: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34. 2001, p. 35.

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A base da ruptura radical entre os grupos políticos de Pernambuco, a qual daí por diante porá em campos opostos federalistas e centralizadores, será o chamado projeto do Rio de Janeiro. Este aparece no horizonte num momento em que as províncias da América portuguesa gozavam da mais ampla autonomia – prerrogativa, aliás, sequer imaginada nos tempos dos governadores e capitães generais enviados por Lisboa e, depois de 1808, pelo Rio de Janeiro. É nessa linha que se entende porque a primeira Junta de Governo Provisório de Per-nambuco, mas também as de outras “províncias do Norte”, como a da Paraíba, custassem a reconhecer a autoridade do príncipe regente e a pertinência daquilo que se passou a denominar de “independência”. Como notou Bernardes, soava desrespeitoso para os governantes locais o rompimento do pacto penosamente construído com as Cortes Constituintes e, sobretudo, com dom João VI, bem como parecia difícil abrir mão da autonomia provincial recentemente adquirida. Assim sendo, os áulicos do príncipe acabam por perpetrar golpe de Estado que levou à destituição da primeira Junta Provisória de Pernambuco, presidida por Pires Ferreira, e à eleição da chamada Junta dos Matutos (outubro de 1822 a dezembro de 1823), a qual entronara os senhores de engenho da Mata Sul no poder da província. Desse modo, derrubava-se o governo constituído de modo a pavimentar os caminhos tortuosos da independência em Pernambuco.16

IIIConsumada a independência e tornando-se esta sabida pelo conjunto das

províncias em fins de 1822, restou, aos federalistas pernambucanos, se con-formarem com o chamado “projeto do Rio de Janeiro”. Isso ocorreu não por traição dos princípios antes defendidos, como afirmaram alguns historiadores, mas por três razões básicas que inviabilizaram a defesa da autonomia provincial sob o Reino Unido. Em primeiro lugar, os trabalhos nas Cortes Constituintes fracassaram no sentido de salvaguardar os direitos federativos das províncias do Brasil. Este duro golpe deu ensejo à entrada em cena de projetos políticos aca-lentados pela bancada paulista ao tempo das Cortes Constituintes. Tais projetos tenderam a se materializar na confrontação entre o príncipe e Lisboa, inclusive com o chamado de uma Constituinte no Brasil em junho de 1822.17 Em segundo lugar, observou-se que, internamente à província, amplos setores das camadas

16 Cf: BERNARDES, Denis A. M. Pernambuco e sua área de influência..., p. 379-409.17 Cf: BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato..., p. 193-194.

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populares – notadamente os militares “pretos” e “pardos” –, viram na criação do corpo político independente de Portugal motivo de júbilo, apoiando-o enfatica-mente. Tais setores, amplamente presentes em 1817, tendiam, agora, a desconfiar daqueles que não aceitassem a ruptura definitiva com Portugal. Não por acaso tiveram papel destacado na conflagração que levou os Matutos ao poder em outubro de 1822. Desse modo, a sociedade local estava dividida não apenas entre suas elites políticas e econômicas, mas também entre o povo comum.18

Finalmente, e em terceiro lugar, a aceitação da independência por parte dos federalistas decorreu principalmente do fato de o príncipe acenar, naquele momento, com uma proposta constitucional. Ora, recorde-se mais uma vez que esta equivalia conferir aos grupos locais o direito de administrar rendas, controlar força militar e, sobretudo, exercer a governabilidade dos povos. Conferir tais predicados a todos os grupos políticos locais equivalia desbaratar todo e qualquer despotismo. Ademais, se os princípios federalistas puderam ser implementados no interior da velha ordem, ao longo da fase do constituciona-lismo luso-brasileiro, por que não o seriam neste novo momento, marcado pela ruptura definitiva, no dizer de frei Caneca, com o “velho e estonteado Tejo”?. O símbolo dessa adesão dos federalistas ao “projeto do Rio de Janeiro”, e o fim de suas resistências a ele, materializou-se no Sermão da Aclamação, pregado pelo carmelita na matriz do Corpo Santo a 8 de dezembro de 1822. Neste aduzia Caneca que fora dom Pedro “aquele príncipe justo, magnânimo, incomparável, que tocado dos nossos males passados e das injustiças presentes do Congresso lisbonense a nosso respeito” proclamara “aquele último termo político, que nos dá liberdade, afiança a reintegração de nossos direitos postergados, assegura nossa felicidade e preconiza a nossa glória”.19

Essa adesão à independência, como se viu, ocorria num momento em que sua facção não exercia o controle político da província. Como também já se observou, em setembro de 1822, Bonifácio havia arquitetado a derrubada da Junta gervasista por meio de um enviado seu a Pernambuco, Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond.20 A resistência da Junta em aceitar os termos do

18 Cf: SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas. Raça e identidade social na formação do Estado-nação (Pernambuco, 1770-1830). In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Injuí: Hucitec/Unijuí, 2003, p. 497-520. 19 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 104. 20 Cf: Anotações de A. M. V. de Drummond à sua biografia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio

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projeto do Rio de Janeiro, notadamente o decreto de 16 de fevereiro relativo à criação do Conselho de Procuradores das Províncias, fora o motivo do golpe que a derrubara. Assim sendo, subia ao poder, em outubro de 1822, a Junta dos Matutos, tendo por presidente Afonso de Albuquerque Maranhão e por mem-bros Francisco Paes Barreto, Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque, Manoel Inácio Bezerra de Melo e José Marinho Falcão Padilha. Tratava-se de grupo local apegado aos antigos padrões de condução da política econômica do Antigo Regime, mormente vinculados à produção açucareira e baseados na Zona da Mata Sul da província. Estes vão encontrar alento no projeto de José Bonifácio e de outros áulicos do primeiro imperador, como demonstra seu entu-siasmo, externado em 23 de novembro de 1822, pela aclamação de dom Pedro. Neste dia, a Junta oficia ao imperador informando-o de que os “habitantes de Pernambuco” revelavam ser “os primeiros que consideraram como um dever dos Brasileiros (...) a necessidade de aclamar a Vossa Majestade Imperial por Seu Legítimo Monarca Constitucional, contido então em seus ardentes desejos pelo amor da Ordem e da legalidade”.21 Ainda nesse momento, federalistas e centralizadores construíam diferentes interpretações da independência, mas ambos abraçavam-na.

Porém, a frustração dos federalistas em relação ao governo imperial não tardou a se manifestar. Por um lado, acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro e sabidos em Pernambuco a 13 de dezembro de 1823, revelaram que entre as noções de federalismo constitucionalista e lealdade dinástica, o príncipe optava pela segunda. Nessa direção, fatos como o fechamento da Assembléia consti-tuinte sob baionetas, o acirramento das ações contrárias à liberdade de imprensa – que vinham sendo tomadas desde 1822 contra o Correio do Rio de Janeiro, de João Soares Lisboa – e a carta de lei de 20 de outubro de 1823, que acabava com as Juntas e instituía a presidência da província, deixavam claro que as pretensões federalistas estavam com seus dias contados. Curiosamente, porém, acreditava-se que o príncipe mantinha seus princípios constitucionais intactos, e que seriam seus apaniguados quem trabalhavam contra a união federativa do Império. Na edição de 19 de fevereiro de 1824 do seu Typhis Pernambucano, frei Caneca ainda sustentava a idéia segundo a qual “há de raiar o dia em que o

de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. De G. Leuzinger & Filhos, vol. XIII, 1890, p. 15-26.21 Cf: Ofício da Junta do Governo Provisório de Pernambuco ao imperador dom Pedro I. In: As Juntas Governativas e a Independência. (vol. 2). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura/Arquivo Nacional, 1973, p. 694-695. Recife, 23 de novembro de 1822.

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nosso augusto imperador, rompendo a venda que o cega, dará avesso à luz da verdade, que lhe encobrem a mais insolente adulação e o desenfreado egoísmo dos áulicos”. Contra esses “áulicos”, caberia aos pernambucanos abrir os olhos do imperador, constituindo-se na “salvação dos nossos brasileiros”, em “bene-méritos da pátria, com um inauferível direito à sua gratidão”.22

A “pátria” de Caneca nem era, então, o lugar de nascimento de outrora, nem a “pátria do cidadão”, isto é, do europeu da América, que ele defendera numa famosa dissertação escrita nos primeiros dias de 1822. Quando se refe-re aos pernambucanos constituírem a “salvação dos nossos brasileiros”, não está fazendo defesa de um federalismo provincial, ou pernambucano, mas de um princípio de federalização atinente a todas as províncias constitutivas da “pátria”. Ao mesmo tempo, assistiu-se ao malogro definitivo do que restara da Junta dos Matutos em meados de dezembro de 1823. Esta já havia passado por situação vexatória em fevereiro daquele ano, quando um grupo de negros livres chefiados pelo governador das Armas, Pedro da Silva Pedroso, havia tomado a capital por toda uma semana.23 Os negros, larga maioria da população, haviam lembrado aos matutos que nem sempre eram confiáveis. Bem mais que no governo anterior, chefiado por Gervásio Pires, o qual resistiu às pressões das Cortes no sentido de desembarcar tropas portuguesas no Recife, os matutos cooptaram e se apoiaram nos militares “pretos” e “pardos” e lhes ofereceram, através da profissionalização das milícias Bravos da Pátria e Monta-Brechas, salários, fardamentos, armas e distinções.24 Depois disso, tiveram que se ver com a “Pedrosada”, uma rebelião de caráter racial.

IVEm dezembro de 1823, Pernambuco achava-se a um passo da guerra civil.

Como sempre, o movimento com o objetivo de destituir o que restara da Junta dos Matutos partira do norte da província. A 13 de dezembro de 1823, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque chamava o Grande Conselho – instituição de feições democráticas criada ao tempo de Gervásio Pires – para anunciar, já à falta de outros membros da Junta, que “achando-se a Província bandeada, e ame-

22 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca..., p. 360. 23 Cf: SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas..., p. 515-520. 24 Cf: MELO, Antônio Joaquim de. Biografia de Gervásio Pires Ferreira. Vol. 1. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1973, p. 59.

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açando uma Guerra Civil, havendo já Corpo reunido em Goiana”, entendia ser “um dever sagrado do Governo fazer cessar as calamidades públicas”. Solicitava, então, “em nome do bem da humanidade e da Província, e mesmo em nome do Grande Império Brasileiro, que [os membros do Grande Conselho] os dispensas-sem de um Governo, em que tinham perdido toda a força moral”.25 Sabedores da carta de lei de 20 de outubro de 1823 que instituía a presidência da província, o Grande Conselho deliberou por nomear nova Junta, enquanto o imperador não informasse quem seria o primeiro presidente provincial. Naquela circunstância, a Junta dos Matutos deixava o poder nas mãos de um grupo que guardava cla-ros traços de continuidade em relação aos que estiveram à frente da revolução contra o Reino Unido em 1817 e do movimento do qual resultara a formação da primeira Junta de Governo. Desse grupo político fazia parte o carmelita frei Joaquim do Amor Divino Caneca, o poeta e advogado mulato José da Natividade Saldanha e o comerciante de grosso trato Manoel de Carvalho Paes de Andra-de – respectivamente, conselheiro, secretário e presidente da Junta Provisória.

No entanto, à crença quase ingênua de Caneca no imperador contrapunha-se o ardil deste em oferecer a presidência da província a Francisco Paes Barreto, morgado do Cabo, e a seu grupo adesista. Esta atribuição havia sido feita em 25 de novembro de 1823, mas quedara ignorada em Pernambuco até fevereiro de 1824. Na sessão do Conselho da Província do dia 3 daquele mês, discutiu-se o teor do “ofício do Morgado [Francisco Paes Barreto] participando ao Governo que havia recebido uma Carta Régia em que era nomeado Presidente do Go-verno da Província”. Membros do Conselho, a exemplo de Manoel Silvestre de Araújo, entenderam que não se devia dar a posse a Paes Barreto, ao passo que outros, como Bernardo Luiz Ferreira, pensavam o inverso. A decisão final foi a de que “não convinha por ora que se lhe desse posse”.26 A idéia era protelar ao máximo o retorno da “açucarocracia” da Mata Sul ao poder e buscar uma saída negociada com o imperador. Os ânimos foram se acirrando ao longo da primeira metade de 1824. Em lados opostos, federalistas e centralizadores ameaçavam a paz da província. De um lado, Paes Barreto, conjuntamente com Luís Francisco de Paula, Bernardo Luís Ferreira, Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque, José Carlos Mayrink e Manuel Inácio de Carvalho, constituem,

25 Cf: Sessão extraordinária do Grande Conselho de 13 de dezembro de 1823. Atas do Conselho do Governo de Pernambuco (vol. I). Recife: Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco/Arquivo Público Estadual João Emerenciano, 1997, p. 214-213.26 Cf: Sessão do dia 3 de fevereiro de 1824. Ibidem, p. 229.

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em 22 de março de 1824, um governo independente na vila do Cabo, seu reduto ao sul da província. Por sua vez, a Junta Provisória convocou importantes ses-sões do Grande Conselho até às vésperas da Confederação do Equador. A 7 de abril de 1824, numa dessas reuniões, votou-se sobre o reconhecimento de Paes Barreto como presidente da província. Num dos votos proferidos – o de frei Caneca – insistiu-se que aceitar a presidência do morgado era anuir às intenções anticonstitucionais do imperador e aceitar um projeto “despótico” para a nação. Argumenta o carmelita, enfim, que com “a nomeação do Paes Barreto em presi-dente não se pode conseguir o bem-estar dos povos desta província, e se arrisca a integridade do império”. Na sessão de 6 de maio, discutiu-se o envio de tropas ao sul da província “para fazer guerra às tropas de Francisco Paes Barreto”.27

Nesse momento fecundo, cercado de temeridades, o confronto entre federa-listas e centralizadores encerrava, em última análise, o conflito entre diferentes visões acerca da formação do Estado e da nação no Brasil. Não eram os destinos da província de Pernambuco ou mesmo das “Províncias do Norte” que estavam em discussão, mas o da nação. Por outras palavras, embora estas diferentes visões convivessem no mesmo contexto provincial, acenavam para as diferentes formas pelas quais então se construía o pacto entre governantes e governados no conjunto das províncias do Brasil. Com efeito, na sessão do Grande Conselho da Província, ocorrida a 6 de junho de 1824, Natividade Saldanha, secretário de governo, afirmou que o que desatinava no “projeto constitucional” então proposto pelo imperador não era a “insignificante extorsão de dinheiros” exi-gida pelos poderes centrais com base nas rendas provinciais, mas a ausência do estabelecimento de “poderes políticos, de assinar a cada um a sua esfera e de fixar os seus deveres e direitos; tratamos em suma da existência da Nação”. Ainda conforme Saldanha, demandava-se “o direito de uma Assembléia Consti-tuinte mesmo com as dificuldades e vicissitudes que são inevitáveis à liberdade e aos primeiros passos de uma nacionalidade nova, que reclamam paciência e proteção (...); queremos assim a verdade, o crédito, a superioridade e todo o proveito do Governo Representativo (...) Queremos a paz sim, mas no seio da honra satisfeita”. Para ele, aceitar o “pérfido projeto” constitucional era “arriscar a nossa ainda disputada Independência”, era “reconhecer nossa incapacidade para nos constituirmos pelo modo competente”.28

27 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca..., p. 538, 545. 28 Cf: MELO, Antônio Joaquim de. Biografia de José da Natividade Saldanha. Recife: Tipographia

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A idéia segundo a qual o partido federalista de Pernambuco buscava uma via alternativa de construção do Estado e da nação toma consistência à medida que se compreende que o princípio de autogoverno provincial recebia, então, duros golpes por parte dos poderes que se faziam cada vez mais centrais. Desse modo, uma aspiração histórica das “províncias do Norte” – a autonomia pro-vincial – acabava por configurar um projeto de Nação, o que impede de ver o federalismo pernambucano, ou quaisquer outros, como “separatista”. A rigor, o que se origina no confronto entre, por um lado, o partido federalista e, por outro, o imperador e os centralizadores locais, não é a mera oposição de uma província isolada que insiste em manter seu autogoverno a despeito das medidas adotadas a partir de um centro qualquer de peregrinação. Antes, trata-se de um confronto entre dois projetos de nação para o que fora outrora o conjunto do território da América portuguesa.

É freqüente na historiografia saquarema a acusação de que as províncias do Norte tramavam insistentemente a quebra da “comunhão nacional” e que só o príncipe possuiu visão de conjunto de modo a aglutinar as partes sempre tenden-tes ao “separatismo”: “A resolução de Dom Pedro [de permanecer no Brasil]”, aduz Oliveira Lima, “fora efetivamente a salvação do Brasil unido – unido entre si quando deixasse de sê-lo a Portugal”.29 Contudo, a idéia da integridade da América portuguesa, sempre presente às representações mentais dos federalistas pernambucanos, era bastante antiga. Em 1730, Sebastião da Rocha Pita referia-se ao “opulento império do Brasil”, o qual possuía “forma triangular”. Seus limites naturais compreendiam extenso território que “principia pelas bandas do norte no imenso rio das Amazonas, e termina pela do sul no dilatadíssimo Rio da Prata”. Quase cem anos depois, frei Caneca retomava tal representação das “fronteiras naturais” no Sermão da Aclamação, proferido a 8 de dezembro de 1822. Ali, o carmelita descalço evocava a imagem da quebra dos “infames grilhões que o velho e estonteado Tejo, no seu mais exaltado orgulho, forjava ao colossal Amazonas e ao rico Prata”.30 Em suma, não foram unicamente as elites do Centro-Sul, vistas com freqüência como “construtoras do Estado nacional”, que pensaram o Brasil em seu conjunto e advogaram energicamente em favor de sua unidade. Tal integridade territorial, não-política, era pensada desde o século

de Manoel Figueroa Faria & Filho, 1895, p. 41-44. 29 Cf: LIMA, Manuel de Oliveira. O movimento da independência..., p. 158. 30 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca..., p. 104.

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XVIII. Ela foi, pois, apenas retomada pelos federalistas pernambucanos, já em termos políticos, nos anos turbulentos da independência, fosse no momento de apoiar a ascensão do imperador ao trono, fosse na ocasião de contestá-la.

Desse modo, não é correto afirmar que se nutria, na antecâmara da Confe-deração do Equador, sentimentos de esquartejamento do império. A idéia, pelo contrário, era a de que esse movimento estava sendo levado a efeito a partir do Sul, por um punhado de grupos instalados no Estado recém independente – estes, sim, dotados do mais devotado anseio político de caráter regional. Ci-priano Barata, na edição de 18 de junho de 1823 da Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco, resumiu bem esse sentimento: “nós não temos feito este Império para meia dúzia de famílias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais desfrutarem (...) nós somos livres, as províncias são livres, o nosso con-trato é provisório e não está concluído”.31 Todos, e não apenas poucos grupos oligárquicos do Centro-Sul, deveriam desfrutar das benesses decorrentes do Estado independente. Ora, posto que se configurasse uma relação de usurpação de uns poucos em detrimento dos anseios por federalização e autonomia local, cabia esclarecer que havia condições virtuais para que identidades coletivas emergissem em contraste com a demanda pela unidade. Com efeito, em meio aos impasses que levarão à proclamação da Confederação do Equador, frei Caneca, na edição de 10 de junho de 1824 de seu Typhis Pernambucano, deixou claro que quando “aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga (...) aclamaram a s. m. imperador constitucional, e foram imitados pelos aferventados fluminenses, Bahia podia constituir-se república; Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí, federação; Sergipe d’El-Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional; Rio Grande do Sul, estado despótico”. Em meio a essas “possibilidades”, continua Caneca, “o Rio (...) aclamou s. m. imperador constitucional, e então s. m. não ficou mais do que imperador do Rio de Janeiro”. Caso quisesse contar com a anuência das demais províncias, haver-se-ia de respeitar não apenas a idéia de monarquia, mas também a de “sistema constitucional”, pois, “sem uma Constituição dada pela nação, acabou-se a união; fica cada província sobre si independente e soberana, pois que a sua união foi anunciada e baseada no conjunto indissolúvel das duas condições, sistema constitucional e s. m. imperador” (grifos no original).32

31 Cf: LEITE, Glacira L. Pernambuco, 1824: a Confederação do Equador. Recife: Massagana, 1989, p. 118.32 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de (org.). Frei do Amor Divino Caneca..., pp. 464-465.

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Definitivamente, esta não era uma visão “provincial” ou mesmo “regional” do problema da formação do estado e da nação: contemplava-se o conjunto do que antes havia sido a América portuguesa, e era toda essa territorialidade e a forma de governo sobre ela que estavam em jogo. Ademais, observava-se que existiam identidades políticas regionais passíveis, na linha do Direito das gentes, lido por Caneca a partir de Pufendorf, de fundamentar a constituição de corpos políticos autônomos. Mas as bases de tais constatações não eram as identidades regionais em si, mas uma visão que contemplava o conjunto das províncias. Assim, a ruptura aparecia no horizonte apenas como resultado de profundas frustrações e, sobretudo, como uma ameaça. Na verdade, como sugerem alguns historiadores, a eclosão da Confederação do Equador, em julho de 1824, seria em parte, par a par de uma secessão, mera tentativa de sensibilizar o imperador no sentido de este voltar atrás na imposição do juramento à Constituição ou-torgada e renovar o chamado dos deputados constituintes ao Rio de Janeiro.33

Desse modo, a interpretação segundo a qual a Confederação do Equador constituiu um episódio “quixotesco” – elaborada entre as décadas de 1830 e 1840 pelo padre Lopes Gama – não é, pois, de todo destituída de sentido. Na edição de 23 de fevereiro de 1833 d’O Carapuceiro, Gama afirma nunca ter duvidado “das boas intenções dos Patriotas de 24; mas sempre chamei de desassisada aquela empresa”. Diz igualmente “que não tinha por crime o que fizeram os Carvalhistas, mas sim por loucura”.34 Anos mais tarde, a 9 de janeiro de 1846, faz alusão em artigo publicado no jornal Sete de Setembro ao fato de que “em 1824, houve por aqui aquela quixotada da Confederação do Equador”, e no mesmo jornal, na edição de 16 de abril de 1846, se refere a “quixotal revolta republiqueira da Confederação do Equador”.35

Os errados cálculos políticos e militares, seu malogro repentino e a falsa expectativa de adesões fizeram da revolução de 1824 mais um movimento de grandes idéias que de grandes mudanças assentadas na realidade. Exagera, pois, pelo outro lado, Oliveira Lima quando afirma que “grande fora o perigo da

33 É possível ler esse tipo de interpretação em MELLO, Evaldo Cabral de. Frei Caneca ou a outra Independência..., p. 38 e BERNARDES, Denis A. de M. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem constituição soberana não há união. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Injuí: Hucitec/Unijuí, 2003, p. 245.34 Cf: O carapuceiro. Recife, n° 41, 23 de fevereiro de 1833. 35 Cf: QUINTAS, Amaro. O padre Lopes Gama – Um analista político do século passado. Recife: Editora Universitária da UFPE,1975, p. 76.

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associação republicana das províncias do Nordeste contra a solidez ainda não cimentada da era monárquica”.36 Afinal, pouco havia se laborado até 1824 no sentido de as províncias do Norte, incluindo as do Extremo Norte, que também foram contatadas naquele momento, formarem efetivamente a “federação” que o movimento daquele ano propunha. Até Carvalho proclamar a Confederação por meio de manifestos, a crença dominante era numa revolução constitucional do Brasil, e não na secessão das províncias do Norte ou mesmo, e apenas, de Pernambuco. Note-se, ademais, que no Typhis Caneca imaginara a formação da federação independente das províncias do Norte como um exercício de retórica. Sua meta, afinal, consistia em conferir governabilidade federativa ao Brasil, do Amazonas ao Prata. Em julho de 1824, porém, a resistência “nacional” esboroou-se na dura realidade provincial.

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Recebido: novembro/2007 - Aprovado: setembro/2008

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Utopia divididaa crise do pcB (1979-1992)1

Fabricio Pereira da SilvaMestre em História/UFRJ e doutorando em Ciência Política/Iuperj

resumoEsse artigo analisa a crise e divisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB), processo que teve seus acontecimentos decisivos entre 1979 e 1992. Enquanto suas propostas para a redemocratização brasileira em boa parte foram vitoriosas (superação pro-cessual e pacífica da ditadura através da formação de uma ampla frente democrática intraclassista), o PCB encontrou sua maior crise.

palavras-chavesPartido Comunista Brasileiro • socialismo • redemocratização brasileira.

abstractThis article deals with the crisis of the Brazilian Communist Party – henceforth, PCB – a process which has its decisive moments between 1979 and 1992. Despite the fact that its proposals for the Brazilian re-democratization were successful in a great deal (peaceful and processual overcoming of the dictatorship through the construction of a wide democratic intra-class coalition), the PCB met its greatest crisis.

KeywordsBrazilian Communist Party • socialism • brazilian re-democratization.

1 Este artigo é parte de dissertação de mestrado que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq para sua realização.

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apresentaçãoEste artigo aborda o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ao longo da

abertura e transição democrática. O PCB oscilou, ao longo de sua trajetória, entre a adesão a um projeto revolucionário e tendências mais reformadoras em sua praxis e objetivos; entre os exemplos internacionais do “socialismo real” e a realidade brasileira; entre a opção de se constituir num partido de massas, ou assumir o papel de “partido de quadros”, tendo por objetivo o “assalto” ao poder; entre a via pacífica ao socialismo e a insurrecional. No período entre 1979 e 1992, o PCB perdeu definitivamente seu papel hegemônico e referencial no campo das esquerdas para uma nova agremiação (o Partido dos Trabalha-dores – PT, fundado em 1980) e assistiu à erosão de suas bases sindicais. Na seqüência, com a legalidade em 1985, depois de trinta e oito anos, os pecebistas foram obrigados a amargar ínfimos resultados eleitorais. Tudo isso à revelia da vitória do caminho defendido pelo partido (e combatido por outros setores das esquerdas) para a superação da ditadura: pacífico, negociado, progressivo. Tiveram que conviver com crises internas que custaram esporádicas cisões e com a crise que acometeu o “mundo socialista” e o pensamento marxista em geral. Tudo isso culminou na autoproclamada extinção do PCB.

Nas próximas páginas exponho a questão que norteia o artigo e as três hipóteses elaboradas para respondê-la. Apresento na seqüência os principais mo-vimentos do partido no período estudado e os fatores que, em minha avaliação, mais contribuíram para sua crise. A narrativa será entremeada por trechos de entrevistas2 e por passagens retiradas de documentos, revistas e jornais publica-dos pelo partido ou por grupos organizados em torno de suas disputas internas.3

2 Colhi depoimentos de militantes dos diferentes grupos que tiveram peso no PCB no período analisado. Optei majoritariamente por militantes representativos da vida partidária – entrevistando também alguns militantes de base, o que permitiu uma visão mais complexa do objeto. Foram entrevistados Geraldo Rodrigues dos Santos, Gilvan Cavalcanti Melo, Givaldo Siqueira, Leandro Konder, Severino Theodoro de Mello, Zuleide Faria de Melo e Zuleika Alambert. Ao analisar os depoimentos, considerei que histórias de vida são reconstruções a posteriori de memória e iden-tidade, realizadas através de diversas “negociações” e seleções, apresentando “esquecimentos”, desencontros e “não-ditos” (POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 2, n.º 3, 1989.3 Em termos de imprensa partidária, pesquisei o último ano da fase “oficial” do jornal Voz Operá-ria (1979), o jornal Voz da Unidade (1980-1991) e a revista Novos Rumos (1986-1991). Quanto à imprensa publicada por grupos oposicionistas ou dissidentes, destaco a última fase do jornal Voz Operária (1980-1982), editado pelos “prestistas”, e a revista Presença (1983-1992) dos “renovadores”, entre outras.

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o paradoxoA crise e a “dissolução” do PCB causaram perplexidade em qualquer obser-

vador que soubesse da importância daquela agremiação na história brasileira ao longo da maior parte do século XX. Um partido que chegou a ser hegemônico nas esquerdas e nos movimentos sociais, que participou em vários momentos da chamada “alta política”, sem nem mesmo possuir existência legal na maior parte do tempo, passou por um processo de definhamento, terminando “dissolvido” – na verdade dividido. E mais: tal processo teve sua fase decisiva no momento em que as propostas do PCB para a redemocratização brasileira se tornaram majoritárias no campo oposicionista e foram finalmente vitoriosas – ainda que por caminhos tortuosos, diversos dos propugnados pelo partido.

Para ajudar a compreender esse aparente paradoxo, pode-se lançar mão da seguinte chave explicativa: o Brasil estava completando naquele momento sua modernização capitalista, por meio de uma “revolução passiva” – e a ditadura de caráter “modernizador autoritário” constituiu-se como um passo fundamental nesse caminho. Antonio Gramsci lançou mão do conceito de “revolução pas-siva” para compreender a possibilidade de uma sociedade passar a um novo estágio de organização sem uma revolução aberta. Tal fenômeno se daria de uma maneira processual e em certos aspectos incompleta, a partir de um grande equilíbrio na luta de classes.

A sociedade brasileira passava, através desse processo, por profundas transformações, tornando-se assim mais complexa, com o desenvolvimento de uma pujante sociedade civil. Nos dizeres de Gramsci, tornava-se uma sociedade “ocidentalizada”,

onde se dá uma relação mais equilibrada entre sociedade civil e sociedade política, ou seja, onde se realizou concretamente a “ampliação” do Estado. (...) No “Ocidente”, (...) as batalhas deveriam ser travadas inicialmente no âmbito da sociedade civil, visando à conquista de posições e de espaços (“guerra de posição”), da direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e para sua posterior conservação.4

4 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 147.

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Nesse novo contexto, teriam mais chance de êxito organizações partidárias adaptadas à nova realidade: mais democráticas, desburocratizadas, plurais.

Partindo dessa premissa eu recorro a três hipóteses. A hipótese central aponta a persistência de concepções e práticas buro-

cráticas “centralizadoras” e mesmo antidemocráticas no PCB, quando o país completava seu processo de modernização capitalista pela “via passiva”, como fator determinante para a crise geral que acometeu o partido. Tal situação levou a uma progressiva inadequação deste à sociedade que pretendia transformar, à baixa representação pecebista entre os setores modernos do “novo” movimento sindical e à paralisia interna derivada de sua progressiva divisão. As fontes utilizadas permitem observar a reprodução de tais procedimentos e concepções centralistas e antidemocráticas no PCB. Considerando-se a conclusão naquele momento do longo processo de modernização capitalista do Brasil,5 é possível relacionar os dois fatores. Tal combinação entre entorno cambiante e ator político cristalizado teria levado à crescente fraqueza (seja orgânica, eleitoral, proposi-tiva), paralisia e esfacelamento do PCB, levando-se em conta a redução de sua inserção entre os setores organizados mais modernos da classe trabalhadora, sua dificuldade de implantação em regiões de desenvolvimento capitalista mais pujante, o congelamento em patamares muito baixos de seu caudal eleitoral, a incapacidade de dar respostas às transformações do Brasil, do capitalismo internacional, do socialismo real. Análises quantitativas acerca da composição social e espacial do partido provavelmente corroborariam tal hipótese e devem ser objeto de futuras pesquisas.

Há, por fim, duas hipóteses secundárias. Uma relaciona a crise do PCB às dificuldades do partido em lidar com a transição negociada (à qual terminou atrelado em posição subalterna) da forma como se deu: uma transição “fraca”, com predominância dos interesses conservadores. Enquanto isso, o PT, assu-mindo posição claramente contrária àquele processo, viabilizou-se enquanto força hegemônica nas esquerdas e no movimento sindical. A outra aponta para a crise do “mundo socialista” que também jogou importante papel no processo, legitimando e reforçando tendências já presentes no PCB.

5 Cf., COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 1992; VIAN-NA, Luiz Werneck. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

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Luta pela democracia, democracia em debate – o pcB na “abertura” (1979-1983)Praticamente desde o princípio da ditadura, o PCB se definiu pelo enfren-

tamento pacífico àquele regime, adotando “a tática da ‘Frente Democrática’. Os pecebistas deveriam se aliar a todos os que se opunham à ditadura. O partido defendia que a derrubada do regime deveria se dar através de soluções politicamente negociadas”.6 A gênese dessa política foi assim descrita por um entrevistado:

O partido convocou um congresso para reafirmar a nossa linha política, em cima de cisões, de quedas, o pessoal saindo para o exílio... Então, a gente tentou organizar o [VI] congresso que foi realizado em 1967 e que referendou toda a nossa política de frente democrática, da questão já da Anistia, da Constituinte, nos documentos de 1967 já está explicitada toda essa política de abertura política, de se trabalhar através da sociedade, para “derrotar” politicamente a ditadura, e não para “derrubar” a ditadura. A “derrubada” significa a luta armada, e a “derrota” significava para nós o envolvimento da sociedade, dos movimentos políticos, da população no sentido de isolar a ditadura e dar uma saída até negociada, como na realidade aconteceu.7

Tal política, de um modo geral, manteve-se ao longo de toda a ditadura, porém seu percurso não foi tão linear quanto a memória pode sugerir. Sabe-se que essa linha política foi aprovada com grandes dificuldades em 1967 (à custa de uma grande perda de contingentes na agremiação) e que permaneceu sendo questionada por alguns, até ser abertamente atacada por Luiz Carlos Prestes e seu grupo já no exílio – e ruidosamente no retorno ao Brasil. O depoimento a seguir sugere a permanência de uma visão crítica à “via pacífica” ao longo de todo o período: “Eu sempre achei que seria guerrilheira, sempre achei. Mas nunca fui. (...) como o PCB jamais optou pela luta armada, eu jamais saí... Mas por outro lado, eu me impus (o que não é tão fácil) uma disciplina partidária, é também assim: num tipo de divergência, ou você é absolutamente disciplinado ou não sobrevive”.8

6 PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: história e memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 206-207.7 Gilvan Cavalcanti Melo, depoimento cedido ao autor em 30 de julho de 2003, no Rio de Janeiro (RJ).8 Zuleide Faria de Melo, depoimento cedido ao autor em 21 de abril de 2004, no Rio de Janeiro (RJ).

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Os anos 1970 foram especialmente difíceis para o PCB. Se antes o partido sofreu uma verdadeira “sangria” de seus quadros para as organizações da “es-querda armada”, a partir de 1974 se tornou (desmanteladas aquelas organizações) o alvo preferencial do aparelho repressivo. O princípio do complexo processo de abertura, a partir do governo de Ernesto Geisel, coincide com um aumento da perseguição aos pecebistas. O partido se viu obrigado praticamente a recomeçar. No exterior, seus dirigentes esforçavam-se para manter a unidade, enquanto no Brasil o partido buscava reorganizar-se em cada estado.

O período estudado começa com a extinção do Ato Institucional n.º 5 e a decretação da Anistia – o que abriu novos espaços para a atuação do PCB e permitiu a volta dos dirigentes exilados na Europa. No entanto, deve-se recor-dar que os pecebistas eram obrigados ainda a conviver com a ilegalidade e a repressão (ainda que numa intensidade baixa se comparada aos anos anteriores). O partido reconhecia que o quadro tinha mudado, mas não o suficiente para que sua linha política devesse sofrer alguma inflexão profunda – devendo continuar assim atrelado na prática ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB – e, a partir de 1979, Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB). Os pe-cebistas atuaram ao longo de todo o período ditatorial naquele partido e alguns chegaram a disputar e conquistar cargos eletivos pela legenda.9

No entanto, não era isso o que pensavam amplos setores do quadro par-tidário e, a partir de 1979, iniciou-se a atuação pública dos autodenominados “renovadores” – boa parte dos intelectuais de renome do partido que exigiam a democratização das instâncias partidárias e o que classificavam como o “are-jamento” do ideário comunista através da concepção da “democracia como valor universal”. E também dos chamados “prestistas”, agrupados em torno de Prestes, que pugnavam pelo “resgate do caráter revolucionário” pecebista e por uma postura de enfrentamento aberto em relação à ditadura.

Os primeiros defendiam que a luta pela democracia não deveria ser encarada como um objetivo tático (luta por um espaço mais propício para a atuação do partido), mas estratégico, pois seria indispensável na formação de elementos necessários ao desenvolvimento socialista. Além disso, “[d]iscordavam da visão ‘etapista’ do processo revolucionário e consideravam equivocada a proposta de revolução nacional-democrática, por pressupor uma subordinação da questão

9 O papel dos pecebistas na formatação do MDB efetivamente como uma frente oposicionista ainda está por ser mais bem estudado.

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democrática à questão nacional”.10 Já os segundos seguiam de perto as críticas apresentadas por Prestes em sua Carta aos comunistas, de 1980: “Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar de seu papel revolucionário e assumir o freio do movimento popular, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores”.11

Ambos os grupos já vinham dando sinais de vida nos anos anteriores e, espe-cificamente, os problemas entre Prestes e o restante da direção se manifestaram no exílio, mas sem o conhecimento das bases do partido. No entanto, somente agora se iniciava a disputa aberta em torno da linha política e do poder parti-dário. Travou-se, então, uma das disputas internas mais difíceis da história do partido que foi “resolvida” da maneira tradicional entre os pecebistas. Afastadas ou isoladas as dissidências ditas “à esquerda” e “à direita”, emergiu vitorioso um grupo um tanto indefinido que se identificou basicamente a partir de sua contraposição a “prestistas” e “renovadores”, simbolizando um “justo centro” e buscando representar as propostas que vinham sendo defendidas pelo partido desde o congresso anterior, que avaliaram como corretas até aquele momento. Em especial, afirmaram simbolizar a maioria dos pecebistas. Esse grupo, for-mado pela maior parte do Comitê Central mantido ao longo da ditadura, pelos parlamentares pecebistas eleitos em 1982 através da legenda peemedebista e, a partir de 1986, pela pecebista, comandaria o partido até decidir por sua extinção em 1992.

Na prática, o partido seguiu uma trajetória marcada por certa dubiedade, buscando equilibrar-se entre o necessário enfrentamento com o regime e o sempre presente temor de um retrocesso. Evitava-se o enfrentamento aberto e a radicalização do discurso – o que, somado ao já citado temor de um retrocesso ditatorial, fez com que a atuação pecebista de um modo geral parecesse, a diver-sos setores das esquerdas, mais do que nunca excessivamente “reformista”. O partido caracterizava o Brasil como um país capitalista industrial-agrário, com nível médio de desenvolvimento das forças produtivas, emergente nas condições da crise geral do capitalismo, da internacionalização e da interdependência do processo econômico mundial hierarquizado pelo imperialismo (...). O capitalis-mo brasileiro, monopolista e integrador do latifúndio, tem como característica

10 CARONE, Edgard. O PCB (volume 3 – 1964-1982). São Paulo: Difel, 1982, p. 212.11 PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. Apud PANDOLFI, Dulce, op. cit., p. 220.

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fundamental a sua dependência ao imperialismo (em especial o norte-americano) e articulou organicamente os mecanismos deste, dos monopólios e do latifúndio com os do Estado.12

Tal análise do capitalismo brasileiro como monopolista, relacionado in-trinsecamente ao imperialismo e com resquícios pré-capitalistas (a presença do latifúndio) levou à definição do processo revolucionário como “antiimperialista, antimonopolista e antilatifundiário”:

no campo dos exploradores destacam-se o imperialismo (...), os mo-nopólios e o latifúndio, articulados organicamente com o Estado. Eles são os principais exploradores e opressores não apenas do proletariado, mas ainda dos camponeses e das camadas médias urbanas – isto é, do povo brasileiro –, e oprimem inclusive a burguesia não-monopolista. O imperialismo, porém, limita o próprio desenvolvimento de grupos monopolistas brasileiros e possui conflitos também com interesses lati-fundiários. A batalha antiimperialista, por isto mesmo, está no centro da luta dos comunistas. O imperialismo responde, no Brasil como em todo o mundo, em primeiro lugar pela exploração econômica e pela opressão social e política.13

De pouco adiantava a reiterada afirmação da centralidade da “luta pela conquista e ampliação contínua da democracia e as transformações econô-mico-sociais necessárias à sua conquista, consolidação e avanço, na medida em que o imperialismo e a reação interna, para garantirem sua dominação, concentram-se principalmente na supressão ou restrição da democracia”.14 Não adiantava também inverter a fórmula que traduzia o caráter da revolução brasileira – de “nacional e democrática” para “democrática e nacional”. Na essência, a questão nacional mantinha sua primazia sobre a questão democrá-tica. A centralidade pertencia à luta contra o imperialismo, o que favorecia um conteúdo nacionalista e permitia a aliança com setores burgueses (na prática uma reafirmação da velha fórmula da “burguesia nacional”). Por mais que se defendesse também que a contradição entre burguesia e proletariado já havia

12 PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. Uma alternativa democrática para a crise brasileira. São Paulo: Novos Rumos, 1984, p. 127-128.13 Ibid., p. 156-157.14 Ibid., p. 158.

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assumido a centralidade no processo revolucionário brasileiro, na prática esse fator acabava secundarizado. O PCB permanecia com dificuldades de colocar o socialismo na ordem-do-dia.

A luta contra a ditadura avançava da forma que os pecebistas propunham. Eles não conseguiam, porém, traduzir aquele momento favorável à sua política em fortalecimento orgânico e influência social. Pelo contrário: perdiam progres-sivamente seu espaço entre os setores progressistas organizados da sociedade e no próprio campo das esquerdas. A esse respeito, é necessário comentar mais detidamente o surgimento no período de “setores modernos” do sindicalismo, responsáveis pela retomada do movimento sindical progressista nos últimos anos da década de 1970. Os atores dessas lutas eram trabalhadores organizados dos setores de ponta do capitalismo brasileiro, concentrados em grande parte na região do ABC paulista. Esses novos setores (que vieram a ser conhecidos como o “novo sindicalismo”, ou “combativos”) sustentaram a fundação de um partido dos trabalhadores, o PT, obtendo o apoio de setores da intelectualidade progressista, de setores progressistas da Igreja Católica (integrantes das comuni-dades eclesiais de base) e da “esquerda revolucionária” (trotskistas, comunistas revolucionários e herdeiros da “esquerda armada” dos anos 1960), extremamente críticos ao PCB. O PT logo se definiu como uma alternativa “à esquerda” dos pecebistas, assumindo um papel oposicionista mais radical, avesso ao diálogo com o regime – criticando o “reformismo” da linha pecebista.

No meio sindical, as diferenças se acentuaram. Desde as greves do final dos anos 1970, o PCB criticava o pretenso “radicalismo” e “voluntarismo” do “novo sindicalismo”, enquanto este associava os pecebistas ao sindicalismo pré-1964, para eles “pelego” e “reformista”. Tais posições acabaram levando os setores sindicais dos dois partidos a caminhos opostos, contribuindo para a formação de duas centrais sindicais: os petistas apoiaram decisivamente a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 1983, enquanto os pecebistas, por alegadas razões táticas, escolheram permanecer atrelados a setores conserva-dores do movimento sindical e participar da fundação da Central Geral dos Trabalhadores (CGT) em 1986. Aos pecebistas (que além de tudo fincavam raízes em setores mais “antigos” ou “tradicionais” da classe operária brasileira) pareceu mais seguro disputar espaço com os conservadores e fazer valer suas posições, buscando hegemonizar a CGT. A alternativa a isso seria conviver com os setores mais “combativos” que controlavam a CUT e possuíam, em relação ao PCB, a vantagem de um discurso igualmente progressista, mas calcado numa

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inserção já consolidada nos setores sindicais sobre os quais a CUT tinha ascen-dência. De qualquer forma, a ilusão da possibilidade de hegemonia (ou mera sobrevivência) pecebista na CGT levou o partido a atuar por vários anos numa central sindical dividida e progressivamente enfraquecida, enquanto a CUT (he-gemonizada pelo PT) atravessou a década de 1980 em constante crescimento.15

Esses dois fenômenos – surgimento do “novo sindicalismo” e do PT – foram recebidos com extrema dificuldade pelos pecebistas. Especialmente o último se configurava como um fato novo na política brasileira: um partido de massas com forte ascendência operária, grande inserção nos movimentos sociais, rela-cionado aos setores mais pujantes do movimento sindical. Ou seja, um partido com grande potencial para ocupar exatamente o espaço que o PCB buscava hegemonizar desde sua fundação. Um adversário em potencial que poderia tornar-se um entrave ao projeto pecebista. Assim, os pecebistas nutriram um necessário respeito ao PT, ao mesmo tempo em que o acusaram de “sectarismo” ou “esquerdismo” em alguns momentos e de “socialdemocratismo” em outros. Os pecebistas iam reconhecendo aos poucos o crescimento e consolidação do PT (muitos, a princípio, apostavam em seu fracasso), ao mesmo tempo em que buscavam se diferenciar dele, declarando-se os verdadeiros representantes dos trabalhadores por sua “experiência”, “sensatez” política e a defesa aberta do socialismo. Tratava-se de uma maneira de manter a crença em dias melhores que possivelmente viriam com a legalidade e a disputa em campo aberto. Quando isso ocorresse (acreditava-se), o PCB poderia recuperar seus dias de glória.

Não foi o que se viu. O PT ocuparia o papel de partido hegemônico nas esquerdas e no movimento sindical que outrora havia sido do PCB, tornando-se ainda uma real alternativa de poder – algo que o PCB, por contingências da política brasileira e de sua própria essência, nunca pôde ser. Assim, para muitos pecebistas ficou a percepção (correta, mas não pelos motivos apontados por eles) de que houve uma forte relação entre o surgimento do “novo sindicalismo” e do PT e o “ocaso” do PCB. É muito comum nos depoimentos colhidos a idéia de que houve um movimento consciente por parte do regime em retardar ao máximo a legalização do PCB, enquanto o PT, com a vantagem da legalidade, consolidava suas posições. Da mesma forma, o “novo sindicalismo” surgiria no espaço deixado pela repressão anterior ao sindicalismo e ao partido. Faz-se

15 A respeito desse tema, cf. SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos. São Paulo: Boitempo, Rio de Janeiro: Unirio, 2001.

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questão de desmistificar a “novidade” do “novo sindicalismo” e a representação dos trabalhadores reivindicada pelo PT:

O Lula entra no movimento sindical via intervenção do sindicato. Essa história do novo movimento sindical foi em função do esvaziamento, do espaço deixado em branco pelos comunistas e trabalhistas na época. (...) O PT não era partido operário, ninguém fala isso! Naquela hora o mo-vimento operário era aquele ali. Mas se o PCB fosse legalizado naquela altura vinha com toda a tradição, com todos os companheiros vindos do exílio que estavam espalhados por aí, a intelectualidade que era do partido... Isso tudo foi absorvido pelo PT. O partido estava legal, a gente não era legal. Não tinha espaço na política.16

Apesar de em parte distorcerem a realidade, a força contida em diversos depoimentos colhidos acerca do tema ao longo da pesquisa está na confirma-ção da importância atribuída à falta de representatividade dos pecebistas no renascente movimento sindical progressista e ao surgimento de um partido nos moldes do PT para o enfraquecimento do PCB. As explicações aventadas por esses atores nos dias de hoje não dão conta de tal fenômeno – ou pelo menos de seus principais fatores, já que algumas observações reproduzidas acima têm sua razão de ser17 pelo menos enquanto fatores secundários. Mas, de qualquer forma, a simples necessidade de formulação dessas explicações (temperadas com variadas doses de ressentimento) aponta o golpe que representou para os pecebistas a ascensão de um movimento de trabalhadores indiferentes ou fran-camente hostis ao PCB e de um partido que se proclamava dos trabalhadores – igualmente indiferente ou mesmo hostil ao partido até então referido como a vanguarda da classe operária. Naquele momento, imensos setores do operariado rejeitavam aqueles que pretendiam representá-los. Certamente um duro golpe, mal assimilado até hoje, e determinante da visão negativa apresentada pelos depoentes sempre que se referem ao PT.

Naquele momento, os países socialistas já davam sinais de desgaste na opinião pública mundial (com episódios como a invasão do Afeganistão pela

16 Gilvan Cavalcanti Melo, depoimento cedido ao autor em 9 de setembro, cit. 17 O PT de fato levou vantagem por ter sido legalizado antes do PCB, bem como a repressão sofrida pelos pecebistas ao longo da ditadura contribuiu para seu afastamento dos setores mais pujantes do sindicalismo.

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URSS em 1979 e a repressão na Polônia ao Sindicato Solidariedade) e claros sinais de dificuldades internas em diversos níveis.18 No entanto, o PCB con-tinuava mantendo oficialmente sua imagem atrelada àquelas experiências: “A direção nossa, por uma série de razões – até pela luta com o Prestes – era uma direção afinada com a URSS – o Movimento Comunista Internacional era um elemento fundamental no jogo”.19 A direção pecebista apoiava os regimes socialistas, chegando a defender categoricamente que “A União Soviética e os países do socialismo avançado constroem as bases materiais e culturais do comunismo”.20 Pode-se entender o impacto que os pecebistas iriam vivenciar nos anos seguintes, enquanto um partido como o PT se posicionava criticamente em relação às experiências socialistas, evitando sua associação a “modelos” internacionais – como, de resto, a uma definição teórica mais restritiva.

entre a esperança e a decepção – o pcB na redemocratização (1984-1988)O PCB seguiu nos primeiros anos da década de 1980 em seu “delicado

equilíbrio” entre atuação institucional e luta de massas, entre o enfrentamento ao regime e o temor de um retrocesso na transição democrática. Tal linha de atuação ficou clara nos momentos centrais da redemocratização, entre 1984 e 1985. Nos primeiros meses da campanha pelas Diretas Já para presidente (sustentada pela direção do PMDB e imediatamente apoiada pelo PT), uma ausência sentida foi a do PCB. O partido sempre havia defendido a proposta da Assembléia Constituinte – e mesmo após aderir à campanha, reafirmaria a centralidade da proposta de Assembléia Constituinte, à qual subordinava a luta por eleições diretas em todos os níveis. Além disso, é razoável supor que, naquele momento, lidando com suas lutas internas e retomando sua campanha pela legalidade, o partido estivesse num momento de paralisia decisória e temor em relação à possibilidade de um retrocesso na transição democrática, “moti-vado” pelas manifestações populares. Qualquer que tenha sido o motivo, o fato é que o PCB tardou a prestar apoio e a participar efetivamente do movimento, engajando-se nele apenas quando percebeu sua irreversibilidade.

18 Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.19 Givaldo Siqueira, depoimento cedido ao autor em 9 de setembro de 2003, no Rio de Janeiro (RJ). 20 Partido Comunista Brasileiro. Uma alternativa democrática para a crise brasileira, op. cit., p. 50.

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Com a derrota no Congresso Nacional da Emenda Constitucional pelas elei-ções diretas em todos os níveis, o partido afirmou não ter preconceito em relação à negociação. Com o crescente deslocamento da “luta” para a “negociação”, a opção mais viável passava a ser apoiar uma candidatura única de oposição no Colégio Eleitoral que se aproximava – o que o PCB fez sem titubear, seguindo sua divisa de “lutar para negociar, negociar para mudar”. Formada a Aliança Democrática (sustentada pelo PMDB e por dissidentes do regime reunidos na Frente Liberal), o PCB prestou apoio imediato à candidatura de Tancredo Neves e José Sarney, vitoriosa na votação indireta. Com o falecimento de Tancredo, o partido apoiou o governo encabeçado por Sarney (que meses antes era presidente do governista Partido Democrático Social – PDS) em seus primeiros anos e ocu-pou espaços na administração federal, passando para a oposição apenas em 1988.

Para uma melhor compreensão das razões da política pecebista naquele período, é importante lançar mão de seu programa recém aprovado no VII Congresso. Nele, afirmava-se que o processo político brasileiro poderia seguir três direções:

A primeira é a da regressão política, pela via do golpismo, objetivando a manutenção dos traços centrais do regime. (...) A segunda perspec-tiva, passível de ser conjugada com a primeira, e na qual investem setores ponderáveis que sustentam o projeto de auto-reforma do re-gime, encontrando ressonância nos segmentos mais débeis da frente democrática, é a da “conciliação nacional” – um pacto de elites que, contemplando reivindicações de setores da oposição burguesa, conduza a um entendimento pelo alto, capaz de articular um novo respaldo po-lítico e uma base social mais larga para o regime reformado. A terceira perspectiva, que os comunistas avaliam como a mais favorável para a evolução do processo brasileiro, aponta na direção de uma solução po-lítica negociada para os impasses atuais. Trata-se de, à base da pressão organizada das massas, conquistar as condições sociais e políticas – no plano do movimento social e no plano institucional – para ultrapassar o regime e sua orientação econômico-financeira recessiva através de negociações que incluam setores do governo, do regime e do PDS.21

21 Ibid., p. 176.

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É razoável supor que, ao prestar apoio à Aliança Democrática, vários pe-cebistas entendessem que aquilo era a materialização desse terceiro caminho – o preferido pelo partido. No entanto, assim como na análise oficial do PCB a segunda alternativa era “passível de ser conjugada com a primeira”, parece ter escapado à compreensão pecebista naquele momento que a terceira opção também era passível de conjugação com a segunda – já que a realidade nunca é estanque a ponto de caber em esquematizações, por mais lúcidas que sejam. O processo brasileiro parece ter apresentado características dos dois últimos “tipos ideais” apresentados na análise pecebista: de fato ultrapassou o regime e em parte modificou sua política econômica, além de ter se dado de forma negociada e com a participação de setores do governo. Mas, ao mesmo tempo, não deixou de ser majoritariamente um pacto de elites, assumindo caráter de “conciliação nacional” (expressão utilizada por Tancredo em sua campanha), em parte exatamente pela insuficiente participação das massas no processo – um fator importante para que o processo se desse da forma desejada pelo PCB – algo reconhecido pela própria análise do partido.

O que a maioria dos pecebistas não compreendeu em toda a sua extensão naquele momento foi a dimensão conservadora da transição brasileira. Pode-se recorrer aqui a Carlos Nelson Coutinho que apontou a redemocratização bra-sileira como uma “transição fraca”. Havia um “risco contido nessa forma de transição relativamente ‘negociada’. Nela se verifica sempre (...) a combinação de processos ‘pelo alto’ e de processos provenientes ‘de baixo’; e, decerto, é o predomínio de uns ou de outros o que determina o resultado final”.22 Como naquela transição predominaram as forças do “alto”, ela terminaria por

reproduzir, ainda que “atenuados” e “modernizados”, alguns dos traços mais característicos do tradicional modo “prussiano” e “passivo” de promover as transformações sociais no Brasil. Uma transição desse tipo – que poderíamos chamar de ‘fraca” – implicava certamente uma ruptura com a ditadura implantada em 1964, mas não com os traços autoritários e excludentes que caracterizam aquele modo tradicional de se fazer política no Brasil.23

22 COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo, op. cit., p. 52.23 Ibid., p. 53.

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No entanto, malgrado o caráter conservador do novo regime, se comple-taria o longo processo de redemocratização, com o qual os pecebistas haviam contribuído com sua política de “frente democrática”. Política que o partido, superado o regime ditatorial, manteve ao longo do que considerou um “período de transição” e que, assim como não vinha dando frutos mais práticos ao PCB nos últimos anos de autoritarismo, menos ainda os deu nos tempos da “Nova República”. O autodenominado “artífice” da nova ordem (dissociada de qual-quer tipo de “transição forte”) decaía, enquanto o então partido anti-sistêmico consolidava-se. O PT – que havia se posicionado claramente contra a “tran-sição pactuada”, contra o Colégio Eleitoral e, desde o primeiro dia, contra o governo Sarney – aparecia na nova fase democrática como o núcleo principal da oposição de esquerda e o único em condições de apresentar uma alternativa progressista ao novo regime. O aumento de uma difusa percepção de que os sonhos democráticos acalentados por tanto tempo como a “cura” dos males na-cionais não se realizariam na “Nova República” só iria consolidar a hegemonia petista entre a esquerda e os trabalhadores organizados. Por seu turno, a cada greve que ocorria (em geral liderada por sindicalistas ligados à CUT) o PCB fazia uma série de objeções, temendo que uma radicalização dos movimentos populares pudesse desestabilizar o novo regime. O PCB se declarava o “artífi-ce” da nova ordem por ter defendido a transição “negociada” desde seu início, mas se afastava cada vez mais das massas que julgava representar enquanto “partido da classe operária”.

O PCB acabou assumindo – mesmo que não fosse essa sua intenção – um papel de “contenção” no movimento sindical. Por outro lado, a década de 1980 representou, de modo geral, um período de ascenso e radicalização das lutas sindicais no país – o que se depreende do maior número de greves, aumento do número de sindicatos e sindicalizados, ascendência do movimento sobre a chamada “grande política”, entre outros fatores.24 Sem dúvida, a CUT e o PT eram não somente importantes para esse ascenso, como se valeram dele para a consolidação de suas posições. “Mesmo que relativizada, posteriormente, por esses dois agentes, a estratégia de enfrentamento dava frutos importantes nos

24 Cf. SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos, op. cit., bem como o artigo do mesmo autor intitulado Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990. In: FER-REIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano – vol. 4, O tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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setores organizados da sociedade”.25 Com o tempo, os pecebistas reconheceram que a CGT era hegemonizada por setores conservadores, “pelegos” e “cupu-listas”, enquanto progressivamente se deu a aproximação entre as propostas sindicais cutistas e as defendidas pelo PCB. A central progressivamente aban-donou a defesa da pluralidade sindical (execrada pelo PCB por seu potencial de pulverização e enfraquecimento do movimento), moderou sua defesa exacerbada da utilização da greve como instrumento de luta, substituindo progressivamente o perfil “combativo” pelo “propositivo”.

Mais uma vez a política geral pecebista influiu fortemente em sua inter-venção sindical. Novamente, porém, alguns sindicalistas do partido na prática encontraram outro caminho ao permanecerem ligados à CUT, exercendo assim certa autonomia e nunca deixando de reivindicar o apoio oficial do partido àquela central. No entanto, assim como a política geral dos dois partidos difi-cultava a aproximação entre suas bases sindicais, a proposta de filiação à CUT só ganharia força a partir do momento em que o PCB assumisse postura mais independente em relação ao governo da Nova República (1988). Mesmo assim, ainda seriam necessários cerca de dois anos para a vitória definitiva da proposta sindical mais progressista no seio do PCB. Enquanto isso, o partido seguiria amargando derrotas atrás de derrotas no movimento. Por um lado, perderia espaço para setores cutistas. Por outro, seu espaço no interior da CGT seria progressivamente dilapidado pelos conservadores, hegemonizados a partir de agora pelo “sindicalismo de resultados”.

O PCB vinha de trinta e sete anos de ilegalidade. Nesse período, viveu situa-ções diversas, que iam desde a “semilegalidade” até a mais violenta repressão (que quase extinguiu o partido), dificuldades que tiveram seu peso – ainda que secundário – no enfraquecimento do partido. Depois de intensa campanha e negociação pela sua legalização (iniciada em 1980, paralisada com a repressão policial ao VII Congresso no final de 1981 e retomada em 1983), finalmente chegava o tão aguardado momento da legalidade. O PCB finalmente podia mostrar sua face à sociedade, emergir depois de décadas de perseguições. Esse momento histórico trouxe novo ânimo à maioria dos pecebistas e renovou as esperanças de uma retomada do poderio do velho partido. Porém, como temos visto até aqui, os tempos eram difíceis para o PCB. Os primeiros resultados

25 SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos, op. cit., p. 253.

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eleitorais na legalidade foram muito aquém do esperado, o que começaria a minar a autoconfiança propagandeada pela direção pecebista.

O tom geral de otimismo e autopromoção da direção iria a partir dali iniciar uma lenta, mas constante inflexão. Em algum tempo, o PCB se assumiria como um partido em profunda crise, em busca de uma saída. Algo que militantes des-contentes com os rumos da agremiação já haviam apontado anos antes, a partir de óticas variadas, e que pecebistas não afinados com o discurso da direção continuavam a repercutir dia após dia. O resultado eleitoral era apenas mais um entre os aspectos mais visíveis de uma crise geral – ideológica, organizativa e representativa – que o partido vivia. Um período de tantas dificuldades e incer-tezas que é lembrado por ex-pecebistas de maneira radicalmente negativa: “A referência da esquerda era o PT, não éramos mais nós. Tanto que quando o PCB foi legalizado já estava praticamente morto, um partido que nasceu morto”.26

Em 1987, foi realizado o VIII Congresso (extraordinário) do PCB. As discus-sões públicas deflagradas pelo processo congressual, entretanto, demonstram que o partido permanecia dividido, e de maneira tão profunda que a situação tendia a se cristalizar: “quando chegou o VIII Congresso a luta já estava bastante acirrada, aí já ficava claro que havia um divisor de águas realmente, o choque das idéias se refletia na realidade política, no movimento sindical, mostrava claramente que a rigor já havia dois partidos”.27 A partir dali começava a se definir com clareza um grupo contrário ao teor das transformações que o par-tido vivenciava. O recorrente dilema do PCB entre ser o partido da revolução ou das reformas, da classe operária ou do “povo brasileiro”, aprofundava-se nesse momento.

Começou nesse momento também o debate no interior do PCB acerca da perestroika e da glasnost – e pode-se notar um claro interesse da maioria da direção nesse processo, visivelmente alimentado por ela. As transformações em curso na URSS permitiam que se acelerassem processos já em andamento no seio do PCB, e que viessem à tona sentimentos adormecidos. O partido, que já vinha progressivamente se transformando, assumiria então algumas novas posições em grande parte motivadas pelas mudanças do “socialismo real”. Um sinal dessa dinâmica pode ser encontrado no seguinte depoimento:

26 Gilvan Cavalcanti Melo, depoimento cedido ao autor, cit.27 Zuleide Faria de Melo, depoimento cedido ao autor, cit.

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No PCB a perestroika e a glasnost foram recebidas em geral com apoio. Houve evidentemente certo setor que tinha desconfianças, muitos foram terminar nesse PCB aí... (...) Mas a maioria do partido, a sua liderança, fizemos da perestroika e da glasnost um elemento importante para a trans-formação interna (...). E isso foi um elemento importante na consolidação da viragem que o partido vinha dando (...) porque tirou um elemento de prisão, um obstáculo à nossa política interna. A gente avançava e tinha que ficar medindo passos em relação ao que os companheiros soviéticos iam dizer. E a gente também todo educado nessa idéia de que eles deviam estar mais certos do que nós. Isso foi uma coisa importante, porque removeu, passou a não ter mais uma camisa-de-força internacional.28

Esse depoimento dá a entender que a divisão que ia se delineando no partido se mantinha no que tange à aceitação ou não dos “ideais da perestroika”. Por esse raciocínio, os que vinham aproximando o partido na prática de posições socialdemocratas abraçaram efusivamente a perestroika. Enquanto isso, os pecebistas contrários àquele projeto por qualquer motivo teriam recebido os ideais da perestroika com variados graus de desconfiança. Tal discurso serve ao universo das disputas políticas, mas deve ser desmistificado pelo pesquisador – como sempre, a realidade suplanta qualquer esquema binário de interpreta-ção. Neste sentido é significativa a declaração abaixo, proferida por uma das representantes do grupo que mais tarde “reconstruiu” o PCB:

Eu acho que o Gorbachev realmente nos dois ou três primeiros anos de governo dele enganou direitinho a todos nós. (...) ele dizia uma coisa que parecia ser verdade: o lema era “mais democracia para mais socialismo”. E a verdade não era essa: era menos democracia e menos socialismo. Só que ele conseguiu envolver isso aí num discurso tão bem elaborado – que ele é competente, disso aí não tenho dúvida nenhuma, é um salafrário, traidor, mas o discurso dele era muito atraente.29

Portanto, a receptividade nas fileiras pecebistas à nova política soviética parece ter sido ampla a princípio. Descontado o sentimento de “russofilia”, as diferentes correntes conseguiam se identificar com um ideal caro à tradição

28 Givaldo Siqueira, depoimento cedido ao autor, cit. 29 Zuleide Faria de Melo, depoimento cedido ao autor, cit.

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socialista: “mais democracia para mais socialismo”. Uma oposição aberta a tal programa só iria se delinear quando dois fatores começassem a ficar claros aos atores envolvidos: em primeiro lugar, que as reformas implementadas na URSS com o objetivo declarado de recuperar e aprofundar o “socialismo real”, ao invés de “curar o doente” estavam acelerando sua morte; em segundo lugar, que os ideais propagados pela perestroika vinham servindo de justificativa para trans-formações no PCB que poderiam, em última instância, levá-lo à extinção.

No início de 1988, sua Executiva Nacional determinou que “o PCB assu-mirá uma firme postura de oposição à atual orientação do governo Sarney”.30 Justificou-se tal posição com argumentos como a progressiva hegemonia dos setores conservadores no governo e também com a proximidade do término da transição democrática.31 Na concepção dos pecebistas, o período se encerraria com a promulgação da nova Carta, em 1988. Vale destacar que a defesa de uma Assembléia Constituinte havia sido uma proposta central na política “frentis-ta” do PCB. Para a maioria dos pecebistas, a Constituinte (apesar de não ter assumido o formato de uma Assembléia Constituinte, mas de um Congresso Constituinte) era carregada de simbolismo e seu encerramento em 1988 marcou para o PCB o fim do processo de transição democrática.

O PCB teria extrema dificuldade em formular uma nova política, em meio a suas dilacerantes disputas internas. Num extremo, alguns setores do partido defenderiam o abandono do “frentismo” pecebista (que já havia se tornado um forte elemento de sua identidade), optando por uma aliança à esquerda, ao lado do PT. Em outro, defenderia uma “frente democrática”, na prática uma manutenção da política antiditatorial em tempos democráticos (guindada finalmente a estratégia do partido). Determinando essa divisão, duas visões distintas: a primeira valorizando preferencialmente o conteúdo classista e re-volucionário do partido e sua reinserção no movimento sindical progressista, elementos que vinham se perdendo; a segunda associando-se à idéia do PCB popular, democrático e reformador, componentes sempre presentes no partido, mas nunca com tanta força quanto agora. Não se encontraria uma síntese. Em breve, nem mesmo a preservação do partido seria possível – processo que em

30 Novo caminho na oposição. Voz da Unidade n.º 381 (05/02/1988), p. 3.31 Tal posicionamento representou também um fortalecimento no interior do partido de setores à esquerda – além da crescente dificuldade em caracterizar o governo de transição como minima-mente progressista.

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seus últimos momentos guardaria importantes relações com o desdobramento da crise nos países socialistas.

divisão da utopia – o destino do pcB em disputa (1989-1992)Nesse momento, o processo de definhamento do partido chegou ao ápice,

concomitante ao colapso do “socialismo real”. Constatada a gravidade da situ-ação, foram levantadas numerosas possibilidades para a sua superação e, entre todas, sairia “oficialmente” vitoriosa a da transformação do PCB em um novo partido, declarado “herdeiro” de parte de suas tradições. Tal processo levou à “diáspora pecebista”: um grupo de militantes permaneceria organizado enquanto “PCB”, buscando reproduzir (ou “resgatar”) os aspectos mais “revolucionários” de sua identidade; outros seguiriam para o PT (consolidado naquele momento como o maior partido da esquerda brasileira); alguns buscariam o reencontro com a identidade comunista no Partido Comunista do Brasil (PC do B); e, principalmente, muitos abandonariam a militância partidária.

Nesse momento, a relação de maior destaque se dá entre a derrocada do “socialismo real” no Leste Europeu e desintegração da URSS e as proposi-ções pelo fim do PCB. Desde 1987, como foi dito, parte da direção pecebista conscientemente se aproveitou dos “novos ventos” internacionais para levar adiante transformações almejadas por certo setor do partido. Em primeiro lugar, aproveitando-se do alargamento da “camisa-de-força” internacional. O partido não tinha seus rumos determinados pelas posições da URSS e do Partido Co-munista da União Soviética,32 mas vivenciava limitações de ordem simbólica dadas por sua filiação internacional. Em segundo lugar, brandindo as idéias simbolizadas pela perestroika na luta interna. Procurava associar-se o PCB à perestroika: “a influência aqui no partido é evidente que se expressou porque a gente tinha a cultura de que tudo que partia da URSS era bom! Quando o Gorbachev assumiu, nós também... A direção assumiu praticamente essa visão também. (...) O ‘oba-oba’ era geral”!33

Houve, então, o interregno da campanha presidencial de Roberto Freire. A princípio, apenas uma tentativa de afirmação do partido nas esquerdas e no

32 Como parte da historiografia tradicional acerca do tema considerava. Cf. entre outros CHIL-COTE, Ronald. Partido Comunista Brasileiro: conflito e integração (1922-1974). Rio de Janeiro: Graal, 1982.33 Gilvan Cavalcanti Melo, depoimento cedido ao autor, cit.

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campo político como um todo e uma tentativa de unificação de suas próprias fileiras, a campanha foi assumindo aos poucos uma aura de “novidade” para alguns setores da sociedade, em especial da intelectualidade. Teve, sem dúvida, uma força simbólica maior que o resultado final alcançado: o oitavo lugar, com cerca de 1% da votação ou 769.000 votos. Expressões como “nova esquerda”, “esquerda moderna” e “socialismo democrático” foram amplamente emprega-das, sendo associadas a Freire e ao PCB. O candidato e seu vice Sérgio Arouca defenderam sistematicamente um “novo socialismo”, democrático, defensor das liberdades, enquanto algumas críticas mais contundentes a países socialistas como Cuba e China foram proferidas. Idéias-força do “socialismo real”, como a estatização, foram relativizadas. A crise do socialismo, que deu seus passos decisivos em plena campanha de Freire, certamente serviu para reforçar e definir algumas das posições assumidas ao longo daquela campanha que deflagrou o processo de transformação do PCB nos anos seguintes. Porém, tais posições refletiam em boa parte as mudanças pelas quais o partido vinha passando nos últimos anos e representavam significativos setores pecebistas.

Nesse contexto, a polêmica acerca da atuação sindical do PCB, que se arrastou por toda a década de 1980, sendo abafada em vários momentos, agora era retomada de forma irresistível. A realidade havia demonstrado o equívoco da atuação do partido junto aos setores mais conservadores do movimento sindical. A CGT (na qual os pecebistas buscavam levar adiante sua política de “unidade”) serviu de “celeiro” a um “sindicalismo de resultados”, em tudo diferente do que o partido defendia. A hegemonia da central, que os pecebistas esperavam conquistar derrotando os tradicionais, havia passado para as mãos de setores novos, forças conservadoras modernas, adaptadas à nova realidade do país. Estas afastaram da central tanto os tradicionais quanto os pecebistas (ironicamente companheiros dos “pelegos” também na derrota). Por seu turno, a atuação prática da CUT (naquele momento consolidada como central hege-mônica, contrariando as previsões de muitos pecebistas de que ela não teria vida longa), já não diferia muito daquilo que o PCB defendia para o movimento sindical. Ao mesmo tempo, a central vinha perdendo em “combatividade”. Sua atividade se moderava, lançando as bases para sua atuação defensiva nos anos 1990, focada na questão do emprego.34 Tal moderação pode ser explicada em

34 Cf. SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990, op. cit.

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grande parte pela crise mundial das esquerdas e pela ascensão do neoliberalismo, mas também guarda relação com a própria dinâmica da CUT e do PT.

A história da atuação sindical pecebista naquela década é basicamente uma sucessão de derrotas: a perda de vários sindicatos para setores cutistas que depois os filiavam à central, bem como a predileção dos novos sindicatos progressistas que surgiam pela filiação à CUT. Os espaços dos pecebistas se reduziam na CGT, mas principalmente fora dela. Em 1989, a direção sindical pecebista buscou ainda uma “solução intermediária”: a atuação “eqüidistante” do partido, sem a opção definitiva por uma das centrais. Tal “solução” perdurou oficialmente até o ano seguinte, mas, na prática, os setores cutistas do PCB já eram amplamente majoritários e a luta pela entrada na central acabou saindo vitoriosa do Encontro Nacional de Sindicalistas do PCB (Praia Grande, SP, 20 e 21 de outubro de 1990). Nele, finalmente optou-se pelo abandono da “política de eqüidistância” e pela atuação na CUT, decisão tomada por ampla maioria – apesar de alguns resistentes, argumentando que aquela reunião não tinha caráter deliberativo, tendo sido convocada apenas para discutir a crise vivida pelo partido e a eleição de sua direção sindical. De fato, os setores cutistas, cansados de indefinição e certos de sua maioria, impuseram a discussão e votação daquela proposta – numa espécie de rebelião das bases. Foi de fato uma vitória dos setores “à esquerda” do partido, mas na prática tal decisão não passava de “letra-morta”. Apesar da atuação na CUT estar agora oficializada, o grau de dissensão no PCB era tal que alguns militantes permaneceram na CGT e muitos participaram das articulações para a fundação da Força Sindical (criada pelos “sindicalistas de resultados” em 1991). Àquela altura, as divisões no partido se mantinham e se aprofundavam independentemente da posição oficial que fosse tomada.

Após as eleições presidenciais de 1989 (e especialmente após as eleições de 1990, na qual o PCB teve novamente resultados ínfimos), se deu um ver-dadeiro florescimento da diversidade nas fileiras pecebistas – talvez a maior em toda a trajetória do partido – na esteira da convocação do IX Congresso, realizado em 1991. Configurou-se, a princípio um amplo espectro de posições que foi desde as abertamente social-democratas (como a do dirigente Jarbas de Holanda, que sairia do PCB no início de 1991 apontando o Partido da So-cial Democracia Brasileira como “alternativa de esquerda moderna” e a Força Sindical como “opção de sindicalismo plural”)35 num extremo, passando por

35 Cf. HOLANDA, Jarbas. Do PCB a uma esquerda moderna no Brasil. In: Novos Rumos, Brasília,

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propostas de fusão com o Partido Socialista Brasileiro, diluição no PT, extinção do partido, formação de uma nova agremiação, resgate do “revolucionarismo perdido” do PCB, até chegar ao outro extremo do espectro, habitado por mi-litantes que não aceitavam maiores revisões da trajetória do partido e iriam se abrigar no PC do B (entre esses, os mais destacados eram os dirigentes Juliano Siqueira e Francisco Milani que deixariam o partido logo após o IX Congresso).

Nesse meio-tempo, boa parte do núcleo dirigente assumiu abertamente a luta pela transformação completa do partido, baseada na crítica da experiência socialista, dos valores leninistas, do centralismo, da burocratização, do conceito de vanguarda, do partido único, da ditadura do proletariado. Transformação calcada no valor estratégico da democracia e na superação da dicotomia entre reforma e revolução. Grande parte dos militantes pecebistas não concordava com tais posições. A esses, indistintamente, os setores majoritários na direção rotularam de “conservadores”. No entanto, deve-se frisar que

A crítica a essas teses nem sempre representou uma defesa irrestrita da ortodoxia. Será a maior ou menor ênfase na crítica à cultura e prática ortodoxa que determinará a heterogeneidade da oposição e os diferentes rumos que seus membros tomarão. Na dissidência havia o desejo de reno-vação – com caráter e conteúdo diferenciado da renovação modernizante da maioria capitaneada por Freire. Havia ainda elementos autocríticos em relação à práxis do partido nos últimos anos. Embora mantivessem concei-tos e concepções ortodoxas, os dissidentes elaboraram uma reflexão crítica sobre o marxismo-leninismo e as experiências do socialismo real.36

Durante o processo congressual, a pluralidade de concepções do partido terminou por se agregar em três tendências.37 A maioria se agrupou em torno de

Instituto Astrogildo Pereira, n.º 20, 1991.36 SILVA, Antônio Ozaí da. Os comunistas diante do muro: o marxismo-leninismo entre a negação e a afirmação da tradição stalinista. In: Diálogos. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, v. 3, 1999.37 O primeiro embate pelo controle do partido se daria na definição da estruturação do congresso. Um grupo capitaneado por Freire defenderia a abertura total do congresso a não-filiados e a reali-zação de “fóruns socialistas” reunindo indivíduos (pecebistas ou não) interessados na constituição de uma “nova esquerda”, podendo eleger representantes para a etapa final do congresso. Por fim, seria aprovado um meio-termo: direito de discussão e voto para os participantes de “fóruns socia-listas” não-filiados ao PCB na discussão da Resolução Política, mas não no balanço do trabalho da direção e eleição da nova (o direito de voto a não-filiados seria aprovado meses depois para o X Congresso, o que evidencia a rápida mudança da correlação de forças). Além disso, pela pri-

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Freire, Arouca e Salomão Malina e se apresentou no congresso sob a alcunha de “Socialismo e democracia”, defendendo “a renovação radical do partido. Isto significava abandonar a tradicional concepção de partido de quadros e da ditadura do proletariado e o desafio de construir uma nova teoria e organização partidárias. A maioria da DN [Direção Nacional] coloca em xeque a existência do PCB, seu nome, seus símbolos e a tradição histórica que estes encerram”.38 A oposição tachada de “ortodoxa” se agrupou na tendência “Fomos, somos e sere-mos comunistas”, capitaneada por Oscar Niemeyer, Francisco Milani, Horácio Macedo, entre outros. Defendia (ou buscava “resgatar”) o caráter revolucionário do partido, sua estrutura leninista de organização e seus símbolos – muitos deles, porém, assumiam uma postura crítica em relação à experiência socialista e a alguns aspectos do marxismo-leninismo. Por fim, outro grupo se configurou como uma “terceira via” entre o que classificava como “social-democracia” da primeira e “ortodoxia stalinista” da segunda. Era a “Política de esquerda pelo novo socialismo” (liderada por Domingos Tódero) que defendia a manutenção do nome e dos símbolos do partido, mas pugnava pela aprovação de boa parte das propostas transformadoras defendidas pela maioria – dando-lhes, no entanto, um caráter mais definidamente socialista.

O IX Congresso terminou com a esperada vitória do grupo de Freire (que foi eleito presidente do partido), porém por uma margem apertada: 53%, contra 36% da chapa “Fomos, somos e seremos comunistas” e 11% da chapa “Política de esquerda pelo novo socialismo”. As oposições somadas chegaram perto da maioria, inviabilizando momentaneamente o projeto de substituição imediata do PCB por um novo partido, com novo formato e sem um credo oficial mar-xista. As oposições obtiveram outra significativa concessão da maioria quanto à definição das forças políticas que poderiam integrar o “novo bloco político” proposto pela direção pecebista (como caminho para a construção de um novo pólo de poder contraposto à hegemonia conservadora vigente): “fizeram uma composição grande que a gente sabia que ia durar muito pouco tempo. O Ro-berto [Freire] na época fez uma ‘concessãozinha’ e botou ‘frente democrática, progressista e de esquerda’ [a princípio seria apenas democrática], e aí mudou

meira vez setores do partido poderiam se apresentar como tendências no congresso, com chapas próprias – a direção seria escolhida proporcionalmente aos votos de cada grupo. 38 SILVA, Antônio Ozaí da, op. cit.

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tudo. Servia para os dois lados. Um defendia a democracia e o outro defendia a frente de esquerda”.39

Pouco depois, acontecimentos relacionados ao “socialismo real” (mais especificamente à URSS) seriam mais uma vez utilizados como pretextos para ações pecebistas, servindo então de “justificativa internacional” para a convocação do congresso (o X) destinado a encerrar a trajetória pecebista. O golpe de agosto de 1991 e os movimentos precipitados por ele – a perseguição aos comunistas soviéticos, o recrudescimento de sentimentos chauvinistas, a desintegração soviética – reforçaram as posições “transformistas” no interior do PCB (sendo utilizadas nesse sentido pelos defensores dessas posições). Com essa justificativa – somada ao aprofundamento da crise brasileira ao longo daquele ano –, a maioria da direção pecebista decidiu acelerar o processo de mudanças, convocando “o X Congresso do PCB, em caráter extraordinário, a se realizar o mais breve possível, para discutir a constituição da nova formação política – o que inclui a nova forma-partido, seu nome e símbolo”.40 A decisão pela convocação imediata de mais um congresso partidário parece ter sido to-mada intempestivamente (talvez com a pressa necessária para se aproveitar um momento claramente favorável ao desejo de mudanças no partido), a se julgar pelo seguinte depoimento:

o congresso de mudança de nome foi uma coisa intempestiva. Saiu sem grande preparação. (...) o Roberto Freire convocou o congresso para mudar o nome do partido. Nós da executiva discutimos, concordamos inteira-mente com o Roberto, então fomos para um congresso onde a questão era não as grandes transformações, ficou uma coisa retida, não houve uma grande acumulação nem dentro nem fora do partido.41

A oposição, dividida e sem poder contar com a estrutura e a preparação necessária (ao mesmo tempo em que setores dela aderiam ao PC do B e ao PT), lançou-se como pôde ao combate sem tréguas pela preservação do partido. Na seqüência da convocação do X Congresso, 29 membros da direção pecebista

39 Gilvan Cavalcanti Melo, depoimento cedido ao autor, cit.40 Diretório Nacional do PCB. Resolução política do PCB (01/09/1991). In: Partido Comunista Brasileiro. IX Congresso do Partido Comunista Brasileiro – caminhos e descaminhos. Florianó-polis: 1991, p. 81.41 Givaldo Siqueira, depoimento cedido ao autor. cit.

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lançaram um comunicado, manifestando “seu mais veemente repúdio à postura liqüidacionista da maioria do Comitê Central, que convocou um Congresso Extraordinário, com a finalidade exclusiva de tentar extinguir o nosso partido, criando outro em seu lugar”,42 denunciando “que essa convocação representa a capitulação ante a histeria anticomunista surgida após os acontecimentos da União Soviética e um golpe contra as deliberações do IX Congresso, recém realizado”.43 A partir dali, não se mediriam palavras e ações, as partes em contenda perderiam definitivamente o sentimento de pertencimento à mesma organização:

definimos que (...) nós íamos começar a nos organizar, a briga ia ser agora pra valer e ia ser de forma clara, insofismável (...). Desse período até o X Congresso foi uma briga de foice no escuro. Você pode imaginar o que é uma briga de foice no escuro... (...) Aí era pra valer, era briga mesmo, sem princípio, sem nenhum compadrio (...) nós tínhamos delegados (e nisso a História ainda vai nos fazer justiça) que eram militantes do partido. Não era o caso do Roberto Freire.44

Esta é a mais comum contestação do grupo minoritário em relação ao pro-cesso congressual. Deu-se aos não-filiados o direito de voto integral (quando este havia sido apenas parcial no congresso anterior) e os delegados ao congresso foram definidos nos chamados “fóruns socialistas”, abertos à participação de todos os interessados. Sem dúvida, tal estratagema consolidou a vantagem dos setores majoritários – mas não se pode afirmar categoricamente que uma estruturação diferente do congresso pudesse modificar seus resultados, já que o momento era favorável aos que pretendiam abandonar antigos paradigmas.

O processo congressual, sem maiores discussões senão acerca da mudança do partido, foi naturalmente polarizado entre apenas duas chapas: “Movimen-to socialismo e democracia”, dos chamados “renovadores modernizantes”; e “Renovação revolucionária”, dos que receberam a pecha de “ortodoxos”. Vale notar, curiosamente, que ambos se definiram pela “renovação”. Chegado o momento decisivo do X Congresso (sua fase final se realizou de 24 a 26 de janeiro de 1992), os “renovadores revolucionários” detinham cerca de um terço da representação. Dessa forma, não lhes restou alternativa – haja vista que não

42 Partido Comunista Brasileiro. IX Congresso do Partido Comunista Brasileiro, op. cit., p. 83.43 Idem.44 Zuleide Faria de Melo, depoimento cedido ao autor, cit.

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havia mais conciliação possível entre as duas concepções – a não ser abandonar o congresso, seguindo para um “congresso paralelo” já previamente marcado de “reconstrução” do PCB. A maioria congressual, agora solitária, decidiria pela fundação do Partido Popular Socialista (PPS). O “racha” estava caracterizado.

Para além do nascimento do PPS e de outro partido que lutaria nos anos seguintes com sucesso pela sua legalização enquanto “PCB”, é necessário re-gistrar a verdadeira “diáspora” que se deu nesse momento – desde a preparação do IX Congresso até o encerramento do X. Um grande número de pecebistas decidiu seguir sua militância (ou reinventá-la) numa gama de outras organiza-ções, mas fundamentalmente no PT e no PC do B. Além disso, deve-se lembrar do número incomensurável de pecebistas que abandonaram a atuação política, entre os quais muitos, desgostosos, perderam a referência de toda uma vida. Deu-se uma pulverização da militância pecebista (algo que de certa forma já vinha se dando, ainda que lentamente, durante todo o período analisado nestas páginas), de sua identidade, de sua memória. Caberia a partir de então a seus diversos “herdeiros” a reivindicação, reprodução, renovação e manipulação de sua identidade esfacelada.

conclusãoAo longo do período analisado, o partido foi perdendo progressivamente

espaço nas esquerdas e nos movimentos sociais, enquanto o PT e a CUT as-cendiam. Com a legalidade em 1985, os pecebistas foram obrigados a amargar ínfimos resultados eleitorais. Tiveram que conviver com crises internas que custaram esporádicas cisões e com a crise que acometia o “mundo socialista” e o pensamento marxista em geral. A derrocada do chamado “socialismo real” (1989-1991) seria o golpe final para o partido que, devido às experiências acumuladas nos anos anteriores, optou pela sua transformação em uma nova agremiação, o PPS – equilibrado entre referências a uma “nova esquerda” e a “herança” (selecionada) de um rico passado. Enquanto isso, um grande número de pecebistas decidiu seguir sua militância ou reinventá-la numa gama de outras organizações, enquanto alguns buscam “reconstruir o PCB”.

O PCB – dividido ao longo de sua trajetória entre a reforma e a revolução, entre ser representante do operariado ou do povo brasileiro, valorizar a demo-

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cracia e o caminho pacífico ou a ditadura do proletariado e a insurreição45 – não soube superar a “divisão de sua utopia” quando a nova configuração do país exigia uma opção mais clara pela “modernização” do partido. Assim, a persis-tência de concepções e práticas não adaptadas à nova realidade brasileira (não superadas graças à sua persistente dicotomia que se manifestou com violência em seus últimos momentos) é a principal causa de sua crise.

A isso se juntaram as dificuldades pecebistas em lidar com a transição negociada (à qual terminou atrelado em posição subalterna), uma transição “fraca”, com predominância dos interesses conservadores. Com isso, o partido demorou muito a apoiar as Diretas Já (paralisado pelas suas disputas internas e defensor até o fim da proposta de Constituinte), apoiou a solução do Colégio Eleitoral e a Aliança Democrática, mas ficou subordinado àquele projeto sem maior independência, e depois disso também ao Governo Sarney. Já o PT e a CUT, assumindo posição radicalmente oposta à forma como se deu a transição e à “Nova República”, se viabilizaram enquanto forças hegemônicas, respec-tivamente, nas esquerdas e no movimento sindical progressista. Por fim, outro fator importante (mas que teve seus momentos decisivos no período posterior ao analisado nesse trabalho) foi a crise e derrocada do mundo socialista, o que terminou por reforçar e legitimar tendências e posições já presentes no PCB, numa espécie de retirada da “camisa-de-força” internacional que o partido até então “simbolicamente” vestia.

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. Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

45 A respeito dessa dicotomia, cf. BRANDÃO, Gildo Marçal. A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista. São Paulo: Hucitec, 1997.

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Recebido: novembro/2007 - Aprovado: setembro/2008

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Graúna: um canto feminino de autocrítica1

na CaatinGa

Maria da Conceição Francisca PiresDoutora em História Social pela UFF 2

resumoO artigo desenvolve uma análise sobre a crítica política à ditadura militar desenvolvida pelo cartunista mineiro Henfil através da personagem Graúna, integrante do grupo do Alto da Caatinga. Com o exame da história inaugural dessa personagem intento assinalar os recursos visuais e discursivos acionados pelo cartunista para representar a negação da memória oficial sobre o golpe de 1964, assim como as ideologias e os debates suscitados pelo discurso humorístico.

Palavras chavesHumor • política • ditadura.

abstractThe article develops an analysis on the critical politics to the military dictatorship developed by the humorist Henfil from Minas Gerais, through the Graúna personage, integrant of the Grupo do Alto da Caatinga. With the examination of the inaugural history of this personage I want to designate the visual resources and discursives de-fendants by the humorist to represent the negation of the official memory on the 1964 blow, as well as the ideologies and the debates excited for the humoristic speech.

KeywordsMood • politics • dictatorship.

1 Expressão de Henfil empregada para se referir ao papel da Graúna no grupo do Alto da Caa-tinga. Conferir em SOUZA, Tárik. Como se faz humor político. Depoimento a Tarik de Souza. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 382 Com a tese Cultura e política entre Fradins, Zeferinos, Graúnas e Orelanas, em 2006. Pesqui-sadora/bolsista recém doutora da Fundação Casa de Rui Barbosa/Faperj.

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A década de 1970 no Brasil caracterizou-se pela consolidação dos pres-supostos que tentaram justificar o golpe militar de 1964. Enquanto “Marias e Clarices”3 choravam na clandestinidade, oficialmente cultuava-se um “coração verde amarelo, branco, azul-anil”4 que se regozijava do “crescimento do bolo” propalado pelo ministro da Fazenda Delfim Neto. O “fermento” desse bolo estava no resultado obtido da mistura entre:

O aprofundamento da exploração da classe trabalhadora submetida ao arrocho salarial, às mais duras condições de trabalho e à repressão política; na ação do Estado garantindo a expansão capitalista e a consolidação do grande capital nacional e internacional; e na entrada maciça de capitais estrangeiros na forma de investimentos e empréstimos.5

Era um Brasil cindido entre a febre consumista das classes médias, ciosas do clima de “calma e tranqüilidade” divulgado pelo governo em seus comerciais televisivos, e o vertiginoso crescimento dos índices de subnutrição e da mortali-dade infantil; entre a constatação da exorbitância alcançada pela dívida externa gerada para alimentar o monstro do crescimento e a promoção dos programas de difusão da agropecuária exportadora; entre o expressivo aumento do êxodo rural agudizando as péssimas condições de vida nas grandes cidades e o alar-deamento da ideologia do “Brasil grande”, representado por obras faraônicas como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói.

Em conjunto com os problemas socioeconômicos desenvolviam-se aque-les derivados da ostensiva repressão política pós-AI-5, como a pulverização, através do silenciamento forçado e da proliferação do terror, dos movimentos artísticos, estudantis e sociais, somado ao represamento da luta sindical e da subjugação da classe trabalhadora.

Em torno dessa profusão de temas, dentre outros, se desenrolaram as histórias do grupo do Alto da Caatinga, composto pelos personagens capitão Zeferino, bode Francisco Orelana e Graúna. O grupo foi criado pelo cartunista Henrique de Souza Filho, vulgarmente conhecido como Henfil, em 1972, e suas histórias foram publicadas de forma esporádica no alternativo O Pasquim,

3 Trecho da música O bêbado e o equilibrista de João Bosco e Aldir Blanc.4 Jingle ufanista cantado pela dupla Dom e Ravel.5 HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ática, 1996, p. 14.

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cotidiana no Caderno B do Jornal do Brasil e mensal na revista Fradim, de autoria do próprio Henfil.

A esses personagens coube a função de caracterizar os impasses e as transformações geradas naquele contexto sócio-político e cultural, abordar os problemas e contradições sociais e econômicas nacionais, desenvolver uma crítica dos costumes da classe média e sobre o impacto do cerceamento das liberdades no cotidiano.

Em entrevista a Rozeny Seixas,6 Henfil contou que a inspiração para a construção do grupo do Alto da Caatinga veio da junção entre a leitura de Guimarães Rosa, Jorge Lima e, sobretudo, Euclides da Cunha e os filmes de Glauber Rocha. Fragmentos desse depoimento e de um outro, concedido a Tarik de Souza, são interessantes por darem acesso ao espírito do qual estava imbuído o cartunista durante o projeto de construção desses personagens.

(...) eu comecei a ler “A Terra” e não li “O Homem” (...). Eu fiquei tão extasiado de me reconhecer ali, com a terra, com o tal meio-dia, mosquito, mal parado, a vida, etc. Aí aquilo me deu uma idéia: eu vou reconstruir Canudos. Seria, talvez, uma fórmula de eu fugir desse padrão (...).eu vou reviver Canudos: esse é o plano do Zeferino. (...) E outra: havia aquela movimentação da clandestinidade, o pessoal que ia partir pra guerrilha, pra luta. Agora, que luta? e eu me revoltava muito nas discussões com este pessoal, que era muito próximo, ligado a mim, (...) porque era todo um padrão de fora, maoísmo, Rússia ou Cuba, enfim, isso não me agra-dava (...) Mas me agradava muito o aspecto da luta, da resistência, das pessoas resistirem a essa agressão que tava sendo feita, não só em termos físicos (...) mas também a transformação que o Brasil tava sofrendo não me agradava; me agradava muito aquela harmonia do meio-dia, que os mexicanos devem ter, qualquer gente que senta de cócoras em Minas ou no Nordeste também tem, harmonia com a terra (...) a caatinga era isso. E eles iriam lutar e, aos poucos, eu iria introduzindo, (...), eu colocava um cangaceiro (...) como personagem de estória em quadrinho (...). Eu tinha apenas um cangaceiro, que eu ia reunir com outros (...) e eles iam formar um bando, fazer um Canudos de novo, iam recuperar Canudos e lutar contra os latifundiários (...). Era reviver, mas dia a dia (...), aquele

6 SEIXAS, Rozeny Silva. Zeferino: Henfil & humor na revista Fradim. Dissertação de mestrado em Comunicação. Escola de Comunicação da UFRJ, 1980, p. 160-166.

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negócio. E para mim o Nordeste (...) seria a última resistência a essa transformação que eu entendia de uma maneira política (...). Eu queria uma luta de guerrilha que ia reconstruir Canudos e ia libertar o Brasil através das armas. Virou uma história que criticava a luta de guerrilha, que criticava as teorias marxistas e que pensava numa ação que só agora temos algo parecido: as Comunidades de Base. Repito: não era nada disso que eu queria!7

O caráter abrangente da problemática tratada pelo grupo do Alto da Caatinga é algo que merece ser colocado em relevo. Embora o autor tenha se inspirado no “comportamento e na linguagem regional nordestina”,8 não se tratava de uma produção com caráter meramente regionalista, apesar das representações míticas presentes em algumas declarações do autor9 contribuírem para reforçar visões clássicas sobre o Nordeste.

Nas histórias do grupo, a natureza que divide o espaço com os personagens, isto é, os cactos, as caveiras de gado e o causticante sol, aparece não só como representação ficcional de um espaço geográfico, a caatinga, mas como atores coadjuvantes que em diversas ocasiões vão interagir com os personagens centrais salientando as contradições e os problemas sociais existentes.

Para Henfil, mostrava-se desnecessário e redundante a utilização de outros elementos como nuvens, detalhes, árvores, ruas, casas etc. O fundo branco, comumente utilizado pelo autor, ofereceria ao leitor a extensão da condição social em que viviam os personagens. Em suas palavras:

O conflito em minhas historinhas não é com a natureza (como no Pato Donald, Fantasma) mas sim entre os homens. O cenário atrapalharia, seria gratuito e idiota. Dependendo do tamanho do branco é que teremos o posicionamento dos bonecos naquela determinada cena. Um branco enorme com os bonequinhos bem pequenos é para (acho) dar a visão da solidão, do esmagamento, às vezes, do espírito sonhador, da distância

7 SOUZA, Tarik de. Como se faz humor político. Depoimento a Tarik de Souza. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 28.8 Henfil. Seção Fala, Leitor! Revista Fradim, n. 17, 1977, p. 42.9 Ver SILVA, Marcos da. Rir das ditaduras: os dentes de Henfil (ensaios sobre Fradim – 1971/1980). Tese de livre docência em Metodologia (História), São Paulo: FFLCH/USP. 2000. p. 156; Entre-vista à revista Playboy. As 30 melhores entrevistas de Playboy, ago/1975-ago/2005. São Paulo: Ed. Abril, 2005.

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dos personagens. Já o boneco ocupando o espaço todo, sem branco quase nenhum deve dar uma demonstração de força, de close de centralização da preocupação dentro dele.10

A partir desse contexto explicativo, torna-se possí-vel entender o caráter ale-górico das referências e in-terações entre personagens e a natureza como parte do conflito vivido na caatinga, como na chamada da revis-ta que reproduzo ao lado.11 Por outro lado, as formas de lidar com o sol e seus efeitos podem indicar tur-vas e cotidianas táticas de resistência medradas pelos sobreviventes da caatinga.

A participação da na-tureza, metaforizando aspectos da vida real, favoreceu de forma singular a abrangência das temáticas abordadas nas histórias do Alto da Caatinga, atuando como paródias de personagens ou de situações vivenciadas no cenário nacional. A vida na caatinga seria, então, uma metáfora da vida no interior do auge da ditadura, em que predominava a desesperança e a constante iminência da morte, e o sertanejo, sem terra, alimento e trabalho, tornava-se uma representação da cotidiana luta pela sobrevivência naquele ambiente de completa restrição das liberdades civis e políticas.

As histórias do grupo de Zeferino não são só tentativas artísticas de repro-dução de uma realidade, mas uma recriação do Brasil a partir de duas faces que são reais: “a da caatinga (Brasil real, sofrido, silenciado pelos mecanismos de

10 Seção Fala, Leitor! Revista Fradim, n. 13, 1976, p. 44/45.11 Revista Fradim, n. 8, 1976.

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poder político) x sul maravilha (Brasil do milagre brasileiro, do privilégio, das multinacionais que invadiam o país).”12

Por outro lado, as relações internas estabelecidas entre os componentes do grupo favoreceram o desenvolvimento de discussões sobre questões refe-rentes aos mitos e preconceitos inerentes às relações homem/mulher, ao duelo e/ou convívio entre senso comum e saber intelectual, as formas cotidianas de opressão e violência física e simbólica, a crise do sujeito e da idéia de mudança revolucionária, a função social da intelligentsia, a expansão da indústria cultural, além dos problemas e contradições especificamente relacionados à realidade brasileira, como a censura e a autocensura, o crescimento da fome e da miséria, a mortalidade infantil, a propaganda ideológica disseminada pela ditadura, a burocratização dos órgãos públicos, a expansão e o domínio econômico das empresas multinacionais, a questão fundiária, o patriarcalismo e o patrimonia-lismo, o caráter da abertura política, as “patrulhas ideológicas”, dentre outros temas contemporâneos.

Como Henfil afirmou em resposta a uma leitora estrangeira:

(...) se você entendeu (a historinha do Zeferino) é porque você percebeu o Brasil. E mais, meu maior problema é o número de brasileiros que não entendem o Zeferino. Lêem com a maior boa vontade, viram de cabeça pra baixo e nada. Para ler o Zeferino pressupõe estar bem informado de quase toda a nossa realidade. As piadas, em geral, são comentários sobre fatos que se pressupõem familiares.13

Colocar esses assuntos em relevo em tiras que ocupavam o triplo do espaço usualmente utilizado por outras tiras no JB gerou atritos constantes entre Henfil e a editoria geral do jornal, responsável pela garantia de que só seria veiculado aquilo que apresentasse concordância com as exigências censoras da ditadura. A vigilância interna do jornal resultou no veto a várias séries do Alto da Caatinga que tratavam de temas hostilizados pelos editores responsáveis.

Esta é uma versão negada com veemência pelos jornalistas Carlos Lemos e Alberto Dines, na época redator-chefe e editor-chefe respectivamente do JB. Para estes, acima de suas escolhas pessoais, estava a imposição de uma censura

12 SEIXAS, Rozeny, op. cit., p. 85. 13 Seção Fala, Leitor! Revista Fradim, n. 17, 1977, p. 42.

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vinda direto da Polícia Federal, cabendo-lhes apenas o repasse de tais impo-sições. Mas o que se percebe é que antes da censura externa, cabia ao jornal realizar um enxugamento das histórias que seriam veiculadas, minimizando as críticas mais enfáticas à ditadura.

Inicialmente, para fugir do acompanhamento acirrado realizado pela edi-toria do JB, Henfil propôs a Ziraldo uma troca dentro do próprio jornal. Com a continuidade da pressão, Henfil não resistiu, fazendo a opção por cessar sua contribuição para o jornal no final de 1973. A constatação do corte de três tiras que tratavam da reconstrução do arraial de Canudos, uma metáfora à questão fundiária, como local de luta contra as investidas do fazendeiro Lati, foi decisiva para que ele tomasse tal atitude. Em suas palavras:

Hoje fui bolar a historinha do Zeferino. Aí resolvi olhar o número da seqüência já publicada no jornal e estranhei: havia uma diferença! A censura tinha cortado três historinhas!Bão, assimilei em princípio o golpe e fui bolar as novas historinhas. Não conseguia. Uma coisa foi crescendo na minha cabeça e cada vez mais eu não conseguia segurar: vou parar! Vou parar tem mais que ser agora! Parei! Chega de engolir minha criação feito ela fosse coisa ruim, quando o problema não é qualidade, mas o conteúdo. Chega de ficar sobrevivendo, sobrevivendo, só sobrevivendo. (...) Antes eu bolava 10 tiras de Zeferino em três horas (bolava e desenha-va). Agora eu levo três dias pra fazer as mesmas 10 tiras! Porque não faço naturalmente. Faço com sofrimento, com bloqueios que nem sei mais quais são, conscientemente. Com artimanhas geniais para driblar a censura. E foi só eu criar mais descontraído e não deu outra coisa: corte. Desaprovação. Ralharam comigo. Basta e chega! O preço da liberdade é a eterna insegurança!14

Desde agosto de 1973, o grupo do Alto da Caatinga já vinha dividindo espaço com os Fradins na revista originalmente criada para esses personagens. Sua participação no JB foi recobrada em setembro de 1975, no mesmo momento em que saía no editorial do jornal um artigo em defesa da liberdade de imprensa,

14 SOUZA, T. op. cit., p. 129/130.

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e perdurou até 1978, após uma breve passagem pela Revista de Domingo e o retorno ao Caderno B.

Segundo dados apresentados por Souza,15 oito tiras foram vetadas e outras oito sofreram vetos parciais ou mudanças no texto, entre novembro de 1975 e outubro de 1976. Desse mês até dezembro de 1977, outras 21 tiras foram vetadas pelo jornal,16 sendo algumas publicadas integralmente no Pasquim, embora este ainda estivesse sob censura prévia. Conforme depoimento de Henfil:

No Jornal do Brasil eu apresento quatro charges para aprovar uma. Estou lá feito um funcionário qualquer, não ponho banca nenhuma. É óbvio que não vou fazer um troço que não concordo, mas eu não ponho a banca que eu ponho no Pasquim. Contrariamente, no Pasquim ninguém mexe em artigo de Millôr Fernandes não. Ninguém mexe em artigo de Ziraldo, e não mexe no meu também não. Então não quer dizer que eu seja gênio não, mas é aquele negócio, todo mundo lá se comporta assim e me respeita (...) Ponho a maior banca: não me corta nada porque senão eu paro, largo.17

O Pasquim e a revista Fradim tornaram-se responsáveis pela sobrevivência do grupo do Alto da Caatinga, pois foi através destes dois veículos alternativos que as histórias circularam de forma plena, com o acentuado gosto pela crítica política que era característico do autor.

O grupo foi gerado com a missão de aplacar a sanha do leitor do JB contra o caráter desregrado dos Fradins. Este leitor parecia habituado aos temas conven-cionais e ao tratamento também convencional dado a estes pela grande imprensa. Além disso, era constante a presença dos quadrinhos estrangeiros no jornal, possuidores de um humor ameno repassado através de uma linguagem bem mais comedida. Isso gerou uma pressão no interior do jornal comprometendo tanto a criação como a publicação das histórias dos Fradins. De acordo com Henfil,

(...) o tipo de leitor do JB, leitor classe A, me achava grosso. (...) Aí co-meçou a censura à imprensa. O fradinho começou a perder condições de diálogo. Eu não tinha mais condições de fazer o fradinho como ele era...

15 SOUZA, Mauricio Maia. Henfil e a Censura: o papel dos jornalistas. Dissertação de mestrado. ECA: USP, 1999, p. 275-277.16 Destas, houve uma série sobre a eficácia do AI-5 no combate a corrupção que foi publicada na edição comemorativa dos oito anos do Pasquim.17 Citado por SOUZA, op. cit., p. 161 e 255.

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a partir de 1972; (...) Então eu comecei, no Jornal do Brasil, a sair para outro esquema. Surgiu a possibilidade de fazer um quadrinho no segundo caderno, sem nada a ver com os fradinhos: o Zeferino, a Graúna, o bode Orelana que come livros e assume a cultura dos livros e a onça Glorinha, a onça anarquista (...).18

Ainda segundo seu depoimento, a aceitação inicial do grupo por parte do leitor do Fradinho foi cautelosa:

O pessoal que seguia o Fradinho abominou a nova série. Eu entrei sem programar muito, sabendo que tinha o que dizer, mas sem ainda encontrar a fórmula. Estudando o público, o novo jornal (bem diferente do Pasquim, né!) e com uma tática flexível de comunicação. E acabou a gente se en-tendendo, se encontrando. Passei a entender o leitor JB e eles passaram a entender o Zeferino.19

A adoção de uma “tática bem flexível de comunicação” atenuou os conflitos com o público do JB, cuja acolhida ao personagem Graúna se deu com especial calor. Contudo, a melhora da receptividade do leitor às estórias de Henfil não significou a diminuição da censura interna no JB.

A forte crítica aos dois frades não inibiu a exposição dos traços pessoais também marcantes do pessoal da caatinga, embora estes fossem caracterizados de forma independente dos Fradins, tampouco comprometeu o aspecto mordaz de suas histórias.

Nesse artigo, centrarei atenção na astuta ave Graúna das Mercês, analisan-do os temas e discussões levados à frente através dessa personagem feminina. Tratava-se de uma personagem que materializa a afirmativa de Henfil20 de que “é na reversão da expectativa, no susto, que o humor se realiza”. Sua atuação se baseou na capacidade de colocar em relevo o imprevisto, bem como na ha-bilidade para silenciar e amedrontar, apesar de sua fragilidade física, os demais integrantes da caatinga henfiliana.

Pode-se afirmar que foi na dialética e no paradoxo que a sua qualidade hu-morística se estabeleceu. O desenho da personagem é o indicador inicial desse

18 Entrevista, revista Fradim, n. 21, 1977, p. 29.19 Seção Fala, Leitor! Revista Fradim n. 17, 1977, p. 39.20 Seção Fala, Leitor! Revista Fradim, n. 23, 1978, p. 40.

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caráter paradoxal que a constituiu. Diferentemente de Zeferino e de Orelana, ela não traz junto a si nenhum apetrecho externo que contribua para sua carac-terização ou para a formação de sua personalidade. Ao contrário, nela os traços minimalistas foram usados com maior despudor pelo seu criador.

Os pequenos traços pretos que definem seu corpo, compon-do algo similar a um ponto de exclamação, ajudam a divisar sua personalidade.

Em seu rosto destaca-se o delicado e saliente bico e os grandes olhos que, com freqüência, se dirigiram aos leitores, os envolvendo em suas construções argumentati-vas. Esses foram os reais defi-nidores de sua personalidade, de seu estado de espírito, ou de seu humor.

Tais traços, espessos nas primeiras estórias, foram gradativamente se tor-nando delgados contribuindo para a configuração do espírito arguto e distante da ação contemplativa que lhe é particular.

Os seus discursos e práticas a transformaram na personagem que conferiu real dinâmica à vida na caatinga. Através de arroubos de sagacidade reflexiva, ingenuidade e atitudes carnavalizadas e/ou carnavalizadoras, ela concentrou e expôs, às vezes numa mesma história ou num mesmo enunciado, os distintos, e nem sempre harmoniosos, elementos históricos, sociais e lingüísticos presen-tes na vida cotidiana. Desse modo, o “discurso se converte em palco de luta entre duas vozes”21 e a Graúna manifestava de forma dialógica e dialética os diferentes valores ou consciências valorativas em que se encontrava imersa a realidade política, cultural e social brasileira.

21 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievsky. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

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A primeira história com a Graúna na revista Fradim se deu no número 2. A discussão central girou em torno do confronto entre ela e o capitão Zeferino. Trata-se de uma representação humorística sobre a inextrincável vivência confli-tuosa – em seus diversos âmbitos: políticos, econômicos, culturais, ideológicos e/ou sociais – de duas visões de mundo próprias da época: a monológica, repre-sentada por Zeferino, repleta de irascibilidade e que usava a força para negar qualquer possibilidade de alteridade, e a dialógica, interpretada pela Graúna, que constituía a interseção de várias formações discursivas, independentes, distintas e, às vezes, imiscíveis.

Desse entrecruzamento textual vislumbra-se o universo de identidades ideológicas, caracteristicamente de esquerda, do qual a personagem tornar-se-á representativa. Entretanto, será também através da Graúna que o autor, sem esconder seu ponto de vista, vai desenvolver uma relação dialógica especial com tais formações discursivas desafiando, questionando, replicando e também assen-tindo às suas proposições, numa intertextualidade contínua.22 Tendo esse aspecto em vista é que se compreende o caráter dialético e paradoxal da Graúna na me-dida em que esse universo é apresentado com suas pluralidades e contradições.

Grande parte de suas reflexões e de seus questionamentos transcendeu um gesto de crítica e/ou de desmistificação das ações e proposições da ditadura, favo-recendo também um debruçar sobre si mesmo, ou melhor, um olhar distanciado sobre as formas de atuação e os discursos das esquerdas no interior da ditadura militar. É a isto que Henfil denominou “o canto feminino de autocrítica da Graúna”,23 usado como título desse artigo, que a fez atuar como sujeito enuncia-dor que, por um lado, desvenda esse jogo de máscaras e, por outro, “produz um olhar externo revertido, que lhe permite observar-se no acontecimento de lingua-gem e, como efeito desse olhar, reconhecer-se como sujeito da/na linguagem”.24

É também a partir daquela história que vai se definir o tipo de relação estabelecida entre a Graúna e Zeferino, com teor sexual marcadamente sado-masoquista. Para além de uma questão de dominação masculina, o jogo sado-

22 FÁVERO, Leonor. L. Paródia e dialogismo. In: BARROS, Diana L. P.; FIORIN, José L. (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 50.23 SOUZA, Tárik, op. cit. p. 38.24 ZOPPI-FONTANA, Mônica G. O outro da personagem: enunciação, exterioridade e discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. Campinas: editora Unicamp, 2005, p. 115.

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masoquista que permeia este relacionamento (Zeferino que bate e Graúna que gosta de apanhar) possui um sentido social, colocado em relevo com freqüência pelo bode Orelana, na medida em que reproduz uma estrutura da luta de classes, além de solidificar a hierarquia de forças entre as personagens.

A tira a seguir, retirada do número 7 da revista Fradim, auxilia a minha argumentação assinalando tais aspectos subjacentes ao texto humorístico.

A relação de submissão que se desenvolveu entre Graúna e Zeferino apre-senta um grau de complexidade que precisa ser contemplado, embora não aviste pressupostos explicativos que dêem conta de sua totalidade. Entendo que, para além de um enaltecimento do desvio, o comportamento da Graúna relativiza a noção de certo e errado, prática comum num personagem cuja característica base é a habilidade para reverter expectativas e explorar o inesperado, bem como identifico sinais da freqüente suspeição do autor diante de discursos cerrados, sejam estes de homens, mulheres, da esquerda ou da direita.

Por outro lado, percebe-se na adesão da Graúna à forma de violência praticada pelo seu parceiro um gesto de reiteração de certos axiomas que naturalizam a do-minação masculina. Parece-me proveitoso nesse momento recorrer a idéia de que:

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(...) uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a aceitação pelas mulheres de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação. Compreende, dessa forma, uma tática que mobiliza para seus próprios fins uma repre-sentação imposta – aceita, mas desviada contra a ordem que a produziu.25

Pensada dessa forma, na ação da Graúna vislumbra-se um aceno de resis-tência, possível quando se identifica o exercício de “reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador”.26 Outrossim, fica patente que a hierarquização de forças é rompida nos momentos em que a Graúna, com a astúcia que lhe é singular, silenciou, venceu e/ou colocou em estado de suspensão o cangaceiro eviden-ciando suas fragilidades e instaurando uma nova e inversa condição hierárquica. Tem-se, então, uma abordagem carnavalizada sobre o conflito social e de gênero, na medida em que referenciais e identidades preestabelecidos (homem, macho e violento x ave, fêmea e frágil) são destronados e invertidos.

A Graúna tornou-se emissária das demandas específicas do movimento feminista que não encontrava espaço nos tradicionais meios de comunicação, ao mesmo tempo em que colocou em discussão as imposições feitas às mulheres em nome dos valores e convenções sociais. Tais discussões eram veiculadas nos jornais alternativos organizados pelo movimento de mulheres ou simpáticos a sua causa, fundamentais para a expansão e consolidação.

Entretanto, um problema que se mostrava patente, tanto para o movimento feminista, como para outros movimentos sociais, é que a restrição do espaço por onde tais idéias, questões e propostas circulavam poderia se tornar nociva aos mesmos, pois a longo prazo este “se via transformado numa espécie de Cassandra. Podia falar sim, mas ninguém a ouvia. A não ser outras cassandras idênticas”.27

25 SOIHET, Rachel. História, mulheres, gênero: Contribuições para um debate. In AGUIAR, Neuma (org.) Gênero e ciências humanas – desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1997, p. 107.26 Idem.27 SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Polêmicas, diários & retratos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 24.

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Levando em consideração a pluralidade e o número dos leitores da revista Fradim,28 do Jornal do Brasil e do Pasquim, em que eram publicadas as tiras do Alto da Caatinga, pode-se supor a importância que a incorporação desse debate adquiria para a propagação dessas idéias. O aborto, a atuação da Bemfam na campanha do controle da natalidade, a liberação sexual, foram alguns temas explorados por Henfil através da Graúna, associados às condutas que foram questionadas inclusive pelo movimento feminista, como o prazer em apanhar do Zeferino. Através do recurso à ironia e da apropriação das enunciações contrárias às propostas feministas, explicitava-se sua inconsistência e contra-dição, sobretudo quando estas se fundamentavam em pressupostos morais que se tornavam abstratos quando confrontados com a absoluta ausência de moral e de ética na conduta pública de seus representantes.

Ao abordar este convívio, fiquei interessada não só nas formas como se fun-dou a relação de poder entre o par (através de quais símbolos, representações ou linguagem), mas como se exercitaram práticas de resistência a tal dominação,29 como estas práticas se estenderam aos conflitos políticos e como recriaram as significações30 sobre as relações de gênero.

Na abordagem sobre a feminilidade da Graúna partilho com Marcos Silva a preocupação em não circunscrevê-la a uma identidade fechada. Aliás, este é um dado que se aplica a todos os personagens henfilianos, pois Henfil plura-liza “as identidades com que trabalha (...) explorando a necessidade de não se deter a interpretação do mundo em nenhum de seus aspectos mais visíveis e imediatos.”31 Silva destaca que:

(...) os confrontos entre Orelana, Zeferino e Graúna encenaram as rela-ções entre gêneros sob o signo de atributos tradicionalmente associados a homens e mulheres: inteligência e informação (o primeiro). Força e violência (o seguinte), fragilidade e burrice (a última). Acontece que es-

28 Não possuo dados precisos sobre a tiragem da revista, mas identifiquei, nas cartas de Henfil, imensa alegria quando esta alcançou a quantidade de 40 mil exemplares.29 SOIHET, Rachel. História das mulheres e relações de gênero: algumas reflexões. In: PONTU-CUSCHKA, Nidia Nacib e OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Geografia em perspectiva. São Paulo: Ed. Contexto, 2002. 30 Bakhtin compreende como significação “os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos. Naturalmente, esses elementos são abstratos: fundados numa convenção (...)”. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981, p. 129.31 SILVA, Marcos da. Rir das ditaduras: os dentes de Henfil (ensaios sobre Fradim – 1971/1980). Tese de livre docência em Metodologia (História), São Paulo: FFLCH/USP. 2000. p. 158.

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sas ligações foram mescladas, invertidas, anuladas, o que resultava num Orelana intelectualizado e nada prático, assustado e mesmo paralisado em diferentes situações; num Zeferino que anunciava façanhas e não as concretizava; e numa Graúna extremamente sagaz, demonstrando os limites dos outros dois, inclusive quando repete que é burra.32

A partir dessa conflituosa relação é possível reformular a realidade sob novo prisma, dando a conhecer as diversas vozes que interagem, se atraem e se repelem na arena política e social, constituindo uma dialética interna.

Com seu espírito crítico a Graúna pode ser definida como o personagem que coloca às claras as questões subjacentes aos textos do Zeferino e do bode Orelana, mas que também se constituiu no principal agente metaforizador das histórias. Nas palavras de seu criador: “(...) em várias situações a Graúna chegava e falava assim: o que vocês estão querendo dizer com isso usando esta metáfora aí? É isso, né?”33

Paralelamente, como parte ou reforço da sua ambivalente identidade, destaca-se uma certa ingenuidade que o autor acreditava ser o que a tornava “muito humana e muito passível de o leitor se identificar (...)”,34 associada ao desconhecimento de coisas frugais, como a fita durex: “Ela já ouviu falar disso, mas não sabe o que é. Está louca para alguém do sul-maravilha trazer uma fita durex pra ela conhecer (...)”.35 Acredito que a inocência da Graúna tratou-se de uma representação alegórica do clima de regozijo e positividade sugerido e emanado pela propaganda política da ditadura.

Apresento dois trechos da estória publicada no número 17 da revista Fra-dim, em que, por estar alheia às banalidades referentes às novelas, programas de auditórios, vida de artistas etc., a Graúna se declara e é declarada burra por seus pares e especialistas da mídia televisiva que vêm lhe aplicar testes com-probatórios desta condição. A solução encontrada para sanar o problema tanto reforça o meu argumento de que se trata de uma forma irônica de abordar a propaganda política do regime, como ilustra a ambigüidade de ser inocente.

32 Idem, p. 39.33 SOUZA, Tarik, op. cit. p. 38.34 Idem. 35 Entrevista na revista Fradim, n. 21, 1977, p. 32.

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De acordo com a análise desenvolvida por Carlos Fico, houve uma especial preocupação dos militares, própria dos governos autoritários, em, “através de recursos alegóricos, figurados, valorizar o esquecimento dos velhos tempos e suas mazelas que arruinaram o Brasil”,36 cultivando um fundo aparentemente inocente no material de divulgação do regime. O caráter pseudo despolitizado da propaganda política colaborava para a difusão de um clima apaziguador fundamental na tarefa de ocultação da predominância do arbítrio e dos conflitos políticos existentes.

Os ideais de prosperidade e harmonia foram reiterados com o auxílio da televisão brasileira, em especial da Rede Globo, cuja divulgação dos anúncios publicitários do governo militar configurou sua principal fonte de investimento, só perdendo para os recursos aplicados na infra-estrutura para a ampliação do seu alcance. Outro elemento de apoio ao regime foram as novelas brasileiras, fundamentais na “reprodução de representações que perpetuam diversos matizes de desigualdade e discriminação”. Nessas inexistem contradições sociais, sua narrativa está fundada nas aventuras e desventuras amorosas de personagens movidos por oposições binárias como bem e mal, lealdade e traição, honestidade e desonestidade.”37

As propagandas e os programas televisivos impregnavam os lares, as men-tes e práticas cotidianas dos indivíduos. É nesse sentido que compreendo as duas características da Graúna, inocência e desconhecimento, como metáfora dos artifícios utilizados pela ditadura para fortalecer, justificar e legitimar os mecanismos de dominação existentes.

No caso da Graúna, a inocência e o desconhecimento serviram, de modo inverso, para ampliar seu horizonte de possibilidades e de transgressão. Sua ignorância sobre determinados temas a levava a desenvolver indagações que, por vezes, comprometiam as estruturas em que estes se alicerçavam. Desconhecendo-se o óbvio, e o óbvio aqui pode ser a condição de opressão que caracterizava a realidade brasileira, pode ser tudo, inclusive infringir os limites estabelecidos pelo contexto opressivo. Assim, desconhecer implicava, além de ignorar, negar coisas que pareciam só existir no sul-maravilha, representação do Brasil venturoso vulgarizado nas propagandas oficiais. Penso que é o que

36 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1997, p. 123.37 HAMBÚRGUER, Éster. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In SCHWAR-CZ, L (org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 441.

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sugere a tira a seguir,38 em que, após sua ressurreição, a Graúna se dispõe a narrar para Chico e Zeferino as coisas que avistou no além:

Inocência e ignorância caminham juntas ao estimular a dúvida, participando no destronamento e na carnavalização das estruturas políticas e dos enunciados oficiais, ao mesmo tempo em que ressaltam o seu caráter mistificador.

Dialética, crítica, ambivalência são os aspectos predominantes nas ações e práticas discursivas da Graúna, bem como nas relações que esta desenvolve com os outros personagens da caatinga. Proponho um breve olhar sobre a his-tória em que essa personagem estreou, identificando as redes discursivas e os contextos históricos que são colocados em questão e como estes auxiliaram na definição de seu perfil.

A história inaugural da Graúna oferece elementos para se pensar os acon-tecimentos políticos vividos, especificamente o golpe militar de 64, a partir de um ângulo de visão muito específico. De olho no combate ficcional e no seu desfecho, vislumbra-se a relativização e a supressão do discurso exultante da

38 Revista Fradim, n. 11, 1976.

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vitória, bem como a nivelação entre vencidos e vencedores. Para alcançar esse intento, ela se alicerça numa estrutura crítica que coloca as incongruências existentes no decorrer do processo como definidoras de seu sentido. Ao mesmo tempo, é ressaltado um conjunto de sensações próprias do período. Sentimen-tos variados como hesitação, dor, prazer, ansiedade, medo; experimentações específicas dos partícipes do processo e que nem sempre são contempladas nas narrativas convencionais.

A pluralidade de sentidos é algo intrínseco à alegoria e à paródia39 e é o que garante a conservação de sua força e ação. É o que observa Luiz Costa Lima, ao afirmar:

O alegórico contém uma dificuldade específica: se ele permitir a pura transcrição tipo “isso significa aquilo”, o isso, ou seja, a narrativa, se torna inútil, casca de fruta que se joga fora. Para assumir significação, o fantástico necessita criar uma curva que o reconecte com o mundo. Se, entretanto, esta curva tornar-se a única, persistirá a significação com o apagamento de sua fonte. Para se manter a alegoria precisa ser plural.40

A história se divide em três partes: a primeira tem como mote a incapa-cidade de Zeferino para atirar e eliminar um animal aparentemente frágil e inofensivo como a Graúna. O olhar penetrante da ave sobre o algoz, insistindo em enfrentá-lo no momento do abate, é o que aciona a covardia de Zeferino. Hesitante, este passa a buscar formas alternativas para realizar o disparo sem encarar a vítima. A vitória de Zeferino ocorre quase no fim da história. Não se trata, entretanto, de uma vitória estrategicamente conquistada, fruto de uma ação elaborada, mas de uma vitória acidental derivada de um deslize da Graú-na. Com isto, esta tem a almejada legitimidade questionada pela parte vencida, apesar da irredutibilidade do vencedor. É o primeiro sinal de que essa história, bem como a atuação de seus atores, precisa ser revista com maior rigor crítico pelos seus analistas.

Ainda nessa primeira parte, é interessante atentar para a relação de forças que é colocada em relevo. De um lado, apresenta-se aquele que toma, detém

39 Este aspecto foi explorado por BAKHTIN, M, op. cit., 2002 e BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.40 LIMA, Luiz Costa. O conto na modernidade brasileira. In: O Livro do Seminário. São Paulo: L. R. Editores, 1983, p. 207.

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e justifica o poder com e pelas armas;41 de outro, uma diversidade ideológico-discursiva que busca a derrocada da força pelo princípio dialógico. O enredo conduz à relativização do discurso vencedor, evidenciando suas fragilidades e arbitrariedades, bem como propõe uma perspectiva crítica da atuação dos ven-cidos durante o processo de luta, também assinalando suas debilidades e seus paradoxos. Como foi assinalado por Marcos Silva,42 a luta entre as personagens dá ensejo para a metaforização de questões relacionadas à política nacional, pois:

(...) a narrativa apresenta elementos que contribuem para se pensar sobre mitos da dominação da violência no contexto ditatorial (a força das armas está longe de ser absoluta, o objeto da ameaça participa ativamente de sua implementação e seu funcionamento engloba certas regras), enfrentando-os pelo ângulo do riso.

No decorrer da história fica notório que não é somente pelo viés do riso que se desenvolveram formas de enfrentamento. Estas se deram, também, através da tentativa de se estabelecer um confronto dialógico entre as partes, absolutamente rejeitado pelo vitorioso em questão.

Um enredo aparentemente inocente como esse, quando imbuído de uma perspectiva crítica e levando em consideração a assertiva do autor de que seu humor possui um caráter político, proporciona um aceno de dúvida sobre os ocasionais vencedores da história contemporânea do Brasil e o caráter dessa vitória, que se apresenta como fruto de um vacilo cometido pela outra parte do embate. Eis a primeira parte da história:

41 É importante ressaltar que a figuração de Zeferino nesta estória se distancia de caracterizações futuras que vão ser feitas do personagem, que o colocam no lado oposto ao assumido nessa história. 42 SILVA, Marcos, op. cit., p. 158.

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Na segunda parte ocorre a liberação de Zeferino das amarras psicológicas que continham sua agressividade. Enquanto o agressor extravasa seu potencial destrutivo, a Graúna utiliza uma ampla base argumentativa como expediente para sustar o poder da força armada. Inicialmente seu argumento se ancora em proposições naturalistas que, embora comovam o atirador, não são suficientes para cessar seu ímpeto.

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Finalmente ela recorre, também sem êxito, a pressupostos filosóficos, lite-rários e teológicos ignorados ou incompreendidos pelo cangaceiro. A utilização de argumentos político, moral e feminista conclui esta parte da história, com uma vitória objetiva da violência sobre o diálogo.

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Mais uma vez a vitória é contrabalançada pela forma como se desenrola a peleja. As respostas negativas de Zeferino às questões lançadas pela Graúna ser-viram para aviltar o vencedor por tornar manifesto suas limitações intelectuais, ao mesmo tempo em que torna patente a sua opção de agir de forma virulenta e ignara. Se, como fica claro em suas respostas, é a força, por si só, que fundamenta a ação do cangaceiro, é também isso que a torna perversa e ilegítima.

Esse estágio do desafio serve para caracterizar a posição que cada um assu-mirá nas histórias, colocando em relevo o potencial reflexivo, paródico e irônico da personalidade da Graúna. Este, por sua vez, contrasta com a agressividade de Zeferino que em diversas ocasiões reduz ou silencia sua capacidade de reflexão.

Tem início, a partir de então, a terceira e última parte da história em que, instituída a vitória de Zeferino, já se pode avistar, na lateral esquerda do qua-drinho, a presença do sol no cenário da caatinga, numa aparição parcial que lhe coloca como se estivesse a velar pelo descanso “heróico” do cangaceiro.

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Esta parte aborda a dependência neurótica desencadeada na Graúna pelo contexto cotidiano de agressão, levando-a a ter convulsões e alucinações quando privada das mesmas.43 A partir desse momento, a relação entre os dois persona-gens adquire uma acentuada conotação sexual que se revela pela forma como a Graúna passa a chamar o cangaceiro (Zefézim) e pelo emprego, também por parte da Graúna, de expressões como “me fuka!” e “gostoso!”, antes e após receber os tiros de Zeferino. Instala-se uma situação anômala onde “este povo, cuja tristeza apodreceu o sangue, precisa da morte mais do que se possa supor.”44 Sentimentos contrários como dor e prazer advindos da luta se misturam e se transformam no alimento que irá mover cotidianamente a Graúna.

A história se desenvolve oscilando entre o tédio e o amedrontamento de Zeferino ante o aprofundamento do vício da Graúna, e a ansiedade e o prazer da Graúna a cada rajada de balas.45 O desfecho se dá com a diagnose do mal que aflige a ave e a prescrição da diminuição gradual da porção diária de balas para a sua desintoxicação.

43 É interessante notar que junto às imagens fantasiosas de suas alucinações aparecem dedos em riste, suásticas e a sigla do Comando de Caça aos Comunistas – CCC. 44 Frase dita pelo personagem Paulo, o intelectual do filme Terra em transe.45 Para efeito de síntese não apresentarei aqui todos os quadros da história, mas apenas alguns que concentram os aspectos principais discutidos.

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Enfocar as ambigüidades das experiências objetivas e subjetivas vivenciadas pela Graúna é uma forma particular de abordar a rotina de oposição durante os

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anos lacerantes da ditadura. Seria uma forma de versar sobre a vivência entre o “chicote e o afago” citada por Weis e Tavares,46 que tornava a realidade:

(...) uma sucessão de conflitos morais, impulsos, sentimentos e pensamen-tos contraditórios. De um lado, a rejeição da ordem ditatorial; o horror (e o pavor) da tortura; (...) o distanciamento psicológico diante da maioria integrada à normalidade, cantando: “eu te amo, meu Brasil, eu te amo” (...). De outro lado, a proliferação de novas profissões e atividades bem remuneradas pra quem tivesse um mínimo de formação, abrindo as portas à efetiva possibilidade de acesso a posições confortáveis na sociedade aquisitiva em formação. De um lado, não perder um número dos jornais alternativos. De outro, para os novos aquinhoados, investir na bolsa (...). Fumava-se e se tomavam bolinhas por prazer, angústia ou perplexidade, e também para afrontar o entranhado conservantismo do regime no plano dos costumes, para construir uma forma de ser oposição, de compor por vias transversas um perfil político de rejeição ao status quo (...).

Mesmo quando se encontrou distante desse clima mortificante disseminado pela ditadura, Henfil não conseguiu se despir dessa teia de sensações ambíguas que o clima de tensão despertou naqueles que se comprometeram com o exercício cotidiano de oposição. Foi o que ele relatou em uma das cartas escritas durante sua estada em Nova York para tratamento médico. Por não estar partilhando, quase de forma táctil, das sensações próprias daquele contexto de opressão, o artista se percebeu acometido de uma espécie de síndrome de abstinência que obstruía sua inspiração para produzir os desenhos do Zeferino:

Ontem dei uma arrancada e fiz dez tiras do Zeferino pro Jornal do Brasil. (...) Tá duro bolar sem estar no condicionamento da autocensura que aí a gente respira e nem sente como empecilho na hora de bolar. Sinto também que com a distância estou perdendo um pouco (ou é muito?) do espírito nosso, o saber o que faz rir ou preocupar. Sei não. Sei não.47

46 WEIS, Luiz e ALMEIDA, Maria H. T. Carro zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 333/334. 47 Cartas de um subdesenvolvido, revista Fradim, n. 13, 1976, p. 27/28.

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(...) estou grogue com a liberdade desvairada dos EUA. Como que por encanto sumiu a autocensura que sempre me orientou aí quando mandava as coisas do Pasquim para a censura prévia. Tenho visto os jornalistas darem tanto cacete no presidente Nixon, tenho visto tanta charge política, as pessoas falarem tudo pelo telefone, conversarem tudo sem desconfiar do outro, os jornais darem tudo, que entrei na dança. Confesso a você sem frescura (tem só um mês que tô aqui, uai) que tive a maior dificuldade pra bolar os fradinhos. Assim, o melhor é parar com eles ou vou matá-los. (...) logo agora que eu tava numa felicidade doida de ver que estava recuperando minha capacidade de criar, a capacidade que estava limitada a 10%. (...) liberdade é uma doença (grifos meus)....48

Trata-se da síndrome da prisão abordada nas anotações do diário de hos-pício de Torquato Neto, em 1970: “Eu: pronome pessoal e intranferível. Viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. A prisão é um refúgio! É perigoso acostumar-se a ela. E o dr. Oswaldo: não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?” 49

De forma paradoxal, a doença é estar livre. Intoxicado pela ditadura, o autor constata que é da vivência no interior do conflito que seu trabalho se alimenta. Das mortes e renascimentos cotidianos é que ele retira os elementos para sua criação. “Sadomasoquistas? Hum. Hum. Mas a reação sadomasoquista não está mais só nele. Está em todos”.50 Isso não implica, contudo, em identificar uma fertilidade mínima que seja na censura e na ditadura. Sobre possíveis afirmações nesse sentido Henfil foi enfático:

(...) todo mundo fala assim: ‘ah, mas a censura é muito propícia pra criação porque você é obrigado a criar novas linguagens, você enrique-ce muito!’ Mentira. Não enriquece coisíssima nenhuma, porque o que acontece é que você vai ficando cada vez mais sutil, você vai elitizando a sua comunicação. Não é meu interesse essa elitização e eu estou indo, cada vez indo mais pra ela. (...).51

48 Cartas de um subdesenvolvido, revista Fradim n. 12, 1976, p. 39/40.49 In: SUSSEKIND, Flora, op. cit., p. 71.50 HENFIL, seção Fala, Leitor!, Revista Fradim, n. 12, 1976, p. 45.51 Entrevista revista Fradim,n. 21, p. 42-43.

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O distúrbio da Graúna é um modo de tornar perceptível um dos resultados mais perniciosos do estado de tensão gerado pela ditadura e pela censura que foi a sua introjeção por parte dos produtores de cultura, desencadeando uma neurose que transpôs as fronteiras da consciência e, aos poucos, foi se tornan-do comum à intelectualidade. Algo similar à sensação relatada com singular honestidade por Roberto Drumond, em período posterior:

A gente tem que se acostumar com a liberdade. É difícil ser livre. (...) Era fácil antes, escrever para meter o pau no general. O difícil é fazer um general como Tolstoi fazia: humano. É o que quero a partir de agora. (...) o nosso problema é ter coragem de dizer: já nos livramos da censura de direita, agora temos que nos livrar da censura de esquerda. E o censor de esquerda que eu tinha era eu mesmo. (a esquerda continua me censuran-do?) Continua, continua! Eu me isolei para derrotar meu ditador – que era eu mesmo (...)52

Finalizo a abordagem dessa história inaugural assinalando os aspectos tra-zidos à tona em seu interior, como: 1) as redes discursivas pelas quais a Graúna transitou e se tornou representativa; 2) a recriação paródica e alegórica que a história efetuou sobre os acontecimentos políticos de 1964; 3) a assimilação, a reprodução e os efeitos da violência na rotina cotidiana; 4) a multiplicidade de experimentações, por vezes ambíguas e contraditórias, que estava subjacente às formas variadas e fluidas de fazer oposição ao autoritarismo.

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FÁVERO, Leonor. L. Paródia e dialogismo. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J.

52 Recuperado por Ana Maria Machado. Da resistência à transição: a literatura na encruzilhada. In: SOSNOWSKI, Saul e SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 84.

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Recebido: outubro/2007 - Aprovado: setembro/2008

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OrdenamentO jurídicO para a prOteçãO dO patrimôniO

natural nO Brasil

Wagner Costa RibeiroProf. do Depto. de Geografia e do Procam/USP.

Silvia Helena ZaniratoProfa. do Depto. de História/UEM. Pesquisa financiada pelo CNPq.

resumoProteção ambiental envolve riqueza potencial e desenvolvimento econômico sobre novas bases. Para tratar da conservação ambiental no Brasil, organizamos este texto que se inicia com a proteção natural na escala internacional, aborda as normativas e ações que contribuíram para a salvaguarda do patrimônio natural brasileiro na escala federal e, por fim, apresenta algumas experiências estaduais.

palavras-chaves Patrimônio natural • legislação ambiental • políticas públicas.

abstractEnvironmental protection involves potential wealth and economic development on new bases. To discuss the environmental conservation in Brazil we organize this text, which begins with the natural protection in the international scale, presents regulations and actions that contributed to the protection of Brazilian natural heritage in federal approach, and, finally, some experiences in Brazilian states.

KeywordsNatural heritage • environmental legislation • public policies.

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Proteger a natureza atende a diversos pontos de vista. Por isso, a definição de uma área natural protegida decorre de um processo longo que passa por diversas etapas, todas embasadas em valores que se expressam na esfera da cultura.

Podemos dizer que há uma relação entre patrimônio e herança. Segundo a acepção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco, o patrimônio é um legado que recebemos do passado, que vivemos no presente e que transmitimos às gerações futuras; uma fonte in-substituível de vida e inspiração, nosso ponto de referência, nossa identidade (Unesco, 2005).

O patrimônio cultural refere-se às manifestações materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis que afirmam e promovem a identidade cultural de um povo e que são transmitidas de geração a geração. Uma definição como esta implica em compreender que os seres humanos são produtores de cultura e que a identidade cultural de um povo é forjada no meio em que ele vive. Por isso, o ambiente também é patrimônio.

O patrimônio natural tem sido entendido como as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, hábitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e zonas que tenham valor científico, de conservação ou estético (Unesco, 2005).

Tal sentido também traduz outra concepção a respeito da natureza. Se, durante séculos, esta foi considerada hostil aos propósitos civilizatórios, algo a ser domado pela espécie humana, uma vez que era admitida como antagônica à cultura, a degradação ambiental ocorrida ao longo do século XX fez emergir outro olhar. Já não se podia consumi-la infinitamente; havia que preservar o ambiente natural para buscar qualidade de vida no presente e no futuro, além de procurar manter áreas naturais protegidas com fins de contemplação, pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico.

Nesse contexto, natureza e cultura passaram a ser vistas em conjunto e a salvaguarda de ambas tornou-se objeto das políticas patrimoniais.

Entretanto, a proteção ambiental é mais do que uma exigência romântica para manter ambientes naturais aprazíveis à contemplação. Ela envolve riqueza potencial e desenvolvimento econômico sobre novas bases. Por isso, um país como o Brasil, dotado da maior reserva de informação genética do mundo, deve discutir esse tema de modo a garantir que o legado de milhões de anos de processos naturais não seja dizimado por processos sociais atuais que impeçam o acesso das gerações futuras a esse legado de informações naturais.

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Organizamos este texto para contribuir nesse debate. Ele parte da proteção do patrimônio natural na escala internacional que influenciou e muito as normas jurídicas desenvolvidas e aplicadas no Brasil, tratadas a seguir. Por fim, aponta casos estaduais que criaram a normativa de salvaguarda de parte do patrimônio natural brasileiro.

proteção do patrimônio natural no âmbito internacionalDesde os primeiros enunciados a respeito da incorporação da natureza como

patrimônio, gradativamente também se constituiu um campo legal que instituiu normas necessárias para sua preservação. O princípio era o de resguardar o que não se pode reconstituir e manter áreas para conhecer a dinâmica natural do pla-neta. Paralelamente, percebeu-se que a preservação de áreas naturais implicava em ultrapassar o campo de alcance das normas jurídicas dos países, uma vez que os sistemas naturais como a bacia amazônica, por exemplo, ultrapassam os limites dos estados. Além disso, os impactos causados pela degradação do ambiente também não coincidem necessariamente com as fronteiras nacionais. Passou-se a buscar medidas internacionais de proteção e de controle do uso do ambiente natural.

Uma primeira alusão nesse campo pode ser encontrada no Tratado consti-tutivo da Unesco, de 1945, que em seu preâmbulo fez menção “à existência de um patrimônio universal no âmbito da cultura” (Silva, 2003, p. 34).

A Unesco tornou-se a organização responsável pela proteção do patrimônio cultural em escala mundial. Também promoveu encontros da comunidade in-ternacional para a criação, promoção e divulgação de instrumentos normativos, celebrados por meio de convenções e recomendações destinadas à salvaguarda de elementos significativos da presença humana na Terra. Teve início, a partir de então, uma ordem internacional para a proteção do patrimônio cultural.

Dentre os instrumentos de cooperação elaborados em conjunto pela comu-nidade internacional encontram-se as recomendações, resoluções e convenções. As recomendações têm um caráter pontual e sugerem medidas sem um valor vinculativo. As resoluções levam os estados-membros à adoção de medidas concretas. Elas, assim como as convenções, constituem o aparato jurídico que normatiza as relações entre países. As convenções são tratados multilaterais aprovados pelos estados; são normas que impõem obrigações recíprocas aos países contratantes e que devem ser ratificadas pelos governos signatários que

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assumem obrigações de executarem suas disposições em seu estrito termo (Silva, 2003, p. 57).

Até 1972, além da responsabilidade de conduzir as discussões no âmbito da cultura, a Unesco também respondia pelo comando das discussões ambien-tais no interior da ONU. Ao mesmo tempo em que coordenava os encontros internacionais para a preservação do patrimônio cultural, executava programas de educação ambiental e promovia conferências internacionais envolvendo a temática do ambiente.

Uma das primeiras ações da Unesco no que se refere à questão ambiental ocorreu em 1949, por ocasião da realização da Conferência das Nações Unidas para a Conservação e Utilização dos Recursos. O resultado deste encontro foi um diagnóstico da situação ambiental mundial (Ribeiro, 2001, p. 63).

Depois disso, outro evento de destaque foi a conferência realizada em Pa-ris, em 1962, na qual foi aprovada a recomendação relativa à salvaguarda da beleza e do caráter das paisagens e sítios. Neste documento estavam indicadas as medidas para a proteção das paisagens naturais e das transformadas pela espécie humana, sua inclusão no planejamento urbano e regional e a criação de parques e reservas naturais. Além disso, constavam medidas para a proteção legal por zonas e proteção de sítios isolados (Recomendación, 1962). Essas medidas em muito se aproximavam do instrumento legal de preservação e influenciaram a criação de outros tipos de unidades de conservação, como as Áreas de Proteção Ambiental- APAs que temos no Brasil, que não implicam na desapropriação de terras.

Distinguem-se, naquele período, os seguintes elementos para a preservação ambiental: a preocupação com a perda de vida selvagem, em função de sua im-portância científica; a manutenção de áreas necessárias à vida humana (como ele-mento regenerador físico e espiritual); e, também, áreas de potencial econômico, detentoras de recursos que possam vir a ser utilizados no futuro. Também se vê expresso pela primeira vez o estímulo à criação de áreas protegidas e a inclusão desta estratégia nos sistemas de planejamento territorial como um princípio norteador de políticas públicas. Não obstante a importância dessas recomenda-ções, elas tiveram apenas um conteúdo normativo, “expressando dificuldades de se estabelecer regras e exigências internacionais” (Scifoni, 2003, p. 83).

Divisa-se, no decorrer dos anos 1960, o crescimento do que pode ser con-siderado o despertar dos governos com a situação ambiental (Nazo e Mukai, 2003, p. 109). Ao longo dessa década foram elaboradas séries de leis por diversos

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países interessados em tentar controlar a poluição das águas continentais, do mar, do ar e em salvaguardar zonas específicas. É o caso da Carta Européia das Águas, de 1968, que estabeleceu o princípio de que as águas não conhecem fronteiras e, portanto, os cuidados em seu trato precisavam ser supranacionais; ou da Convenção Africana para a Conservação da Natureza e de seus Recursos Naturais, também de 1968, que estendeu aos estados africanos o compromisso para a criação de reservas, regulamentação da caça, da pesca e da proteção a espécies da fauna e da flora (idem, p. 110).

Talvez o maior destaque dentre as preocupações ambientais dessa década possa ser a Conferência Intergovernamental de Especialistas sobre Bases Cien-tíficas para o Uso e Conservação Racionais dos Recursos da Biosfera, reunião realizada em Paris, em 1968, quando se discutiram os impactos ambientais causados pela ação humana. Dessa conferência resultou um programa interdis-ciplinar – O homem e a biosfera – que reuniu estudiosos dos sistemas naturais para analisarem as conseqüências das demandas econômicas em tais ambientes (Ribeiro, 2003, p. 605-606).

A década seguinte ampliou a inquietação com a problemática ambiental de tal forma que resultou na aprovação da Resolução n° 2.749 (XXV) de 1970, pela Assembléia Geral das Nações Unidas sobre os Princípios que Regulam os Fundos Marinhos e Oceânicos e seu Subsolo fora dos Limites da Jurisdição Nacional. Segundo a declaração assinada pelos estados participantes, os fundos oceânicos constituíam um patrimônio comum da humanidade. Sendo assim, seus recursos deveriam ser explorados sob a gestão de uma organização inter-nacional, cuja atuação deveria se pautar “pelos princípios da não apropriação, da utilização pacífica da exploração e exploração da zona e seus recursos no interesse de toda a humanidade e priorizar os países em desenvolvimento, dentro dos propósitos da Carta das Nações Unidas” (Silva, 2003, p. 35).

Isso tudo corrobora a construção de uma ordem ambiental internacional, ou seja, um conjunto de convenções internacionais que busca regular as ações humanas sobre o ambiente em escala internacional (Ribeiro, 2001), na qual a Unesco teve um papel destacado até a década de 1970. Porém, esse cenário se alterou a partir de 1972, quando ela passou a dividir as ações no campo da conservação ambiental com outros organismos multilaterais. Em julho daquele ano, ocorreu em Estocolmo a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, primeira grande conferência convocada pela ONU para tratar de princípios básicos para a proteção ambiental.

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A declaração final da Conferência de Estocolmo pode ser considerada o esteio do atual direito internacional do meio ambiente. Nela ficaram definidos que os estados têm o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com sua política ambiental, e a responsabilidade de garantir que sua ação não venha a prejudicar áreas além dos limites de sua jurisdição (Nazo e Mukay, 2003, p. 111). Nos termos da declaração “os recursos naturais da Terra e, especialmente, parce-las representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras”. Do mesmo modo, “o homem tem a responsabilida-de especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela flora e pela fauna silvestres, bem como o seu hábitat” (Declaración, 1972).

Outra decisão da Conferência de Estocolmo foi a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), organização multilateral que passou a centralizar as ações ambientais no interior da ONU, bem como o Fundo Mundial para o Meio Ambiente. O Pnuma passou a funcionar em 1973, porém sua sede foi inaugurada em Nairóbi, no Quênia, apenas em 1986.

Por meio do Pnuma, a temática ambiental passou a ser abordada cada vez mais em escala internacional. Ele organizou várias convenções que tratam do ambiente, entre elas a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, em 1973; a Convenção sobre Poluição Transfronteiriça de Longo Alcance, em 1979; a Convenção da Basiléia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, em 1979; a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, em 1985, e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que destroem a Camada de Ozônio, em 1987 (Ribeiro, 2003, p. 608).

Enquanto o Pnuma ganhava corpo institucional, a Unesco organizou a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, celebrada em Paris em 1972. Sua convocação se deu em face do reconhecimento da necessidade de proteger os elementos valorados no campo cultural e as áreas naturais. Também influenciou essa reunião internacional a constatação da intensa degradação ambiental gerada pelas transformações da vida social e econômica.

Nessa ocasião a Unesco expressou a compreensão de que a proteção de uma área não poderia se efetuar unicamente em escala nacional, devido à magnitude dos meios necessários para esse procedimento que, não raras vezes, extrapola-vam os recursos econômicos, científicos e tecnológicos, dos quais os países que abrigavam os elementos patrimoniais eram detentores. A proteção deveria ser de toda a humanidade. Com essa avaliação, a Unesco elaborava o conceito de

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patrimônio mundial, constituído por criações humanas e expressões de processos naturais de interesse excepcional, por vezes testemunhos únicos que deveriam ser considerados pertencentes não apenas aos estados em que se encontravam, mas a toda a humanidade. Esta deveria se envolver em sua defesa e salvaguarda, de modo a assegurar a sua transmissão às gerações futuras (Convención, 1972).

Ficou então definido, no artigo 1º da Convenção, que o patrimônio cultural englobava os monumentos, o grupo de edifícios e os lugares dotados de “um valor universal excepcional”, do ponto de vista da história, da arte, da ciência, ou do ponto de vista estético, etnológico ou antropológico. Os elementos culturais que se encontrassem dentro desses critérios seriam inscritos na Lista Mundial de Patrimônio da Humanidade.

Segundo o entendimento dos convencionais de 1972, para que uma paisagem cultural fosse inserida na referida lista deveria expressar formas específicas de interação entre a cultura e o meio físico. As paisagens produzidas intencional-mente, como jardins, paisagens que apresentassem provas manifestas da sua dinâmica natural ao longo do tempo e paisagens associativas definidas pela as-sociação de significados simbólicos não imediatamente tangíveis à natureza.

A Unesco também definiu, no artigo 2º, que o patrimônio natural seria composto por bens igualmente dotados de um valor excepcional do ponto de vista estético e/ou científico. Estes bens englobavam os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos dessas formações; as formações geológicas e fisiográficas das zonas estritamente delimitadas que constituam o hábitat de espécies animais e vegetais ameaçadas; e os lugares ou as zonas naturais estritamente delimitados, dotados de beleza natural.

Para concretizar os propósitos da proteção foram constituídos o Comitê do Patrimônio Mundial e o Fundo do Patrimônio Mundial. O primeiro, um órgão intergovernamental, constituído por representantes de 21 estados-partes na Convenção, eleitos periodicamente.1 Este Comitê ficou responsável por identificar o referido patrimônio e inscrevê-lo na lista mundial; zelar por esses “bens” em conjunto com o estado onde eles se encontram; decidir quais estão em situação de perigo e determinar as condições e os meios apropriados para que um Estado possa aceder ao Fundo do Patrimônio Mundial. Os recursos do Fundo resultam de contribuições obrigatórias e voluntárias dos estados-partes, participação da Unesco, doações de outras agências da ONU, principalmente do

1 Depois da aprovação do Comitê, ele passou a contar com 40 representantes de países-partes.

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Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e de organismos públicos e privados, bem como de receitas de manifestações organizadas em prol do Fundo.

Como pode ser percebido, a Convenção definiu que os bens deveriam ex-pressar um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte, da ciência, da conservação e da beleza natural; um critério vago e difícil de aplicar, segundo Françoise Choay (2001, p. 207).

Certamente, por isso mesmo, em 1977, em suas diretrizes operacionais, a Unesco procurou precisar melhor os critérios que norteariam o significado do que os bens deveriam ser portadores para que pudessem ser merecedores da proteção: valor estético, ecológico e científico. A beleza cênica, como aquela que se expressa nas paisagens notáveis e de extraordinária beleza natural, ou em condição de exceção como o Parque Nacional de Iguaçu, no Brasil e Los Glaciares, na Argentina. A importância ecológica aplica-se ao hábitat de espé-cies em risco de extinção ou detentoras de processos ecológicos e biológicos importantes, como as áreas remanescentes da Mata Atlântica na Costa do Des-cobrimento, situados em território brasileiro. Por fim, a relevância científica de áreas que contenham formações ou fenômenos naturais relevantes para o conhecimento científico da história natural do planeta, como as Montanhas Rochosas nos EUA e Canadá (Scifoni, 2006, p. 143).

Na década de 1980, associações ambientalistas e os movimentos sociais de diversas partes do mundo passaram a discutir alternativas de desenvolvimento e a acompanhar as reuniões das Nações Unidas, exercendo um papel indutivo em diversas iniciativas de formulação e elaboração de políticas ambientais (Ribeiro, 2003, p. 532). Esse momento corresponde ao crescimento da mobilização dos ambientalistas que passaram a influenciar cada vez mais na formulação e imple-mentação de políticas e na promoção de estratégias para a conservação ambiental.

Os anos de 1990 confirmaram que a preocupação com a conservação dos recursos naturais tornara-se internacional. Logo no início da década, ocorreu a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Conferência do Rio, em 1992, que teve o objetivo de regular a ação humana em relação à emissão de gases que afetam o efeito-estufa e ao acesso à informação genética. Nela foram celebradas as convenções sobre mudanças climáticas e sobre diversidade biológica e assinados documentos que contêm um conjunto de princípios a respeito dos recursos genéticos e da soberania de cada país sobre o patrimônio existente em seu território. Um ponto alto da Convenção

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sobre a Diversidade Biológica ocorreu quando se buscaram políticas destinadas a garantir os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre os recursos genéticos, haja vista a estreita relação entre a preservação desses recursos e os conhecimentos, costumes e tradições dessas populações (Zanirato e Ribeiro, 2006 e 2007).

A relação estabelecida entre a preservação dos recursos e os conhecimentos tradicionais expressa a importância da diversidade cultural da humanidade. As comunidades e a cultura, em seus distintos gêneros de vida, são vistas como “ingredientes básicos da humanidade que dão sentidos e conteúdos ao princípio abstrato da igualdade” (Jelin, 1996, p. 21). A diversidade converteu-se, assim, num elemento constitutivo da universalidade.

O reconhecimento de que a diversidade cultural é intrínseca à humanidade deu-se em 2005, quando foi aprovada a Convenção sobre a Proteção e Promo-ção da Diversidade das Expressões Culturais. Nessa ocasião, ficou estabelecido pelos estados-partes que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, constituindo, em si, um patrimônio que deve ser valorado e preservado. Destacou-se, nesse momento, a necessidade de incorporar a cultura como um elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional e internacional e a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial que podem servir para o polêmico desenvolvimento sustentável (Convención, 2005).2

Os signatários proclamaram também a importância dos direitos de proprie-dade intelectual para sustentar os que participam da criatividade cultural. Uma questão bastante controversa, posto que nela se insere a propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais. Esta Convenção reforça a necessidade da construção de uma sociedade multicultural no século XXI.

Ainda que o conhecimento tradicional, como uma forma específica de saber, tenha sido afirmado como um bem na Convenção da Diversidade Biológica, permanece em aberto a questão de como preservar sem congelar esse saber e

2 O desenvolvimento sustentável é talvez o mais polêmico tema discutido na ordem ambiental internacional. Ele procura associar uma matriz econômica, o desenvolvimento, a outra de origem biológica, a sustentabilidade. Inúmeros pesquisadores desqualificaram essa associação, como Martinez-Alier (1992, 1998 e 2007) e Gonçalves (1989). Entretanto, outros afirmam que se trata de uma nova possibilidade de reprodução da vida, como defendem Leff (2000, 2001 e 2001-a) e Sachs (1993). Por seu turno, Ribeiro et. al. (1996) e Ribeiro (2001) indicam que a sustentabilidade pode ser uma alternativa desde que envolva uma nova ética que desconsidere como fim a acumulação capitalista e passe a ponderar os diversos ritmos da natureza no uso dos recursos naturais.

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como remunerá-lo, uma vez que ele é produto de uma coletividade (Cunha, 1999, p. 160).

Estas questões permanecem polêmicas até a presente data, como pôde se per-ceber na Oitava Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica, ocorrida em Curitiba, em maio de 2006, quando milhares de delegados discuti-ram o papel do conhecimento das comunidades tradicionais e sua apropriação e uso pelo Ocidente. As dificuldades em chegar a um consenso quanto a esse assunto postergaram sua discussão para 2010, na Décima Conferência das Partes. Enquanto isso, assiste-se à realização de contratos entre empresas transnacionais – em especial do setor de fármacos – e comunidades tradicionais, sem regula-mentação internacional dada a diversidade de instrumentos jurídicos interna-cionais que abordam a matéria, como demonstraram Zanirato e Ribeiro, (2007).

Esses aspectos atinentes à preservação do patrimônio natural indicam a pre-mência de articular interesses diversos que, muitas vezes, extrapolam territórios nacionais. Eles se expressam nos debates em torno das conferências temáticas e normativas. Devido a esse jogo político, nem sempre a aplicação de uma con-venção ocorre em deliberada e estreita articulação com as convenções afins. Ao mesmo tempo, o quadro revela quão candentes têm sido as discussões a respeito da ampliação do conceito de patrimônio e as implicações daí decorrentes.

O Brasil, por deter informação genética em escala relevante, adquire po-sição estratégica na conservação da natureza mundial. Por isso é fundamental apresentar os instrumentos disponíveis para essa ação no país.

proteção do patrimônio natural brasileiro na escala federalApesar de o conceito de patrimônio natural propriamente dito somente ter

se consolidado mundialmente a partir da Convenção do Patrimônio de 1972, a idéia e os instrumentos para a instituição de proteção desse tipo de patrimônio manifestaram-se bem antes no Brasil.

É o que pode ser constatado no artigo 10º da Constituição de 1934 que empregou, pela primeira vez como dever do Estado, tanto no âmbito federal como no estadual, “a proteção das belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico” (Constituição, 1934).

Este documento também trouxe um dispositivo essencial para a proteção do patrimônio no Brasil: a determinação, conforme o artigo 113º, de que o direito de propriedade não poderia ser exercido “contra o interesse social e coletivo”.

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Essa outra forma de entender a propriedade possibilitou a alienação do bem e a efetiva proteção legal do patrimônio.

Em se tratando dos bens naturais, foram promulgados nesse momento o Código de Minas e o Código de Águas que deram as bases para a nacionalização das riquezas do subsolo.

A Constituição de 1937 reafirmou a sujeição do instituto de propriedade ao interesse coletivo. Apesar de ter permanecido como um direito individual, sujeitava-se à ingerência do Estado para cumprir sua função social.

Esta Constituição, bem como o Decreto-lei nº 25/1937 mantiveram a atribuição do Estado para com o patrimônio, substituindo, entretanto, o termo “belezas naturais” por “monumentos naturais” e por “paisagens ou lugares dotados pela natureza”. É o que pode ser observado no artigo 134 quando es-tabeleceu que “os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza gozam de proteção e dos cuidados especiais da nação, dos Estados e dos Municípios”. Esse mesmo artigo também definiu que os atentados cometidos contra os monumentos e as paisagens “serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional” (Constituição, 1937).

Encerra-se, nesse dispositivo, o entendimento de que a natureza e a cultura devem estar sob a tutela do Estado, haja vista o interesse social de que ambas podem ser dotadas. A mesma associação encontra-se no Decreto-lei nº 25/1937 quando definiu, como patrimônio histórico e artístico nacional, os “monumentos naturais, sítios e paisagens de feição notável dotada pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. Este decreto normatizou a atividade de preservação dos bens e definiu o tombamento como “o instituto jurídico através do qual o poder público determina que os bens culturais sejam objetos de proteção”. Ele ainda fixou o modo como deve ocorrer essa proteção.

O tombamento é assim um procedimento jurídico pelo qual se faz a proteção do monumento que se efetiva ao ser inscrito no livro do tombo. Ele é tanto o ato administrativo quanto a operação de inscrição do objeto em um dos livros de tombo: arqueológico, etnográfico, paisagístico, histórico, das belas artes e das artes aplicadas. Os efeitos jurídicos sobre o patrimônio tombado restringem a alienação, a alteração da paisagem da vizinhança e a modificação do bem. Por fim, obriga o proprietário a conservá-lo (Silva, 2003, p. 139).

Nesses primeiros anos após o Decreto-lei n° 25, apesar da ênfase dada à preservação de monumentos arquitetônicos, foram tombadas algumas áreas

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naturais no município do Rio de Janeiro em função da ameaça de construção, no topo do Pão de Açúcar, de um restaurante e uma nova estação de bondes (Fonseca, 1996, p. 59).

A Constituição de 1946 manteve a proteção patrimonial do Estado e es-tendeu a salvaguarda aos documentos históricos, mas deixou de equiparar os atentados aos bens tombados aos atentados cometidos contra o patrimônio nacional (Constituição, 1946). A Carta de 1967 também manteve esses dis-positivos e ampliou o conceito de patrimônio ao incluir jazidas arqueológicas (Constituição, 1967).

Nos anos 1960, a legislação em defesa do patrimônio nacional foi reforçada com a criação de leis que regulamentaram o patrimônio natural. Entre elas a Lei dos Sambaquis – Lei n° 3.924/1961 que regulamentou os achados arqueológi-cos e pré-históricos; o Código Florestal – Lei n° 4.771/1965 que considerou a floresta como de interesse comum a todos os habitantes do país e fixou áreas de preservação permanente, e a Lei de Proteção à Fauna – Lei n° 5.197/1967. Também nessa década foi criado, pelo Decreto n° 289/1967, o Instituto Brasi-leiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, encarregado de gerenciar o setor florestal brasileiro por meio de incentivos ao reflorestamento.

Como desdobramento da Conferência de Estocolmo de 1972, foi criada, em 1973 por meio do Decreto nº 73.030, no âmbito do Ministério do Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente – Sema que recebeu a incumbência de administrar os recursos ambientais e controlar as estações ecológicas e as áreas de proteção ambiental.

Em agosto de 1981, foi sancionada a Lei n° 6.938, relativa à Política Na-cional do Meio Ambiente, que definiu o papel do poder público e as responsa-bilidades do setor privado no que tange à proteção ambiental. Esta Lei permitiu a criação do Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama, em 1986, com poder deliberativo e competências para estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente, com vistas ao uso racional dos recursos ambientais. Uma das características marcantes do Conama, desde seu início, foi a participação da sociedade civil por meio de representações de movimentos ambientalistas e sociais.

Na reforma do estado de 1989, entendeu-se que a Sema e o IBDF tinham atribuições paralelas. Por isso, foram fundidos a outros dois órgãos: a Supe-rintendência da Borracha – Sudhevea e a Superintendência da Pesca – Sudepe. Disso resultou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

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Renováveis – Ibama, criado por meio da Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, órgão responsável pelo licenciamento ambiental, gestão das unidades de conservação federais e pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente. Porém, em 2007 o Ibama foi dividido por meio da Medida Provisória n° 366, de 2007. Criou-se o Instituto Chico Mendes para cuidar das áreas naturais pro-tegidas, enquanto os licenciamentos foram mantidos a cargo do Ibama.

Desde 1977, o Brasil havia se tornado signatário da Convenção do Patri-mônio Mundial de 1972. Como conseqüência disso, a cidade de Ouro Preto foi alçada à condição de Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 1980, o que inaugurou a presença brasileira na lista mundial. Em 1986, o país inscreveu seu primeiro patrimônio natural, o Parque Nacional de Iguaçu nessa mesma lista.3

A década de 1980 também pode ser entendida como bastante positiva para a salvaguarda dos bens naturais, pois nela deu-se ainda a promulgação da Constituição de 1988 que estabeleceu um conceito mais amplo de patrimônio cultural ao incluir o patrimônio natural e o imaterial como foco da ação das políticas patrimoniais. Nela, o patrimônio natural aparece como “sítios de valor paisagístico e ecológico”, o que indica, por um lado, a valorização dos aspectos estéticos, herança do conceito de monumento natural e, por outro, o reconhecimento de um aspecto até então não considerado: o ecológico, ou seja, a importância dos fatores, das relações e dos processos estabelecidos na dinâmica da natureza.

De acordo com o artigo 216 da Constituição, o patrimônio cultural brasileiro é constituído por “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmen-te ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Entre os bens inserem-se: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edifi-cações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Constituição, 1988).

3 Em 2006, a presença brasileira na Lista Mundial do Patrimônio da Humanidade incluía os itens a seguir: Parque Nacional do Jaú, Ouro Preto, Olinda, São Miguel das Missões, Salvador, Congo-nhas do Campo, Parque Nacional do Iguaçu, Brasília, Parque Nacional Serra da Capivara, Centro Histórico de São Luís, Diamantina, Pantanal Matogrossense, Costa do Descobrimento, Reserva Mata Atlântica, Reservas do Cerrado, Centro Histórico de Goiás e Ilhas Atlânticas. Fonte: www.iphan.gov.br, acesso em janeiro de 2008.

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Em conformidade com esse dispositivo, compete ao governo federal, por meio do Ministério da Cultura, formular e operacionalizar a política patrimo-nial, ou seja, criar instrumentos e mecanismos que possibilitem a proteção, a preservação e a difusão do patrimônio cultural brasileiro. Entre os instrumentos estão: o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento, a desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação.

Até o ano de 2005, o governo federal, por meio do Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, tombou 38 itens como patrimônio natural (quadro 1).

Entre os bens tombados constata-se a valorização de aspectos geomorfoló-gicos que representam 42% do total e áreas verdes urbanas que correspondem a 32%. Também se percebe que há uma classificação do patrimônio natural “a partir de seus significados reconhecidos por meio do tombamento: ou como testemunhos da natureza senso estrito, ou como um complemento de outros atributos que se deseja preservar” (Scifoni, 2006, p. 93).

Quanto aos aspectos geomorfológicos, percebe-se que há um critério estético-paisagístico, mas que evidencia uma relevância do ponto de vista de processos naturais, como o Pico do Itabirito, um maciço de hematita compacta;4 da Serra do Curral, considerada um marco geográfico de beleza paisagística, da Pedra da Gávea e do Pão de Açúcar, enormes blocos graníticos; da Gruta do Lago Azul que se destaca pela forma atípica de seus espeleotemas e por conter material paleontológico (ossadas de mamíferos pleistocenos). Nas áreas verdes urbanas, tem-se o Parque e Fonte do Queimado, uma área de mananciais coberta com vegetação abundante; o Parque e Museu Emílio Goeldi que conta com uma das mais representativas coleções de flora e fauna amazônica; a Gruta da Mangabeira, na qual se incluem grandes jazidas de fósseis e que se destaca prin-cipalmente pelo seu papel simbólico-religioso, ligado às procissões de romeiros que anualmente se direcionam ao local; a Serra da Barriga, tombada a partir da pressão do movimento negro, local no qual se constituiu o mais importante quilombo da história brasileira, Palmares, entre outros (Scifoni, 2006).

4 Que teve seu tombamento anulado por decisão do presidente da República em 1965 para viabilizar a exploração de minério de ferro pela Companhia Siderúrgica Nacional.

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Quadro 1 - patrimônio natural tombado pelo iphan até 2005

Tipo-logia Bem tombado Local

Ano do tomba-mento

Serr

as, m

orro

s, m

onte

s e p

icos

Serra do Monte Santo Monte Santo/BA 1983

Monte Pascoal Porto Seguro/BA 1974

Serra da Barriga União dos Palmares/AL 1986

Serra do Curral Belo Horizonte/MG 1960

Pico do Itabirito Itabirito/MG 1962

Penhasco do Corcovado Rio de Janeiro/RJ 1973

Morro Cara de Cão Rio de Janeiro/RJ 1973

Morro da Babilônia Rio de Janeiro/RJ 1973

Morro da Urca Rio de Janeiro/RJ 1973

Penhasco dos Dois Irmãos Rio de Janeiro/RJ 1973

Morro do Pão de Açúcar Rio de Janeiro/RJ 1973

Penhasco da Pedra da Gávea Rio de Janeiro/RJ 1973

Morros do Distrito Federal Rio de Janeiro/RJ 1938

Morro do Valongo Rio de Janeiro/RJ 1938

Morro do Pai Inácio e Rio Mucujezinho Palmeiras/BA 2000

Dedo de Deus Guapimirim/RJ s/data

Gru-tas

Da Mangabeira Ituaçu/BA 1962

De Bonito, Grutas do Lago Azul Bonito/MS 1978

Parq

ues n

acio

nais Parque Nacional Serra da Capivara São Raimundo Nonato, Brejo do Piauí, Coronel

José Dias e João Costa/PI 1993

Parque Nacional Florestas da Tijuca Rio de Janeiro/RJ 1967

Parque Histórico Nacional dos Guararapes Jaboatão dos Guararapes/PE 1961

Parque Nacional dos Serrotes do Quixadá Quixadá/CE s/data

Parq

ues e

áre

as v

erde

s urb

anas

Parque e Fonte do Queimado Salvador/BA 1997

Jardim Botânico Rio de Janeiro/RJ 1938

Horto Florestal Rio de Janeiro/RJ 1973

Parque da Cidade/Jardim São Clemente Nova Friburgo/RJ 1957

Parque do Palácio Imperial Petrópolis/RJ 1938

Parque da Independência e Museu Paulista São Paulo/SP 1998

Jardim Zoobotânico do Museu Emílio Goeldi Belém/PA 1994

Parque Rua Marechal Joinville/SC' 1965

Parque Henrique Lage Rio de Janeiro/RJ 1957

Passeio Público Rio de Janeiro/RJ 1965

Out

ros

Ilha da Boa Viagem Niterói/RJ 1938

Praias de Paquetá Rio de Janeiro/RJ 1938

Município de Parati Parati/RJ 1974

Conjunto Paisagístico da Lagoa Rodrigo de Freitas Rio de Janeiro/RJ 2000

Fonte: www.iphan.gov.br/bancodedados/guiadosbenstombados. Acesso em 29/11/2005. Adap. de Scifoni, 2006.

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Confirmando a preocupação em consolidar uma normativa destinada à preservação do patrimônio natural brasileiro, foi instituída, por meio da Lei n° 9.433, em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos que permitiu a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Este sistema visa garantir a utilização racional e integrada desses recursos e permitir a pre-venção e a defesa contra eventos hidrológicos de origem natural ou decorrentes do uso indiscriminado dos recursos naturais. Outro órgão criado por aquela mesma lei foi o Conselho Nacional dos Recursos Hídricos que, infelizmente, não contempla todos os estados da federação em sua composição, por razões jamais expostas ao debate público, e a Agência Nacional da Água, criada pela Lei n° 9.984, de 2000, responsável pela operacionalização do Plano Nacional dos Recursos Hídricos. Além disso, também integram a gestão dos recursos hídricos os comitês de bacia que contam com representantes da sociedade que vive na bacia hidrográfica e que elaboram um plano de gestão da água com participação popular.

Do mesmo modo pode ser entendida a Lei n° 9.985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) que define o conjunto de áreas a serem protegidas no âmbito federal, estadual ou municipal. A proteção visa a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais. De acordo com o SNUC, as unidades de conservação podem ser de proteção integral ou de uso sustentável. O primeiro tipo advoga a intocabilidade do ambiente natural, não sem gerar resistência da população local que vive nas áreas. No segundo caso, a população que vive nas áreas protegidas pode desenvolver atividades produtivas, desde que aprovadas no plano de manejo e que sejam consideradas de baixo impacto ambiental e não coloquem em risco a manutenção dos ritmos naturais do ecossistema.

Há que se considerar também a existência de outros instrumentos que se destinam a aperfeiçoar a política de proteção ao patrimônio natural brasileiro, entre eles a Lei de Crimes Ambientais, Lei n° 9.605, de fevereiro de 1998, que dispõe acerca das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

A produção sistemática de documentos legais destinados a salvaguardar o patrimônio natural brasileiro traduz o esforço que tem havido nesta direção. A criação do Ministério do Meio Ambiente, em 1992, depois da Conferência do Rio, que passou a coordenar a conservação e a preservação de ambientes naturais em escala federal, reforçou esse movimento dos dirigentes brasileiros. Também

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se constata uma crescente conscientização da sociedade brasileira que se mo-bilizou para a realização de várias conferências nacionais de meio ambiente, a partir de 2003, da qual participaram milhares de representantes de empresários, universidades, movimentos sociais e ambientais, entre outros segmentos. No entanto, ainda persiste o desafio de aplicar os dispositivos firmados de forma a impedir a devastação da natureza brasileira, detentora da maior diversidade biológica do mundo, e a permitir que a geração atual e as gerações futuras possam usufruir as vantagens que essa riqueza propicia.

A seguir, algumas experiências desenvolvidas em escala estadual apontam outras possibilidades de conservação ambiental no Brasil.

proteção do patrimônio natural brasileiro na esfera estadualA proteção do patrimônio natural já era objeto de experiências levadas a cabo

em alguns estados da federação, décadas antes da edição da Constituição de 1988. É o caso do Estado do Paraná que criou, em 1948, dentro da Secretaria de

Educação e Cultura, a Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná para a “defesa e restauração dos monumentos e conservação das paisa-gens e formações naturais características do Estado” (Kersten, 2000, p. 132).

Em 1953, foi editada a Lei n° 1.211, relativa à proteção do patrimônio histórico, artístico e natural do Paraná. Apesar de ser a primeira referência no país a respeito do patrimônio natural, definido como “os monumentos naturais, os sítios e paisagens que importa conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”, esta lei só entrou em vigor na década de 1960, quando foram tombados os primeiros monumentos do Estado (idem, p. 138-139).

Pode-se dizer que o Paraná “foi pioneiro também em ações de maior mag-nitude” no que tange ao patrimônio natural, uma vez que seus tombamentos, entre as décadas de 1960 e 1980 (quadro 2), foram de maior extensão e com-plexidade, como se deu ao tombar a Ilha do Mel, a paisagem da orla, o Parque de Vila Velha e a Serra do Mar (Scifoni, 2006).

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Quadro 2 - patrimônio natural tombado no paraná, até 2005

Ano de tombamento bem Município

1966 Parque de Vila Velha, Furnas e Lagoa Dourada Ponta Grossa

1970 Paisagem da orla marítima Matinhos

1974

Árvore – paineira Campina Grande do Sul

Árvore – angico branco Curitiba

Árvore – corticeira Curitiba

Árvore – tipuana Curitiba

Passeio Público Curitiba

1975 Ilha do Mel Paranaguá

1976 Árvores da praça Santos Dumont Curitiba

1982 Sambaquis Paranaguá

1983 Capão da Imbuia Curitiba

1985 Ilha de Superagui Guaraqueçaba

1986 Serra do MarAntonina, Guaraqueçaba, Guaratuba,Piraquara,

Quatro Barras, São José dos Pinhais, Tijucas do Sul, Campina Grande do Sul

1988 Gruta da Lancinha Rio Branco do Sul

1990

Árvore - ceboleira Curitiba

Árvore - palmeira Morretes

Árvore – carvalho São Matheus do Sul

Fonte: www.pr.gov.br/cpc-benstombados.html. Acesso em 15/02/2005. Organizado por Scifoni, 2006.

Minas Gerais também desenvolveu ações de preservação da natureza antes da Constituição de 1988. A estratégia do Estado para este fim foi a de priorizar paisagens que expressavam formas de relevo em destaque no contexto regio-nal, tais como serras e altos picos rochosos. Mas o grande impulso deu-se nos anos 1980, com a Constituição de 1989 do Estado que instituiu patrimônios naturais reconhecidos. No quadro 3 encontra-se a lista de bens tombados em Minas Gerais.

O Rio de Janeiro foi outro Estado que iniciou o tombamento de seu patrimô-nio natural antes de 1988. A partir de 1965, uma grande parte desse patrimônio já havia sido tombado, como indica o quadro 4. Nessas ações, observam-se a diversidade de tipologias, que vai desde áreas verdes urbanas a serras, morfo-logias costeiras, praias e ilhas.

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Quadro 3 - patrimônio natural tombado em minas Gerais, até 2005

Ano de tombamento Bem Município

1977 Lagoa e Lapa do Sumidouro Lagoa Santa e Pedro Leopoldo

1978 Serra de Ouro Branco Ouro Branco

1989

Serra da Piedade Caeté

Serra do Caraça Catas Altas

Bacia Hidrográfica do Jequitinhonha Diversos

Pico do Ibituruna Governador Valadares

Pico do Itabirito Itabirito

Serra da Ibitiboca Lima Duarte

Serra de São Domingos Poços de Caldas

1996 Conjunto arqueológico e paisagístico Poções Matozinhos

1999 Cachoeiras do Tombo da Fumaça Salto da Divisa

2000 Serra dos Cristais Diamantina

Fonte: www.iepha.mg.gov.br/bens.htm. Acesso em 15/02/2005. Organizado por Scifoni, 2006.

Quadro 4 - patrimônio natural tombado no rio de janeiro até 2005

Ano de tombamento Bem Município

1965

Paulo Henrique Lage Rio de Janeiro

Parque da Gávea/Parque da Cidade Rio de Janeiro

Ilha do Brocoió Rio de Janeiro

1967 Árvores de Paquetá Rio de Janeiro

1968 Figueira gigante Rio de Janeiro

1975 Morro do Urubu Rio de Janeiro

1983

Pontal de Sernambetiba Rio de Janeiro

Morro do Amorim Rio de Janeiro

Morro do Cantagalo Rio de Janeiro

Morro da Portela Rio de Janeiro

Pedra da Baleia Rio de Janeiro

1985 Praia do Grumari Rio de Janeiro

1987

Litoral Fluminense - Foz do Rio Paraíba do Sul São Francisco de Itapoana, São João da Barra

Ilha Grande Angra dos Reis

Litoral Fluminense; Canto sul da Praia Itaipu e ilhas da Menina, da Mãe e do pai Niterói

Litoral Fluminense Paraty

Pedra do Sal Rio de Janeiro

1988Dunas Arraial do Cabo

Dunas Cabo Frio

2003 Bens naturais do litoral de Armação de Búzios Armação de Búzios

Fonte: www.iepha.mg.gov.br/bens.htm. Acesso em 15/02/2005. Organizado por Scifoni, 2006.

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No Estado de São Paulo, as primeiras iniciativas ocorreram logo nos primeiros anos de fundação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico – Condephaat, que se deu em 1968.

A partir de meados da década de 1970, o Condephaat realizou uma série de tombamentos de áreas naturais no Estado, como a nascente do Rio Tietê, a Reserva Estadual da Cantareira, as serras do Japi e a do Mar, além de áreas urbanas, como os bairros dos Jardins e do Pacaembu, ou os parques da Acli-mação, Siqueira Campos e Ibirapuera.

A prática preservacionista em São Paulo foi bastante marcada por conflitos que envolvem a questão da propriedade; basta lembrar a iniciativa do Conde-phaat de preservar os casarões da avenida Paulista que resultou na destruição de grande parte daqueles imóveis, pois os proprietários não aceitaram as decisões do poder público (Rodrigues, 1996, p. 198). No quadro 5, a seguir, encontram-se os bens tombados no Estado de São Paulo.

Quadro 5 – patrimônio natural tombado em são paulo, até 2005Bem tombado Ano do pedido tombamento

1. Bosque dos Jequitibás 1969 1970

2. Parque das Monções 1969 1972

3.Caminho do Mar 1972 1972

4. Pedreira de Varvitos 1969 1974

5. Parque da Independência 1969 1975

6. Horto Florestal de Rio Claro 1974 1977

7.Maciço da Juréia 1973 1979

8.Reserva Florestal do Morro Grande 1978 1981

9. Jardim da Luz 1977 1981

10. Parque Siqueira Campos 1978 1982

11.Mata Santa Genebra 1982 1983

12. Vila de Picinguaba 1983 1983

13. Parque Estadual do Jaraguá 1978 1983

14.Serras do Japi, Guaxinduva e Jaguacoara 1974 1983

15. Serra de Atibaia 1982 1983

16. Serra de Voturuna 1983 1983

17. Reserva Estadual Cantareira e Horto Florestal 1978 1983

18. Morro do Botelho 1983 1984

19. Serra do Mar 1976 1985

20. Morros do Icanhema, do Pinto e do Monduba 1978 1985

21. Parque da Aclimação 1983 1986

22. Jardins América, Europa, Paulista e Paulistano 1985 1986

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Bem tombado Ano do pedido Tombamento

23.Casa Modernista 1983 1986

24. Vila de Paranapiacaba 1983 1987

25. Vale do Quilombo 1986 1988

26. Haras São Bernardo 1986 1990

27. Nascentes do Tietê 1974 1990

28. Pacaembu 1985 1991

29. Serra do Guararu 1988 1992

30. Parque do Ibirapuera 1983 1992

31. Rocha Moutonnée 1975 1992

32. Chácara Tangará 1989 1994

33. Parque do Povo 1988 1994

34. Ilhas do Litoral Paulista 1989 1994

35. Parque da Água Branca 1983 1996

36. Cratera de Colônia 1994 2003

37. Morro Juquery (Pico Olho D´Água) 1983 2004

Fonte: Condephaat. Adap. de Scifoni, 2006.

Destaca-se, nas ações paulistas, a diversidade de patrimônios naturais re-conhecidos: manchas de vegetação nativa remanescente, áreas verdes urbanas constituídas por uma vegetação não nativa e implantada, extensas áreas cons-tituídas por maciços serranos e morros e estruturas geológicas peculiares.

A diversidade é explicada, segundo Scifoni (2006), pela presença do conse-lheiro e geógrafo Aziz Ab’Saber no corpo do Condephaat. Ab’Saber se propôs a orientar uma política de ação dentro do Condephaat “que deveria ocupar-se em identificar e proteger um importante patrimônio natural constantemente ameaça-do diante da expansão do processo de urbanização do território”. Somado a isso, havia “um movimento de renovação do próprio conceito de patrimônio” que se voltava para os bens ambientais urbanos, num entendimento de que “patrimônio natural não se referia somente a testemunhos de uma beleza natural excepcional”, mas que reconhecia o valor “de uma natureza transformada e apropriada social-mente”, presente nos parques e áreas verdes urbanas (Scifoni, 2006, p. 107- 116).

Há que salientar que, em São Paulo, parte significativa das áreas naturais tombadas, ou seja, 44%, resultou de pedidos da sociedade civil. Ainda assim, persiste o desafio de fazer com que a legislação existente seja cumprida e aper-feiçoada ainda mais, de forma a proteger o patrimônio para a geração atual e para as futuras gerações, em que pesem os interesses particulares.

As experiências desenvolvidas em unidades da federação confirmam que o Brasil dispõe de diversos instrumentos jurídicos que se complementam

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aos federais. Cabe à população se apropriar de tais normas com vistas a uma definição mais ampla de conservação da natureza de modo a evitar conflitos socioambientais, em especial com aqueles que habitam as áreas naturais que geram interesses conservacionistas.

considerações finaisA formulação de uma normativa jurídica voltada à proteção do patrimônio

natural e a organização de uma estrutura administrativa especializada nesse propósito demonstram o reconhecimento da necessidade de salvaguardar nosso legado. Também demonstram a responsabilidade do Estado e da sociedade no que tange à conservação da natureza.

No entanto, há que se ter em conta as dificuldades que se colocam para deter o nível atual de devastação ambiental. Interesses diversos, como os de madeireiros, povos indígenas, fazendeiros, trabalhadores rurais sem terra, apenas para listar alguns dos mais importantes segmentos sociais do Brasil contem-porâneo, indicam que a sociedade deve refletir sobre ao menos dois aspectos quando o assunto é a conservação ambiental: quem ganha e quem perde com a manutenção da diversidade biológica e demais feições naturais? Quais os objetivos da manutenção desse patrimônio? Somente quando essas perguntas forem respondidas teremos perspectivas de gestão do ambiente natural de forma mais democrática e igualitária, distribuindo os benefícios que ela pode e deve propiciar às gerações presentes e futuras.

É preciso enfrentar criticamente os interesses que se contrapõem à salva-guarda do patrimônio natural, sob pena de nos depararmos, em curto prazo, com a perda da biodiversidade, a desertificação do solo e os efeitos do aquecimento do planeta. Esse enfrentamento será político. A normativa jurídica aqui exposta prevê em muitos foros a participação popular e poderá servir para o debate. Ou, poderá apenas legitimar interesses ocultos à população brasileira. A mobilização permanente e qualificada pode evitar que a segunda alternativa impere.

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Recebido: fevereiro/2008 - Aprovado: setembro/2008

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303Maximiliano Mac Menz / Revista de História 158 (1º semestre de 2008), 303-307

CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007, 364 p.

Maximiliano M. Menz1

Doutor em História Econômica-FFLCH/USP

Editado em 2007 pela editora da UFJF o livro Minas e currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, de autoria de Angelo Carrara, pode ser considerado como um dos trabalhos mais importantes a respeito da economia mineradora e das suas estruturas ancilares de abastecimento. Os pontos fortes do trabalho são muitos: em primeiro lugar, a natureza e a abrangência das fontes utilizadas, com destaque à Coleção Casa dos Contos. Em segundo lugar, o rigor metodológico, especialmente na organização de séries sobre preços e entradas de mercadorias pelos registros mineiros. Em terceiro lugar, o seu modelo teórico que permite caracterizar de maneira original as dinâmicas econômicas e agrárias da Minas setecentista, apesar de certas limitações, como tentarei argumentar aqui. Por último, ressalto a incorporação da historiografia hispano-americana, que, dada a importância do fenômeno minerador na América espanhola, aporta raciocínios preciosos para o estudo de Minas Gerais.

A tese parte de uma discussão básica a respeito da economia colonial mi-neradora: a dicotomia entre decadência e opulência, tema recorrente entre os memorialistas e que perpassou quase toda a historiografia sobre as Minas Gerais. Se alguns historiadores apegaram-se ao discurso decadentista ao se exaurir a produção mineradora, outros procuraram ressaltar o desenvolvimento da agri-cultura de abastecimento, especialmente na segunda metade dos Setecentos, ressaltando a opulência econômica mineira. Diante desta antinomia, Angelo Carrara reconstitui os principais “indicadores econômicos” da região – quintos, dízimos, entradas de mercadorias, população – que, de certo modo, confirmam o quadro contraditório. Constata assim uma queda nos quintos e nas entradas de

1 O autor agradece os comentários do prof. ms. Gustavo Acioli.

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mercadorias na década de 1760, além de uma desaceleração no crescimento dos escravos, não obstante a estabilidade nos contratos dos dízimos e o crescimento demográfico geral da capitania.

Este problema, portanto, só pode ser esclarecido se recortado pelas duas paisagens características de Minas Gerais, as minas e os currais, que permitem demarcar “o modelo particular da sociedade agrária colonial de Minas Gerais”. Mas, afinal, qual é este modelo?

Angelo Carrara inspira-se na obra de autores marxistas do Rio de Janeiro, como Ciro F. Cardoso, Maria Yeda Linhares e Francisco Teixeira Silva, e em trabalhos de historiadores latino-americanos, como Carlos Sempat Assadourian. A sociedade agrária de Minas se caracterizaria pela coexistência de dois modos de produção articulados, o modo de produção escravista colonial, centrado na produção aurífera e na produção agrária mercantil (auxiliar à extração do ouro), e a produção camponesa de mão-de-obra familiar, ligada, ainda que de maneira “frouxa”, à produção mineira. É a articulação entre estes espaços econômicos (caracterizados pela natureza das relações de produção) que demarcaria o mer-cado interno no espaço colonial.

Além disso, o autor procura diferenciar a economia mineradora da economia açucareira, realçando que o modo de produção escravista na região mineradora esteve vinculado às “demandas geradas pela circulação monetária correspon-dente à produção do ouro.” Assim, sua dinâmica não dependia da demanda externa e a determinação da atividade mineradora “era absolutamente interna” (p. 60). Tal raciocínio é de grande perspicácia, não apenas por permitir delimitar as diferenças entre os setores exportador e minerador na economia colonial, mas também por chamar a atenção para o fato de que, no segundo setor, é a oferta (do ouro) o elemento principal na formação da conjuntura. Contudo, esta afirmação deve ser relativizada pois os metais preciosos não possuem um valor em si; no limite, os custos da extração devem ser inferiores ao poder de compra do ouro extraído que vai depender, aí sim, da demanda exógena pelo metal. Voltarei a falar disso.

O autor desenvolve este eixo de idéias por cinco capítulos, organizados em duas partes: na primeira são analisados os movimentos dos preços e a estrutura dos “mercados internos”, na segunda são estudadas as estruturas agrárias.

Da análise dos preços, inspirada na metodologia de Ernest Labrousse, chega-se a uma conclusão inovadora: ao contrário da historiografia sobre a colônia que sempre ressaltou o lado inflacionário da explosão mineradora, é demonstrado

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que, após o princípio especulativo, a tendência dos preços em Minas Gerais é para a baixa/estabilidade (p. 108). A rápida estabilização dos preços, já na década de 1750, “deve ser interpretada acima de tudo como um índice da capacidade que desde muito cedo a atividade agropecuária adquiriu para alcançar um nível de rendimento tal que tornasse possível a estabilização” (p. 110). Confirma-se assim uma característica da produção escravista de responder com rapidez frente à pressão positiva do lado da demanda. A série dos preços revela mais: depois de 1764, a tendência é para a queda, refletindo no preço dos alimentos a redução da produção aurífera; esta queda, no entanto, teria afetado a agricultura escravista, mas não a produção camponesa que dependia menos do mercado. Explicam-se, portanto, os movimentos contrários entre a população livre (cres-cendo) e a população cativa (diminuindo) em Minas Gerais.

Em seguida, são estudados os mercado internos pelos volumes de mer-cadorias e pelos seus caminhos. Angelo Carrara apresenta, assim, um estudo quantitativo dos registros de entradas de mercadorias, revelando que os dife-rentes espaços da capitania ligavam-se a distintas regiões da colônia (Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo) e, sendo assim, movimentavam mercadorias de gênero diverso - escravos, gado, secos e molhados (produtos locais e reinóis). Naturalmente essas articulações reagiram de maneira distinta ao estímulo minerador. Assim, os registros em torno da zona mineradora acompanharam a queda da produção aurífera enquanto que outras zonas, como o sul de Minas, conectaram-se desde cedo ao mercado do Rio de Janeiro. Para Angelo Carrara estas conversões explicam-se também pela natureza da produção escravista, pois “à medida que surgiam novas demandas provocadas pelo crescimento de algum setor econômico, dentro ou fora da Capitania, as unidades de produção mais bem aparelhadas - leia-se, com maior número de escravos - circunstan-cialmente foram capazes de atender às demandas e de novo participar de uma conjuntura caracterizada por uma produção mercantilizada em grau relativa-mente elevado” (p. 144).

Confesso, no entanto, que não compreendo porque o autor insiste em falar de um mercado interno de Minas Gerais. Afinal, o que ele demonstra é justamente uma miríade de mercados que conectam-se aos centros mineradores ou a outras regiões, ao sabor das conjunturas. Além disso, não existe uma uniformidade dos preços que, pelo critério dos economistas, caracterizaria um mercado interno. Resta apenas a “territorialidade” desses fluxos até as Minas; mesmo assim, uma parte expressiva desse tráfego é movimentada por mercadorias de origem

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atlântica, exógenas ao espaço econômico colonial como caracterizado pelo autor. Parece-me, ademais, que Angelo Carrara está consciente deste problema já que apesar do título referir-se a um mercado interno, no singular, por diversas vezes ele fala em mercados internos, no plural. Mas, na minha opinião, esta questão teórica não pode ser contornada pela simples indefinição entre singular e plural: afinal, existiu um mercado interno colonial no Brasil? Acredito que, no final das contas, o livro de Angelo Carrara mostra que não; o que havia eram diversos mercados no interior do Brasil, articulados de diferentes maneiras com os mercados do litoral voltados ao Atlântico português.

Na segunda parte de seu livro são abordadas as estruturas agrárias de Minas. A documentação sesmarial, além de outros documentos cartoriais, permite-lhe reconstituir as diferentes paisagens, as formas de apropriação do espaço e os decorrentes sistemas de produção. As sesmarias, as posses e, principalmente, a compra e a venda de terras são os meios de apropriação do território. Causa surpresa, no entanto, a afirmação do autor de que a propriedade fundiária em Minas sempre funcionou como propriedade privada no sentido econômico. Ora, a propriedade não se define pelo seu uso econômico, mas, com o perdão da redundância, pelo seu modo de apropriação: na medida em que existiam di-versos meios de acesso a terra em Minas, a maior parte da população não estava “privada” da terra, mas apenas das melhores glebas já mercantilizadas.

Do ponto de vista da morfologia da exploração agrária, as minas, caracteri-zadas pelos pequenos sítios, e os sertões das fazendas de gado conformavam as duas principais paisagens das Minas Gerais. Além disso, há que se diferenciar a produção camponesa, direcionada para o auto-consumo, da produção escra-vista, voltada ao mercado. A partir dessas distinções Angelo Carrara desce às rotinas da produção, rendimentos, técnicas e tipos de produtos, descritos com riqueza de detalhes.

Esta descrição ganha em conteúdo no 4º capítulo com a análise da docu-mentação privada dos contratadores dos dízimos. Além de revelar os segredos do negócio da arrecadação do dízimo – questão que não é menor dado o inedi-tismo de sua análise –, a fonte permite-lhe demonstrar os ritmos desiguais da produção agrária mineira na segunda metade do século XVIII. As zonas ligadas ao abastecimento das minas sofreram com a diminuição da produção rural, enquanto que nas áreas de fronteira houve um aumento do produto decorrente da ocupação e crescimento demográfico. Tais comportamentos caracterizam o que o autor chama de desconcentração da produção rural, fenômeno marcado

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pela diminuição da produção escravista de escala e pela pulverização da pro-priedade em torno de células camponesas. Esclarece-se, portanto, a estabilidade dos dízimos da Capitania no quadro da depressão aurífera, a estabilidade da produção agrícola bruta é contrabalançada pela queda da produtividade e pela retração da produção para o mercado.

A depressão aurífera afetou, assim, o modo de produção escravista provocan-do a sua dispersão. Vale notar que o autor não fala em crise, pois “o arrefecimento das atividades dominantes atingiu apenas a circulação, e não o nível técnico ou as relações de produção. Só nos é possível falar numa ruptura generalizada na base material, isto é, na formação de um novo modo material de produção (...) a partir dos anos finais do século XIX” (p. 258). Ou seja, seu modelo não deixa de reiterar, ainda que de modo matizado, a idéia da decadência.

No final das contas, apesar dos destacados méritos do modelo, ficam expos-tos os seus limites: tanto a forma de produção escravista como as populações de lavradores não podem ser pensadas enquanto totalidades (ou seja, enquanto modos de produção). Sem a demanda européia por ouro e a demanda africana por têxteis e armas de fogo seria impossível a reprodução do “modo de produ-ção escravista” e a formação dos mercados que também eram alimentados pela produção camponesa. Outrossim, se é verdade que o modelo é frutífero para explicar as conjunturas do ouro, seguramente ele não permite perceber as gran-des transformações no escravismo do século XIX. A escravidão na cafeicultura, por exemplo, é bastante distinta na sua base técnica da produção escravista na mineração ou da produção agropecuária para o abastecimento. Não deixa de ser curioso, no final das contas, que o autor inicie seu texto chamando a atenção para a especificidade da economia mineradora frente à produção agroexportadora e conclua pela sua igualdade, mesmo que limitada à base técnica.

Bem entendido que, apesar das discordâncias teóricas referentes a problemas tangenciais a sua tese, considero que o modelo dá conta das principais questões levantadas no livro. Mérito do autor que, com o rigor de sua exposição e a serie-dade de sua metodologia, deixa à sombra as eventuais incongruências do modelo. Parece-me, portanto, que o seu livro é leitura obrigatória para os estudiosos da sociedade mineira e interessados na economia colonial em geral.

Recebido: março/2008 - Aprovado: setembro/2008

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PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

Rodrigo Faustinoni BoncianiDoutorando em História Social - FFLCH/USP

A literatura sobre os candomblés brasileiros enfatizou a análise do culto dos orixás, dos povos iorubá-falantes, dos terreiros nagôs. Essa tendência, observada desde Nina Rodrigues, se consolidou com os trabalhos de Pierre Verger e de outros autores. O livro de Luis Nicolau Parés analisa o culto dos voduns, dos povos gbe-falantes, dos terreiros jejes. O autor pretende inverter a ênfase no binômio nagô-jeje.

O livro pode ser dividido em duas partes. Os quatro primeiros capítulos estabelecem um panorama macro-histórico que analisa o processo de formação da etnicidade jeje, da África até a Bahia, e destaca a importância dos cultos de voduns na formação do candomblé brasileiro. Os quatro capítulos seguintes se dedicam à micro-história de dois terreiros jejes baianos (o Bogum de Salvador e o Seja Hundé de Cachoeira) e procuram fazer uma etnografia do panteão e do ritual vodum. Entre a macro e a micro história, o autor analisa a articula-ção das identidades, das dinâmicas associativas e das relações de poder, tripé fundamental para entendermos o processo de colonização do Atlântico e seus desdobramentos contemporâneos. Parés enquadra seu estudo entre a história e a antropologia da religião afro-brasileira, estabelecendo um cruzamento crítico na utilização de fontes escritas e orais.

A etnicidade jeje é entendida por meio de uma perspectiva relacional e multidimensional, constituída historicamente por influência do contexto afri-cano, da ação dos europeus e de acordo com as diferenças regionais brasileiras. Destaca três elementos na constituição dessa identidade: as zonas ou portos de embarque na África, a referência a uma área geográfica comum e relativamente estável de moradia e as semelhanças lingüístico-culturais.

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Reconstituídas as migrações dos povos adjas-ewés, o autor adota a expressão de Hounkpati Capo de uma área gbe falante. O termo “gbe” significa língua para um conjunto de povos (no norte do atual Togo, República do Benim e sudoeste da Nigéria), que chama de voduns as divindades que cultua. A área do vodum praticamente coincide com a área gbe e foi submetida ou sofreu influência do reino do Daomé a partir do século XVIII. Com a consolidação e centralização política do Daomé houve um processo de miscigenação entre os povos da área gbe, além da assimilação de diversos cultos com a imposição de um modelo hegemônico e hierárquico de instituição religiosa. Esse processo seria uma das razões para a assimilação da nação jeje como identidade coletiva no Brasil.

Na Bahia dos séculos XVIII e XIX os negros desenvolveram estratégias de identidade; o termo jeje foi assimilado para o relacionamento com a sociedade escravista e para o diálogo interafricano, enquanto que as subnações (mahis, savalus, agonlins, mundubis etc.) foram utilizadas no âmbito interno dos gbe-falantes. O autor entende que o etnônimo idjè ou o topônimo Adjadché foi transformado pelos comerciantes baianos em jeje e passou a denominar uma pluralidade de povos adjas, enquanto que no Benim manteve-se restrito aos guns do reino de Porto Novo.

O conceito de nação, que está na base da construção das identidades e etni-cidades afro-ameríndias, é um fato colonial, mesmo que utilize elementos autóc-tones para a definição das mesmas. A perspectiva relacional, multidimensional ou dialógica utilizada no livro pode encobrir esse fato. As “nações” deveriam estimular ou criar antagonismos entre os diferentes grupos autóctones, abrindo caminho para as mediações européias. O destaque das semelhanças lingüístico-culturais entre povos tão diversos, homogeneizados pelo culto aos voduns e pela generalização gbe-falantes, e a construção de uma trajetória histórica linear, das migrações de Oduduwa até a Bahia, permitem uma naturalização da identidade, sua territorialização e a legitimação de mediações políticas, econômicas e cultu-rais por meio de determinadas lideranças. Os processos de domínio podem ser dialéticos, mas não dialógicos. A motivação do termo jeje é político-econômica e é nessa chave que o conceito pode ser desconstruído. Mesmo relativizando o termo jeje, Parés acaba por adotá-lo, resignificando-o e reinventando-o.

As dinâmicas associativas também foram processos privilegiados para a construção dessas identidades. O autor destaca as irmandades católicas, os batuques e os candomblés. Ele entende que a estrutura social e ritual das organizações religiosas afro-brasileiras se tornou cada vez mais complexa e

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descreve os seguintes momentos: atividades individualizadas e independentes representativas de fragmentos de cultura religiosa; formação das primeiras congregações religiosas de caráter familiar ou doméstico; surgimento de con-gregações extra-familiares. Esta evolução estaria marcada pela ampliação das divindades cultuadas, pela estabilidade espacial e do calendário litúrgico e pela consolidação do complexo assento-ebó.

É no contexto das irmandades que a eficácia das denominações dos negros se revela. Sua função era estabelecer antagonismos entre os africanos e os crioulos, entre os boçais e os ladinos, e entre as diferentes “nações” africanas. Essa construção fica evidente nas posições das autoridades baianas frente aos folguedos dos escravos. Segundo o conde dos Arcos, “esses ‘ajuntamentos’ que reagrupavam os escravos por nações contribuíam para a sua divisão interna, separando os diversos grupos étnicos”, e, para o conde da Ponte, a “festa con-tribuía para a elaboração de tensões” (apud Parés, [?] p. 129). Parés contrasta a postura tolerante do primeiro com a repressiva do segundo; interessa-me destacar o fundo comum dessas posições: as “nações”, construídas no contexto do trá-fico de escravos, passam a ter uma correlação com as práticas sociais e com as dinâmicas associativas; a “nação” inventada se transforma em “nação” vivida.

Outra contribuição de A formação do candomblé é repensar o binômio assimilação-resistência, indicando que esses elementos são tendências com-plementares e não antagônicas. Parés indica, por meio da análise do jornal O Alabama, as relações estreitas entre a polícia, membros do exército e alguns dirigentes dos candomblés, além da importância das congregações religiosas como fonte de votos, principalmente para os conservadores. No século XX, o autor destaca como principais períodos de ressurgimento do candomblé os anos 1930 e 1970, o primeiro relacionado a Vargas e ao Estado Novo, o segundo à ditadura militar e a Antônio Carlos Magalhães. Mesmo assim, termina por adotar a idéia de resistência assumida pela nova historiografia: “No contexto dos africanos e afro-descendentes no Brasil, o campo da religião, das crenças e das práticas rituais associadas ao mundo invisível parece ter sido o domínio por excelência da resistência cultural” (p. 95).

No final do capítulo 4 apresenta-nos uma das motivações centrais do seu trabalho: inverter a ênfase no binômio jeje-nagô, “questionando a tradicional interpretação vigente nos estudos afro-baianos que têm privilegiado o pólo nagô” (p. 157). O autor analisa as dinâmicas associativas e identitárias na Bahia

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e na África, no final do século XIX, o destacamento da tradição nagô-ketu no candomblé baiano e o papel dos intelectuais nesse processo.

Do ponto de vista macro-histórico, não são analisadas as disputas entre a França e a Inglaterra em relação às áreas de influência no Rio de Janeiro, Bahia e África ocidental. Durante o século XVIII os ingleses apoiaram os comerciantes baianos e o rei do Daomé, muitas vezes em detrimento de Portugal. A partir do século XIX, a Inglaterra favoreceu a centralização política no Rio de Janeiro e as elites econômicas do sudeste brasileiro. Os baianos se opuseram à esse projeto de independência e a política de combate ao tráfico de escravos acirrou a posição anti-britânica. Ora, a disputa colonial franco-inglesa fortaleceu o antagonismo entre nagôs (iorubá-falantes, que cultuam os orixás) e o Benim, e entre jejes (gbe-falantes, que cultuam os voduns) e a Nigéria [?]. Há, portanto, na Bahia, a rejeição ao vínculo jeje britânico e a valorização do vínculo nagô francês. Esse nagocentrismo foi reafirmado nos momentos de embate entre o nacionalismo brasileiro e o regionalismo baiano: final do século XIX (fim legal da escravidão e advento da República); entre as décadas de 30 e 50 do século XX; e durante a ditadura militar. O que me parece curiosíssimo é o fato de Luis Nicolau Parés ser catalão e ter se formado na Universidade de Londres [?].

Estabelecido o panorama macro-histórico, Parés passa a analisar os terreiros jejes baianos. O Bogum, do candomblé jeje-mahi, teve sua origem entre o final do século XVIII e o início do XIX. Em uma das tradições orais, é associado a escravos mahis aquilombados; em outra versão, aparece associado a Joaquim Jeje, que participou da revolta dos malês e havia adotado o islamismo sem abrir mão do culto dos voduns. Em Cachoeira, a tradição oral também associa o surgimento dos candomblés a antigos quilombos, indicando a possibilidade de terem sido a base para a formação das congregações afro-brasileiras e de sua complexidade organizacional. Sobre o candomblé da Roça de Cima, onde depois foi criado o Seja Hundé, Parés destaca o papel de duas pessoas: Ludo-vina Pessoa e Zé do Brechó. Ludovina, de origem africana, foi uma das mais importantes mães-de-santo do candomblé; possuía uma rede de relações que se estabelecia entre o Recôncavo, Salvador e a África (fisicamente ou espiritu-almente, dizia-se que vinha todo ano da África). Zé do Brechó era um crioulo politicamente influente, conhecedor das práticas religiosas e proprietário de terras; fazia parte de uma elite negra nascente, que se fortalecia com o fim da escravidão. Concluindo o estudo sobre esses terreiros, Parés observa que a eti-

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mologia dos mesmos “parece refletir hibridismos étnicos havidos na fundação dos terreiros” (p. 204).

Os terreiros jejes valorizam os vínculos de parentesco para reforçar suas estruturas de poder. Parés mostra que a morte de uma mãe-de-santo muitas ve-zes levava a conflitos internos na disputa pelo poder no terreiro. É interessante observar que o mesmo processo acontecia nas sucessões dinásticas africanas. Portanto, é preciso analisar o sentido das identidades, as dinâmicas associativas e as relações de poder na perspectiva das sociedades africanas ou afro-brasi-leiras: como elas se apropriam das identidades e reconfiguram os dispostivos de domínio? A rede social que ligava os terreiros à sociedade também foi um elemento fundamental para a consolidação de suas lideranças. Nesse momento, fica patente a necessidade de se cruzar a macro e a micro-história.

Dentre as transformações observadas atualmente nos candomblés jejes, Parés destaca: a migração de certas lideranças e a criação de novos terreiros no sul do Brasil; a busca pela pureza africana e as viagens para iniciação na África; o predomínio de líderes brancos, principalmente homossexuais; a alteração em aspectos litúrgicos; o problema da terra.

Parés retoma a tese que rompe com a idéia de invenção local do candomblé e entende que os cultos de vodum na África deram origem ao modelo orga-nizacional que foi replicado para os outros grupos étnicos e suas divindades particulares. Segundo o autor, a justaposição de várias divindades num mesmo templo e a organização seriada do ritual, que caracterizam o candomblé con-temporâneo, vêm da tradição vodum da área gbe desde pelo menos o século XVIII. Ao mesmo tempo, a diversidade local das divindades, de seus atributos, gênero e funções levam ao questionamento da própria idéia de um panteão, ou panteões jejes. A mesma complexidade se revela na hora de estabelecer uma liturgia jeje: “(…) a diferente origem étnica e afiliação religiosa dos agentes sociais responsáveis pela transferência transatlântica estaria na base de certas variações regionais brasileiras. Esse fato vem salientar que, mesmo dentro da tradição jeje, havia já uma heterogeneidade de práticas religiosas, até agora pouco conhecida” (p. 355).

Os “jejes” não se deixam fixar em uma nação, etnia, tradição, ou matriz africana. A historicidade dessa identidade deve ser analisada na longa duração do colonialismo ou na particularidade de suas apropriações históricas. Quando Parés se debruça sistematicamente sobre essas dinâmicas históricas, particular-mente as políticas, ameaça romper com a naturalização da identidade e da matriz

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africana. Mas seu ponto de partida, o nagocentrismo, e o ponto de chegada, o candomblé jeje, dependem da construção dessa etnicidade. A ambivalência em relação ao termo “jeje” representa o problema central do livro e das relações entre as ciências humanas e as sociedades afro-ameríndias: como descolonizar a relação com as sociedades negras e suas manifestações culturais, econômicas e políticas? Esse é o desafio enfrentado por Luis Nicolau Parés.

Recebido: abril/2008 - Aprovado: setembro/2008

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MOURA, Cristina Patriota de. O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 135 p.

Tereza Maria Spyer DulciDoutoranda pelo Departamento de História – FFLCH/USP

Em 2007, cerca de 8.600 pessoas participaram do concurso para a carreira de diplomata oferecida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Para ingressar no curso do Instituto Rio Branco, instituição responsável pela formação dos futuros agentes do Itamaraty, foram disponibilizadas 105 vagas com aproxi-madamente 82 candidatos por vaga. Há muitos anos, esse concurso se configura como um dos mais disputados entre as carreiras públicas do país. E isso não se dá apenas pelo salário inicial de R$ 7.183,91;1 o principal motivo para que essa carreira seja muito desejada é o prestígio social que tem em nossa sociedade.

A carreira de diplomata é, justamente, o tema central dessa recente publi-cação da Editora FGV da Fundação Getúlio Vargas. Sua autora, a antropóloga Cristina Patriota de Moura, é professora adjunta do Departamento de Antropo-logia da Universidade de Brasília. Sua condição de filha, sobrinha, neta, prima e amiga de diplomatas parece tê-la conduzido, desde as primeiras pesquisas na graduação, ao estudo das várias facetas dessa carreira e do Instituto Rio Branco.

A pesquisa para o livro O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização decorre de sua dissertação de mestrado. Moura ocupou-se do processo vivido pelos novatos nessa carreira e buscou

1 Este é o valor que correspondeu ao salário inicial dos aprovados no concurso de admissão do Instituto Rio Branco em 2007. Os candidatos aprovados ingressaram no mestrado profissionali-zante em Diplomacia já como terceiros-secretários da carreira de diplomata. Para o concurso de 2008 que está em andamento, o salário inicial previsto para os aprovados será de R$ 7.751,97. Disponível em http://www.cesp.unb.br/concursosdiplomacia2007 e http://www.cesp.unb.br/concursosdiplomacia2008.

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analisar uma série de rituais e símbolos que fazem parte da vida dos diploma-tas em geral e de um grupo com status baseado em visão de mundo próprio. Para produzir sua pesquisa, a autora obteve uma permissão do Itamaraty para participar de aulas, seminários e reuniões com os alunos do primeiro ano do Programa de Formação e Aperfeiçoamento – Profa-I. Além disso, participou também de aulas preparatórias para o concurso no Rio de Janeiro, o que lhe possibilitou compreender os anseios e temores dos candidatos, antes mesmo de ingressarem no “corpo” diplomático.

A adesão à carreira e à identidade tem seu ápice no Dia do Diplomata, ce-rimônia que ocorre desde 1970 (sempre no dia 20 de abril, data de nascimento do barão de Rio Branco) e é o grande ritual do Itamaraty, pois é quando se dá a formatura dos alunos do Instituto Rio Branco. Essa comemoração foi criada no mesmo ano em que o Ministério das Relações Exteriores foi transferido do Rio de Janeiro para Brasília. Na cerimônia de formatura, experimenta-se, prin-cipalmente, a grandeza da Casa [Instituto Rio Branco], da nação e da carreira de diplomata e é isso que confere uma identidade aos formandos, incluindo-os no mundo que, dali por diante, será sua maior referência.

Mas essa identidade, para se configurar, precisou percorrer um longo trajeto que se inicia antes mesmo do candidato passar no concurso. A maior parte daqueles que estudam para ingressar nessa carreira o fazem visando a um emprego que os possibilite “vencer na vida”, além de significar, seja para os candidatos, seja para suas famílias, uma vida economicamente estável e social-mente aceitável. Os anseios dos candidatos, o imaginário que eles constituem sobre o Itamaraty, não se restringem a uma vida confortável materialmente, com várias oportunidades de viajar para o exterior. O principal apelo da profissão é a idéia de que a careira lhes trará a oportunidade de adquirir um novo status social, aproximando-os do poder. Para Moura, os diplomatas aparecem, em geral, como pessoas “sofisticadas”, membros de uma elite de difícil acesso e próximas dos grandes centros de poder.

Porém, todo esse imaginário constituído ao longo da preparação para o difícil concurso do Itamaraty se transforma rapidamente quando o candidato é aprovado e começa o curso de dois anos no Instituto Rio Branco. Moura acredita que os dois primeiros aspectos da instituição observados ao se iniciar a carreira e que, por conseguinte, contribuem para estabelecer a identidade própria da função, são a formalidade e a hierarquia. O “jovem” diplomata aprende que a

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graduação de cada representante corresponde a um tipo de atitude emocional e a um comportamento determinado.

Para a pesquisadora, mais do que estudar para as matérias do curso, ao longo dos dois anos de estudos (Profa-I), os alunos se esforçam imensamente para desenvolver “mapas de orientação” com relação à formalidade e à hierarquia, julgando serem esses os fatores que os auxiliam na ascensão mais rápida, uma vez que, extra-oficialmente, é sabido que a função do curso é classificá-los na carreira. O bom comportamento, bons trajes, boa oratória, boas companhias etc. são, nesse sentido, critérios essenciais na definição de quem ocupará os melhores postos no exterior. Desse modo, ser bem visto pelos superiores pode ser mais vantajoso do que a avaliação positiva feita pelos colegas de curso, pois, segundo a pesquisadora, as promoções dependem da “comissão de promoções”, formada pelos chefes da casa. Assim, Moura afirma que para ser promovido ou removido é preciso ser conhecido pelos superiores e estabelecer excelentes laços com os mesmos.

O ponto alto do livro, sem dúvida, é o que se detém na análise das conces-sões que os “jovens” diplomatas têm de fazer para se adequar bem ao Itamaraty. São necessários vários ajustes no comportamento, na visão de mundo e nas expectativas para o futuro desses jovens aspirantes. A autora afirma que, para a maior parte das pessoas, passar no concurso significa não só adquirir uma nova identidade e atividade profissional, mas uma nova residência e forma de vida doméstica. Desse modo, a identidade atribuída ao diplomata acaba por se estender à família nuclear que ele venha a constituir.

Aliás, a interferência do Itamaraty na escolha da família nuclear impressiona. Moura descreve como, indiretamente, a instituição “aconselha” seus membros a se relacionarem com pessoas que saibam estar à altura do Ministério das Re-lações Exteriores. Afirma que há uma pressão coletiva para que os casamentos sejam realizados com pessoas que satisfaçam certos critérios de “aceitabili-dade”, referindo-se ao grau de escolaridade, “sofisticação” e sociabilidade do parceiro, uma vez que esses devem apoiar os cônjuges no cumprimento de suas funções, quais sejam, a de representar, de defender, de negociar e de informar em nome do Itamaraty. Moura nos conta que o casamento de um diplomata é uma decisão individual, mas que a escolha do parceiro não pode ser feita sem se levar em conta o pertencimento deste a um grupo “abonado”, o que significa que a aprovação do matrimônio é, de algum modo, importante para o futuro do aspirante dentro da instituição.

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Felizmente, embora a vida pessoal da autora esteja imbricada nesse mundo do Itamaraty, sua pesquisa desvencilha-se bem das amarras pessoais, conseguin-do traçar um quadro bastante elaborado das facetas do mundo dos diplomatas, sendo algumas delas, como é natural, pejorativas, o oposto do que é comumente percebido pela nossa sociedade. A pesquisa, dessa forma, trouxe um novo olhar sobre essa carreira, não se comprometendo com os pontos de vista institucionais veiculados oficialmente, ou as perspectivas difundidas pela grande mídia. Além disso, esse livro alia uma solidez metodológica a um tema inovador, analisando, com muita precisão, a trajetória de formação dos diplomatas no Brasil, o que contribui para desmistificar o imaginário da profissão e para torná-la, também por isso, mais interessante.

Recebido: março/2007 - Aprovado: setembro/2008

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NoRmas de Publicação

as colaborações para a Revista de História (RH) devem seguir rigorosamente as seguintes especificações:

1. A RH publica artigos, resenhas e edição crítica de documentos. Todas as contribuições deverão ser digitadas em fonte Times New Roman 12, com espaço 1,5.

2. A RH publica artigos em português e espanhol, originais e inéditos ou tra-duzidos. Os artigos terão a extensão entre 15 e 30 páginas, acompanhados de um resumo (no máximo 5 linhas) e de três palavras-chave (ambos em português e em inglês). As notas devem ser colocadas no rodapé. As refe-rências bibliográficas citadas, além daquelas que serviram para fundamentar a redação do artigo, devem ser retomadas no final do texto.

3. As traduções de artigos deverão vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto.

4. As edições críticas de documentos seguirão as mesmas especificações dos artigos.

5. A RH publica resenhas em português e espanhol. Poderão ser resenhados livros editados no Brasil nos dois anos anteriores (contados a partir da apresentação da resenha), e no exterior nos quatro anos anteriores (contados da mesma forma). As resenhas terão a extensão entre 5 e 7 páginas.

6. Em todas as contribuições, abaixo do nome do autor deverá constar a insti-tuição à qual este se vincula. Caso ele tenha tido apoio financeiro de alguma instituição para a elaboração da pesquisa, esta deverá ser mencionada. A RH só aceita apreciar artigos de autores que possuam curriculum vitae lattes.

7. Os trabalhos deverão ser enviados por e-mail ([email protected]), devidamente formatados de acordo com estas “normas de publicação”. A Secretaria da Revista acusará, por e-mail, o recebimento dos arquivos. Os programas utilizados devem ser compatíveis com o Word for Windows.

8. Os autores que tiverem suas contribuições publicadas receberão, por correio, dois exemplares da respectiva Revista.

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Normatização das notas de rodapé e da bibliografia citada (cf. abNT-NbR 6023):

SOBRENOME, Nome. Título em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.

SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro.

In: SOBRENOME, Nome (ed.; org.; coord.; etc.); ou Idem. Título em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fasc., ano, p.

SOBRENOME, Nome. Título do artigo ou matéria. Jornal em itálico. Cidade, dd/mm/aaaa, caderno, p.SOBRENOME, Nome. Título do trabalho apresentado. In: NOME DO EVENTO, nú-

mero, ano, local. Resumos, Anais, Atas, Proceedings em itálico. Cidade: Editora, ano, p.SOBRENOME, Nome. Título da tese/dissertação em itálico. Tese de doutorado/disser-

tação de mestrado, área, departamento/instituto, universidade, ano.NOME DO EVENTO, número, ano, local.

documentos:

Autor. Tipo de documento. Data. Informações descritivas seguidas de vírgula. Informações de localização seguidas de vírgula.

iconográfico:

Autor. Título em itálico. Data. Suporte (pintura, gravura, fotografia etc.), demais informações seguidas por vírgula.

cartográfico:

Autor. Título em itálico. Local: Editora, ano. Designação específica (atlas, mapa, fotografia aérea). Escala. Demais informações seguidas de vírgula.

sonoro:

Compositor ou intérprete. Título em itálico. Local: Gravadora (ou equivalente), data. Suporte, demais informações seguidas por vírgula.

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Título Revista de História

Projeto gráfico da capa e miolo Joceley Vieira de Souza Diagramação/editoração Joceley Vieira de Souza Divulgação Humanitas Publicações Formato 160 x 220mm Mancha 130 x 192mm Fontes utilizadas Times New Roman, Futura Md Cn Bt Papel Off-set 75g/m2 (miolo); Supremo 250g/m2 (capa) Nºdepáginas 322 Tiragem 500 exemplares

Partitura:

Autor. Título em itálico. Local: Editora, data. Designação específica (1, 2, 3, partitura). Instrumento a que se destina. Demais informações seguidas de vírgula.

documento tridimensional:

Autor. Título em itálico. Data. Especificação do objeto (escultura, fósseis, ob-jetos, etc.): características do objeto (material, dimensões, descrição etc.). Local onde se encontra (Museu, Arquivo, Coleção particular etc.)

Patente:

Entidade e/ou autor responsável. Título em itálico. Número da patente, data (do período de registro).Para textos da internet, utilizar as mesmas normas acima acrescentando ao final. Dis-

ponível em: xxx. Acesso em: dd/mm/aaaa.

9. Os conteúdos expressos nas contribuições publicadas pela Revista de His-tória são de exclusiva responsabilidade de seus respectivos autores.

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA ECONÔMICA

REVISTA DE HISTÓRIA - 1º semestre de 2008

158

número 158 1º semestre de 2008 ISSN 0034-8309

Artigos

Carlos Barros 09 Propuestas para el nuevo paradigma educativo de la historia

Juliana Bastos Marques 43 O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografi a antiga

Néri de Barros Almeida 67 O adultério na Legenda Áurea (c.1270). Imagem feminina e afetividade marital no final da era gregoriana

Carlos Leonardo Kelmer Mathias 89 Nos ventos do comércio negreiro: a participação dos trafi cantes baianos nas procurações passadas no termo de Vila do Carmo (1711-1730)

Marco Antonio Silveira 131 Acumulando forças: luta pela alforria e demandas políticas na capitania de Minas Gerais (1750-1808)

Cláudia Moraes Trindade 157 A reforma prisional na Bahia oitocentista

Luiz Geraldo Silva 199 Um projeto para a nação. Tensões e intenções políticas nas “províncias do norte” (1817-1824)

Fabricio Pereira da Silva 217 Utopia dividida. A crise do PCB (1979-1992)

Maria da Conceição Francisca Pires 247 Graúna: um canto feminino de autocrítica na caatinga

Wagner Costa Ribeiro 277 Ordenamento jurídico para a proteção do patrimônio natural do Brasil

Resenhas Maximiliano M. Menz 303 CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais.

Produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807).

Rodrigo Faustinoni Bonciani 309 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia.

Tereza Maria Spyer Dulci 315 MOURA, Cristina Patriota de. O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização.

319 Normas de Publicação

& Silvia Helena Zanirato

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