Revista de História da Arte (n.º4 / 2007)

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Revista de História da Arte Instituto de História da Arte - FCSH/UNL

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Revista de História da Arte

Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa

Edições Colibri

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Agradecemos a todas as individualidades e institutições que nos cederam osdireitos de uso de imagens, nomeadamente

Gonçalo Byrne, José Pessôa,Theodor Hauschild

Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de ÉvoraArquivo Distrital de Évora da Câmara Municipal de ÉvoraInstituto dos Arquivos Nacionais/Torre do TomboInstituto Geográfico PortuguêsMuseu Nacional de Arte Antiga

ABREVIATURAS

AICA Associação Internacional dos Críticos de ArteBN Biblioteca NacionalCC Conselho Científico

CMG Câmara Municipal de GuimarãesCML Câmara Municipal de Lisboa

DOCOMOMO Internacional Working Party for DOcumentation and COservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the MOdern MOvement

DGEMN Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos NacionaisFAUP Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

FCSH/UNL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa

FCT Fundação para a Ciência e a TecnologiaGTL Gabinete Técnico Local

IAN-TT Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do TomboICOMOS Internacional Council on Monuments and Sites

IHA Instituto de História da ArteIGP Instituto Geográfico Português

IPHAN Instituto do Património Histórico e Artístico NacionalIPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico

MNAA Museu Nacional de Arte AntigaSRU Sociedade de Reabilitação Urbana

UCP/CRP Universidade Católica do Porto/Centro Regional do PortoUNESCO the United Nations Educational, Scientific and Cultural

Organization

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ÍNDICE

Editorial ............................................................................................................................................... 4

Portugal, Cidade e ArquitecturaAlexandre Alves Costa .............................................................................................................. 7

Entrevista ao Professor Theodor Hauschildconduzida por M. Justino Maciel .......................................................................................... 24

Do Topos Clássico à Paisagem Cultural: Sintra e a sua envolvência na AntiguidadeM. Justino Maciel ............................................................................................................................ 29

“O último Porto de Ulisses”: história, urbanismo e arte de Felicitas Iulia OlisipoMaria Teresa Caetano ................................................................................................................. 55

Évora Romana: O legado edificado e a memória antigaManuel F.S. Patrocínio ................................................................................................................. 119

Uma primeira proposta de reconstituição arquitectónica do MosteiroCisterciense de S. João de TaroucaLuís Sebastian, Ana Sampaio e Castro .............................................................................. 143

Entrevista/Conversa com José Simões Belmont Pessoa.conduzida por Renata M. Araújo ......................................................................................... 172

Mazagão: A última praça Portuguesa no Norte de ÁfricaJorge Correia ................................................................................................................................... 185

Angra do Heroísmo no quadro das “Cidades de Paisagem” Portuguesas Medievo-renascentistasJosé Manuel Fernandes .............................................................................................................. 213

Cidades Brasileiras património da humanidade: a reivindicação da herança urbana do BrasilRenata Malcher de Araujo ....................................................................................................... 233

Guimarães – da fundação a património da HumanidadeJosé Ferrão Afonso ....................................................................................................................... 247

O Passado é uma Cidade Ideal: um olhar sobre a patrimonização de ÉvoraPaulo Simões Rodrigues ............................................................................................................ 271

Entrevista ao Arquitecto Gonçalo Byrneconduzida por Elisabeth Évora Nunes e Luísa França Luzio ............................... 297

A candidatura da Baixa Pombalina a património da humanidadeRaquel Henriques Silva .............................................................................................................. 309

Recensões Críticas ........................................................................................................................ 321

Varia ...................................................................................................................................................... 333

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4 Revista de História da Arte Nº 4 – 2007

EDITORIAL

Cidades Portuguesas Património da Humanidade foi o tema do X Curso Livrede História da Arte, promovido pelo IHA em 2006 e, de acordo com a linhaprogramática da Revista de História da Arte, constitui o cerne do seu nº4.A escolhavisou, em primeiro lugar, homenagear a histórica decisão da UNESCO que, hátrinta anos, iniciou a classificação como «Património da Humanidade» de monu-mentos, cidades, sítios e paisagens do mundo inteiro, tanto pela sua relevânciaartística e cultural, como pelos riscos de conservação que, infelizmente, continuamfrequentemente a existir. Não é este o momento de reflectir sobre a galopantedimensão que esta linha classificatória adquiriu, utilizada como estratégia políticade países e pelas indústrias do turismo de massas. Preferimos deter-nos nosreconhecidos aspectos positivos que essa classificação possui, estimulando oaprofundamento de estudos e impondo planos de conservação e valorizaçãoque, nos melhores casos, estimulam também o estudo e o debate. No caso por-tuguês, o complexo imenso de questões envolvidas no conceito de cidade, ou depaisagem humanizada, constitui um dos campos mais reconhecidos e originais dasnossas heranças artísticas, em que se incluem o urbanismo e a arquitectura.

Justificada a escolha do tema do nosso X Curso Livre e deste número daRevista, interessa referir que considerámos, no elenco dos casos a tratar, cidadesque não são portuguesas mas tiveram origem e história portuguesa, definidorasdas suas particularidades mas também da sua participação num conceito amplode «cidade portuguesa». Esta questão aliciante, que tem defensores entusiastastanto em Portugal como no Brasil, é brilhantemente cerzida por Alexandre AlvesCosta e retomada, com contextos específicos e reconhecidas marcas autorais, porJorge Correia, em relação a Mazagão, José Manuel Fernandes, a partir de Angrado Heroísmo e Renata Araújo, que longamente tem estudado o tema das cidadesbrasileiras de fundação setecentista. Por impossibilidade dos autores, nãopudemos dispor dos textos das conferências de Paulo Varela Gomes sobre Goa,de Manuel Vicente sobre Macau e de Walter Rossa que, na última sessão doCurso, retomou o tema de partida, sobre as particularidades de um urbanismo

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Editorial 5

português que, possuindo indiscutíveis marcas medievais, alcançou a sua definiçãocom os contributos eruditos da engenharia e da arquitectura militar dos séculosXVII e XVIII, confrontados e enriquecidos com a diversidade de situaçõesconcretas e sobre uma espécie de matriz empírica de relacionamento eficaz coma paisagem. Além das situações exógenas ao território continental já referidas,Sintra foi tratada, como paisagem e história, por Justino Maciel, o mesmoacontecendo com Lisboa romana (Teresa Caetano) e Évora, na dimensão dafundação romana (Manuel Patrocínio) e na vivência dos círculos históricosposteriores (Paulo S. Rodrigues); não tendo sido possível contar com o texto deDomingos Tavares sobre o Porto e sinalizando a intenção da candidatura da Baixade Lisboa, resta referir Guimarães que continua a ser um caso de rara qualidadeno património urbano-arquitectónico português, confirmando que as classifi-cações de «património da humanidade» podem estimular as decisões e asrealizações, se umas e outras tiverem âncora firme nas comunidades envolvidas enas estratégias políticas municipais.

Além dos artigos da Varia – nomeadamente o estudo, de José CustódioVieira da Silva sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória – três entrevistasenriquecem a reflexão sobre o tema da cidade, dando a fala a Theodor Hauschild,notável impulsionador da arqueologia contemporânea em Évora; a GonçaloByrne, reflectindo sobre o tema da Revista, para se deter na Torre de Controle doTráfego do Porto de Lisboa, em Algés, que já se tornou novo ícone da imagemda capital; finalmente a José Pessôa, reconhecido especialista em restauro econservação de monumentos e sítios, sobretudo no Brasil, sua pátria, mastambém em diálogo permanente com o mundo hispano-americano e, cada vezmais, com Portugal.

Aos autores citados, há que acrescentar Luís Sebastian com o seu estudosobre o Mosteiro de S. João de Tarouca; Helena Gonçalves Pinto e JorgeMandorrinha sobre as Caldas da Rainha; Luísa Luzio e Elisabete Évora Nunes queentrevistaram G. Byrne; Ana Lemos, Hugo Xavier e Ana Duarte Rodrigues, queassinam recensões críticas e notícias. Sem a sua generosa contribuição gratuita –bem como a das instituições que nos cederam as imagens - não seria possívelmanter este projecto que visa afirmar o Instituto de História da Arte da FCSH e,através dele, a História da Arte Portuguesa, na sua dupla vertente de investigaçãoe de entrosamento com a cidade. Metaforicamente, ela é o lugar de constituiçãoda História e dos discursos sobre ela.

A Direcção do Instituto de História da Arte

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Palavras-chave: Arquitectura portuguesa; cidades portuguesas; Arquitecturacomo construção; continuidade cultural; arquitectura colonial

Key words: Portuguese architecture; Portuguese cities; Architecture seen asbuilding; cultural legacy; colonial architecture

RESUMO

Este artigo é uma palestra aberta, emprocesso de construção – uma matrizque vai sendo acrescentada, corrigida,alterada. O seu tema é indagar osvalores distintivos da nossaarquitectura e das nossas cidades, sejaqual for o lugar que lhes tenha dado aterra. Mas podemos avançar, comosíntese analítica, que a arquitecturaportuguesa é sobretudo construção,espaço de suporte para acção, cujosignificado não contamina o desenho.

ABSTRACT

This article is a work in progress, amatrix that is added to, corrected and

changed over time. Its purpose is toidentify the distinctive values of

Portuguese architecture and urbanismwherever they were built. As a

preliminary synthesis, it can be said thatPortuguese architecture is, most of all,

construction, space that supports actionwhose significance does not contaminate

the drawing.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

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PORTUGAL, CIDADE E ARQUITECTURA

Alexandre Alves Costa*

Esta, é uma palestra aberta, em processo de construção – uma matrizque vai sendo acrescentada, corrigida, alterada. É um discuro interrogativo einacabado. Contém citações referênciadas e outras não, de notáveishistoriadores da arquitectura e da cidade, como Horta Correia, Rafael Moreirae Renata Malcher, entre outros. Cita, ainda, os meus ex-doutorandos JosemaryFerrare e Jorge Correia. Repete parcelas de outros textos meus.

Não se trata aqui da cidade contemporânea – seria um outro registoque eu também persigo, como militante na construção do futuro.

Por isso me sinto como um homem do século XIX, porque é aopassado e no passado – mas por causa do presente que, com tanta mentiracaminha ao nosso lado – que, como Garrett, dirijo a interrogação: que ser é omeu se a pátria a que pertenço não está segura de possuir o seu? Como a Sofiaque tem a memória longínqua de uma pátria eterna mas perdida e não sabemosse é passado ou futuro onde a perdemos.

De facto, para mim, a matéria mediadora entre a consciência individuale o mundo é constituída pela situação nacional e nela e através dela, pelosentido do ser português.

A consciência da nossa fragilidade histórica, hoje como no século XIX,projecta os seus fantasmas simultaneamente para o passado e para o futuro. Odrama de Garrett, que me apetece assumir, é o de Portugal como povo que sójá tem ser imaginário ou mesmo fantasmático – realidade indecisa, incerta do seuperfil e lugar na história, objecto de saudades impotentes ou pressentimentostrágicos, como nos disse Eduardo Lourenço.

Este texto, para ser ouvido, é uma espécie de olhar, mais apaixonado doque científico, mais curioso do que rigoroso, sobretudo erótico, por manifestarum claro desejo de realização. Por isso, usarei imagens com abundância, as

* Profº Doutor, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Portugal

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imagens que, mais do que provas se transformaram em objecto amoroso.Reconheço que têm sido outros, historiadores e arquitectos historia-

dores da arquitectura e da cidade que tem acrescentado ao meu saber, dirianatural, uma enorme soma de elementos, para dizer verdade, talvez, mesmo osúnicos de natureza científica. O seu discurso, por mim assimilado, faz, natural-mente, parte do meu, cuja cientificidade e espontaneidade se deve, assim, aoseu saber e ao meu olhar particular.

As minhas características pessoais são, de facto, mais de um colecciona-dor de emoções que a arquitectura me proporciona e, na circunstância daemoção, escrevo com o nexo do momento, nunca igual ao de outro qualquermomento e, por isso, tudo no conjunto é um imenso desconjunto, impressivo,espontâneo, não académico, sem notas de pé de página, sem erudição conver-gente ou dirigida.

Assim vou falando ou escrevendo como quem improvisa sobre o que jásabe, não buscando uma racionalidade estrita nas abordagens, nem umacoerência estilística na linguagem. Pelo contrário, misturo conscientemente esem hierarquia, objectivo e subjectivo, memória e vivência, descrição e inven-ção, prosa e poesia, em narrativa comunicada em discurso verbal.

Tenho é viajado por um imenso Portugal, o que fala a minha língua, etenho tentado afirmar uma especificidade para a arquitectura portuguesa, inclu-indo a de fora do nosso país, recusando julgá-la em função dos modelos culturaispressupostos, normalmente, pela grande cultura europeia. Por isso, não tenhoaplicado, senão por facilidade de linguagem, as divisões tradicionais da história daarquitectura pelos grandes estilos – românico, gótico, renascimento, maneirismo,etc. – que tem sido tão bloqueadores na compreensão da nossa realidade.

Prefiro usar os nomes e cognomes dos nossos reis! Resumindo, tenho afirmado o que toda a gente sabe: existem valores

distintivos na nossa arquitectura e nas nossas cidades, seja qual for o lugar quelhes tenha dado terra.

Por outro lado, cada vez acredito menos nas grandes sínteses interpre-tativas ou justificativas, apenas válidas para arcos temporais ou territoriais degrande escala: a cidade ocidental, a cidade islâmica, a cidade hindu ou chinesa e,mesmo assim, com tantos cruzamentos que tudo acaba contaminado, exceptoos modelos teóricos que construímos: é como a distância entre a cidade idealdo néo-platonismo renascentista e Mazagão. As aplicações ou as emanaçõessão sempre imperfeitas e parciais.

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O que é certo é que os macedónios e os romanos transportavammodelos claros e opostos. Enquanto uns tentavam um acordo harmónico coma natureza, os outros construíam um mundo artificial e encerrado, um mundodentro do mundo. Uns, gregos, última civilização primitiva, como lhe chamaNorberg Schulz, em complementaridade com a natureza, os outros, romanos etodos nós ocidentais, durante séculos, em oposição à natureza natural queincluía os outros homens, silvestres e recém-criados, ainda cor de barro, aindanus e deslumbrados, como escreve a Sofia.

Portugal, digo eu, nasceu e desejou crescer grego, mas o destino que elepróprio para si destinou obrigou-o a ser romano. Castela, os mouros, os africa-nos ou os índios, tantos inimigos para além do medo de nós próprios!

Há meses, nas alturas de Machu Picchu lembrei-me de Portugal. Foi abeleza e a força da paisagem escolhida para ser lugar e a necessidade de impo-sição da razão para que a humanidade não se perca, se defenda e continue aaprofundar o projecto do Homem.

Será que os portugueses perseguiram a síntese, que o modernismotentou, definitivamente, destruir – a síntese entre razão e sentimento? A unici-dade do ser, como dizia Marcuse entre as barricadas de Maio de 68?

Depois havia que cumprir o mar.E o mar foi elemento a transpor nesta aventura para a descoberta do

desconhecido – a viagem ou o tempo da sua duração, sempre sentido comotempo de ausência.Transportamos na bagagem aquilo que julgámos abandonar.

Mas diferente era a nova realidade descoberta, com trabalhos, dor esaudades da terra que se deseja imutável, porto seguro do regresso, eterna-mente igual a si própria. Por isso a viagem não trouxe inovação, trouxe desejode paragem, reacendeu memórias de confortos caseiros, dos cheiros dofumeiro, dos gostos familiares, com mulheres dóceis fiando enquanto apascen-tam ovelhas na bucólica reinventada paisagem da infância.

A viagem sangrou a nação para a construir fora, através dos sinais queos arquitectos inventaram para a identificar. Viajamos, mas, de facto, nãoaprendemos a nomear o mundo e, por isso, tentamos sempre reconstruir acidade, a nossa, agora juntamente com os outros homens que fomos encon-trando nas paisagens brumosas.

E assim, entre a impossível unicidade e a profunda saudade, vou-meperguntando, com vontade afirmativa: será que Portugal, à força de misturarraças e mentalidades, de confundir dois ou três becos sem saída, acabará por

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esboçar uma síntese original, um passo, um sopro de ar fresco e por abrircaminho a outras razões?

Uma coisa é certa, nascemos e crescemos hesitantes, nunca resolvidasas contradições que fomos marcando, talvez contra o que queríamos, comoverdades diferentes. Portugal vai-se compondo em oposições permanentes:autoridade e permissividade, projecto e espontaneidade, centralismo e regio-nalismo, nacionalismo e internacionalismo, aventura radical e conservadorismoestagnante, experiencialismo e escolástica, razão e sentimento. O sim e o não,como dizia a Sandra Alvim.

Mais ainda, e sem pôr de parte a existência de factores de unificação quepermitem considerar o território e a história nacional como um todo, devemoster presente que existem sistemas de relacionamento, estruturas sociais eeconómicas e esquemas culturais diferentes que, normalmente, se podemarticular em dois grandes grupos, situados em áreas geográficas distintas – oNorte e o Sul.

Podemos, assim, com José Mattoso, considerar como uma das caracte-rísticas peculiares da nossa história a maneira como os dois territórios agiramum sobre o outro, se completaram ou opuseram, imprimindo-lhe uma dinâmicaprópria que se deve considerar constitutiva da especificidade nacional.

Os grandes movimentos históricos confirmam as diferenças: no Sul,estabelecimento de povos mediterrânicos – maior densidade de ocupaçãoromana, ocupação bizantina e longo domínio islâmico; no Norte e Centro,estabelecimento de povos do Norte atlântico e centro europeu – celtas,suevos e visigodos.

Pode-se, portanto, perguntar, com toda a legitimidade, se um conjuntode diversidades desembocaram em intercâmbio recíproco ou até que pontose realizaram verdadeiras sínteses que definam uma cultura nacional aproxi-madamente comum a todo o território.

Tenho tentado responder a esta problemática para a arquitectura edefendido algumas hipóteses interpretativas que tenho comprovado, mais pelaquase empírica leitura de visitas e viagens do que com profundos, rigorosos ecientíficos estudos, para os quais não tenho grande motivação.

Fernando Pessoa escreveu: Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez. E,olhando, nesse momento, terras brasileiras exclamei: felizmente! Não faltou foicumprir-se Portugal! Julgo que alguma coisa floresceu do que foi semeado nomeio da dor e da injustiça.

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Com esta certeza nos olhos, avancei pelo mundo, desbravando terrenoe fui encontrando pacificamente o Portugal não realizado, logo na arquitecturaaçoriana, depois na arquitectura e nas cidades coloniais que me pareceram umreflexo radical da especificidade nacional, numa selecção criteriosa dos seuselementos mais característicos.

Na tentativa de desvendar a especificidade desta enigmática família, tãodiferente e tão igual, da arquitectura e da cidade portuguesas encontrei-mecom um facto histórico elucidativo que aproveito para contar. No “Regimentoa Pêro Vaaz que vay a Alcácer fazer as obras d’Alcacer”, de 22 de Junho de1502 escreve-se:

E no cabo della se façam dous cubellos redondos que subam sobre ha alturado muro da dita coyraça quatro palmos os quaes cubellos seram vaaos e teera cadahum de vaao em larguo quimze palmos... ao pee dos ditos cubellos mandamosfazer senhos talhamares de pedraria dereitos cotra ho mar d’altura de dez palmospouco mais ou menos...

O documento aponta, ainda, a continuação do corregimento dos murosda vila caso sobrasse algum dinheiro da empreitada da couraça.

Sim, é verdade que este pobre país se vai fazendo, caso sobre algumdinheiro e de acordo com a possibilidade de cumprir mais ou menos os seusprojectos. E isto fundamenta hábitos de senso e adaptabilidade, diria, estruturauma cultura que não abandona nunca a sua permanente presunção retórica,diria chapliniana.

Atente-se a exclamação de D. Sebastião, nas vésperas do desastre deAlcácer Kibir, à vista de Tanger, onde padeceu o Infante Santo:

Vós deveis pensar que tenho muito medo dos mouros, pois fizesteis estecastelo tão forte!

Assim, da nossa arquitectura, aprendida no acto de construir, souberamos nossos mestres pedreiros, de pais para filhos, copiando, inovando, respeito-samente.

De facto, os critérios da arquitectura portuguesa não são tanto os dacoerência mas, sobretudo, os da eficiência e, por isso, muito ligados ao imedia-tismo da técnica produtiva. Conferindo um crédito quase total ao sensocomum, faz dele critério latente de verdade, julgado patente na leitura datradição.

A arquitectura portuguesa é sobretudo construção, espaço de suportepara acção, cujo significado não contamina o desenho. Apura-se simplificando-

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se, comunica, antes de mais pela decoração que não interfere nos valoresestruturais e, mesmo quando aspira a um espaço mais emotivo e dinâmico,como no barroco, contém-se dentro de uma volumetria que não ousa rompercom a simplicidade de uma geometria de volumes puros.

Por necessidade de afirmação, de domínio ou marca territorial, trabalhaa escala e é na dimensão e na implantação que assume, como objecto napaisagem construída ou natural, os seus mais expressivos valores formais. Eassim se transforma de arquitectura em elemento de composição urbana,salientando, na racionalidade e uniformidade da arquitectura civil, a natureza doedifício singular.

Da experiência de construir, conhecidos os modelos, nasce o saber, semgrande teoria de suporte que se transmite empiricamente.Afastado o modelo,procura-se, sobretudo, a eficácia, no caso a caso das circunstâncias. Dessacapacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de naturezaformal ou estilística, nasce a sua variedade, a sua espontaneidade e o seueclectismo que nunca lhe retiram um genérico carácter de família que nospermite a sua permanente identificação.

Houve, evidentemente, um claro desejo de fixação no território ultra-marino de formas culturais decididamente presas ao mais sólido e perene danossa tradição, levando as suas implicações ao extremo das possibilidadesexpressivas. São os modelos mais depurados, elaborados em Portugal duranteo século XVI, que são transpostos literalmente, não só como consequência dainexistência de arquitectos residentes com capacidade inovadora ou integra-dora de novas formas eruditas da arquitectura internacional, mas, sobretudo,por razões de ordem simbólica de representação do poder.

O poder, e sobretudo o colonial, não pode dar de si próprio uma ima-gem frágil ou hesitante, o seu exercício passa pela construção de uma sínteseque o represente de forma unitária.

Por isso, tenho defendido a hipótese de que a arquitectura portuguesa,contraditória e ecléctica, nos sobressaltos de uma história cheia de vicissitudese num país dividido por valores culturais dificilmente unificáveis, encontrou nosterritórios coloniais uma imagem clara que não só sintetiza, como aprofunda,as suas tendências estruturais, constitutivas de uma hipotética especificidade.

E a cidade, será que há uma cidade portuguesa, pelo menos até aosfenómenos de crescimento e sub urbanização pós-industrial?

Em tempos escrevi:

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O urbanismo português caracteriza-se, sobretudo, pela inteligência do lugar,da escolha ao desenho, numa compatibilização única de organicidade e de raciona-lidade, do entendimento da paisagem e da funcionalidade urbana.

Nos diversos territórios de ocupação portuguesa, encontram-se clarasexpressões do que, desde a Idade Média, caracteriza a morfologia das nossascidades que se nos oferecem como organismos espontâneos, sendo, muitos deles,gestos de uma vontade forte, executados por mãos de uma grande humanidade.

Parece tudo dito e de facto está. Falta saber como e porquê.Tenho procurado aproximar os processos de produção da arquitectura

portuguesa dos da cidade, buscando-lhes a mesma origem e os mesmos pres-supostos.

Se é assim na arquitectura, porque não na cidade, feita nas mesmascondições sociais, políticas e económicas, sobretudo porque a arquitecturadoméstica ou o desenho da cidade são mais facilmente encarados com opragmatismo do serviço e da técnica tomados com neutralidade?

Nesta leitura de continuidade que farei não podemos deixar de estudara riqueza e a diversidade do urbanismo português na Idade Média e na suasaída, para podermos entender o que foi feito fora dos condicionalismos dametrópole, nas cidades ocupadas do Norte de África, nas cidades coloniaiscriadas ex-novo e, depois, como essa experiência se sintetiza no esplendor dascriações pombalinas.

Num discurso clássico sobre a cidade portuguesa, deveria lembrar,sobretudo, e vou fazê-lo mais tarde, as cidades medievais de fundação, como,entre outras,Viana do Castelo, Caminha, Monsaraz e, posteriormente,Tomar.

Mas, antes de entrar na linearidade do discurso oficial, apetece-me fazeralgumas considerações de ordem geral que espero venham a acentuar a com-plexidade do tema e a redução a que tem estado sujeito.

Dizia Carlos Nelson, arquitecto e amigo brasileiro:

Durante muito tempo nossos explicadores de fenómenos de urbanizaçãoacreditaram no espontaneismo, à diferença dos nossos irmãos hispano-americanosque tiveram cidades certinhas, rectilíneas das ordenações reais, as nossas surgirame se desenvolveram ao deus-dará. Hoje muitos autores sérios duvidam disso.

Os portugueses trouxeram regras claras... no que diferiam foi na escolha dossítios... Rio e Salvador são para ninguém botar defeito em matéria de bom aprovei-tamento de um suporte físico completo.

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Mais recentemente, na ocasião do “honoris causa”, pela Universidade doPorto, concedido ao anterior Presidente da República do Brasil, este declaravaque o caos urbanístico de S. Paulo era, ainda, um efeito longínquo da colonização.A universidade baixou os olhos envergonhada e só mesmo eu tive vontade deo insultar, irritado como estava com as leituras recentes de Buarque de Holanda.

Este parêntesis para vos chamar a atenção de um complexo genera-lizado que existe na nossa historiografia em relação às cidades coloniais dequadrícula perfeita das américas de língua castelhana. O mais que conseguiramos nossos esforçados e patriotas historiadores foi reconhecer a existência deuma malha urbana tendencialmente regular, até ao descanso das nossas cons-ciências que foi o Marquês de Pombal. E com isto esquecemos um facto e nãoaprofundamos outros. Esquecemos que na América as cidades regulares sãouma minoria e que há muitas outras, de origens muito diversas, a provocarmorfologias também muito diversas. E assim, preocupados com a linhagemregular das nossas, abandonamos as outras, sejam as de origem romana, osburgos medievais, os desenvolvimentos espontâneos para referirmos, apenas, ascidades projectadas, sendo evidente, no entanto, que é a partir destas e da suaracionalidade que se constroem todas as futuras cidades programadas central-mente e todos os desenvolvimentos modernos. Constituem assim modelosobjectivos, mantendo-se os subjectivos no limbo do nosso subconsciente ou nopurgatório da nossa ignorância.

Nunca devemos esquecer que há motivos distintos para a cidade apare-cer e se desenvolver e agentes que, nem sempre, são ordenanças do poderpolítico central. Lembro, a título de exemplo, que podem aparecer núcleosurbanos a partir de uma colonização/evangelização de uma qualquer ordemreligiosa e que entre jesuítas e franciscanos existem visões bem diferentes doque é ajuntar pessoas, ou até índios, para que eles salvem as almas, produzindobens… atente-se Santa Catarina ou Madalena do Sumaúma.

E que dizer de um cruzamento de caminhos onde um qualquer cidadãode visão empresarial instala uma estalagem ou uma muda de bestas? Como emPonte do Lima onde a dignidade da muralha foi posterior e graça real a apertarum amontoado de casinhas que encontravam a sua razão, agora perdida, nodesenho das vias implantadas, como deve ser, de acordo com a topografia.

Reencontremos o fio da meada do discurso oficial, sabendo agora deque subgrupo de cidades se trata, para não corrermos os riscos de generaliza-ções apressadas.

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Ainda na Idade Média, parece possível falar numa rede urbana tenden-cialmente regular, sem a obsessão do ângulo recto nem da geometria abstracta,mas com a necessidade prática e mesmo o gosto de abrir ruas tanto quantopossível paralelas, adaptando-se ao relevo do terreno ou à salvaguarda dealgumas preexistências.

Quem traçava estas vilas programáticas? Certamente mestres pedreiros,pelo sistema simples de cordeação, directamente no terreno, com a demar-cação dos lotes por marcos ou postes.

O avanço da expansão acompanha o da racionalidade e impõe odomínio da linha recta.A noção de regularidade progride como sinal ideológicodo espírito moderno

Na própria capital do reino, começa a surgir junto à muralha que a cingiaa poente, no sítio de S. Roque, uma nova urbanização em que era utilizada umamalha reticular, não uniforme.

Foi este espírito geométrico, combinado com um eficiente pragmatismo,que levou os portugueses a fundar ou reformular cidades como Angra doHeroísmo, onde entre dois eixos principais – Rua de Lisboa e Rua da Sé – seestrutura uma malha ortogonal.

O crescimento para além da muralha de cidades como Viana ouCaminha e o estabelecimento à sua porta da nova Praça Moderna, com aMisericórdia e os Paços do Concelho significa, normalmente, que, da cidademedieval ordenada geometricamente, passamos a um espaço que ganha aforma que pode, baseado na sua anterior conformação desenhada pelo cadas-tro e pelo uso livre do mercado. Daqui parte a cidade moderna, assim, menosregular do que a antecedente.

Em rigor, não se pode falar num urbanismo renascentista. Os processostradicionais vão absorvendo e assimilando as novidades do Renascimentoitaliano.

A praça, mais do que a catedral, o castelo ou a muralha é, agora, o novoe principal símbolo da vida urbana e é a sua dignificação como espaço públicoa aspiração principal, paralelamente à renovação urbana que se processadentro das muralhas, com expressivo e cuidadoso tratamento das fachadas.

Daí a evidência da utilização da Praça como elemento programático,estruturador da malha urbana das novas cidades.

E tudo o que se faz a seguir parece na sequência natural das coisas.Apenas que, nas colónias, cidade e fortificação, são conceitos indissociáveis, por

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necessidades, óbvias, de conquista e de defesa. Por isso o papel dos engenheirosmilitares foi instrumental no desenho das cidades.

Sabemos como a cultura portuguesa do século XVI foi profundamentemarcada pela tratadística italiana e pelos estudos científicos, na conjuntura dosdescobrimentos. Sabemos como a arquitectura militar passou a ter importânciadecisiva naquela conjuntura e como foi veículo do novo gosto e pressupostode uma nova forma de projectar.

Assim, foram principalmente as fortificações, feitorias e cidades amura-lhadas que mais evidenciaram a influência da engenharia militar portuguesa e oseu cariz erudito, afirmando-se por imperativo da Conquista, da Descoberta ouda Colonização.

Pela síntese de influências diversas – do pensamento urbanístico italianoà tradição manuelina – parece estabilizar-se de 1540 a 1620 um tipo clássico decidade portuguesa ou, pelo menos, definida uma metodologia de desenhourbano, fruto da geometria do sistema abaluartado, empregue de modopioneiro em Mazagão pelo engenheiro militar Benedetto de Ravenna em 1541e pela primeira vez no Oriente na frente abaluartada de Diu por D. João deCastro em 1546.

Sinto que não posso deixar de fora, neste discurso interrogativo, algumaaproximação mais pormenorizada para a construção daquela metodologia quepermita fundamentar as leituras de continuidade de que tanto gosto, nocruzamento pacífico da tradição e do saber prático acumulado no terrenopelos nossos mestres, e a erudição abstracta que iam adquirindo nos contactosinternacionais que estabeleceram ao serviço da coroa.

De facto, a partir de 1415, Portugal inaugurava uma série de ocupaçõesno Norte de África Ocidental. Tratou-se, de Ceuta a Safim, de apropriação etransformação militar complementada por uma lenta e gradual implantaçãourbana a partir de modelos vivenciais e, portanto, urbanísticos da metrópole.O atalho foi o principal instrumento utilizado pelos portugueses.

A situação militar da região favorecia um tipo de cidade fechada, exclu-sivamente para nacionais. Os muçulmanos foram excluídos da composiçãosocial das nossas possessões deixando muralhas, ruas e casas, que foram gra-dualmente transformadas. A prática do atalho implicava corte, revendo formae dimensão e implicava, ainda que indirectamente, um exame à disposiçãourbana dos tecidos e malhas ocupadas. A sua racionalidade transpunha-se parao interior do novo perímetro levando consigo uma tendência geometrizante

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nos traçados. A malha islâmica, segmentada em bairros que providenciavamcontrolo social e defesa interna era posta em causa numa mudança em que sebuscava exactamente o contrário: o melhoramento das condições de vigilânciae acessibilidade aos vários sectores da cidade.As muralhas aderiam a um planogeral em que a Rua Direita articulava a distribuição viária e as acessibilidadesaos dois espaços colectivos mais importantes – o terreiro de reunião da popu-lação e a praceta de apoio ao porto e equipamentos com ele relacionados.

Exceptuando Alcacer que manteve a sua configuração, todas as outras con-quistas foram atalhadas, diminuindo substancialmente a sua área de implantação.

Mazagão, pelo contrário, é uma criação ex-novo, a partir de um castelejoe de um pequeno aglomerado de casario desordenado. O baluarte modernovai encerrar uma área urbana de traçado tendencialmente regular cuja lógicadeverá ser buscada, não só a partir da geometria moderna daquele, como daracionalidade conquistada gradualmente no terreno a partir do senso e dacultura dos nossos mestres.

De facto, os nossos engenheiros militares, que, preversamente, Benévolochamou de agentes de terceira categoria de uma ideia nunca concretizadapelos seus criadores, são herdeiros de uma tradição que se objectiva na prima-zia da construção sobre a do projecto.

Talvez por se colocarem em compromisso permanente com a práticanunca a ultrapassam conceptualmente, mas realizam obra sem que qualquerimposição teórica perturbe a sua experiência, aproveitando-a, sim, para a sedi-mentar.

É neste sentido que venho questionando a utilização da cidade idealcomo modelo, no seu sentido mais profundo, das nossas cidades, devendoantes dizer-se que aquele modelo formal confluiu com a nossa tradição, esva-ziado do seu mais profundo significado e sem trazer alterações metodológicasde monta na forma de projectar – tal com a tratadística ordenou a composição,regrou as proporções, acarretou as ordens, numa arquitectura profundamenteanticlássica nos seus fundamentos éticos e ideológicos.

Se Damão e Baçaim, na Índia, foram gizadas com uma evidente aproxi-mação às cidades ideais do Renascimento, é a regularidade excessiva da suatraça o facto que mais parece afastar-se da tradição de empirismo das nossasurbes arruadas.

Por todas as razões apetece lembrar Danzilho, Boitaca, Diogo e Fran-cisco de Arruda ou João de Castilho que por lá longe perderam anos e algumas

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batalhas, nos intervalos das obras de Santa Maria da Vitória, de Santa Cruz deCoimbra, do Convento de Cristo e dos Jerónimos.

Lembrar, ainda, o mestre pedreiro Miguel de Arruda, nomeado Mestredas fortificações e muros do Reino, Lugares d’Além e Índia, em 1549.

Já no ano anterior fornecera os desenhos para os baluartes ao modernodo Castelo da Mina e o plano para a capital do Brasil.

Do seu atelier, junto ao Paço da Ribeira, rodeado de ajudantes e discí-pulos devem ter saído as traças e debuxos da maior parte dos edifícios cons-truídos pela Coroa, religiosos, civis, militares e planos urbanos, entre os quaisnão havia distinção projectual ou disciplinar.

Esta prática foi continuada pelo seu sucessor António Rodrigues que, em1572 inaugura o ensino formal na Aula de Arquitectura do Paço da Ribeira,sobretudo baseado na explicação de textos de Vitrúvio, Serlio e PietroCataneo.

Continuemos a ouvir Rafael Moreira e Horta Correia.Neste final de século, o ritmo da construção militar supera tudo, como

a nova cerca abaluartada de Goa de 12 km de extensão (1590) e as duasmaiores fortalezas jamais erguidas pelos portugueses, a do Monte Brasil emAngra (1590) e a da Aguada em Goa (1604) apesar das espectaculares Sé deGoa (1562), a maior catedral portuguesa e a igreja jesuítica de Macau(1602/24), sem paralelo na Europa. Não pode dizer-se que exista uma políticaurbana coerente. A única criação de interesse parece ser Damão, na Provínciado Norte, na Índia.

Anonimamente se vai definindo o tipo de vila ou cidade colonial portu-guesa: em Olinda, Salvador, Rio, Luanda, Chaul, Colombo ou Macau. Uma cidadeque se molda às condições do relevo e procura tirar partido delas, que sedefende com uma cerca abaluartada que condiciona o traçado urbano por umconjunto de regras bem sabidas.

Assim, no Brasil, como dissemos, a acção foi mais espontânea ou pra-gmática, tendo a Coroa fixado a sua soberania, em termos de expressão urbanaplanificada, a partir, sobretudo, da fundação de Salvador em 1549, ficando céle-bre a metodologia ordenada ao Governador Tomé de Sousa e ao mestre deobras Luís Dias, determinando que o governador se conformasse com traças eamostras que levava.

A intenção de regularidade é indiscutível, numa atitude de projecto emedida obedecendo a princípios e a hábitos, mais do que a modelos fixos e a

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regras legais, concretizados com grande sentido de pragmatismo pelos velhosmétodos da cordeação, com uso da bússola, compasso, marcos e cordas ence-radas, em vez da regra e do esquadro.

Passado o triunfo dos engenheiros militares italianos e da tratadísticanormativa que impuseram, volta ao primeiro plano a criatividade dos práticosnacionais e a sua experiência.

Deslocado para o Brasil o eixo dos acontecimentos é onde, até 1750,ocorrem os progressos essenciais.

É exemplar a actuação do engenheiro militar Francisco Frias de Mesquitaao fundar de novo, em 1616, S. Luís do Maranhão, devendo salientar-se, não sóa regularidade do traçado como, aqui também, a preocupação expressa noRegimento de que a cidade fique bem arruada e direita conforme a traça que lhefica em poder.

Esta escola de urbanismo português, oscilando entre os princípiosteóricos e a praxis concreta da sua adaptabilidade ao terreno, pela acção dosengenheiros militares, conheceu novo alento com a criação da Aula de Forti-ficação em 1647, por D. João IV, que retoma institucionalmente a tradição doensino da Arquitectura, interrompida no período filipino.

Figura determinante foi, então, Luís Serrão Pimentel com o seu MétodoLusitânico de Fortificar Praças Regulares e Irregulares. Pimentel, que não publicadesenhos, por inúteis na aplicação ao real, sempre variado, revela uma cons-ciência teórica nada inferior aos mestres italianos, franceses e holandeses quecita, sintetiza, segue ou abandona e supera.

Como refere Horta Correia, ao contrário dos espanhóis, os portuguesesvinham equipados com menor número de normas e maior número de princípios.

De facto, as normas que vigoravam na corte portuguesa, transmitidaspelos decretos régios de criação de cidades, eram muito simples e muito óbvias,o que permitia, por isso mesmo, uma certa maleabilidade.

Do século XVI ao século XVIII, encontra-se um formulário comum, delinguagem muito fixa, e onde se ordena que seja a Praça a primeira a demarcar,com o seu Pelourinho, Casa da Câmara e Cadeia e Igreja e, a partir dela, sedelinearão as ruas em linha recta. É, ainda, preocupação comum que as casasrevistam sempre a mesma figura exterior, mesmo quando a população cresça,para que se conserve a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas.

É o surto de desenvolvimento do interior brasileiro que permite alinharalgumas notas tendenciais do urbanismo português dos séculos XVII e XVIII.

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Poucas vezes estaremos em face de um sistema de quadrícula perfeitacomo na América Espanhola. É frequente a coexistência harmónica de quar-teirões quadrangulares com quarteirões rectangulares. E, se é possível reconhe-cer o sistema tratadístico de praças pequenas de implantação periférica em VilaNova de Portalegre, não é inédito o alinhamento de praças sucessivas emenfiamento perspéctico, uma maior com a Igreja, outra menor com o Pelou-rinho, como em Vila Nova do Prado ou Macapá.

Podemos, também, encontrar situações que favoreçam o aparente lugarcomum do sabor medieval de muitas cidades brasileiras, quando se dá o totalpredomínio da prática sobre a teoria, onde se podem instalar processos maiscenográficos, muitas vezes à-posteriori, sedimentando e qualificando situaçõesde facto. Referimo-nos a uma forma de consolidação de tecidos existentes queé, na visão contemporânea, uma forma de planificação. Será assim com aimplantação isolada de uma igreja inserida no topo de conjuntos viários desentido perspéctico, ou a sua colocação no cimo de um escadório enquadradopor fundos paisagísticos.

Ouro Preto que se desenha a partir da malha de relações estabelecidaentre acampamentos mineiros, é o resultado de uma racionalidade oculta.

Outras vezes a racionalidade aplicada pelo colonizador reside noestabelecimento de uma estratégia de espacialização do discurso catequético.A actual Marechal Deodoro, por exemplo, nasce de um entendimento neo-franciscano de relação de complementaridade com a paisagem, a partir daimplantação primeira de um edifício religioso, enquadrado por correntezas decasas, inicialmente paralelas, que pode abrir-se e prolongar-se por caminhosrurais abertos a pé-posto que levavam os trabalhadores às plantações ou aoporto de pesca. Serão esses caminhos a estrutura básica da nova cidade quevai, com o tempo, tratando os espaços sobrantes como espaços públicos,dando-lhes um novo significado.

Em conjunto, as nossas cidades constituem uma soma de racionalidadesa que a arquitectura corrente e a monumental conferem a unidade global deuma racionalidade única. Uma racionalidade composta de racionalidade, comona vida.

São, de facto, formas de vida diferentes unificadas pela unidade dodesenho do edificado.

Ao passarmos para o século das luzes deparamos com a herançaacadémica de Pimentel, em Manuel de Azevedo Fortes com o seu Engenheiro

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Português ou em Manuel da Maia com as suas várias traduções ou a sua acçãointensa desde os tempos de D. Pedro II até à implementação da nova Lisboade Pombal, não se devendo esquecer os inúmeros tratados manuscritos eanónimos que muito terão ajudado os oficiais praticantes do urbanismo.

Se nos reinados de D. Pedro II, D. João V e D. José, esta escola portuguesanão deixou de planificar novos centros urbanos no Novo Mundo, a grandeoportunidade foi-lhe dada na própria metrópole pelo Terramoto de 1755.

Então, o velho engenheiro-mór do Reino, Manuel da Maia, preside àreconstrução de Lisboa, com a naturalidade de quem cumpre simplesmenteuma tarefa inerente ao seu cargo.

Depois de dissertar sobre as diversas hipóteses de solução, afastada autopia da construção de uma nova cidade em Belém, escolhe, de entre osmilitares da sua confiança, aqueles que poderiam concretizar, em equipa ousozinhos, seis programas diferentes, com diferentes graus de correcção dotecido urbano da Baixa e onde estão patentes a prática, a competência e aceleridade de soluções que não se improvisam, mas onde é palpável, ao mesmotempo, uma formação teórica e um adequado sentido programático.

O estudo da operação arquitectónica e urbanística pombalina de Lisboa,cujos ecos, no Porto, assumiram o carácter de um verdadeiro movimento anti-barroco, leva a integrá-la, claramente, na continuidade de uma tradição urbanís-tica que se sedimenta a partir do século XVI.

Importante e significativa é a preocupação de Manuel da Maia pelauniformização da nova cidade ao sugerir que seja o mesmo arquitecto, Eugéniodos Santos, a fornecer o desenho dos edifícios para que cada rua conserve amesma simetria de portas janelas e alturas, preocupação e linguagem querecordam as antigas Cartas Régias e, portanto, as normativas tradicionais danossa velha escola de urbanismo.

Em dois campos, profundamente interligados, se referencía apermanência da cidade desaparecida: o da estrutura física do sistema urbanotransformado e ordenado para uma nova hierarquia de relações e o da estru-tura dos factos arquitectónicos, esclarecido pelas relações entre tipologia emorfologia, legível nos antigos prédios de rendimento que fornecem as refe-rências para a economia e conveniência que tanto importam ao pensamentoprático e de instrução militar dos projectistas.

Por detrás da estrutura do projecto, o factor essencial foi a ligação coma realidade e o concreto.Também com a realidade pretendida.

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Sensivelmente contemporâneas são, além de Vila Real de Santo António,várias cidades ultramarinas, bafejadas pelo dinamismo que a reconstrução deLisboa veio proporcionar à engenharia portuguesa, mas continuadora daprática colonial anterior.

Sirvam de exemplo Nova Mazagão, projecto do capitão Inácio MoraisSarmento,Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso e vários projectosalternativos para Goa.

Como escreve Rafael Moreira, o melhor testemunho deste momento, eque não poderemos deixar de referir, é o inédito Tratado de Ruação de Joséde Figueiredo Seixas, oferecido em 1763 ao Marquês de Pombal. O autor eraum bom construtor da cidade do Porto, autor das igrejas do Carmo e da Lapa,tendo sido aí professor de Desenho na Aula da Náutica e Fortificação. Oconteúdo do texto é extremamente vasto e denso constituindo como que ateoria do urbanismo pombalino, mas o seu objectivo central é muito claro:fundar uma disciplina nova, a Ruação, tendo por matéria o estudo científico erigoroso da forma, desenho e crescimento das cidades. Seixas desejava emen-dar alguns defeitos da ruação da cidade do Porto, mas apercebeu-se que eraimpossível fazê-lo parcelarmente: a cidade perfeita ou a cidade regular só éviável pelo planeamento global e da totalidade do país estabelecendo leis deuma nova ciência a Arte da Ruação.

A originalidade da proposta ambiciosíssima de Figueiredo Seixas é que elevai pegar numa tradição velha de séculos e castiçamente nacional, que mistura comleituras dos tratadistas clássicos, livros de jardinagem e da arte da quadratura dostectos. No dizer de Rafael Moreira, que descobriu o Tratado, trata-se da primeiratentativa sistemática de criar uma disciplina e erguer ao estatuto de ciência essaarte de fazer cidade que os portugueses espalharam pelo mundo.

E fechamos o ciclo no coração do Portugal setecentista burguês com areferência a este surpreendente autor da teorização da peculiar escola portu-guesa de urbanismo.

A cidade portuguesa nasceu diversa, nas vicissitudes de um país a cons-truir-se. Refez-se nos territórios ultramarinos, colhendo e sintetizando, da diver-sidade das experiências de referência, a sua complexidade. Do seu saber sedi-mentado nasceu com simplicidade o exemplo maior da cidade reconstruída deLisboa que, como que em vaivém permanente, regressou aos territórios colo-niais durante o século XVIII.

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Concluindo:Da experiência de construir, conhecidos os modelos, nasce o saber sem

grande teoria de suporte e que se transmite empiricamente.Afastado o modelo, procura-se, sobretudo, a eficácia, no caso a caso das

circunstâncias.Dessa capacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de

natureza formal ou estilística, nasce a variedade da arquitectura e das cidadesportuguesas, a sua espontaneidade e o seu eclectismo que nunca lhe retiramum genérico carácter de família que nos permite a sua permanente identifi-cação, da Índia ao Brasil, de Portugal a Angola, de Marrocos à China ou aosAçores.

Parafraseando Fernando Pessoa que disse, a minha pátria é a minhalíngua, eu penso que poderemos com propriedade dizer que a nossa pátriatambém é a nossa arquitectura e as nossas cidades.

Daí o dever de as conhecermos e de as defendermos em comum.

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ENTREVISTAao Professor Theodor Hauschild

Conduzida por M. Justino Maciel*

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Theodor Hauschild nasceu em Erfurt, capital da Turíngia, Alemanha, em04 de Janeiro de 1929. Em 1956, formou-se em Arquitectura e História daArquitectura na Universidade Técnica de Berlim (TU), onde chegou a leccionar,tendo-se doutorado em 1965. Em 1966 foi-lhe atribuído o doutoramentoHonoris Causa pela Universidade de Barcelona.

Iniciou o estudo de monumentos da Antiguidade na Península Ibéricaem 1957, actividade que desenvolveu como membro do Instituto ArqueológicoAlemão em Madrid. Foi Director da Delegação do Instituto ArqueológicoAlemão em Lisboa, de 1980 a 1994.

Em 1985, foi distinguido com a Medalha de Mérito da cidade de Tarra-gona e, em 1991, com a da cidade de Faro (ouro). Em 1995, recebeu a Cruz

* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UniversidadeNova de Lisboa, Portugal

Professor Theodor Hauschild fotografado por Justino Maciel

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de Mérito “Bundesrepublik Deutschland” e em 1996 a Creu de San Jordí daGeneralitat de Catalunya.

Theodor Hauschild é hoje um especialista internacionalmente consa-grado nos domínios da Época Clássica e da Antiguidade Tardia. As suas escava-ções arqueológicas em Centcelles (Catalunha), na cidade de Tarragona (Cata-lunha), em Munígua, (Sevilha), Marialba (Léon), Las Vegas de Pueblanueva(Toledo), Milreu (Algarve) e Évora marcaram um percurso único que o desta-cam como uma das maiores autoridades hoje reconhecidas internacionalmenteno domínio da História da Arte, da Arquitectura e da Arqueologia da Anti-guidade. Seja a nível de publicações, seja a nível de conferências ou deleccionação em cursos universitários, a personalidade e o conhecimento deTheodor Hauschild vêm marcando sucessivas gerações de investigadores,designadamente em Portugal e em Espanha.

O Professor Theodor Hauschild continua hoje a honrar o nosso País,residindo em Portugal, participando em iniciativas científicas e preparandopublicações várias, designadamente sobre o templo romano de Évora. Rece-beu-nos gentilmente na sua casa e, generosamente, acedeu a responder aalgumas perguntas sobre a sua actividade científica, sobre questões de grandeinteresse para os leitores da Revista de História da Arte, a única em Portugal quepublica permanentemente estudos sobre a Arte da Antiguidade Clássica e Tardia.

O Senhor Professor desenvolveu a sua formação inicial em Arquitectura. Foi a Arqueologia ou aArquitectura que motivou as suas opções pela História da Arquitectura Clássica?

A minha formação universitária foi em Arquitectura com acentuação naHistória da Arquitectura, especialmente a Clássica. Um dos meus professoresfoi Walter Andrae, o famoso especialista da reconstituição da Porta dos Leõesde Babilónia. Outro foi Ernst Heinrich, que escavou em Uruk-Warka, Meso-potâmia. Criou-se na Universidade Técnica de Berlim, onde estudei, um semi-nário sobre arquitectura antiga, uma especialização que era rara noutras univer-sidades. Davam-se lições de escavação numa igreja medieval destruída durantea guerra. Fui, então, encarregado de ensinar levantamento gráfico de monu-mentos, assim como a sua descrição e restituição gráfica.

Existia uma escola característica do Instituto Arqueológico Alemão? Como se processou a integraçãodo Senhor Professor nesta Instituição e a sua vinda, primeiro para a Espanha e, depois, para Portugal?

O Instituto Arqueológico Alemão não tinha escola especializada emarquitectura antiga. Mas foram convidados arquitectos com esta especialidade

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formados em várias universidades. Foi o meu caso. Recebi do Prof. HelmutSchlunk o encargo de realizar o levantamento gráfico do monumento de Cen-tcelles (Tarragona), da época paleocristã, tendo sido igualmente encarregado deproceder à escavação e estudo deste edifício. Participei, depois, em outrasescavações: no município romano de Munígua (Sevilha), na basílica paleocristãde Marialba (Léon), no grande mausoléu octogonal de Villanueva (Toledo) e,principalmente, nos monumentos romanos da cidade de Tarragona, com certarelevância na muralha do séc. II a.C.

Em Portugal, tive a oportunidade de poder estudar e escavar o monu-mento da uilla romana de Milreu e o templo de Évora. Nestes trabalhos, parti-ciparam estudantes de várias universidades, especialmente da UniversidadeTécnica de Berlim onde, através do contacto com o Prof. Heinrich, esta partici-pação serviu como prova dos cursos de História da Arquitectura. Contei coma ajuda do Prof. Pedro Fialho, que participou nos trabalhos de campo comvários estudantes de arquitectura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa.

Como encontrou os estudos sobre a Arqueologia e a História da Arte da Antiguidade em Portugal?Como os vê hoje?

Os estudos de Arqueologia Clássica, assim como da Arte da Antiguidadeem Portugal tinham, já em épocas anteriores, um muito bom nível. Conhecemosbem as escolas de D. Fernando de Almeida, do Prof. Bairrão Oleiro e do Prof. Jorgede Alarcão.A publicação dos resultados das escavações nas ruínas de Conímbrigamarcou um passo fundamental para o estudo da Antiguidade Romana.

Penso que os métodos utilizados pelos actuais investigadores no campoda arquitectura da Antiguidade são muito louváveis, designadamente no apro-veitamento dos meios técnicos e na investigação sobre as fontes escritas.

Iniciou o seu trabalho em Portugal com um estudo inovador, hoje de referência, sobre a uillaromana de Milreu. Quer destacar a importância deste monumento para os estudos sobre a nossaAntiguidade Tardia?

A importância do monumento de Milreu ressalta, em grande parte, dapossibilidade do estudo pormenorizado da estrutura do “Edifício de Culto”,que conserva toda a altura original e um significativo revestimento decorativo.O conjunto revela-se como o resultado de um extraordinário projecto arqui-tectónico datado da época romana tardia. Igualmente, a uilla anexa se destacaentre outras pela sua decoração artística, bem como pela única e valiosa sériede bustos imperiais.

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São igualmente de referência os estudos que levou a cabo sobre o teatro romano de Lisboa. Que se lhe oferece dizer-nos sobre este monumento?

A planta do teatro romano de Olisipo, que elaborei com o contributode estudantes de arquitectura, assim como de Cristina Leite, do Museu deHistória da Cidade e Lisboa, representa só a parte central do conjunto. Pode-remos apreciar nesta planta determinadas normas estabelecidas por Vitrúvio.

Merecem destaque colunas ainda existentes, que apresentam revesti-mento em estuque. Importantes elementos da parte da cena têm vindo a serredescobertos nas novas escavações por Lídia Fernandes.

O templo romano de Évora tem sido um dos seus mais fecundos campos de trabalho. Que particularidades apresenta este monumento?

O templo romano de Évora pertence ao tipo períptero sobre pódio,conhecido na Península Ibérica, actualmente, apenas em outras duas cidades:em Mérida, capital da Lusitânia, e em Barcelona.Tinha a singularidade de apre-sentar, em três lados, um tanque de água circundante, característica conhecidahoje apenas no templo do forum de Luni, Itália. São igualmente de destacar ocriptopórtico e a praça que envolvia o templo, formando uma área separada eelevada em relação ao forum.

O Senhor Professor tem significativamente contribuído, pelo seu importantíssimo curriculum deinvestigador e pelo seu extenso número de publicações, para um maior conhecimento da Arquitecturae, em geral, da História da Arte da Antiguidade. Como vê o futuro desta investigação em Portugal?

Os meus estudos sobre os monumentos romanos na Península Ibéricaforam resumidos na publicação Hispania Antiqua, sobre a época romana, em1993.Tenho tido a oportunidade de dar conta da minha experiência no estudoe interpretação da arquitectura antiga a jovens colegas e transmitir o que tenhoaprendido e sistematizado a muitos estudantes, em vários cursos universitários.

Sinto que existe actualmente em Portugal uma excelente investigaçãoem História da Arte, bem como em História da Arquitectura e em Arqueologiada Antiguidade Clássica e Tardia. Não tenho dúvidas de que estes estudos vêmrecebendo permanentes incentivos em seminários universitários, designada-mente nas escolas da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade deCoimbra.

As descobertas referentes ao nosso passado revestem-se sempre deuma importância fundamental para o nosso futuro.

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Palavras-chave: Sintra; Paisagem; Antiguidade; Património

Key words: Sintra; Landscape; Antiquity; Heritage

RESUMO

A classificação contemporânea deSintra como Património Mundial, nacategoria Paisagem Cultural, resulta daconvergência de múltiploscomportamentos, iniciados naAntiguidade, em que o sagradointerage com o profano em sucessivasetapas hierarquizadas numa dinâmicade entropia cultural. Do cabo Ofiúsaao monte Sagrado onde se cultuavaoficialmente na época romana o Sol ea Lua, da topografia cristã àdesmitificação humanista típica doRenascimento que transforma o locussacer em locus amoenus, eis umconjunto de referências que definem aAntiguidade Clássica e Tardia comocondicionante de uma paisagem que,de natural, se tornou humanizada,numa vivência edénica que se adensouao longo dos tempos.

ABSTRACT

Sintra’s classification as World Heritage,in the category of Cultural Landscape, isthe result of the convergence of several

factors initiated in Antiquity in which thesacred interacts with the profane in asuccession of hierarchical stages of a

cultural dynamics. From the cape Ofiúsato the Monte Sagrado (Sacred Mount)where, in Roman times, official cult was

paid to the sun and the moon, fromChristian topography to its Renaissance

Humanistic deconstruction, whichtransforms the locus sacer in locus

amoenus, these are the set of referenceswhich define the Classical and Late

Antiquity that condicioned a landscapethat was transformed from natural to

humanized in a edenic experiencedensified through the ages.

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DO TOPOS CLÁSSICO À PAISAGEM CULTURAL:Sintra e a sua envolvência na Antiguidade

M. Justino Maciel*

Delimitação, humanização e culto do lugar na Antiguidade

A Antiguidade desde sempre associou ao lugar ou à sua designação emgrego, topos, a referência do conhecimento real, com uma sistematização logoconsignada na filosofia aristotélica dentro do conceito de categoria. O lugar eo tempo tornaram-se balizas epistemológicas da ciência na reflexão gnoseo-lógica iniciada na época clássica.

Os lugares de grande significado são, desde o início da aventura humana,os que marcam territórios e horizontes, como sejam os mares, os rios, os pro-montórios e os montes. À medida que a evolução das sociedades permitiu odesenvolvimento de cidades e demarcação clara dos seus territórios, esta paisa-gem, fruto da evolução e da transformação da própria natureza, vai sendoigualmente transformada pelo Homem, que não só a condiciona, como tambéma marca com monumentos construídos pela sua própria mão. Fez parte destahumanização da natureza, como refere Vitrúvio no seu Tratado De Architectura1,escrito na segunda metade do séc. I a. C., a criação de spectacula, nome que hojetraduzimos por Maravilhas, que na Antiguidade foram estabelecidas no númerode sete, sendo elas o Colosso de Rodes, o Mausoléu de Halicarnasso, o Farol deAlexandria, os Jardins Suspensos de Babilónia, oTemplo de Ártemis em Éfeso, asPirâmides do Egipto e o Zeus de Olímpia. Eram monumentos grandiosos e belos,cujo processo de classificação era, de facto, diferente do dos actuais conjuntosmonumentais considerados Património da Humanidade. Era a uox populi que,efectivamente, os elegia como obras máximas do Homem no seio da natureza.

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* Professor Associado, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal

1 De Architectura, 2, 8, 11: Septem spectacula. As traduções de textos clássicos aqui transcritas são daresponsabilidade do autor deste trabalho. No caso dos textos vitruvianos, são retiradas de M. JustinoMaciel, Vitrúvio,Tratado de Arquitectura,Tradução do Latim, Introdução e Notas, Lisboa, IstPress, 2006.

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Estas Maravilhas revelavam-se como que testemunhos da capacidadehumana em imitar os portentos da natureza, humanizando e aperfeiçoando,através da arte, o que a sensação estética ditava como estando ainda imper-feito. Ao contrário do que hoje a ciência nos revela, os antigos consideravamque a humanidade teve a sua origem numa Idade de Ouro e daí a mítica ideiade um Paraíso original que está sempre presente e se tenta continuamenterecordar, sonhando um dia a ele voltar. Esta ideia, que encontrou no platonismoclássico a sua justificação filosófica, fundamenta comportamentos típicos daAntiguidade a nível artístico, na escultura, na pintura e na arquitectura, designa-damente nos jardins e nas casas de estatuto, primeiro nas cidades e, depois eprogressivamente, no campo, onde, de modo mais naturalista, a paisagem servede pano de fundo à sugestão de paradeisos ou paraíso.

Com efeito, o homem clássico tinha consciência de que, através da suauirtus interior, a força de ânimo que lhe era própria, poderia dominar as forçasadversas da natureza. Transformando esta através da técnica e da arte,aprofundava a sua experiência sensorial do mundo físico ao mesmo tempo queprogredia no processo de socialização (Vitrúvio, II, 1-2).

Os povoados eram primitivamente construídos, por razões estratégicasde defesa e de salubridade, em montes e em colinas. Os textos mais antigosreferem a instauração dos recintos urbanos fortificados – moenia – em lugaresaltos ou, então, funcionalmente, junto ao mar ou junto aos rios, tendo presenteo regime de ventos, a exposição solar e a salubridade das regiões. Idênticassoluções se recomendavam para edifícios específicos, como os templos e osteatros. E quando se representavam os espaços humanizados, como acontecianos cenários dos teatros, acrescentava-se aos chamados estilos trágico e cómico,o estilo dito satírico ou paisagístico. É Vitrúvio quem melhor no-los descreve:

São três os géneros de cenas: um, que se diz trágico; outro, cómico; umterceiro, satírico. As suas decorações são diferentes e díspares, porque as cenastrágicas são decoradas com colunas, frontões, estátuas e outras coisas régias. Ascómicas representam edifícios privados e balcões, bem como relevos com janelasdispostos segundo as normas e a imitação dos edifícios comuns. Finalmente, assatíricas são decoradas com árvores, cavernas, montes e outras coisas campestres,seguindo o estilo paisagístico2.

2 De Architectura, 5, 6, 9: Genera autem sunt scaenarum tria: unum quod dicitur tragicum, alterumcomicum, tertium satyricum. Horum autem ornatus sunt inter se dissimili disparique ratione, quod tragicae

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O estilo paisagístico consistia, pois, nomeadamente, na representação deárvores, cavernas, montes e outras coisas campestres. Era uma das formas darepresentação artística da realidade, juntamente com a dos edifícios, fossemeles públicos ou privados, e sua decoração arquitectónica ou escultural. Noutropasso, o autor do De Architectura, ao falar de pintura, refere as pinturas dejardins e paisagens, chamadas topia, segundo a tradição dos antigos:

Nos passeios porticados, por causa dos espaços em profundidade, represen-taram variedades de paisagens, mostrando figurações com características de deter-minados locais: deste modo se pintam portos, promontórios, litorais, rios, fontes,canais, templos, bosques, montes, rebanhos, pastores, assim como, em algunslugares, grandes quadros de figuras representando imagens dos deuses ou sequên-cias ordenadas das fábulas, como as guerras troianas ou as andanças de Ulissesatravés das paisagens e outras coisas que, como estas, são produzidas pela natu-reza das coisas3.

Este culto da natureza e da paisagem está, pois, bem documentado,numa perspectiva artística e cultural, em textos da Antiguidade (Gabba, 1991:22-25). Nele, destacam-se os topoi dos montes e dos promontórios. Se lermos,por exemplo, a Geografia de Estrabão, escrita na passagem do séc. I a. C. parao séc. I d. C., notamos logo esta atenção dos antigos às marcas orográficas napaisagem. Mas também nos damos logo conta de que esses montes e essescabos se associam no seu tempo à crença e ao culto de determinadas divin-dades, sejam elas do Panteão greco-romano, sejam simples daemonia ou até,apenas, heróis divinizados. Então, as montanhas e os promontórios, adquiremum maior dinamismo significante, porque permitem viver mais profundamenteo sagrado e sentir mais próxima a fronteira com o divino. E assim, vemos aassociação do monte Ida, na Ásia Menor, com Júpiter, consagrada com umtemplo (Estrabão,VII, 3, 1), do monte Minteu, igualmente na Ásia Menor, comPlutão, também com o respectivo santuário (Idem,VIII, 3, 14), do monte Liceu,

deformantur columnis et fastigiis et signis reliquisque regalibus rebus; comicae autem aedificiorumpriuatorum et maenianorum habent speciem profectusque fenestris dispositos imitatione communiumaedificiorum rationibus; satyricae uero ornantur arboribus, speluncis, montibus reliquisque agrestibus rebusin topeodi speciem deformati.

3 Idem, 7, 5, 2: Ambulationibus uero propter spatia longitudinis uarietatibus topiorum ornarent ab certislocorum proprietatibus imagines exprimentes: pinguntur enim portus, promunturia, litora, flumina, fontes,euripi, fana, luci, montes, pecora, pastores, nonnullis locis item signorum megalographiae habentesdeorum simulacra seu fabularum dispositas explicationes, non minus Troianas pugnas seu Vlixis errationesper topia ceteraque quae sunt eorum similibus rationibus ab rerum natura procreata.

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na Grécia, com Júpiter, com templo consagrado a esta divindade (Idem, VIII, 8,2), do monte Hélicon, também na Grécia, com as Musas, do mesmo modo como respectivo templo (Idem, IX, 2, 25 e X, 3, 17, assim como muitos outrosexemplos. Estrabão dá um bom testemunho destas crenças e mentalidades, porexemplo quando nos fala do monte Parnaso, na Grécia, dizendo o seguinte:Uma espécie de carácter sagrado ressalta de todo o monte Parnaso, porque ali sevêem por toda a parte espaços que a veneração dos povos transformou emsantuários. De todos eles, o mais célebre e, ao mesmo tempo, o mais belo é umagruta consagrada às Ninfas (Idem, IX, 3, 1). É neste contexto que nos surgetambém, segundo o testemunho dos textos clássicos, a consagração da Serrada Sintra aos deuses Sol e Lua, com o respectivo templo.

Na época romana, a conotação dos montes com o sagrado adensa-secom o reconhecimento das religiões indígenas, em que proliferam as divindadestópicas, ou seja, associadas a determinados lugares, como na Galécia as serrasdo Larouco e do Marão (Rodríguez Colmenero, 2002: 33). Não raro estas divin-dades se revelam como deuses da montanha ou da colina, como é o caso deEndovélico, para nos cingirmos ao Ocidente Peninsular (Toutain, 1920: 130-131).

Por outro lado, a referência ao cabo de São Vicente como Sagrado e apossibilidade de o mesmo epíteto ser atribuído ao Cabo da Roca, comoveremos, poderá também relacionar-se com o que poderemos classificar demito dos confins, efabulação que acompanhou a expansão romana na orlacosteira atlântica da Península Ibérica e que se manteve até à AntiguidadeTardia. Era sobretudo nas partes do Ocidente que já os Gregos localizavam asIlhas dos Afortunados, para onde os golfinhos, animais psicopompos, transpor-tavam as almas dos justos. Para o pôr-do-sol se encontrava o Jardim dasHespérides, as Ninfas do Poente. Aqui teriam tido lugar algumas aventuras deHércules e para estas partes algumas tradições localizavam os Montes Hiper-bóreos onde, sob o governo de Apolo, que para ali se retirava durante umaparte do ano, os grifos protegiam as minas de ouro que os Arismaspospretendiam roubar (Maciel, Cabral e Nunes, 2002: 196-198). Foi aliás amitologia grega que levou os romanos a hesitar na travessia do rio Lima, por ojulgarem o Lethes, rio do Inferno ou do Esquecimento (Maciel, 2005: 10-11).

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Mitos clássicos relacionados com o território Olisiponense.

O território de Lisboa, em que, na época romana, se incluía Sintra e oseu monte, foi pelos escritores e geógrafos antigos integrado nesta contextuali-zação mítica. Não apenas porque a Serra de Sintra também era conhecida porPromontório Olisiponense, mas também porque neste espaço entre o estuáriodo Tejo e o mar ocidental muitos acontecimentos fantásticos, próprios de umaterra de confins, no limiar entre o natural e o fantástico, ali eram referidos. Omais repetido na Antiguidade era, sem dúvida, a história da fecundação daséguas pelo vento favónio, vento oeste ou Zéfiro dos Gregos que, soprando naPrimavera, propiciava a renovação da natureza. O primeiro autor clássico a

A Hispania segundo Agripa, in Berthelot (1934) p. 56

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narrar esta lenda foi Terêncio Varrão que, no seu De Re Rustica, escrito no séc.I a.C, nos diz:

In fetura res incridibilis est in Hispania, sed est uera, quod in Lusitaniaad oceanum in ea regione, ubi est oppidum Olisipo, monte Tagro quaedam euento concipiunt certo tempore equae, ut hic gallinae quoque solent, quarumoua hypenemia appellant. Sed ex his equis qui nati pulli, non plus trienniumuiuunt (R.R., II, 1, 7).

Na fecundação acontece algo incrível na Hispânia, mas verdadeiro, porquena Lusitânia, junto ao Oceano, naquela região onde se encontra o opido de Olisipo,no monte Tagro, algumas éguas concebem do vento em determinada altura, comoaqui também é comum com as galinhas, cujos ovos se chamam goros. Mas ospotros que nascem destas éguas não vivem mais do que três anos.

A mesma história é-nos veiculada algumas dezenas de anos mais tardepor Lúcio Júnio Moderato Columela, um agrónomo natural de Cádis, no seuDe Re Rustica:

Cum sit notissimum etiam in Sacro monte Hispaniae, qui procurrit inoccidentem iuxta oceanum, frequenter equas sine coitu uentrem pertulissefetumque educasse, qui tamen inutilis est, quod triennio, prius quam adolescat,morte absumitur (R.R.,VI, 27).

É também conhecidíssimo na Hispânia, no monte Sagrado, que se estendepara ocidente junto ao Oceano, frequentemente as éguas emprenharem sem coitoe darem à luz uma cria, que todavia é inútil, porque em três anos, antes que setorne adulta, é levada pela morte.

Plínio-o-Velho, por sua vez, já avançado o séc. I d. C., descreve-nos na suaNaturalis Historia:

Constat in Lusitania circa Olisiponem oppidum et Tagum amnem equasfauonio flante obuersas animalem concipere spiritum, idque partum fieri etgigni pernicissimum ita, sed triennium uitae non excedere (N.H.,VIII, 166).

Consta que na Lusitânia, perto do opido de Olisipo e do rio Tejo, as éguasvoltadas para o vento favónio absorvem um eflúvio vivificante, e assim se origina enasce uma cria velocíssima que, todavia, não excede os três anos de vida.

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Pensamos que estas três referências são suficientes para nos darmosconta de uma lenda que associa as regiões de Lisboa e de Sintra a uma visãomítica de um espaço geográfico. Outros autores romanos descrevem, com maisou menos repetição dos textos já referidos, esta história do favónio e daséguas, como Solino (De mirabilibus, 24), Justino (Historiarum Philippicarum, XLIV,3, 1), Pompónio Mela (De Chorographia, III, 5-6), Silo Itálico (Punica, III, 378-383)e Marciano Capela (De Nuptiis,VI, 629-630), localizando no território de Olisipouma lenda que outros autores, como Virgílio (Georgicae, III, 272-277) e, já naAntiguidade Tardia, Santo Agostinho (De Ciuitate Dei, XXI, 5, 9-10), situam emoutras paragens.

Mas as referências míticas associadas ao território olisiponense nãoficam por aqui. Para além do topos, também clássico, e certamente fundado narealidade, do Tejo como rio onde se explorava ouro (Fernández Nieto, 1970-71: 245-259), com as referências de Plínio-o-Velho dizendo-nos que o Tejo éfamoso pelas suas areias auríferas (N.H., IV, 1154), corroboradas por PompónioMela quando afirma que era um rio gerador de gemas e de ouro (De Choro-graphia, III, 5-65), que nele se recolhia em pepitas (N.H. XXXIII, 666) e que noterritório olisiponense, com grande trabalho devido à argila de um solo adusto tam-bém se explorava o carbúnculo, espécie de gema ou granada (N. H., XXXVII,977), Plínio-o-Velho conta-nos ainda, insistindo na visão fantástica e mítica:

Tiberio principi nuntiauit Olisiponensium legatio ob id missa, uisumauditumque in quodam specu concha canentem Tritonem qua nosciturforma. Et Nereidum falsa non est, squamis modo hispido corpore etiam quahumanam effigiem habent. Namque haec in eodem spectata litore est, cuiusmorientis etiam cantum tristem accolae audiuere longe (N. H. IX, 9).

Uma legação de Olisiponenses, enviada propositadamente, anunciou aoimperador Tibério ter sido visto e ouvido em certa gruta, um Tritão, de que seconhece a forma, tocando buzina. E também não é irreal a forma das Nereides,com o corpo revestido de escamas, mesmo onde apresentam uma configuração

4 Tagus auriferis harenis celebratur.

5 Tagi ostium, amnis gemmas aurumque generantis.

6 Fluminum ramentis, ut in Tago Hispaniae.

7 Et in Olisiponensi erui scripsit, mano labore ob argilam soli adusti. Exploração que tem sido localizadanas cercanias do Monte Suímo, em Belas, perto de Sintra (Choffat, 1914: 159-198 e Azevedo,1918:158-164).

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humana. Pois no mesmo litoral foi observada uma delas, da qual, morrendo, oshabitantes ouviram também ao longe um canto triste.

Da importância desta história e revelando-nos o tipo de mentalidadeque levava a oficializar e a cristalizar mitos, testemunha o envio de umaembaixada levando a notícia ao próprio Imperador. Por outro lado, o referentepara esta narrativa é, muito provavelmente, a costa marítima associada à Serrade Sintra, onde há grutas e recortes em falésias. Plínio refere sem qualquerdúvida que a gruta de que fala é no litoral.

As referências clássicas ao Cabo da Roca e à Serra de Sintra

A Serra de Sintra tem o seu prolongamento natural no Cabo da Roca.O nome mais antigo com este relacionado é o epíteto de Ofiúsa, segundo umpériplo originalmente datado dos séc. VI-V a.C., intitulado Ora Maritima, quechegou até nós numa versão do séc. IV d. C., da autoria de um romanochamado Rufus Festus Auienus, que nos diz, narrando a viagem de Norte paraSul:

… Prominens surgit dehincOphiussae in auras, abque Arui(i) iugoin haec locorum bidui cursus patet.at qui dehiscit inde prolixe sinus,non totus uno facile nauigabilisuento recedit. namque medium ac(cess)eriszephiro vehente, reliqua deposcunt notum.etrusus inde si petat quisquam pedeTartessiorum litus, exuperat uiamuix luce quarta (O. M., 171-180).Surge então nos ares, saliente, o cabo de Ofiúsa,E do cabo Arvio a estas paragens o percurso é de dois dias.O golfo que aí nasce recua a partir desse lugar.Não de todo facilmente navegável com um só vento,Percorrê-lo-ás até meio levado pelo ZéfiroE o restante com o Noto.

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E se alguém vai a pé desde ali até ao litoral dos Tartéssios,Com dificuldade completará o caminho ao quarto dia.

O Cabo Ofiúsa surge, nos meados do séc. I d. C., já referido com outrosnomes, destacando-se entre eles o de Olisiponense, o que permite a suaidentificação indubitável com o Cabo da Roca, pois está directamente ligado aonome de Olisipo e, portanto, no seu território. Esta designação, atribuída pelosábio autor da Naturalis Historia, vem acompanhada de outras, Ártabro eMagno. Diz-nos ele:

Excurrit deinde in altum uasto cornu promunturium, quod aliquiArtabrum appellauere, alii Magnum, multi Olisiponense ab oppido, terras,maria, caelum discriminans. Illo finitur Hispaniae latus et a circuitu eius incipitfrons (N. H., IV, 113).

Estende-se depois um promontório para o mar alto, com uma desmesuradasaliência, que alguns chamaram Ártabro, outros Magno, muitos, devido ao opido,Olisiponense, dividindo as terras, os mares, o céu. Com ele finda um lado daHispânia e uma vez contornado começa o seu lado frontal.

Como vemos, Plínio associa o Cabo da Roca ao mito dos confins, pois,como afirma, ele separava as terras, os mares e os céus, porque dividia a zonalateral da Península na sua parte frontal, ou seja, o Norte, identificando o marenvolvente como Oceano Gálico, e o Poente, que tinha do seu lado o OceanoAtlântico. Este cabo como que dividia o mundo conhecido do mundo desco-nhecido, era como que o fim das paisagens mediterrânicas com que Gregos eRomanos se encontravam familiarizados.

Mas os nomes dados na Antiguidade ao cabo da Roca não ficam poraqui. Como dissemos, temos a certeza de que ele é referido e associado porPlínio ao território de Olisipo porque lhe chama Olisiponense. Todavia, nãosabemos se o refere por conhecimento próprio ou por informação alheia. Defacto, Plínio–o-Velho prestou serviço na Tarraconense, mas não há notícias deque tenha viajado por estas paragens da Lusitânia. Assim como, ao veicularoutras informações respeitantes a esta região, se baseia em testemunhos querecolheu e não num conhecimento directo, também aqui nos afirma que osdiferentes nomes dados ao Cabo da Roca no seu tempo eram atribuídos poralguns, por outros ou por muitos. Contudo, deixa-nos claro que os que no seu

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tempo apelidavam o cabo de Olisiponense não eram apenas alguns, erammuitos. O nome de Magnum surge, por sua vez, poucos anos antes de Plínio,na Corografia de Pompónio Mela, escrita no tempo do imperador Cláudio, ondese escreve: No (território do cabo) Magnum, Ebora8. A designação de Magnumpoderá ter a ver não só com a sua associação à Serra de Sintra, bem visível domar, mas também ao facto de marcar na paisagem a inflexão da costa marítimapara Norte. Já o nome de Artabrum aplicado ao cabo da Roca é de exclusivaatribuição pliniana, podendo ele ter confundido este promontório, dada a faltade conhecimento directo, com o cabo Nerium ou Celticum, na Corunha, ondepara nós, hoje, mais claramente se dividiria o Mar Gálico do Oceano Atlântico.

Tradicionalmente, tem-se pensado que Estrabão não se refere ao caboda Roca.Todavia, a partir da edição de Schulten (1959: 103), considerando asdistâncias enunciadas na Antiguidade, designadamente tendo presente ainformação atribuída por aquele geógrafo (Estrabão, 3, 2, 11) a Eratóstenes deque a viagem marítima entre Cádis e o cabo Sagrado (Sacrum) durava cincodias, tem-se levantado a hipótese de que o cabo da Roca poderia também tersido conhecido como Sacrum, pelo menos até à era cristã (Alarcão, 2005: 264-267).A designação de Sagrado atribuída ao cabo Olisiponense não parecetotalmente descabida na Antiguidade, face às características mítico-religiosas emque se enquadrava então o território olisiponense, como estamos constatandoe se continuará a sublinhar.Todavia, esta questão é insolúvel, pelo menos hoje,dados os problemas levantados com a transmissão dos textos e com a impossi-bilidade de verificar referências a autores cujas obras se perderam.

Voltando, porém, ainda ao termo Sacrum, possivelmente atribuído pelosantigos ao cabo da Roca, e considerando este promontório como fazendoparte da Serra de Sintra, já vimos atrás que Columela, no início do séc. I d. C.,refere no território Olisiponense um Mons Sacer, ou seja, um Monte Sagradoque, segundo ele, se encontrava direccionado para Ocidente junto ao Oceano,monte onde as éguas emprenhavam sem contacto com macho. A relação dePromontorium Sacrum com Mons Sacer ressalta aqui com clareza, no nossoentender, pese embora alguns autores se inclinarem para considerar este MonsSacer como o actual Monsanto (Vasconcelos, 1905: 103 e Fernandes, 1983-84:54). Monsanto, todavia, não se encontra junto ao mar nem voltado ao Oci-

8 De Chorographia, III, 1, 7: In Magno Ebora. Encontrando-se Ebora bastante afastada deste cabo, talvezMela tenha aqui pretendido referir Eburobritium, recentemente descoberta junto a Óbidos.

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dente, para além de que não se pode comparar em impacto geográfico com apróxima, e bem visível do mar, Serra de Sintra. E apesar de o topónimo Mon-santo se aproximar no sentido com aquela designação latina, a evoluçãolinguística revela etimologias diferentes. Mons Sacer nunca daria Monsanto emportuguês, mas qualquer coisa como Monsagre ou Monsagro. Por outro lado,julgamos que os topónimos Tagus (Tejo) e Mons Tagrus (Monte Tagro), já refe-ridos atrás como associados também ao território olisiponense, poderão terigualmente interagido com os de Sacer ou Sacrum e criado alguma confusãoentre os autores clássicos. Mas ressalta que a alusão de Columela às éguasfecundadas pelo vento no Monte Sagrado faz convergir na Serra de Sintra osagrado com o fantástico, tendo presente a mentalidade do tempo em que eleescreveu o seu texto.

Seja como for, adensam-se progressivamente, no correr dos séculos daocupação romana da zona oeste do território olisiponense, as conotaçõesdesta região com o mítico e o maravilhoso, emergindo cada vez mais clara-mente a Serra de Sintra como topos singular desta relação do real com o ima-ginário. O ponto culminante destes comportamentos foi atingido nos finais doséc. II – princípios do séc. III d. C., com a erecção de um santuário dedicado aoSol e à Lua nas faldas desta Serra, para o Poente, junto ao Mar Oceano, comoveremos.

A íntima relação do cabo da Roca com a Serra de Sintra é vista também,já na Antiguidade, como indubitável, sendo praticamente considerada como amesma realidade, como verificamos num texto do geógrafo Cláudio Ptolemeu(Geographia, II, 5, 3), do séc. II d. C., que refere este conjunto geográfico como

Selhvnhs ovros, avkronMonte da Lua, Promontório.

Chegamos, assim, ao culminar das informações clássicas sobre a Serra deSintra: a sua conotação com a Lua, que na Antiguidade pressupunha a conside-ração deste astro como divindade e a existência de um culto. Com efeito, a Luaera objecto de culto já na Roma antiga, normalmente em associação com o Sol,associação aprofundada com a influência da mitologia grega. Segundo esta, estesdois astros surgem como Hélio e Selene, irmãos, ambos filhos de Hipérion ede Tia e netos de Urano e de Geia, ou seja, da geração anterior a Apolo e aopróprio Zeus. Se Hélio percorria os céus num carro de fogo puxado por

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quatro cavalos, iniciando a sua viagem na Índia e completando-a a mergulhar noOceano Ocidental, marcando a duração dos dias, assim Selene pontuava asnoites, no seu carro de prata tirado por dois cavalos.Com a expansão e desen-volvimento da religião mitraica pelo Império, incrementa-se ainda mais o cultodo Sol e da Lua, bem documentado também, bem próximo do território olisi-ponense, com um baixo-relevo em Tróia de Setúbal, onde vemos Mitra numbanquete com Hélios e a Lua assistindo ao ritual iniciático do mitraísmo, otaurobólio ou sacrifício de um touro. Na hierarquia mitraica, a cada um dosgraus correspondia a tutela de uma divindade celeste: ao Corvo, primeiro grau,Mercúrio; ao Noivo (Nymphus), Vénus; ao Soldado (Miles), Marte; ao Leão,Júpiter ; ao Persa, a Lua; ao Andarilho do Sol (Heliodromus), o Sol; e ao Pai(Pater), Saturno.Verificando-se uma grande procura pela iniciação mitraica naszonas de fronteira do Império Romano (Maciel, 1996: 128-131), o culto do Sole da Lua na Serra de Sintra poderá ter a ver com esse novo dinamismo, atéporque é no início do séc. II d. C. que inscrições romanas documentam nestelocal rituais e sacrifícios a estas divindades pela saúde do imperador SeptímioSevero, actos de culto estes que são presididos oficialmente por altas individua-lidades associadas ao governo da Província da Lusitânia Romana (Idem: 33) .

Baixo-relevo de Tróia de Setúbal, testemunhando o culto do Sol, da Lua e de Mitra. © Fotografia do autor.

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O nome de Monte da Lua/Selenes Oros atribuídopor Ptolemeu à Serrade Sintra, referindo com esta afirmação, indirectamente, o culto tópico da Lua,indicia também o do Sol, dada a associação tradicional comum das duas divin-dades. Tal associação é confirmada pelas já referidas inscrições romanas. Masque inscrições são essas?

Pervivência das marcas da Antiguidade em Sintra através dos tempos

No séc. XVI, o pintor português Francisco de Holanda diz-nos, na suaobra intitulada Da Fábrica que falece à Cidade de Lisboa, dedicada no ano de1571 ao rei D. Sebastião (Segurado, 1970: 218), o seguinte:

Eu vi, quâdo me o Ifante Dõ Luís vosso tio q. Deos tê: levou a mostrar a Serrade Syntra, mãdandome pa isso, chamar a Lysboa quãdo vim de Itália. E vimos ê afoz do Ryo de Colares Prezada ê outro tempo dos Romãos, sobre hu piquenoouteiro junto do Mar Oçeano: Hu circulo ao Redor cheo de Çipos e Memorias dosEperadores de Roma q vierão aquele Lugar. E cada hu Punha hu çipo cõ seu Letreiroao SOL. ETERNO E A LUA a que aquele Promõtorio foi dos Gentios dedicado.

Sabemos da formação clássica de Francisco de Holanda, que refere teridentificado este local nas faldas da Serra de Sintra como tendo cipos e ins-crições romanas, depois de ter vindo de Itália, ou seja, depois de, nomeada-mente em Roma, ter visto muitas marcas arqueológicaa que lhe davam expe-riência e autoridade para reconhecer outros testemunhos idênticos noutroslugares.A notícia da existência deste monumento vinha já de 1505 (CIL II, 30*),através de dois textos de Valentim Fernandes (Anselmo, 1984: 781-818) e éveiculada também por André de Rezende9, que nos diz: nas faldas do monte, nopróprio cimo da falésia, que se precipita no Oceano,existiu antigamente um temploconsagrado ao Sol e à Lua. Dele só restam escombros nas areias litorâneas e algunscipos indiciadores de antiga superstição.

Francisco de Holanda deixou-nos, porém, um desenho deste monu-mento, que hoje necessita de uma leitura arqueológica ainda não processadano local. A descrição de Holanda, associada à imagem em que nos surge uma

9 L. André de Rezende, 1593:fl. 38: Ad radices montis in ipso promontorij cacumine, quo in oceanumpraecipitatur, templum olim fuit Soli, & Lunae sacrum. Cuius modo inter littoraleis arenas ruinae tantumextant, & cippi aliquot inscripti superstitionis antiquae indices.

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Texto de Francisco de Holanda sobre o Templo ao Sol e à Lua na Serra de Sintra, in Segurado (1970) p. 114.

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plataforma com o mar e o Sol poente tendo à sua direita a Lua, assim como odesenho da foz do Rio de Colares ou das Maçãs, com a representação dos seusmeandros e do lugar onde este curso de água entra no mar. A única inscriçãoque nos é mostrada no texto, porém, embora iniciada pela expressão SOLI .AETERNO, direcciona a dedicatória para Jesus Cristo e para a Virgem Maria,dado o contexto típico dos meados do séc. XVI em que não podiam restardúvidas da cristianização de todos os santuários pagãos. Todavia, apesar destaressalva apresentada por Francisco de Holanda, torna-se evidente que se quercristianizar um testemunho do antigo culto ao Sol e à Lua neste local, teste-munho esse que consiste na existência, confirmada por vários humanistas eepigrafistas até aos nossos dias, de inscrições que dão conta de ali se sacrificara estas divindades, na época romana, por altas individualidades do estadoromano, pela saúde dos imperadores e pela Eternidade do Império10.

1ª inscrição:SOLI. ET LVNAECEST.ACIDIVSPERENNIS LEG.AUG. PR. PR. PROVINCIAE LVSITANIAE

(Comparar com CIL II 258)

AO SOL E À LUADEDICA CÉSTIO ACÍDIO PERENE,

LEGADO AUGUSTAL,PROPRETOR DA PROVÍNCIA DA LUSITÂNIA

10 Dados os problemas de interpretação destas inscrições, optamos por apresentar o seu texto talqual foi transcrito e interpretado no séc. XVI por Resende, com facsimile e sua tradução porR.M.R.Fernandes, 1996, fl. 39 e p. 99, respectivamente.

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2ª inscrição11:SOLI AETERNO LVNAE PRO AETERNITATE IMPERII. ET SALVTEIMPE. CAE… SEPTIMI SEVERI.AVG. PII.ET IMP. CAES. …M.AVRELI.ANTONINI AVG. PII …CAES.ET IVLIAE AVG. MATRIS. CAES.DRVSVS.VALER.COELIANVS VIATIVSI… AVGVSTORUM CVMV… SVALE … NI … SVA ET Q.IVLIVS. SATVR. QVAL … ET ANTONIVS …

(Comparar com CIL II, 259)

AO SOL ETERNO E À LUAPELA ETERNIDADE DO IMPÉRIOE PELA BOA SAÚDE DO IMPERADORGAIO SEPTÍMIO SEVERO,AUGUSTO E PIO,E DO IMPERADOR CÉSAR MARCO AURÉLIOANTONINO,AUGUSTO, PIO…CÉSAR,E DE JÚLIA AUGUSTA, MÃE DE CÉSAR,DEDICAM DRUSO,VALERIANO CELIANO

… E QUINTO JÚLIO SATURNINO E ANTÓNIO…

11 Uma terceira inscrição, hoje no Museu de Odrinhas, apresentando a primeira linha praticamentetoda destruída, guarda ainda nela as letras ERN (?), onde se tem procurado ler o indício deAETERNO, o que incluiria esta inscrição no mesmo grupo das já referidas.Assim, esta inscrição, quenos dispensamos de aqui transcrever em latim, devido às dificuldades de leitura de um texto jámuito danificado, diria o seguinte, segundo o esforço interpretativo do saudoso Professor ScarlatLambrino: Caio Júlio Celso, filho de Caio, da tribo Quirina…inscrito na distinta classe senatorial pelomesmo (imperador) … enviado …na Dácia (?) Superior (?) … encarregado das reclamações e doregisto de pessoas e bens, administrador da Província da Lusitânia … administrador … administradorde Neápolis, e do Mausoléu em Alexandria, administrador da vigésima parte das heranças nas ProvínciasNarbonense e Aquitânia, curador das estradas Emília e Triunfal, consagrou este monumento (S.Lambrino, Les inscriptions de São Miguel d’Odrinhas, in Bulletin des Études Portugaises et de l’InstitutFrançais au Portugal, Nouvelle Série (Coimbra) 16 (1952) 142-150). A tradução apresentada é aproposta por J. Fontes e F. Almeida, Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas, Catálogo, 4ª ed.,Sintra, 1979, p. 37. Veja-se tamém, a este respeito, M. J. Maciel, A Antiguidade Tardia no AgerOlisiponense, O Mausoléu de Odrinhas, Porto, 1999, pp. 31-35.

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É possível, pelos dados que transmite, datar esta segunda inscrição entreos anos de 201 e 210 d.C., pois nela se referem Imperadores da dinastia dosSeveros, como Septímio Severo, Caracala e a Imperatriz Júlia Domna.

Vários autores de referiram posteriormente a este monumento, sobre-tudo ao citarem as inscrições que nele foram encontradas. Atentos nomeada-mente à colecção epigráfica que, desde o séc. XVI, se vem documentando juntoà Capela de São Miguel de Odrinhas (Sintra), onde André de Rezende localizouhum templo velho, do que ainda sta huma aboboda12, historiadores portuguesese estrangeiros referem continuamente estas inscrições como testemunho doculto romano local ao Sol e à Lua.

James Murphy (1797: 279), viajante inglês que visitou Portugal em 1789e 1790 ainda pôde constatar no terreno marcas deste santuário, segundoescreveu: A cerca de seis milhas a sudoeste da Vila de Sintra, patenteiam-se ves-tígios de um edifício que se supõe ter sido um templo consagrado ao Sol e à Lua.Duarte Nunes de Leão, que publicou uma descrição abreviada de Portugal, diz queaí se encontraram fragmentadas as seguintes duas inscrições (que transcreve).

Pouco ou nada sabemos do fundo cultural indígena do território olisipo-nense e do seu paralelismo com a conotação da Serra de Sintra com osagrado. Para além de povoados pré-romanos na Serra, de que destacamos ode Santa Eufémia (Pereira, 1975: 9-12) há a registar a recente descoberta deum ex-voto em bronze representando um carneiro (Ponte, 1982-83: 89-9413)descoberto no Arraçário, perto da Vila Velha, testemunho descontextualizadode possível culto local. Em 1956 foi encontrada na Madre de Deus, também nasfaldas da Serra de Sintra, uma árula votiva, hoje no Museu de Odrinhas,dedicada a MANDICEVS, divindade indiscutivelmente ibérica, segundo o comen-tário de Mário Cardozo (1958: 376). Mas nada sabemos dos seus atributos(Encarnação, 1975: 233) ou da sua eventual conotação com a sacralidade daSerra de Sintra. Porque aqui foi encontrada, num contexto de romanização, estapequena ara não pode deixar de ser referida como testemunhando a inter-acção e a aculturação entre a religião romana e as religiões indígenas em Sintra:

CASSIA MATER MANDICEO V(otum) S(oluit) L(ibens)

Cássia, Mãe, cumpriu de boa vontade o seu voto a Mandiceu

12 Codex Valentianus, fl. 46v, hoje desaparecido, citado em CIL II, p. XIV, nº. 28 e p. 34, nº. 312.

13 Referência bibliográfica que agradeço à Dra.Teresa Caetano.

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Templo ao Sol e à Lua na Serra de Sintra, segundo Francisco de Holanda, in Segurado (1970) p. 115

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A helenização também surge com evidência neste espaço geográfico,com múltiplos testemunhos materiais e escritos. Se aos Focenses deram onome de Ofiúsa ou Ofiússa ao Cabo da Roca, tal implica uma associação, senão de todo religiosa, pelo menos cultural, à mítica Serpente, entre os Gregosirmã das Górgonas, filha de Ceto e de Fórcis, por sua vez filhos de Geia, a Terra,e de Ponto, o Mar (Grimal, 1992, p. 388). Outros nomes, como Ofíon, gigantetransformado em monte (Grimal, 1992, p. 336), poderão estar na base destenome de origem mítica.

Os romanos adensam e complexificam a sacralidade do lugar, sacrali-dade essa que se estende a um território envolvente, já não só o Promontório,mas também toda a Serra, o rio Tejo e o Mar Oceano.

Com a cristianização surge uma nova topografia que, em certos com-portamentos, define continuidades. A sacralização cristã, na linha do que ojudaísmo fez com o Moriah, o Sinai ou o Carmelo, também elegeu os montescomo lugares de teofania, onde Deus se manifesta como Cristo o fez no MonteTabor. A Serra de Sintra e seus arrabaldes, com a cristianização, pontuou-se deigrejas, capelas e mosteiros, identificáveis sobretudo a partir da Reconquista,mas muitas destas construções revelando, pelas características do culto nelasprestado e pelos lugares onde surgem, uma implantação pré-islâmica. É o casodas Capelas de São Saturnino, Santa Eufémia, São Romão e mesmo da jáafastada da Serra Ermida de São Miguel de Odrinhas, consideradas na épocada Reconquista como heremitagia, pequenos mosteiros no sentido estrito dotermo, ou seja, ermitérios que, juntamente com as igrejas paroquiais de SãoPedro, São Martinho, Santa Maria e São Miguel, definiam a topografia cristã deSintra logo após a tomada desta Vila aos Mouros (Costa, 1980: 103-108). Se acapela de Santa Eufémia da Serra cristianiza um castro, a de São Miguel deOdrinhas dá continuidade a um mausoléu de Villa romana tardia em contextocristão (Maciel, 1999). Quanto aos mosteiros, sabemos que na Lusitânia do séc.IV já se procuravam os montes como lugares de ascese, como o revelamdesignadamente cânones de Concílios hispânicos (Maciel, 1996: 46-49). A suaexistência na Antiguidade Tardia e na época moçárabe explicará o facto de elesjá serem referidos na época da Reconquista.

Com o Renascimento, quando se redescobrem os textos clássicos e sedesenvolve o espírito humanista, o fantástico transforma-se literariamente emmaravilhoso. Camões dá-nos a melhor visão, em Os Lusíadas, deste locusamoenus em que, na realidade, no seu tempo, se transforma a Serra de Sintra:

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E nas serras da Lua conhecidasSojuga a fria Sintra o duro braço,Sintra, onde as Náiades escondidasNas fontes vão fugindo ao doce laçoOnde Amor as enreda brandamenteNas agoas acendendo fogo ardente.

Lus. III, 56.

As estadas da corte e da nobreza em Sintra dão-nos conta deste novoculto da Serra no séc. XVI. Um dos melhores exemplos é o de D. João deCastro, vice-rei das Índias, que escolhe a Penha Verde para as suas horas delazer e pontua a sua paisagem com a já chamada topografia cristã, onde sedestaca a ermida de Nossa Senhora do Monte, por ele mandada fazer paranela vir a ser sepultado, e outras quatro, erigidas pelo seu neto D. Francisco deCastro, respectivamente, a São Brás, São Pedro, São João e Santa Catarina doMonte Sinai (Memórias Paroquiais, 11, 2257-6714). Sabemos também que oConvento dos Capuchos, no alto da Serra, foi construído em 1560 também pordisposição testamentária de D. João de Castro (Brandão, 1924: 531). É igual-mente de referir a decisão desta personagem, respeitada pelos seus descen-dentes, de transformar o espaço da Penha Verde em floresta, substituindo asárvores de fruto por outras silvestres, tudo confluindo para que se mantivesseperene a visão mítica da Serra e da sua envolvência, lugar de encontro dehumanistas portugueses que aqui se dirigiam no séc. XVI, como que levadospor um inconsciente colectivo potenciando contínuas recordações. As Memó-rias Paroquiais de 1758 dizem-nos que no séc. XVIII ainda subsistiam na PenhaVerde referenciais clássicos:

Antes de se entrar na ermida (de Nossa Senhora do Monte), que todaestá rodeada de muros para a parte esquerda, se divisa hum Minotauro, o qual temmenos a cabeça. E mais para diante está uma loba de pedra criando trêsmeninos… (Azevedo, 1982: 161).

E mais adiante referem ali um antigo jardim tendo no meyo huma Estatuade Neptuno, feita de jaspe, que lança água por varias partes (Idem: 162). E ainda:

14 Transcritas por Azevedo, 1982: 161-165.

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Tem três fontes que a enobrecem. A primeira he huma gruta primorosamentelavrada, assim de brutesco, e como de embrexado; nella se vê huma figura de Vénusnua, deitada em hua cama, tudo feito de jaspe, e de obra delicadíssima. Por juntodella corre huma bica de água (Idem : 163).

Rematam assim estas informações sobre a Quinta da Penha Verde, que sedevem ao então Prior de São Martinho de Sintra, Padre Sebastião Nunes Borges:

Além das fontes tem a dita quinta hum jardim de buxo com vários lavores,e nichos aonde estão os retratos de alguns Emperadores Romanos de pedramármore de meio corpo, munto polidos, e bem sinzelados, que não só ornão ojardim, mas também o fazem magestozo (Ibidem).

A mesma atenção aos ecos clássicos da Serra de Sintra manifestaram osPárocos de Santa Maria e de São Pedro de Penaferrim, testemunhando queentão permanecia bem viva na cultura local a importância deste espaço naAntiguidade:

A esta Serra, chamada vulgarmente Serra de Sintra, os mareantes lhechamam Cabo da Rocha (sic) e os antiguos, Promontório, ou Monte da Lua (PadreFrancisco Antunes Monteiro, Idem:176).

He a Serra de Cintra tão particular q. creio ser das mais raras, q. há nomundo. Faz lado oposto ao pormontorio da Lua, servindo de guia aos que navegáono mar occeano (Padre António de Souza Sexas, Idem: 168-169).

Algo que não pode ser também esquecido é um estela indiana queainda hoje se pode ver na Penha Verde, dedicada ao Sol e à Lua, que se pensater sido trazida do Oriente pelo próprio D. João de Castro, como que voltandoa reunir testemunhos do passado comum indo-europeu num lugar que oshumanistas bem sabiam estar intimamente ligado àquele antigo culto astral.

Noutros locais de Sintra podemos referir, até à época romântica, estepontuar dos espaços humanizados com bustos à romana, seres míticosmarinhos em escultura ou em pintura, figuras alegóricas ou até arquitectura aimitar o clássico, exemplos que poderemos ainda hoje ver no Palácio deSeteais, na Quinta Mazziotti, no Palácio da Pena, na Quinta da Regaleira, etc. Maso romantismo busca também em Sintra esta carga cultural de continuidades,que leva Garrett a afirmar:

Cintra, amena estancia,Throno da vecejante primavera,Quem te não ama? Quem em teu recinto

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Uma hora de vida lhe ha corrido,Essa hora esquecerá?

Camões,V

Poderíamos entrar aqui em referências que hoje já são lugares comuns,como a do Glorious Eden de Byron (Child Harold, XVIII), ou a de este novoparaíso, do Visconde de Juromenha (1838, 7) e por aí fora.

Do lugar sagrado ao locus amoenus e deste à paisagem cultural

A classificação contemporânea de Sintra como Património Mundial,dentro da categoria Paisagem Cultural, atribuída pelo Comité do PatrimónioMundial da UNESCO, reunido em Berlim em 06 de Dezembro de 1995, resultada convergência de múltiplos comportamentos culturais que se foram sobre-pondo em entropia através das diferentes épocas históricas. A contemplaçãoda paisagem, o seu reconhecimento e a sua humanização permitiram que umaera transmitisse a outra as suas vivências culturais, aprofundando e enrique-cendo progressivamente a memória histórica na conjugação interactiva dascategorias de espaço e de tempo. Se, em determinado momento, o locus sacer,o lugar sagrado, se revela como locus amoenus, ou seja, como espaço de paz,de descanso e de fruição estética, naturalmente o sagrado ligado à natureza ésubstituído pelo culto da paisagem, transformando-se o dinamismo subjacenteem entropia cultural.

Esta passagem do sagrado ao cenográfico, diríamos assim, lembrando oestilo paisagístico da cena teatral greco-romana, relevando a dimensão estéticada paisagem, não surge como um deus ex machina, repentinamente, mas comoo resultado de um processo lento e por input, sistema de funcionamento emque o actual conceito de feed-back se poderá aplicar razoavelmente. Comefeito, a carga cultural que herdamos do passado resulta não só horizontal-mente da vivência paratáctica de quotidianos, mas também verticalmente dehierarquizações temporais de continuidades.

Pensamos que o título que propusemos para esta reflexão – Do toposclássico à paisagem cultural: Sintra e a sua envolvência na Antiguidade – poderá,

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em conclusão, ser explicitado também como um resumo da nossa exposição:se hoje integramos Sintra no conceito de Paisagem Cultural, uma leitura atentae fundamentada revela-nos que essa classificação resulta da convergência demúltiplos comportamentos, iniciados no dealbar dos tempos, em que o sagradointerage com o profano em sucessivas etapas. Do cabo Ofiúsa ao monteSagrado onde se cultuava oficialmente na época romana o Sol e a Lua, datopografia cristã à desmitificação humanista típica do Renascimento que trans-forma o lugar sagrado em lugar ameno, eis um exemplo de referências que,juntamente com outras, definem a Antiguidade como um tempo determinanteno condicionamento de uma paisagem que, de natural, se tornou humanizada,numa vivência edénica que se adensou ao longo dos tempos.

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RESUMO

Com este artigo pretende-se – paraalém de se abordar de um modogenérico o mito ulisseio fundador dotopos olisiponense e as suasrepercussões no contexto dohumanismo quinhentista de génesenacional – construir um discursoacerca da evolução urbanística doópido de Olisipo, abordando osdiversos momentos da sua história,com particular enfoque no urbanismoproto-romano, do qual se vãoconhecendo já alguns testemunhospúnicos. O cerne deste trabalho,todavia, centra-se na época romana ea partir da reforma augustana,provavelmente encetada comoconsequência da atribuição doestatuto municipal a esta cidade quetomou a designação de Felicitas IuliaOlisipo e a sua evolução ao longo dotempo, realçando-se a análise dosprincipais vestígios arquitectónicose/ou artísticos subsistentes, bem comoo seu desenvolvimento e asvicissitudes históricas que lhe forammodelando o fácies e impuseram umdistinto prospecto, sobretudo naépoca baixo-imperial.

ABSTRACT

This article surveys the myth of thefoundation of Lisbon by Ulysses and itsrepercussions on Portuguese fifteenth-century Humanism. It also maps theurban evolution of Olisipo’s opidum,identifying the various moments of its

history, with particular attention to proto-Roman urbanism, of which some Punic

pieces of evidence have become known.This article focuses, however, in Roman

times especially after the Augustanreform, when the city was given

municipal status and became known asFelicitas Iulia Olisipo. I will analyze its

evolution, highlighting the mainarchitectural and artistic remainders, as

well as its development and thehistorical accidents that shaped it and

imprinted upon it a peculiarconfiguration, especially during the early

empire.

Palavras-chave: Criptopórtico; Foro;Teatro; Circo; Mosaico

Key words: Cryptoportic; Forum;Theatre; Circus; Mosaic

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Por que motivo um arquitecto pode definir belo um certo edifício, umavez que tenha feito corresponder o aspecto exterior à sua ideiainterior? Porque, prescindindo das pedras com que foi construído, oedifício externo não é mais do que aquela ideia interna distribuídana dimensão perceptível da matéria. Unidade indivisa, a formainterna manifesta-se como multiplicidade.

(Plotino, 1.6.3., in Lombardo 2003, 210)

Não se ambiciona com este trabalho operar novas teses acerca dourbanismo ou da arte de Felicitas Iulia Olisipo, mas, antes pelo contrário, pre-tende-se, tão-somente, intentar uma sistematização, recorrendo-se amiúde àHistória, no sentido de melhor se enquadrar os escassos elementos artísticose/ou arquitecturais que subsistem, derivando alguns deles do conhecimentoacumulado ao longo dos séculos e que nos foram legados pelas fontes histó-rico-literárias. Até porque, cidade de muitas cidades, mercê das vicissitudes doshomens, dos tempos e, até mesmo, de impiedosos fenómenos da natureza anossa visão do ópido de Olisipo até à Felicitas Iulia romana, desde a reformaaugustana até à antiguidade tardia, resume-se a uma série de imagens reduzidasque apenas nos permitem obter uma visão muito incompleta e sincopada noque respeita à sua arte, à tipologia da sua arquitectura e sequente integraçãoespacial no acidentado tecido urbano da cidade, o que dificulta sobremaneirao papel do historiador da arte.

Por seu turno, a evolução das ciências históricas e a sua implementaçãomais ou menos sistematizada no terreno (desde, sobretudo, o trabalho doantiquariato dos séculos XVI, XVII e XVIII, passando pelo labor dos olisipógrafos

* Doutoranda em História da Arte da Antiguidade na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa, Portugal

«O ÚLTIMO PORTO DE ULISSES»: história, urbanismo e arte de Felicitas Iulia Olisipo

Maria Teresa Caetano*

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oitocentistas e da primeira metade da centúria seguinte e com o recurso àarqueologia aplicada nas últimas décadas) têm contribuído, de modoinequívoco, para que, hoje, se desfrute de Olisipo uma panorâmica maisconsistente, ainda que bastante generalista e incompleta.Talvez por isso, começaeste estudo com uma abordagem ao mito subjacente à criação do toposolisiponense, desde a sua pseudo fundação pelo lendário Ulisses, o herói gregoque, não só venceu os troianos, mas venceu, igualmente, o medo do Oceanodesconhecido e, navegando para além das colunas de Hércules, abrigou-se nafoz do Tejo onde erigiu o seu ópido que foi também fenício e púnico, mas foisobretudo romano. Felicitas Iulia Olisipo, assim a baptizou Augusto, o primeiroimperador de Roma e, no seguimento de uma política de Estado, reformou ovelho povoado que foi crescendo até ao advento de um mundo novo. As crisesdo século III e as invasões germânicas modificaram-lhe o prospecto, masconservaram-lhe a alma reacomodada às novas realidades, pelo que, quandonos começos do século VIII os árabes a tomaram e, em 1147, quando oscruzados aqui chegaram, todos eles se espantaram com o colorido e a fortunadesta cidade.

1. De Ulisses a Olisipo: o itinerário mitómino de um oppidum na finisterra ocidental

«O astuto capitão Vlysses, inda que na casta Penelope não tinha que temersemelhantes erros, nem porque deixar suas Ilhas, o mar lhe foy tãocontrario, que dando com elle em varias partes, o fez chegar ao estreito deGibraltar, & saindo ao mar Occeano, foy dobrando as prayas de Lusytania,té entrar pella corrente do Tejo, tão namorado de suas agoas, que esquecidoda propria terra, quis fazer natural a em que apportara, que nenhua há porestranha que seja, que o varão prudente não ache accommodada com suanatureza (…) aportou nella Vlysses com alguas embarcações, que as ondasdo mar lhe deixarão ysentas da tempestade, e subindo, como dissemos,pellas claras ondas do Tejo, sayo em terra conuidado (como se pode julgar)do quieto porto, em que tinha as nãos seguras, & da fertilidade, que na terravia, pera refazer os corpos cansados, por tão largas nauegações.Aqui esteueo prudente Capitão descansando muitos dias, no fim dos quais querendoleuantar as uellas para se tornar a Ithaca, achou as uontades de seuscompanheiros tão alheas neste particular da sua, que uendosse com poucoremedio, pêra se tornar só a Grecia, escolheo por menos mal escolher o

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parecer, & desejo dos mais, começandolhe a fundar hua formosa cidade,junto do proprio Tejo (…). Acabada por Vlysses a grande machina dotempo, pos as mãos na obra da cidade, fortificando-a com os melhores, &mais fortes muros, que naquelle tempo se costumauão, repartindo a obrapor varias companhias da gente, pera com a interpollação do trabalho, onão sentissem tanto, deste modo concluiu Vlysses breuemente a suapouoação, dandolhe (como quer Solino) seu proprio nome, do qual sechamou Vlysseia, ou como lhe chama Plinio Olysippo (…). Foy tão grandeo contentamento que Vlysses teue desta pouoação, que esquecida afellicidade, & quietação de seu Reyno, punha todas as suas forças em pros-perar, e engrandecer o que de nouo fundaua: & refazendo as embarcaçõesdestroçadas, se occupauão em pescar no Tejo, a variedade de grandes &sabrosos peixes, que em si cria, de modo, que quanto mais estauão na terra,tanto menos causas se achauão pêra se lembrar da sua» (Brito 1973, 65v-66).

Os mitos assumiram, ao longo dos tempos, características mágico--simbólicas que, para além de agirem como catalisadores sociais e religiosos,foram evoluindo conforme as necessidades próprias das comunidades, queracrescentando novos episódios, quer omitindo partes das diegeses, quer, ainda,criando narrativas complementares, tudo isto de forma a melhor se contextua-lizar igualmente o momento histórico vivenciado pelos seus actores, perpetuan-do-se, assim, na memória colectiva e idiossincrática. Muitas delas, no entanto,foram compostas, ou acabaram, em determinado momento, fixadas, por umaelite letrada que encontrou, também no topos olisiponense, abençoado poruma farta natureza, inesgotável fonte de inspiração, cuja phantasia depressa sesobrepôs à objectividade da razão, metamorfoseando-a em corpóreas certezas.Todavia, ao contrário dos gregos, cuja cosmogonia era bastante complexa e, porvezes, belicosa, os romanos – talvez pela sua origem rústica – apresentavamdurante aqueles tempos remotos um universo divino simples e descomplexa-do, bastamente arreigado à vida campestre e ao ciclo das estações, tendo porisso encontrado o seu grande mito na fundação de Roma, a criação do seutopos. Contudo, após terem estabelecido contactos próximos com o mundohelénico foram-se abeberando da mitologia grega e, ainda que não se mode-lassem completamente a este fenómeno, pois tornaram-se prolíficos na lendahistórica que usaram como um subterfúgio eficiente:

«Partindo de acontecimentos, por vezes até mesmo da topografia, sugeridapor um acidente geográfico, como um lago ou rochedo, ou por ummonumento, como uma estátua, o espírito romano integrou narrativas na

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sua História oficial e transformou-as em acontecimentos de referência quese tornaram modelos de comportamento relativamente à pátria. Assim,elencavam uma série de acontecimentos tidos como históricos mas aomesmo tempo imbuídos de carácter lendário, preenchendo a lacuna mitoló-gica que se faz sentir na cultura romana. Se não aconteceram, poderiammuito bem ter acontecido, para não dizer, deveriam ter acontecido. Naverdade, é mesmo de pragmatismo e de paradigma que se trata.Tudo deveter como objectivo um modelo de acção que deve inspirar todo o bomcidadão romano» (Rodrigues 2005, 14-15).

Foi já desde a antiguidade clássica que se teceram peculiares narrativas,acerca de um oppidum que, localizado muito para além das Colunas deHércules, agiu como um caminho para a periferia do mundo conhecido. Masentão assentando-se orgulhoso, nos limites extremos da ocidentalidade, vivia-sea finisterra e olhava-se a imensidão de um oceano ainda por descobrir. Estefacto, contudo, carreou, devido à excelência da sua geografia, da imponência doseu porto, da abundância de gado e da fertilidade dos seus campos, umaefabulação que encontrou no historiador romano Marco Terêncio Varrão (116--27 a.C.) digno intérprete, quando afirmou, como inquestionável verdadehistórica, que, num monte próximo do ópido de Olisipo, as éguas, fecundadaspelo favónio davam à luz os potros mais velozes que se conheciam, porém,aqueles não viviam mais do que alguns anos (Almeida 1985, 3)1. Para Mendesde Almeida, esta descrição de Olisipo, mais do que se enredar numa lenda,procurou demonstrar a «fama» daquela cidade, ou, como se alonga AiresNascimento, o «epónimo é-lhe atribuído em percurso de evocação e apro-priação e não por razões de fundação; no entanto, por mais objecções que secoloquem relativamente a uma dependência do nome de Lisboa relativamenteao de Ulisses, não é menos certo que, em tempos marcados, a comunidadehumana (…) se reclamou desse nome para se prevalecer de títulos de glória»(Nascimento 2006, 1).

Outros autores antigos retiveram também este fenómeno, como, porexemplo, Plínio-o-Velho (23/24-79 d.C.), que na sua Naturalis Historia, escreveu:«Constat in Lusitania circa Olisiponem oppidum et Tagum amnen equas fauonio

1 Este autor identifica o Monte Tagro com Monsanto, de Monte Santo, nas imediações da cidade deLisboa, ao contrário de outros estudiosos, que fazem coincidir aquela montanha com a Serra deSintra, e com os quais estamos de acordo.

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flante obuersas animalem concipere spiritum, idque partum fieri et gignipernicicissimum ita, sed triennium uitae non execedere» (8, 166, in Guerra 1994,36). Virgílio, no canto XVI, da Ilíada (versos 148-151), mencionou «os velozescavalos Xanto e Balio, conduzidos por Automedonte, foram concebidos dovento Zéfiro, que os apascentava num prado junto do curso do Oceano»; maistarde, já no século IV, o cristão Lactâncio, ao justificar o milagroso nascimentode Jesus, afirmou, como verdade irrefutável, «se todos sabem que não é raroalguns animais conceberem do vento ou das brisas, causará admiração sedissermos que a Virgem concebeu do espírito de Deus, a quem tudo épermitido?» (A Verdadeira Sabedoria, Livro III, in Almeida 1985, 4).Avieno, na suaOra Marítima, redigida por volta de 350 com base num périplo massiliota doséculo VI a.C., menciona o Cabo da Roca e a entrada da imensa baía em quedesagua o Tejo nos seguintes termos: «Depois emerge o promontório deOfiússa. Do cabo Aruio até estes locais dista uma viagem de dois dias». Numapassagem anterior da sua descrição, referiu o «Oceano povoado de monstros»(Avieno 1992, 20) e, aqui aportados, recordamos, uma vez mais, Plínio-o-Velhoquando aludiu ao envio de uma embaixada de olisiponenses ao imperadorTibério, com a notícia de que, numa gruta daquela costa, se avistara um tritãoe, mais ao longe, se tinha visto e escutado o canto agonizante e triste de umaNereida (Plínio-o-Velho, 9,9 in Guerra 1995, 39).

Retornando à questão primordial sobre os textos que atribuem a funda-ção da cidade de Lisboa a Ulisses, sobressaem algumas outras referências, como,a de Gaio Júlio Solino que, no século III, referiu na sua Collectanea rerummemorabilium o «ópido de Olisipo, fundado por Ulisses» e, de épocas maistardias, designadamente da primeira metade do século V, ficou o testemunhode um erudito africano, Marciano Capela. Nas suas Etimologias, Santo Isidoro deSevilha (séculos VI-VII) afirma que «Olisipo deve a Ulisses fundação e nome» (inAlmeida 1985, 10). Para além de algumas outras evocações medievais (cfr., v.g.,Nascimento 2006), destacamos, em 1147, e em contexto da Reconquista cristãda Ulixbona islâmica, a passagem da Carta de Arnulfo a Milão bispo dos Morinos,onde o cruzado afirmou, «conforme contam as histórias dos sarracenos, foiedificada por Ulisses depois da destruição de Tróia e, construída sobre um monte,é pela estructura admirável das suas muralhas e das suas torres, inexpugnávelpor forças humanas» (in Oliveira 1936, 114), pois Arnulfo, ao atribuir talnarrativa aos sarracenos, poderá, de algum modo, indiciar que este mitoodisseico, de remotas origens, como vimos, aliás, perpassou a Antiguidade,

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sobreviveu aos controversos tempos que lhe seguiram e encontrou também oseu próprio espaço na cultura tardo-romana e medieval, pois, na verdade, o talfalso acontecimento, já há muito, se havia, transmudado em incontestado factopelos próprios romanos.

Será, igualmente neste contexto que o cruzado Osberno, na epístolaque comummente lhe tem sido atribuída, ainda que mais recentemente sevenha a identificar como seu autor Arnulfo de Glandeville, referiu «Quo ab Ulixeopidum Ulyxibona conditum creditur», e «In cujus pascuis equae lasciviunt murafecunditate nam aspiratae favoniis, vento concipiunt es postmodum sitientes cummaribus coeunt» (in Oliveira 1936, 59-60). Mas, por outro lado, se ambos oscristãos assumiram estes mitos como verdadeiros, o pseudo-Osberno referiu--se ainda – ao narrar uma prevalência histórica – que, em Sintra, existia «umafonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica;por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que éum estranho» (in Oliveira 1936, 59). Na verdade, num cume do antigo monssacer, subsistem vestígios, junto a uma fonte de águas de boa temperança, deum castro proto-histórico de influências púnicas, que, mais tarde, os romanosperpetuaram tendo eventualmente erigindo no local um templo devotado aoculto das águas – do qual se conhecem, hoje, dois grandes fustes de coluna demármore (Ribeiro 1983, 350)2 – e que, depois, os cristãos renovaram sacrali-

2 A água é fonte da vida, regeneradora, purificadora, ou, tão-somente, a água que sacia a sede etransmuda frágeis caules em troncos vigorosos que tem, desde imemoriais tempos, alimentado ima-ginários colectivos e adquirido virtudes supra-naturais, ou mesmo divinas. Por isso, a «água assumiudesde sempre um papel de grande importância para todas as civilizações, sendo que algumasdesenvolveram mitos e pensamentos filosóficos que a concebiam como origem do Mundo. Noantigo Egipto afirmou-se a cosmogonia heliopolitana e na Grécia a filosofia pré-socrática de Talesde Mileto. A primeira concebia a formação do mundo a partir das ‘águas primordiais – o Noun, deonde emergiu Atoum. O demiurgo ‘Pai dos deuses’ da eneade; a segunda concebia a água comoorigem de tudo, substância primordial do Universo imutável no fluxo de tudo o que existe, «ani-mada por uma força activa, vivifivadora e transformadora’» (Mourão, no prelo). Água que no AntigoTestamento é igualmente fonte da vida, mas também da morte quando devasta e quando ganhapoderes maléficos. As águas da morte castigam os pecadores, como sucedeu com a Primeira Pragado Egipto: «Moisés e Aarão cumpriram a ordem do Senhor. Sob os olhos do Faraó e sob os olhos dosseus servidores,Aarão, levantando a vara, feriu as águas do rio, e todas as águas do rio se transformaramem sangue. Os peixes do rio morreram, as águas do rio ficaram infectadas e os egípcios não as podiambeber. E, em vez de água, só havia sangue por todo o Egipto» (Êxodo 7, 20-21). Na Bíblia patenteiam--se ainda outras passagens relativas a esta temática: «Salvai-me ó Deus, porque as águas quase mesubmergem. Estou-me afundando no abismo profundo, onde não há ponto de apoio; entrei no abismode águas profundas e já as vagas mar cobrem» (Salmos, 69, 2-3); e «Mas os ímpios são como um marencapelado, que não se podem acalmar, cujas ondas revolvem lodo e lama» [Isaías, 57, 20 (BíbliaSagrada — Nova Edição Papal, C. D. Stampley Ent., Inc., ed. 1974)].

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zando o local, ao erguer ali pequena ermida devotada à mártir Eufémia, juntoà própria pegada da santa, «onde rebentou uma fonte cuja água é muitomilagrosa» (Jordam 1874, 14)3. Enquanto noutro cume extremo serrano, sobreagreste e fragoso cume aberto ao mar, uma outra ermida, esta associada àspassadas da burrinha de Nossa Senhora, assumiu na tradição de toada oral oreconhecimento da existência de «água benta» que se poderá ter consumadona erecção, em 1739, de uma fonte dedicada à Virgem da Peninha, feita pelosromeiros vindos de Lisboa (Caetano 1999, 36).

O humanismo luso recuperou magistralmente o mito odisseico, sobre-tudo no contexto da expansão ultramarina, e com base no suposto epónimocom o mítico viajante grego – de quem terão herdado a uirtus –, pois osportugueses foram os únicos capazes de transpor finalmente o «abismo semfim» referido no périplo massaliota, dando novos mundos ao mundo. Por conse-guinte, a hipotipose não se resume aos «muros Vlisseos» da épica camoniana(Camões 1572, c. III, 47v.), mas, ipso facto, surge objectivamente no própriocontexto do antiquariato. Assim, e a mero título exemplificativo, refiram-se osprimordiais escritos de André de Resende inspirados na Geografia de Estrabão,e por isso, legitimados, que contemplou em «Ibi oppidum Olisipo ab Ulysseconditum» (Resende 1790, L. I, 14); de Damião de Góis, in Urbis OlisiponisDescriptio, com primeira edição em 1554, onde se interroga quem terá sido oprimeiro fundador de Lisboa e, prudentemente, contorna a questão, semtodavia a enjeitar, porquanto se lhe reporta nos seguintes termos: «Os escri-tores mais antigos incluem-na, porém, entre as mais antigas cidades de Hispânia.Varrão chama-lhe Olisiponem; Ptolomeu, Oliosiponem; Estrabão dá-lhe o nomede Ulisseam e parece atestar, baseado nas palavras de Asclepíades Mirliano, quefoi fundada por Ulisses (…). Diz até que em Lisboa se encontravam entãopendurados no templo de Minerva determinados objectos, tais como escudos,festões e esporões de navios, alusivos às viagens de Ulisses» (Góis 1988, 34) oucomo, mais tarde, irá repetir frei Bernardo de Brito; e o tratadista Francisco deHolanda, logo no primeiro capítulo Da Fabrica que falece ha Cidade De Lysboa

3 Acerca deste assunto vide também (Ribeiro 1983, 350), reportando-se ainda acerca da antiguidadeda actual fonte de Santa Eufémia que «Castro (1842 359, 2.ª col.) refere que o bispo D. LuísCoutinho, personagem falecido em meados do século XV, se retirou a dada altura para a villa deCintra, a fim de buscar allivio ao seu mal de lepra [já muito adiantado] no uso dos banhos, que hána serra, denominados hoje de St.ª Eufémia; porém, como era seu (mau) hábito, omite Castro afonte onde recolheu (?) tal informação, a qual resulta assim quase totalmente destituída de realvalor documental...».

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(1571), escreveu: «Ulisses, vindo da guerra de Tróia, edificou Lisboa, que foiquase no tempo de Abido rei de Espanha», e acrescenta «quer a fundasseUlisses, quer Hércules Grego, quer outro capitão grego ou cartaginês (por queo certo não se sabe certo)» (Holanda 1571, 4r.-4v.).

Foi, todavia, frei Bernardo de Brito (1569-1617) quem – em contextode domínio filipino – usou o mito de Ulisses como arma política de génesenacionalista, servindo, também, mais tarde, os interesses do Portugal Restaurado,reforçando-se deste modo a identidade nacional (cfr.Alves 1996, 569-574). Porconseguinte, na sua Monarquia Lusitana, dada à estampa em 1597, este autorembrenhou-se numa intrincada teia descritiva, para a qual procurou aindainspiração noutras narrativas de génese antiga. Assim, para além da menção àedificação do templo dedicado a Minerva por Ulisses, a sua deusa protectora,encontrou igualmente inspiração no mito latino do rapto das Sabinas (Pereira1984, 22-32; Montanelli 2006, 14-15), quando afirmou que o rei local, depois depersuadido das suas boas intenções, ofereceu mulheres aos marinheiros gregos,para que a cidade fundada por Ulisses frutificasse no tempo (Brito 1973, 66v.).Importa ainda, nesta breve resenha, referir que esta relação entre o lendárioherói da Odisseia, cuja falsa mimese onomástica entre aquele que combateu evenceu as guerras troianas e o ribeirinho oppidum de Olisipo, na Lusitania oci-dental, se entranhou profundamente neste período tardo-quinhentista numalinguagem alegórica de cariz erudito, provando-se assim a sobranceria lusitanasobre o invasor espanhol.

Este fenómeno ulisseo poderá, de igual forma, ser confirmado através doesforço do capitão Marinho de Azevedo, em obra publicada já em 1652, nãosó em provar a origem do topónimo desta cidade e as «causas que houve parase corromperem os nomes antigos de Lisboa, e ter o que hoje conserua, eoutras etymologias delles» (Azevedo 1652, 155), mas sobretudo demonstrarque a cidade traçada por Ulisses na borda do Tejo foi, de facto, a única erguidapela personagem homérica na Ibéria, contrariando as teses espanholas, queviam em Málaga uma segunda Ulisseia, argumentando que «as tempestadesarrojarão Vlisses ao Oceano, & declara o poeta que foi em noue dias do marde Sicilia ao Atlantico, sem tomar outro porto, senão o nosso: pelo q nestaoccasião, não podia elle fazer fundação na costa de Andaluzia, nem tomar portojunto a Malaga, donde dizem, que fez a Vlisseia por ser do mar Mediterraneo»(Azevedo 1652, 160-161). O capitão, todavia, não nega que Ulisses tenha deixa-do o Tejo e efectuado outras incursões atlânticas, tendo nas suas aventuras

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atingido a costa francesa, a Flandres e a Caledónia e que, inclusive, ultrapassoua linha equinocial e que nesses locais dedicou algumas aras a Minerva e a outrasdivindades «pelo bom sucesso destes descobrimentos os quaes deixaria deproseguir temendo os baixos, bancos & restingas daquelles mares» (Azevedo1652, 158), retornado, por isso, ao porto da sua cidade.

Para estes humanistas, bem como para alguns outros autores coevos,que omitimos por razões óbvias, a atribuição do primeiro traçado de Lisboa aUlisses adquiriu inestimável valor simbólico, inequivocamente associado, emsentido lato, à alegórica predestinação lusitana, pois, só aos descendentes dosemi-deus a História permitiria, um dia, a proeza de unir o Tejo, o Indo e oGanges num único e imenso rio, como constaria na pseudo-epígrafe que onosso frade afirma ter-se descoberto no termo de Sintra, no tempo do reiD. Manuel:

VOLVENTVR SAXA LITERIS ET ORDINE RECTIS,CVM VIDEAS OCCIDENS ORIENTIS OPES,

GANGES, INDVS,TAGVS, ERIT MIRABILE VISV,MERCES COMMVTABIT SVAS VTERQVE SIBI

Ou seja, na tradução do próprio Bernardo de Brito: «quando os ReynosOccidentais virem em si as riquezas do Oriente, se descubrirá esta pedra, &ficarão as letras della direitas, será cousa maravilhosa, ver o rio Ganges, o Indo,& o Tejo, comunicar entre si as riquezas, que cada hum cria» (Brito 1973, 67v.).

2. Do oppidum Olisiponensium a Felicitas Iulia Olisipo

Deixando, por agora, o mito de Ulisses fundador e a sua importância,como vimos, ainda que sumariamente, no contexto da identidade do PortugalModerno – tal como, noutro sentido e, por aqueles mesmos tempos, se foicontextualizando uma simbólica sebastianina – e atentando à etimologia deOlisipo encontramos, hoje, um largo consenso e ainda desconhecendo-se o realsignificado do radical Olis-, que poderá ser «cidade fortificada» ou «colinafortificada» (Ribeiro 1989-90). Mas, no que concerne à terminação em -ipo, estaaponta-nos para uma possível origem ibérica não indo-europeia, talvez túrdula(Silva 1944, 40-41; Maia 1982-83, 97; Alarcão 1983, 68; Id. 1988, 124; Mantas1990ª, 160; Id. 1996, 349), uma vez que integra um grupo de topónimos, o qual,segundo vários especialistas, será próprio do universo orientalizante, com

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numerosos casos observados sobretudo no sul da Península Ibérica (Maia1982-83, 99; Ribeiro 1989-90; Fabião 1993, 145-146). E Torres Ortiz vai aindamais longe, ao afirmar que examinados os «datos de tipo linguístico, se podeafirmar que en la desembocadura de los rios Tajo y Sado existen una serie detoponimos em -ipo que devem ser forzosmente relacionados com laspoblaciones tartessicas delle valle del Guadalquivir» (2005, 205). Apesar destasmenções, e de serem escassos os vestígios materiais associados ao ópido quese assentava, então, no morro do Castelo de São Jorge, muito possivelmente oseu (proto) urbanismo – ao contrário do das citânias nortenhas – ordenava-seem sucessivos alinhamentos de casas rectangulares (Alarcão 1986, 76).Todavia,o nosso conhecimento actual do primitivo povoado é bastante fragmentário enão se afigura ainda totalmente clarificada a ligação entre os vestígios materiaisda I Idade do Ferro que, já naquelas remotas eras se encaminham para umvínculo mediterrânico (Fabião 1992, 143), com os materiais dos séculos VIII-VIa.C. provenientes de Santarém, de Almada e de Lisboa (conforme os indica-dores disponíveis recolhidos sobretudo nas encostas sul e sudoeste do morrodo castelo e imediações da Sé), e a sua interacção com os movimentos colo-niais fenícios, presentes na zona, pelo menos desde o século IX a.C, ou mesmoanteriores.

Naturalmente, tem-se acreditado que a instalação de entrepostos – oumelhor – de colónias fenícias ao longo da fachada ocidental da Península, bemcomo noutros territórios, decorreu de forma pacífica ainda que recentementeWagner – com quem, aliás, estamos de acordo – tenha colocado algumasreservas em relação ao acolhimento pacífico dos indígenas à chegada dosfenícios. Na verdade, Wagner ainda que não refute definitivamente esta hipó-tese, acredita, tal como tem sucedido ao longo da História, que qualquer actocolonizador é, por definição, violento. É violento porque, mesmo que aocupação território não tenha sido ganha à ponta da espada, subsistem outrasmanifestações de força por parte do colonizador, que passam, para além doexercício da autoridade, pela imiscuição num quotidiano sócio-cultural e eco-nómico pré-estabelecido e regulado, quer seja através da eliminação dosopositores ou da sua simples redução à escravatura, quer seja através da des-truição das paisagens e apropriação dos recursos locais, quer seja ainda atravésalteração das relações sociais, inclusive afectando os modelos e hábitos detrabalho (Wagner 2005, 177-192). E aqui aportados lembramos que os fenícioshaviam instalado diversos entrepostos ao longo do «mar interior» e que, junto

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ao estreito de Gibraltar, está atestada a sua presença em Gadir (Cádis), nosudoeste da Península Ibérica, já desde os séculos IX-VIII a.C., de onde, entreoutros produtos, se procederia à redistribuição, designadamente das cerâmicasgregas, ao longo dos principais rios da fachada atlântica, até porque as rotasterrestres eram mais morosas e inseguras (Blot 2002, 75). Consequentemente,não se poderá estranhar que, sendo os semitas excelentes marinheiros,depressa tenham arriscado a enfrentar as turbulentas águas oceânicas eperscrutado, na sua navegação de cabotagem, a costa ocidental da Península,datando possivelmente dessa época o incremento de um longo processo demediterranização do estuário do Tejo e do Sado (Mantas 1996, 345-346)4.Talfenómeno poderá ter tido expressão no âmbito da comercialização deminérios – incluindo o ouro extraído das areias do Tejo que Pompónio Melahaveria de referir, já no século I d.C. (Almeida 1985, 8) – e que, de um modoindirecto, uma vez que as fontes coevas são omissas, nos revele a importânciadeste flúmen e povoados associados como meios privilegiados de comunica-ção, mormente, com as terras do interior, ricas em proveitos variados. E, naverdade, tanto a excelência do sítio, como o facto de as marés se sentiremvários quilómetros rio acima, contribuíram para que, desde cedo, este grandecurso de água se transformasse numa importante via de acesso, conforme otestemunhará, entre outros, os vestígios púnicos encontrados em Santarém e,mais para o interior, na bacia do Mondego (Arruda 1994, 54-55).

O inequívoco desenvolvimento da actividade marítima destes portos(dentre os quais se inclui o da antiga Salacia), mercê também do seu interessepara a economia mediterrânica, contraria, em parte, as teses que defendemestar-se perante um território periférico de simples matriz atlântica, pois, oocidente peninsular foi plenamente integrado «a partir do exterior, na área dosgrandes interesses económicos mediterrânicos, bem representados através daschamadas colonizações fenícia, grega e púnica» (Mantas 1996, 344), os quaisnão se limitaram ao estabelecimento de meras relações comerciais, masassumiram-se, sobretudo, como veículos de miscigenação entre olisiponenses,

4 Para este autor, «Gadir, a que os Romanos chamarão Gades, revelou-se como centro dominante daactividade marítima a ocidente do Estreito de Gibraltar, local de convergência das rotasmediterrânicas e atlânticas, as últimas das quais firmemente controladas pelos gaditanos. Naverdade, a rota africana meridional e a rota para norte ao longo da costa ocidental da Penínsulaconstituíam extensões da área directamente integrada na esfera de influência de Gadir, a qual serepartia pelas margens europeia e africana do Golfo de Cádis».

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fenícios e púnicos. E, nessa mesma continuidade, Luís de Matos lembra que asprimeiras feitorias fenícias e púnicas «propiciaram uma continuidade queresultou na implantação da malha das mais importantes cidades portuguesasno eixo costeiro» (Matos 1996, 331) e, adiante, considera ter existido umacerta oposição entre as comunidades do interior, que subsistiam num esquemade autarcia fundamentada nos territórios adstritos às suas tribos ou clãs, e ascomunidades marítimas ou fluviais, já estruturadas numa lógica de “economiade mercado” e de prestação de serviços, cujos primórdios radicaram numacivilização de marinheiros que, no actual território português, teve início pelomenos no século VIII a.C. Todavia, e apesar do tom lacónico e, por vezes,maçudo que perpassa o roteiro, o facto de referir pormenorizadamente qual amelhor forma de vencer a entrada da barra do Tejo – «A baía, que então seabre amplamente, retrocede e não é de fácil navegação com um só vento: atémeio chega-se impelido pelo vento oeste, a parte restante exige o vento sul»(Avieno 1992, 22) –, permite-nos, por si só, supor que, já naquela época, osfenícios detinham informações pormenorizadas acerca da navegação nestadifícil embocadura, o que, na conjuntura então vigente, só seria possível ganhar--se após longa e aturada experimentação5. E esta civilização odisseica, de carizmarítimo e mercantil, determinaria, de certo modo, a organização territorial,

5 A propósito das difíceis condições da embocadura do Tejo recorde-se, a título de curiosidade umtrecho do texto do pseudo Osberno: «e adiante acha-se um bosque, que na linguagem deles sechama Alcobaça e em volta do qual se estende um vasto ermo que vem até ao castelo de Sintra,distante de Lisboa oito milhas. Como tivéssemos passado a noite na referida ilha, ao outro dia demanhã, muito cedo, fizemo-nos à vela, navegando prosperamente, até que, quase junto à foz do rioTejo, o vento que soprava dos montes de Sintra açoutou os navios com tão grande tempestade,que afundou uma parte dos batéis com a sua tripulação. O temporal durou até à entrada do portodo rio Tejo.Mas eis que, ao entrarmos aí, observámos no céu um prodigioso sinal. Foi o caso de vermos umasgrandes nuvens brancas, das bandas da Gália, e que nos tinham acompanhado, irem ao encontrode outras grandes nuvens negras que vinham do continente e, como exércitos em linha de batalha,depois que juntaram as suas alas esquerdas, lutarem entre si com fogosa impetuosidade. Umas, àmaneira de infantaria ligeira, à direita e à esquerda, davam a impressão de provocar o combate;outras a de envolverem as restantes, como se procurassem a entrada; algumas penetravam nasoutras, e, uma vez entradas, esvaneciam-nas como fumo; umas eram levadas para cima, outras parabaixo, ora parecendo tocar as águas, ora perdendo-se de vista nas alturas. Quando finalmente,depois de varrer toda a impureza do ar, deixando atrás de si um azul puríssimo, e de ter repelidoas que tinham vindo do continente, a grande nuvem ficou só como vencedora levando diante desi a presa, vimo-la retirar-se para junto da cidade, já desvanecidas todas as mais, ou reduzidas apequenos farrapos as poucas que ficaram. Então entramos de clamar. “Venceu a nossa nuvem! Foidispersado o poder dos inimigos e estão confundidos, porque o Senhor os dissipará”. E assimacabou o abalo do temporal. Pouco tempo depois, cerca da hora décima do dia, chegámos entãoà cidade, não muito distante da foz do Tejo» (in Oliveira 1936, 57-58).

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porquanto a natureza pré-urbana destes entrepostos agiu como embrião dascidades futuras, cujos contactos – e eventual domínio das terras do interior –terá promovido a construção, ainda que incipiente, de uma rede de estradasque estaria «já bastante avançada quando Amílcar e Aníbal Barca se propu-seram unificar, a partir de 238 a.C., os domínios de Cartago na Península»(Matos 1996, 334). Pode-se, igualmente, considerar que nestes embarcadoiros,pelo menos desde o I milénio a.C., se desenvolvia profícua actividade comerciale social eventualmente administrada pelos líderes indígenas e, apesar de desco-nhecermos os métodos adoptados, era, decerto, bem mais eficaz do que olongo, penoso e arriscado caminho terrestre.

Neste contexto, e conjugando as informações literárias com os elemen-tos entretanto exumados pela arqueologia, teremos de considerar que as in-fluências orientalizantes terão arribado ao nosso litoral em época mais recuadado que normalmente se supunha. De facto, as intervenções arqueológicas,levadas a cabo nos finais do século passado, em pleno tecido urbano da capitalpermitiram obter uma percepção mais clara do fenómeno que temos vindo adescrever, porquanto no claustro da Sé se pôs a descoberto uma lixeira onde,entre materiais diversificados, abundavam os fenícios, cuja datação se pode cir-cunscrever aos séculos VIII-VII a.C. Neste mesmo sentido, se encaminham asconclusões extraídas da escavação efectuada na sede do Millenium bcp, emplena Baixa Pombalina, porquanto os vestígios descobertos se integram nomesmo aro cronológico, o que poderá reflectir, talvez, a partir dessa época, umaintensificação dos contactos comerciais6. Mais tarde, Cartago (colónia feníciafundada em 814 a.C.) terá passado a controlar o comércio marítimo, sobretudona pars occidentalis do mar interior, incluindo o sudoeste e a fachada ocidentalda Península Ibérica, ainda que estes territórios estivessem vinculados a Gadir.Por outro lado, a queda de Tiro, no século V a.C., ocasionou o «declínio de umarota comercial vinda dos confins do Mediterrâneo» (Blot 2002, 80), e,consequentemente, Cartago alargou, de modo continuado e assaz eficiente, asua influência a todo o Mediterrâneo, transaccionando, inclusive, cerâmicasáticas, cuja presença, entre outros, de fragmentos cerâmicos púnicos e orientais,

6 Por esta altura, na fachada atlântica e a par de Olisipo, Alcácer do Sal seria também um importantepovoado com vestígios fenícios, tendo-se, inclusive, detectado no castelo, restos de construção deadobe assentes em alicerces de pedra e «num nível do século IV a.C. restos de casas de paredescaiadas e fragmentos de cerâmica ática» (Mantas 1996, 346). Sobre os povoados romanos onde serecolheram igualmente vestígios fenícios e púnicos veja-se, grosso modo, Matos (1996, 331-338).

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está atestada, não só no litoral da Península Ibérica, mas também no seuhinterland, onde se recolheram objectos do chamado período orientalizante(Maia 1982-83, 98; Blot 2002, 80).

Enquanto isso, no território olisiponense e nos seus limites mais próxi-mos encontraram-se vestígios, alguns deles datados do século IV a.C.7. E poderáter sido, igualmente neste evo, que os púnicos – provavelmente através da suaautonomizada colónia de Gadir – terão também reforçando a sua presença nosentrepostos atlânticos. Por conseguinte, edificaram nas areias ribeirinhas doOppidum Olisiponensium, um núcleo urbano ibero-púnico, possivelmente desti-nado à fixação de uma colónia permanente, cujas estruturas descobertas noNúcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, datáveis entre o século V e IIIa.C., incluem os primeiros vestígios de edificações daquela época, designada-mente um forno para cozedura de cerâmica e, de planta rectangular, conserva--se importante testemunho da arquitectura pré-romana. Trata-se do soco depedra ligado por argila de uma habitação, sobre o qual assentariam os caniçosrebocados com barro endurecido pela acção do fogo e a cobertura, eventual-mente seria de colmo; no interior, com pavimento de terra, destaca-se umalareira central, formada por seixos rolados (Amaro 1995, 11-14); estas habita-ções deveriam dispor-se em banda, tal como a hipótese sugerida por Alarcãorelativamente ao oppidum sobranceiro. Foi igualmente neste núcleo arqueo-lógico da Baixa pombalina que se recolheram abundantes cerâmicas coevas,usadas no fabrico e transporte do garum, que os semitas apreciavam comoiguaria, destacando-se, na face interior fragmento cerâmico, de engobe brancoe bandas polidas ao torno, a gravação de um desenho ingénuo de um barco deproa e popa elevadas e mastro central, assim como, num suporte para apoiode ânfora de cerâmica, similar à já descrita, a dupla marca de oleiro aplicadaatravés de “carimbo”, representando um equídeo, tirado de perfil, muito estili-zado (Amaro 1995, 11).

Na verdade, os traçados proto-urbanos destes povoados, sobretudo nolitoral, entre os finais do século II e inícios do I a.C, revelam implantaçõesestratégicas, no sentido de melhor explorar os recursos marítimos e fluviais,

7 Na Quinta do Almaraz (Almada), em Pedrada e Cacilhas, no Moinho da Atalaia (Amadora), emOutorela, Oeiras (Ribeiro 1989-90), um jarro de bronze de Torres Vedras e, em Santa Eufémia daSerra (Sintra), recolheu-se, num nível arqueológico intacto, uma conta de vidro, datável do séculoIV a.C., com toda a probabilidade, proveniente do Mediterrâneo oriental (Marques 1982-83, 84;Fabião 1992, 144; Ribeiro 1989-90).

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incluindo o comércio e a navegação por cabotagem ou fluvial. Por conseguinte,terá sido a partir destes ambientes indígenas, que caracterizaram, aliás, a últimafase da Proto-História em Portugal, que os romanos, após a expulsão dos púni-cos, tenham aproveitado e remodelado, os espaços pré-existentes potenciandoo seu desenvolvimento económico, como parece ter sucedido em Ossonoba,Myrtilis, Salacia e Olisipo (Blot 2002, 83-84).

Com o início da II Guerra Púnica, em 218 a.C., a situação político--estratégica da Península Ibérica, de certo modo favorável aos romanos, fran-queou-lhes parte do sudoeste peninsular aos seus exércitos.Todavia, e apesarde a ameaça romana se encontrar no extremo oposto da Península Ibérica, oscartagineses consideravam o Oppidum Olisiponensium e território adjacentesuficientemente importante (Mantas 1990ª, 160) para ali manterem estacio-nado, em 210 a.C., o exército de Asdrúbal, filho de Giscão, conforme relataPolíbio quando se refere à conquista de Cartagena por Públio Cornélio Cipião(Maia 1982-83, 100 e Matos 1996, 335). Neste contexto, os cartagineses terãoassumido que, ao proteger militarmente a desembocadura do Tejo, estariam asalvaguardar o interior de eventuais incursões romanas, fluviais ou terrestres.Todavia, após a conquista de Cádis, os púnicos foram definitivamente expulsosda Península Ibérica pelos romanos, em 206 a.C., deixando espaço para aefectiva ocupação territorial protagonizada por longas, sangrentas e, muitasvezes, dramáticas batalhas pela posse da Hispania. Mas, neste contexto deverão,de algum modo, excluir-se as comunidades já mediterranizadas, como sejam asde génese cultural túrdula, que habitavam, então, a faixa litoral entre o Tejo e oDouro (Matos 1996, 355)8, as quais, talvez por via de antigas ligações comerciaiscom Roma, terão aceite com alguma complacência – e provavelmente segundoo modelo teórico proposto por Wagner (cfr., v.g., 2005) – o domínio romano,ainda que Luís de Matos defenda que Olisipo apenas se integrou plenamente naHistória Romana, depois da conquista e domínio itálico do Alentejo (ou seja,desde 202 a.C.), facto que contraria o nosso próprio entendimento, uma vezque cremos que o processo de romanização se terá iniciado antes da

8 Para Maia (1982-83, 100), «a região de Olisippo e toda a faixa litoral que daqui se estendia até aoDouro, pertenceria a uma cultura túrdula ocidental; porém, ao interpretarmos o texto de Políbio,considerámos que o autor segue ali um princípio similar ao que, mais tarde, irá presidir àgeneralização do topónimo Lusitania a toda a província augustea, ou seja, o facto de os Lusitanosserem, sob a óptica romana, o povo mais importante que habitava a região cistagana. Em Políbio,Lusitania significará pois a margem norte do Tejo, território onde o povo mais poderoso, sob oponto de vista militar, era efectivamente o lusitano».

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ocupação efectiva do território, mercê, sobretudo, do estabelecimento decontactos comerciais (Caetano 2007, 54; no seguimento, aliás, do queafirmaram Sousa 1996, 50 e Blot 2002, 80). Todavia, a primeira referênciaexplícita sobre a Olisipo “romana” consiste num pequeno trecho de Estrabão ea este respeito, vários investigadores atribuem, no âmbito das guerras contra oslusitanos9, o amuralhamento deste ópido em 138 a.C., a Decimus Iunius Brutus(cfr., v.g., Alarcão 1988, 22; Maia 1982-83, 102; Matos 1996, 335; e Mantas 1990ª,160). Todavia, Justino Maciel (1994, 33-34) propõe uma nova leitura do textodo geógrafo grego que nos parece mais consentânea com o facto relatado:

«Se aqui a palavra potamovs, sem qualquer dúvida se refere ao rio Tejo, apalavra rjei`qron também significa corrente de água, ribeiro ou até leito dorio. Se a tradução nas margens, na ribeira ou junto do rio nos parececorrecta, tendo em conta a palavra grega utilizada, uma interpretação maisacurada leva a apresentar a hipótese de Strabo se referir mesmo às margensdos esteiros do Tejo junto de Olisipo. Esta ideia é corroborada pelo verboque exprime a acção do conquistador galaico neste local.Trata-se do verboejpiteicivzw, que significa levantar uma fortificação ou campo amuralhadocontra ou diante de qualquer coisa. Se o autor quisesse expressar a ideia derodear de muralhas ou fortificar, teria utilizado o verbo simples teicivzw, enão com o reforço da preposição com acusativo, caso em que nos apareceo termo Olisipo (th;n * jOlsipw`na). Ou seja, uma interpretação objectivado texto leva-nos a concluir que Iunius Brutus não fortificou Lisboa, mas,antes, levantou um castrum frente ao oppidum já existente na colina, sendoassim para ele mais fácil o controlo do porto e o acesso ao rio, objectivofundamental na acção de conquista da Lusitania».

Este terá sido, na realidade, o primeiro «acto de romanização» in situ,subjacente ao proto-urbanismo do oppidum, ou melhor, nas suas imediações,junto à margem dos esteiros do rio, muito provavelmente perto das actuaisigrejas de Santo António e da Madalena pois, para este estudioso, a Geographia

9 Para Mantas (1996, 154), «a Lusitânia não correspondia a um território homogéneo à data dachegada dos romanos, ao contrário de territórios como o do Egipto com fronteiras perfeitamentedefinidas. No início do século II a.C. o termo Lusitânia, mais que referir uma área geográfica bemdefinida e ocupada por um único povo, correspondia a um conceito geoestratégico, em grandeparte determinado pela importância da resistência lusitana à conquista romana, como Estrabãoclaramente referiu. Os Lusitanos constituíram um grupo de populi, sendo o nome utilizado comoum colectivo pelos Romanos».

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não se reportará à fortificação do ópido, e não nos esqueçamos que asmenções a Olisipo aludem quase sempre ao oppidum, indiciando estar-se jáperante um espaço fortificado, ainda que de acordo com os cânones militaresda época e, está claro, que o objectivo de Bruto seria o de controlar o portoe a navegação no Tejo, levando também provisões e reforços até Moron – hojeidentificada com Chãos de Alpompé – onde permaneceria estacionada a frentedo seu exército (Maciel 1995, 79). Seja como for, existem suficientes exemplosde acampamentos militares romanos, os castra, que com o decorrer do tempoe sequente perda de valor estratégico, se transformaram em centros urbanos,mantendo as muralhas num contexto honorífico e contribuindo decisivamentepara a introdução de um urbanismo de cariz helenístico e etrusco-romano.Para Luís de Matos, no entanto esta hipótese – que se subjaz na perspectiva deum oppidum já plenamente pacificado e para cujos habitantes os romanos nãoeram, stricto sensu, tidos como o povo invasor – aponta algumas questões emsentido diverso: primeiro, porque a área considerada não apresenta a amplitudenecessária; segundo, porque a arqueologia tem posto a descoberto vestígios daocupação fabril (desde o século IV a.C. até à Idade Média).Assim, a considerar--se esta hipótese, o castrum de Décimo Júnio Bruto assentaria entre o alto deSão Francisco e o actual Chiado, zona formada por um esporão com defesasnaturais, designadamente as escarpas sobre o esteiro e sobre o rio, quer pelofundo do vale que sobe desde o Cais do Sodré, onde se forma uma elevaçãoque domina o porto e o acesso ao mar, dotando-o de grandes facilidades no querespeita à defesa, tendo sido este, no século XIV, o conceito militar que preva-leceu aquando do levantamento da Muralha Fernandina (Matos 1996, 338).

Muitos dos outros povos que constituíam a multifacetada trama popula-cional da Ibéria, sobretudo a de feição rústica e agro-pastoril que habitava nasmontanhas e digladiava as legiões em investidas militares não convencionais,eram de génese tribal e foram ferozes opositores à invasão dos itálicos, dificul-tando, sobremaneira, o progresso dos exércitos romanos, tendo perdurado, atéhoje, na memória colectiva – como figura histórica, mas também como mitofundacional de Portugal – a resistência de Viriato, um chefe lusitano que con-gregou em seu redor vários clãs e infligiu numerosas derrotas aos romanos.

Mais de um século depois de Roma ter iniciado a conquista da PenínsulaIbérica – e depois dos conturbados tempos da guerra civil, entre 44 e 31 a.C.,que findou com as vitórias de Octaviano em Actium e depois em Alexandria –,o Império encontrava-se debilitado e internamente instável. E apesar de se

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terem celebrado em Roma cinco vitórias sobre a Hispania (Martin 1999, 21),neste território parcialmente pacificado viçavam, afinal, rebeliões e os romanosnão dominavam ainda todo o território. Relembre-se que o noroeste era habi-tado pelos cântabros, pelos asturianos e pelos galegos, todos eles populi guer-reiros ciosos da sua independência que se resguardavam nas montanhas impe-netráveis e, além de alarmarem as legiões romanas, lançavam-se, frequente-mente, em pilhagens junto dos vaceus, dos autrígones e outras gentes, causandogrande insegurança, com a qual Octaviano, herdeiro de Júlio César e membroda sua gens, não podia pactuar. Até porque de acordo com os seus princípiosuniversais, e para além da reorganização do Império, pretendia também«apresentar-se como o novo fundador de Roma, isto é, como aquele que voltaa colocar o mundo romano em limites precisos e invioláveis, porque sagrados,nos limites do orbis terrarum, de ‘todo o universo’, como especifica o capítulo 3do seu Res Gestae» (Martin 1999, 19).Terá sido, pois, neste contexto regene-rador que Caesar diui filius, Augusto desde 27 a.C., soube propagandear, não sóatravés de uma política niveladora de matriz romana, mas aplicando também –numa perspectiva religiosa – o princípio da figura do imperador divinizado(ainda que, em vida, tenha recusado tal estatuto), prontamente aclamada pelosseus legionários, pois o imperador era o chefe supremo do exército e desem-penhava igualmente o cargo de Pontifex Maximus, «assumindo-se como cabeçado paganismo greco-romano» (Mantas, 2002, 111). Será, portanto, igualmentenesta óptica que se terá de considerar o empenho pessoal de Augusto naconquista do noroeste peninsular, quando em 27 a.C. se estabeleceu emTarraco, entregando o comando das legiões a Antístio Veto e a Públio Carísio,os quais, depois de dois anos de batalhas, derrotaram após o cerco seguido deassalto a Mons Medullius, os Ástures, pondo um ponto final na conquista daPenínsula Ibérica (cfr., v.g., Alarcão 1988).

Finda a guerra, e entre a atribuição de benesses, privilégios e concessãode estatutos de direito latino a diversas comunidades que constituíam o cobre-jão retalhado de um imenso domínio, de cuja auctoritas foi o único detentor,Augusto tratou – prosseguindo um ideário político muito bem definido – nãosó da reorganização territorial, mas também da promoção de um programa dereformas urbanas, dando assim continuidade a um processo de romanização,de forma a se atingir uma romanidade plena, a qual, como vimos noutro lugar,não passou, também ela, de um mito (Caetano 2007, 55), como aliás se podeigualmente depreender das palavras de Vasco Gil Mantas:

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«Noutros aspectos, mesmo ideológicos, as semelhanças entre os padrõesindígenas e certos conceitos romanos típicos de sociedades da Idade doFerro, facilitaram um processo de aculturação que, sem eliminar o predomí-nio incontestável do modelo civilizacional dominante, permitiram o desenvol-vimento de intercâmbios relevantes e facilitaram um processo de integraçãopragmático, desenvolvido ao longo de vários séculos. É a esse processo quedevemos chamar romanização.Quando dizemos integração não estamos a defender que as realidadesindígenas desapareceram, não foi assim, nem a política romana foi nessesentido. Aliás não podemos esquecer que a sociedade romana também semodificou e as realidades do Baixo Império são distintas das que caracteri-zaram o Alto Império, não deixando aquelas de contribuir para acelerar umprocesso de fusão cultural que nos primeiros tempos do Império dificil-mente poderiam desenvolver» (Mantas 1990, 158).

Será, pois, neste contexto que teremos que enquadrar o caso do oppidumOlisiponensium o qual, segundo parece, durante as guerras civis, terá aderido aopartido de César (Mantas 1990, 161)10. Nesta perspectiva, Olisipo terá, segundodiversos autores, recebido, em época ainda não determinada, a condição deoppidum ciuium romanorum (Alarcão 1994, 58; Mantas 1994, 71; e Ribeiro 1994,76-77), apesar de António Marques Faria não encontrar consistência nesta tese,ao considerar que aquela expressão «empregue amiúde por Plínio sem granderigor jurídico, corresponde, noutro tipo de documentação, designadamente nasemissões monetárias, ao termo técnico ‘municipium’» (Faria 2002, 175). Aindaassim é comummente aceite – e documentalmente comprovado – que a esteoppidum foi atribuído o estatuto municipal, adoptando, então, os cognomentaFelicitas Iulia. A data deste facto, no entanto, não se encontra completamenteesclarecida, oscilando, segundo certos posicionamentos tradicionais, entre umadoação cesariana, ou, de acordo com opiniões mais recentes e críticas, que se

10 Outros autores, designadamente Luís de Matos, interpretam o tratamento de excepção dado aOlisipo como benesse pela aceitação do domínio romano até porque não consta que o ópido«tenha oferecido resistência, tudo indicando, antes pelo contrário, que colaborou com o invasor,possivelmente uma das razões do tratamento de excepção que lhe vai ser conferido posterior-mente» (Matos 1994, 36). Aqui aportados, e tendo já considerado, noutro lugar, que o processode romanização terá precedido o domínio físico do território como justificação para a aceitaçãopacífica da presença romana, a nossa opinião não é, de todo, consentânea com a de Matos, atéporque nos parece excessivo o hiato, de cerca de um século, que medeia a chegada de DécimoJúnio Bruto e a outorga do estatuto municipal pelo que, nesta perspectiva, parece-nos, pois, maiscredível a teoria apontada por Vasco Gil Mantas.

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trata, afinal, de uma promoção de Augusto11, alicerçando-se também esta últimahipótese no facto de, em termos peninsulares, a inscrição na tribo Galeria terfuncionado como uma característica dos municípios augustanos (Mantas 1994,n. 11)12. Mas, seja como for, a concessão do estatuto de Município de DireitoRomano, permitiu a Olisipo manter determinada autonomia administrativa faceà sede conventual – com a qual terá chegado, inclusive, a partilhar a adminis-tração do território13 –, tendo os seus cidadãos adquirido direitos similares aosdos habitantes da própria cidade de Roma.

3. A reforma augustana de Felicitas Iulia Olisipo

No exercício da política estruturante por si delineada, tendente àconsolidação romana nos territórios – ou seja, a romanização –, Augusto inter-veio igualmente na organização das províncias, processo que não se concre-tizou sem algumas hesitações, que se reflectem na incorporação de regiõesdistintas numa unidade artificial (Mantas 1990ª, 154). Apesar disso, a Lusitânia(cujos limites territoriais foram definidos entre 16 e 13 a.C. ou entre 13 e 7a.C.) foi considerada, juntamente com a Tarraconense, como província imperial,mas esta sofreria, ao longo dos tempos, adaptações, quer derivadas da reorga-nização dos seus limites, quer ocasionada pela criação ou extinção de outras

11 De entre os autores que atribuem a elevação de Olisipo a município por César, veja-se, v.g.,Vasconcellos 1913, 144-145; Lambrino 1953, 32 e 44; Ribeiro 1982-83, 161; e, até certo ponto –uma vez que balança entre César e Octaviano –, Alarcão 1983, 68; Id. 1988, 48; Id., 1994, 58. E,acreditando numa promoção augustana, cite-se, v.g., Fabião 1993, 235; Mantas 1994, 74; e, de novo,Ribeiro 1994, 77, que se inclina, agora, para a hipótese já sugerida por Fabião, loc. et. op. cit.

12 Refira-se, ainda no âmbito desta problemática, que o nome Iulia não deverá ser encarado comestranheza, uma vez que foi apenas quando assumiu o título imperial que Octaviano adoptou ocognome de Augusto, contudo, as suas realizações anteriores poderiam conservar tal epíteto. Noentanto, a política administrativa de Augusto, como recorda Carlos Fabião (1993, 235) teráprolongado, para além de 27 a.C., a sua manutenção, pelo que, neste contexto, é manifestamentedifícil destrinçar os actos administrativos – idealizados e/ou concretizados – por Júlio César,daqueles que o primeiro imperador promoveu.

13 Sobre esta matéria, cfr. v.g., Alarcão 1988a, 125, que afirma: «Não sendo capital de “conventus” (estaficava em Scallabis), “Olisipo” foi certamente cidade mais próspera. A epigrafia, recolhida por Vieirada Silva, é abundante; a par de numerosas inscrições funerárias, devemos salientar as honoríficas aimperadores. Estas não seriam talvez em tão grande número numa cidade que não fosse sede dealguns serviços administrativos».

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províncias (Martin 1999, 96-97). Mas, se a problemática subjacente à adminis-tração territorial – decerto motivada pelo maior ou menor grau de penetraçãoromana na Ibéria ao longo do tempo – se nos afigura hoje, por vezes, algoconfusa, não temos, por outro lado, quaisquer dúvidas de que Augusto aplicou,nas mais diversas áreas, uma política sustentada e coerente, visando, tambémem grande parte, um claro objectivo ideológico, o de expurgar o Império domodelo helénico que caracterizara a República (Dias 2002, 93), porquanto:«institui-se o que o princeps pretende que seja uma Pax Augusta.Aí promove-sea erudição, através de homens como Polião e Mecenas, e florescem nomescomo Vitrúvio, Tito Lívio, o grego Dionísio de Halicarnasso, Horácio, Ovídio eVirgílio, a quem ficará a dever a maior obra de propaganda do seu principadoe que justificará o epíteto de ‘segundo nascimento de Roma’: a Eneida. Aísurgem temas como a Idade de Ouro, a missão civilizadora dos Romanos, odireito à hegemonia, tudo sob o comando do grande Augusto» (Rodrigues2005, 326).

No que concerne ao processo de reurbanização, não só em Itália, masem particular nas províncias, não poderemos, por conseguinte, esquecerVitrúvio – que redigiu e dedicou ao imperador um pormenorizado tratado de

Sileno do Teatro Romano de Lisboa. Museu Nacional de Arqueologia. © Fotografia de J. Maciel.

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arquitectura –, poderá ter sido o teórico modelar dos fundamentos básicoscaracterizadores da planificação das novas cidades14, algumas delineadas exnouo, como Bracara Augusta e Emerita Augusta; outras, como Pax Iulia, derivaramde acampamentos romanos, obedecendo igualmente ao modelo ortogonal(Martin 1999, 187 e, v.g., Lopes 2003); e outro exemplo, ainda, o da ciuitas deConimbriga, que sofreu igualmente no âmbito do grandioso plano deromanização, profunda renovação urbanística, apesar de só ter recebido oestatuto municipal na época dos flávios (Alarcão 1988, 46). Também por issonão nos repugna a ideia de que, em Olisipo, uma cidade, desde há muito, sobinfluências mediterrânicas e sob o domínio romano, se tivesse já delineado umurbanismo de matriz itálica, como, aliás, o parece comprovar o achamento dealgumas estruturas tardo-republicanas, ou mesmo anteriores. Designadamente,a notícia, datada de 1922, de na Rua das Canastras se ter localizado uma rampade cais normal, eventualmente de construção romana, ainda que JacintaBugalhão (2001, 58-59), considere difícil tal classificação e coloque a hipótesede se tratar de um ponto de acostagem para embarcações de pequeno emédio calado, que eventualmente teriam condições para navegar ao longo doesteiro, servindo a indústria conserveira, mormente descarregando peixe, sal eânforas e carregando os produtos já transformados e devidamenteacondicionados15. Estava-se, pois, perante uma zona rica em águas, algumasdelas com características medicinais, o que, de certo modo, terá evidenciado afundação, ainda no período tardo-republicano, das chamadas Termas dos

14 «Os romanos, ainda que não tivessem desenvolvido qualquer teoria que contemplasse a águacomo princípio da existência, embora o poeta Virgílio se tivesse referido ao Oceano como “pai detudo que há”, consideravam-na um dos pilares da sua civilização. Com efeito, à semelhança do queacontecia com as cidades gregas, nenhuma cidade romana foi erigida em terrenos desprovidos deágua. Para além da sobrevivência humana, animal e agrícola, a água garantia a higiene e assumia umtriplo papel terapêutico, relaxante e lúdico, fazendo parte integrante da vida quotidiana e de certosrituais romanos (...). Com base nestes aspectos desenvolveu-se uma verdadeira tecnologiahidráulica que beneficiou algumas das estruturas arquitectónicas mais características da cidaderomana e às quais Frontino e Vitrúvio dedicaram importantes tratados: os aquedutos, as barragens,as cisternas, reservatórios e tanques, as fontes, as pontes, os balnea, os impluuia, as infraestruturasdos teatros destinadas às naumáquias, condutas subterrâneas, cloacas, esgotos, canalizações,torneiras» (Mourão, no prelo).

15 Na sondagem efectuada no Largo de São Rafael e na Rua da Judiaria detectaram-se algunsafloramentos rochosos os quais indiciam que ali terá existido um curso de água – junto de umtroço de muralha romana (e depois mulçumana) –, cuja memória se manteve fossilizada nourbanismo medieval, ao designar-se Rua da Regueira (Pimenta e al. 2005, 317).

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Cássios, assim baptizados por ali se ter descoberto na inscrição pintada emtijolo, entretanto desaparecida, mas que atribuia a sua fundação aos irmãosQuinto Cássio Longino e Lúcio Cássio, por volta de 49 a.C. (Silva 1944, 29,48-50 e 114-115, n.º 22). Este estabelecimento de banhos foi redescoberto em1771, quando se procedia à abertura de caboucos para a construção doPalácio Penafiel ou do Correio-Mor. Destacando-se, por outro lado, a des-coberta coeva de robustos alicerces de um edifício público, no Largo de SantoAntónio à Sé. Na verdade, os exemplos referidos integraram-se e mantiveram--se – mesmo após a renovação urbana de Augusto – em pleno perímetro dacidade romana.

Será, pois, neste contexto, e sem olvidar o novo estatuto político-admi-nistrativo de Felicitas Iulia Olisipo que se lhe exigia um prospecto condicente,pelo que o primeiro imperador terá encetado uma intensa renovação urbanís-tica desta cidade portuária. Saliente-se, ainda, que a remodelação de finais doséculo I a.C.-inícios do seguinte terá, numa fase primeva, infundido na partebaixa da urbe, no local onde, cerca de cem antes antes, Décimo Júnio Brutoerigira o seu castrum. O projecto delineado, apesar de se integrar nos princípioscomuns do urbanismo latino de matriz militar etrusca achou-se condicionado,não só pela própria orografia do local, mas igualmente pela pré-existência doanciano ópido. Este facto, de per si, não terá conflituado com a amplitude dareforma, ainda que tenha, decerto, regulado a sua implementação, porquantoos resquícios viários conhecidos apontam para a efectivação do clássico sistemaortogonal, assente – como se sabe – no cardo e no decumanus. Porém, estasduas vias perpendiculares, em cujo ponto de intercepção se costumava definira restante estrutura espacial da cidade, terão encontrado, pelas razões citadas,alguns condicionalismos, em particular na abertura dos traçados secundários.Logicamente, nas areias junto ao rio e ao longo do seu afluente e já no perí-metro da cidade, localizava-se a zona industrial (cfr., v.g., Morel 1991, 179-202),especialmente vocacionada para o fabrico do garum – uma especialidade piscí-cola muito apreciada desde os tempos fenícios – e que se havia tornado numadas maiores riquezas deste lugar. E partindo do pressuposto de que se notavajá a consolidação precoce do urbanismo de feição romana, este ter-se-iadesenvolvido primeiro na zona baixa, estendendo-se, depois, pela colina recon-figurando ou interagindo com o urbanismo pré-existente, de um modo similarao sucedido noutros locais, tal-qualmente os casos de Scallabis, Conimbriga eEburobrittium.

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O forum, pólo agremiado da vida urbana, era formado por uma grandepraça, impondo-se, no eixo maior (2/3, segundo as regras de Vitrúvio), oprincipal templo da cidade onde decorriam os ritos oficiais e religiosos. Eraigualmente ali que se localizava a basílica16, onde se exercia a justiça e setratavam os negócios – ainda que este arquétipo fosse, mais tarde, adaptado,com funcionalidade distinta, pelo Cristianismo – e, neste grandiloquente espaço,poderiam ainda ter existido outros templos, monumentos erigidos a divindades,imperadores, a dignitários provinciais ou locais e estabelecimentos comerciais.O foro era, enfim, o coração da cidade mediterrânica.17.Apesar de no territórioactualmente português se conhecerem já diversos fora, como, a título mera-mente exemplificativo, os de Aeminium, de Sellium e de Ebora, o caso olisipo-nense apresenta-se complexo, pois, até hoje, não se detectaram quaisquerprovas irrefutáveis da sua localização e, se há muito se abandonou a ideia deque o criptopórtico da Rua da Prata poderia consistir no sustentáculo do forumde Felicitas Iulia Olisipo, Jorge Alarcão propôs, com base nos indicadoresdisponíveis, que aquela estrutura fundamental para o ordenamento vivencial doopido se localizasse no Largo da Madalena. E de facto, neste local puseram-sea descoberto em finais de setecentos, vestígios jónicos de majestosa fábrica, eduas inscrições, uma devotada a Mercúrio e outra, pressupondo a existência deum templo dedicado a Cíbele, esta última com paralelo, em Mértola, numaestátua de Tique-Cíbele (Alarcão 1988, 124; Id. 1994, 58), bem como ali sedescobriu, a base epigrafada de uma estátua do imperador Commodus (CIL II187 = Ep. Olis. 23) levantada, entre 178 e 180, pelos duúnviros Q. CoeliusCassianus e M. Fuluus Tuscus, (Azevedo 1753, 97-98; Hübner 1869, 26; Castilho

16 Mais tarde, concretamente no período flaviano, caracterizado também por ter sido uma época dereforma geral, não deixou de ser forçosa a existência de basílica, como se constata, aliás, no foroflaviano de Conímbriga, construído numa época de renovação e aquando da atribuição do estatutomunicipal a esta ciuitas que se sobrepôs ao primevo espaço erigido na época de Augusto; estamudança, no entanto, não foi uniforme e poderá o caso conimbricence constituir apenas umaexcepção ou, acaso, poderá revelar um lento processo de mudança em curso, até porqueEburobrittium – que teve igualmente a sua promoção nesta época, inscrevendo-se os seus cidadãosna tribo Quirina e adoptando a designação de Municipium Flauium Eburobritium – viu o seurenovado fórum integrar uma basílica (cfr., v.g., Moreira 2002).

17 E, ao contrário do sucedido em muitos outros portos, nos quais os indivíduos de cognomina gregosdetinham o poder, a magistratura municipal olisiponense apresentava uma antroponímiaperfeitamente latina, o que será revelador de que a administração municipal fora açambarcada poruma poderosa elite de matriz itálica. Ainda que, por outro lado, os indicadores históricos apontem,lá para os finais do século I a.C., na direcção da heterogeneidade da sua população, pois, deveriamali concentrar-se gentes das mais variegadas proveniências (Mantas 1994, 71).

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1884, 122; Silva 1944, 51 e 116-118; e Alarcão 1988, 124). E, na igreja daMadalena, estava uma inscrição dedicada à deusa Concórdia (Alarcão 1988,124), embora muitas das epígrafes votivas de que temos notícia, algumas delasde autenticidade duvidosa, não nos permitam obter uma panorâmica exactasobre os edifícios religiosos que eventualmente terão existido junto ao foro, oumesmo dispersos pela cidade. Uma outra hipótese a considerar relativamente

Inscrição à Mãe dos Deuses, Cíbele, junto à Igreja da Madalena, Lisboa. © Fotografia de J. Maciel

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à localização do foro, reporta-se às galerias subterrâneas que, nos começos doséculo XX, foram descobertas por Augusto Fuschini durante os trabalhos derestauro do portal norte da Sé, e que aquele autor assegurou, em obra dada àestampa em 1904, que os corredores se prolongavam para setentrião e parasul (in Fernandes 2002, 58).

Decerto que Felicitas Iulia Olisipo foi ainda, nestes tempos de reforma,dotada de edifícios públicos, e administrativos, tendo-se também possivelmenteerigido o aqueduto que a abastecia de boa água, captada perto de Belas, noslimites do actual concelho de Sintra, pois, conforme refere Justino Maciel (1995,82), «os mirabilia aquarum eram um tema caro aos romanos, sobretudo nocontexto da cidade» e, nessa medida, seria impensável imaginar-se, sequer, aplanificação de uma cidade, onde a água não jorrasse abundantemente». Nestecontexto – assim como Alarcão (1994, 161) –, não cremos na cronologiacircunscrita ao século III que tem sido atribuída ao aqueduto olisiponense(Quintela et al. 1986, 120-125), ainda que possamos considerar que estadatação corresponda a um melhoramento baixo-imperial realizado no paredãoque ainda ali se ergue18.

Entretanto, no decorrer dos trabalhos arqueológicos efectuados noclaustro da medieva Sé de Lisboa, foi descoberto um dos principais troçosviários da cidade, sob o qual corre uma grande cloaca. Este ia entroncar notroço viário ribeirinho perpendicular ao Tejo, onde predominava a zonaindustrial e prolongar-se-ia, encosta acima, onde se detectaram vetustostestemunhos de insulae, datáveis, pela sua estrutura construtiva, da épocaaugustana, ostentando, inclusive, algumas delas vestígios de tabernae.Aparentemente, esta via iria desembocar junto do teatro, igualmente erigidonaquele tempo e descoberto em 1798, na sequência de trabalhos dereurbanização daquela área após o clamoroso sismo de 1755 (Hauschild 1994,65-66). Augusto, na certeza de que a reunião do populus não só legitimava aautocracia com que inaugurara a linhagem Julio-Cláudia, tanto em Roma comonas províncias, onde se consolidava também o processo de romanização econtextualizando o valor do teatro na multiplicidade social, política e culturaldaquela época, patrocinou a edificação destes edifícios monumentais. Estes

18 Refira-se ainda, a título de curiosidade, que séculos mais tarde o Aqueduto das Águas Livresencontrou a sua principal fonte de captação naquele mesmo local e o seu traçado terá seguido,grosso modo, o da conduta romana, porquanto se encontraram inclusive em vários troços vestígiosde uma caleira rectangular revestida a opus Signinum.

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volveram-se em privilegiados veículos condutores de um «dos principaissímbolos da romanidade, constituindo-se, por um lado, como elementosestruturantes do novo urbanismo e, por outro, como instrumentos depropaganda da nova ordem» (Fernandes 2005, 30).

No que concerne à arquitectura do theatrum olisiponense, refira-se,apesar do seu estado de ruína, que deverá ter sido um edifício monumental,atendendo não só só à sua dimensão, mas também à sua qualidade plástica.Compunha-se, como era hábito, pela cauea – o escadeado em anfiteatro semi-circular onde se sentavam os espectadores –, a qual, calcula-se teria umdiâmetro de 60m; ao fundo, a orchestra, com 7m de raio, revestida a opus sectileem tons de cinzento e rosa; depois, o proscaenium, cuja fachada recortadaarticulava três exedrae semi-circulares, e outras seis, rectangulares. Ao fundo dopalco erguer-se-ía a scaenae frons, hoje totalmente desaparecida, mas cujoselementos decorativos subsistentes, como as colunas estriadas capitéis jónicos,outrora revestidos por estuque ou opus albarium, indiciam certo requintedecorativo. No entanto, e, ao contrário do modo latino, o monumental edifíciolisboeta integra-se, pela sua disposição, aninhada na encosta, e com a cauea

Teatro Romano de Lisboa, zona do Hiposcénio. © Fotografia de J. Maciel.

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aberta ao Tejo, no modelo arquitectural grego e, talvez não lhe seja alheio –atendendo ao número de gregos que aqui aportaram nos começos do Império–, uma maior dependência deste teatro aos modelos helénicos (os edifícios detransição apelidados de greco-romanos), o que, porventura, revelará «umamaior antiguidade de implantação do que se tem pensado até ao momento»(Maciel 2005, 16; sobre o teatro romano de Lisboa veja-se, também, entreoutros, Moita 1970; Alarcão 1982, Id. 1986; e Hauschild, 1994). Situação aparen-temente corroborada pelo achamento, em 1966-1967, de um fragmento demármore branco, no qual se pode ler parte de uma inscrição em caracteresgregos: MELPO[…], ou seja, Melpó(mene), a musa da tragédia. Para este frag-mento relevado, onde se evidencia parte de um antebraço e do braçodobrado, propõe Hélder Coutinho, na sua reconstituição hipotética, que a filhade Júpiter e Mnemósine segurasse na mão desaparecida uma máscara (Coutinho1996, 134-135, figs. 7 e 10). Apesar das suas reduzidas dimensões, supõe-se terpertencido a um relevo com representação iconográfica numenal. Todavia, alocalização primitiva do referido friso ornamental não tem sido consensual,pois, enquanto Irisalva Moita (1970, 16, est. XIII, n.º 27) o coloca na scaena, Jorgede Alarcão (1982, 290, lám. 8) aponta para as exedrae do proscaenium,considerando que aquela cercadura seria descontinuada atendendo também àexistência de um rebaixamento de 65mm e de dois entalhes, passíveis dereceberem uma placa decorativa do género do pedaço encontrado (Coutinho1996, 135). No que respeita à cronologia, os autores citados apontam para oséculo I d.C., e, desta mesma época, foi também recolhida por Fernando deAlmeida parte de um busto feminino com diadema, cuja face desapareceu já,subsistindo o penteado, encaracolado na parte superior e descaindo emmadeixas sobre a nuca (Moita 1970, 16; Almeida 1973, 37; Alarcão 1982, 290,lám. 8; e Souza 1990, que omite esta escultura no seu inventário). Mas as peçasde arte mais significativas que aqui se encontraram, provavelmente esculpidasem mármore de Estremoz, reportam-se ao obeso par de silenos ébriosdeitados sobre pele de animais e segurando, cada um deles, um odre de ondesaía água perfumada. Estes poderão constituir também um indicador de que aarquitectura, juntamente com o baixo-relevo com inscrição grega e conside-rando ainda a sua implantação no terreno com a cauea aberta ao Tejo, que naorigem do teatro de Olisipo tenha subjazido um programa helenístico, pois, naverdade, a figura do Sileno e a sua ligação ao drama satírico ateniense encontra--se já testemunhada desde o século IV a.C. (Coutinho 1996, 130).

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Cortes do monumento romano da Rua da Prata, segundo A. Vieira de Silva, Dispersos II, Lisboa, p.313

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Primeira planta das conservas de água da Rua da Prata, levantada em 2 de Junho de 1773. (Biblioteca Pública e ArquivoDistrital de Évora, Plantas Arquitectónicas, Assuntos Portugueses, Pasta I, Planta nº 4) © AN/TT, Lisboa

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4. Uma cidade em crescimento

A par dos silenos, de um fragmento de um eventual retrato e um outrode um baixo-relevo representando a musa Melpómene, todos eles desco-bertos no teatro e já referidos, apenas se conhece uma outra escultura de vultodetectada no aro olisiponense.Trata-se, pois, de um sátiro que, durante muitosanos, integrou um fontanário no Convento de São Domingos de Benfica – eque se encontra actualmente no Museu da Cidade –, tendo sido descrito, noséculo XVII, por Frei Luís de Sousa, nos seguintes termos:

«Passado o claustro, quem busca a horta do Convento dá a poucos passosem huma praça empedrada (…) tem a mesma praça de huma parte humagraciosa fonte, e da outra hum espaçoso tanque (…) a fonte se faz em humarco, que formado de brutescos varios, e vistosos, arremeda huma grutanatural. Dentro parece assentado hum grande e bem proporcionado Satyro,imitando com propriedade os que finge a poesia. Em toda a sua figuramostra um rosto rizonho, e alegre huma simplicidade montanhesa, com queesta convidando a beber de huma concha natural, que tem apertada como braço, e mão esquerda, da qual sahe hum fermoso torno de agoa: ejustamente com a direita acode como arrependido a cobril-a; e faz geito dea querer retirar, dando com huma e negando com outra» (Sousa 1977,821)19.

Para além desta peça, há notícia de uma outra estátua de mármore,representando Hércules deitado sobre a pele de Leão (Campos 1907, 107)20.Finalmente, nas termas dos Cássios terá sido encontrada uma estatueta,também de mármore, representando – de acordo com Tomás Caetano deBem (segundo transcrição de uma carta do Padre, in Castilho 1884, 153-154)21

– uma figura envergando rico trajo militar, mas com ornato segundo o hábito

19 Apesar de se conhecerem abundantes referências ao Sátiro – que acreditamos ter pertencido aalguma uilla suburbana ou que tenha sido levado da cidade para o Convento por algum erudito –nenhum dos autores compilados arrisca uma datação para esta peça, hoje, bastante mutilada(Andrade 1859, 145; Pereira 1889, 99; Barbosa 1863, 90;Vasconcellos 1895, 63; Id. 1913, 243-244;Silva 1944, 91-93; Matos 1966, 48-49; e Souza 1990, que não refere esta peça no seu inventário).

20 Subsistindo, todavia, dúvidas acerca da cronologia desta peça escultórica adquirida como sendoromana pelo actual Museu Nacional de Arqueologia, mas cujo paradeiro é hoje desconhecido.

21 Esta epístola foi integrada na 2.ª edição da obra de Christovam Rodrigues, Summario em queBrevemente se Contem Algumas Cousas Assim Ecclesiasticas, como Seculares que ha na Cidade deLisboa in Figueiredo 1889, 153-154, Bastos, 104; Silva 1944, 90-91 e Matos 1966, 29-30, mencionamigualmente esta estatueta.

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imperial. Outras esculturas que, decerto, decoravam os principais espaçospúblicos e religiosos de Felicitas Iulia Olisipo são, hoje, apenas intuídas através daepigrafia que o tempo nos legou. Assim, num prismóide de mármore perma-nece uma inscrição dedicada a Diuus Augustus (CIL II 182 = Ep. Olis. 74) queprovavelmente sustinha uma estátua do imperador divinizado e que foi,segundo a mesma epígrafe, mandada erigir pelos augustales C. Arrius Optatus eC. Iulius Euthicus (inscrição que, nos inícios do século XVI, se encontrava naIgreja de São Tiago, ou próximo dela: Brito 1690, 544; Hübner 1869, 25;Vasconcellos 1913, 325; e Silva 1944, 182-183). E, apesar de – como vimos –Augusto ter recusado em vida tal titularidade, ainda que tivesse consentindo asua veneração, a guarda hispânica do princeps – constituída essencialmente porvascões de Calahorra – e outros veteranos, em muito contribuíram para aeclosão espontânea do culto imperial na Hispânia, pois tinham o costume dereverenciar os seus chefes, quando estes revelavam um carácter heróico e erammilitarmente aguerridos. Tibério também adoptou e oficializou esta devoção,apesar de, tal como o seu antecessor, ter recusado a sua divinização em vida, aqual, segundo Robert Étienne, foi, ao longo do tempo adquirindo foros de cultoestatal e o imperador transformou-se, ele próprio, não «le fils d’un personnagedivinisé, mais il est le fils du divin, c’est-à-dire d’un dieu (…). Le fils de divin àdivin» (Étienne 1974, 389).

Depois da morte de Augusto, em 14 d.C., abundam as epígrafes que apartir de então foram dedicadas ao culto imperial, a par de outras que seintegram no panteão clássico, como sejam as de Iuppiter, de Appolo e Mercurius,pressupondo a existência de templos onde se integrariam. As mais recentesinterpretações relegam a modéstia de um altar ou de um simples templosubjacente ao cerimonial dedicado ao aludido culto imperial, e consideram queestaria inteirado em complexos arquitectónicos com pórticos por ondeseguiam efusivos cortejos processionais (Étienne 2002, 101-102), atribuindo--lhe, deste modo, uma maior espectacularidade. Nesta perspectiva, convém nãoesquecer que para os romanos, independentemente das épocas, dos locais oudos deuses cultuados, a religião foi sempre assumida como um modelo político(Dias 2002, 95). Refira-se, por outro lado, que um certo burguesismo indígenaencontrou também no flaminato municipal (opondo-se inclusivamente ao cultoprovincial) uma forma de integrar a classe dirigente, porquanto o seu exercíciooferecia-lhe a possibilidade de elevar-se à carreira equestre. Ou seja, esta bur-guesia romanizada serviu-se também do sacerdócio como meio de ascensão

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social, pelo que progressivamente o culto imperial se foi alargando, primeiro àimperatriz, cujas flaminicae eram sacerdotisas de pleno direito até que, final-mente, abarcou a veneração de toda a domus augusta, ou seja a própria famíliaimperial22, não deixando de se associar intimamente ao culto de dea Roma: «Letrinôme Rome, les Augustes et les divi est une parfaite Trinité» (Étienne 1974, 236).

Durante o seu reinado, Tibério – talvez na continuidade do programadelineado por Augusto – realizou também ele uma série de benefícios urbanos,os quais, mercê da proximidade cronológica e tipológica é difícil de destrinçarem relação à obra do seu antecessor. Por conseguinte, o facto de se ter achadono criptopórtico da Rua da Prata – estrutura artificial criando uma plataformanivelada, mas suficientemente robusta para suster um edifício ou um conjuntoedificado – uma lápide datável do seu império, esta não, constituirá, si só,elemento inabalável para atribuir a fundação da referida estrutura a esteimperador. De facto, este embasamento, ainda deficientemente conhecidodevido às difíceis condições de acesso23, é, na área já cartografada, constituídopor uma rede ortogonal de galerias e espaços abobadados, sobre o qualsubsistem vestígios aparentes de um pátio outrora forrado com lajes, bemcomo um tanque revestido com opus Signinum com escoamento para ointerior de uma das galerias e foram igualmente recolhidos no local fragmentosde mármore que indiciam uma rica ornamentação do edifício. No seu interior,subsiste uma nascente de águas medicinais, e o achamento da referida inscriptiodedicada a Esculápio contribuiu para que, numa primeira análise, seconsiderasse estar-se perante um edifício termal. Entretanto, Jorge de Alarcão(1994, 60), hesitando igualmente na sua classificação tipológica, vai perfilhando,com alguma prudência, as teses tradicionais; enquanto que Francisco Alves(1994, 128) alvitra que esta construção abobadada tratar-se-á de um horreum,edifício para armazenamento que era comum existir em muitas zonasportuárias; mas, por outro lado, Cardim Ribeiro (1994, 194) propõe para esta

22 Alarcão (1994, 61) refere que em Lisboa foram encontradas catorze inscrições que nomeiamsacerdotes do culto imperial, quer sejam augustais, quer sejam flâmines e flamínias. A propósito deoutras devoções, menciona diversas referências às divindades do panteão clássico e recorda, comtoda a naturalidade, que as evocações aos deuses indígenas não estarão presentes no aro urbanode Olisipo, ainda que se conheçam vários exemplares atestados no seu ager.

23 Descoberto em 1770, permanece soterrado e os níveis freáticos mantêm-no constantementeinundado, pelo que a sua acessibilidade está condicionada ao seu esvaziamento e constantebombagem da água.

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grandiosa estrutura, atendendo à relevância de Felicitas Iulia Olisipo comocidade portuária, a hipótese de tratar-se de vestígio de um forum corporativo.

Todavia, se hoje não subsistirão já dúvidas de que o edifício em causa setratará, afinal, de um criptopórtico, Fabião (1994, 69) afirma que com oselementos disponíveis é difícil proceder à sua classificação. Este estudiosoconsidera válida a hipótese de se estar perante antigo edifício termal, masinclina-se sobretudo para a hipótese de se tratar de um forum, argumentandoa favor desta tese com os paralelos descobertos em Ebora Augusta, em cujofórum se encontrou um espelho de água, e os embasamentos que sustêm osfora de Conimbriga e de Aeminium. Finalmente, Justino Maciel que, para além deconsiderar que a análise do edifício lhe interessa sobretudo «como documentoda arquitectura romana», adianta «que nenhuma das hipóteses defendidaspoderá ser rejeitada in limine» (Maciel 1994, 40). Este autor, entre outrassuposições colocadas, considera, baseando-se em Vitrúvio, tratar-se de umaestrutura no contexto de um emporium: «Efectivamente, os portos prestarãonaturalmente melhores serviços se estiverem bem situados e possuíremespigões ou promontórios salientes, a partir dos quais, para o seu interior esegundo a natureza do lugar, sejam formados ângulos ou curvaturas. Em voltadeverão construir-se pórticos ou arsenais, bem como acesso dos pórticos paraos empórios. De um e do outro lado dos portos deverão ser erguidas torres,a partir das quais, por meio de máquinas, se possam passar correntes de ferrode um lado ao outro» (Vitrúvio 2006, V, XII, 1). Esta sugestão de se estarperante uma praça de comércio marítimo, aproxima-se, de algum modo, dateoria já explanada por Cardim Ribeiro (1994, 194).Todavia, no que concerneao interior deste cryptoporticus, constata-se que muitas das galerias ostentamaparelhamento em opus quadratum almofadado – indício de que na sua faseprimeva terá integrado uma importante construção – e, ainda que nãoapresente qualquer aproximação cronológica, Maciel considera que terá havidouma reformulação e descentramento de abóbadas e de rebocos, obra queacredita ter sido executada em virtude de o edifício ter recebido uma outrafuncionalidade, designadamente transformando-se numa cisterna, para arma-zenamento de grandes quantidades de água (Maciel 1993-94, 148, Id. 1994, 40),indispensáveis, aliás, ao fabrico intenso de conservas de peixe que bordejava oesteiro fluvial. Podemos supor, no contexto enunciado, que a adaptação docriptopórtico a cisterna tenha ocorrido numa época de escassez e que a águalevada pela conduta se tivesse tornado insuficiente para abastecer a cidade e,

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em simultâneo, sustentar a grande produção de conservas de peixe. De facto,esta adaptação poderá ter tido a ver com a reestruturação das fábricas, nasegunda metade do século III, e o substantivo aumento de produção eexportação observado na centúria seguinte (Amaro 1994ª, 73).

Com efeito, uma grande parte da riqueza de Olisipo adveio dos abundan-tes recursos piscícolas e do sal que o Tejo lhe oferecia, todavia, os testemunhosda indústria conserveira iam muito para além do próprio centro urbanodesignadamente na actual zona de Belém, onde, em 2006, se pôs a descoberto,na antiga casa do governador da Torre, um outro importante conjunto decetárias, atingindo algumas delas – segundo António Varela – os 7 m de compri-mento por 5 m de largura (Henriques 2006, 48), continuando para os agri apoente e a sul do Tejo, onde se fabricavam também ânforas destinadas aoenvasamento e transporte dos produtos24. Nesse sentido, esta cidade romanacontinuou e dinamizou numa perspectiva industrial em grande escala (queabrangia o fornecimento das legiões, incluindo as que defendiam o limes) – queera aliás apanágio da estrutura económica em que assentava o Império –aquela já antiga actividade económica, conforme nos revelam os abundantestestemunhos de fábricas de conserva datáveis, praticamente todos eles, dosséculos I e II d.C., tendo sido ampla a sua dispersão geográfica, não só ao queconcerne à Lusitânia, mas, também, à Bética e à Mauritânia, ainda que nesteúltimo caso apresente uma cronologia mais recuada (Bugalhão 2001, 38). Estazona industrial, como era hábito nas cidades romanas integrava-se no própriotecido urbano e, nesse sentido, poder-se-á ter como válida a hipótese de queo eixo da via que indo da Casa dos Bicos até ao polémico criptopórtico e,prolongando-se para noroeste, inteirava as unidade fabris hoje conhecidas, nosistema ortogonal que a reforma de Augusto impusera ao velho povoado.Detectaram-se vestígios de cetariae destinadas ao fabrico de preparadospiscícolas, sobretudo de garum, ao longo da Baixa Pombalina: na própria Casados Bicos, na Rua Augusta, no antigo Mandarim Chinês, na Rua dos Correeiros,na Rua dos Douradores, na Rua dos Fanqueiros e na Rua dos Correeiros

24 Foram também detectados indícios de tanques junto da velha porta do castelo de Cascais (Amaro1994, 77) e na uilla cascaense de Casais Velhos (Alarcão 1994, 62) e abrangendo, igualmente, amargem esquerda do estuário deste grande rio, com possíveis fábricas em Cacilhas e em PortoBrandão. No entanto, se em relação a estas unidades subsistem algumas dúvidas, está claro que emMuge, Garrocheira, Porto dos Cacos e Quinta do Rouxinol se situavam os centros de olaria queproduziam os contentores para transporte do garum (Bugalhão 2001, 50), todos eles integrandopossivelmente uillae dispersas pela faixa ribeirinha (Amaro 1985, p. 18).

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(Bugalhão 2003, 127), e no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros(Millenium bcp), onde, até agora se pôs a descoberto um impressionantecomplexo industrial, cuja área atinge os 409 m2 e detinha uma capacidade deprodução de 288 m3, ou seja, o nível de produtividade desta unidade fabril eraapenas ultrapassado pelas cetariae de Tróia (Bugalhão 2001, 81). Durante asescavações da fábrica da Baixa Pombalina foi intervencionada parte de umanecrópole republicana, com enterramento mistos, tendo-se descoberto oitoinumações infantis, algumas delas em posição fetal, bem como uma urna deincineração e áreas destinadas à cremação dos corpos. O espólio funerário alirecolhido é comum neste género de sepulcrários, designadamente ungentáriosde vidro, cerâmicas de paredes finas, sigillatas itálicas e campanienses (Bugalhão2001, 31). No espaço escavado recolheu-se também uma cabeça de umaestatueta de bronze, fabricada segundo a técnica da cera perdida,representando um jovem imberbe, mas cujos traços da face e volume docabelo reflectem um trabalho oficinal pouco aprimorado.

No que concerne aos testemunhos ainda reportáveis ao século I d.C.,temos que contar com os melhoramentos que Caius Heius Primus ofereceu aoteatro olisiponense, num claro gesto de auto-promoção e evergetismo, tãofrequente, aliás, na época romana, que visava não só evidenciar o estatuto social,mas, também, o poder económico do benfeitor. Assim, este flâmine augustalterá providenciado a marmorização dos principais espaços do teatro, designada-mente o pavimento da orchestra e o proscaenium (Matos 1994, 109; e Maciel1995ª, 87), onde corre monumental inscrição que C. Heius Primo Cato, augustalperpétuo, dedicou, em 57 d.C., ao imperador Nero (CIL II 183 = Ep. Olis. 70):

NERONI. CLAVDIO DIVI. CLAVDI. F. GER… AVG… GERMANICOPONT.MAX.TRIB.POT.III IMP.III.COS.II DESIGNATO III PROSCAENIVMETORCHESTRAM CVM ORNAMENTIS. AVGVSTALIS PERPETVVS C. HEIVS

PRIMVS…

Pressupondo igualmente a erecção coeva de estátua do César (Aze-vedo 1815, 12; Hübner 1869, 25 e 811; Id. 1871, 10; Castilho 1884, 113 e 118;Azevedo 1898, 319;Vasconcellos 1913, 325; Id. 1959, 173, Silva 1944, 59-60 e172-175; e Matos 1966, 30). Nas ruínas deste imponente edifício foi tambémencontrada a base epigrafada (CIL II 196 = Ep. Olis. 71), suposta base de umaescultura do próprio ofertante (Azevedo 1815, 13, fig. IV e 60, fig. X; Hübner1869, p. 27; Id. 1871, 11; Castilho 1884, 161; Vasconcellos 1913, 325; Id. 1959,173; e Silva 1944, 177-178). Caius Heius Primus, augustalis perpetuus, vê registado

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na epígrafe que lhe é dedicada o nome de dois dos seus libertos, assim como odos seus quatro filhos. Refira-se, a propósito, que Heius é um gentilício itálicoque, apesar de se encontrar pouco difundido, a sua presença é notória sobre-tudo nos importantes centros portuários, como era, aliás, o caso de FelicitasIulia Olisipo. Na verdade, os Heii eram uma antiga e rica família que – para alémde alguns dos seus membros terem exercido diversas magistraturas locais notempo de Augusto –, se dedicava, certamente, à indústria (com testemunhosepigráficos no norte de Itália e no Norte de África, no que concerne ao fabricode lucernas) e ao comércio marítimo, pois encontramo-los sobretudo fora deItália (Fernandes 2005, 34).

Subsistem, ainda, ao longo dos séculos I e II, outros exemplos epigráficos,os quais, pela sua compleição, indiciam que nesta cidade eram abundantes asconsagrações, não só aos imperadores, mas, também, à domus augusta e amembros da administração provincial, passíveis de considerar como bases deestátuas ou de bustos. Assim temos: uma notícia de uma saudação imperial aVespasiano (CIL II 185, Suplemento, 109 = Ep. Olis. 80), descoberta nos alicercesde São Vicente de Fora, em finais do século XVI, e datado do ano de 79 d.C.(Azevedo 1753, 86-87; Hübner 1869, 26; Castilho 1884, 118-119; Silva 1939, 8;Id. 1944 190-192); o monumento erigido a Hadrianus (CIL II 186 = Ep. Olis. 91),ostentando cargos e títulos inerentes ao imperador que, no segundo quarteldo século XVI, estava em frente ao convento de Xabregas, ao tempo termo deLisboa (Hübner 1869, 26; e Silva 1944, 203-204), cuja inscrição é semelhante àda imperatriz Sabina Augusta (CIL II 4992), mandada insculpir pelos duúnvirosM. Gellius Rutilanus e L. Iulius Auitus, estando datada de 121. Ou, no queconcerne à administração provincial, refira-se a memória levantada em honrade L. Caecilius Celer Recto, Questor Provinciae Beticae, tribuno do povo e pretor,que Hübner (1869, 26; Id. 1871, 9), ainda que vagamente seguido por Silva(1944, 126-127), datou de 108 d.C., mas que autores mais recentes – comoAlföldy (1969, 188-189, 280 e 282) e Ribeiro (1982-83, 345 e 449, n. 84) –,contrapõem com uma proposta cronológica mais avançada, abrangendo osfinais do século II ou já mesmo a centúria seguinte.

Data também do século II o mosaico bicromático que se descobriunuma sondagem realizada na Rua dos Correeiros (sondagem 34), junto à zonaindustrial de preparados piscícolas. Porém, pelo facto deste reduzido e fragmen-tado conjunto ter sido recolhido juntamente com entulho variado é, de todo,impossível atribuir-lhe uma proveniência segura. Mas pela sua morfologia que

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revela alguma qualidade técnica e, sobretudo pelos diamantes, ou quadradosescalonados representados, ao longo do que parece ser uma moldura interiorou de separação de eventual esquema de quadrados justapostos, poder-se-áatribuir-lhe, com alguma segurança, influência italiana, não só porque esteesquema surgiu naquele território – com primeiros exemplos em Teramo e naVia Ardeatina –, mas também porque o diamante terá tido origem e ampladifusão na referida centúria (Caetano 2001, 65-82; Id. 2006, 23-34). No interiorda grande cloaca – com 1,60m de altura por 0,70m de largura, que, em épocanão determinada, terá sido propositadamente entulhada, que corre sob o troçoda via de acesso ao Teatro posta a descoberto no claustro da Sé –, recolheram--se, também sem contexto definido, alguns fragmentos de mosaico bicromático,cuja reconstituição possível revelou uma banda exterior com diamantes nãocontíguos e campo revestido por um esquema ortogonal de quadrilóbulostangentes com círculos inscritos formando polígonos côncavos, revelando tal--qualmente influência itálica, com paralelos próximos em dois mosaicos ostiensesdo século II; no mesmo dreno encontrou-se diminuto pedaço de opus tessellatumpolícromo, cujas dimensões não permitem que sobre ele se proceda a qualquerestudo analítico, ainda que pareça tratar-se do que resta de um mosaico já doséculo III (Caetano 2006, 23-34).

5. A crise do século III ou o advento de um mundo novo?

As crises que no século III abalaram o mundo romano, num movimentoabrupto proporcionado quer por pressões exógenas, quer pela sua própriaimplosão.A «época dos Severos (192-235) marca no Império a entrada decisivanum sistema de transformações profundas em que, à crise interna das institui-ções romanas, se acrescentam factores que imprimem uma maior aceleraçãodo processo de dialéctica político-social que leva à mudança e ao aparecimentode uma nova situação que historicamente se designa por Antiguidade Tardia»(Maciel 1996, 25). Factos que, inequivocamente, contribuíram para redireccionaro percurso de um vasto universo que até então ambicionava e vivia em funçãode uma certa praxis romana25. E se, por um lado, a instabilidade que se come-

25 Este fenómeno de instabilidade contribuiu para que se trouxessem igualmente à superfície ancianossubstratos, cuja força renovada concorreu também para o advento de novos signos, designadamente,e a mero título exemplificativo, refira-se que a inumação se foi tornando preferencial ao antigo uso

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çou a verificar na época do africano Septimius Seuerus – casado com IuliaDomna26, uma síria filha de um sacerdote do culto de Baal – contribuiu paraque a piedade à domus augusta, que agira séculos antes como um mecanismoregulador e, até mesmo, englobante de uma sociedade que apesar de plural sequeria una, por outro lado também foi esmorecendo a fé no imperadordivino27, cedendo definitivamente lugar a ressurgimentos de antigas devoçõesindígenas e a outros mistérios, estes de proveniência oriental – atendendo aque alguns deles que se vinham dispersando ao longo do vasto Império jádesde o século II, operando a mudança dos contextos filosófico-existênciais ea integração progressiva de novas atitudes perante a religião –, tais como, aveneração de Ísis e de Serápis, de Cíbele, os mistérios dionisíacos, o Mitraísmo– sobretudo entre os militares –, o Judaísmo e o Cristianismo. Foi, igualmente,nesta altura em que desabrocharam diferentes modelos económicos, sócio-culturais, artísticos e religiosos que o Cristianismo se impôs, até porque, de

romano da cremação. Mas neste tempo de mudança conviveram, por muitos séculos ainda, doismodos de estar pelo que, no âmbito dos ritos fúnebres, de que constituirão exemplo a tampa dodenominado sarcófago das Musas e de um outro de Vila Franca de Xira (mas provindo, talvez, deCastanheira do Ribatejo), ambos importados de Roma na segunda metade do século III. Oprimeiro, procederá, talvez, de uma possível uilla, em Chelas, e, em termos decorativos ostenta, aocentro, os poetas sentados e nas extremidades as musas Melpómene e Talia que seguram,respectivamente, as máscaras trágica e cómica e, no ângulo oposto, Polímnia e uma outra musa nãoidentificável pela ausência de atributos (Souza 1990, 72, fig. 139; e Alarcão 1994, 63). O segundosepulcro carreia imponente simbólica dinisíaca, no seu formato oval e na sua decoração profusacom vides e putti colhendo e encestando frondosos cachos de uva, blasonando o centro ummedalhão revelado com o busto de uma menina (Souza 1990, 72, fig. 140). O achamento destestúmulos ricamente trabalhados, acaso revelarão que a inumação era já uma prática corrente ecuidada, ao nível das classes abastadas daquela época. Facto que, deveras contrasta, com as classesmais pobres que inumavam os seus corpos em modestas caixas de pedras mal talhadas, postas aoalto e cobertas por lajes, num modelo que perdurou durante séculos, como seja o caso, na margemesquerda do Tejo, designadamente no grande centro oleiro do Porto dos Cacos, onde a inumaçãose encontra bem presente, com 37 enterramentos detectados até ao momento, no períodocompreendido entre os séculos III e inícios do V (Sabrosa 1996, 287).

26 Na uilla de Santo André de Almoçageme (concelho de Sintra) foi recolhida a cabeça de uma esta-tueta em terracota, com 57mm, que foi identificada como uma representação, provavelmente decariz votivo, desta imperatriz (Sousa 1988); em Eburobrittium descobriu-se também uma pequenacabeça feminina em terracota que, apesar de não se encontrar identificada nem datada (Moreira2002, 102, fig. 91), aparenta algumas similitudes com a de Santo André de Almoçageme. E, aindaque mais destruída, detectou-se outra cabeça feminina similar às já referidas na uilla de Freiria(Cascais), igualmente datada do século III (Cravinho 1993-94, 346, figs. 6-9).

27 Será, pois, neste contexto que se poderá entender que dos diversos monumenta imperiais assinala-dos em Lisboa nos séculos anteriores, apenas se conheça um único exemplo desta época.Trata-se dabase epigrafada de uma estátua erigida a Philippus (CIL II 188 = Ep. Olis. 93) pela cidade de FelicitasIulia Olisipo, em 248, que, nos início do século XVI, se encontrava «na torre do chafariz d’El Rey mor»(Azevedo 1753, 282; Hübner 1869, 26; Castilho, 1884, 123; Silva 1939, 8 e 154-155; Id. 1944, 206-207).

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algum modo, terá sido a própria moral augustaica que «acabou por deixarmarcas na concepção romana da vida que facilitarão o advento doCristianismo; as virtudes do trabalho (…) sempre assistido pelos deuses, e deuma infinita piedade para com eles, expressa no sacrifício e na prece, não foramalheias à religião romana e serviram, na ordem prática, para a realizaçãoindividual e familiar» (Dias 2002, 95).

Entretanto, no âmbito desta paz aparente, em Felicitas Iulia Olisipoprocedeu-se à a reconstrução das chamadas termas dos Cássios, em 336,patrocinadas por Numério Albano, praesis da província da Lusitânia, conformeepígrafe descoberta no local (Silva 1944, 48-50 e 114-115, n.º 22; Maciel 1994,35). Estas, redescobertas após o terramoto de 1755, foram minuciosamentedescritas pelo insigne antiquário Padre Tomás Caetano de Bem, que efectuoutambém um modesto desenho do edifício, que, na sequência das obras, viria denovo a ser entulhado28. Foi, contudo, apenas há alguns anos e por motivo deobras de beneficiação do Palácio Penafiel que ali se pôde encetar uma metó-dica e continuada intervenção arqueológica. Durante a escavação foram locali-zadas e definidas várias paredes do edifício termal, algumas delas com reduzi-dos vestígios de frescos in situ, bem como a zona dos banhos quentes e o vestiário.

Todavia, o esforço de contenção dos povos invasores expendido peloImpério contribuiu, sobremaneira, para a fragmentação da sua estrutura, da suapolítica, da sua economia e dos seus exércitos, ao ponto de estes aconte-cimentos terem originado, ao longo do século III29, um movimento migratóriodas elites abastadas para as suas uillae rurais, onde escapavam igualmente aos

28 «Um grande banho, ou piscina, do feitio de metade de um cylindro; servia-lhe de cupola osegmento de uma ellipse; isto é, a forma que apresentava era a de um nicho, de quarenta e cincopalmos de altura, vinte e dois e meio de largura, e doze de base ou grossura.Aos pés do nicho abria-se um tanque, cuja figura era um segmento de circulo. O seu lado curvoera a parede do nicho; e da parte de fóra fechava-o uma parede em linha recta, de dez palmos dealtura. Dentro do tanque descobriram-se junto ao nicho os vestigios de um assento, e ao pé dellesos signaes de um cano de agua.O material todo era excellente, escusado é dizel-o.Duas escadas, de cinco degraus cada uma, aos dois lados da parede exterior, conduziam ao interiordo banho; comprimento dos degraus, dois palmos; altura, três quartos de palmo. Pelo que se vêtudo foi concienciosamente medido e esquadrinhado.Dentro do nicho grande da piscina abria-se a meia altura outro nicho pequeno, onde foi encon-trada uma estatueta. Era em marmore branco; representava um guerreiro romano, a modo umgeneral; elmo; pescoço nu; armadura; sobre o peito esculpido um sol; sobre o ventre duas esphingesaladas. Na mão esquerda um escudo, onde se divisava em relevo a loba a amamentar Romulo eRemo. Na cabeça, n’um braço, e n’uma perna, alguns destroços, causados do tempo, ou decircumstancia fortuita» (in Castilho 1884, 95-96, n. 16).

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impostos e às suas obrigações para com o populus da cidade. E se assumimoshoje que, de certo modo, existiu uma urbanização do universo rural, porquantose transpuseram então muitas vivências urbanas para o campo (cfr., v.g., Gorges1974), poderemos, igualmente, supor que tenha ocorrido um processo inverso,ou seja, que se tenha verificado uma ruralização da cidade – ainda que, numprimeiro momento, consideremos a hipótese de ter tratado essencialmente deum fenómeno mental –, até porque, com o afastamento da aristocracia, quetinha obrigação de patrocinar os ludi teatrais, ali se mantiveram, para além deuma burguesia enriquecida e com bastas pretensões sociais (muitos delesantigos libertos aos quais Caracala concedera, em 212, a cidadania), sobretudoos operários e os artífices, de baixa condição económica, social e cultural, paraos quais os modelos clássicos eram absolutamente despiciendos. Deste modose justificará, talvez, que no teatro olisiponense se tenham encontrado vestígiosde eventuais adaptações, eventualmente patrocinadas por esta nova eliteurbana, para espectáculos com água que – nesta nova era – se tornaram fre-quentes, uma vez que subsistem marcas de passagem de água da referida orches-tra, através do proscaenium, para a colymbetra (Maciel 1994, 39; Id. 1995, 87).

Quando a necrópole da Praça da Figueira foi abandonada no século III(Alarcão 1988a, 125)30, construiu-se, nas suas imediações (na área hoje corres-

29 Na verdade, no limes, as pressões bárbaras haviam-se igualmente começado a sentir desde finaisdo século II, onde os exércitos romanos tentavam travar a entrada dos povos germânicos para ointerior do Império, ou controlando os movimentos dos que entretanto já ali se haviam instalado;e, nos começos do século III, durante o reinado de Caracala, registaram-se revoltas na Gália e aconfoederatio barbarica ia penetrando, cada vez mais, o território romano, ora como bandos desalteadores, ora como tribos que se fixavam em terras que lhes eram oferecidas; processo que, decerta forma, culminou em 235, quando em campanha contra os Persas, Severo Alexandre foiassassinado por soldados das suas próprias legiões amotinadas.

30 Já há alguns anos, na sequência das obras de construção da rede do metropolitano pôs-se a des-coberto, na Praça da Figueira, uma necrópole, cujas primeiras sepulturas datam da primeira metadedo século I d.C. (Alarcão 1988, 125), facto que, de per si, é indicador que, naquela época, esta zona,actualmente em pleno centro de Lisboa, integrava já o arrabalde da cidade, para além do pomerium,isto é, fora da zona amuralhada que deveria circundar a cidade. Refira-se, por outro lado, e a títulode curiosidade, que no espaço que precedia o pomério – decerto por razões de salubridade – nãose podia proceder à cremação ou enterro de cadáveres, nem supliciar os condenados, quer porquetivesse sido essa a sua origem, quer fosse por razões honoríficas, quer, ainda, porque não se deveria«jamais perder a perspectiva de defesa no caso de alteração da paz» (Maciel 2005, 20). Existia umaoutra necrópole na área do Campo de Santana e, eventualmente, uma terceira necrópole na zonameridional da cidade (Alarcão 1994, 60). Neste sentido, talvez a chamada Porta de Ferro, estruturade cronologia e função não identificáveis, pudesse integrar a muralha do ópido. Alarcão (1994, 60):afirma que a Porta de Ferro não se trata, afinal, de vetusto vestígio de um arco do triunfo, mas quepossivelmente integraria alguma construção monumental, sem, no entanto, lhe outorgar um posi-cionamento concreto.

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pondente à Praça D. Pedro IV) e pelos meados do mesmo ou nos inícios doevo seguinte um circo (Sepúlveda et al. 2002, 259), do qual subsiste parte deuma estrutura identificada com a barreira. Sabe-se, hoje, que as corridas decavalos eram uma antiga tradição que os romanos apreciavam e, neste con-texto, saliente-se a melhoria do Circo Máximo, em Roma, promovida por JúlioCésar em celebração do seu triunfo de 46 a.C., modificação que incluiu tam-bém a construção de uma estrutura de protecção dos espectadores duranteas uenationes, espectáculos de caça, nos quais intervinham caçadores, a cavaloou apeados, que combatiam animais ferozes, ou, até mesmo, lutas entre preda-dores. Foi contudo, no período de transição da República para o Império queas corridas de cavalos se tornaram bastante populares, pelo que, desdeTrajano, que as barreiras contínuas se tornaram permanentes. Os circostiveram grande expressão no mundo antigo – e recorde-se aqui, a títulomeramente ilustrativo que Nero se apresentou nos Jogos Olímpicos numcarro puxado por dez cavalos (Suetónio, VI, XXIV) – mas, em Olisipo, a suaimplementação ou reimplantação monumental, parece coincidir com aalvorada deste mundo novo que a História apelidou de antiguidade tardia.Com efeito, do circo lisbonense puseram-se a descoberto uma parte da arenae do euripus (Duarte e Santos 2003, 179-180), sendo a face exterior dabarreira forrada com materiais nobres, como o parece comprovar, para alémde pedras aparelhadas, uma placa de mármore rosado ali recolhida. SegundoAna Duarte e Victor Santos, que procederam ao estudo deste circo, taledificação monumental – que muito provavelmente terá substituído anteriorestrutura, talvez construída noutro lugar e com materiais perecíveis – emépoca já tardia ter-se-á devido não só ao gosto por este género de espectá-culo, mas também a outros factores, estes indissociáveis da própria economiado território. Grande parte da riqueza desta cidade assentava, como se viu, naexportação de garum e de cavalos (Mantas 1990ª, 173), cujas particularidadesjá vinham sendo louvadas, pelo menos desde Terêncio Varrão (lembrando oscélebres potros da Lusitânia), encontrando-se atestada a sua criação, quer parafornecimento do exército, quer para o circo, desde o século I, mas comparticular incidência no século IV, existindo ainda referência à oferta de umcavalo pelo César Juliano ao Imperador Constâncio II, em 360, e também amenção epistolar do Cônsul Quinto Aurélio Símaco de que, na Península,procurava os melhores cavalos para os jogos que o seu filho iria patrocinar em401 (Duarte e Santos 2003, 178-179).

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De facto, apesar de então se viver uma época de alguma instabilidadeem Felicitas Iulia Olisipo, que já então encontraria coarctada parte da suavivência, observou-se, na segunda metade do século III-inícios do IV, um curtoperíodo de recrudescimento económico-social que terá coincidido, comovimos, com as adaptações realizadas no teatro, com a construção de um (novo)circo monumental e, ainda, com melhoramentos realizados nos balnea anexosà grande fábrica de garum detectada sob o Millenium bcp, supondo-se que estaestrutura integrasse – num contexto de mudança de gestão destes complexosprodutivos – a residência do seu proprietário ou administrador (Bugalhão2001, 62). Consequentemente, junto ao respectivo frigidarium, um tanquequadrangular revestido a opus Signinum, encontraram-se também vestígios deum mosaico, na sua quase totalidade destruído pelos alicerces de um forno detratamento do ferro, coevo do edifício pombalino e que terá sido desactivadona segunda metade do século XIX. E um outro pavimento, parcialmenteconservado – ainda que se encontre nalgumas zonas danificado pela ulteriorabertura de dois silos muçulmanos31, policromo, ostentando singular ecomplexo fácies organizado em quatro painéis justapostos com ornamentaçãoalternada. Assim temos, ultrapassada a faixa de ligação, as molduras exterioresconstituídas por filete e banda de diamantes não contíguos que se prolongaapenas entre dois painéis, onde domina uma banda com meandro de gregainterrompida e uma trança de múltiplos cabos que envolve toda a composiçãocentral, bem como um entrançado de duas pontas; junto aos degraus de acessoao frigidarium, subsiste uma larga banda com meandro de suásticas, formado apartir de trança de dois cabos. A estrutura decorativa do campo dispõe-se doseguinte modo: painel A – composição ortogonal de quadrilóbulos de peltas,em redor de quadrados direitos com nós de Salomão inscritos e fusos em aspatangentes e intervalos preenchidos com diamantes –; painel B – o campo estápreenchido por uma composição ortogonal de linhas de meandros de suásticascom volta simples com pequenos quadrados, apresentando inscritos quadradosmenores sobre a ponta –; painel C – a sua composição é similar à do quadroA, mas, infelizmente, está muito destruído –; e painel D – completamentedestruído, mas a sua composição seria idêntica à do B. Refira-se, ainda apropósito do presente tesselado que em toda a bibliografia compulsada apenas

31 Este fenómeno de destruição não é inédito encontrando-se patente noutros locais onde severificou uma continuidade na ocupação e/ou readaptação do espaço, de que constitui um bomexemplo a uilla romana de Frielas (Loures).

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lográmos encontrar um único pavimento no qual se articulem os modelosdecorativos que revestem o campo deste pavimento.Trata-se, pois, de um mo-saico do “Tiempo a planta di tipo semitico”, em Tharros (Sardenha), igualmentedatado da segunda metade do século III (Amaro e Caetano 1993-94, 283-294;Caetano 2001, 65-82; Id. 2006, 23-34).

Refira-se ainda a propósito que muitas destas obras de construção oude beneficiação, realizadas aquando do afastamento das elites dominantes parao campo, poderão ter sido patrocinadas – com excepção das termas dosCássios, cuja inscrição atribui a obra ao governador da Lusitânia – por umacerta burguesia de carácter urbano que, talvez aproveitando o vazio geradopela ausência da aristocracia, tenha assumido o estatuto social que, há muito,ambicionava.Todavia, o gosto e os valores tradicionais do paganismo que carac-terizaram os séculos anteriores não eram já os mesmos que então vigoravam,pois haviam sido temperados pela pluralidade dos fenómenos e pelo própriotempo. Um tempo de insegurança e de incerteza, mas igualmente de mudançaque, juntamente com os novos valores que vicejavam – de entre os quais sedestaca a difusão irreversível do Cristianismo –, outros eram recuperados dosconfins da História.

6. A contracção de uma cidade

A recessão de Felicitas Iulia Olisipo – enquanto espaço urbano – era já,neste período baixo-imperial uma evidência (comum, aliás, ao que sucedeu umpouco por toda a Península Ibérica) que se acentuou, primeiro, por meados doséculo III com as invasões dos francos e alamanos (Maciel, 1996, 27). Temposdepois, nos finais daquele evo ou inícios do seguinte, a destabilização genera-lizou-se a todo o Ocidente, à qual obviamente a Península Ibérica não ficouimune e conduziu à construção apressada de uma muralha de protecção con-tra as investidas dos populi germânicos e que – ao exemplo de Conimbriga –deixou extra-muros uma parte importante da cidade. Coincidiu, pois, estefenómeno com o período de florescimento das uillae e a sua imposição naorganização territorial, com os inegáveis benefícios que trouxe para a economiado município, quer com os melhoramentos então efectuados nos espaçosdomésticos, rústicos e frutuários, quer substituindo-se, de certo modo à cidade,enquanto entidade produtiva. Apesar de não se conhecerem ainda hoje os

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precisos limites da cerca então levantada, subsistem alguns indicadores impor-tantes que nos permitem ir cartografando alguns pontos fundamentais. Assim,na sequência das escavações levadas a efeito no claustro da Sé, constatou-seque por esta época se procedeu à interrupção da grande via de acesso aoteatro em três locais por muros e, no «espaço interior entre estas paredestardias, bem como nas áreas circundantes, apareceram níveis arqueológicoscom materiais pertencentes a épocas tardo-romanas imperiais e pós-imperiais,compreendendo “sigillatas” (sic) tardias e outros artefactos datados dos séculosIV a VII da nossa era, e, até mesmo, cerâmicas e outros materiais islâmicos deépoca califal e dos taifas (séculos VIII a X)» (Matos 1994a, 33). Este facto poderáter conduzido ou resultado do abandono do teatro – tal como sucedeu comas termas dos Cássios que funcionaram até meados do século IV –, pois,segundo Hauschild (1994, 65) a edificação, sob os uomitoria, de uma habitação,datável do século IV ou V, indiciará, porventura, que o teatro já se encontrariadesactivado. Igualmente, a unidade fabril da Casa dos Bicos, onde se assinalouum conjunto de cinco cetárias, uma delas escavada no próprio solo, doiscompartimentos secundários e um pequeno troço de esgoto, parece quelaborou em pleno até ao seu encerramento e aterro nos finais daquelacentúria, ou inícios do século IV, como resultado da necessidade de se construir,neste período de convulsões, uma muralha (Amaro 1983, 4; Id. 1994, 78)32.

Apesar de a cidade ter sido urbanisticamente truncada com a constru-ção da muralha baixo-imperial, da qual são visíveis alguns troços de silharesalmofadados em Alfama (Maciel 1996, 30), enquanto que no Largo de SantoAntónio à Sé, se pôs a descoberto parte do embasamento de um edifíciopúblico do período republicano, cujo abandono terá sido coincidente com aconstrução do referido muramento33. Este – tal como sucedeu, a título deexemplo, em Évora e em Viseu – terá visado sobretudo a defesa do burgo das

32 Ainda durante a intervenção arqueológica levada a cabo nas salas A e B, no 1.º piso, foramlocalizados e exumados, entre outros materiais, alguns pequenos fragmentos de mosaico e algumasdezenas de tesselas avulsas, ostentando vestígios da argamassa do assentamento, que se encontramexpostas na Sala Romana do Museu da Cidade, onde se indica uma cronologia circunscrita aoséculo III (Caetano 2006, 26).

33 Durante aqueles trabalhos arqueológicos constatou-se igualmente que, mais tarde, se sobrepôs àmuralha romana, ainda que de modo não totalmente concordante, a Cerca Moura, observando-se,pois, uma clara opção pelas «soluções de continuidade mas condicionadas pela existência deestruturas anteriores com orientação diferenciada e características construtivas de igual mododistintas» (Vale e Fernandes 1994, 109).

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invasões de 273-275, mas se num primeiro momento foi eficaz na sua função,acabou por condicionar o espaço urbano que, espartilhado, iniciou um lentoprocesso de desagregação da sua matriz de feição clássica. E esse fenómenoiniciou-se após a construção da aludida estrutura, pois a necessidade prementeem obter-se pedra terá levado ao desmantelamento, parcial ou total, de algunsdos mais emblemáticos edifícios públicos da cidade alto-imperial.

Neste espaço ora amputado, e logo nos começos do século IV, a ecclesia– e recordemos aqui que, no seu início, o Cristianismo foi um fenómeno emi-nentemente urbano – estaria já verdadeiramente institucionalizada em Olisipo,pois, aquando da grande perseguição de Diocletianus, em 303-305, «Temosnesta cidade como testemunho o sangue derramado pelo nome de Cristo notempo do governador romano Daciano por parte de mártires como Máxima,Veríssimo e a virgem Júlia»34, que se tornaram nos mais importantes mártiresolisiponenses vítimas daquela purga e cujo culto – segundo Maciel (1994, 36)– é bastante provável que fosse comum na época visigótica, porquanto seencontram citados entre os padecedores mais venerados da Hispania. Naverdade, esta perseguição, talvez das mais cruéis, foi tida como o último grandeesforço do paganismo para sobreviver num meio que se lhe tornara hostil, atéporque as mudanças operadas nos dois últimos séculos haviam conduzido auma mentalidade que não se revia, de modo algum, na religião oficial do Estado.Neste sentido sabe-se, apesar das especulações que a escassez documentalproporciona, que Potâmio, um letrado que nos deixou alguns escritos, foi oprimeiro bispo olisiponense35, por volta de 343-360, e que depois deconvertido ao Arianismo terá retornado à ortodoxia cristã, talvez por altura doconcílio de Rimini, em 359 (Alarcão 1994, 63), tendo morrido, no ano seguinte,a caminho da sua uilla, «como que documentando a progressiva abertura deOlisipo ao campo» (Maciel 1994, 37) e à sequente expansão do cristianismopelos agri, como acaso testemunhará, bastante mais tarde, o epitáfio cristão, aoqual, aproveitando a lápide sepulcral de Átila Máxima, filha de Marco, seacrescentou, uma inscrição bastante rude: «Em nome de Nosso Senhor Jesus

34 Discurso do Arcebispo de Braga, D. João Peculiar, proferido aquando do cerco de Lisboa, a 30 deJunho de 1147 (in www.arqnet.pt).

35 Potâmio, convocado pelo Imperador Constâncio II, participou no Concílio de Sirmium de 357 etrocou correspondência com Santo Atanásio (cfr. Coelho 1994, 75), tudo factos reveladores de queeste isolamento da finisterra ocidental foi apenas aparente, porquanto os caminhos do Orientecontinuavam activos.

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Muralha Romana Tardia de Lisboa, sobre Alfama. © Fotografia de J. Maciel.

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Cristo, eu vosso bispo Ildefonso…» (Fontes 1960, 34). E, quando Teodósio,neste mesmo século, impôs o Cristianismo como a religião oficial do Império,através do édito De Fide Catholica, em 392, constata-se que se tratou de ummero acto político, pelo que, nessa medida, este também não foi um compor-tamento novo (Dias 2002, 95)36.Todavia, esta vitória sobre os demais contextosreligiosos, permitiu, em pleno século IV, uma mudança na própria arte, ainda,por vezes, bastante arreigada aos cânones clássicos e apesar de utilizar a mesmaplasticidade, os conteúdos subjacentes diferenciavam-se pela mensagem atransmitir (Maciel 1994, 105), assumindo a arte, já pelo menos desde Constan-tino, uma função heurística que, além de colocar o princeps num nível superiorao do cidadão comum, encontrava nele o lado visível do divino que o investirada auctoritas imperial (Glay 2002, 480). E, nos tempos subsequentes, foi nessesentido que a arte, fundindo-se com as suas origens clássicas, evolucionou37.

Apesar dos condicionamentos continuamente impostos à matriz urbanade Olisipo, porque, relembre-se que o teatro do século I foi parcialmente demo-lido e nos finais do século IV ou inícios do V, tal como terá sucedido tambémcom as termas dos Cássios – desconhecendo-se até hoje qualquer referênciaou vestígio atribuível a um eventual anfiteatro que uma cidade, com esta impor-tância, deverá ter possuído –, ainda se aproveitava a pedra das ruínas para aconstrução de pequenas habitações, algumas delas parcialmente edificadas nasestruturas subsistentes (Diogo e Trindade 1999, 87). Refira-se, por outro lado,apesar das múltiplas contrariedades e inseguranças então vividas, não teráexistido uma ruptura completa da actividade produtiva, quer na cidade, quer noseu ager. Até porque, conforme têm vindo a revelar os achados arqueológicos,a produção de ânforas olisiponenses não cessou com a desagregação da pars

36 Aqui aportados importa referir que, nos agri, são frequentes as conciliações entre monumentospagãos e a simbologia cristã, acrescendo-lhes muitas vezes atributos cristãos, por conseguinte,refira-se, a mero título exemplificativo, que, tal como se observa noutros locais, se guardam noMuseu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas vários monumentos “cristianizados”que foramrecolhidos no ager olisiponense (Fontes 1960, 11).

37 Dentre os vários exemplos que poderíamos citar a este propósito, lembramos Virgílio, a quem opróprio Santo Agostinho, séculos depois, chamou o nosso poeta, porque este, de certo modo,antecipara na sua obra os princípios cristãos, não só na inconstância de Eneias que ansiava, a todoo custo, o céu, mas também, numa écloga onde «utilizaba un lenguage mesiánico, inspirado nosmodos de Israel, para vaticinar el advenimiento de una edad de oro; una nueva época que llegaríaal mundo de la mano de un recién nacido “que tendría la vida de los dioses”. Hoy sabemos quela composición estaba dedicada al hijo recién nacido de Polión, un alto funcionario imperial a quienVirgílio queria homenajear» (Vidal Guzmán 2007, 126).

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Occidentalis do Império, porquanto restos e naufrágios de navios desta épocarevelam que as suas cargas – ao contrário do que sucedera em épocas ante-riores – eram diversas, e provavelmente carregadas em diferentes portos,factos, por si só, reveladores da diminuição da produção, mas não da extinçãodas rotas comerciais, apesar de não se saber se mantiveram ou não os antigoscircuitos de distribuição (Fabião 1996, 333-334). Neste contexto, recorde-se,como oportunamente lembrou Blázquez (1993, 106), que por «el Estrecho deBonifacio o por el sur de Cerdeña pasaban las naves hispanas que llevaban aRoma los minerales, el garum, el vino tarraconense y el aceite hispano, y las quevolvían a Hispania con cargas de retorno, como sarcófagos, por lo que lasrelaciones entre Hispania y Cerdeña debían ser intensas. Esta ruta estáconfirmada por los hallazgos submarinos». E, na verdade, em plena tardo--antiguidade, Olisipo era uma cidade produtora e exportadora, ainda que a níveismuitíssimo inferiores aos de outrora, pelo que sequentemente conservavaalguma influência administrativa, e, a crer-se nesta hipótese, poder-se-á, talvez,encontrar aqui uma justificação para que esta cidade integrasse, juntamentecom Ebora e Ossonoba, as mais antigas dioceses do território hoje português(Mantas 1990ª, 173)38. Nesta medida, e apesar da naturalidade então observadaao nível dos contextos mais diversos do quotidiano e suas manifestaçõesartísticas, a cidade foi um pólo fundamental para a instalação da autoridadeeclesiástica, assim como foi um privilegiado centro difusor e ordenador dopróprio modelo cristão, fenómeno que se acentuou depois da Fé de Cristo seter tornado a religião oficial do Império.

7. Entre o fim e o recomeço

Entretanto, entre o final do século IV e os meados do seguinte, ocomplexo industrial do Millenium bcp – assim como as outras unidades depreparados piscícolas – deixou de laborar, tendo ficado ao abandono. Ainda emépoca não determinada, o tanque n.º 15 foi reutilizado para uma inumação tar-do-romana (Bugalhão 2001, 48 e 161), facto que, aliás não é inédito, porquanto

38 Depois do bispo Potâmio, que governou a ecclesia de Olisipo ainda em tempos pagãos, o 2.º bispoconhecido, data já dos finais do século VI, chamava-se Paulo e participou em 589 no 3.º concílio deToledo.Três epitáfios, de Alenquer, em 532, de Cheleiros, em 537, e de Chelas, em 571, mostramque no século VI o Cristianismo se tinha generalizado no território olisiponense (Alarcão 1994, 63).

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este tipo de fenómeno se observou noutros pontos da cidade, designadamentena área intra-muros, tendo-se detectado em entulhos, nas escavações doPalácio Penafiel, parte de uma tampa de sepultura, igualmente tardia, com umramo de oliveira ladeado por duas pombas afrontadas inscritas e um pequenofragmento de mosaico com parte de uma legenda, [REQ]VEV[VIT], quesupomos ter pertencido a um sepulcro cristão com cronologia – atribuídaatravés de do estabelecimento de paralelo com exemplar análogo de Frende– circunscrita ao século V (Caetano 2006, 27). Estes achados, ainda quedispersos, não clarificando as profundas alterações operadas no espaço urbanode Felicitas Iulia Olisipo, cujo modelo clássico sucumbiu aos males do tempo oque, de certo modo, nos indicia que o ópido se tornou, como consequência dasua própria retracção39, num espaço rústicizado. E, aqui aportados, mencione-se que uma colecção de lucernas de fabrico grosseiro proveniente do teatro,estudada por Dias Diogo e Eurico de Sepúlveda (2000, 155), sugere não sóuma relação com escombros subsequentes ao abandono do teatro, masatribui-lhe um significado mais amplo fazendo-o depender directamente doaproveitamento das ruínas do teatro por uma ocupação paleocristã, cujo arocronológico alcança os finais do século VI.

Cada vez mais encerrada no seu próprio espaço e temerosa dos acon-tecimentos que desde 407 abalaram violentamente a sua estrutura secular, aprodução e – sobretudo – a exportação dos produtos transformados foidecaindo, conduzindo ao completo e definitivo abandono de muitas uillae e deunidades industriais, transformando Felicitas, cidade outrora próspera e afamadapelos seus produtos, num recanto praticamente isolado à beira do fim domundo. Segundo Ward-Perkins, «a força militar do exército do Ocidenteentrou em certo declínio. Na minha opinião, o caos da primeira década doséculo V teria causado uma queda súbita e dramática dos proventos dos impos-tos imperiais e assim nos gastos e capacidade militares. Alguns dos territóriosperdidos foram temporariamente recuperados na segunda década do século»(2006, 64). Na Hispânia para além das investidas dos povos germânicos –designadamente dos Suevos que, a partir de 429, avassalavam a Galécia, aLusitânia e a Bética (Rémondon 1984, 134) – e para além das suas ques-

39 Fenómeno igualmente observado em algumas uillae olisiponenses, designadamente, em SantoAndré de Almoçageme, Sintra, e na Quinta da Bolacha, Amadora (cfr. Encarnação 2003, 107-116),onde, em espaços edificados, entretanto abandonados, se descobriram enterramentos infantis,sepultados em telhas.

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tiúnculas também religiosas entre arianos e cristãos (descritas, aliás, na Crónicade Idácio, Bispo da Galécia, coevo dos acontecimentos), contribuíram igual-mente para esse fim: a guerra civil – com Máximo a entronizar-se, na Península,como Imperador do Império do Ocidente, enquanto noutros territórios se iamrepetindo as usurpações do poder (Ward-Perkins 2006, 65) –; o surgimento dapeste, em 442; e a agitação social com o fenómeno dos Bagaudas que tambémesteve presente na Hispania, designadamente, nos anos de 435, 436 e 449 (Lot,1985, 253). Idácio (308.ª olimpíada) referiu ainda que, em 454, os godosesmagaram os Bagaudas da Tarraconense. Consequentemente, neste quadrode caos e violência que sintetizámos e, sobretudo, após os exércitos romanosterem sido batidos, em 439, pelos Suevos, os quais, após a conquista de EmeritaAugusta, passaram a dominar a Lusitania e a Baetica.

Em 469, «Lisboa é ocupada pelos Suevos porque (da cidade) fez entregaLusídio, um dos seus cidadãos que era seu governador. Conhecida esta novi-dade, os Godos, que, (neste comenos) tinham chegado (aos arrabaldes deLisboa), invadem (a região) e fazem pilhagens entre os Suevos, do mesmomodo que entre os Romanos que estavam sob o domínio suévico nas regiõesda Lusitânia» (Idácio, 312.ª olimpíada). De facto, do texto do clérigo flaviensesobressai a dificuldade em penetrar as muralhas olisiponenses, porquanto foiapenas com a cumplicidade do seu praeses que se tomou aquele bastião,depreendendo-se, ainda, que os visigodos ocuparam e saquearam o ager.Toda-via, a imagem apocalíptica – e não nos podemos esquecer de que ao longo dasua crónica o bispo, provavelmente numa perspectiva escatológica do fim dostempos, foi intercalando uma série de singulares fenómenos celestes entãoobservados – será exagerada, porquanto, logo que regressou a acalmia dostempos, grande parte da estrutura económica, social, política e cultural doImpério reemergiu, ainda que envergando um outro prospecto (Ward-Perkins2006, 91), pois «continuavam abertos os caminhos do Mediterrâneo» (Maciel1996, 61), como o comprovará o envio pelos Suevos, de Lusidius como embai-xador, à corte do Imperador do Oriente Anthemius.

O rápido desmantelamento do poder de Roma, face ao cenário quetemos vindo a evidenciar, permitiu aos Visigodos, durante o reinado de Vália,estabelecer uma aliança com o general romano Constâncio, e, depois de acan-tonarem os Suevos no noroeste peninsular, não mais abandonassem a Hispânia,ainda que a sua chegada em hordas maciças tenha ocorrido apenas entre 453e 466. E se, num primeiro momento, a autoridade foi partilhada, pelo menos na

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capital da Lusitânia, entre Visigodos e Hispano-Romanos (Martin 1999, 32), naverdade, em 585, os Visigodos dominavam toda a Península e Roma perdeu,definitivamente, todo este vasto e rico território. Contudo, «a absorção desuevos e visigodos pelos hispano-romanos só se consumará progressivamenteapós a conversão do sucessor de Leovigildo, o rei visigótico Recáredo, que aban-dona o arianismo, após o solene concílio de Toledo de 589» (Coelho 1994, 78).

Desde os fins do século VI e começos do seguinte assistiu-se a um novoperíodo de prosperidade, quer ao nível da produtividade do ager, quer daprópria cidade de Olisipo que, libertando-se do seu casco urbano, reencontrouantigas rotas comerciais com o Oriente, de onde retornavam igualmente novosmodelos que, miscigenando-se com os antigos valores romanos e indígenas,manifestaram-se também, de algum modo, na arte paleocristã. Deste períodopensa-se que em Santos-o-Velho terá existido uma igreja dedicada aos mártireslisbonenses (Alarcão 1994, 63) e, provavelmente no lugar onde se implantara abasílica romana, ter-se-á erigido uma outra igreja que se tornou na mesquita--aljama e, depois de 1147, terá cedido lugar à Sé Catedral: «Os espaços sagradosmudam de sinal mas perduram» (Coelho 1994, 75).Todavia, têm-se trazido àcolacção outras teses, designadamente a que defende «o facto, tambémpresumível, de o espaço onde séculos mais tarde se implantou a Catedralromânica não ser o centro da cidade pós-romana, uma vez que existem indíciosde a primitiva basílica paleocristã ter sido instalada num outro ponto da malhaurbana, designadamente na Igreja de Santa Cruz do Castelo e não no sítio daSé» (Fernandes 2002, 60 e n. 11). Incrustada na parede norte da Sé permane-ceu, longos séculos, um fragmento de um friso com baixo-relevo, uma Placa doParaíso, datável do século VI ou VII e ostentando três arcos em ferradura envol-tos numa cercadura vegetalista e no vão central representam-se duas avesafrontadas, enquanto que nos laterais quadrúpedes tirados de perfil, encon-trando-se em deles muito desgastado, de nítida influência bizantina; do mesmolocal provém um ábaco com decoração vegetalista e idêntica datação40. Dasmanifestações artísticas tardias desta cidade, destacam-se, ainda, parte de umfriso de pilastra finamente lavrado com motivos geométricos e florais (Coelho1994, 75-77), cuja cronologia tradicional lhe atribui um fabrico de contextovisigótico (Rua dos Bacalhoeiros) e com proveniência do antigo convento de

40 Mais recentemente, estas cronologias têm sido revistas e vários autores, inclusive, consideram-masobras moçarábicas do século X (Fernandes 2002, 67-68).

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São Félix (Chelas) e, igualmente amaciada pela influência bizantina, umfragmento de pilastra, ostentando nos quatro lados a repetição da ornamen-tação: grifos envoltos em círculos formados por festões e folhagem; dali provémtambém um silhar com leões esculpidos em baixo-relevo, apontando-se paraestas duas distintas peças uma cronologia circunscrita aos séculos V a VII(Hauschild 1986, 167 e 169)41.

Este período de florescimento foi abruptamente cerceado com a inva-são islâmica, e a cidade tombou em 714. Durante este período de ocupação, aOlisipo romana e paleocristã transmudou-se na Aluxbona moura: «Lisboa está aocidente de Beja. É uma cidade antiga edificada à beira-mar cujas vagas se vêmquebrar contra as suas muralhas. O seu antigo nome é Cudia. As muralhas sãoadmiráveis e de boa construção. A porta ocidental, a maior da cidade, éencimada por arcos sobrepostos que assentam em colunas de mármore, porsua vez apoiadas em envasamentos de mármore. Lisboa possui uma outraporta que se abre a Ocidente: chamam-lhe Porta de Alfofa. Domina um vastoplaino atravessado por duas ribeiras que vão lançar-se no mar. Ao Sul encontra--se outra porta, a Porta do Mar, na qual penetram as ondas na maré-cheia, evêm, numa altura de três braças, bater contra a muralha contígua. A Leste, umaporta, dita Porta de Alfama, que fica próxima da fonte termal situada junto aomar. São termas abobadadas nas quais brota água quente e água fria e que amaré-cheia cobre. Finalmente, uma porta a leste, a Porta do Cemitério. Acidade de Lisboa é, por sua própria natureza, bela…» (Almunime Alhimiari, inCoelho 1989, I, 59-60). Cultos e tolerantes com as gentes tardo-romanas, osislâmicos permitiram-lhes conservar a sua fé em troca de determinado pecúlio– com templos moçárabes atestados em Milides (a antiga Cella de Colares) e,no topos serrano sobre o Cabo da Roca, a ermida de São Saturnino – e, apesardas investidas normandas dos séculos IX e X (cfr., v.g., Coelho 1989) e dasconvulsões dos reinos islamitas na Península Ibérica, ora entre si, ora empur-

41 Ou, no contexto que também evidenciamos na nota supra, uma datação igualmente moçarábica.Paulo Almeida Fernandes afirma no aludido estudo que considera também que foi na PenínsulaIbérica «que a arte paleocristã mais se prolongou no tempo, através das comunidades hispano--romanas – maioritárias perante a elite dirigente visigótica» e adiante refere que «esta influênciapaleocristã é também importante não apenas de um ponto de vista estilístico. Ela ajuda acompreender as múltiplas vias de criação iconográfica do grupo moçárabe de Lisboa» (2002, 81).Aqui aportados, e perante uma aparente contradição quer cronológica, quer estilística ou autoral,acreditamos vivamente na necessidade de se proceder a uma revisão mais aprofundada destasnovas cronologias apontadas.

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rados pela reconquista asturiana, mantiveram o brilho que o correr dos temposlhes fora ditando:

É um cavalo negro que pertence à família dos garanhõesAluají e Lahíque. A noite serve-lhe de vestee a aurora pôs malhas brancas nos seus cascos.

(Ibne Asside, in Coelho 1989, I, 256)

Por isso, quando os cruzados – vindos do norte feudal – amararamdefronte das muralhas, em 1147, espantaram-se porque se viram perante «omais opulento centro comercial de toda a África e duma grande parte daEuropa (…). Os seus terrenos, bem como os campos adjacentes, podemcomparar-se aos melhores, e a nenhum são inferiores, pela abundância do solofértil, quer se atenda à produtividade das árvores, quer à das vinhas. Éabundante de todas as mercadorias, ou sejam de elevado preço ou de usocorrente; tem ouro e prata. Não faltam ferreiros. Prospera ali a oliveira. Nadahá nela inculto ou estéril; antes os seus campos são bons para toda a cultura.Não fabricam o sal: escavam-no. É de tal modo abundante de figos, que nós acusto pudemos consumir uma parte deles. Até nas praças vicejam os pastos. Énotável por muitos géneros de caça: não tem lebres, mas tem aves de váriasespécies» (pseudo-Osberno, in Oliveira 1936, 59).

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RESUMO

A fundação romana determinou operfil urbano de Évora, ainda que, doconjunto de vestígios antigosassinaláveis, os mesmos se reportem aexemplos dispersos pelo núcleourbano, destacando-se o Templo, osrestos do sistema de muralhas, umadomus do séc. I e as Termas, além dealgumas peças escultóricas recolhidasrecentemente. No entanto, a principalherança antiga é de carácter estético evisual, subsistindo na própriaconfiguração das ruas, bem como nadistribuição de zonas e linhasdinâmicas de expansão, que vieramparticularizar o aspecto físico docrescimento histórico da cidade,reflectindo-se, até, no modo como asmuralhas do séc. XVII, prolongaram ereproduziram o desenho circundanteda primeira fortificação conhecida deÉvora.É neste sentido que os vestígiosmonumentais, testemunho do passado,se tornam igualmente sinal dememória, quanto a um gesto criativoinicial que moldou a intervenção noespaço.

ABSTRACT

The Roman foundation was a preview ofthe actual urban contour of Évora, even

if the old traceable remains are reducedto few but significant examples, as is the

Temple, parts of the Wall system, theRoman house of the 1st. Century andthe Baths, in addition to a number of

sculptural works recently recovered. Still,the main legacy is aesthetical and canbe seen in the street outline and in the

dynamics of urban expansion, whichcame to define the peculiar shape of the

historical outcome of the city’sdevelopment, notably reflected in the

way that the 17th. Century wallreproduced the circular design of the firstknown fortification.Thus, the monumentallegacy of Roman Évora, being a valuable

testimony of the past, is also a sign ofmemory, as what concerns the

fundamental first creative motion whichdefined an enduring physical

intervention in the surrounding space.

Palavras-chave: Monumentalidade; Urbanismo; Antiguidade; Fontes; Paisagem

Key words: Monumentality; Urbanism; Antiquity; Sources; Landscape

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

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Ainda que em contraste com o modo como determinadas estruturasnão conseguiram conservar a sua integridade, os vestígios romanos são, para já,abundantes na circunscrição territorial que, na Antiguidade, teve o seu centrono lugar onde cresceu Évora. Ebora Liberalitas Iulia, tal como a vizinha Pax Iulia(Beja), em cujo conuentus estava, de resto, integrada, ou a não muito distanteOlisipo Felicitas Iulia (Lisboa), foi capital de uma das regiões administrativas daLusitânia, que, então, tomavam o nome de ciuitas, desde logo assegurando assima sua distinção particular. Enquanto algumas urbes possuíam estatuto de coloniae,como Pax Iulia, por ser a sede de conuentus, a outras reservava-se a qualidadede municipia: caso de Olisipo, que estava no conuentus escalabitano, e, também,de Ebora, ou, ainda, Ossonoba.

Ebora, como Olisipo, conservaria na toponímia o eventual testemunhodas suas origens pré-romanas; para Ebora, tal persistência interpretou-se comovestígio de primeira fundação celticizante, ao passo que Olisipo (bem comoOssonoba) parecem antes perpetuar a evocação da presença oriental. Por outrolado, assegurou-se, com os epítetos de Liberalitas e, sobretudo, como Ebora Iulia,a própria recordação das campanhas de Júlio César, tal como teria sido a home-nagem consagrada em tempo de Augusto1.

Na Antiguidade romana, a cidade correspondia a uma importante reali-dade social e cultural, reflectindo também, na proporcional medida em que eraimportante a sua implementação física, valores enraizados no âmbito consoli-dado do Classicismo. O nome, aqui referindo-se obviamente à homenagem

* Professor Auxiliar, Departamento de História e Centro de História da Arte e Investigação Artística,Universidade de Évora, Portugal. [email protected]

1 Cf. Alarcão 1986, 78-79; Maciel 1995, 79-80. A respeito das antigas cidades da Lusitânia romana, cf.ainda outras descrições sucintas in: Alarcão 1988, 143-144 (para Ebora) e pps. 188-189 (paraOssonoba). Cf. igualmente, Alarcão 2005, 7-9; e Lopes 2005, 11-19.Ver também, quanto à resenhada descrição em fontes clássicas: Patrocínio 2006a, 6-ss.

ÉVORA ROMANA:O legado edificado e a memória antiga

Manuel F.S. Patrocínio*

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prestada a Júlio César, evocava um recente momento de conquista que era,afinal, a entrada do sul no mundo romano. A própria cidade adquiria estatutode monumentum: manifestação de importante gesto, que se testemunhariaigualmente nas formas de edificação. Aproximamo-nos, portanto, do conceitode cidade enquanto espaço universal de memórias e de que a architecturafornece expressividade2.

Em finais do séc. XVIII, vem a Évora o eclesiástico espanhol D. FranciscoPérez Bayer y Bénicassim (1711-1794), interessado pelos temas do Classicismoe Orientalismo, além de ter sido Bibliotecário real e Perceptor dos Infantes deEspanha.A sua viagem decorre em Novembro de 1782, e, recém-saído de Bejaonde encontrou o seu amigo, então ainda Bispo, D. Frei Manuel do Cenáculo(1724-1814), dedica-se, em Évora, a olhar e a registar as «antiguidades»: epígra-fes latinas, o templo ainda imerso na torre gótica do Açougue, mas apontandohaver à vista «algunas colunas com sus capiteles corintios mui suntuosas», e océlebre friso de bucrânios, actualmente no Museu de Évora3.

Crê-se ter sido este friso parte de uma edificação original, que, em ciclotalvez dórico, precedeu a estrutura de templo que ainda subsiste no presente;correspondeu o friso a uma das primeiras descobertas arqueológicas monu-mentais que, durante o Renascimento, e por via do célebre protagonismo noresgate de antiguidades que coube a André de Resende, vieram a assinalar arecuperação da memória romana eborense. Em finais de Setecentos, o frisoainda se poderia contemplar na fonte da Praça do Giraldo4.

D. Pérez Bayer, embora mais interessado na epígrafe que encimava afonte, descreve a obra, porém, no seu diário. Dizia que era, então, um «frisoantiguo en que hai bucranios y platos de relieve en la forma que solia usarse en laarquitectura de los Romanos»; acrescenta, «no seria fuera de razón pensar quehubiese este friso sido del antiguo Templo»5.

2 Para o conceito clássico de monumentum e suas sequências, ver : Choay 1999, 14-15. O sentido demonumentalidade da cidade está, de resto, implícito nos propósitos que Vitrúvio apresenta, quando,no seu tratado De architectura, trata da necessidade de fundação e embelezamento construtivo dasurbes (Livro I, cap. IV-ss), dos seus templos (Livros III-IV) ou restantes estruturas públicas (Livro V).

3 Vasconcelos 1920, 119-127 e 130-133. O diário de Pérez Bayer, transcrito e editado por José Leitede Vasconcelos, constituiu um dos primeiros registos modernos, na senda que levou depois, no séc.XIX, determinados estudiosos a encetar o estudo do património antigo de Évora. Cf. também:Patrocínio 2000, 265-ss.

4 Vasconcelos 1920, 133. Cf. igualmente, para o friso: Alarcão 1986, 90; Nogales Basarrate e Gon-çalves 2005, 34-35; ou a notícia de catálogo, in Aavv 2005, 60-61.

5 Vasconcelos 1920, 139.

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Tem sido trabalhoso, desde então, o resgate como a interpretação devestígios propriamente datáveis de época imperial no perímetro do designadocentro histórico eborense. O templo, associado à imagética local, foi resgatadoe recuperado, em finais do séc. XIX, à sua condição de ruína parcialmenteoculta sob edificação gótica. Sinal, enfim, das transformações que contribuírampara uma contínua modificação nas edificações do centro histórico, em forteímpeto e dinâmicas de ocupação. Por recentes campanhas, no entanto, pers-pectivou-se o delineamento da própria matriz de ocupação antiga.

Desde logo, perspectivam-se as origens pré-romanas. Para Ebora Liberalitas,ainda que os níveis de ocupação pré-romana se mantenham ignorados, pelaextrapolação de conclusões aferíveis do que se sabe de outros lugares, é depresumível a sua evidência. Caso de Pax Iulia, que, por muito tempo, se julgouter sido uma criação nova romana, mas onde se identificaram recentementemateriais de fase anterior. Com efeito, o ponto alto de Évora é um cume demonte, talvez originalmente um esporão natural no lado virado a nascente,dotado das potencialidades que caracterizavam os antigos modos de ocupaçãocastreja. Situa-se aí o castelejo, ou o Castelo Velho, depois ocupado pelo velhoConvento de S. João Evangelista (actual Pousada dos Lóios e ainda descrito porD. Pérez Bayer), e pelos palácios tardo-góticos dos Duques de Cadaval e Paçode S. Miguel, de cujas galerias se observa uma panorâmica imponente sobre ohorizonte6.

Vitrúvio, no seu tratado De architectura, o qual, de resto, serve comodocumento referencial para as grandes realizações que, no período de Augusto,se transformam no próprio decoro do Império num código visual e monu-mental comum, não deixava de indicar, quanto à topografia, que as própriascidades romanas deveriam continuar a ocupar lugares «altos», e, além do mais,livres da incidência de geada ou neblinas. Quanto à fundação das fortificações,elemento necessário, para defesa como para a imponência da urbe, uma vezencontrado o «chão firme», deveria definir-se o seu alinhamento por umaadequação ao declive proporcionado pelas escarpas (VITRÚVIO, I,V).

Enquanto manifestação da necessária sensibilidade perante o espaço, éfundamental este aspecto de uma cidade que se equilibra em relação aomundo físico que a rodeia, em que há a atender aos princípios da natureza, e

6 Para a recapitulação das origens pré-romanas de Ebora, ver Alarcão 1986, 76. Para a área do CasteloVelho, sendo que a mesma área terá sido derrubada em finais do séc. XIV para a edificação doscitados palácios, cf. Balesteros e Mira 1994, 10, 16-17.

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em que a sua respectiva implantação, quase centrífuga, faz com que umoppidum que se protege atrás de uma linha de muralhas não seja necessaria-mente um lugar que se oculte ou isole contra a sua respectiva envolvência. Éna perspectiva de equilíbrio com a paisagem e na interligação com o território,que melhor se percebe a implementação da cidade romana de Ebora Liberalitas7.

Recapitulando-se os preceitos vitruvianos para a fundação das urbes,dividem-se, para já, as cidades estabelecidas junto ao mar das que se estabele-ceriam em regiões interiores; caso de Ebora. Comum, era a necessidade deescolher um lugar que fosse salubre, distante de sapais e pântanos, resguardadodos piores ventos, e onde se evitasse o efeito de demasiado calor, nefasto aosorganismos; porém que fosse sempre um sítio próximo a rios e fontes de abas-tecimento de boas águas. Depois, haveria a fincar os alicerces das edificaçõesem «chão firme» para a respectiva solidez das fortificações (cf.VITRÚVIO, I, IV).

Desde logo, está no ponto geográfico de confluência das três principaisáreas hidrográficas do sul: Tejo, Sado e o Guadiana. Do que se restituiu igual-mente das antigas e secularmente duradouras estradas romanas, é, não menos,ponto de cruzamento entre vias que atravessavam a província, e tornandocomunicantes entre si as várias capitais de ciuitates, assinalando-se, por vezesem notável sobreposição com lugares com vestígios materiais pré-históricos, apresença, junto às mesmas estradas, de uillae. As áreas envolventes, o ager, devocação agrária, ou, então, dedicadas à extracção de matérias-primas (como empedreiras antigas), e, não menos importante, onde se realiza a gestão dos recur-sos de água, são caracterizadas pela ocupação em uillae. Regista-se o particularrelevo da uilla de Nª. Sra. da Tourega, a dez quilómetros para oeste, junto àantiga via que seguia para Salácia (Alcácer-do-Sal), dotada, precisamente, de umcomplexo termal. Através de vestígios epigráficos resgatados, sabe-se quealguns elementos da família proprietária desta uilla detiveram, a dada altura, car-gos governativos na própria cidade8.

No centro histórico de Évora, também reconstituídos seja pelaorientação que ainda mantém o actual traçado de ruas, seja por testemunhoarqueológico, e correspondendo às vias estruturantes de cardo e dedecumanus, os eixos são igualmente vias de saída, tanto uma entrada para a

7 Cf. Kwinter 2001.

8 Esta epigrafia foi mais recentemente estudada por José Carlos Caetano (1957-2006), in Caetano2005, 41-ss.

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Templo romanoFace poente. Perspectiva do pódio, estilóbata e alinhamento da colunata no ângulo nordeste. © Fotografia do autor e deCecílio Mendonça

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urbe, como modos de comunicação entre o oppidum e o seu ager. Envolve aurbe uma fortificação. Quanto a esta, no que respeitava às torres, seria depreceito que teriam de ser «salientes para o lado exterior» e deviam estarseparadas pela distância nunca maior que a do alcance de um dardo; asegurança da sua implantação resultaria tanto mais eficaz quanto as estruturasse viessem a levantar com o apoio em terraplenos (VITRÚVIO, I,V, 2-5).

Apesar de tais indicações vitruvianas se aplicarem ao que se podedescrever das muralhas romanas de Ebora Liberalitas, ou Cerca Velha, encostadasao que é o final de declive que vem do Paço de S. Miguel e da zona deplataforma onde estão tanto o templo romano como a Sé gótica, e, ainda, emcertos pontos de facto sendo visíveis pontos de terrapleno, sabe-se que asmesmas não pertencem decididamente ao tempo de Augusto, enquadrando-se, obviamente, no conjunto de realizações do género que caracterizaram apassagem para a Antiguidade Tardia. Os paralelismos cronológicos aferíveis paraa comparação entre fases de intervenção edificatória romana em várias urbes,estão, pois, nas cercas amuralhadas que, nos sécs. III-IV, ocasião de considerávelagitação social e de conflituosidade que adveio das invasões por parte de povosestrangeiros ao Império, se vieram a edificar em torno às urbes. Mais uma vez,a situação é a mesma para outras cidades, da Lusitânia, como em todo oOcidente9.

Ainda que a designada Cerca Velha subsista em vigorosos troços edemarcação de ruas, mais uma vez o conhecimento do que poderá ter sido arealidade monumental também se perspectiva essencialmente por extra-polação e confronto, sendo que é sabido o modo como, noutros lugares, aimplantação de tais amuralhamentos cortou uma certa margem da ocupaçãourbana anterior, e obrigando, em momentos subsequentes, a uma maiordensidade e compactação habitacional nas partes intra-muros. Mas a questãocoloca-se no sentido de se saber até onde se estenderia, então, a cidaderomana em períodos prévios ao séc. III, sendo que o traçado ainda presente dachamada Cerca Velha não deixa de assinalar, na verdade, o início das cotas deelevação que conduzem ao cume eborense.

Emblemático, é o trecho de muralha, virado a norte, que suporta aplataforma, supostamente artificial, mas onde não se efectuaram ainda pros-

9 Ver, para a descrição do traçado da Cerca Velha, seus aspectos particulares e presumível cronologia:Alarcão 1988, 159-160; Balesteros e Mira 1994, 6-16.

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Templo romanoFace poente. Detalhe da organização edificada do pódio, nos níveis de embasamento com rebordo avançado; aparelho depreenchimento central e estilóbata, com assento de bases. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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pecções, onde assenta o templo romano.Trata-se de um lanço contínuo comcerca de três metros e meio de altura e quinze de comprimento, de notávelaparelho em opus quadratum. A sua articulação fazia-se com a próxima Torredas Cinco Quinas, parte do actual Palácio Cadaval, a nascente, e, na direcçãopoente, prolongar-se-ia até ao Arco de Dona Isabel, também identificado comotrabalho da concepção romana, sendo de amplitude circular, composta deblocos e aduelas, no intradorso do referido arco, que asseguram um largoacesso na via de cardo maximus; daí prosseguiria a muralha, para ocidente,ligando-se à Torre conhecida como do Salvador, tendo aí estado o Conventocom o mesmo nome.Toda esta parte foi, no entanto, derrubada e reocupadacom outros edifícios, tendo-se rasgado igualmente ruas, mantendo-se, todavia,o contorno exterior no desenho de actuais vias de circulação10.

Inflectindo depois para sul, a Cerca Velha carece de vestígio exacto aolongo da Praça do Sertório, ressurgindo de novo à designada Torre de Sisebuto,baptizada com o nome de um soberano visigótico, e prossegue pela Rua daAlcárcova de Cima, a meio da qual se situam as traseiras da Casa de Burgos,outro palácio de fundação medieval, que integrou assim alguma extensão demuralha. É nesse ponto que, não apenas, vemos a reutilização de materiais, casode fustes marmóreos de colunas antigas em firme contraste com o opusquadratum, como, também, encontramos os restos de casas urbanas romanas aservirem de alicerce à muralha, com pinturas murais decorativas. O espaço derecesso entre torres e torreões foi também ocupado por prédios recentes11.

Se bem que, em determinados pontos da muralha, se reconheça clara-mente a engenharia romana, do afeiçoamento dos blocos às marcas de ganchoe ao ritmo regular com que, ao longo da disposição dos paramentos, se vierama erguer as torres de vigia em pontuais avanços pronunciados sobre o alinha-mento da fortificação, o certo é que, tal como sucedeu com quarteirões ecasas do centro histórico de Évora no interior da Cerca Velha, também aquihouve claras intervenções posteriores, de fases visigóticas e islamo-árabes atempos já medievais, em que, de resto, se fundaria também, no séc. XIV, achamada Cerca Nova, que ampliou consideravelmente o espaço urbano, sendoa reconstrução portanto deveras recorrente.

10 Ver, para a consideração da parte de muralha, contígua à actual Rua do Menino Jesus, entre aplataforma adjacente à base do Templo e a Torre de Salvador:Alarcão 1988, 159; Balesteros e Mira1994, 8-9.

11 Cf. Balesteros e Mira 1994, 12.

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Torre «das Cinco Quinas» (Cruzamento da Rua Augusto Filipe Simões com a Rua do Menino Jesus).Aspecto do perfil esquinado, de traço poligonal. Atrás, está o Paço dos Duques de Cadaval e a zona do chamado «CasteloVelho». © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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Pano da antiga muralha (Rua do Menino Jesus). Aspecto do aparelho regular (opus quadratum), em alinhamento com a «Torredas Cinco Quinas», estruturante da plataforma de alicerce do Templo romano eborense e sobre o possível limite do forum.© Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

Porta romana, de duplo arco (Rua de D. Isabel, outrora Largo). Perspectiva desde o lado anterior, com vestígios construtivosdiversos mas mantendo o possível desenho de origem, e indicando a via de cardo na direcção norte. Contíguo ao antigoConvento do Salvador. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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Torre de Sisebuto (Rua Nova, esquina com a Rua da Alcárcova de Cima)Outra das emblemáticas torres ligadas à cintura da Cerca Velha eborense, diante da Caixa de Água do séc. XVI. Tratar-se-á aTorre, no entanto, de uma reconstrução já posterior, dado o tipo de aparelho de pedra identificável no seu sentido superior.© Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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Embasamento da Torre de Sisebuto (Rua Nova, esquina com a Rua da Alcárcova de Cima).Surge aqui um tipo de emparelhamento de fase antiga, porém diferenciando-se do modelo de blocos do tradicional opusquadratum romano, que se tem interpretado no sentido de aproximação a técnicas helenísticas e bizantinas. Adiante, namesma rua, mantém-se o vestígio visível de um torreão, a delimitar a parede do actual Palácio de Burgos, onde se resgatouigualmente o espaço de domus. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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A par, assim, de alguns panos de amuralhamento, várias dessas torrescontinuam de pé, embora integradas em edificações posteriores. Reconhece-seo trabalho romano, da base até a meia-altura, nas partes em que são bemvisíveis os sinais do tipo de aparelho de pedra aplicado, aqui o granítico (emsaxum quadratum, o mesmo que opus quadratum), sendo que era o evidenterecurso material mais abundante no território eborense, como pelo Alentejo,também usado nos fustes das colunas do templo. De igual forma, os embasa-mentos, dos pontos onde a Cerca Velha ainda se pode observar em modos dearranque, caracterizam-se pelo avanço em relação à linha do pano de muralhaque aí se apoia; e quanto aos «fundamentos», indicava Vitrúvio, «com uma espes-sura mais larga do que a das paredes que ficarão acima da terra», devia-se enchê--los de concreto, para uma boa consistência (VITRÚVIO, I,V, 1).

Assinala-se uma diferença. Nos inícios do Império, e conforme o afirmaexplicitamente o tratado vitruviano, as torres deveriam ser redondas ou poligo-nais. Em Évora, a Cerca Velha exibe, ao invés, sucessivamente, torres de basequadrada, o que, no entanto, não deixa de ser um aspecto da arte das fortifica-ções da Antiguidade Tardia – e, em sequência, da arte das fortificações medie-vais –, muito embora haja duas torres, a já citada Torre das Cinco Quinas e aTorre sul da Rua Cinco de Outubro, que conservam perfil esquinado.

Em termos gerais, sendo pela adequação aos relevos, seja pela própriaveneração quanto aos elementos, a arte e a técnica dos Romanos prestavam-seao culto da Natureza, bem como tomavam como norma o que vinha do conhe-cimento do universo. Daí, para já, a adequação das ruas e das construções àincidência da luz natural e da distribuição dos ventos. A natureza tambémirrompia noutros vestígios. O templo eborense estava, precisamente, rodeadopor um tanque de água, identificado já no séc. XIX, mas melhor conhecidosomente em recentes campanhas arqueológicas, dirigidas por TheodorHauschild; o tanque envolvia três lados do pódio, com uma largura de cincometros, ficando somente livre a sul a zona de acesso, por escadaria, à plataformado temenos12.

A fundação do fórum eborense terá decorrido na época de Augusto, àsemelhança, de resto, do que se conhece para restantes ciuitates do território

12 Além de diversos trabalhos de Theodor Hauschild, que apresentaram dados do estudo eintervenção no Templo desde a década de 1980, destaque-se, como recapitulação mais recente:Hauschild 2005, 21-22.

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lusitânico. O exemplo mais referente será o fórum de Conímbriga, para o qualse identificaram duas fases principais de edificação: a inicial em torno ao séc. I;a seguinte para o séc. II d.C., em que houve um rearranjo monumental.Tambémas cronologias apuradas para a intervenção no fórum de Pax Iulia (Beja) vêmcoincidir nestas mesmas duas grandes fases, em torno ao séc. I e, a outra, emtorno ao séc. II d.C., tendo o sítio do seu templo sido identificado por AbelViana, em trabalhos da década de 1940, mas mais não restando senão o vestígioresidual de uma plataforma13.

No momento de fundação augústea de Conímbriga, o seu fórumcomportava, em incontornável domínio do espaço, um templo, a norte, naorientação convencional, o qual, na sua reconstituição segundo Jorge de Alarcãoe Robert Etienne, teria o, também convencional, esquema de peripteron,santuário urbano rodeado de colunata, sobre pódio; aqui era um edifíciotetrástilo, com um total de vinte colunas que, embora também de classecoríntia, acabariam por ser em inferior número ao do templo de Ebora, esteperipteron hexástilo, conservando catorze colunas in situ e vestígio de mais dozebases.

O templo eborense constitui-se, na verdade, como ressalva no quadrode vestígios da edificação romana, sendo, não apenas localmente como portoda a antiga província, dos únicos casos em que foi possível encontrar umtemplo romano que se manteve ainda presente no seu respectivo sistema deapoio e lançamento14. Tradicionalmente descrito como dedicado a Diana,desde autores portugueses dos sécs. XVI-XVII, não se comprovaria porém talconsagração, antes reservando-se a interpretação como sendo a de umsantuário para culto imperial, o que a presença do tanque corroborará, peloseu simbolismo de omnipresença, tanto quanto evocava a disseminação devários cultos aquáticos na Lusitânia.

Nas duas fases do fórum de Conímbriga, não menos em diferença como que se sugere para Ebora, o espaço de esplanada diante do templo estavaladeado das seguintes estruturas: basílica, na primeira fase; um duplo pórticoaberto, para o séc. II. É provável, no entanto, que no fórum eborense tambémestivessem edificações similares: diversos achados escultóricos do lugar, em

13 Cf. Lopes 2005, 12-13; e, também, Alarcão 1986, 80-81.

14 Alarcão 1986, 89-90; Hauschild 2005, 21-22; Maciel 1995, 82-83.

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estado, contudo, fragmentário, reflectem sentidos de decoração pública, talcomo era usual colocar-se em zonas porticadas15.

Num caso como outro, a transformação decorrente deste arranjo,coincidente com o período Flávio, indicou, conforme se fez já notar em estudosinterpretativos, consagrou o fórum como um temenos urbano, ou seja, emsubstituição de anteriores funções civis, um santuário aberto em pleno fórum,na solenidade central que se exigia naquele austeramente majestoso lugar16. Otanque, resguardando um espelho de água, ofereceria ao divino a dádiva dahomenagem ao belo da criação maravilhosa da natureza, que era perfeição eordem, ou kosmos. Assim se tornava a água intrinsecamente parte da própriavida urbana, elemento que unia o humano ao natural e ao sagrado, da mesmaforma que o Imperador estava entre o humano e o divino; a água simbolizariaessa relação suprema.

O limite do fórum, diante do qual o templo se expunha em solenidade,vinha determinar o lançamento do cardo e do decumanus maximus. Ruasabaixo, a seguir à Sé, para sul, à Rua de S. Manços e próximo, na verdade, à saídapara as Portas de Moura, onde está outra das torres da Cerca Velha, conser-vou-se um quarteirão de perímetro redondo, o qual se crê ser a linha do antigoteatro. A referida rua guardou o sentido redondo que é, na verdade, o de umacavea, ou parede exterior, e o alinhamento deste presumível vestígio de antigoedifício, com sentido do limite oeste do fórum, parece enfim confirmar estaplausibilidade. O edifício, do mesmo modo, estaria também orientado com ocardo maximus, que, da saída das Portas de Moura, se prolongava na via paraPax Iulia17.

Descendo o centro histórico para poente, e tentando-se aferir o sentidoda distribuição de antigas ruas, encontrar-se-á, na Rua da Alcárcova de Cima, adomus do séc. I, que foi cortada pela extensão ainda intacta de amuralhamento,também já descrita, de períodos posteriores. Teria um átrio com peristilo, e

15 Á colecção reunida por D. Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, na sequência de explorações nadiocese de Beja entre os anos de 1770-1780, e com que se fundou igualmente o Museu de Évora,adicionaram-se recentes achados, mostrados entretanto em Exposição própria, co-organizada como Museu Nacional de Arte Romano de Mérida. Cf. Nogales Basarrate e Gonçalves 2005, 33-ss;Caetano, Joaquim Oliveira: Os Restos da Humanidade. Cenáculo e a arqueologia, in Aavv 2005, 49-56; Patrocínio 2006b, 17-36.

16 Para uma síntese sobre esta segunda fase do forum de Conímbriga, ver : Alarcão 1986, 80-81 e 84-86; Maciel 1995, 81.

17 Alarcão 1986, 95.

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Pano de muralha (Rua da Alcárcova de Cima, interior do Restaurante «O Grémio»).Exemplo de opus quadratum, com integração em construções posteriores, num troço da Cerca Velha que, apesar da reocu-pação, também conhece outros vestígios ao longo da Rua da Alcárcova de Cima e Rua de Burgos, paralelas, na subsistênciade antiga via urbana. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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Torre sul, ou «Torre do Anjo» (Rua Cinco de Outubro, nas esquinas com a Rua da Alcárcova de Cima e Rua da Alcárcova deBaixo). De duas torres originais, restou apenas a torre sul, de que se observa o respectivo arranque, em mescla de técnicas deaparelho construtivo. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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recuperaram-se vestígios de decoração pictórica, em painéis de molduraregular quadrada sobre áreas de exedrae e de cubicula.A muralha assenta sobreas suas paredes derrubadas, tendo-se confirmado recentemente que a domusestava contígua a uma via de cardo, entretanto, debaixo do actual Palácio da Ruade Burgos. Perto, surgiram igualmente as termas da cidade, em prédio igual-mente contíguo a outro troço, paralelo, de cardo, que sai pela porta do Arcode Dona Isabel, ou seja configurando a porta norte da Cerca Velha.

A orientação das termas é de norte-sul e conhecem-se cerca de duzen-tos e cinquenta metros quadrados de área, sob a qual acabou por se rasgar aPraça de Sertório, além de dois conventos desaparecidos, o Convento doSalvador e o de S. Paulo. Estão identificadas as áreas do laconicum circular, umtanque com cinco metros de diâmetro e rodeado de quatro apsides; dehypocaustum, bem como de praefurnium e de natatio. Identificaram-se também

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Remate da Torre sul, ou «Torre do Anjo» (Rua Cinco de Outubro, na esquina com a Rua da Alcárcova de Baixo).De novo, a sugestiva forma poligonal a sobressair entre os prédios envolventes mas mostrando igualmente um tipo deaparelho de pedra que dificilmente se pode considerar ainda antigo. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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Perfil da Rua da Alcárcova de Baixo. Desaparecendo aqui os vestígios descobertos da Cerca Velha, os limites da mesma,porém, restituem-se no próprio traçado visível das ruas circundantes ao núcleo de fundação romana. Neste ponto da cidade,a topografia configura um declive acentuado com reflexos na edificação posterior, e ao qual se encostam, em anteparo, osprédios desta rua, que termina, a sul, onde teria estado outra torre (diante à parede da Igreja de S. Vicente, ao fundo). © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça

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alguns elementos materiais e técnicos, com destaque para característicos operade consolidação e revestimento de superfícies (opus incertum e alvenaria naparede do tanque do laconicum; opus signinum em sucessivos pavimentos), epara a cloaca de pedra que assegurava o escoamento do mesmo tanque.

Escavou-se e musealizou-se o laconicum, sendo que o desenho dotanque acabou por definir, ao correr do tempo, uma sala de paredes com perfiloctogonal, presente na planta do Palácio, também medieval, dos Condes deSortelha. Parcialmente derrubado no séc. XIX para se edificarem os actuaisPaços do Concelho segundo um esquema de época, que, entre o gosto peloeclectismo das formas exteriores como nos elementos da arquitectura do ferroa interior, acabaram por manter a referida sala18.

Tanto a indicada domus, como o que constituiriam as termas públicas dacidade eborense estão, desta forma, junto a duas ruas paralelas quanto aosentido do cardo maximus; todos estes vestígios foram resgatados em edifíciosem que, presentemente, estão instalados serviços públicos. E, na verdade, estesmomentos de uma edificação antiga romana são, não apenas, o que melhorresta de uma primeira fundação de Ebora Liberalitas Iulia, como sinais de umaextensão de centro urbano que, na Antiguidade Tardia, e com a implantação dasmuralhas, veio a ficar reduzido.

Com efeito, o templo, como o presumível teatro da Rua de S. Manços,a domus do séc. I e as termas públicas, vieram a situar-se, ou a escassos metrosda cerca, ou junto da mesma.A questão coloca-se em saber qual a área da urbeque adveio da fundação augústea; ou, não menos, em saber-se se teria existidouma primeira cerca romana antes – e que primeiro perímetro teria entãoconhecido Ebora Liberalitas19. Descreve Vitrúvio que, para se conceber ascidades, se deveria escolher um ponto central do recinto, para, desde esse sítio,a partir de um círculo que se desenhava em redor, e a uma determinada hora,se medir quer a incidência da luz e da sombra, quer a direcção dos ventos;assim mesmo se prefiguraria o desenho das ruas, na sua distribuição linear entresentidos de cardo e de decumanus (VITRÚVIO, I,VI, 6-8).

18 Ver Sarantopoulos 2005, 26-28.

19 Era tradição que tenha havido uma eventual fortificação ainda em período do desavindo GeneralSertório, sem que, porém, se viesse ressalvar qualquer fundamentação arqueológica de tal facto. Cf.Balesteros e Mira 1994, 8.

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A principal herança da fundação augústea está, de facto, na própriaconfiguração que se lançou desde este esquecido gesto inicial que algum arqui-tecto executou, algures no tempo. Dos vários percursos possíveis, sobrepostos,todos a este ponto inicial, talvez assinalado pela centralidade do templo, quedetermina a orientação das ruas e das próprias vias rumo à envolvência dacidade. A urbe era como o coração de um território, sendo tal assinalado peloseu amuralhamento, pois a fortaleza da cidade era simultaneamente física eespiritual, funcionando a cidade funcionava como um corpo, concebendo-secomo um corpo.

A edificação, segundo os pressupostos clássicos, tinha de se propormaterialmente em harmonia, com todas as suas partes, tal como sucedia comas partes do corpo humano – base da teoria das proporções, que trazia em sio equilíbrio. Desta forma, as cidades, enquanto espaços de posteridade assina-lada pela monumentalidade, eram um cenário programático dotado de umalinguagem erudita e simbólica, na expressão exímia do que mais elevado eraassim capaz o trabalho do Homem, no sentido de arquitectura como momento,ou na qualidade de evento.

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ABSTRACT

The archaeological intervention in themonastery of São João de Tarouca began

in April 1998 and involved a largerehabilitation project for this building

(declared National Heritage) sponsoredby the Instituto Português do Património

Arquitectónico.The work already done,which should be completed in about two

years, allows for a preliminaryreconstruction of the original medieval

monastic complex.The exact date of the installation of the

Cistercian order in Portugal remainsunder debate. But the beginning of theconstruction of this monastery in 1154

makes it undoubtedly the earliestCistercian building in the then young

Iberian nation. New findings concerningdesign and building techniques reinforce

this idea and indicate that theconstruction process progressed at agood pace. If the importance of thismonastery for the understanding ofPortuguese Cistercian architecture is

clear, the archaeological work recentlydeveloped allows for its inscription in a

larger, European context.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Mosteiro de S. João de Tarouca; Reconstituição arquitectónica;Arquitectura cisterciense

Key words: Monastery of S. João de Tarouca; Arquitectonic reconstitution;Cistercian architecture

RESUMO

Tendo-se iniciado a intervençãoarqueológica no Mosteiro de S. Joãode Tarouca em Abril de 1998,integrado num amplo projecto dereabilitação deste MonumentoNacional por parte do InstitutoPortuguês do PatrimónioArquitectónico, a evolução dostrabalhos permite já, a pouco menosde dois anos da sua finalização, umaprimeira proposta de reconstituiçãoarquitectónica do complexo monásticamedieval original.À parte a polémica que rodeia aindao momento da entrada da Ordem deCister em território nacional, o inícioda edificação do cenóbio tarouquense,em 1154, torna-o quaseindiscutivelmente a primeiraconstrução cisterciense no entãojovem reino ibérico. Este primadoganha renovada força à luz dos novosdados resultantes da intervenção emcurso, onde a conformidade dotraçado e técnicas construtivas,apontam para um rápido processoconstrutivo.

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1. Introdução

Tendo-se iniciado a intervenção arqueológica no Mosteiro de S. João deTarouca em Abril de 1998, integrado num amplo projecto de reabilitação desteimóvel Monumento Nacional por parte do Instituto Português do PatrimónioArquitectónico (Castro e Sebastian 2002; 2004; 2006), a evolução dos trabalhospermite já, a pouco menos de dois anos da sua finalização, uma primeira pro-posta de reconstituição arquitectónica do complexo monástica medieval original.

À parte a polémica que rodeia ainda o momento da entrada da Ordemde Cister em território nacional, dividindo-se a comunidade científica entre aquestão da precedência temporal dos mosteiros de S. João de Tarouca e de S.Pedro de Lafões (Marques 1998, 32-47), o início da edificação do cenóbiotarouquense, datado de 1154 segundo inscrição no tímpano da porta dosmonges (Barroca 2000, 254-258), torna-o quase indiscutivelmente a primeiraconstrução cisterciense no então jovem reino ibérico. Este primado ganhaagora renovada força à luz dos novos dados resultantes da intervenção emcurso, onde a conformidade do traçado e técnicas construtivas, entre as quaisse salienta a análise das marcas de canteiro (a Castro e Sebastian 2005, 399-422.), apontam para um rápido processo construtivo.

Apontando-se em média um período de vinte anos entre a fundação danova comunidade monástica e a reunião das condições necessárias ao início daconstrução dos edifícios definitivos1, o curto período decorrido entre o reco-

* Arqueólogo, IPPAR – Serviço Dependente do Mosteiro de S. João de [email protected]

** Arqueóloga

1 O ritmo das obras de construção estava por regra sujeito ao fluxo financeiro da comunidademonástica, baseado sobretudo em doações e, a médio e longo prazo, na exploração agrícola dosterrenos doados e adquiridos por compra e escambo. A par de inúmeras e pequenas doações, o

UMA PRIMEIRA PROPOSTA DE RECONSTITUIÇÃO ARQUITECTÓNICA DO MOSTEIRO CISTERCIENSE DE S. JOÃO DE TAROUCA

Luís Sebastian*Ana Sampaio e Castro**

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nhecimento régio da comunidade tarouquense, em 1140, e o início dos traba-lhos de construção em 1154 apontam para um processo anomalamente célere(Vasconcelos 1933, 63-64; Marques 1998, 33-41;Torre Rodriguez 1999, 86-97).

Com certeza suportado por um surpreendente fluxo de doaçõesconsertado com uma eficaz política de compras e escambos de propriedades,a gestão optimizada de recursos por parte da ordem francesa de Cister é hojejá uma redundância histórica, podendo-se constituir o mosteiro em causa comoo primeiro exemplo deste fenómeno em território nacional, posteriormentesecundarizado pelo sucesso do Mosteiro de S.ta Maria de Alcobaça.

Novamente datada por inscrição, junto à ombreira Sul da porta principalda fachada, a sagração da igreja em 1169 é novamente indicadora do elevadoritmo imprimido ao andamento das obras de construção (Barroca 2000,333-369). Ainda que geralmente aceite a prática de sagrar o templo antes dasua finalização, contrapondo-se a urgente necessidade de culto à morosidadedo processo construtivo, a localização desta inscrição aos pés da igreja pode serteoricamente discordante, ainda que não de forma peremptória, com atendência de iniciar a construção pela cabeceira, sagrada e aberta ao cultomesmo antes da conclusão do corpo. Menos indicativo e mais determinante, aobservação do abundante número de marcas de canteiro indica igualmenteuma ordem construtiva horizontalmente uniforme a toda a planta da igreja,evoluindo verticalmente. Se bem que ainda em curso, o estudo petrológico dasilharia presente parece apontar já neste mesmo sentido.

Este inicialmente desconcertante exercício construtivo, para além deaparentemente pouco habitual, à luz do intermitente conhecimento actualnesta matéria, acarreta algumas interessantes implicações:

A montante pode-se então depreender que a este arrojo construtivoterá, por lógica material, correspondido a garantia do financiamento necessário,reforçando a especulação em torno do verdadeiro papel desta casa monásticacom a ascensão e afirmação do reino da dinastia afonsina, mantida pela percada quase totalidade do seu cartório no incêndio de 1841 do Seminário deViseu, onde foi armazenado após a extinção das ordens monásticas em 1834.

principal impulso viria por regra de grandes doações da aristocracia local, regional e da coroa,sendo que a atribuição por parte desta de uma área de couto ao mosteiro representaria a primeiragarantia de sustento e financiamento da comunidade monástica, beneficiando aí de jurisdição ecobrança fiscal. Deste princípio de financiamento resultava usualmente o arrastamento das obras,inclusive com longos períodos de suspensão dos trabalhos, e mesmo com sucessivas alterações dassoluções estruturais e estilísticas empregues (Leroux-Dhuys 1999, 38).

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A jusante, a comprovação deste facto reforça o papel do complexomonástico tarouquense como modelo arquitectónico por excelência do idealcisterciense. Designado por diversos investigadores como “plano cisterciense”ou “bernardino”, a uniformização arquitectónica dos cenóbios cisterciensescontrasta pela sua inflexibilidade em relação à prática usual na regra beneditinainicial e posteriores reformas, sendo a de Cluny dominante ao momento dacisão de Cister. Estando este facto inicialmente relacionado com o forte ecentralizado controlo dos Capítulos Gerais de Cister, este era sequencialmentematerializado a cada nova fundação pela implicação desta se fazer sobre aorientação de uma casa-mãe, gerando uma rede de inter-dependências esubordinações assaz uniformizadora de todos os aspectos da vida monástica.

A esta orgânica base, o período de acção de S. Bernardo definiriaincontornavelmente os moldes da sua futura afirmação. Sendo responsável poruma prodigiosa expansão monástica num curto espaço de tempo, este mesmosucesso ditaria ao futuro santo padroeiro da ordem a necessidade de criarprocessos de controlo, revendo-se na uniformização de formas e conteúdos omais intuitivo de todos na manutenção da vital coesão da ordem.

De entre a forma, a arquitectura é naturalmente o mais expressivo dosfactores, sobretudo se considerarmos o papel representado pelo espaço nocontexto de clausura, elevando-se o edifício acima do puramente funcional eassumindo-se ao nível espiritual como a representação física do ideal cenobita.Tendo-se S. Bernardo pronunciado sobre quase todos os aspectos da vidamonástica, a arquitectura recebeu de si sobretudo imposições de ordemestética, nas quais o despojamento é o tom dominante, sobretudo celebradonas suas cartas denominadas “Apologia a Guilherme”, de 1123-1125, naquestão que o opôs à ostentação da Ordem de Cluny. À parte da prepon-derância do ideário ascético no seu discurso arquitectónico, sabe-se que se terámesmo envolvido directamente na condução de obras no seu mosteiro deClaraval e em algumas das suas casas-filhas (Leroux-Dhuys 1999, 40).

Não deixa pois de ser significativo que o momento do início da cons-trução do Mosteiro de S. João de Tarouca se dê apenas um ano após a mortede S. Bernardo, quando a influência das suas ideias se encontra ainda no auge,com a sua canonização em 1174, sendo que a casa-mãe responsável pelafundação tarouquense na década anterior é, exactamente, Clairvaux, tendo porabade o próprio santo cisterciense. Se a isto juntar-mos a mais que naturalsuposição de que o plano a executar dataria dos primeiros anos da década de

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quarenta, com a filiação na nova ordem monástica e a chegada do núcleo inicialde monges de Claraval, compreender-se-á a tão intima relação do traçoempregue no Mosteiro de S. João de Tarouca com o movimento arquitectónicobernardino.

Às genéricas imposições ascéticas bernardinas no respeitante à forma eorganização dos complexos monásticos cistercienses (b Castro e Sebastian2005), impõe-se uma insistente uniformização de particularidades que setornam difíceis de explicar apenas pelo respeito às imposições versadas pelosanto. O princípio de a cada nova fundação corresponder o envio de um grupode doze monges da casa-mãe, portadores do conhecimento e prática da regulaCisterciense, abarca a quase certeza de com estes ser trazido o plano da novaconstrução, que com normais adaptações às contingências locais, expressaria avontade da casa-mãe (Leroux-Dhuys 1999, 37).

Assim, às linhas gerais impostas centralmente de cariz funcional, formale decorativo, dever-se-iam juntar indicações de pormenor da responsabilidadeda casa-mãe, às quais devemos ainda somar a própria vivência dos doze mon-ges por esta enviada, que na tradição oral da transmissão do conhecimento naárea da arquitectura medieval, seria apenas natural que impusessem a re-criação de soluções já observadas em cenóbios anteriores (Leroux-Dhuys1999, 39).

No entanto, a esta recriação de base vivencial que podemos apenaspressentir, impor-se-ia certamente, pela sua forma mais estruturada, o conjuntode disposições comunicadas pela casa-mãe. Estas deveriam corresponder aoentendimento dominante, no momento e dentro da ordem, do conceito deplano ideal, podendo-se mesmo por isso afastar da forma pré-existente dacasa-mãe. Deste princípio resulta o aspecto, aparentemente contraditório, deCister e as subsequentes quatro fundações primogénitas criadas entre 1113-1115, La Férte, Pontigny, Morimond e Clairvaux, não representarem, na poste-rior fase de apogeu e expansão bernardinos, modelos ideais do designadoplano cisterciense.

Se a vastidão do território de expansão cisterciense veio, ainda assim, agerar regionalismos arquitectónicos, dentro dos quais o italiano e o inglês serãotalvez os mais expressivos, pode-se reconhecer para o período de maiorinfluência bernardina um conjunto de imóveis de destacada uniformização, querentre si, quer em relação àquele que viria a ser considerado como o modelocisterciense, de natural cunho francês, e para o qual o mosteiro de Fontenay se

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viria a tornar o símbolo máximo, com envolvimento pessoal de S. Bernardo nasua concepção (Leroux-Dhuys 1999, 52).

A este último, fundado em 1119 por Claraval e tendo a sua igreja cons-truída entre 1139-1147, podemos assim juntar os mosteiros franceses deSilvanés, fundado em 1136 e com a sua igreja construída entre 1150-1250; deLe Thoronet, fundado entre 1136-1176 e com a sua igreja construída entre1160-1190; de Silvacane, fundado em 1144 e com a sua igreja construída entre1175-1230; de Fontfroide, fundado em 1146 e com a sua igreja construídaentre 1157-1210; de Sénanque, fundado em 1148; de Fontmorigny, fundado em1149 e com a sua igreja construída entre 1160-1225; e de Flaran, fundado em1151 e com a sua a igreja construída entre 1180-1210.

Numa leitura transversal a este conjunto de imóveis, aos quais sepoderia ainda juntar outros disseminados pela Europa ocidental, vários têm sidoos autores a avançar com propostas de aproximação àquela que seria a plantaideal cisterciense, ou se quisermos, bernardina. De usual referência, a propostade Wolfgang Braunfels (Braunfels 1975, 119-162) diferencia-se pouco da maisrecente proposta de Jean-François Leroux-Dhuys (Leroux-Dhuys 1999, 52),sendo talvez sintomático o facto dos ainda mais recentes dados fornecidospelas escavações arqueológicas no Mosteiro de S. João de Tarouca se aproxi-marem mais desta última.

Se é facilmente aceite o argumento da importância do Mosteiro de S.João de Tarouca para o conhecimento da arquitectura cisterciense em Portugal,pela sua primazia cronológica, a constatação da sua perfeita integração naconcepção arquitectónica bernardina estende esta importância à compreensãodo fenómeno cisterciense, assumindo assim uma dimensão europeia.

A esta argumentação devemos ainda juntar o facto de do conjunto demosteiros românicos inicialmente existentes em território nacional, vários teremdesaparecido fisicamente e, sobretudo, a maioria ter sido profundamente alte-rada nos períodos maneirista e barroco. De facto, dificilmente se pode obser-var uma fachada cisterciense medieval em Portugal, ou, não menos alvo deremodelações posteriores, possuímos qualquer claustro românico conservado.

Pela timidez das alterações feitas à igreja original do Mosteiro de S. Joãode Tarouca, nos séculos XVII e XVIII, esta permite-se ser, se sujeita a um traba-lho de análise cuidada, decomposta nas suas diversas fases construtivas, após aeliminação das quais podemos isolar a construção original e observar, pela pri-meira vez, a mais plena construção bernardina em território português (Fig.1).

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Ironicamente, o facto de as dependências monásticas terem sido vendi-das em hasta pública após a extinção das ordens monásticas em Portugal, tendosido desmanteladas para reaproveitamento da pedra, permite hoje, através doprocesso de escavação arqueológica, uma leitura impossível em edifícios con-servados, permitindo decompor, em certos aspectos mais facilmente, as diver-sas fases construtivas. À análise facilitada das técnicas construtivas empregues,desta condicionante resultou mesmo identificarem-se situações de outra formaapenas suspeitadas, como a recolha de um anel de oração no interior daparede Sul da sala do capítulo, relacionado com o ritual de sagração e escon-juro do espaço em construção, constituindo-se como o primeiro caso compro-vado arqueologicamente (Barroca et al., no prelo) (Figs. 2 e 3).

Fig. 1 – Registo gráfico do alçado exterior Oeste da igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca, com leitura cronológica de paramentos.© Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian

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Fig. 2 – Reconstituição da planta do Mosteiro de S. João de Tarouca nos séculos XII-XIII.© Ilustração de Luís Sebastian

Fig. 3 – Reconstituição em perspectiva do Mosteiro de S. João de Tarouca nos séculos XII-XIII.© Ilustração de Luís Sebastian

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2. O plano tipo cisterciense aplicado ao Mosteiro de S. João de Tarouca

Encontrando-se a comunidade monástica cisterciense dividida entremonges e conversos, cabendo aos últimos libertar parcialmente os primeirosdos afazeres quotidianos, de forma a cumprir a totalidade dos ritos religiososdiários e, não menos importante, a obrigação de clausura, a planta do mosteirocisterciense encontra-se organizada em duas metades opostas.

2.1. A ala dos mongesNo seguimento do transepto da igreja desenvolve-se a ala dos monges,

compreendendo a sacristia; o armarium para armazenamento dos livros litúr-gicos, resultante do espaço sob as escadas de acesso da igreja ao dormitóriono piso superior (a usar após o último rito do dia); a sala do capítulo, para arealização das reuniões capitulares onde a condução dos destinos da comu-nidade era decidida; a escada de acesso do claustro ao dormitório no pisosuperior (a usar no período diurno); um corredor de acesso do claustro aoexterior ; o scriptorium, ou sala dos monges, para prática da leitura e da acti-vidade copista; o noviciado, com funções paralelas às da sala dos monges; e aslatrinas, com acesso apenas pelo dormitório no piso superior (Fig. 4).

2.1.1. A sala do capítuloImpondo-se como um dos espaços mais importantes do complexo

monástico, a sala do capítulo abre-se ao claustro através de uma ampla portaladeada por janelas, comummente geminadas, destacando-se da sobriedade

Fig. 4 – Proposta de reconstituição da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca.© Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian

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geral das dependências monásticas por uma arquitectura excepcionalmentemais elaborada.

No caso do Mosteiro de S. João de Tarouca, a profunda destruição desteespaço impossibilita-nos uma reconstituição plausível do seu todo, comexcepção da fachada, felizmente registada nos princípios do século XX porvários fotógrafos2. Partindo então destes registos fotográficos, aos quais se jun-tou o único elemento arquitectónico recolhido em contexto de escavaçãoarqueológica, correspondente a uma aduela de um dos arcos das janelas gemi-nadas, transpôs-se com relativa facilidade as medidas verticais pela sua relaçãocom o braço do transepto da igreja, ainda conservado.

De forma a vencer as medidas horizontais, procurou-se compreender osistema aritmológico que esteve na base do traçado original. Partindo da análisearitmológica já realizada por Virgolino Jorge ao edifício da igreja, em que foipossível identificar o sistema dimensional empregue como tendo sido o Pé derei (Cunha 2003, 24-28), aplicado em módulos de oito pés (Jorge 1997, 431-456), procurou-se aplicar à fachada da sala do capítulo este mesmo sistemafrancês, confirmando-se a aplicação do Pé de rei como medida padrão base,subdividindo-se, nos emolduramentos, nas correspondentes medidas inferioressegundo o sistema designado por Rui Maneira Cunha como Quina dos Mestresde Obra (Cunha 2003, 34) (Fig. 5).

2.1.2. O auditorium dos mongesEntre as escadas de acesso do claustro ao dormitório e o corredor de

acesso ao exterior, também designado por Wolfgang Braunfels como auditorium,impõe-se a solução alternativa de um terceiro volume, que a existir permite oacesso e consequente aproveitamento como armarium do espaço inferior àsescadas de acesso ao dormitório. Aproximando-se a proposta de WolfgangBraunfels da solução que encontramos em Fontenay, a proposta de Jean-

2 Até ao momento podemos já identificar registos fotográficos do início do século XX daresponsabilidade do Visconde de Briteande (Vasconcelos, 1933, p. 215, 353, 353), Ramalho Ortigão(Vasconcelos, 1933, p. 63, 136, 214), Padre Vasco Moreira (Vasconcelos, 1933, p. 132-135, 181, 200,216, 217; Moreira, 1924, p. 53, 59, 63, 65, 67, 73),Aarão Lacerda (Lacerda, 1914, p. 149; Peres, 1929,Vol. II, p. 650), Marques Abreu (Moreira, 1911, p. 14,15; Dionísio, 1988, p. 739, 741;Vasconcelos, 1992,p. 63-64; Revista Arte, Archivo de Obras d’Arte, n.º 73, pág. 6-7, n.º 74, pág. 14), Alberto MarçalBrandão (Arquivo da Família Marçal Brandão, propriedade de Maria Luísa Salgado Ferreira) eDomingues Alvão (Centro Português de Fotografia). De realçar que os três primeiros nomesdeverão ser entendidos como os proprietários e/ou encomendadores dos registos feitos,desconhecendo-se a identificação dos fotógrafos responsáveis pelos mesmos.

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François Leroux-Dhuys encaixa perfeitamente na planta agora exumada doMosteiro de S. João de Tarouca.

Insistindo na designação de auditorium que Wolfgang Braunfels atribui aocorredor de acesso ao exterior, a função deste relaciona-se com o papel doPrior, monge nomeado pelo abade como responsável pelos assuntos adminis-trativos da comunidade, que desenvolvendo aqui a sua actividade recorria aoarmarium sob as escadas de acesso diurno ao dormitório como espaço dearmazenamento de documentação. Por ser permitido falar neste espaço demodo ao Prior tratar dos assuntos correntes com os restantes membros dacomunidade, em oposição à geral obrigação de manter o silêncio nos espaçosclaustrais, ao termo auditorium, de ouvir, podia-se igualmente aplicar o termoLocutorium, de falar. Aproximamo-nos pois mais da interpretação apresentadapor Jean-François Leroux-Dhuys, aparentando a solução de Fontenay nãopossuir a individualização deste espaço associado à actividade do Prior, que,garantidamente, teve também aí lugar (Leroux-Dhuys 1999, 66-67).

2.1.3. O noviciadoPeremptório no caso do Mosteiro de S. João de Tarouca é a ausência de

um espaço individualizado para os noviços, à semelhança do observado para ocaso de Fontenay.

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Fig. 5 – Proposta de reconstituição da fachada da sala do capítulo do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotaçãoaritmológica de pormenor e geral segundo sistema ad quadratum. © Ilustração de Luís Sebastian

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2.1.4. As latrinas dos mongesContrariamente, as latrinas exumadas durante os trabalhos arqueológi-

cos divergem da solução corrente pelo facto de serem duplas3. O princípiogeral de funcionamento passa pelo desvio de um braço de água a montante doribeiro que, por regra, sobranceia o extremo da ala dos monges. Este é induzidoa atravessar o corpo do edifício através de dois vãos opostos, resultando nofluxo constante de água sob o espaço de latrina situado no piso superior, comligação ao dormitório. Contudo, no caso em análise, esta solução passa pelasubdivisão do canal de passagem das águas, permitindo acrescentar umassegundas latrinas no piso inferior, com ligação ao scriptorium (Fig. 6).

3 Veja-se, a título de exemplo, a reconstituição das latrinas do mosteiro de São Cristóvão de Lafões(Dias e Jorge 1996, 227-240).

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Fig. 6 – Proposta de reconstituição das latrinas da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca segundo corte axial Norte-Sul. © Ilustração de Luís Sebastian

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2.2. O calefactoriumColado à ala dos monges, o calefactorium correspondia à única sala com

aquecimento no complexo. Com relação directa com o scriptorium, desta resul-tava a presença de uma porta de ligação directa entre os dois espaços ou,como nos casos de Fontenay e de S. João de Tarouca, a descentralização da suaporta de ligação ao claustro, tendendo a aproximar-se da porta do scriptorium.Pelo facto de possuir, por regra, uma ampla lareira, era excepcionalmente admi-tido aos monges recorrerem ao calefactorium para o exercício do seu laborcopista nos períodos mais frios de ano. A este carácter de excepção juntavam--se ainda os enfermos, podendo por consequência resultar aí na criação depequenos espaços de enfermaria.

Se no caso de Fontenay a enfermaria se encontra mesmo estruturadadentro do volume do calefactorium, no caso em análise este apresenta-se comoum espaço amplo e desconcertantemente reduzido para o emprego comoenfermaria.A ter representado esse papel, tê-lo-á feito de forma apenas reme-diada e sem capacidade para mais de meia dezena de enfermos em simultâneo.

2.3. O refeitório dos mongesSeguindo-se ao calefactorium, o refeitório dos monges posiciona-se per-

pendicularmente em relação ao meio do claustro, estrategicamente colocadodefronte ao lavabo e com comunicação com a cozinha, por sua vez próxima àala dos conversos por motivos funcionais.A comunicação com a cozinha far-se-ia por meio de uma roda, que podia consistir apenas numa janela de comuni-cação sem implicar propriamente um dispositivo giratório, como no conceitomais estreito do termo, ou, em sua substituição, por uma porta.

Apesar de os vestígios exumados arqueologicamente não incluírem asombreiras ou mesmo a soleira desta porta no Mosteiro de S. João de Tarouca,a sua existência fica provada pela sua marca de posição, consistindo esta numaseta bidireccional gravada na silharia sobre a qual foi certamente aberta.

Igualmente patente nos dados recolhidos, a elevação de um tão amplovolume orientado no sentido descendente do terreno, determinado pela pre-sença da ribeira a Norte do complexo, implicou o desnivelamento do seu piso,com rebaixamento da sua metade Setentrional e consequente presença de umdegrau transversal. Esta contingência não é, contudo, uma situação invulgar,bastando relembrar a forte inclinação do piso do refeitório de S.ta Maria de

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Alcobaça ou, de forma ainda mais assumida, nos pisos escalonados do claustrode Le Thoronet ou mesmo da igreja de Silvacane.

Esta contingência será responsável pela primeira campanha de obrasapós a edificação original detectada pelos trabalhos arqueológicos, consistindono alteamento da metade Norte do refeitório e nivelamento do piso pela cotada metade Sul, mais elevada, eliminando assim a incómoda presença destedegrau. Infelizmente, os poucos dados recolhidos sobre esta primeira remo-delação do refeitório, decorrida no século XIV, não permitiram perceber todaa sua extensão, sendo garantida contudo a reestruturação da cobertura, como acrescento de dois pilares centrais, no alicerce de um dos quais se recolheuuma nervura, sugerindo que a cobertura original se faria por uma abóbada decruzaria.

2.4. A cozinhaObrigatoriamente anexa ao refeitório, a cozinha poderia contar, ou não,

com um espaço de despensa no seu extremo oposto à entrada. Obrigatóriaseria a presença nesse extremo de um vão para escoamento de lixos, que pelanatural pendente do terreno, tenderiam a escorrer para a linha de água que aífaria o percurso entre a ala dos monges e a ala dos conversos. De entre as duassoluções, foi a mais simples a adoptada pelo cenóbio tarouquense.

Quanto ao interior da cozinha, este espaço revelou-se dos mais comple-xos e, pelo elevado nível de destruição geral das dependências monásticas, dosmenos inteligíveis arqueologicamente. Identificou-se contudo a lareira onde sedaria a confecção dos alimentos, subdividida em duas áreas de trabalho e loca-lizada no canto Sudeste. Impossível de confirmar foi a presença, ou não, de umaporta de ligação ao auditorium dos conversos.

2.5. A ala dos conversosEntrando na ala dos conversos, importa salientar de imediato a discor-

dância de orientação deste volume em relação ao restante complexo monás-tico. Não sendo arqueologicamente possível confirmar as razões que terãolevado a esta deturpação do plano inicial, presume-se que tal se tenha ficado adever à necessidade de encontrar uma área de afloramento rochoso propícioao assentamento do edifício. Se tal alicerçamento passou, na ala dos monges,pela construção de um possante alicerce com recurso a grandes elementos

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graníticos rolados recolhidos no leito dos ribeiros próximos, na ala dosconversos aparenta ter-se assumido uma solução mais prática e menos dispen-diosa, com sacrifício da harmonia arquitectónica.

Este facto dificilmente se poderá explicar de forma cabal, no entantoserá interessante considerar a função menos nobre deste espaço, normalmenterelegado para último na ordem de prioridades construtivas. Se a análise dasmarcas de canteiro aponta para a quase simultaneidade dos trabalhos deconstrução entre o edifício da igreja e a ala dos monges, as dissemelhançasentre as marcas observadas na ala dos conversos e as das restantes depen-dências monásticas parecem indicar um momento de construção mais tardio,reforçado pela recolha no seu alicerce de duas moedas de Afonso II, de emis-são entre 1211-1223. É curioso constatar que os vestígios da ala dos conversosde Fontenay, hoje desaparecida, sugiram igualmente um ligeiro desvio à orien-tação geral do complexo, ao qual podemos ainda acrescentar o acentuadodesvio da ala dos conversos do mosteiro alemão de Santa Maria de Eberbach(Romanini 1991, 418).

Acreditamos contudo que, dada a volumetria e disposição dos edifícios,esta divergência de orientação da ala dos conversos passasse em muito des-percebida.

2.5.1. O auditorium e o corredor dos conversosIndisfarçável seria a assimetria dos espaços correspondentes ao audito-

rium e ao corredor dos conversos. Encontrando-se os trabalhos de escavaçãoarqueológica por concluir nesta área, impõe-se já a incapacidade de se iden-tificar claramente os limites do espaço correspondente ao auditorium, estandoa habitual configuração do corredor dos conversos comprometida, sem que seentenda para já qual a solução alternativa adoptada.

Talvez como consequência deste facto, à solução mais corrente de sesituar a porta dos conversos de acesso à igreja no enfiamento deste corredor,impôs-se a sua abertura lateral na fachada da mesma. Se bem que nãopredominante, vemos esta opção ser tomada em diversos outros mosteiroscistercienses, de entre os quais destacamos os de Silvacane e de Fontenay.

2.5.2. Os dormitórios e as latrinas dos conversosÀ semelhança da ala dos monges, o piso superior da ala dos conversos

terá correspondido aos dormitórios, por regra providos de latrinas à

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semelhança do observado para a ala dos monges. Contudo, no caso doMosteiro de S. João de Tarouca, é-nos impossível apurar a sua existência noextremo Norte da ala, uma vez que com a reformulação seiscentista dessametade da ala, o piso foi alteado e os tramos das paredes laterais, quepoderiam permitir a identificação dos negativos da presença de uma parededivisória, foram refeitos. Com atenção aos objectivos de musealização supostosno projecto de reabilitação do mosteiro, o respeito pela conservação dosúltimos pisos tem sido predominante, com excepcionais sondagens emprofundidade. Esta interrogação, que por agora se mantém, seria poisjustificativa da realização de uma futura sondagem na área em dúvida.

2.5.3. A tulha e o refeitório dos conversosAssociada a esta dúvida, está a atribuição da função de refeitório dos

conversos a esta metade Norte da ala, de acordo com o indicado por WolfgangBraunfels e Jean-François Leroux-Dhuys, reservando-se a metade próxima àigreja como espaço de tulha.Temos por certa a função de tulha para os séculosXVII-XVIII, o que nos leva a colocar a hipótese de essa ter sido igualmente asolução original, apresentando-se esta disposição dos espaços de refeitório etulha como uma solução divergente do comummente aplicado noutrosmosteiros da ordem. Contudo, a manutenção da porta de acesso a este espaçocomo ligação para o auditorium mantém-se de acordo com o plano tipo,enquanto que à função de tulha estaria associada uma porta de grandesdimensões virada para o exterior, por óbvios motivos funcionais.

Encontrando-se em fase de finalização a escavação da metade da ala dosconversos próxima à igreja, esperamos obter mais dados que nos permitamconfirmar a distribuição de funções original, sendo que se encontra jáconfirmado o corredor de acesso ao exterior convencionado no plano tipo e,contraditoriamente, a presença inesperada de uma estreita portaposteriormente emparedada na metade Norte.

2. 6. O claustroNo centro de toda a organização do complexo monástico, encontramos

o claustro, responsável pela distribuição de acessos. Ao centro poderia possuiruma fonte, sendo obrigatório o lavabo virado ao refeitório.

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2.6.1. A fonteNo caso do Mosteiro de S. João de Tarouca, os trabalhos de escavação

arqueológica estenderam-se ao centro do pátio do claustro, sem que setenham detectado quaisquer vestígios de fonte, o que se torna desconcertantetendo em conta, pelo menos, a referência documental à edificação de umafonte no claustro por Frei Prudêncio, abade trienal entre 1594-1597 (Vascon-celos 1933, 392; BNL, Códice 1494, fl. 14).

2.6.2. O lavaboQuanto ao lavabo, continuam ausentes quaisquer vestígios da sua exis-

tência, mas dado o desmantelamento completo do claustro original durante asua substituição por um novo claustro maneirista por Frei Manuel de Macedo,abade trienal entre 1615 e 1618 (Vasconcelos 1933, 392), põe-se a hipóteseda sua eliminação com a consequente sobreposição das terras do pátio,provavelmente ajardinado. Como tal, a identificação do lavabo original queacreditamos ter existido, passará obrigatoriamente pela abertura de uma novasondagem arqueológica, rompendo o nível de circulação do pátio seiscentista.

2.6.3. As arcadasMais consensual é a solução da cobertura das arcadas do claustro, obri-

gatoriamente simples, de telha sobre estrutura de madeira, como fica patentepelo negativo da imposta de suporte da mesma, visível no alçado Norte daigreja.

Apesar de desmanteladas as arcadas do claustro original, vários ele-mentos arquitectónicos foram reaproveitados no alicerce do claustro manei-rista, aos quais se juntam outros tantos recolhidos nos mais diversos contextos,entre os quais se destaca o reaproveitamento pela população local na cons-trução das casas do burgo ou meramente como elementos decorativos.

Assim, podemos registar trinta e cinco elementos arquitectónicos atri-buíveis às arcadas do claustro, sendo que doze são aduelas, quatro capitéis, novefustes, três impostas e sete bases. A partir destes elementos foi então possívelreconstituir todo o módulo correspondente aos arcos interiores, com umelevado grau de certeza. Não se possuindo os mesmos elementos para osarcos exteriores e correspondentes pilares, optou-se pela importação dosdados em falta por comparação com o claustro de Fontenay, encorajados pelasimilitude entre este e os elementos arquitectónicos recolhidos.

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De forma a permitir a transposição destes dados comparativos com osjá possuídos, e à semelhança do conseguido para a fachada da sala do capítulo,procurou-se compreender o sistema aritmológico que esteve na base do tra-çado original, com aplicação sobretudo ao nível da reconstituição dos pilares e,consequentemente, da planta.

Dada a relação do ritmo de construção monástica com o fluxo dedoações, levando ao usual arrastamento das obras e mesmo longos períodosde interregno, verifica-se em muitos claustros uma clara falta de uniformidadedecorativa. Ainda que o sistema modular se mantenha, uma vez definido noplano inicial, a sua execução sujeitava-se às naturais contingências impostas peladescontinuidade do processo, com alteração dos mestres canteiros e, talvezsobretudo, pelo constante ajuste da execução aos recursos financeiros disponí-veis. Deste resultava amiúde a drástica redução da complexidade decorativainicial, sendo o claustro de Fontenay um exemplo desta prática, apresentandopara os pilares três soluções: a mais complexa, com adossamento de duascolunas, uma intermédia com a substituição destas colunas pela sua sugestãoesculpida nos silhares do pilar e, a mais simples, reduzindo-se o pilar ao seuvolume modular.

A informação que possuímos para o claustro do Mosteiro de S. João deTarouca é insuficiente para podermos afirmar se a mesma heterogeneidadeterá aí existido, o que constituiria um factor essencial na determinação do ritmoconstrutivo desta estrutura.

Assim, optou-se por se proceder ao cruzamento dos elementos arqui-tectónicos recolhidos com as três soluções observáveis em Fontenay, sendoimpossível de determinar a variação da sua aplicação ou, em caso de unifor-midade, qual a solução adoptada. Contudo, a solução simples da cobertura detelha sobre madeirame, em substituição de uma abóbada de pedra, sugere atendência para a simplificação das soluções empregues (Fig. 7).

Infelizmente, à insuficiência dos dados arqueológicos, junta-se a járeferida escassez de documentação coeva, tendo como excepção para o claus-tro o documento publicado por Almeida Fernandes, em que se regista a doa-ção feita por D. Martim Fernandes ao mosteiro “para a obra do claustro”, naforma de três casais na Vila de Várzea e duzentos maravedis (Fernandes 1991,147, Doc. 168). Infelizmente este documento não apresenta data, podendo-seapenas indicar que a sua integração num cartulário datado de 1141-1266 ositua nesta baliza cronológica.

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2.6.4. O mandatumIgualmente substituído durante a reforma maneirista, o mandatum,

correspondendo a um banco corrido adossado ao alçado da igreja virado aoclaustro, seria um elemento certo na solução original.A remoção do mandatumseiscentista no segundo tramo do corpo da igreja, resultado da construçãoanexa de uma habitação durante as primeiras três décadas de século XX,

Fig. 7 – Proposta de reconstituição do claustro medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotações aritmológicas,de acordo com a solução mais simplificada presente no mosteiro de Fontenay. © Ilustração de Luís Sebastian

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permite, hoje e após a sua demolição pela Direcção Geral dos Edifícios eMonumentos Nacionais em cerca de 1937, a observação da silharia medieval,onde o adossamento do mandatum original se faria. A ausência de quaisquermarcas relacionáveis com a sua presença leva a crer que seria constituído poruma estrutura leve, possivelmente de madeira.

2.6.4. A porta dos mongesApesar de igualmente desactivada aquando da colocação do mandatum

maneirista, a porta dos monges, de acesso directo do claustro ao interior daigreja, contaria obrigatoriamente com o necessário conjunto de degraus paravencer a diferença de cota entre estes dois espaços. Apesar de a sua remoçãonão ter deixado qualquer negativo da sua configuração, podemos calcular o seunúmero de degraus em cinco, bastando para tal encontrar um número divisorcujo resultado se ajustasse à altura conveniente para cada degrau. Sendo quetal resultado coincide com dois Palmos menores, altura observada para os doisdegraus originais conservados na porta da sacristia, podemos com elevado graude certeza assumir esta suposição.

Já referida, a inscrição que data o início dos trabalhos de construção em1154 encontrava-se originalmente no tímpano da porta dos monges, contudo,com a construção do claustro maneirista, a sobreposição do piso superior aoarco quebrado desta porta levou a que a inscrição fosse substituída por umtímpano simples, sendo a inscrição então removida para local inserto,encontrando-se hoje no interior da igreja.

2.7. A igrejaCentro do complexo monástico, a igreja do Mosteiro de S. João de

Tarouca destaca-se pelo facto de, contrariamente ao observado para a grandemaioria dos templos, ter mantido em grande medida o seu cunho medieval,apesar das muitas alterações sofridas durante as reformas maneirista e barroca.

2.7.1. A fachada Avançando para a actual fachada da igreja, de imediato se destacam as

cinco principais acções de que se constituiu a sua remodelação maneirista, daresponsabilidade de Frei Baptista de Menezes, abade trienal entre 1642 e 1645(Vasconcelos 1933, 392; BNL, Códice 1494, fl. 15):

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A primeira consistiu no encobrimento da porta original de arco quebra-do, de solução simples sem qualquer emolduramento, por uma frontaria apenasjustaposta. Por permitir a observação do arranque do arco medieval, a suareconstituição revela-se óbvia.

A segunda acção passou pelo emparedamento da já referida porta dosconversos. Ainda que o emparedamento actual seja da responsabilidade daDirecção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, cremos que este setenha dado desde esta fase. No entanto, por respeitar a configuração da portaoriginal, em nada alterou a correcta leitura da porta medieval.

A terceira acção implicou a abertura de dois janelões ladeando a fron-taria. Sem que possamos ter certezas em relação a estes vãos terem vindosubstituir duas janelas pré-existentes na fachada original, esta parece ser ahipótese mais credível, de acordo com a solução mais recorrente nos paralelosobservados (Fig. 8).

A quarta acção, e talvez a mais descaracterizadora, passou pela elevaçãodas meias águas laterais, mais baixas na solução original, passando o telhado aapenas duas águas. Culminada com o acrescento de quatro pináculos e umacruz central, esta alteração permitiu ainda assim a conservação do negativo das

Fig. 8 – Fachada do mosteiro de Fontenay. © Fotografia de Catarina Madureira Villamariz

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Fig. 9 – Proposta de reconstituição da fachada da igreja medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca,com anotação aritmológica do sistema ad quadratum. © Ilustração de Hugo Pereira e Luís Sebastian

Fig. 10 – Proposta de reconstituição da fachada da igreja medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotação aritmológica de pormenor. © Ilustração de Hugo Pereira e Luís Sebastian

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duas meias águas laterais medievais, que em articulação com a leitura da silhariados alçados laterais Norte e Sul, permite a reconstituição das volumetrias dotelhado original com elevado grau de certeza.

A quinta e última acção que salientamos refere-se à eliminação do nartex.Consistindo este numa cobertura alpendrada, cobrindo o nível inferior dafachada em toda a sua extensão lateral, os raros exemplares sobreviventes emigrejas cistercienses e a sua diversidade formal tornam difícil a sua recons-tituição. Contudo, é possível determinar que, à semelhança da cobertura doclaustro, a do nartex se faria igualmente por uma simples cobertura de telhasobre madeirame, como sugerido pelo negativo da sua imposta de suporte nafachada. Assim, sugere-se-nos que a solução adoptada seria das mais simples,recorrendo a pilares em detrimento de arcadas, normalmente associadas acoberturas abobadadas (Fig. 9 e 10).

Ainda que não incluída na reforma maneirista da fachada, a elevação dacota de circulação do átrio da igreja, decorrida na viragem do século XIX parao século XX, veio eliminar a escadaria da porta central e diminuir em altura aporta dos conversos e, obviamente, toda a fachada. A abertura de uma son-dagem entre ambas as portas permitiu contudo confirmar a cota original decirculação, a permanência do alicerce das escadas da porta central, que cruzadocom a análise aritmológica nos indica cinco degraus e, para a porta dosconversos, a presença da soleira ao nível do exterior, o que nos leva a pôr ahipótese de os degraus necessários a vencer a diferença de cota entre ointerior da igreja e o nartex se estenderem interiormente.

2.7.2. O piso interiorEntrando na igreja, a relação do seu piso com as portas, e sobretudo

com a análise aritmológica do corpo do edifício, apontam para que a sua cotaactual não se diferencie muito da cota original. Sendo o lajeado actual daresponsabilidade da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,admitimos que o seu assentamento possa se ter desviado apenas ligeiramentedo piso que pretendia substituir. A altura dos pilares dos arcos dos tramos dasnaves laterais, pelo seu enquadramento aritmológico, seria de esperar queapresentassem a altura de oito Pés de rei, registando-se contudo variações deseis a dez centímetros a menos. Pondo-se então a hipótese de a cota originalpoder-se encontrar, no máximo, até dez centímetros abaixo da cota actual,consoante as naturais irregularidades do lajeado, ressalta o facto de a soleira da

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porta para as escadas de acesso aos dormitórios dos monges se encontrar, defacto, ligeiramente abaixo do lajeado, assumindo a sua posição correcta com talrebaixamento do piso.

2.7.3. O transeptoSituando-nos no centro do transepto da igreja, chama-nos de imediato

a atenção a forte luminosidade provinda do janelão barroco aberto no braçoSul. A sua contraposição com o braço Norte do transepto deixa adivinharfacilmente que este é um vão que veio alargar uma exígua janela medieval, cujocontraponto se conserva ainda do lado Norte, contribuindo em conjunto paraque a atmosfera do transepto fosse, originalmente, mais recatada.

Ainda em relação à abertura deste janelão barroco no braço Sul dotransepto, é curioso notar que a sua função passava igualmente por forneceralguma iluminação, ainda que reduzida, às escadas para os dormitórios dosmonges, tendo-se para tal rasgado uma janela quadrangular na metade Oestedo extremo do braço Norte do transepto4. Apesar de actualmente este vãose encontrar emparedado pelas obras da Direcção geral dos Edifícios e Monu-mentos Nacionais, a sua abertura alerta-nos para a então provável reduzidailuminação das escadas dos dormitórios, na solução medieval garantida apenaspor uma abertura no alçado Oeste da ala dos monges, que de acordo com osparalelos observados, corresponderia simplesmente a um vão similar às janelasdas celas dos dormitórios, ainda que alteada dentro dos limites impostos pelascoberturas dos dormitórios e do claustro.

A juntar às duas janelas dos braços do transepto, contaríamos ainda comuma janela similar aberta ao nível superior, perfurando a abóbada e virada aEste. Dado o actual reboco da cobertura abobadada, este vão não é visível pelointerior, devendo ter sido eliminado aquando da construção do volume corres-pondente à nova sacristia, no século XVIII, sendo por isso apenas observável apartir do telhado desta. Curiosamente, a análise da mesma área no braçocontrário do transepto, a Sul, não denuncia ter existido alguma vez uma janelacorrespondente, pelo que, mesmo perante a ideia de assimetria que este factorrepresentaria, somos forçados a avançar com a hipótese de este vão ser único,

4 A abertura desta janela no século XVIII, dada a sua posição excêntrica em relação ao alçado dobraço Norte do transepto, levou a que na busca pela simetria fosse acrescentada uma segundajanela idêntica na metade Este da parede, ainda que falsa, dada a sua face exterior se encontrarvirada para o interior dos dormitórios.

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talvez explicado pela necessidade de iluminar a área defronte às portas para asacristia original e para as escadas de acesso aos dormitórios dos monges.

2.7.4. A porta da sacristiaConcentrando-nos exactamente nessa área, são várias as alterações

levadas a cabo no período barroco. À parte a abertura de nova porta para asacristia barroca que veio em substituição da original, feita no extremo daparede Este do braço Norte do transepto, a porta para a sacristia substituídafoi totalmente encoberta por um painel de azulejos figurativos (Castro eSebastian 2003), sendo observável apenas pelo exterior, onde é evidente oemprego de cinco degraus de dois Palmos menores para vencer a diferença decota entre a igreja e a exígua sacristia.

2.7.5. A porta para os dormitórios dos mongesA porta para os dormitórios foi naturalmente mantida, sendo a sua

moldura apenas disfarçada interiormente pela justaposição de uma nova, aogosto barroco. Pelo exterior, observa-se que o seu tímpano foi removido e quea ombreira oriental foi recuada, alargando este vão, originalmente de quatroPés de rei e meio de largura.

2.7.6. A porta dos mortosVoltando-nos para o braço Sul do transepto, o acrescento de um retá-

bulo de talha dourada barroco veio cobrir a porta dos mortos, de acesso aoespaço cemiterial localizado na área a Sul da igreja. Sendo por isso apenasobservável pelo exterior, esta porta dos mortos apresenta a largura de três Pésde rei e meio.

A sua altura exige contudo alguma reflexão: apresentando actualmenteaproximadamente seis Pés de rei de altura, esta não deve corresponder à suaaltura original, dado a cota exterior actual do terreno ter sido ligeiramentealteada pela colocação de um empedrado pela Direcção geral dos Edifícios eMonumentos Nacionais, posteriormente mantida aquando da sua substituiçãopor paralelos, já pelo Instituto Português do Património Arquitectónico em1998. Se considerarmos a cota de circulação interna da igreja, sobretudo reti-rando os aproximadamente dez centímetros provavelmente acrescentados nacolocação do actual lajeado, sugere-se-nos que a altura original desta porta dosmortos se faria pelos sete Pés de rei. Por sua vez, a proximidade deste valor ao

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módulo de oito Pés de rei que esteve por base na concepção da igreja, obriga-nos ainda a colocar a hipótese de que esta medida padrão poderia sernaturalmente a procurada, obrigando no entanto neste caso ao rebaixamentoda soleira da porta em relação à cota interior da igreja!

2.7.7. O cemitérioSendo o espaço cemiterial a Sul da igreja de uso exclusivo da comuni-

dade monástica, o privilégio de muitos doadores se fazerem enterrar no mos-teiro far-se-ia em áreas como as galerias do claustro e o nartex. Dada a acen-tuada pendente do terreno no sentido do cruzamento das linhas de águasobranceiras ao mosteiro, o enterramento dos monges nesta área submeter-se-ia à contingência de se adaptar a esta desconfortável situação, pelo quetalvez por isso viemos a detectar, numa sondagem realizada no interior dasacristia barroca, um segundo espaço de enterramentos medieval a Norte dacapela-mor.

À parte esta possível explicação para uma segunda área de enterra-mentos, fugindo à organização bernardina, a detecção destes enterramentos,estendendo-se mesmo para trás da capela-mor, coloca-nos a interessantequestão de tal prática vir contra o preceito geral de se fazer enterrar o corpode pés para oriente e em área frontal ao altar. Sem que possamos avançar comuma explicação fundamentada, sugere-se-nos a hipótese de estarmos peranteum acto simbólico de abnegação por parte dos religiosos que aqui se fizeramenterrar (?).

2.7.8. A capela-morAinda que a capela-mor se estenda para além desta área de enterra-

mento, o seu cumprimento actual deve-se ao acrescento que sofreu pelamesma altura da construção da sacristia barroca. Sem que as escavaçõesarqueológicas nos tenham fornecido novos dados, a leitura de paramentos ésuficiente para se concluir esta remodelação, incompatível com o modelomedieval.

A configuração quadrangular da capela-mor original é-nos imposta pelaobrigatória consonância com as capelas laterais, de planta recta (Macedo 2000,309-342). Já a sua profundidade é-nos apenas sugerida aritmológicamente, comuns muito prováveis três módulos de oito Pés de rei a partir do transepto (Jor-ge 1997, 455), resultando em aproximadamente metade do comprimento actual.

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Já descrito o sistema de iluminação do transepto, avançamos para ailuminação da capela-mor sabendo que a solução encontrada em vários mos-teiros cistercienses, como Fontenay, de abrir várias janelas no pano resultanteda diferença de altura entre a abóbada do corpo da igreja e a da capela-mor,não se aplicou no Mosteiro de S. João de Tarouca, dado essa diferença ser aíreduzida.

Dada a total eliminação do alçado Este da capela-mor no século XVIII,não possuímos hoje quaisquer dados concretos sobre os vãos que, certamente,se abririam a iluminar o altar. Procurando a solução nos paralelos existentes,não fugiríamos muito à proposta já avançada por Virgolino Jorge (Jorge 1997,444), ainda que tenhamos que ter em conta a multiplicidade de soluçõesconhecidas.

2.7.9. As capelas lateraisVirando a nossa atenção para as capelas laterais, é possível constatar nos

registos gráficos da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,prévios à sua intervenção nestes dois volumes, que no século XVIII, com aconstrução da nova sacristia, a capela lateral Norte foi reduzida em profun-didade, permanecendo apenas a área suficiente para a justaposição de um altarcom retábulo de talha dourada dedicado a S. Bento. Por motivos de simetriaexterior, a mesma redução foi imposta à capela lateral Sul, recebendo por suavez um altar com retábulo de talha dourada dedicado a S. Bernardo.

Seguindo o princípio de reposição da configuração medieval, a DirecçãoGeral dos Edifícios e Monumentos Nacionais reconstruiu a capela lateral Sul erecuperou parcialmente a profundidade da capela lateral Norte, limitada pelapresença do edifício da sacristia barroca. Se por isso nesta não foi possívelrepor a janela que certamente possuía na sua forma original, na capela lateralSul esta janela foi reconstituída, servindo-lhe de modelo as janelas laterais docorpo da igreja. Sem possuirmos outros dados, não encontramos razões parasuspeitar que esta opção se encontre longe da verdade (Fig. 11).

AgradecimentosGostaríamos de agradecer ao Dr. Rui Maneira Cunha o precioso apoio

prestado na área da análise aritmológica. À Dra. Catarina Madureira Villamarizagradece-se a disponibilização dos registos fotográficos do mosteiro de Fontenay,a Maria Luísa Salgado Ferreira o acesso ao acervo fotográfico de Marçal

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Brandão, e a Joaquim Cabral, da casa de fotografia Kimagem, a reprodução departe dos registos fotográficos do princípio de século XX, sem os quais otrabalho realizado não teria sido possível.

Fig. 11 – Proposta de reconstituição da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca.© Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian

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O arquitecto José Simões de Belmont Pessôa é especialista em restau-ração e conservação de monumentos e sítios, pela Universidade Federal daBahia/Unesco, e Doutor em Planeamento Urbano e Regional, pelo InstitutoUniversitário de Arquitectura de Veneza.Trabalhou no Instituto do PatrimónioHistórico e Artístico Nacional do Brasil de 1980 a 2002, nomeadamente naárea de estudos para classificação dos monumentos brasileiros. Participou daequipe que elaborou o dossier de Diamantina para a Unesco e a candidatura

* Professora Auxiliar, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, Portugal

ENTREVISTA/ CONVERSAcom José Simões Belmont Pessôa

Conduzida por Renata Molder Araujo*

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Arquitecto José Simões Belmont Pessôa

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

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do Rio de Janeiro. Foi também Superintendente Regional do IPHAN no Rio deJaneiro e Espírito Santo, 1998/2001. Desde 2002 é professor na Escola deArquitectura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.

A questão em causa, e sobre a qual vamos conversar, são as cidades brasileiras património daHumanidade. Antes de começar: O que pensas do conceito de “património da Humanidade”?Em que medida ele é eficiente? A sua identificação com sítios urbanos será mais ou menosinteressante que com monumentos isolados? Será uma nova lista das maravilhas do mundo?

Imagino que a idéia surgida na década de 1970 tivesse como objectivoapoiar a luta pela preservação dos diversos patrimónios nacionais ameaçados.Se olharmos para os primeiros eleitos nesta categoria encontraremos umamaioria de países do terceiro mundo, provavelmente com grandes problemasde legitimação interna na conservação do próprio património. O curioso distotudo para mim é a coincidência com a globalização. Não é gratuita a associaçãoque fazes com a lista das maravilhas do mundo, que por sinal terão o seu resul-tado sabido nos próximos dias em Portugal.Tudo acaba funcionando de modomeio mediático. E no final de contas a lista do Património da Humanidade viramais um instrumento da espetacularização das nossas cidades.A eficiência deleé muito relativa, na medida em que no fundo é um título meramente simbólico.É sabido que os bens Património da Humanidade no Afeganistão e no Iraqueforam depredados do mesmo modo. Por outro lado a visibilidade que o títulooferece serve um pouco como inibidor das ações de depredação deste patri-mónio em situações normais.Afinal a única sanção que a Unesco pode concre-tizar, isto é, a perda do título, acaba se afigurando como uma enorme vergonhaque penso nenhum país quer sofrer. Quanto a identificação com os sítiosurbanos acho que houve uma coincidência temporal entre o surgimento daideia de Património da Humanidade e a valorização do Património Urbanocomo objecto em si de preservação. Isto, mais que uma escolha, foi o reconhe-cimento da demanda pela preservação de sítios urbanos que se difundiu umpouco em todos os cantos, pelo menos na perspectiva de quem trabalhava naárea. Isto acabou por confluir numa grande quantidade de cidades, ou centroshistóricos, candidatos a Património da Humanidade.

No Brasil, e tendo em conta os sítios urbanos, as escolhas da UNESCO recaem, maioritariamente,sobre exemplos fundados no período colonial (salvo Brasília, o que é interessante e já chegaremos).

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Para uma nação tão recente parece óbvio que se reivindique a categoria de “património” para o queela tem de mais antigo, o que a identifica com o seu passado e com a sua herança, logo o seupatrimónio. Mas é interessante que, aparentemente, tenha ficado elidido na discussão eclassificação internacional o facto de estes núcleos urbanos poderem ser legitimamente lidos comocidades de origem portuguesa, que o foram até a independência do Brasil. O que eu coloco não é aafirmação de qualquer identidade em si (portuguesa ou brasileira) que a priori devesse ser feitapara os núcleos em causa (essa é uma outra questão), mas o facto de se classificar no fundo a obrada colonização, sem a referir sequer. Ou seja, é como se a UNESCO caucionasse o discursoidentitário brasileiro que “deglute” (ou melhor que canibaliza) o período colonial, transformando emBrasil o que antecede o próprio Brasil. Mas a questão é: estariam os membros da UNESCOinocentes ou ainda mais “mal intencionados” (salvo seja)? Caucionava-se o Brasil e o seu passado,ou se caucionava efectivamente a obra europeia de colonização dos trópicos e a grande expansãodo ocidente? O que é lido como “Património da Humanidade”, a síntese operada no novo mundo oua projecção do velho?

As politicas de preservação no Brasil foram executadas até aos anos 1970com a ideia de que os testemunhos da identidade brasileira seriam o passadocolonial e o presente moderno, isto implicou de imediato no desinteresse pelaconservação da arquitectura de final do século XIX e inícios do XX. Os bensbrasileiros Património da Humanidade acabam por reflectir esta visão inicial.Entretanto, parece-me complicado tentar fazer leituras do que a Unesco gos-taria ou não de caucionar. No caso é necessário vermos como estas candida-turas são encaminhadas. O que de facto foi aprovado, é o que foi encaminhadoem cada caso. Nesse sentido é bem interessante fazermos uma breve análisedas Cidades Brasileiras Património da Humanidade.

O Brasil cedo empenha-se no encaminhamento de candidaturas. Asprimeiras nomeações de Bens Património da Humanidade vão ocorrer em1978, cabe chamar atenção para a presença de centros históricos nesta listainicial (Quito no Equador, Cracóvia na Polónia, ). Dois anos depois já teremosa primeira cidade de fundação portuguesa, Ouro Preto. É sempre a Ouro Pretosímbolo da identidade brasileira, que o modernismo exaltava desde a décadade 1920. Ouro Preto como principal cidade da região setecentista do ouro nasMinas Gerais foi o centro da chamada Inconfidência Mineira, a revolta contra ofisco real, que será lida a partir do século XIX como o momento do nasci-mento da brasilidade e do sentimento de independência. Em paralelo ao reco-nhecimento destes movimentos sociais do setecentismo mineiro, a arquitecturaproduzida na região das Minas, e em especial em Ouro Preto, era vista pelos

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estudiosos brasileiros como a materialização de uma autonomia plástica emrelação a arquitectura reinol, como também àquela produzida no litoral brasi-leiro. Então toda a candidatura de Ouro Preto foi construída em torno da ideiade excepcionalidade daquele conjunto urbano, e da autonomia artística queresultou da referida síntese operada no Novo Mundo. Nas outras cidades odiscurso incorpora a obra da colonização. Na candidatura de Olinda (1982) éexigida a vinculação a outros testemunhos das expansões portuguesas e espa-nholas. Salvador (1985) traz o discurso da síntese cultural (ameríndios, africanose europeus) associada ao tema da descoberta do universo no renascimento.São Luís (1997), Diamantina (1999) e Goiás (2001) são propostas como ada-ptações de modelos europeus ao continente americano e portanto obras sin-gulares. Brasília (1987), e não a toa, é o único exemplo que repete a ideia deOuro Preto, uma candidatura como obra prima do génio criativo humano. Adistinção entre as duas candidaturas, Ouro Preto e Brasília, também é curiosa.Ambas se candidatam em 2 quesitos, o primeiro já referido, e o segundo – nocaso de Ouro Preto ser testemunho de uma civilização não mais existente, nocaso de Brasília ser testemunho de um determinado estágio da história.A ideiados modernistas brasileiros do passado barroco como algo que não pertencemais ao nosso quotidiano continuou viva nas candidaturas para a UNESCO.Curioso é que o critério de ser um testemunho de uma civilização não maisexistente, deve ter sido criado para abranger as obras da antiguidade (egípcios,caldeus, romanos), ou da América Pré-Colombiana (maias, incas), entre outros.Que os brasileiros proponham isto para o seu passado colonial, e que assimseja aceito pela UNESCO, me deixa muito intrigado.

A pergunta anterior pode ser uma polémica meio estéril. Acho que o que me preocupa mais é nofundo a questão identitária em si. Com o que o Brasil se identifica, quer do ponto de vista externo,quer interno. Como o “mundo” vê o Brasil (e neste sentido a classificação da UNESCO é uma visãodo mundo) e como o Brasil se vê a si próprio. A pergunta então é: O Brasil é reconhecido e sereconhece nestas “Cidades Património da Humanidade”?

Acredito que sim, pelo menos no que diz respeito a segunda parte.Inegavelmente as Cidades Património da Humanidade são um sucesso demarketing. Os primeiros reconhecimentos geraram uma febre nos centroshistóricos brasileiros que passaram a querer pleitear candidaturas próprias.Penso que o processo de ocupação do território brasileiro e as cidades que

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identificariam este processo, não estão inteiramente representados na actuallista. Estamos ainda na velha ideia de uma identidade construída entre o moder-nismo e a arte colonial. De outra parte porém a actual lista não é também tãocanónica do que eu disse.Temos Goiás, um centro histórico que só foi reco-nhecido como tal pelo IPHAN muito tardiamente, e que se caracteriza pelaabsoluta simplicidade do seu conjunto edificado. Apesar disto e por issomesmo, reconhecido como Património da Humanidade.

Quanto ao reconhecimento interno destas cidades creio que temos muito que falar. Como vês opapel incontestavelmente pioneiro do IPHAN neste processo? Como e quando as cidades surgem nodiscurso do IPHAN? Como é a sua actuação? É justa a acusação de que o IPHAN preocupou-sesempre muito mais com os monumentos isolados do que com os conjuntos urbanos?

Entendo que o IPHAN teve um papel pioneiro e bastante vanguardistana preservação de sítios urbanos. Desde o início da sua acção na década de1930, foram classificados sítios urbanos – Ouro Preto e outras seis cidadesmineiras. Portanto as cidades surgem no início da actuação do IPHAN.

Existe uma tendência hoje, no Brasil, de analisar esta primeira acção declassificação de sítios urbanos como consequência da vontade de garantir apreservação do contexto das edificações monumentais (igrejas, casas de câmarae cadeia, residências nobres). A cidade não teria sido preservada por um valorintrínseco a ela e sim por reunir um grande número de edificações monu-mentais. Discordo dessa posição. Primeiro por que mesmo que fosse verdade,ela em si já trazia uma total novidade, isto é, de considerar a arquitectura menorcomo elemento fundamental para a ambiência dos monumentos. Algo aindaimpensado naquele momento (década de 1930), ou pensado por muito pou-cos, como Giovanonni na Itália. Segundo por que toda a actuação de conser-vação nos centros históricos classificados sempre incluiu as edificações maispopulares, tratadas como um valor em si e não meramente como ambientepara um monumento próximo.

Quanto a última questão acho que ela deve ser repensado dentro docontexto histórico. Antes da década de 1960, o mundo inteiro só pensava napreservação dos monumentos isolados, neste sentido o IPHAN foi bastantepioneiro tendo já no início daqueles anos, 13 cidades classificadas.Talvez tenhasido muito pouco para o acervo urbano do Brasil, certamente foi muito para aépoca.

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O processo brasileiro é efectivamente ímpar e comporta uma série de dialécticas muitosignificativas. A primeira dialéctica é o grande dilema da contemporaneidade entre a renovação e apreservação que o Brasil vive com grande intensidade. E é a geração que prega o moderno que quersalvaguardar o “antigo”. Este aspecto é fundamental. Mas como este dilema se resolveu naprática? Como crês que a cultura urbana brasileira absorveu o discurso do património? Estaráinteriorizada a ideia de preservação de conjuntos, ou no fundo apenas se pensa em salvar oinevitável (as igrejas, os fortes, os grandes edifícios) e o resto pensa-se geralmente que se pode (edeve) transformar a bem das exigências actuais?

A tua pergunta me suscita duas questões. A primeira é de como ageração que propunha a revolução modernista resolveu salvaguardar o antigo.Um parêntesis necessário é o de explicar que no Brasil os funcionários doIPHAN eram todos membros das vanguardas arquitectónicas e literárias. Osmodernistas brasileiros tomaram de assalto a preservação do passado paraconstruir o álibi do próprio projecto de futuro da nação. Neste sentido aclassificação de sítios urbanos será sempre, nos primeiros tempos, daquelaspequenas cidades que estavam fora dos grandes eixos de desenvolvimento doPaís. Exemplar disto é Salvador, um dos centros históricos mais expressivos doPaís, e que só será classificado como conjunto urbano em 1959, isto é, 22 anosdepois da criação do IPHAN. O problema de Salvador não era o reconheci-mento de valor do seu conjunto urbano e sim, que, por se tratar de uma capital,era vista como lugar do desenvolvimento, da construção Brasil moderno, eportanto não cabia a preservação extensiva do seu conjunto urbano, só apreservação de monumentos isolados. A partir da década de 1960, o IPHANmuda a posição inicial e passa gradativamente a contemplar a classificação deáreas urbanas em grandes centros (Salvador, Belém, São Luís, Recife) e incluirtambém como objecto de preservação alguns sítios urbanos representativosdo final do século XIX e início do XX (Petrópolis, Rio de Janeiro).

A segunda questão que considero importantíssima é como a culturaurbana brasileira absorveu o discurso da preservação. Penso, e não quero fazerapologia do melhor dos mundos, que hoje a ideia de preservação estádifundida na cultura urbana brasileira, ou pelo menos em uma parte muitoactuante dela. Porém quem hoje está na vanguarda da preservação no Brasilsão os diversos Patrimónios Municipais. De facto, a cultura urbana brasileira, ouparte dela, absorveu o discurso do património e temos assistido a um multipli-car-se de acções de preservação nos grandes e nos médios centros (inclusive emalguns casos em pequenos centros também). Nunca se preservou tanto como

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nos últimos anos. E o mais interessante é que o discurso vai além do possívelvalor artístico dos conjuntos urbanos. A questão agora é do ambienteconstruído. Um exemplo disto são as áreas de protecção do ambiente culturaldo Rio de Janeiro (APACs). O que está em jogo nesta acção municipal não éo valor arquitectónico dos edifícios e sim o valor deles para garantir umadeterminada qualidade de vida. Estas acções assumem, no meu entender, apreservação no seu real papel, isto é, como um instrumento de planeamentourbanístico. Uma parte dos planeadores cariocas criticam as APACs por seremacções da área de património e não do planeamento. Ora, o que eles teimamem não querer entender é que a acção do património é uma acção de gestãourbanística.

Outra dialéctica de base é esse pensamento moderno da 1º geração do IPHAN versus acircunstância politica da ditadura ou como se manteve razoavelmente “independente” em meio aosdiscursos nacionalistas do Estado Novo, assim o grande equilibrismo não terá sido tanto emrelação a visão da herança colonial mas à idealização do presente que então se vivia. Mas apergunta era: Achas que O IPHAN tinha alguma visão ideologizada do Brasil? Ou o IPHAN, comoqueriam Mário e Rodrigo, foi descobrindo o Brasil?

Acho que o IPHAN foi descobrindo o Brasil, a partir de uma hipótesede uma identidade única, aquela que unia o modernismo ao passado colonial.Se considerarmos que isto é verdade foi uma grande descoberta, casocontrário, serviu para deixar em segunda plano a diversidade cultural do país.

Outra dialéctica directamente relacionada com a questão urbana é a eventual não ideologização,mas talvez “idealização” das vilas do interior versus o efectivo “desleixo” em termos deidentificação do património urbano das cidades do litoral. Concordas com a visão que apresento notexto? Terão os modernos saudosamente (ou ingenuamente, ou espertamente) “romantizado” umpassado rural para se contrapor ao frenesim urbano da sua própria cultura? Se é assim éinteressante que tenham eleito “as vilas do interior” que é rural mas é o “urbano do rural”, seassim se pode dizer. Como se fossem a infância, milagrosamente preservada, das cidades modernase em constante mutação em que eles viviam e em que nós continuamos a viver. E ao olhar paraestas “vilas do passado”, o que se via? Projectava-se um imaginário colonial para um cenário doimpério (a arquitectura de quase todos os casos classificados é, na sua maioria, do século XIX).Terá sido assim ou estou exagerando?

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Não acho que a classificação de Ouro Preto e das outras cidades signifi-casse tão somente a preservação de um passado rural. O texto, genial de SérgioBuarque de Holanda sobre as cidades brasileiras não era considerado umconsenso. Haja visto as posições em contrário de Paulo Santos (conselheiro doIPHAN, dos anos 1940 aos 1970) nos seus diversos textos.Acho que o passadofoi sempre visto como um álibi para o futuro modernista – a “verdade” daarquitectura colonial a justificar a arquitectura modernista em contraponto a“falsidade” do ecletismo. É curioso que boa parte daquilo que se preservavacomo colonial, no caso dos sítios urbanos, era arquitectura do século XIX, masque de todos modos tinha uma imagem muito próxima da arquitectura colo-nial. Penso que não havia uma negação do império brasileiro, que inclusive faziaparte desta identidade projectada pelos modernistas. O que se queria negarera a arquitectura eclética. Essa foi em grande parte banida dos centros histó-ricos “coloniais”, através de operações de “restauração” que deram aos prédiosaspecto colonial.

Retomando o elo com o urbanismo português. O que tu achas que foi mudando entre a geração quevia “desleixo” e “desordem” na urbanização do Brasil colonial e a de hoje? O que mudou? Queremosde facto saber mais? E já sabemos?

Não sei se sabemos mais. O importante hoje é que nos permitimos adúvida com relação a estes esquemas pré-estabelecidos. Acho que nos últimosanos se avançou nos estudos relativos a compreender a diversidade de situa-ções do urbanismo dos séculos XVII e XVIII. Por outro lado o século XIXcontinua uma incógnita. Penso que a questão do desleixo e da desordem estásuperada e o discurso de um urbanismo regulado contrapõem-se hoje, à ideiade desleixo. Acho que temos muito mais a saber e a descobrir. Muito foi feitoem torno das comemorações dos descobrimentos, mas os estudos sobre ourbanismo dos primeiros séculos no Brasil ainda estão nos seus primeirospassos. No fundo ainda persiste nos meios académicos brasileiros a ideia deconsiderar o início do planeamento urbano no Brasil no final do século XIXcom a construção de Belo Horizonte. Este, séculos XIX e XX, acaba sendo operíodo de maior interesse dos estudiosos do assunto, e o objecto da maioriadas teses. O panorama porém, começa lentamente a mudar. Na época do meudoutoramento na Itália organizei junto com o meu orientador, um Atlas deCentros Históricos Brasileiros, envolvendo pesquisadores de todos os cantos

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do Brasil, na maioria ligados à actividade de preservação, e que finalmente serápublicado este ano. Espero que contribua para despertar o interesse de novospesquisadores, e principalmente ajudar a associar o conhecimento histórico àacção de preservação. O pouco conhecimento da história dos nossos sítiosurbanos e da lógica geradora daqueles espaços tem levado via de regra a umaintervenção de preservação excessivamente cenográfica. Meu interesse pelahistória urbana é exactamente derivado da minha actuação na preservação desítios urbanos. Sempre me pareceu que a resposta para muitas dúvidas naclassificação e na gestão de conservação dos sítios urbanos poderia ser achadaatravés de um conhecimento mais aprofundado da história. Conhecimentosque começam a ser desenvolvidos como a caracterização dos padrões de lotesurbanos coloniais, estudos rigorosos da evolução da forma urbana tem vindo amodificar a actuação conservativa nos nossos centros históricos, direccionandopara uma perspectiva mais urbanística. Um dos grandes problemas na classi-ficação de áreas urbanas no Brasil era o da sua delimitação. As cidades minei-ras inicialmente classificadas, não haviam sido delimitadas quando da suaclassificação. Isto somado ao carácter aberto e bastante disperso da ocupaçãoda cidade americana, principalmente dos centros menores, gerou uma série deimpasses na definição da área sob tutela do IPHAN, principalmente naquelescentros que voltaram a viver surtos de desenvolvimento e portanto deexpansão de suas áreas urbanas. Os estudos de história urbana tem sido uminstrumento importante na solução destes problemas.

Com esta viagem, aqui em Portugal, o que vês tu, em relação ao urbanismo realizado no Brasil?Mais identidades, ou menos?

Na realidade o intuito da viagem foi o de reconhecer a experiência por-tuguesa na conservação dos centros históricos. Pensando em um patrimóniocomum, isto é, o universo urbanístico português, e como este é tratado nosdois lados da Atlântico. No Brasil o IPHAN tem um longo percurso deactuação na cidade histórica.A experiência portuguesa foi mais concentrada nomonumento. A legislação portuguesa também permite situações, comodeclarar non-aedificanti trechos de áreas envoltórias dos monumentos, que nãoocorrem no Brasil. Pela nossa legislação só podemos vincular como non-aedificanti os terrenos privados, se estes forem desapropriados pelo Estado. Asensação de comparar as duas situações é de que no Brasil o Estado é mais

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questionado em suas acções de preservação. O que estranhamente acaba porter um aspecto positivo, na medida que exige dos técnicos uma fundamentaçãomaior e uma selecção mais rigorosa do que deve ser classificado, e dos limitesdas áreas envoltórias dos monumentos.

Um aspecto que me chamou a atenção é a ideia difusa em Portugal dese privilegiar a requalificação do espaço urbano como alavanca da reabilitaçãodos centros históricos.As áreas públicas dos centros históricos portugueses sãovia de regra muito desenhadas pelos arquitectos. No Brasil inversamente poucaatenção se dá ao projecto do espaço público dos centros históricos. São Luíse Salvador são cidades em que este aspecto foi muito levado em consideraçãonas estratégias de reabilitação, mas em ambos com resultados bastante mo-destos. Nos centros menores,Tiradentes, em Minas Gerais, é o único caso queconheço, tendo sido uma experiência muito bem sucedida mas infelizmenteisolada. Um problema que precisa ser reconsiderado é a tendência a negar aarborização oitocentista e novecentista dos centros históricos. Isto é muitoforte em Portugal, e também tem sido uma tendência no Brasil (principalmentenos grandes centros).

Quanto às identidades, este é um problema que me fascina. As seme-lhanças são enormes, mas há porém uma singularidade que me remete semprea viagem que Lúcio Costa fez a Portugal em 1948, comissionado pelo IPHANpara identificar as matrizes da arquitectura e do urbanismo colonial brasileiros.As matrizes não foram identificadas diante da constatação, presente numrelatório que está publicado no livro autobiográfico de Lúcio Costa, de que tra-tam-se de artes independentes, isto é, manifestações distintas, do universocultural português dos séculos XVI a XIX.

Da tua experiência no IPHAN como é, na prática, a vivência da preservação dos centros históricosno Brasil? Em especial nas grandes cidades? Quais são os grandes problemas?

O quotidiano da preservação nos centros históricos brasileiros enfrentadois grandes inimigos.

O primeiro é o individualismo muito arraigado na sociedade brasileiraque se opõe a acção de preservação, esta fortemente socializante. A maioriada população dos centros históricos coloniais classificados reconhece hoje essaclassificação como um valor, inclusive económico. Estes porém mudam deopinião quando se trata dos seus próprios imóveis. Para eles é muito impor-

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tante a cidade ser património nacional ou mundial, mas as próprias casas nãotem valor nenhum podendo ser modificadas à vontade. Participei na época emque era funcionário do IPHAN de duas reuniões em centros históricos classi-ficados (Tiradentes em Minas Gerais e Cachoeira na Bahia) com as respectivaspopulações para discutir a acção de conservação. Em ambas fizeram-se enor-mes criticas à gestão de conservação, que impedia as transformações desejadaspelos moradores. Curiosamente quando levantávamos a hipótese de acabarcom a classificação para que todos pudessem fazer o que quisessem com aspróprias moradias, os mesmos imediatamente diziam que não, que não era issoque queriam, que sentiam muito orgulho das suas cidades serem centroshistóricos tutelados.

O segundo diz respeito a um problema geral do planeamento urba-nístico brasileiro. Como gerir a preservação num contexto social de diferençasabsurdas? Como falar em preservação da arquitectura para populações quetem dificuldade de garantir a sua sobrevivência quotidiana? Como garantir aambiência de monumentos onde impera a construção informal?

Nos grandes centros há de um lado a pressão do capital imobiliário pelarenovação das áreas antigas e em contrapartida uma difusa demanda pelapreservação. Desde o final dos anos 1970 que as populações dos grandes cen-tros urbanos tem se movimentado pela preservação dos mais variados teste-munhos arquitectónicos. As associações de moradores tem tido um papelfundamental neste processo, cobrando do Estado um maior empenho napreservação das áreas urbanas antigas. Recentemente no Rio de Janeiro, foi omovimento dos moradores que impediu a descaracterização do classificadoParque do Flamengo, por conta da implantação de equipamentos destinados aabrigar actividades dos Jogos Pan-Americanos.

Voltando ao tema inicial: em que medida o “selo” da UNESCO ajuda a preservação, ou traz maisproblemas (turismo, por exemplo)? O que achas dos vários pedidos de classificação que continuama ser feitos?

Na minha opinião, o selo ajuda a preservação. Não tanto pelo selo emsi mas principalmente pelo processo da candidatura, que tem sido exigido parasua aprovação, o envolvimento dos moradores destas cidades. Isto tem per-mitido em alguns casos um clima muito propício de colaboração entre IPHANe as populações afectadas pela classificação. Goiás é o melhor exemplo brasileiro

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neste sentido. Há também o factor da auto-estima a ser ponderado. Quanto aoturismo não conheço estudos que avaliem se houve uma mudança substancialdesta actividade nas cidades que se tornaram património da humanidade.Naquelas em que isto sabidamente mudou, como no Centro Histórico deSalvador em que a reabilitação vocacionou a área de modo monofuncionalpara o turismo, não podemos relacionar isto com o facto da cidade ter-setornado património da humanidade.

O problema disto tudo é que não podemos candidatar para Unesco ointeiro património classificado brasileiro. O que é necessário é a valorização daacção federal, estadual e municipal na conservação deste património.

O Brasil nunca estabeleceu uma política clara em relação ao que deveriaser encaminhado a Unesco.A maior parte dos casos foi resultado de iniciativaslocalizadas. Talvez isto explique um pouco a preponderância das cidades nosbens encaminhados a Unesco, são mais fáceis de atrair um maior envolvimentopolítico nas respectivas candidaturas. Hoje são 17 bens no Brasil consideradosPatrimónio da Humanidade: 9 culturais e 8 naturais. Dos nove culturais só doisnão são cidades, O santuário de Congonhas do Campo e os Sete Povos dasMissões. Estes na realidade são as excepções que confirmam a regra, notada-mente pela forte valência urbana implícita em ambos: O santuário é um pedaçofundamental da cidade de Congonhas e as ruínas das Missões tem muito doseu valor ligado às cidades que um dia já foram.

Existem candidaturas de monumentos isolados no Brasil: o Mosteiro deSão Bento e o prédio do antigo Ministério da Educação e Cultura, ambos noRio de Janeiro; os prédios desenhados por Óscar Niemeyer no Bairro da Pam-pulha em Belo Horizonte; e um conjunto de conventos franciscanos em váriascidades do Nordeste do País. Nelas continua a ideia da excepcionalidade dobarroco (mosteiro e conventos) e do modernismo brasileiro (Ministério eprédios na Pampulha).

Além destas existem duas outras candidaturas envolvendo cidades ouparte delas: Parati e a Paisagem cultural do Rio de Janeiro. Parati vive o pro-blema de demonstrar qual o sentido que teria se classificar mais um centrohistórico colonial brasileiro. O Rio de Janeiro, que tem uma paisagem semsombra de dúvidas excepcional, vem fazendo tentando rediscutir o conceito depaisagem cultural, no âmbito do território americano.

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RESUMO

A classificação da UNESCO veioreforçar a importância de Mazagãocomo figura pioneira da fortificaçãomoderna no continente africano.O actual bairro da Cité Portugaise em El Jadida encerra em si uma históriaportuguesa, construída e urbana, quedebutou com o levantamento de umcastelo manuelino em 1514 e seprolongaria por mais de dois séculos emeio. Porém, foi o investimento numanova praça fortificada e abaluartada,com desenho regulado de vila no seuinterior, conduzido por uma junta dearquitectos e engenheiros em 1541,que cristalizaria a imagem de Mazagãocomo baluarte inexpugnável no Nortede África e preservaria o estratoformal português na actual cidademarroquina.

ABSTRACT

Unesco’s declaration of Mazagan asWorld Heritage underscores its

importance as pioneering evidence ofmodern fortification in the African

continent.The present-day neighbourhoodof Cité Portugaise in El Jadida has an

architectural and urban Portuguesehistory, which began with the

construction of the 1514 manuelincastle and that would last for over two

and a half centuries. However, it was theconstruction of a new fortified and

bastioned fortress, including a city inside,designed in 1541 by a team of

architects and engineers, that wouldcrystallize the image of Mazagan as animpenetrable stronghold and that would

preserve the Portuguese layer in theMoroccan city.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Mazagão; castelo; fortaleza; vila; património

Key words: Mazagão; castle; fortress; village; heritage

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Enquadramento histórico

A presença portuguesa no Norte de África perdurou durante mais detrês séculos e meio, debutando com a conquista de Ceuta em 1415 e termi-nando com a evacuação de Mazagão na segunda metade do século XVIII.Ceuta assinala o prolongamento da Reconquista Cristã do outro lado doEstreito e o início de 354 anos de presença portuguesa no Norte de África.Nunca conseguindo implementar um verdadeiro Algarve de Além-Mar, o domí-nio português no Norte de África pontuaria a costa com possessões isoladas,cuja influência para o interior dependia de acordos estabelecidos com os reinosde Fez ou de Marrocos (Fig. 1). Podemos falar de dois tipos de aproximação aoterritório magrebino. A conquista foi, sem dúvida, o processo que maioresbenefícios trouxe a Portugal, não só pelo fornecimento de um tecido urbano ecomercial estabelecido, como pela duração média da soberania portuguesaalcançada nestas praças: Ceuta (1415-1640), Alcácer Ceguer (1458-1550),Tanger (1471-1661), Arzila (1471-1550)1, Azamor (1513-1541) e Safim (1508-1541). Apenas Anafé (actual Casablanca) resistiu aos assaltos de 1467 e 1487,sobretudo pela falta de capacidade militar de ocupação e subsistência. DeCeuta a Safim verificou-se uma redução da área intra-muros, mais vantajosa noque diz respeito à sua manutenção e abastecimento2. Através do redimensio-namento dos perímetros amuralhados e subsequente reordenação do espaçourbano, estamos perante um esforço progressivo e empírico de concepção decidade. Este aspecto veio dar origem a um dos princípios mais importantes de

* Professor Auxiliar, Departamento Autónomo de Arquitectura da Universidade do Minho, Portugal.Investigador do Centro de História Além-Mar (CHAM). [email protected]

1 Arzila voltaria a ser portuguesa entre 1578 e 1589.

2 Com excepção de Alcácer Ceguer, onde a mancha urbana, apesar de profundamente alterada, terápermanecido aquando da passagem para domínio cristão.

MAZAGÃO: A última praça Portuguesa no Norte de África

Jorge Correia*

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actuação na malha islâmica herdada e nos recintos fortificados encontrados pelosportugueses – o atalho – ou seja, a redução das superfícies urbanas e dos perí-metros amuralhados ocupados com vista a uma melhor gestão da sua subsis-tência e defesa.

Por outro lado, a fundação de novos pontos fortificados em locais geo-graficamente relevantes ou em povoados abandonados permitiu um efeitoefémero de pulverização portuguesa na costa norte-africana, à excepção doreduto inexpugnável de Mazagão (1514-1769). Das tentativas falhadas deimplantação de fortalezas na Graciosa (1489) e em Mámora (1515) às cons-

Fig. 1 – Distribuição das conquistas, das fundações e dos pontos de contacto portugueses no Norte de África© Ilustração do autor

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truções de castelos em Santa Cruz do Cabo de Guer (1505-1541), em Mogadorou Castelo Real (1506-1510?), em Ben Mirao (1507?-1512?) e em Aguz (1520--1524?), a hostilidade das tribos da Duquela ou do Sus repelia o assentamentomais prolongado das posições portuguesas. Sem esquecermos, todavia, aautorização de feitorias em Safim desde 1488 ou em Meça (1497) ou ainda avassalagem de Azamor à Coroa portuguesa desde 1486, é da diferença entreo lote das grandes conquistas descritas acima e a fundação de Mazagão queresultou a experiência portuguesa de cidade no Norte de África.

1769 marca o abandono da última praça portuguesa neste território.Esta data separa os dois grandes tempos de Mazagão: um anterior, iniciado como estabelecimento português em 1514, e um posterior, relacionado com a pro-gressiva integração das estruturas portuguesas numa cidade marroquina queactualmente se designa por El Jadida, a nova. O reconhecimento da excepcio-nalidade da herança portuguesa neste ponto da costa magrebina chegou em2004, com a inscrição da “Cidade Portuguesa de Mazagão” na lista de Patri-mónio Mundial da UNESCO.Tal classificação propõe uma revisitação da históriaconstruída e urbana desta antiga praça portuguesa ao mesmo tempo que lançao debate sobre a sua preservação e valorização. Se bem que a razão para oregisto da cidadela portuguesa se centre no valor da fortificação e vila mo-dernas para o seu argumento capital, a história da presença dos portuguesesneste local é anterior e está bem documentada do ponto de vista físico.

O Castelo de Mazagão

Nas próximas linhas tentaremos fornecer, resumidamente, a imagemembrionária daquela que viria a constituir a possessão portuguesa de duraçãomais prolongada no Norte de África e, como tal, o caso fundacional de maiorsucesso. Em Mazagão, a história é o negativo da maioria das praças portuguesasda costa magrebina, tomando 1541 como mote de desenvolvimento e nãocomo irremediável ou vergonhosa capitulação, como acontecera com a meri-dional Santa Cruz, actual Agadir. Aqui e agora importa reter os contornos maisrelevantes da história das arquitecturas da primeira fundação portuguesa, nocontexto das restantes empresas fundacionais que, entre 1505 e 1519, ensaia-ram uma presença costeira mais disseminada no recorte marítimo dos entãoterritórios de Marrocos e Sus.

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A presença dos portugueses neste local, conhecido pelas potenciali-dades defensivas da sua baía e pela presença dos cereais da Duquela, estádocumentada desde o último quartel do século XV3. Para trás, as hipóteses deocupação deste ponto da costa até aos finais do século XV são vagas, mas ateoria em torno da existência de um pequeno povoado piscatório denomi-nado Mazghan parece concorrer para a ideia de um lugar habitado antes dachegada dos portugueses.Velho topónimo berbere, surge citado como portopelos geógrafos árabes4, constituindo, sem dúvida, a raiz da designação portu-guesa de Mazagão. Não nos alongaremos muito sobre o imaginário lendárioque descreve as acções edificadoras dos portugueses sobre o promontóriorochoso da baía como resultado do acaso e da iniciativa particular de Jorge deMello…5 De igual modo, perdura na incerteza o reconhecimento de Mazagão-o-Velho, muito embora um aglomerado indígena fosse uma realidade provável.Romanticamente, fiquemos com a herança toponímica de al Boraydja, umaatalaia pertencente a uma rede de postos de vigia costeiros, ainda hojeidentificada com a Torre da (Al)Boreja do castelejo português, e onde se incluíao ribat de Tite, actual Moulay Abdallah, mais para sul.

Só em 1513, no seguimento da conquista da cidade vizinha de Azamor,se tomou a decisão da construção de uma fortificação, erguida por Diogo eFrancisco de Arruda, no ano seguinte6: “(…) mando ter navios em Mazagam,honde he neçesario huua fortaleza mais que a vida pera este lugar, e tamgrande que possam ençarrar nela dous ou três mil moyos de pãao, se conprir.Aja V.A. que he o melhor porto do mundo. (…)” escrevia o duque de Bragançana refrega da tomada de Azamor, pretendendo estabelecer em Mazagão umbaluarte avançado da praça azamorense com capacidade de armazenamentono seu interior e para defesa das excelentes condições portuárias da baía7. A

3 Em 1499, o Papa Alexandre VI atribui à Diocese de Safim jurisdição sobre Mazagão, Azamor,Almedina, etc.. in Bulla de Alexandre VI, 17 de Junho de 1499 (IAN-TT, Bulas, maço 16, nº 21), inAlguns Documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo… 1892, 95.

4 Idrissi 1866, 84.

5 Para uma avaliação crítica sobre as origens de Mazagão, consultar o texto de Pierre de Cénival inLes Sources Inédites… I, 1934, 103-107.

6 Uma vez que a edificação do castelo manuelino em Mazagão aparece relativamente bemdocumentada e estudada, seguiremos a correspondência estabelecida com a coroa, entre 1513 e1518. Destacamos, porém, o texto de Rafael Moreira sobre este tema em A Construção deMazagão (Moreira 2001, 31-36).

7 Carta do Duque de Bragança a D. Manuel I, Azamor - 30 de Setembro de 1513 (IAN-TT, CorpoCronológico, parte I, maço 13, doc. 62) in Les Sources Inédites…, op. cit., 438-442.

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missiva do duque lançou a discussão em torno das opções de conteúdo elocalização. Por um lado, opinava-se acerca da maior utilidade da construção deum castelo em Mazagão ou na barra do Oum er-Rbia, pois a cidade de Azamorsituava-se umas milhas a montante do rio, enquanto outras vozes aplaudiam acriação de uma vila em Mazagão em detrimento da manutenção do centrourbano de Azamor8. D. Manuel I decidiu-se pela edificação de apenas umsingelo castelo em Mazagão e de um atalho imposto à Azamor muçulmanapara formar um castelo com vila. Rui Barreto, primeiro capitão de Azamor, aindachega a questionar a vontade do monarca, defendendo que uma fortificaçãosegura naquela vila, amparada por boa guarnição, chegaria para assegurar aprimazia portuguesa sobre a costa até Safim9. Porém, a obra de Mazagãohaveria de avançar assim que Azamor oferecesse condições de segurançasuficientes para se bastar a si e à empreitada a iniciar-se três léguas para sul.

Um magro mês bastou para que os mestres Diogo e Francisco deArruda estabelecessem o calendário e um caderno de encargos básico para ostrabalhos de Mazagão. Para o Verão, os dois irmãos solicitavam madeira, cal,tijolo, transporte de materiais desde Azamor e protecção permanente até aotérmino da empreitada10. O edifício era composto por uma planta quadran-gular com cortinas a unir os quatro baluartes cilíndricos – Boreja, Cadeia,Rebate e Cegonha (Fig. 2). Excluindo os torreões que intersectam a quadra nosângulos, o castelo insere-se num quadrado de sensivelmente dezoito braças delado pelo exterior. Ainda hoje é possível extrair o castelo original das depen-dências que o foram preenchendo ao longo das décadas seguintes, sobretudoapós a grande remodelação de 1541 (Fig. 3). Os quatro grossos muros eramameados, tal como os torreões, e apenas perfurados pela entrada original juntoà torre sudeste, voltada para Azamor, e cuja soleira se encontra hojeanormalmente situada acima da cota do chão da cisterna.Torre aquela que sedestacava pelo coroamento semelhante aos dos baluartes de S. Cristóvão e do

8 Carta de Nuno Gato a D. Manuel I,Azamor - 5 de Dezembro de 1513 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 13, doc. 62), e Carta de João de Meneses a D. Manuel I, Azamor - 1-9 de Dezembrode 1513 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 14, doc. 4), in Idem, 453-456 e 459-467,respectivamente.

9 Carta de Rui Barreto a D. Manuel I, Azamor - 21 de Fevereiro de 1514 (IAN-TT, Cartas dosGovernadores de África, nº 114) in Idem, 489-501.

10 Carta de Francisco e Diogo de Arruda a D. Manuel I,Azamor - 31 de Março de 1514 (IAN-TT, CorpoCronológico, parte I, maço 15, doc. 14) in Idem, 525-529.

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Fig. 2 – Interior do edifício do castelejo, com vestígios da Torre da Cegonha e da Torre do Rebate, actual minarete.© Fotografia do autor

Fig. 3 – Planta dos vestígios do castelo português nas estruturas actuais. © Ilustração do autor

1.Torre da Boreja

2.Torre da Cadeia

3.Torre do Rebate (actual minarete)

4.Torre da Cegonha

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Raio, em Azamor, caracterizado pelo mesmo tipo de sacadas para tiro mergu-lhante. Presentemente, a sempre lendária Torre da Boreja é uma híbrida erecente estrutura de betão e tijolo, abrigando um pequeno posto policial (Fig. 4).Também comum a todos os baluartes era a sua distribuição vertical por doispisos sob uma plataforma superior, munidos de bocas horizontais de bombar-deiras para tiro radial. A matriz formal que presidiu à elaboração deste castelopertence à família do castelo de base quadrada edificado pelos portugueses emMogador e a edificar em Safim e Aguz.

A conclusão do castelo parece ter sido bastante célere, a avaliar peloenvio de mobiliário, ornamentos, alfaias religiosas e paramentaria para a suaigreja em Agosto de 151411. Lenta foi a escavação do fosso que rodearia ocastelo a uma profundidade de vinte palmos, todavia não terminado quatro anosmais tarde12. O preenchimento do interior deste quadrilátero, nos decénios

Fig. 4 – Edifício do castelejo com Torre da Boreja. © Fotografia do autor

11 Alvará de D. Manuel I, Lisboa - 8-23 de Agosto de 1514 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço15, doc. 117) in Idem, 598-599.

12 Carta de António Leite a D. Manuel I, Mazagão - 22 de Julho de 1518 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 23, doc. 85) in Les Sources Inédites…, II, Première partie, 1939, 202-203.

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subsequentes, é discutível. Alguns indícios poderão apontar para um conjuntode obras, resposta às necessidades de um aglomerado espontâneo cada vezmaior e que ultrapassariam as de mero reduto defensivo. Seriam estruturas demadeira que contornariam o perímetro intramuros para abrigo de cavalos emilitares, numa primeira fase, mas que gradualmente foram recebendo funçõesrelacionadas com a gestão de uma vila que começava a florescer nas imedia-ções do castelo. Ainda o fosso não estava concluído e já algumas estacadas selevantavam como cercas de gado e vedações para pequenas hortas13.

Foi o entusiasta bispo de Safim, D. João Subtil, quem primeiro adiantoua possibilidade de se fazer uma vila em Mazagão14. Corria o ano de 1520 e ascondições favoráveis do hinterland de Mazagão concorriam para a fixação dehabitantes à sombra do castelo. A visão estratégica do duque conquistador deAzamor colhia os seus frutos, beneficiando da generosidade da flora e faunacircundantes. Até 1537, aglomerou-se efectivamente uma vila junto do castelo,ano em que Manuel de Sande se identificava claramente como “capitão e gover-nador d’esta vylla de Mazaguam”15. Designação que aparece reforçada pelosapelos do capitão, meses antes, a propósito da falta de provisões e recursosfinanceiros para a sua manutenção em bom estado de defesa - “(…) esta villaesta tam esquecyda de V. A. e faz-se tam pouco conta d’ela (…); pois tambémesta villa he de V.A. como Aazamor (…)” - lembrando que se contava “aqui muipouca gemte, amtre moços e velhos e cleriguos e Judeus e todos os outros (…)que abaste para as vellas necesarrias a esta villa e fortaleza (…)”16. Conhe-cendo-se a fortaleza, resgatados que estão os vestígios do castelo levantadopelos irmãos Arruda em 1514, torna-se mais complicada a tarefa de recons-tituição da vila portuguesa que se foi formando nos decénios seguintes.

Uma análise atenta da estrutura urbana do actual mellah17 permiteconstatar uma maior irregularidade no traçado no sector noroeste, compre-

13 Idem.

14 Carta do Bispo de Safim a D. Manuel I, Santa Clara - 6 de Março de 1520 (IAN-TT, Cartas dosGovernadores de África, nº 59) in Idem, 269-272.

15 Ordem de Manuel de Sande, Mazagão - Março de 1537 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço210, doc. 94) in Les Sources Inédites…, III, 1948, 88-89.

16 Carta de Manuel de Sande a D. João III, Mazagão - 21 de Setembro de 1536 (IAN-TT, CorpoCronológico, parte I, maço 57, doc. 107) in Idem, 59-64.

17 Após a evacuação portuguesa de 1769, Mazagão permaneceu arrasada e abandonada, tendo sidoa comunidade judaica a primeira a reabitá-la, já no século XIX, daí a designação de mellah – bairrojudeu – que permaneceu na tradição oral até aos nossos dias.

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endido entre o Baluarte de Santo António e o centro da Cité Portugaise, reve-lador de uma organicidade chocante com a ortogonalidade do restante sistemaviário. Este aspecto aparece claramente documentado na cartografia setecen-tista, confirmando a possibilidade de uma persistência urbana nesta zona desdetempos manuelinos, caracterizada por um tecido de formação espontânea.Integrado no plano urbano de 1541, manteria as clivagens formais para umanova concepção de fazer cidade. Nem a islamização que a partir do século XIXperverteu a regularidade da vila projectada e construída em meados deQuinhentos conseguiu mascarar este núcleo primitivo. Porém, é impossívelestabelecer o perímetro da vila portuguesa de então.

Foi essa vila e castelo que João de Castilho, com Duarte Coelho, foi ins-peccionar em 1529, numa missão integrada de avaliação das praças portu-guesas no Norte de África18. A iniciativa real desencadeou uma série deconsultas às quais o Bispo de Lamego respondia, apontando a fortificação deCeuta e Mazagão como a melhor opção para se resistir ao inimigo turco BarbaRoxa, juntamente com a evacuação das restantes vilas e cidades meridionais -Safim,Azamor e Santa Cruz19. Este seria o prenúncio da grande intervenção deremodelação operada em Mazagão, transformando-a numa vila-fortalezasegundo um projecto de ruptura epistemológica com a tradição arquitectónica,militar e urbana, até então trabalhadas pelos portugueses neste território. Aqueda de Santa Cruz em 1541 determinou o arranque da empresa que fez dofortim manuelino o epicentro de uma operação que permitiria manterMazagão em mãos portuguesas até 1769, invertendo a sentença traçada paraa maioria das possessões lusas desta costa.

A (re)fundação de Mazagão

A fortaleza

A ruptura formal com que, geralmente, se associa a experiência deMazagão diz respeito à inauguração de um projecto de fortificação abaluartada,

18 Cf. Carta do Duque de Bragança a D. João III,Vila Viçosa - 12 de Fevereiro de 1529 - IAN-TT, GavetaXVIII, maço 10, nº 10.

19 Resposta do Bispo de Lamego ao rei sobre a guerra de África, Lisboa - 7 de Outubro de 1534 (IAN-TT, Reforma das Gavetas, Gaveta II, maço 7, nº 4) in Les Sources Inédites…, II, Seconde Partie, 1946,656-661.

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sendo este dispositivo – o baluarte20 – caracterizado por uma planta penta-gonal ou “em cunha”. Constitui a inovação que haveria de remodelar os redu-tos defensivos das praças mantidas a norte, onde, respectivamente, em Ceutae Tânger, os vestígios das frentes abaluartadas sobre o fosso marítimo ou emtorno do Castelo Velho atestam uma praxis moderna das reformas nas duasdécadas seguintes. A iniciativa foi gerida por uma junta de arquitectos encar-regue de dotar Mazagão das novas concepções da arquitectura militar e datratadística italiana, composta por Benedetto da Ravenna, Miguel de Arruda eDiogo de Torralva.Ao primeiro ficou-se a dever o projecto da nova praça-forteque João de Castilho, executor das obras, afirma pretender seguir fielmente, emcarta enviada a D. João III a 15 de Dezembro de 154121.

Se a Torralva coube o estudo do lugar22, foi Miguel de Arruda quemestabeleceu as principais pontes de diálogo na equipa, indo buscar Benedettoda Ravena a Espanha. De facto, Arruda encontrou-se com o seu congénereitaliano no Porto de Santa Maria, munido das instruções e orientações reaispara a missão, para daí seguirem rumo a Ceuta. Esta inspecção foi preparadapara obter o máximo de eficácia possível. Assim, o pedido de D. João III aocardeal de Toledo, ministro do Imperador Carlos V, para que conceda licença aoseu engenheiro de fortificações militares, Benedeto, no sentido de acompanharMiguel de Arruda a África23, continha já uma intenção simultânea de dotarMazagão de um novo sistema defensivo inexpugnável e de reavaliar o sistemadefensivo de Ceuta. O saber adquirido por Arruda proporcionou o seu reenvioao Norte de África para, sete anos mais tarde, riscar a cidadela moderna deTânger e ajuizar da vantagem da construção do forte do Seinal, sobre AlcácerCeguer.

A fundação da praça no primeiro dia de Agosto de 1541, por Luís deLoureiro, efeméride gravada em epígrafe24, decorreu em plena laboração do esta-

20 Nas palavras de Rafael Moreira, “o elemento central do novo tipo de fortificação, e a única criaçãoarquitectónica absolutamente nova desde a Antiguidade” (História das Fortificações Portuguesas noMundo 1989, 144).

21 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 72, doc. 32) in Sousa Viterbo 1899-1922, I, 194-195:“(…) E quanto ao que V. A. espreveuo que na obra não saya dos apontam_tos de Benito deReuena, eu asy o fiz sempre e farey (…)”.

22 Idem, III, 126.

23 Notas sobre alguns Engenheiros nas Praças de África 1922, 11. Cf. Moreira, op. cit., 112 (BNL, cód.1758, fls. 468v-469).

24 Cf. Correia 1923, 65-66.

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leiro conduzido por João de Castilho e inspeccionado por João Ribeiro (Fig. 5).De facto, durante esse Verão, várias são as missivas que dão conta do anda-mento dos trabalhos, em particular na mais urgente frente de terra “que andano baluarte da bamda de Tite”25, o actual Baluarte de Santo António, que já sedesignou por S. Jorge ou D. Diogo. O avanço da obra permitia já a execuçãodas portas da praça26, denunciando que, mesmo faltando o levantamento totalde todos os baluartes, o perímetro estava alcançado e encerrado, depois da

Fig. 5 – Planta actual à cota baixa da Cité Portugaise. © Ilustração do autor

25 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 25 de Agosto de 1541 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 70, doc. 75) in Les Sources Inédites…, III, 1948, 502-506.

26 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 28 de Agosto de 1541 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 70, doc. 76) in Idem, 507-508.

1. Baluarte de Santo António2. Baluarte do S. Sebastião ou do Norte3. Baluarte do Anjo ou de Santiago4. Baluarte do Santo-Espírito5. Porta da Ribeira ou do Mar6. Portinha dos Bois7. Vestígios da Porta da Vila

e Baluarte do Governador8. Vestígios do fosso (doca actual)

9. Edifício do castelejo/cisterna10. Igreja de N. Sra. Assunção11. Mesquita12. Vestígios da Igreja de N. Sra. Luz13. Rua da Carreira14. Rua Direita15. Rua da Luz16. Rue Docteur M. Rodriguez17. Rua das Amoreiras (Abraham Zanati)18. Rua de S. Lourenço

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laboriosa contribuição de todos quantos se haviam empenhado no rasgamentoda superfície rochosa natural para a abertura das cavas e caboucos. No final domesmo ano, com quarenta palmos de altura, concluía-se o então apelidadoBaluarte dos Medãos27, que retirava da localização na linha de dunas da baía oseu primeiro nome, depois chamado do Serrão e mais tarde de Santo-Espírito.O baluarte, que era “hua das fortes he fermosa cousa que a em Espanha”,permitia a João de Castilho considerar “a obra esta ya de maneira que, nã diguoeu vir ho Xarife, mas o Turquo com quanto poder tem, nos nã poderá fazermall”28.

Assegurada a frente de terra, o primeiro semestre de 1542 foi dedi-cado ao término da banda do mar, com dois baluartes, um integralmentedentro de água, entre os quais se abrigava a calheta ou porto (Fig. 6). Ficavacompleto o desenho do polígono da nova fortaleza de Mazagão composto porquatro ângulos principais unidos por panos de muralha medidos em trintapalmos pelo mestre biscainho, em jeito de ponto de situação29, alturas que sepreservam nas zonas menos alteradas do presente, e que se elevavam aosquarenta palmos quando contabilizados os cavaleiros dos baluartes. Um inqué-

27 Carta de João de Castilho a D. João III - Mazagão, 6 de Janeiro de 1542 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 71, doc. 52) in Les Sources Inédites…, IV, 1951, 13-14.

28 Idem.

29 Carta de João de Castilho a D. João III - Mazagão, 18 de Julho de 1542 (IAN-TT, Corpo Cronológico,parte I, maço 72, doc. 68) in Idem, 70-74.

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Fig. 6 – Vista da frente de mar das muralhas, com Baluarte do Anjo em primeiro plano.© Fotografia do autor

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rito reconstitutivo ao contorno amuralhado recolhe uma nomenclatura que,como já se percebeu, foi sendo cambiada. Num périplo desde a calheta, ondese abria a Porta do Mar ou da Ribeira sobre um ancoradouro em degraus, paranorte, encontrávamos:

– o Baluarte de S. Sebastião ou do Norte, apresentando orelhão para olado de terra, sobre o fosso marítimo, agora drenado; um longo braço fortifi-cado, descrevendo uma inflexão côncava segundo um ângulo obtuso de 160°(Fig. 7), próximo do ponto onde se abre a Porta ou Portinha dos Bois, exclusiva-mente aberta a posteriori para recolha do entulho da cava30; o Baluarte de SantoAntónio, anteriormente chamado de S. Jorge ou D. Diogo, ou ainda S. Pedro, de

figura praticamente simétrica com dois orelhões; a frente de vila, igualmentequebrada por inflexão de 158°, interrompida pelo Baluarte do Governadorque abrigava a porta principal da vila e cuja estrutura desapareceu quase porcompleto; o Baluarte do Santo-Espírito, outrora designado por Serrão, Com-bate ou dos Medãos, separando praia e sertão; a cortina meridional de plani-metria em cotovelo de 163° sobre entrada do fosso (única permanência docanal aquático), regulável por buxa ou comporta; por fim, o Baluarte do Anjoou de Santiago fecha a cava, sobre a qual descreve um orelhão, e ajuda a definira entrada do porto.

Fig. 7 – Vista desde Baluarte de S. Sebastião para Baluarte de Santo António, comcortina fortificada norte. © Fotografia do autor

30 Farinha 1987, 5.

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O elemento cartográfico mais antigo existente sobre Mazagão reflecte,justamente, a traça acima descrita, tendo sido desenhado em 1611 com ointuito de declarar as áreas da cava a limpar e desentulhar (Fig. 8). Da intençãoda mostra se deduz o restante desenho do conjunto fortificado, composto porum fosso que circundava três frentes da fortaleza e por forte revelim em frenteà Porta da Vila. O talude de reforço exterior desta estrutura e de todo o con-torno do fosso interrompia-se nos pontos em que tocava a linha da preia-mar.Involuntariamente, a gravura acaba por isolar um sistema defensivo de grandeinovação cuja família formal encontra parentescos nas experiências já quinhen-tistas de António da Sangallo, em Itália, ou raízes numa prática guerreira deBenedetto da Ravena pelo Mediterrâneo, de Rodes a Tunes31.A coincidência daurgência derivada da crise africana acontecia no seio de uma corte próxima domonarca, onde participava o infante D. Luís, também ele experimentado naslides beligerantes ao lado de Ravena. Uma corte à qual regressava, por estaaltura, Francisco de Holanda.Vinha de Itália para onde havia sido enviado porD. João III para desenhar fortalezas, como Pesaro, e, na capital portuguesa,reivindicava a solução arquitectónica para a praça portuguesa.

O modelo repousava sobre o princípio fundamental da eliminação dosângulos mortos ou cegos através do cruzamento de linhas de fogo rasantes eparalelas aos planos horizontal da água do fosso e vertical da muralha, dispa-

31 Moreira, op. cit., 52-53.

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Fig. 8 – Planta da Fortaleza de Mazagão - 1611, fl. 104 (PT-TT-CCDV-23). © Imagem cedida pelo IAN/TT

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radas a partir de dois níveis de canhoneiras colocadas nos orelhões dosbaluartes. O sistema assumia-se como um autêntico organismo bélico atravésda desmultiplicação de direcções de tiro desde as plataformas superiores dosbaluartes, coroados com seus cavaleiros, e ao longo dos caminhos de ronda dasinstâncias intermédias dos muros, como o provam as diferentes orientações dascanhoneiras mazaganeneses. O pleno funcionamento do dispositivo impedia aaproximação e o assalto inimigos. O conceito havia sido experimentado emalguns arranjos de arquitectura militar em praças conquistadas e remodeladaspelos portugueses - o Baluarte da Porta de Ceuta (Alcácer Ceguer), o Baluarteda Pata de Aranha (Arzila) ou o Baluarte do Raio (Azamor) - mas os ensaiosainda não constituíam um lançamento formal do baluarte moderno.

A vila

Tal como na vizinha Azamor, a fortaleza e a vila de Mazagão identifi-cavam-se espacialmente. Em Abril de 1541, da correspondência entre o rei eLuís de Loureiro percebe-se como, quer a hipótese da manutenção do sítio,com uma renovação das fortificações, quer o espectro da evacuação seencontravam em discussão32. Da carta emanam também várias consideraçõessobre as tensões geradas entre castelo e vila, saindo reforçada a ideia de umconjunto urbano com alguma dimensão para o qual o reduto acastelado seriainsuficiente - “(…) e querendo-lhe defemder a vila se comprise rrecolher aocastelo guastava-se-lhe mais o tempo de vos terem cerquados, porque o cas-telo soo, por ser pequeno, em mais breve tempo lhe podem fazer muito dano.(…)” - para além de que o abandono da vila implicaria uma operação de arra-samento e limpeza dos escombros tal como era hábito efectuar nas áreasurbanas excluídas nos processos de atalho: “(…) E comtra leixardes e vosmeterdes no castelo, há também muy grandes inconvenientes, que, leixando avilla, nam na podereis tão asinha arasar tanto que não ffique muita pera asestancias dos imiguos; e se as casas todas nam ficasem de todo postas per terra,aimda que lhe derribazeys os telhados, seriam as paredes gramde ajuda pêra secheguarem ao voso muro (…)”. Depreende-se da missiva que as hesitações do

32 Carta de D. João III a Luís de Loureiro - Lisboa, 13 de Abril de 1541 (BNL, cód. 1758, fls. 62-62v) inLes Sources Inédites…, III, 1948, 390-394.

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capitão Luís de Loureiro relativas ao alcance de uma solução satisfatória eequilibrada entre as componentes militar e urbana de Mazagão, existentes àdata, bem como a urgência de fortificação face à ameaça crescente dos xerifessádidas, impeliram as diligências que, a partir do mês seguinte, trariam aMazagão a dita junta de arquitectos e engenheiros. O investimento passavatambém então pela preservação e integração do tecido construído em tornodo castelo manuelino no novo projecto de vila-fortaleza.

O plano tomou como centralidade o castelejo tardo-medieval, transfor-mado em charneira administrativa da praça-forte. Os trabalhos não seresumiram à implantação das defesas exteriores – muralhas, baluartes, fosso erevelim – mas manifestaram-se igualmente na adaptação ou criação de equipa-mentos públicos. Os espaços entre os torreões cilíndricos do primeiro casteloforam preenchidos por armazéns e serviços da nova vila, exibindo uma estru-tura em cruzaria de ogivas semelhante à utilizada na cobertura da grande cis-terna semi-enterrada no interior do quadrângulo, terminada em 154733, e noreforço interno das torres.A cisterna, uma das principais responsáveis pela sus-tentabilidade da praça durante longos cercos, permanece como um dos mar-cos mais categóricos do investimento português no Norte de África (Fig. 9).Entre o recinto do castelo inicial, agora espaço dedicado ao armazenamento deágua, provisões ou pólvora, às casas do hospital e da misericórdia, e as novasfortificações lançou-se uma grelha viária tendencialmente regular, ou seja, umamatriz urbana não divorciável da lógica global da intervenção.

A planta de Mazagão necessita uma observação bipartida que distinga osector noroeste da restante área ocupada (Fig. 5). Como referimos atrás, a expli-cação para uma menor regularidade dos arruamentos nesta zona pode residirna herança da vila espontânea, agregada ao castelo entre 1514 e 1541. Nolimite meridional desta porção do território urbano de Mazagão erguia-se oPalácio do Governador que ajudava a conformar o maior dos espaços públicosda vila: o Terreiro. Inscrevia-se numa figura aproximadamente rectangulartambém delimitada por um dos lados do primitivo castelejo, agora remodelado,pelo acesso ao Baluarte do Governador, com a respectiva Porta da Vila, e pelalonga fachada lateral da igreja matriz, votada a N. Sra. da Assunção. Entretanto,a demolição da residência do governador e a sua substituição por uma mes-

33 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 23 de Novembro de 1547 (IAN-TT, CorpoCronológico, parte I, maço 79, doc. 129) in Les Sources Inédites…, IV, 1951, 243-245.

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quita no século XIX perverteram a leitura espacial portuguesa. O templo muçul-mano, para além de apropriar a vizinha Torre do Rebate para minarete, atrofia oantigo espaço público português numa implantação refém da orientação paraMeca.

Fig. 9 – Interior da cisterna. © Fotografia do autor

Fig. 10 – Rua da Carreira. © Fotografia do autor

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A aparente ausência de ordenação cartesiana do núcleo noroeste con-trasta com os demais três quartos da vila arruada segundo linearidades pers-pécticas e ortogonalidades nos cunhais. O desenho favorece a rectículadisposta numa geometria de quarteirões quadrangulares alongados. A Rua daCarreira emergia como o grande eixo estruturador da malha, pois faziacomunicar a Porta da Ribeira com a Praça do Terreiro, centro administrativo-religioso de Mazagão (Fig. 10). Por outro lado, a sua localização relativamentelateral em relação a esse núcleo pode remeter a sua utilidade para funções dedistribuição da cavalaria ou de peças pesadas de artilharia aos baluartes deterra, através das ruas da Mina e do Arco. Aliás, o destaque axial conferido àRua da Carreira questiona a relegação da Rua Direita para uma posiçãosecundária, quando a esta referência geralmente se associavam questões deacessibilidade, centralidade e actividade terciária34.Todavia, a partir da Porta daRibeira, local de embarque/desembarque de pessoas e carga/descarga demercadorias, a circulação distribuía-se em leque através de uma série deartérias - ruas da Praia, das Amoreiras, do Loureiro, do Martírio, das Flores e,também, a própria Rua da Carreira -. que conduziam à Rua Direita. Daí oalargamento que se verifica na secção desta via no segmento desde o encaixeda então Rua das Amoreiras, actual Rue Abraham Zanati, para norte, já registadona cartografia setecentista.

A documentação cartográfica mostra um estado consolidado da malhaurbana da vila, não revelando a evolução do plano gizado ainda antes dametade do século XVI (Fig. 11). Desconhece-se o calendário do preenchi-mento dos lotes para habitação de moradores ou mesmo se o estabeleci-mento de todo o traçado fora imediato ou diacrónico. No entanto, algumaspistas formais concorrem para um tempo curto no lançamento dos quartei-rões que recheariam o recinto intra-muros. O que a mesma cartografia nãoesconde é a facilidade de reconstituição desse tempo com base no actualtecido da Cité Portugaise. No presente, uma aspiração a uma realidade urbanís-tica mais identificável por uma população quase exclusivamente árabe e muçul-mana reflecte-se em mecanismos de lenta mas quotidiana metamorfose daherança portuguesa.

A reconstituição da malha de origem portuguesa permite abstrair umageometria bastante regular assente numa grelha de ruas paralelas às duas

34 Costa e Correia 2002, 120-121.

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Fig. 11 – Planta da Praça de Mazagam – engenheiro Simão dos Santos/Guilherme Joaquim Pays – c. 1760 (cópia de original de c.1720?). © Instituto Geográfico e Português – CA 599

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direcções presentes na muralha meridional da vila, entre os baluartes do Anjoe do Santo-Espírito. Considerando excluído o sector entre o Baluarte de SantoAntónio, a Portinha dos Bois e o edifício da cisterna, como se justificou acima,o traçado deve ser compreendido segundo aquelas orientações e, como tal,repartido em dois momentos: por um lado, o panorama a sul da Rua da Car-reira; por outro, a disposição urbana para leste da Rua Direita. Ambas as situa-ções são preenchidas por rectângulos, por vezes ligeiramente imperfeitos, quedesenham quarteirões alongados. Em detalhe, podemos registar a existência dequatro unidades deste tipo, cujos topos ajudam a conformar a Rua da Carreira,para além do arranque de um quinto quarteirão, geometricamente paralelo,definido pelo lado da Rue Docteur M. Rodriguez mas desvirtuado pelo canal daRua da Luz. Entre a Rua Direita e a muralha marítima, uma sucessão menosregular de cinco módulos semelhantes vai diminuindo em largura à medida quese aproxima do ângulo setentrional assinalado pelo Baluarte de S. Sebastião.Aqui, as quatro ruas que separam os quarteirões descrevem ângulos de noventagraus com as estremidades (Rua Direita e muralha marítima).

No centro geográfico da vila, o perímetro do castelo de 1514, agoratransformado e aumentado, circunscreve-se a um quadrado de arestas limadaspela curvatura das antigas torres. A implantação do castelo manuelino pareceter funcionado como geratriz organizativa de todos os cheios e vazios doespaço urbano da vila projectada a partir de 1541. Para ocidente rasgava-se agrande praça do Terreiro até à Porta da Vila, entalada entre a fachada principaldo Palácio do Governador e o canal viário da Carreira, limites de um espaçoque representa o negativo do quadrado ocupado do edifício da cisterna, agorasemi-preenchido pelo volume da mesquita oitocentista.A única “invasão” auto-rizada, rompendo a regularidade da figura geométrica em planta, foi a edificaçãoda igreja matriz, que ocupa a banda adjacente à Rua da Carreira. No restanteespaço urbanizado, para norte e sul do quadrilátero central, até aos novosmuros modernos, verifica-se uma distância semelhante às medidas dos lados doquadrado, que não sendo perfeito, oscila entre os cinquenta e três e os cinquentae sete metros, ou antes, entre as vinte e quatro e vinte e seis braças, aproxi-madamente.

As medidas indicadas correspondem aos comprimentos dos quar-teirões inseridos na tipologia regular que destacávamos atrás. Estas unidadesrectangulares apresentam, por sua vez, medidas nos topos que equivalem àmetade dos lados maiores, revelando um tabuleiro de malha mais apertada.

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Efectivamente, a matriz pode ter residido na metade do módulo quadrado doprimeiro castelo português, depois de preenchidos os interstícios entre astorres, disposta segundo as duas direcções encontradas. O modelo manifestasimilitudes com a cidade portuguesa de Damão, delineada mais tarde, nasegunda metade do século XVI, depois da conquista definitiva de 1559. Noentanto, ao contrário da urbe indiana, onde o traçado resulta da subdivisão emquatro partes de um também fortim pré-existente35, em Mazagão a meiafracção do quadrado base foi apropriada com menos rigor e de forma maislivre. Em ambos os casos, o sistema pervertia-se no encontro com as muralhasmais irregulares do contorno. Na praça norte-africana, a situação torna-separticularmente evidente nas imediações dos cantos da vila, junto aos baluar-tes, onde é necessário efectuar compensações, devido aos planos oblíquos, oucriar acessibilidades ao caminho de ronda.

O encadeamento lógico demonstrado sugere que o plano urbano deMazagão seja consequência de uma base modelar emanada pela pré-existênciafísica do castelo de 1514. Decorrente de um projecto inovador no campo daarquitectura militar, cujo recinto fortificado viria a abraçar o dito castelo e opovoado adjacente, não sabemos se na totalidade, os limites da acção urbaniza-dora encontravam-se desde então marcados. Desconhece-se também até queponto Benedetto da Ravena, ou qualquer outro interveniente da junta régia,terá contribuído para o desenho de tão racional “arruação”. Requisitado pelassuas qualidades de engenheiro militar e pela sua capacidade projectual nodomínio da fortificação como resposta ao surgimento da pirobalística comotécnica de fogo, no currículo do mestre italiano não figuram intervençõesurbanas de destaque. Por este motivo, acreditamos que Mazagão deve ser lidacomo corolário de uma tradição urbanística decorrente de uma experiênciamagrebina essencialmente centrada na primeira metade do século XVI.

O que fica claro da disposição interior da vila-fortaleza é a racionalidadede uma operação de conjunto, integrando as componentes militar e urbanística.A distribuição viária complementa-se e prolonga-se através das acessibilidadesao caminho de ronda e baluartes, fomentando uma circulação funcional defronteiros e moradores. Eram quatro as escadas/rampas que, situadas justa-mente a meio de cada lanço amuralhado, descreviam uma repartição alterna-tiva à concentração de meios e pessoas sobre os baluartes: a Escada dos Bois,

35 Rossa 1995, 283.

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a norte; a subida da Calheta, sobre o porto, para oriente; a Escada do Contador,a sul; e, por fim, a escada que dava acesso à plataforma do baluarte sobre aporta principal. No interior da vila, para além da matriz dedicada a N. Sra. daAssunção (Fig. 12), sete capelas ou igrejas semeadas pelo tecido construídofacultavam à população o serviço religioso – N. Sra. da Luz, N. Sra. da Piedade,N. Sra. da Nazaré, S. José, S. Sebastião ou S. Francisco, Santa Cruz e S. João.Juntavam-se duas ermidas, N. Sra. do Pilar e N. Sra. da Penha de França,respectivamente sobre os baluartes do Anjo e de Santo António. Nem semprepossuíram culto simultâneo e a sua edificação ou consagração deve ter sidoespaçada no tempo36. Indiscutível é a existência de uma Misericórdia associadaao hospital, ambos instalados junto à cisterna, no edifício do castelejotransformado em centro administrativo da vila, e da igreja matriz, único templonão geminado com outras construções.

As mudanças desde 1769

O ano de 1769 fechou o ciclo de realizações portuguesas em Mazagãoe, por conseguinte, no Norte de África. Data da evacuação da praça, ordenadapelo Marquês de Pombal, iria dar início a um período de cerca de meio séculode abandono, em que foi apelidada de Al Mahdouma, a Destruída, devidoessencialmente às explosões causadas pelas minas deixadas durante a retiradaportuguesa. Depois da conquista da praça pelo sultão Sidi Mohammed BenAbdallah, os dois mil habitantes da praça marroquina partiram em direcção aLisboa, para depois seguirem para o Brasil, onde, no Pará, se fundou Vila Novade Mazagão, por ordem do Marquês37.

Finalmente, em 1821 e no seguimento da reconstrução conduzida porSidi Mohammed ben Ettayeb, os judeus foram os primeiros ocupantes do aindadesignado mellah. Descrições da época mostram como o desenvolvimentodemográfico terá ocorrido por volta da década de 186038, quando a cidadecomeçou a crescer para lá das muralhas portuguesas e da convivência étnica

36 Mais esclarecimentos sobre as instituições religiosas podem ser consultados em Descrição daFortaleza de Mazagão (1916), bem como em Cunha 1864, Dornellas 1923-24 e Périale 1938.

37 Cf. Araújo 1998, 265-290.

38 Goulven 1918, 402-416.

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Fig. 12 – Fachada da Igreja de Nossa Senhora da Assunção. © Fotografia do autor

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entre judeus e árabes se fazia a massa populacional de Mazagão. O estabele-cimento do protectorado francês, em 1912, veio contribuir para a caracteriza-ção cosmopolita do tecido social, suspensa depois do final da Segunda GuerraMundial, com a partida hebraica para o então recém-criado estado de Israel, ecom a retirada francesa após a independência marroquina em 1956. Presente-mente, consumada a ocupação definitiva pela população árabe, a par de mellah,à antiga cidadela portuguesa atribui-se, paradoxalmente, a denominação doprotectorado francês, Cité Portugaise. Agora, trata-se apenas de um pequenobairro de El Jadida, cuja urbe prossegue a sua expansão extra-murosimpulsionada pela proximidade de Jorf Lasfar, o grande porto marroquino dosfosfatos.

É um conjunto vivo e em dinâmica permanente, onde as metamorfosesmorfológicas se operam quase quotidianamente, muitas vezes à margem dosregulamentos ou da autoridade. Do tecido residencial construído da Mazagãoportuguesa restam escassos vestígios. Como tal, torna-se difícil a detecção eidentificação de tipologias de arquitectura doméstica na paisagem urbanacontemporânea da Cité Portugaise. O cenário provável caracterizar-se-ia porcasas térreas cobertas por açoteias, ou seja, a cada parcela corresponderiaapenas uma habitação, fazendo equivaler a conta de D. Gonçalo Coutinho e aplanta setecentista, separadas por uma centúria.Terá sido durante o século XVIIIque algumas casas se começaram a sobradar, como nos mostram os portaisencimados por varandim do número 4 da Rua do Celeiro ou da esquina daantiga Rua do Martírio com a de S. Lourenço, recentemente demolido.

O confronto com a cartografia setecentista possibilita um primeiro nívelde averiguação da ancestralidade duma hipotética regra encontrada. Porém, ainvestigação passa, sobretudo, pela avaliação da substituição das casas portu-guesas por outras construções nos séculos XIX, XX e mesmo XXI, dado quea renovação se opera quotidianamente, ou da sua eliminação, com a conse-quente criação de espaços vazios, numa perspectiva de recuperação de umaimagem caracterizada, possivelmente, por alinhamentos de casas térreas rasga-das por sequências de porta e janela(s). As excepções afirmar-se-iam peladimensão superior do lote, por detalhes decorativos ainda detectáveis e porsistemas internos de distribuição vertical que confirmassem a presença de umsobrado.

Tão importante como inesperada, a classificação poderá terminar comesta anarquia serena e latente, e encetar uma operação de salvaguarda e

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valorização, correspondente à escala e riqueza deste perímetro fortificado,aproveitando uma realidade social autóctone e jovem. A excepcionalidade deMazagão revela-se igualmente em dois tempos: no pioneirismo da suaexperiência moderna no continente africano, de onde se destacam elementosarquitectónicos ou urbanos notáveis – as muralhas, os baluartes, a cisterna, asigrejas, as ruas; no exemplo de pluralidade étnica e tolerância religiosa queexpressou intra-muros durante os séculos XIX e XX, como atesta a presençade culto simultâneo em mesquita, igreja e sinagoga.

Algumas estratégias de desenvolvimento poderiam passar pelo estabe-lecimento de percursos que estimulassem a manutenção de alguns edifícios,abrindo-os ao público, pelo fomento da reconstrução ou melhoramento dotecido existente e das condições de salubridade para os habitantes do mellah.Impõe-se, porém, um plano que consagre a habitabilidade das famílias resi-dentes no interior do perímetro fortificado como cláusula de salvaguarda destepatrimónio e impeça a especulação imobiliária de afastar a massa autóctone dobairro para o exterior das muralhas, como acontecera em Arzila. Da interacçãopositiva entre todos estes factores resultará, seguramente, mais que apenas“outra” medina turística do Reino de Marrocos.A sua situação física favorece oalheamento em relação ao restante tecido da cidade. Por conseguinte, a mais-valia para El Jadida reside no estabelecimento de pontes com o património oitoe novecentista da medina extra-muros, na manutenção e reforço dos circuitoscomerciais urbanos e na preservação da identidade social.

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RESUMO

Procura-se fazer a integração dacidade de Angra do Heroísmo, com assuas característicasurbano-arquitectónicas, no conjuntomais amplo das cidades de expressãoou influencia portuguesa nas diversasáreas transatlânticas.Enumeram-se as urbes de PortugalContinental com maior valor edimensão como “Cidades dePaisagem”, conceito que se pretenderealçar e tornar operativo, nas cidadeslitorais, fluviais e interiores.Referem-se, procurando umacaracterização sucinta, várias das urbescom destacado valor, dentro daqueleconceito, ao longo dos vários espaçosgeográficos: Ilhas, África, Ásia e Brasil.Termina-se com o apontamento dasdiversas características urbano-arquitectónicas de Angra do Heroísmoque se revelam também das cidadesatrás listadas, procurando umaidiossincrasia deste modelo de cidade.

ABSTRACT

This article presents the urban andarchitectural features of the city of Angra

within the wider context of thePortuguese-influenced cities in the

various Transatlantic areas. It lists thecities in continental Portugal most

identified as “Cities of landscape”, aconcept tentatively underscored and

used to analyze coastal and inland cities.Cities related to this concept in the

Atlantic archipelagos, Africa, Asia andBrazil are succinctly characterized. Finally,

the urban and architectural features ofAngra also found in the aforementionedcities are also listed, thus characterizing

this type of city

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Cidade-paisagem; Centralidade; Largo Cívico; Organicidade;Arquitectura Vernácula; Adro da Igreja

Key words: City-landscape; Centrality; Civic place; Organicity;Vernacular architecture; ChurchYard

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1. Introdução

Portugal, pequena nação peninsular do sudoeste europeu, criada esobretudo firmada a partir da Baixa Idade Média, desenvolveu no seu territóriode finisterra uma ocupação do espaço colectivo construído com característicasoriginais, quer no desenho ou traçado das vilas e cidades que foram erigidas,quer nas obras arquitectónicas que preencheram esses espaços urbanos eainda outras áreas de carácter rural.

Podemos falar do urbanismo luso e da arquitectura portuguesa, desdeos séculos XII-XIII, como inseridos na dominante tradição e influência do oci-dente europeu, caldeados pela complementar tradição oriental. Efectivamente,o processo histórico de urbanização do território luso apresenta uma riquezae diversidade de influências assinalável: sobre uma base castreja provinda dapré-história, surgiram as litorâneas culturas Grega e Fenícia, depois apropriadase transformadas por uma duradoura e estruturante Romanização, seguida estapela presença germânica Suevo-Visigótica, e sequentemente pela longapermanência do Islão (este sobretudo a sul do Mondego e Tejo).

Todo este processo foi determinante – aquando do retomar cristão – nadefinição de um espírito de lugar, na escolha dos sítios e sua sedimentação urbana,no entendimento de uma relação com a paisagem e a sua geografia, até mesmode uma determinada escala de edificação arquitectónica e de um modo de cons-trução dos espaços e da opção por determinadas formas, materiais e cores.

Com o avançar dos séculos, e o sedimentar desta prática, pôde firmar-seem Portugal uma cultura urbana e arquitectónica sólida, base para o valor dovasto conjunto existente actualmente, do nosso Património Construído, nas

* Arquitecto. Professor Agregado em História da Arquitectura e do Urbanismo na Faculdade deArquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Portugal

ANGRA DO HEROÍSMO NO QUADRO DAS “CIDADES DE PAISAGEM”PORTUGUESAS MEDIEVO-RENASCENTISTAS

José Manuel Fernandes*

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nossas cidades, espaços urbanos, vilas e aldeias e no território rural. Os exem-plos qualificados atravessam os tempos do Românico e do Gótico, do Manue-lino, do Renascimento e do Barroco, do Chão e do Pombalino, do Romantismo,da Arquitectura do Ferro e do Moderno.

Sem querer abarcar e referir todos os casos de valor e qualidade histó-rica/urbana, sedimentados no território português ibérico, podemos referir osexemplos concretos de cidades e de alguns espaços arquitectónicos notáveisnelas integrados, com alguns deles realçados pela classificação da UNESCOcomo Património da Humanidade – pois tal é o caso de Angra do Heroísmo:

– cidades litorais: Lisboa, com destaque para ao seu bairro islâmico (Alfama),medievo-renascentista (Bairro Alto) e Clássico-Barroco (a Baixa Pomba-lina), bem como para o seu núcleo edificado quinhentista do JerónimoseTorre de Belém (class. pela UNESCO); Porto, com todo o conjunto doseu centro medieval e barroco, da Ribeira aos Clérigos, na relação coma complementar Margem Sul (class. pela UNESCO) – numa matiz dualbem característica das urbes portuguesas costeiras; Viana do Castelo,luminosa na sua relação aberta e vasta com a barra e a longa costadupla; Faro, com a sua Vila-a-Dentro, muralhada, bem expressiva dopendor islâmico-medievo do seu tecido urbano;

– cidades fluviais: Coimbra, com um claro diálogo estabelecido entre a Baixinhae a colina da Universidade, num partido também muito característico daurbe lusa, frequentemente organizada entre a Baixa e a Alta; Santarém,tirando partido paisagístico do poderoso esporão sobre o Tejo, altaneirae orgulhosa do seu conjunto monumental gótico;

– cidades interiores: Guimarães, de consistente e denso tecido urbano medi-evo, alternando e articulando com eficácia registos monumentais e ver-náculos, medievos e barrocos (class. pela UNESCO); Braga, com umtraçado onde ainda se pressente a herança geométrica romana, valori-zando praças, largos e ruas; e Évora, igualmente realçando traçados,espaços, monumentos e casas (embora num modo meridional de luz e coroposto aos das duas urbes minhotas).

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2. O conceito de “Cidade de Paisagem” no mundo lusófono urbano e arquitectónico Portugal e o Património Lusófono – um breve percurso geo-histórico por cidades, sítios earquitecturas de influência ou expressão lusa no Mundo

A partir do percurso colonial, iniciado com a Expansão Marítima e Tran-satlântica portuguesa do século XV, a nossa cultura construída, arquitectónica eurbana, esta “arte de fazer cidades e casas” – sedimentada na fase fulcral datransição Medievo-Renascentista – foi transportada para muitos e diferenteslugares.

Dadas as características geo-estratégicas e o fundo cultural da organi-zação do nosso espaço da Expansão Marítima, foi naturalmente sobrelevado otema das urbes litorais, e a sua capacidade para articular a geografia local: a baíaabrigada e portuária; a definição dos tecidos urbanos inter-activos, com a Altaresidencial e a Baixa comercial-marítima; a estrutura de origem medieva, mo-dernizada mas não abandonada, do sistema de “Rua Directa” articulando largose praças; a matriz essencialmente orgânica da fábrica urbana e sua evolução.

São estas determinantes que podem ajudar a melhor definir, espacial,formal e funcionalmente, a dita “Cidade de Paisagem”, sequencialmente ensaia-da e consolidada por ilhas, mares e continentes.

Destaquemos algumas dessas cidades de matriz portuguesa, com as suasarquitecturas principais – sem preocupação exaustiva, mas procurando antesexemplificar com os mais interessantes casos, desenvolvidos entre os séculosXV e XX – e verifiquemos as continuidades de tipologias urbanas e arquitec-turais, de formas e situações de espaço colectivo, nas diversas situações edifica-das, que permitem estabelecer uma visão culturalmente coerente, de conjunto,sobre esta vasta produção, da Europa ao Extremo Oriente.

Angra do Heroísmo (class. pela UNESCO), nos Açores, merecedestaque pela sua ampla dimensão urbana e paisagística, bem como pelasarquitecturas monumentais: pelo interessante Palácio dos capitães-generais(que aproveitou a mole do antigo colégio e igreja jesuíta), pela sua elegante SéCatedral, pela Praça Velha e Câmara, e sobretudo pelo monumental conjuntode fortificações, com destaque para a de São João Baptista, mas sem esquecera mais humilde de São Sebastião.

Organizada à volta de pequena baía (angra), a cidade soube, a partir deum núcleo inicial de povoamento de carácter defensivo (junto ao Castelo),expandir-se de modo organizado e racional ao longo das encostas a Sul,

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O conceito das “Cidades de Paisagem”, organizando os seus tecidos urbanos comampla dimensão estética, de forma orgânica, sobre relevos acidentados, e/ou frenteao mar. 1 – Angra do Heroísmo, 2 – Lisboa, 3 – Ouro Preto/Minas Gerais. © Fotografias do autor

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fabricando um tecido regular e de belo efeito ordenador de todo o espaço. Asua “rua directa” (que não a rua de Lisboa, hoje dita Direita), sensivelmenteparalela à costa, organiza todo o conjunto urbano, num eixo que vai desde aentrada por São Bento (a nascente), desce por São Francisco à Praça Velhamunicipal (donde se pode aceder ao porto e à Misericórdia), e sobe de seguidaa suave encosta para poente, recebendo a Sé Catedral, e culminando no Altodas Covas, para São Pedro, com sua sucessão de conventos e lugares sagrados.É pois cidade exemplar deste conceito de “cidade de paisagem” que se referiu.

Na ilha de São Miguel, também nos Açores, não devem esquecer-se asportentosas fachadas das igrejas jesuítas, quer em Ponta Delgada (onde a ma-triz inclui trabalhos em gosto manuelino tardio), quer na Ribeira Grande, nacosta norte da ilha – esta talvez o exemplo mais criativo e original do chamado“barroco açórico”, em contrastantes tons de basalto negro e cal branca.

No Funchal, primeira cidade atlântica, edificada ao longo de uma singelabaía, podemos destacar o conjunto da Alfandega, da Sé Catedral e da Fortalezavizinha.

Mazagão (class. pela UNESCO), cidadela fortificada em Marrocos, devereferir-se tanto pelo seu elegante e coeso sistema abaluartado, como pela eficá-cia simples da praça central, e pela sua sólida cisterna quinhentista. É talvez omelhor exemplo (e mais duradouro, até ao século XVIII) dentre as várias praçaslusas fortificadas nesta área, desde Ceuta e Tanger a Arliza e Alcácer-Ceguer.

Em Cabo Verde, são as ruínas da Sé Catedral que se impõem, encimadaspelas do Forte de São Filipe, na Cidade Velha da ilha de Santiago – para alémda cidade da Praia, na mesma ilha, que representa já uma criação urbana novaa partir de Setecentos.

Na área africana, e até à extensa costa do Golfo da Guiné, podem desta-car-se a delicada povoação de Cacheu (na actual Guiné-Bissau), ou Bissau,nascida à roda do forte de S.José de Amura.

O arquipélago de São Tomé e Príncipe apresenta dois povoados depequena escala mas graciosa presença paisagística: precisamente os núcleos deSão Tomé / Ana Chaves e de S. António do Príncipe, nas respectivas ilhas.

Já em Angola devem assinalar-se dois principais conjuntos urbanos: o deLuanda (infelizmente hoje muito destruído na sua área central), com a fortalezade S. Filipe e alguns solares urbanos seis e setecentistas (3 “sobrados” da antigapraça do Infante D. Henrique, e o Palácio de D. Ana Joaquina, da transição dosséculos XVIII-XIX, criminosamente demolido há pouco); e o de Benguela, este

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iniciado já no século XVII – além das preciosas ruínas de S. Salvador do Congo,ou M’banza Congo, de origem quatrocentista. Destaquem-se igualmente ascidades angolanas de fundação e desenvolvimento oitocentista (Moçâme-des/Namibe, Sá da Bandeira/Lubango, de matriz geométrica), e mesmo as deNovecentos, costeiras ou interiores, como o Lobito e Nova Lisboa/Huambo.

Em Moçambique o destaque deverá ir naturalmente para a pequena jóiaque constitui a Ilha de Moçambique (class. pela UNESCO), com a poderosafortificação de S. Sebastião, o palácio do governo, as igrejas e o conjunto resi-dencial, hoje muito arruinado – sem esquecer porém as pequenas preciosida-des que constituem a ilha do Ibo e os núcleos de Cabaceira Grande e Caba-ceira Pequena – e a desaparecida fortaleza, ainda com traça mediavalizante, deSofala, já na área do Zambeze. Também aqui devem mencionar-se algumasurbes crescidas já nos séculos XIX e XX, com matriz geométrica, como aesplêndida Lourenço Marques/Maputo, Quelimane e Beira – e outras, inte-riores, como Nampula,Vila Pery/Chimoio e Vila Cabral/Lichinga

No longo espaço geográfico do Índico, a norte de Moçambique e apoente da península indostânica, podem mencionar-se a cidadela-fortaleza deMombaça (Quénia), ou os diversos fortes arábicos (como Mascate, ou Soar, emOmão) e o de Ormuz, no Golfo Pérsico (Irão).

É na India que muitas e notáveis edificações e núcleos urbanos desteperíodo histórico devem ser mencionados. Percorramos a costa ocidental, denorte a sul. De Diu, em ilha costeira do Guzarate, é a famosa fortificação quesobressai, mas também a igreja de S. Paulo, do antigo colégio jesuíta, de frontariarequintadamente maneirista em tons polícromos.

Damão merece referência sobretudo pelo traçado rigorosa e excepcio-nalmente geométrico da sua malha urbana (Damão-Praça), envolvida pormuralhas abaluartadas – mas também pelo singelo e equilibrado largo da Mãede Deus, com a pequena igrejinha homómina e a antiga igreja jesuíta, deitandopara o jardim central, ao lado do edifício municipal.

De Baçaim (actual Vasai), alguns quilómetros a norte de Bombaim, éigualmente a extensa ruína das muralhas e suas portas (de Terra e do Mar) quese destaca, conjuntamente com a cidadela central e a praça anexa, e a sequên-cia das ruínas religiosas: as igrejas de S. Domingos, a de S. Francisco, a do colégiojesuíta (de grandiosa fachada), a matriz de S.José (com a original torre centradasobre o portal de acesso).

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Presença arquitectónica forte das Igrejas e Conventos, com as suas torres, na frente urbana ou no coração das praças e largos centrais. 4 – Angra do Heroísmo/igreja daMisericórdia virada à baía, 5 – Olinda/Pernambuco e 6 – Tomar. © Fotografias do autor

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Significado e centralidade das praças e largos cívicos (com os edifícios das câmaras, aantiga “Casa de Câmara e Cadeia”) e religiosos (com as matrizes e Sés).7 – Angra do Heroísmo/Praça Velha, 8 – Macau largo do Leal Senado,9 – Mindelo/Cabo Verde/largo da igreja. © Fotografias do autor

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A sul de Bombaim, outra antiga povoação fortificada – Chaul, hojeRevdanda – exibe não só muralhas, portas e ruínas de igrejas (nomeadamentea de S. Francisco, com a torre fortificada junto à muralha), mas também a longae estreita estrutura muralhada do Morro, que inclui capelas e fortificações,acompanhando a linha de cumeada da elevação fronteira à cidadela, e guar-dando conjuntamente a barra.

Goa constitui um pequeno mas densamente edificado território cos-teiro (com a área aproximada da península de Setúbal), a meio caminho entrenorte e sul da India – e por isso desempenhou papel de lugar central (e centra-lizador) no luso “Estado da India”. Das suas cidades há que destacar a antigacapital,Velha Goa (class. pela UNESCO), que ainda exibe um conjunto notávelde igrejas e espaços de apoio, dentro do gosto clássico-maneirista que foi gra-dualmente indianizando em termos estilísticos – com destaque para a Sé Cate-dral (o maior edifício religioso jamais construído por portugueses), para a igrejaJesuíta do Bom Jesus (com as relíquias de S.Francisco Xavier), para a de N.S daGraça, dos Agostinhos (hoje só ruína), e para a mais tardia de S. Caetano, (sócompletada na 2a. metade de seiscentos), esta última com um raro zimbório,que depois influenciou as igrejinhas regionais de “falsa cúpula” do território,

Nos territórios a sul de Velha Goa (Salcete), o destaque deve ir para acidadezinha de Margão, notável pelo conjunto de residências de gosto indo--português, nomeadamente a chamada “Casa do Juíz” (ou dos 7 telhados, sete-centista) e as habitações que envolvem o vasto mas gracioso largo/terreiro cen-trado pela igreja jesuíta.

No caminho para o Extremo Oriente há que mencionar obras e cidadesmais isoladas: em Galle (class. pela UNESCO), na costa do Sri Lanka, comsólidos vestígios da cidadela portuguesa; na Tailândia, as ruínas de Ayutthaya(class. pela UNESCO); a cidadela de Malaca (na Malásia, de que sobrevivemruínas do forte e da igreja), e os espaços edificados de Timor, nomeadamenteDili (desenvolvidos sobretudo depois do século XVIII).

Macau (class. pela UNESCO), cidadela no sul da China, perto de Cantão,constitui evidentemente um espaço original, pela permanência na esfera lusaaté ao final do século XX – o que não sucedeu com nenhuma outra possessãoultramarina portuguesa. Devem destacar-se as estruturas edificadas que se algummodo se implantam ao longo do eixo principal histórico (a típica rua Direitacom seus largos), entre as duas baías que conformam a urbe: de nascente parapoente, a igreja de S. António, a monumental ruína-museu de S.Paulo (ex-libris

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da cidade), S. Francisco, a Sé, o central largo do Leal Senado (com a sede cívica,a Misericórdia e S.Domingos), S.Agostinho, o Colégio Jesuíta e S,Lourenço. Dasfortalezas podem destacar-se a do Monte, imponente e cêntrica, e a da Guia,escultural e altaneira.

Para finalizar esta viagem pelo Extremo Oriente, deve mencionar-se acidade de Nagasaki, na ponta ocidental do insular Japão – uma feitoriacomercialmente iniciada pelos portugueses, e de que subsiste a característicaimplantação paisagística (sobre uma baía, entre ilhas, montes e vales), além dailha artificial de Deshima, no antigo centro da urbe, edificada já no século XVII.

Voltando ao Atlântico, foi na terra sul-americana que se implantaramnotáveis cidades, vilas e edifícios de origem luso-brasileira, sobretudo a partirda segunda metade do século XVII, quando o Brasil se tornou o centro daExpansão, em detrimento da India.

De norte para sul, do Equador para o Trópico, podemos destacar aquicertas povoações e suas arquitecturas, cujas característcas uma vez mais nosremetem para os padrões urbanizadores e edificadores do Portugal ibérico.

Às portas do Amazonas, implanta-se Belém do Pará, com a sua forta-leza costeira, e o interessante espaço-praça da igreja jesuíta, setecentista; alitrabalhou, já desde a segunda metade do século XVIII, o arquitecto bolonhêsJosé Landi, que soube imprimir à cidade uma monumentalidade clássico-barroca muito bem inserida na tradição portuguesa da construção ultramarina(Palácio dos Governadores, igreja de Santana em Campina, igrejas do Carmo edas Mercês).

No Maranhão é a cidade de São Luís (class. pela UNESCO) que devemencionar-se, sobretudo pela sua notável malha urbana em retícula, como queexecutada a régua e esquadro sobre colinas e vales – isto para além de umrecheio de arquitectura habitacional em prédios, que seguindo formulário pom-balino, o enriquece com profuso revestimento azulejar (caso da rua de Lisboa),dos séculos XVIII e XIX.

No nordestino Pernambuco destaca-se a dupla marca urbana de Olinda--Recife. As ruínas de Olinda (class. pela UNESCO) representam a primeira im-plantação edificada, consequente, em terra do Brasil, constituindo hoje umconjunto precioso; no seu relevo castiço e acidentado, profusamente arbori-zado, podemos destacar a jesuíta igreja da Graça, a Matriz, ou o conjuntoconventual de São Francisco. Olinda fica contígua ao Recife, cuja área centralhistórica exibe igualmente notáveis monumentos, num espaço urbano orgâni-

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camente “aportuguesado” a partir da original implantação urbana holandesaplaneada de modo erudito e clássico por Maurício de Nassau. Brilhando na suaconstrução de desenho barroco e hiper-decorativo, refira-se exemplarmente aigreja de Santo António, com a luminosa Capela Dourada.

São Salvador da Bahia (class. pela UNESCO) foi a grande capital do Brasildo açúcar, sucessora da “Goa Dourada”. Notável no seu conjunto urbano,executado com objectivos centralizadores e administrativos, não deixa derespeitar o modelo de cidade de paisagem, feita de colinas e vales, de “alta” resi-dencial e de “baixa” portuária-comercial, característica da urbe lusa da Expansão.

Merecem destaque, entre outros espaços e obras, nesta “cidade das miligrejas”: o largo da Câmara primeva e do Palácio do Governo; o “Terreiro daSé”, exibindo a grandiosa igreja Jesuíta (actual Sé) – com as igrejas franciscanae da Ordem Terceira ao fundo; e o famoso largo do Pelourinho, na extremo daárea central histórica.

São Sebastião do Rio de Janeiro, segunda capital do Brasil, foi muitodesfigurada na sua arquitectura antiga com as modernizações viárias do iníciodo século XX, que desbastaram inclusive o próprio “monte genético” da cidade,o Castelo; porém, ainda hoje podemos visitar obras como o Palácio do Gover-nador, fronteiro à praça central, com a baía e o antigo cais, a igreja de S.Bento,de boa “arquitectura Chã”, no extremo oposto do “Centrão”, o vasto largoencimado pela mole conventual franciscana (com o castiço Aqueduto daCarioca ao fundo), e a graciosa igreja de N.S. da Glória do Outeiro, já eivadado gosto barroco na sua planta centrada e poligonal. Pela relação e interpe-netração com a paisagem luxuriante, o Rio, dizem alguns, é a cidade mais belado mundo.

Vila Rica de Ouro Preto (class. pela UNESCO), em Minas Gerais, é acapital do ouro setecentista, nascida e crescida de modo quase espontâneo eselvagem pela iniciativa dos mineradores luso-brasileiros. Muitas obras arquitec-tónicas haveria a destacar nesta cidade de “sobe e desce”, feita de ladeiras emorros. Limitemo-nos a mencionar a praça de Tiradentes (com a Câmara neo-clássica, e a Fortaleza, fronteiras uma à outra), e as igrejas concebidas pelo genialAntónio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, como a igreja de S. Francisco. OuroPreto vale também pelo seu conjunto de casario, recordando as ruas das vilasdo norte português, com amplos e espectaculares pisos de avarandados ecornija, construídos integralmente em madeira, mas imitando o desenho empedra dos exemplos minhotos…Também no interior brasileiro, refiramos ainda

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as cidades de Goiás e de Diamantina, bem como os vestígios das MissõesJesuítas (três conjuntos class. pela UNESCO)

Outras cidades e arquitecturas do sul brasileiro poderiam aqui serenumeradas. Sintetizando, refiramos ainda a hoje gigantesca São Paulo, com oo largo da igreja primeva, beneditina, ainda existente no centro; a área de SantaCatarina (capital Desterro, actual Florianópolis), colonizada já no século XVIIIcom forte componente de povoadores açóricos; as extremo-meridionais urbesde Porto Alegre e do Rio Grande (do Sul); e, finalmente, a isolada cidadelafortificada de Colónia de Sacramento (class. pela UNESCO), fundada em finaisde Seiscentos, desafiadoramente, frente a Buenos Aires – e depoisforçadamente abandonada (hoje no Uruguai).

3. Algumas características urbanas e arquitectónicas de Angra do Heroísmo,patentes ou com analogias em muitos casos urbanos transatlânticos de matrizportuguesa.

Traçado e tecido orgânico, herança integrada de romanização, islamização e medievalização.Alguns elementos constituintes do sistema urbano.

Procuraremos nesta breve abordagem atentar não nos temasestritamente históricos e genéticos, na relação de Angra do Heroísmo comoutras cidades, mas nos aspectos da geo-morfologia e da paisagem urbana, que,comparando-a com algumas das diversas urbes citadas, permitirão de ummodo mais livre o estabelecimento de analogias, de similitudes, de parecenças,– sejam visuais, de silhueta, ou de forma urbana e arquitectónica.

A forma global da urbe de Angra do Heroísmo, patente como um “tecidoorgânico” (no sentido de um plano geral de geometria “mole”), é generica-mente reconhecível em outras cidades lusófonas além-atlântico: trata-se deuma estrutura mais “regular” do que “circular”, radicada no modelo genéricoeuropeu coevo, ou seja, em que os valores medievos se sopesavam comalguma modernização renascentista – e amplamente aberta sobre uma linhacosteira de enseada, urbanizada e portuária. Tal sucede por exemplo com asurbes de Macau, de Luanda, de Salvador, ou de Goa – mas em nenhuma delasatingindo a racionalidade geométrica de Angra, embora, como sempre insis-timos – adaptada e sabiamente desenhada com a geomorfologia local, e não“contra” ela.

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Protagonismo do adro da igreja da Sé ou da Matriz, com o seu largo, escadório ou praçafronteira, no contexto urbano. 10 – Angra do Heroísmo/largo da Sé, 11 – São Luís doMaranhão, 12 – Ribeira Grande dos Açores.. © Fotografias do autor

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Monumentalidade e centralidade dos Colégios Jesuítas e suas fachadas de igrejas,na malha urbana das cidades principais. 13 – Angra do Heroísmo/Fachada daigreja do Colégio, 14 – Salvador da Bahia, antiga igreja do Colégio, 15 – IgrejaJesuíta de Velha Goa. © Fotografias do autor

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Organicidade funcional dos espaços públicos elementares das cidades e vilas, desde asruas, aos terreiros e largos, em conjugação com uma arquitectura vernácula com valor deconjunto, que simplifica e integra o desenho e a tradição eruditas.16 – Angra do Heroísmo/antiga rua Direita-de Lisboa, 17 – Terreiro de Alcântara/São Luísdo Maranhão, 18 – Largo na Povoação-Ilha de Moçambique. © Fotografias do autor

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Os largos e as praças mais centrais, bem como as ruas directas que asligam, estruturantes e aglutinadoras do conjunto urbano, são igualmente patentesem Angra do Heroísmo: a mais central, a Praça Velha, genética do tecido regularenvolvente, com a sua Casa de Câmara, liga-se da forma mais clara com a praçada Sé Catedral e com a do Colégio (depois Palácio dos Capitães Generais).Este conjunto de praças cêntricas, articuladas por ruas estruturadoras, quelevam necessariamente aos limites urbanos (as “portas” de passagem aoexterior) são igualmente visíveis em cidades como Salvador da Bahia (na suasequência da praça do Governo e Município/praça da Sé/praça do Colé-gio/Pelourinho), ou como Baçaim (eixo Portas do Mar/Matriz/Praça da Cida-dela/Colégio / Franciscanos/Portas de Terra).

A graciosidade da pequena escala, organizada entre os sucessivos econcatenados largos, larguinhos e ruelas – numa delicada síntese de caracterís-ticas medievo-modernas, é um tema sistemático da área mais central de Angra,sobretudo no tecido envolvente da malha regular, com características edesenho mais “livres” – e, dada a localização desta urbe, esses pequenos espa-ços estão por vezes em relação espectacular e alcandorada com a súbita paisa-gem atlântica. Muito deste “pequeno universo”, feito de espaços públicos eedificações com volumetria variada e irregular, imbrincados entre si, está patenteanalogamente nas áreas mais centrais e antigas do Funchal (Santa Maria, núcleoda rua Direita, área da antiga Alfândega), no padrão geral do tecido urbano dapraça de Mazagão, ao correr da rua Direita de Macau (área do Teatro D. Pedro V),nos sectores mais densos da “Cidade Branca” da Ilha de Moçambique e até mes-mo – tanto quanto podemos reconstituir pelas representações cartográficas maisantigas – no tecido quinhentista da praça de Diu, entretanto muito arruinada.

O equilíbrio invulgar do castiçismo, em termos do urbanismo e daarquitectura, é feito entre em Angra do Heroísmo por meio de uma conjuga-ção entre os vários tipos de monumentos (religiosos, civis, militares) e a envol-vente da arquitectura popular ou vernácula. Este é em geral um aspecto muitocorrente e caracterizador da urbe de influência portuguesa, em qualquer dascidades referidas. Por outras palavras: em regra, a igreja ou o convento nãopossuem em si mesmo um valor excepcional como arquitectura; e as anexashabitações e lojas, com os seus espaços complementares, igualmente não sedestacam de modo individualizado; o que ressalta como um elevado valor ur-bano e arquitectónico é, isso sim, o conjunto do sistema monumento-envol-vente, no seu todo.

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Sentido cívico-religioso, integrado, com plena funcionalidade e inserção urbana, naorganização das funções assistenciais – com base nas “Santas Casas” daMisericórdia, organismos com plena autonomia em cada cidade ultramarina.19 – Angra do Heroísmo/fachada da igreja da Misericórdia, 20 – Cruzeiro católico emMargão, Goa, 21 – fachada da Misericórdia em Macau. © Fotografias do autor

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4. Angra, Cidade de Paisagem e/ou Cidade Regular?

Muito do que se tem valorizado em Angra do Heroísmo refere a suafamosa malha regular, a sua retícula urbana Quinhentista, que muitos consi-deram um valor sinalizador, de dimensão moderna, do Renascimento Europeu.

Mas o valor primacial de Angra não estará quanto a nós tanto na exis-tência desse tecido notável, mais ou menos atestado por pergaminho eruditoe pela suposta influência europeia como na capacidade, essa sim notável debem articular a sua implantação no coração da cidade com os valores maisglobais e envolventes do espantoso “urbanismo de paisagem” que Angraconstitui desde o início.

Ou seja, o que há de mais assinalável em Angra do Heroísmo em termoshistóricio-urbanísticos, é a presença enquadrada e devidamente culturalizada deum tecido regular qualificado (quer se pretenda este inovador para a época,quer o entendamos resultante de uma tradição medieva actualizada), que seintegra com dimensão estética nos outros valores da cidade, nomeadamentena sua forte vivência paisagística – patente na organicidade da imagem geral, nopitoresco e casticismo das silhuetas do edificado entre montes e vales, nareverberação luminosa da pequena escala dos delicados espaços públicos, vistado mar...

De resto, a cantada regularidade da malha urbana central de Angra temmuito que se lhe diga: sabendo-a de Quinhentos, não pode competir em rigor,amplidão e escala, em termos de geometria euclidiana, com qualquer contem-porânea retícula ou “xadrez” hipano-americano, de Havana a México, de Cara-cas a Buenos Aires: essas sim, urbes que ensaiavam com elevada perfeição for-mal um sistema de desenho urbano idealizador, platónico, logo, totalitário na suasuposta capacidade de gerar e conformar toda a cidade... (de a tornar “mono--tona”, ou seja , de um único tom).

Ao contrário, a malha regular de Angra é análoga, no rigor relativo dassuas ruas e quarteirões, à do Bairro Alto lisboeta – e bem menos exacta doque a das contemporâneas retículas de Damão (India) e de São Luís do Mara-nhão (Brasil).

Tudo isto nos leva a considerar como fundamental o fundo adaptativo,pragmático e sensorial da estrutura reticulada de Angra, servindo sobretudo asnecessidades locais: as portuárias, as actividades urbanas centrais e represen-tativas, as funções defensivas e de suporte de vida colectiva trans-oceânica: ela

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serve a cidade, apenas naquela área central onde se insere, e articula-se àpartida com os tecidos mais irregulares já existentes, prolongando-se de seguidapor outros, de novo em desenho irregular, nas passagens ao hinterland rural.

Quero com isto sobrelevar o carácter anti-idealista, anti-platónico eanti-totalitário da retícula de Angra do Heroísmo – implantada com inteligência(fruto de uma sabedoria medieva, ainda imbuída do realismo aristotélico), edeixando assim viver a fundamental dimensão contemplativa, não dominadora(no sentido de anuladora) de um ambiente colectivo global, natural e urbano aum tempo.

Esse é aliás – visto agora, no dealbar do século XXI, depois de catástro-fes recentes, e com a urbe mais ou menos bem refeita, recomposta e retocada– o grande interesse como património e como futuro, da malha urbana regularde Angra do Heroísmo. Esta malha representa afinal a expressão da sua realmodernidade, a qual reside exactamente na sua capacidade de integração (comsentido “ecológico”) na paisagem simultaneamente natural e artificial da belacidade atlântica, sem a destruir ou forçar, antes a embelezando e engrande-cendo.

Bibliografia

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RESUMO

Objectivo da conferência, queredundou no artigo aqui publicado,era tomar o conjunto das cidadesbrasileiras classificadas pela UNESCOPatrimónio da Humanidade como umpercurso possível para falar sobre aherança urbana do Brasil e reivindicara sua identidade. O conjunto dascidades classificadas é umaamostragem representativa de váriostipos de fundação urbana da históriado Brasil: desde as vilas dos capitães-donatários, como é o caso de Olinda,ou os arraiais de mineração, como sãoOuro Preto, Diamantina e Goiás ou asfundações da coroa, como são osexemplos de Salvador e São Luiz eonde, numa linha meta-históricatambém se poderia incluir Brasília,como outra cidade do poder. Mas se éinquestionável que estereconhecimento internacional dascidades “históricas” brasileiras foisignificativo para o próprioreconhecimento da identidade urbanado Brasil, a verdade é que ascandidaturas não teriam sido possíveissem o trabalho anterior desenvolvidopela geração fundadora do IPHAN.

ABSTRACT

The goal of this paper is to consider allBrazilian cities classified by Unesco asWorld Heritage as a possible way of

talking about Brazil’s urban heritage andto reclaim its identity.The set of BrazilianWorld Heritage cities comprises several

types of urban foundations in the historyof Brazil: cities founded by captain-

donors such as Olinda, mining campssuch as Ouro Preto, Diamantina and

Goiás, and cities founded by the crownsuch as Salvador and São Luiz. In a

meta-historical extension of the concept,Brasilia could also be part of this group

as a city of power.The internationalrecognition of Brazil’s “historical” cities

was significant for the recognition ofBrazilian urban identity. Nevertheless,

their application for classification couldnot have been achieved without the

work developed by the foundinggeneration of IPHAN.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Património; Urbanismo Colonial; Modernismo;Cidades Históricas; Brasil.

Key words: Heritage; Colonial Urbanism; Modernism; Historic cities; Brasil

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Entre os sítios urbanos declarados pela UNESCO “Património da Hu-manidade”, encontram-se, no Brasil: a cidade histórica de Ouro Preto (1980), ocentro histórico de Olinda (1982), as ruínas jesuíticas-guarani de São Miguel dasMissões (1983), o centro histórico de Salvador (1985), o Plano Piloto de Brasília(1987), o centro histórico de São Luís do Maranhão (1997), o centro históricoda cidade de Diamantina (1999) e o centro histórico da cidade de Goiás (2001).

Constam ainda da lista da UNESCO o conjunto monumental do Santu-ário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (1985) eas paisagens protegidas do Parque Nacional de Iguaçu, em Foz do Iguaçu(1986); O Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato(1991); Mata Atlântica – Reservas do Sudeste (1999) e Costa do Descobri-mento – Reservas da Mata Atlântica (1999); o Parque Nacional do Jaú (2000);o Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal (2000); Áreas protegidas doCerrado: Chapada dos Veadeiros e Parque Nacional das Emas (2001) e as IlhasAtlânticas Brasileiras: Reservas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas(2001).

Estes são os que foram até hoje classificados e há uma série de candida-turas1. É interessante ver a paridade entre as áreas urbanas e as reservas naturaisque estão reconhecidas, e é interessante também ver que, nos últimos anos, aUNESCO tem preferido salvaguardar as paisagens no Brasil em detrimento dascidades. Não é esse o assunto que vamos tratar aqui, mas cabe como reflexão.

De todos os modos, e no que diz respeito às cidades classificadas, trata-sede uma lista considerável e significativa, em vários aspectos. O Brasil aderiu à con-

* Professora Auxiliar, Universidade do Algarve, Portugal

1 Em 2000 estavam como candidatos: Parati, Petrópolis, O Mosteiro de S. Bento e o Palácio Capa-nema no Rio de Janeiro, o conjunto da Igreja e Convento de S.António em João Pessoa,Tiradentese Serro, em Minas, Igarassu em Pernambuco, Alcântara no Maranhão e S. Cristóvão, em Sergipe.

CIDADES BRASILEIRAS PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE: a reivindicação da herança urbana do Brasil

Renata Malcher de Araujo*

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venção do Património Mundial em Setembro de 1977 e em 1980 tinha já OuroPreto reconhecida tendo se seguido, nos dez primeiros anos, e em intervalos decerca de dois anos, as classificações de Olinda, S. Miguel das Missões, Salvador e,significativamente, Brasília. Este primeiro grupo de cidades brasileiras classificadastem, logo à partida, importantes dados a considerar. Note-se que o conjunto dasquatro primeiras cobre literalmente o Brasil de Norte à Sul, e inclui exemplosde fundações dos séculos XVI (Olinda e Salvador), XVII (S. Miguel das Missões)e XVIII (Ouro Preto). A seguir a este conjunto de cidades que tão coerente-mente apresentavam o quadro do passado urbano do Brasil obtém-se a classi-ficação de Brasília, que tinha sido fundada cerca de 30 anos antes e que vinha aser uma das primeiras, senão a primeira cidade contemporânea classificadacomo Património da Humanidade. Facto ainda mais marcante uma vez que omesmo plano-piloto de Brasília só foi “tombado” pelo Instituto do PatrimónioHistórico e Artístico Nacional do Brasil (IPHAN) em 1990.

Depois de Brasília, só dez anos depois outras “cidades históricas” bra-sileiras viriam a ser classificadas pela UNESCO incluindo desta vez, São Luís, fun-dada no século XVII, e outros dois exemplos das áreas centrais de mineração,Diamantina e Goiás, fundadas ambas no século XVIII. Os intervalos entre estesdois grupos de classificações denunciam tempos e entendimentos diferentes,quer nos interesses do Brasil relativamente às suas cidades candidatas à classi-ficação de Património da Humanidade, quer nos critérios da UNESCO, para aaceitação das candidaturas. Essa eventual variação de critérios de ambos oslados não é o ponto central a ser tratado aqui. No entanto, importa-nos ressal-tar que, em certa medida, este reconhecimento internacional das cidades “his-tóricas” brasileiras foi, entre outros aspectos, importante não só para a cons-ciência histórica de uma nação recente como o Brasil, assim como e, sobretudo,para o próprio reconhecimento da identidade urbana do Brasil. Ainda que setenham que considerar seriamente os efeitos nefastos do turismo, que vemquase que inevitavelmente associados ao estatuto de cidade património mun-dial, a verdade é que todos os processos de candidatura e consequente classi-ficação provocaram efectivamente uma espécie de “redescoberta” do passadourbano do Brasil, tanto fora como dentro do pais.

Dois aspectos importantes devem ser tidos em conta para melhor avaliaressa conjuntura. Por um lado, há que considerar a enorme perda, concreta, deedificações antigas, que as transformações desenfreadas dos grandes centrosurbanos do Brasil provocavam, cuja pior fase, ou pelo menos onde a curva de

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destruição se acentua, são precisamente os anos 70-80, sem grande desacelera-ção nos anos 90. Neste sentido, este reconhecimento internacional é uma espéciede reencontro de um elo perdido com o passado, que o presente teimava emdestruir. Por outro lado, este processo de salvaguarda e reconhecimento dascidades “históricas”, redunda também numa revisão de velhos mitos historiográ-ficos que pensavam um Brasil colonial de base estritamente rural onde as cidadesnão tinham importância. Diante das evidências, o país se vê obrigado a reencon-trar, já desde o período colonial, vários dos valores da cultura urbana brasileira,desde a arquitectura e a arte até aos rituais e festas e tem de admitir que ascidades são, acima de tudo, um dos grandes patrimónios da cultura brasileira.

Mas o “reconhecimento” internacional não é efectivamente o começodeste processo. Na verdade, as próprias candidaturas não teriam sido possíveissem o trabalho anterior desenvolvido pelo Instituto do Património Histórico eArtístico Nacional. Mas mais do que isso, o processo em que o papel doIPHAN é fundamental é precisamente o da tomada de consciência e do ver-dadeiro “reencontro” destas cidades. E aqui é imperioso falar da geração defundadores do IPHAN.

A grande reivindicação da memória e do passado do Brasil foi feita pelamesma geração que assumiu a vanguarda da modernidade. Os três pilares doIPHAN foram Rodrigo de Melo Franco e Mário de Andrade, figuras centrais domodernismo brasileiro, e Lúcio Costa, um dos criadores de Brasília. Estes homens,absolutamente comprometidos com a contemporaneidade, foram também osque souberam entender que o futuro do Brasil passava pela consciência identi-tária do seu passado. Embora a situação pareça anacrónica, terá sido precisa-mente essa condição de modernos que lhes permitiu olhar para trás e enfrentarde maneira desassombrada a problemática questão do passado colonial.A genialformulação do manifesto antropofágico – Tupi, or not tupi that is the question –resume o paradoxo da busca identitária da jovem nação, que precisava, comosugeriam os modernistas, “deglutir” a sua história num canibalismo simbólico.

Em 1922, precisamente quando se comemorava o centenário da Indepen-dência, o Brasil se recolocava com alguma acuidade a questão da sua identidade.Cem anos depois da Independência, e depois de finda a monarquia, a novageração queria saber quem era, não só no sentido da sua identificação com opassado mas também com o presente. E a manifestação por excelência destequestionamento/afirmação foi a Semana de Arte Moderna de 1922, (11-18 deFevereiro) que não podia ser senão em São Paulo. São Paulo era o centro econó-

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mico do Brasil e o local da elite intelectual mais progressista. Era também ocentro efectivamente cosmopolita do Brasil, tendo recebido os imigrantesitalianos para a cultura do café, depois o surto de industrialização, era o meltingpot ainda mais amplo que o da colonização e verdadeiramente fervilhante. E 22foi o ano da implosão/explosão, em São Paulo, da enorme receptividade equestionamento do que representavam todas as modificações que se vinhamdando na cultura europeia e mundial nos primeiros anos do século XX: asvanguardas artísticas, os movimentos políticos, as correntes filosóficas, o inter-câmbio efectivo, o contacto directo com a ida dos rapazes paulistas para a Europae a vinda de artistas e poetas, como Blaise Cendras, para o Brasil, etc..

Neste turbilhão, que deliberadamente apontava para o futuro, os jovensmodernistas ousam questionar a visão historiográfica que o Brasil tinha se sipróprio. A base identitária de praticamente toda a historiografia brasileira doséculo XIX se tinha sustentado sobre uma espécie de contradição, que via oBrasil como entidade política emancipada de Portugal mas que mantinha umarelação de continuidade cultural com a ex-metrópole e em vários aspectossubmetida aos mesmos padrões hierárquicos. Do ponto de vista da história dacultura, por exemplo, a visão que vigorava era que o grande marco de eman-cipação cultural do Brasil tinha sido a chegada da missão francesa, patrocinadapor D. João VI.A transferência da corte e os artistas franceses tinham colocadoo Brasil no mundo da cultura. Antes disso o Brasil era “rústico”, e rústica eratoda a produção antes realizada na colónia.

A visão modernista precisava romper este paradigma, precisava de outrabase de análise e vai encontrá-la numa lógica social, marcando a diferença poruma nova síntese. O dado fundamental era assumir o brasileiro como diferentedo português, em si como povo, e precisamente como cultura. Mas é precisonotar que o modernismo, de maneira nenhuma nega o passado colonial, aocontrário, incorpora-o à essência do Brasil, tendo a consciência de que o paísresultara do processo colonial e não poderia pensar-se de outra maneira. Éinteressante notar que a base da identificação não foi feita sobre qualquer valoranterior à colonização, como os mexicanos ou peruanos, que podiam invocaro passado civilizacional dos astecas ou dos incas. Um dos dados essenciais daconsciência moderna da identidade brasileira é ter claramente entendido queo Brasil nasce efectivamente do processo colonizador.

Mas essa consciência não era certamente fácil de ser assumida emtermos ideológicos. Assim que a única vingança “antropofágica” que se podia

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fazer para re-enquadrar a colonização, abolindo qualquer sentido de depen-dência hierárquica e cultural, era precisamente assumindo-a como um todo, ouseja, alegando que o Brasil era já Brasil, como cultura, mesmo antes de ser Brasilcomo entidade política, pois se a autonomia só foi alcançada com a Indepen-dência, a identidade já existia há 300 anos, começada a construir desde achegada de Cabral. Daí que era preciso procurar o Brasil no próprio Brasil.

E aqui cabe ver o importantíssimo papel de todos os intelectuais domovimento moderno e em especial o de Mário de Andrade. Mário de Andradeera um obcecado com a “brasilidade”, queria encontrar o Brasil autêntico, oque verdadeiramente identificava o pais. E assume este processo como umagenuína descoberta do Brasil, renovando deliberadamente o próprio sentidodesta palavra, tão cara (e dúbia) para a nação.Todo o grupo de algum modoparticipa deste processo, mas ele ainda mais, porque se empenha em efectivasviagens de descobrimento. São famosos os seus passeios para o interior, foto-grafando tudo o que podia, recolhendo relatos de música e folclore. É famosaem especial a dita Viagem de Descoberta do Brasil, realizada em 1924 em queMário de Andrade leva o grupo modernista para Minas Gerais. É a este movi-mento que cabe creditar, em boa parte, a valorização do barroco mineiro, aidentificação de Aleijadinho e o reconhecimento da sua arte mestiça (com atotal superação dos valores académicos franceses), assim como da tradição dasmúsicas e festas herdadas do barroco, propondo no fundo uma visão renovadado próprio barroco brasileiro.

O entusiasmo destes anos é fundamental, assim como é fundamentaltambém a associação a uma espécie de “reserva cultural” que se projectavasobretudo para o Brasil do interior. Para o interior de São Paulo, para ondeMário Andrade viajava todos os fins de semana, para aquelas vilas de MinasGerais que se tinham mantido isoladas, e para todo o interior do Brasil que, emcontraste com o litoral onde estavam os grandes centros urbanos, surgia comoum país desconhecido ao próprio país.

As vilas do interior são então assumidas como centros inatos de preser-vação dos valores brasileiros – tanto no que dizia respeito às tradições culturais(festas, músicas, etc.) como em termos de arte popular (artesanato) earquitectura.Assim, desde o início, o interesse na preservação destes conjuntos,não pensava apenas em preservar o sítio, mas a cidade enquanto base dacultura – e isso se fez muitos anos antes das directivas para o “patrimónioimaterial” que já estavam implícitas na visão modernista.

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A despeito da conjuntura politica mais fechada dos anos 30, foi precisa-mente esta intelectualidade ligada ao modernismo que esteve na base da criação,em 19372, do então Serviço, hoje Instituto do Património Histórico e ArtísticoNacional (IPHAN), que se fez tendo como base um anteprojecto de Mário deAndrade (1936), retrabalhado por Rodrigo de Melo Franco, que viria a ser oprimeiro director do órgão, que é pioneiro na América Latina.

A esta ínclita geração, o Brasil deve portanto o futuro e o passado. Doponto de vista patrimonial, em vários aspectos a sua posição é efectivamentede vanguarda. Antes da maioria, pugnavam não pela monumentalização, maspela amplitude da visão do património, conjugando arte erudita e arte popular,procurando entender os conjuntos e as suas relações intrínsecas. Enquantopara os estudos de folclore o papel de Mário de Andrade é crucial, para asquestões ligadas à arquitectura e ao urbanismo, Rodrigo de Melo Franco eLúcio Costa são fundamentais. É interessante ver, nos seus depoimentos, que oprocesso é mesmo uma espécie de redescoberta, de reencontro da matriz dascidades brasileiras. Neste, como noutros aspectos, a região das Minas Geraissurge como o manancial onde se vão buscar os dados que conectam a históriado Brasil e não é à toa que Ouro Preto, Diamantina e outras cidades mineirasdetenham um papel central neste questionamento.

Mas ao mesmo tempo que se faz esta identificação basilar da culturabrasileira com estas “vilas do interior”, a mesma geração de intelectuais tambémestá produzindo um outro discurso aparentemente contraditório sobre o passadourbano do Brasil. Neste contexto, há que referir a algumas obras da modernahistoriografia do Brasil. Uma é um ensaio intitulado Retrato do Brasil, de 1928, dePaulo Prado (também um dos nomes fundamentais do modernismo e agitadorda semana, sendo ao mesmo tempo um dos nomes da grande oligarquia paulistado café); outro o famosíssimo Casa Grande e Senzala: Formação da família brasi-leira sob o regime de economia patriarcal de Gilberto Freyre, publicado em 1933,e do mesmo ano a obra de Caio Prado Jr. Evolução Política do Brasil, a que seseguiria, em 1942, o também famoso Formação do Brasil Contemporâneo e o ensaiode Sérgio Buarque de Holanda, intitulado Raízes do Brasil, editado em 1936.

Estes títulos formam a base da moderna historiografia brasileira. Note-se que, em todos, a assunção da busca da identidade é denunciada logo no

2 Lembremos que, precisamente em 1937, Getúlio Vargas dá um golpe de estado (10 de Novembro)e instala uma ditadura, intitulada “Estado Novo”, em denominação inspirada no regime português.Getúlio Vargas permanecerá no poder até 1945 (29 de Outubro) quando foi deposto.

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título com as palavras retrato, ou raízes, ou formação. Isto é, o Brasil se pergun-tava como era o seu retrato, a sua imagem, perguntava-se de onde vinha, quaiseram as suas raízes e como se tinha formado. Referimos estes títulos, e emespecial os de Giberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, porque é impor-tante reter a imagem da cidade brasileira que ambos passam. Enquanto Freyrereforça o quadro da sociabilidade mestiça e insiste num padrão agrário para acultura brasileira (com a base nos engenhos de cana de açúcar do Nordeste),Buarque de Holanda reforça o sentido da aventura do desbravamento e opapel dos bandeirantes paulistas.

Ambos, de certo modo, negam o papel das cidades durante o períodocolonial. Freyre porque para ele tudo se passa entre a casa grande e a senzala,e Buarque de Holanda é o autor de um famoso parágrafo que afirmava que,ao contrário dos espanhóis, identificados com os ladrilhadores, que fundaramno novo mundo núcleos urbanos regulares e planeados, os portugueses, ossemeadores, não construíram verdadeiras cidades no Brasil, apenas instalaram-se desleixadamente sobre as belas paisagens tropicais, deixando-se subir edescer preguiçosamente pelas suas ladeiras3.

A interpretação de Sérgio Buarque de Holanda foi responsável pela mis-tificação, neo-romântica talvez, das telúricas cidades brasileiras que supostamenterepetiam sempre os padrões urbanos da “Lisboa medieval”, quer em Salvador,quer no Rio, ou em Ouro Preto. Por outro lado, a exaltação do Brasil rural deGilberto Freyre também remetia os núcleos urbanos para um papel secundário,na dinâmica social e económica da colónia. Do ponto de vista da história dourbanismo colonial, esta visão foi responsável por uma espécie congelamento dosestudos específicos sobre a formação e evolução formal das cidades, uma vez quenão parecia necessário estudar o que supostamente tinha sido resultado de meroacaso, obra quase que integrada na própria natureza, e que para além dissofuncionava como puro cenário, uma vez que o centro social estava no campo.Não é portanto à toa que, nessa mesma conjuntura, tenha surgido na historio-grafia o conceito das “vilas de domingo”, ou seja, a vivência era rural, as cidades

3 “A Cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizero quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha de paisagem. Nenhum rigor, nenhum método,nenhuma previdência, sempre este significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” – palavraque escritor Audrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender,implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que “não vale a pena (…)””. Estefamoso parágrafo de Sérgio Buarque de Holanda está no capítulo intitulado “O Semeador e oLadrilhador” incluído no seu livro Raízes do Brasil (1º edição, 1936).

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eram apenas uma espécie de palco onde as pessoas se reuniam para a missa4.Apar disso, reforçava-se a ideia das povoações “não desenhadas”, não pensadascomo cidades, mas como “arraiais”, ou como aglomerados espontâneos à voltadas igrejas (daí, em parte a referência medievalizante e a assunção directa daarquitectura religiosa como o grande património do Brasil colonial).

Não há dúvida de que os autores destas análises estavam bem inten-cionados, embora eventualmente equivocados. Não cabe aqui discutir osparâmetros que estão na base destas interpretações, embora se deva salva-guardar a enorme importância que elas tiveram. No fundo, o que estava emcausa era reafirmar a importância da construção social do Brasil, colocando aênfase na relação com a natureza e nas sínteses mestiças. Cabe ver nestesentido o elogio de Aleijadinho e sobretudo ver também a reivindicação paraos “brasileiros” (em especial os bandeirantes que encarnavam a junção dobranco e do índio) o mérito da construção efectiva do Brasil do interior,insistindo que a acção da metrópole se tinha concentrado demasiado na costa.Sérgio Buarque de Holanda cita a propósito disso uma outra frase que tambémficou famosa, de Frei Vicente do Salvador, autor de uma história do Brasil escritano século XVII, em que este dizia que os portugueses tinham ficado muitotempo como “caranguejos arranhando a costa”.

E por aí se pode tentar explicar o aparente paradoxo desta mesmageração ter sido capaz de reivindicar a identidade e a visibilidade da matrizurbana do interior do Brasil, negando a da costa que é sua base. Ou melhor, sepode tentar entender como esta geração de intelectuais, filhos dos grandescentros urbanos do Brasil, na sua maioria cidades da costa (que para este efeitoSão Paulo também o é) pôde não ver as suas próprias origens urbanas. Porquede certo modo, afirmar o papel destas que foram “cidades del rei”5 implicariater de necessariamente reavaliar o peso que a dinâmica urbana deteve noprocesso de colonização e neste sentido rever os valores que se projectavampara a cultura urbana do colonizador. Mas ainda não era chegado o tempo.

Assim que o processo começou por ocultar uma parte enquantodesvendava outra, o que tem também consequências importantes do ponto de

4 Cf. DEFFONTAINES, Pierre – The Origin and growth of the brazilian network of towns, in“Geographical Review”, XXVIII, Jul. 1938 (Como se constituiu no Brasil a rede de cidades in “BoletimGeográfico”, 14, Rio de Janeiro, IBGE, 1944)

5 Cf. REIS FILHO, Nestor Goulart – Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil 1500-1720.São Paulo : Pioneira/Edusp, 1968.

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vista da preservação, como veremos. Mas isso não impediu de, inexoravelmente,caminhar-se para uma redescoberta da herança urbana do Brasil que passoupor várias fases.

A primeira fase foi a desta busca identitária que fez conviver, noentendimento das cidades do período colonial, uma visão que era ao mesmotempo genésica, pois as reconhecia como as bases da cultura brasileira, e exó-tica, na medida em que se procurava nestas bases uma originalidade, uma espe-cificidade. Nesta fase, a escolha de salvaguarda, os primeiros reconhecimentos,recaem em exemplos passíveis desta leitura poética. Entre os primeiros “tom-bamentos” efectuados pelo IPHAN encontram-se os casos de São Miguel dasMissões (1937), Ouro Preto (1938) e Salvador (1959), de que se pode tiraralgumas ilações.

As primeiras intervenções em São Miguel das Missões fizeram-se entre1925 e 1927 pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Em 1937 decla-rou-se o tombamento, “constituindo-se na altura um símbolo de agregação terri-torial união nacional e identidade do povo gaúcho”6. Lúcio Costa foi o responsávelpelo relatório de tombamento e propôs a realização de um museu dasmissões, no qual interveio com o projecto7.

É interessante ver esta identificação primacial com S. Miguel das Missões.Em parte, os valores patrimoniais desta antiga missão jesuítica estão garantidospela sua monumentalidade, que mesmo em ruínas é evidente. Para além dissohá, naturalmente, todo o complexo significado do que as missões em si repre-sentaram no contexto da colonização da América do Sul. Não cabe entrar nacontroversa disputa entre os que vêem as missões como o lugar da realizaçãoda utopia, e os que as vêem como centros de aculturação forçada e violenta.Mas há que ter em conta que para a historiografia brasileira, os sete povos dasmissões eram sobretudo lidos como vitórias da politica territorial brasileira, quetinha garantido para o Brasil, já no século XIX, aquela área, que fora objecto dedisputas entre espanhóis e portugueses na conjuntura das demarcações delimites no século XVIII, e cuja colonização inicial foi obra dos jesuítas espanhóis.Assim São Miguel foi o primeiro conjunto urbano do passado colonial a serreivindicado pelo Brasil, não sendo obra directa da colonização “brasileira”.

6 Cf.TIRAPELI, Percival, Patrimónios da Humanidade no Brasil. São Paulo : Metalivros, 2000.

7 Cf. PESSÔA, José (org.) – Lúcio Costa: Documentos de Trabalho. Rio de Janeiro : IPHAN, 1999.

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Do ponto de vista urbanístico, Rámon Gutierrez aponta que o desenhodas missões constituiu efectivamente um modelo alternativo inclusive ao ditomodelo espanhol das leis das Índias8. Um dos aspectos deste carácter alterna-tivo é dado precisamente pela razoável autonomia que os jesuítas conseguirame que lhes permitia gerir o território das missões em separado do resto dacolónia. Embora ainda se discuta a utilização, ou não, de um modelo formalpadronizado por parte da Companhia de Jesus para o conjunto das suas mis-sões, R. Gutierrez aponta para um processo pragmático (em que terão contadoas próprias experiências iniciais dos jesuítas) que terá redundado na apuraçãode uma tipologia que, na maior parte dos casos, adoptou a forma rectangular,com a igreja numa espécie de fachada-écran ao fundo e com as habitações dosíndios voltadas para ali, em ruas paralelas. O espaço da praça, que se conjugacom a igreja num todo sacralizado, é o elemento de impacto preponderanteno plano e para onde tudo converge, quer em termos simbólicos, quer visuaise concretos. Não é necessário reafirmar o quanto pesavam na vivência destesespaços os valores da mundividência barroca reforçados pela acção dosmissionários, com as encenações teatrais, festas e procissões.

Em 1983, quando S. Miguel das Missões foi aprovado pela UNESCOcomo Património da Humanidade, foi-o juntamente com as ruínas de MachuPichu, no Peru e a cidade de Babilónia, no Iraque, o que revela também umainteressante conjuntura internacional. Note-se que se aponta, num mesmomomento, para a valorização de dois aspectos contrastantes do passado indí-gena da América do Sul, salvaguardando, por um lado, a aldeia incaica que tinhapermanecido isolada do mundo e por isso foi preservada, e por outro, um dosvestígios materiais mais eloquentes do projecto de conversão dos povos indí-genas, levado a cabo pelos jesuítas.

Os dois exemplos que a seguir se citam, Ouro Preto e Salvador podemser lidos de modo dialéctico. O “tombamento” de Ouro Preto foi quase unani-memente entendido como inevitável e incontestável. Como vimos, desde osmodernistas que Ouro Preto encarnava o paradigma da vila colonial. Aspreocupações com a preservação começaram logo a seguir à famosa viagem deMário de Andrade e os seus confrades, em 1924. Em 1931, o prefeito da cidadeproibia construções que alterassem o aspecto “colonial” do conjunto. Em 1933,

8 Cf. GUTIERREZ Ramon, Planification Alternativa en la Colonia. Tipologias Urbanas de las missionesjesuíticas, in “Urbanismo e História Urbana en le Mundo Hispanico”. Madrid : UniversidadeComplutense, 1985.

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a cidade foi decretada monumento nacional e, em 1938, era inscrita no livro dotombo do recém criado IPHAN. A unanimidade à volta de Ouro Preto estavagarantida pela unidade que o conjunto urbano preservava. Com efeito, com atransferência da capital do estado para Belo Horizonte, fundada para tal em 1897,a antiga Vila Rica ficou de certo modo isolada e congelado o seu crescimento.Mas se a unidade do conjunto é evidente já não o será a identificação puramente“colonial”, uma vez que boa parte do conjunto arquitectónico da vila será datáveldo século XIX. Mas esta afirmação é puramente provocatória, posto que o seudesenho urbano data naturalmente da sua fundação, no século XVIII.

O caso de Salvador é especialmente interessante. A questão do centrohistórico de Salvador foi tornada urgente depois da destruição, em 1933, daantiga Sé Primacial do Brasil, que foi demolida para a construção de um retornoda linha de eléctricos. A intelectualidade brasileira revoltou-se com este actogratuito e esse movimento foi, em boa parte, um dos motores para a própriacriação do IPHAN, em 1937, e, no ano seguinte, decretou-se o tombamentode alguns monumentos isolados em Salvador. Mas será só em 1959 que se vaifazer o tombamento parcial do centro histórico, precisamente no mesmo anoem que surge o curso de Arquitectura da Universidade da Bahia, naturalmentede cunho modernista.

Aqui é inevitável confrontar o terrível paradoxo de que precisamentequando se começou a valorizar mais também se começou a perder mais. O queremete para o outro paradoxo. O paradoxo da modernidade. Se a geração inicialqueria conjugar o moderno com o antigo, a verdade é que o discurso domoderno em vários casos foi profundamente agressivo com o antigo. E maisainda, o facto de se ter caucionado com o selo de “autenticidade brasileira” osnúcleos menores ou do interior, deixava à descoberto os grandes centrosurbanos onde a pressão da especulação imobiliária era consideravelmente maior.Assim, há como que um duplo efeito perverso. Por um lado, o paradigma da “vilacolonial” corre o risco de congelar numa visão estereotipada (neste mesmoâmbito entra o terrível problema da arquitectura “neo-colonial”9), por outro, adinâmica urbana contemporânea empurra os “centros históricos” das grandescapitais do Brasil para um processo brutal e acelerado de descaracterização. Para

9 Veja-se sobre este aspecto a reflexão feita pelo próprio Lúcio Costa. Cf. CONDURU, Roberto –Diamantina: pedra de toque da arquitectura no Brasil, in “V Colóquio Luso-Brasileiro de História daArte”, Faro, Universidade do Algarve, 2002.

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o qual estavam em vários aspectos sem defesa, inclusive sem a defesa de umdiscurso que os valorizasse pelos seus atributos próprios.

Podemos neste sentido voltar ao próprio caso do centro histórico deSalvador que, na circunstância em que foi parcialmente classificado em termosnacionais, a cidade era genericamente lida, numa visão também estereotipada eequivocada, como uma cidade de traçado urbano “irregular e medievalizante”.No entanto, quando se reivindicou, nos anos 80, a classificação como Patri-mónio da Humanidade, a candidatura não só ampliava a área a ser preservada,como reconhecia Salvador como um dos mais eloquentes exemplos do pla-neamento urbano assumido pela coroa no século XVI.

Retornando ao processo como um todo, observa-se que, ao mesmotempo, que se foi caminhando para uma consciência cada vez mais apurada dadefesa do património do Brasil, e progressivamente foi-se procurando reconhe-cer mais valores e incluir cada vez mais exemplos no que era necessário pre-servar (tanto em termos de monumentos como de sítios urbanos), foi exacta-mente o tempo em que também a pressão económica era cada vez mais forte,sobretudo nos centros maiores.

Assim que, quando a partir dos anos 80, se tem a caução da UNESCOe se vão reconhecer as cidades brasileiras como Património da Humanidade,as escolhas foram, por maioria de razão, para aquelas que já tinham sidoreconhecidas internamente, não só porque se podia de facto defender os seuscasos com mais argumentos, como porque eram estas que tinham sidominimamente salvaguardadas na prática, das destruições mais acentuadas.

No parecer elaborado por Michel Parent, em 1966/1967, para a classi-ficação de Olinda pode ler-se que “Olinda é uma das jóias do Brasil onde secompõe admiravelmente a paisagem marinha e a cidade artística rica em aproxima-damente vinte igrejas barrocas e de um grande número de casas antigas vivamentecoloridas. É isso que impressiona em Olinda, é que, por coincidência de felizes circuns-tâncias, mas sem duvida provisória se não se intervir imediatamente, o sítio ainda estaintacto (…) Em Olinda a arquitectura fulgura entre os esplendores da naturezatropical. O oceano aparece ao fundo deste quadro por detrás dos campanários epalmeiras. Entre as ruelas, a vegetação luxuriante invade a colina. Esta aspectodistendido da trama urbana deve ser absolutamente preservado. Olinda não é umacidade, é um jardim transbordante de obras de arte, e que não cessa de polarizar ede perseguir a imaginação dos artistas”10. É evidente neste texto a celebração doinevitável exotismo da conjugação da arquitectura europeia com os trópicos. Mas

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é também interessante ver-se a questão importante, e bem vista por Parent, dapreservação de um ambiente mais próximo dos dados iniciais da colonizaçãopela manutenção dos quintais, coisa que a Europa já tinha perdido de todo.

O centro histórico de Olinda foi tombado pelo IPHAN em 1968 e acidade foi decretada Monumento Nacional pelo congresso brasileiro em 1980,no mesmo ano em que Ouro Preto foi reconhecida Património da Humani-dade. A candidatura de Olinda foi feita na mesma conjuntura e esta veio a serincluída na lista da UNESCO logo em 1982. Depois seguiram-se os casos járeferidos de São Miguel (1983), Salvador (1985) e Brasília (1987) e depois SãoLuís, Diamantina e Goiás.

O que é importante para nós, e a despeito dos exotismos implícitos, éque este reconhecimento internacional veio de certo modo impulsionar ecredibilizar um outro movimento paralelo, que vinha entretanto acontecendo,que era a progressiva superação da mistificação e da ideia de que não tinhahavido “urbanismo” a sério no Brasil colónia. Ou seja, as próprias cidadesdemonstravam a evidência da sua coerência e obrigavam ao verdadeiro reco-nhecimento das suas características, desmistificando as ideias generalistas eromantizadas, levando a que se retomassem os elos com o passado urbanoportuguês. Neste sentido, o reconhecimento das cidades brasileiras comopatrimónio mundial é tão importante para o Brasil, quanto é para Portugal.AliásOuro Preto, em 1980 e Olinda, em 1982, entraram na lista ainda antes dosvários monumentos portugueses classificados em 1983.

Mas o processo de “descobrimento” da história do urbanismo portu-guês está em curso, e muito longe de estar acabado, há ainda muito o queestudar. Neste sentido, o conjunto das cidades brasileiras classificadas é umaamostragem representativa de vários tipos de fundação urbana da história doBrasil: desde as vilas dos capitães-donatários, como é o caso de Olinda, ou osarraiais de mineração, como são Ouro Preto, Diamantina e Goiás ou asfundações da coroa, como são os exemplos de Salvador e São Luiz e onde,numa linha meta-histórica também se poderia incluir Brasília, como outracidade do poder. A partir deste e de outros exemplos se podem, e devem,rever os vários aspectos que as unem e reencontrar o fio condutor que, natu-ralmente, virá juntar-se às cidades portuguesas.

10 (dossiê IPHAN/UNESCO, arquivo Noronha Santos) citado in TIRAPELI, Percival, Patrimónios daHumanidade no Brasil. São Paulo : Metalivros, 2000.

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RESUMO

Guimarães seria originalmenteformada por duas vilas, contíguas, masformal e administrativamenteindependentes, apenas unificadas porD. João I. A Vila Baixa seguiria umcaminho de progresso, enquanto queo burgo do castelo entraria numlongo processo de decadência. Nosfinais do século XIX emergiu emGuimarães uma cultura patrimonial,centrada na história medieval dacidade e muito marcada pelos valoresromânticos. Ela estará na origem dasgrandes acções de recuperação da Vilado Castelo, integradas nasComemorações dos Centenáriospromovidas pelo Estado Novo em1940. Esboça-se então uma novadivisão da cidade. Uma visão integradadas questões patrimoniais, contudo,ultrapassará definitivamente essasituação e o conjunto urbano seráclassificado como Património Culturalda Humanidade.

ABSTRACT

Guimarães was originally composed oftwo contiguous towns that were formally

independent and separatelyadministered, which were only united by

king João I.The Vila Baixa progressedwhile the castle’s neighborhood slowly

decayed.Towards the end of thenineteenth century, a patrimonial

awareness developed centered in themedieval history of the city and very

much influenced by romantic values.Thisawareness was responsible for the

rehabilitation works undertaken in theVila do Castelo, developed as part of the

“Comemorações dos Centenários”(centennial commemorations) promoted

by the government in 1940. A newdivision of the city was then under way.An integrated vision of heritage-related

issues, however, will allow for theovercoming of this situation and theurban ensemble will be classified as

World Heritage.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Guimarães; Dupla; Castelo; Colegiada: Património

Key words: Guimarães; Double; Castle; Collegiate; Heritage

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Idade Média

Entre 950 e 959 a condessa Mumadona Dias fundou um mosteiroduplex junto à importante via Braga – Coimbra. Poucos anos decorridos,ergueu numa elevação próxima um castelo protector que doaria aos mongese monjas do cenóbio. Dois elementos clássicos na criação urbana dos finais daAlta Idade Média estiveram, portanto, na origem de Guimarães. A localizaçãodo mosteiro e do castelo, numa encruzilhada importante nas margens desistemas ecológicos diferenciados, o interior montanhoso e a planície litoral,rapidamente iriam promover o comércio: Montelongo e Basto, Braga, Lanhoso,Lamego, Santo Tirso, Vila do Conde e Porto serão a constelação geográficaassociada ao prosperar de Vimaranis. Uma nebulosa, a Via Láctea, que orientavaos peregrinos a que o mosteiro estava obrigado a dar hospedagem também: ocaminho jacobeu foi um importante contributo para a sedimentação urbana demuitos dos povoados do Norte do país.A marca original da fundação perdura-ria, pois o povoado organizou-se morfologicamente numa dualidade tambémclássica na cidade europeia medieval: o burgo monástico, junto da estrada e domosteiro e, um pouco acima, a Vila do Castelo. Entre elas, as margens de umcaminho de ligação rapidamente seriam loteadas, planeando o cobiçado acessoà via pública: nasceu assim a mais antiga rua do povoado, a de Santa Maria.

A conquista de Coimbra em 1064 garantiu um desenvolvimento sólidoda povoação, que em 1096 receberá o seu primeiro foral das mãos de D. Hen-rique. O documento, em que se expunham já preocupações comerciais, seria

* Assistente regente, Escola das Artes da Universidade Católica do Porto/Centro Regional do Porto.Bolseiro da FCT.

GUIMARÃES – da fundação a Património da Humanidade

José Ferrão Afonso*

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confirmado por Afonso Henriques em 1128. Guimarães era já então, junta-mente com o vizinho Porto, um centro urbano importante. Em ambas as locali-dades, a primeira de fundação recente, a segunda com uma longa história, adescolagem urbana far-se-á no âmago do sistema senhorial. Este promoveu-a,organizou-a e encorajou-a: no foral afonsino o desenvolvimento económico davila e a atracção de populações seriam preocupações centrais. Entre os povoa-dores estariam os célebres francos; mercadores, monges, guerreiros, ou os trêssimultaneamente, proliferaram nas povoações medievais do Norte e trouxeram,senão tudo, pelo menos muito: desde a arte da guerra à reforma monástica, doromânico aos esmaltes de Limoges que luziam nos tesouros das grandes igrejas.A igreja de Santiago, já existente em 1114 no campo do mesmo nome, foiconstruída também por francos: Amberto Gualter e Roberto Tibaldo. Se nãotivesse sido demolida no século XVI – sabe-se que possuía uma torre sineirasobre a fachada principal e tinha cobertura de madeira – seria, sem dúvida, dosmais antigos templos românicos do território português.

O desenvolvimento comercial da vila dupla era uma realidade já noséculo seguinte, sendo os dois núcleos administrativamente independentes,com órgãos concelhios próprios. Se a dualidade formal não foi excepcional noquadro urbano coevo, o mesmo não se pode dizer da independência jurisdi-cional, associada à duplicidade icónica: a Vila Baixa era dominada pela poderosacolegiada real de Santa Maria da Oliveira que sucedera, entre 1107 e 1110, aomosteiro de Mumadona, e aVila Alta pelo castelo sucessivamente tansformadopor D. Henrique, D. Afonso Henriques, D. Afonso III e D. Dinis.

O «Bolonhês» concederá em 1258 a primeira carta de feira de Guima-rães à Vila do Castelo, ou Vila Alta. Neste, como noutros casos, será extrema-mente provável que esses documentos apenas atestassem situações de facto.Quando, em 1272, o mesmo monarca confirmou os foros e regalias dos seusmoradores, a povoação possuía já margens geográficas precisas; elas serão abase para a construção de um circuito murado que estava concluído em 1318.Segundo as Inquirições de 1258, a vila dupla de Guimarães possuía então umapopulação de c. 2250 habitantes e, em 1355, D. Afonso IV instituirá uma feirafranca no burgo baixo que, entretanto, também já recebera uma muralha.Iniciada no reinado de D. Dinis, estaria já concluída em 1322. Continuava nadirecção SO a cerca da Vila do Castelo e, nos pontos de encontro dos doiscircuitos, abriram-se duas portas; a da Garrida, a poente e a da Freiria, a nas-cente. A cisão preexistente entre os dois povoados, contudo, manter-se-ia; um

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pano do muro da Vila Alta separava-os, sendo a comunicação entre eles feitaatravés de uma porta. Apesar da sua importância, Guimarães era então umavila, ou melhor, duas, como todas as povoações que tinham funções adminis-trativas importantes; cidades, descendentes das antigas civitates da Alta IdadeMédia, eram apenas as sedes episcopais, como as vizinhas Porto e Braga

O progresso demográfico e económico trouxe consigo os Mendicantes,Franciscanos e Dominicanos, ainda na primeira metade de Duzentos. A suafixação em qualquer centro urbano, sempre muito bem fundamentada e nego-ciada, foi sinal inequívoco de crescimento e progresso. Segundo a versãotradicional, os Franciscanos, chegados à vila ainda na primeira metade do séculoXIII, ter-se-iam instalado em 1271 num antigo hospital, a SO da Colegiada ejunto da porta da Torre Velha. A edificação do convento, contudo, só seriainiciada dez anos depois. Em 1282, a primeira pedra da igreja teria sido benzidapelo arcebispo de Braga. Os Dominicanos, arribados em 1217, instalaram-se narua de Gatos, junto da muralha e da porta da Vila ou da Piedade onde, segundoa tradição, foram convidados pelo concelho a construir o seu convento c. 1270.A igreja só seria concluída em 1279, sendo rei D. Dinis. A proximidade dosconventos da muralha que se levantava, porém, terá obrigado à sua deslocaçãopara as suas actuais implantações: em 1322 o dos Frades Menores, no anoseguinte o dos Pregadores.A investigação recente não confirma essa itinerância:o convento franciscano, na sua situação actual, estaria já em construção nosanos setenta do século XIII, o dos Pregadores, também na sua implantação con-temporânea, dataria de 1272. De qualquer modo, o episódio terá a qualidadede salientar o quão frágil eram muitas fundações mendicantes, e as peripéciasporque passaram até uma fixação definitiva. Esta ocorreria, em ambos os casos,em cinturas periféricas extremamente activas: os Franciscanos junto da áreaindustrial de Couros e da estrada de Amarante/Lamego, os Dominicanos pertoda porta principal da cidade, à margem da rua dos Gatos, início da movimen-tada estrada de Vila do Conde.

O porto do margem direita do Ave, que como os seus émulos na orlaoposta, Pindela e Azurara, teve acelerado desenvolvimento na Baixa IdadeMédia, seria o grande embarcadoiro de Guimarães, sobretudo depois que, noreinado de D. Afonso II, João Peres da Maia realizou obras de desobstrução nasua barra e que, em 1318, foi aí fundado o convento feminino de Santa Clara.Contemporaneamente à consolidação da entrada marítima de Vila do Conde,a cidade e os Mendicantes, que assim actuavam em duas frentes, cuidaram dos

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Fig. 1 - Guimarães c. 1300. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado.In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG.,Gabinete Técnico Local, 2002.

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seus caminhos para o interior. Os dois mais conhecidos construtores de pontesmedievais portugueses, S. Gonçalo e S. Lourenço Telmo, ambos Dominicanos,estão ligados a Guimarães. Segundo a lenda, S. Gonçalo teria construído aponte de Amarante por volta de 1250. Quanto a S. Lourenço, cujo corpo seriasepultado em S. Domingos, o poder persuasivo da sua pregação teria levado osvimaranenses a contribuir decisivamente para a edificação da ponte de Cavezsobre o Tâmega entre 1224 e 1264.

Desde os finais do século XIII, porém, que se avolumarão os sinais decrise.A Peste Negra, que irrompe na vila em 1348, não fará mais do que poten-ciá-los. As suas várias réplicas, acompanhadas da fome e da guerra, prolongar--se-ão até nos finais do século XIV. Então, na ressaca da crise de 1383-1385,D. João I reunificará a vila, formal e administrativamente; a dualidade, porém,seria perpetuada através de procissões como a do Anjo Custódio que, aindana Idade Moderna, se dirigiam da Colegiada ao Castelo. O novo povoado tinhaintramuros uma dimensão de aproximadamente 20 ha, dos quais 2, 9 ocupadospela Vila Alta, o que era razoável para cidades portuguesas da época. Fora demuros, possuía arrabaldes extensos: o campo da Feira, a oriente do muro, naestrada de Amarante, seria o mais antigo. A rede de albergarias e gafarias quese sobrepôs à das estradas – e que os Mendicantes utilizarão nas suas funda-ções – também rapidamente traçará os limites urbanos que, bem para além daspedras da muralha, foram pressentidos pelos homens.

A divisão paroquial acompanharia a expansão; subsequente à repartiçãodas receitas nas grandes instituições religiosas seculares, ela coincide tambémcom a chegada dos Mendicantes. Uma partilha territorial estabilizada, no segui-mento da divisão fiscal, tornava-se, portanto, urgente. Desse modo, em 1220, aparóquia única seria ainda apenas a da Colegiada de Santa Maria de Oliveira:mas imediatamente após surge uma segunda, mais a sul, sedeada na igreja de S.Paio. Na Vila Alta só em 1258 é referida a capela românica de S. Miguel doCastelo como paroquial, ainda sufragânea de Santa Maria da Oliveira. Possivel-mente foi sagrada em 1233 e o concelho da vila reunia no seu alpendre, simul-taneamente cemitério. A infinita experiência dos mortos só poderia estimularas boas políticas dos vivos.

Estes últimos estabeleceram-se, ao longo das vias, novas ou antigas, emunidades de carácter jurídico, morfológico e económico, os chãos, que seriammaioritariamente criados e contratados pelo maior proprietário da povoação:o cabido da Colegiada. O plano urbano, provido com rigor pelos cónegos, abriu

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praças e ruas cuja morfologia seria mais ou menos regular, conforme as condi-ções topográficas, económicas, culturais e de pressão demográfica. Entre os seustrês níveis: parcelar, viário e edificado, o primeiro será o fundamental e o maisperene. Desde cedo, portanto, se formalizariam as propriedades essenciais dapaisagem urbana de Guimarães. Mas, à semelhança do que sucedeu noutraslocalidades próximas, a acção do Concelho será, nesse aspecto, débil, para nãodizer inexistente.

Unificada a vila e derrubado, por ordem de D. João I, o troço de muralhaque separava os dois povoados, será junto do grande espaço de representaçãoda Vila Baixa, o largo da Colegiada, ou de Santa Maria, que os homens-bons doConcelho vão construir o seu paço nos finais de Trezentos. A proximidade dosagrado, como a dos mortos, apenas avisará e fortalecerá as decisões de umpoder ainda bem frágil. Depois da vitória de Aljubarrota, o monarca, emcumprimento de promessa efectuada a Santa Maria da Oliveira percorrerá em1387, descalço, o trajecto desde S. Lázaro, seguindo pela rua de Gatos e compassagem pelos Dominicanos, até Santa Maria da Oliveira. O ritual cartografaos limites urbanos e marca distintamente o centro, doravante único, da vila. Apromessa incluía ainda a reconstrução do antigo templo e a obra, a cargo deJoão Garcia de Toledo decorria ainda em 1413, apesar de a igreja ter sidobenzida em 1403.

Nos finais da Idade Média o espaço urbano de Guimarães coincidia emvários locais com fronteiras que, em muitos casos, apenas seriam significativa-mente ultrapassadas no século XIX: o castelo e os Canos a norte, a zona deCouros e S. Francisco a nascente, a albergaria de S. Roque e a rua Travessa asul, os gafos de Santa Luzia e de São Lázaro a poente. A unificação dos doisnúcleos, porém, não impediria a desertificação da Vila Alta. Ela seria aceleradapela criação de uma nova barreira, erguida no lugar da antiga muralha demolidapor D. João I pelo seu filho bastardo D. Afonso, primeiro duque de Bragança.Ao iniciar, a partir dos anos 20 do século XV, a construção do seu gigantescopaço nas proximidades da linha de separação dos dois núcleos, D. Afonsoresgataria definitivamente a Vila Baixa ao antigo povoado do castelo.

Outra influência importante teria o Paço dos Duques na arquitecturavimaranense, já que o edifício barreira viria a ser um dos seus temas maisglosados. Esse, porém, não será o caso do novo Paço do Concelho iniciado noreinado de D. Manuel, depois de 1515, frente à Colegiada, entre os largoscontíguos de Santa Maria e S.Tiago. Erguido sobre arcos, retoma a forma dos

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antigos pórticos das reuniões concelhias de homens-bons junto das igrejas. Ocentro é um também um local mental e, ao articular através do alpendre asduas praças, o paço concelhio unificava simbolicamente o que o paço senhorial– aliás nunca concluído – separara. À sua tipologia não serão estranhos, maisuma vez, os Mendicantes. No alpendre praça dominicano do Porto, concluídoem 1320, efectuar-se-iam ao longo do século as reuniões magnas do Concelho.Nele coincidiram, numa centralidade tomista, a coalizão de interesses entreburgueses e Pregadores e a nuclearidade geográfica intramuros. O edifíco seriaainda o centro de uma teia geométrica que coordenaria o plano urbano,formatando o desenho de uma boa parte da muralha fernandina e das suasprincipais aberturas, e a localização da Alfândega (1325), da Judiaria (1388), dosconventos de Corpus Christi em Gaia (1345) e de Santa Clara (1415) e SantoElói (1491) dentro de muros. A paisagem urbana dos finais da Idade Médiaportuense foi, desse modo, percorrida por uma forte pulsão sagrada, geomé-trica e abstracta..

Ela também se verificaria na Guimarães intramuros do último quartel doséculo XIV, mas independente da situação mendicante, nos grandes quarteirõesa norte do eixo rua Sapateira/rua dos Mercadores e a ocidente dos largos deSanta Maria e Santiago. Um plano ortogonal integrará a rua Escura, habitadapor dependentes dos duques de Bragança, alinhada pela porta da Torre Velhae orientada na direcção norte/sul, e a Judiaria (referida na década de 70 de1300), perpendicular a ela no sentido nascente/ poente. No prolongamentoocidental desta última situou-se o primeiro Paço do Concelho joanino e, depois,o seu sucessor manuelino: a sua implantação junto da Colegiada contribuiriapara a consolidação simultânea dos tecidos morfológico e cívico da vila.

A integração dos elementos topográficos da paisagem, entre eles aCâmara e a Colegiada, e a sua associação a uma atenta geografia social, terãoparalelo e complemento nos rituais urbanos, cujos objectivos de organização ecoesão do corpo social serão semelhantes. Eles possuirão igualmente umagrande capacidade de gerar formas urbanas. De que outra maneira se poderáentender o pálio-baldaquino do padrão do Salado, petrificado nos finais doséculo XIV frente à Colegida, junto da oliveira sagrada? Ele duplicar-se-á, aindana primeira metade de Quinhentos, em peregrinação inversa à de D. João I, emSão Lázaro, no extremo ocidental do povoado. Porto sem mar, Guimarães teráentão um farol sem barcos, já que o padrão de São Lázaro repete o farol de S.Miguel-o-Anjo, de Francisco de Cremona, no Porto (1528).

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Fig 2 - Guimarães c. 1500. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado.In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG.,Gabinete Técnico Local, 2002.

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Idade Moderna

Uma grande continuidade, que alcançará os meados de Oitocentos, trabalharásobre as principais linhas de força da paisagem urbana medieval. Algumasdisfunções, porém, ocorreram. A mais importante talvez tenha sido a aberturade praças a partir de Seiscentos. Elas não serão mais os espaços sagradosprimordiais, como o que se situou em redor de Santa Maria e de onde, debaixoda protecção dos mortos, emergiram a assembleia, a justiça e o mercado. Àcivilização medieval de proximidade, táctil e objectiva, sucedeu a subjectividadede uma cidade que se pretendeu organizar, formalmente, segundo osmecanismos da visão. O mais precoce e importante exemplo dessa trans-formação será em Guimarães o terreiro da Misericórdia, aberto a partir doprimeiro quartel do século XVII. Ele obrigou à demolição de um bom trechoda povoação medieval, libertando a fachada da igreja de Manuel Luís (i.1604, econcluída, com alterações suas no registo superior, por Gonçalo Lopes) e a dacasa de despacho junto dela, de João Lopes de Amorim, rematada em 1640. Ohospital anexo, contudo, ainda em 1674 não estava terminado. A plasticidadeestabilizada do frontispício da Misericórdia não terá continuidade no repetitivodesenho de superfície da casa de despacho.As três igrejas das Misericórdias deBraga, Porto e Guimarães foram uma série que Manuel Luís desenvolveu aolongo da segunda metade de Quinhentos e em que o nervoso e um tantoobsessivo modelo maneirista inicial se depuraria até à distensão contida dafachada vimaranense. Ele, é portanto, um dos últimos elos nortenhos da cadeiade fachadas retábulo quinhentistas. A casa de despacho, pelo contrário, é umponto de partida. Gémea do corpo principal do hospital de D. Lopo deAlmeida, na rua das Flores portuense, ela perdeu, algures na extensão e naafirmação, monótona e automática, das suas fiadas de aberturas, o sentido dedesenvolvimento orgânico da fachada da igreja vizinha. No processo, assumiu ocarácter dogmático dos grandes edifícios conventuais da Contra – Reformatridentina, identificando-se, assim, com muita da arquitectura seiscentista doNorte. Mas o modelo dogmático não seria universalmente seguido pelosconventos que se erguerão em Guimarães a partir do século XVII. Quasetodos femininos e de pequenas dimensões, evitarão a afirmação das longasfrentes, recatando-se atrás de acidentes como os muros das portarias e astorres dos mirantes. O mais antigo entre esses conventos seiscentistas, o dosCapuchos (1644), seria o único masculino, instalado no exterior da muralha da

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Vila Alta, frente à Porta do Garrida. Do edifício original pouco resta, e a fachadada igreja em que o entalhador António da Cunha Correia Vale conseguiu trazerpara o rocócó uma robustez, barroca e bem minhota, é posterior a 1763. Dahistória da edificação do convento ficou o registo de um furto, ainda que poucosacro: os frades não tiveram qualquer problema em ir roubar a pedra de quenecessitavam no castelo próximo.

Outros dois conventos femininos instalaram-se, em Seiscentos, paraalém dos limites da cintura periférica semicircular definida pelos Mendicantesno século XIII. Ela tinha, entretanto, sido ocupada por «campos», adjacentes, apoente, sul nascente, às muralhas. O mais bem sucedido de entre eles era o doToural, contíguo a S. Domingos. No campo a SE do Toural surgiria mais umaparoquial, a de São Sebastião (i.1570) e, já no século XVII um hospital, o de SãoDâmaso (i.1636), frente a S. Francisco. Será a sul do campo da Feira e junto daestrada de Amarante, que se firmarão modestamente as Capuchinhas em 1683.O dormitório do convento foi contratado em 1719 e a igreja estaria provavel-mente concluída em 1734. As Dominicanas, por sua vez, fundariam a sua casade Santa Rosa de Lima, na rua Travessa, não muito longe dos seus irmãos mas-culinos, em 1680. O convento, contudo, só foi iniciado em 1727, estando quaseconcluído em 1739. Finalmente, as Carmelitas preferiram o troço superior darua de Santa Maria, designado da Infesta, onde se instalaram em 1685. No anode 1723 conclui-se a igreja e, em 1732, o pórtico principal. Por sua vez, nointerior da muralha, um convento já antigo recebiam roupagem nova. Fundadoem meados do século XVI na rua de Santa Maria, o convento de Santa Clara,será reformado nos anos trinta e quarenta de Setecentos.

O século XVII assistirá também à construção das grandes casas nobresno interior de muros. Elas sucederam às torres medievais e ao despontar dovalor icónico das fachadas em Quinhentos. No terreiro da Misericórdiaafirmam-se a Mota-Prego, originalmente do morgado dos Carvalhos e a dosCoutos, na origem Peixoto de Miranda. A vontade de auto representação daelite vimaranense expressa-se aí de forma diferente; na primeira, inacabada, umarigorosa demonstração serliana de distribuição de aberturas articula-se bemcom o revivalismo da torre; Na segunda, a turre, transformada em mirantebarroco, ocultou-se por trás da repetição infinita e monótona dos vãos. Estes,e a fachada da casa, expõem uma complicada adaptação da perspectiva, já queondulam segundo o alinhamento da antiga rua medieval do Serralho,preexistente à abertura do terreiro. O mesmo, aliás, se verifica na margem

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fronteira, onde existira a rua das Flores. O traçado da rua medieval que vai,mesmo depois desta última ter deixado de existir, continua a assombrar apaisagem urbana portuguesa da Era Moderna. Mas a casa nobre urbanaseiscentista de Guimarães, na sua vontade de conquista de espaço, serátambém capaz de variedade, audácia e inovação: a do Arco, do morgado dosAlmeida de Eça, é uma precoce e pragmática planta em “H” na qual o corpocentral se lança, balconado, sobre a rua de Santa Maria, seguindo o exemplo donão muito distante paço do concelho manuelino.

Ambas as casas do Terreiro da Misericórdia, a Mota Prego e a dos Cou-tos, serão ocupadas pelo arcebispo de Braga D. José de Bragança que, desa-vindo com o seu cabido, se instalaria em Guimarães entre 1747-1749. Ele e oentão proprietário da casa Mota Prego,Tadeu Luís de Albuquerque, estarão naorigem de grandes celebrações barrocas que terão como palco o terreiro. Oarcebispo seria ainda, antes e durante a sua permanência vimaranense, o pro-motor de um surto arquitectónico «joanino» que se fará sobretudo sentir naportaria do convento do Carmo e no vertiginoso pórtico do convento deSanta Rosa de Lima. Menos compreensível é o seu patrocínio à exuberantefachada do Carmo (1742), cujas aberturas se distribuem numa tensão magné-tica, ainda maneirista, capaz de atrair e fixar em seu redor toda uma série deelementos decorativos originários do imaginário popular.

Outras casas nobres se construirão, sobretudo no século XVIII, na peri-feria urbana: a mais espectacular de entre elas é a de Vila Flor (c. 1750). Comoo paço dos Duques, foi um projecto inacabado; será, também como ele, umaenorme barreira, aqui escoltada por uma galeria de granito, representando osreis portugueses, esculpida em torno das suas fachadas norte e nascente. Essafoi a única ala do edifício construída em Setecentos, rematando um jardimrocócó de escadarias, pináculos, estatuária, casas de fresco e luzidias japoneirasque se estende por três níveis. Mais a norte, a casa de Vila Flor terá um jardimsemelhante, embora mais pequeno; ela situou-se nas traseiras do santuário doSenhor dos Passos, no extremo nascente do antigo Campo da Feira, projectadopelo bracarense André Soares em 1769. O plano de André Soares, que incluíauma berniniana ponte com estatuária sobre o rio de Couros, entretanto destruída,transformaria o antigo campo no mais importante conjunto cenográfico da cidade.

A influência do rococó bracarense é notória na vila durante a segundametade do século XVIII; para além do Senhor dos Passos, dos jardins de VilaFlor e Vila Pouca, e de uma série de casas nobres, a cidade acolherá ainda uma

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das jóias da arquitectura civil nortenha, a casa Lobo Machado (1754), na ruaSapateira, junto ao terreiro e hospital da Misericórdia. A casa, cómoda de umíntimo e luxuoso boudoir que, por acaso, se encontrou na via pública, conquistae afirma através da existência única da fachada; desse modo, ninguém pensou,ou achou necessário, prover-lhe um interior ou, sequer, uma traseira. Para alémda plasticidade do frontispício, apenas o pátio mostra, no desdobrar do rematedo corrimão e do patim da escadaria, uma atenção, ainda que minimalista, a umsensual tratamento do espaço.

Fig 3 - Guimarães c.1780. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães:CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.

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Idade Contemporânea

A escadaria e a fachada da casa Lobo Machado são sistemas requin-tados, enganosos e manipuladores; eles são uma constante no trabalho de AndréSoares e concretizam uma perturbadora capacidade rocaille: a de transformara obscena em cena. Desse modo, o percurso iniciado com a abertura doterreiro da Misericórdia, que assinalou em Guimarães o arranque da utilizaçãodos mecanismos da visão como geradores de formas urbanas, terá aí a suaconclusão lógica. O esgotamento do modelo rocócó originará uma reorien-tação geográfica: à influência bracarense sobrepor-se-á a do Porto e das ObrasPúblicas almadinas. Desde os anos sessenta do século XVIII que se sucediam asnormas de regulamentação urbana, proibindo as rótulas, tabuleiros, empanadase sacadas: o alinhamento das ruas, a construção de «corredores de movi-mento» era, ainda, o seu grande objectivo O senado vimaranense, porém,pretendeu nos finais de Setecentos ultrapassar esse conjunto de apêndices dourbanismo «regulado» medieval. Em 1792 escreve à rainha, pedindo «…que elafosse autorizada a dar o plano e risco de todos os edifícios que na vila seconstruíssem como se fazia no Porto para que assim a vila se aformoseasse eregularizasse…». A resposta real, recusando essas pretensões, deve ter sidodecepcionante para a edilidade. Segundo a Coroa, as instituições existentes navila e o modelo de práticas urbanas que até aí implantara seriam capazes dedar perfeitamente conta do recado. A tradição, portanto e como sempre, estáno âmago do urbanismo português. Tradicional, e talvez com o intuito deaclamar os ânimos da elite local, será a planta enviada para a construção deuma frente urbana no campo do Toural, a sul da vila. Este era então o maisimportante do povoado, com edifícios nobres como a casa do Toural (1721) ea igreja de S. Pedro, (i.1735); o novo projecto obrigaria à demolição da antigamuralha que, aliás, desde os anos oitenta se ia paulatinamente destruindo emvários pontos. Surge assim mais uma barreira, ou se quisermos, uma fachadapara a vila, pois o Toural era o principal ponto de confluência dos caminhos quese dirigiam a Guimarães ou por ela passavam. O paralelo, na volumetria, implan-tação e significado deve-se procurar no dormitório dos Lóios, no Porto, actual-mente conhecido como Passeio das Cardosas. A fachada portuense, contudo,tem conotações aristocráticas – nela reverberam as duplas pilastras coríntias daChancelaria romana, contidas sob um frontão clássico – enquanto que Gui-marães adoptaria a solução bem mais burguesa do prédio almadino. Ele, porém,

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será multiplicado ao infinito. Desmaterializado pela transparência das aberturasquase contínuas, voltadas a sul e ao sol, conseguirá mesmo fazer esquecer ospesos dos cunhais e cornijas ainda rocaille.

Uma forte industrialização, encetada nos finais do século XVIII masintensificada sobretudo a partir dos meados de Oitocentos, trará a melhoriasubstancial da rede rodoviária, o comboio, e uma demografia galopante à vila.Transportará também a expansão urbana para além dos limites parcimoniosa-mente mantidos durante séculos, bem para além da barreira de Vila Flor e dassuas sentinelas reais. Inicia-se, portanto, o processo de fragmentação dos equilí-brios do sistema urbano criado no século X: ao sentimento de perda estarãoassociadas as primeiras e românticas preocupações patrimoniais. Desse modo,surge em 1850 uma «Comissão de Amigos do Castelo», patrocinada pelaCâmara. Pouco depois, em 1863, a cidade – desde 1852 e da visita de D. MariaII – terá um plano, de autoria de Almeida Ribeiro. Documento pragmático,imbuído da filosofia higienista oitocentista, respira ainda a prática tradicional dourbanismo regulado medieval, como se entende pela sua designação: «Plano deAlinhamentos e Melhoramentos da Cidade de Guimarães». O documento nãointroduz, portanto, rupturas e, mais do que consagrar uma expansão, ratifica eenquadra a que até então se verificara.Também apresenta preocupações patri-moniais, mas dirigidas a edifícios específicos: o castelo, o paço dos duques, aigreja de S. Miguel.Vão-se, portanto, sedimentando os objectos de uma hagio-logia vimaranense – e portuguesa –. Como sabia já S. Bernardino de Siena noséculo XV, é neles, não no espaço, que se alojam as qualidades do sagrado.Desse modo, sancionam-se as demolições quando julgadas «necessárias»; assimsucederia com as igrejas de São Tiago (1887), S. Sebastião (1892) e S. Paio(1914). Elas eram dispensáveis na hierarquia teológica criada pelo romantismodo século XIX e escritores como Alexandre Herculano, Vilhena Barbosa,Ferreira Caldas, Ramalho Ortigão e Albano Bellino. A sua origem, porém, éanterior : ela anunciava-se já nas estátuas dos reis que sacralizavam Vila Flor (c.1750), ou em escritos como o do padre Torquato Peixoto de Azevedo, «Me-mórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães» (1692). A idade pré-patrimonialserá mesmo capaz de produzir obras de conservação acidentais, como asordenadas no castelo em 1721 por D. João V e, posteriormente, reafirmadaspor D. João VI em 1802.

O potencial hagiológico da cidade será pressentido, estudado e ampli-ado por Martins Sarmento (1833-1899), dinamizador dos Congresso Nacionais

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de Arqueologia realizados entre 1877 e 1880. Ele alargar-se-á então à arqueo-logia, etnografia e etnologia. Não surpreende, portanto, que Martins Sarmentoseja, com o Padre Ferreira Caldas, José Pinto de Queirós Montenegro e ocónego José Aquilino Veloso Sequeira, responsável pelo primeiro restauro«científico» da igreja de S. Miguel do Castelo (1874).A sua obra será secundadae complementada pela do seu conterrâneo e contemporâneo Alberto Sampaio(1841-1909), autor das «Póvoas Marítimas», que insistiria na urgência dareconstrução nacional, através do fomento agrícola, da industrialização, doestudo aprofundado do artesanato e cultura populares. Tendo em atençãoesses objectivos, Sampaio ajudará a promover em 1882 a criação da SociedadeMartins Sarmento e, em 1884, do seu órgão científico, a «Revista de Guimarães».Para a Sociedade, o arquitecto portuense Marques da Silva construirá, a partirem 1899, junto do convento de São Domingos cujo claustro será, aliás, inte-grado no edifício, um museu panteão simbolista cujas três absides historiadasrematam, a nascente, o corpo antigo da cidade.

Com a República, Mariano Felgueiras, um dos membros da ComissãoExecutiva da edilidade vimaranense eleita em 1914, encomendará uma novacâmara municipal a Marques da Silva, projecto historicista apresentado em 1916.Na sua memória descritiva o arquitecto alarga o leque dos objectos sagrados:para além do castelo, da capela de S. Miguel e do paço dos duques, nomeiam-seS. Francisco e S. Domingos, a praça de Santa Maria da Oliveira e o Paço doConcelho de origem manuelina. Só em 1924, porém, arrancará a sua cons-trução na nova praça circular, junto do Paço dos Duques, formalizada nohaussmaniano plano de Luís de Pina que será apresentado em 1925. Eleordenava, a partir da praça da câmara, a expansão radial da cidade para NE,criando uma alternativa à cidade antiga, ao mesmo tempo que interagia com aVila Alta do Castelo. O conceito museológico de património elaborado peloplano Ameida Ribeiro será, no programa de Luís de Pina, objecto de umarevisão importante: não se deverão preservar apenas objectos mas, emconsonância com o que F. Choay denomina de «conservação devota», áreasextensas da cidade antiga, pré-industrial, e do seu ambiente urbano. Numainversão da história, ao mundo nominalista dos objectos sagrados de Bernadinode Siena sucede uma aproximação ao conceito augustuniano da cidade comoimago mundi. O plano Luís de Pina será, portanto, um passo importante nacriação do conceito de centro histórico.

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Fig 4 - Guimarães c. 1925. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado.In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG.,Gabinete Técnico Local, 2002.

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Durante a República, e bem para lá dela, manter-se-á actuante emGuimarães uma ideologia patrimonial em que a recolha dos objectos sagradosmóveis, maioritariamente provenientes da extinção das ordens religiosas, serácomplementada pela colheita dos objectos, igualmente sagrados e teorica-mente imóveis, provenientes da História. Ambas, porém, coabitarão com aacção demolidora de áreas urbanas mais ou menos extensas. Para a primeiracolecta criou-se em 1928, já com o Estado Novo, o Museu Alberto Sampaio,que foi acompanhado pelo restauro do claustro supostamente românico daColegiada que, na realidade, datava em grande parte do século XVI. Comobjectivos semelhantes, surgiu em 1931 o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta,instalado no antigo Paço do Concelho do Largo de Santa Maria. O inventárioserá prosseguido em 1940, quando Alfredo Pimenta escreveu o Guia Turísticode Guimarães, trabalho pioneiro e um dos mais importantes do género, depoisde, em 1936, ter defendido no primeiro Congresso Nacional de Turismo a grandequalidade e quantidade dos recursos arqueológicos, arquitectónicos, artísticose bibliográficos vimaranenses.

A recolha de Alfredo Pimenta abrangia os dois tipos de objectos hagio-lógicos, móveis e imóveis. Ela surge no contexto das Comemorações Centenáriasde 1940, na preparação das quais o Estado Novo investira fortemente no restaurodo castelo (i1932), igreja de S. Miguel (i.1936) e paço dos Duques (i. 1937,concluído apenas em 1960, a cargo de Rogério de Azevedo). Eles formalizarão oconceito de «colina sagrada» que, porém, irá muito para além da sacralização deuma Idade Média mítica pois, com a execução do parque projectado por Rogériode Azevedo, apenas concluído em 1962, objectivou-se um cenário de cosmogo-nia, em que a arquitectura emergia do ambiente primordial da natureza. Mas, maisuma vez confirmando Bernardino de Siena, não seria a colina que possuía umcarácter sagrado, mas sim os objectos que nela se encontravam e os que lá foramcolocados. Neste último caso incluiu-se a estátua de D. Afonso Henriques deSoares dos Reis, originalmente inaugurada frente a S. Francisco, depois deslocadapara oToural por Mário Felgueiras e, por fim, a tempo das Comemorações Cen-tenárias, para junto da fachada do paço dos duques. Depois de consolidada asacralização, o temenos da «zona protegida» será traçado em 1952 por umaprimeira vez, a segunda, definitiva, ocorrerá já em 1955.Mas,mais do que protegeros objectos da colina, a delimitação destinava-se a evitar que eles se deslocassem.A desmontagem da igreja de S. Dâmaso e a sua reconstrução em 1965 no ex-tremo norte do campo de São Mamede seriam a prova cabal dessa inquietude.

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A existência da colina sagrada fará ressuscitar a antiga dualidade medie-val de Guimarães. Não só formal, mas também administrativamente, já que naVila Baixa as preocupações patrimoniais serão assumidas em 1931 por umaComissão de Estética, proposta pela Sociedade de Defesa e Propaganda deGuimarães; ela terá por objectivo controlar todos os projectos de alteraçãoarquitectónica ou estrutural da cidade, tomando a seu cargo a renovação dasfachadas das habitações da rua de Santa Maria (1932).A escolha dessa rua nãoterá sido acidental: se ela era tida como sendo a mais antiga da cidade, foratambém o elo de ligação das duas vilas. Em 1949 será apresentado, na sequênciado 1º Congresso Nacional de Arquitectura e das directivas de Duarte Pacheco,o ante projecto de Urbanização da Cidade de Guimarães, de Maria JoséMarques da Silva e David Moreira da Silva. Muito inspirado em De Groer e nomovimento inglês da cidade jardim, será implementado a partir de 1955 econfigurava uma colaboração, senão uma dependência estreita das ideias pro-postas pelos Monumentos Nacionais para a cidade. Continuava, portanto, a serpatrimonialmente selectivo, preconizando apenas a conservação das áreas demaior valor arqueológico ou arquitectónico e sacrificando importantes áreas dapaisagem urbana histórica. Depois dos planos de Almeida Ribeiro e Luís dePina, seria aquele que teve maiores possibilidades de execução e um dos seusmaiores méritos seria a cintura de jardins criada, a poente e sobretudo a nas-cente, em torno das antigas muralhas, ocupando a cintura periférica medievaldelineada pelos Mendicantes. Ela, porém, obrigaria à demolição de uma boaparte da cidade antiga, incluindo a igreja e hospital de São Dâmaso. A primeiraseria, como dissemos, movida para o campo de S. Mamede, junto do castelo;uma habitação medieval, por sua vez, seria deslocada e reconstruída no largode São Tiago. O ritual, agora institucionalizado nos planos, continua a ser capazde gerar formas urbanas e a comandar a deslocação dos objectos sagrados;estes porém, trasladam-se agora, ao contrário do que sucedeu com o padrãode São Lázaro no século XVI, da periferia para um centro exangue.

Com efeito, no interior dos antigos muros, a antiga Vila Baixa degradava-se aceleradamente; em 1955 o Ministério das Obras Públicas e a Câmara reto-mam algumas das considerações da Comissão de Estética doa anos 30, orde-nando que todos os projectos de arquitectura deveriam ser supervisionados.Irrompe a ideia de que Guimarães se devia «defender denodadamente».Suceder-se-ão os ritos de interdição e protecção que fortalecerão o centro elhe conferirão o seu carácter mágico/religioso. Nesse sentido, também será

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necessário definir e identificar as ameaças que pesavam sobre ele. Esse trabalho,que terá como um dos objectivos principais a contenção da «constelaçãodesordenada», entenda-se da suburbanidade. Ela seria produzida, sobretudo apartir dos anos sessenta, por um ritmo de industrialização em comparação como qual se pode afirmar que aquele que ocorrera no século XIX simplesmentenão tinha existido. Na sua contenção será uma etapa essencial o Plano deUrbanização de Guimarães, de 1979, do arquitecto Fernando Távora.

Ao Plano de Urbanização sucedeu-se, em 1983, a criação do Gabinetedo Centro Histórico pelo arquitecto Nuno Portas, que mais tarde será desig-nado Gabinete Técnico Local. Os seus limites de actuação coincidirão inicial-mente com os da antiga muralha medieval da Vila Baixa: a sacralização da cidadeestava completa, as suas muralhas reerguidas, mas o perigo da dualidade tam-bém. Na recta final, será ao trabalho altamente qualificado desenvolvido peloGabinete Técnico Local, que, em grande parte, se deve a consagração obtidacom a concessão em 2001 do título de Património Cultural da Humanidade aocentro histórico. Ele conseguiria também a reunificação, pois a área abrangidapela classificação incluiria as antigas Vila Alta e Baixa. Mas a verdadeira heroínada história, a detentora da magia foi, sem dúvida a cidade,Vimaranis.

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Fig 5 - Guimarães c. 1975. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado.In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG.,Gabinete Técnico Local, 2002.

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Fig 6 - Área classificada em 2001. A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégias, método ealgumas questões disciplinares. In AGUIAR, José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. II. Guimarães: CMG.,Gabinete Técnico Local, 2002.

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RESUMO

Pretende-se reflectir sobre a condiçãopatrimonial da cidade de Évora, aindamuito sujeita ao domínio dosmonumentos isolados e aoentendimento da restante arquitecturae das estruturas urbanas comocontexto dos primeiros. Domínio quese deve à sobrevivência, quer nosdiscursos sobre Évora, quer nas suasimagens, de uma perspectiva idealizadada história da cidade, concentrada nasépocas de maior prestígio cultural epolítico, das quais os monumentos dãoum expressivo e simbólico testemunhomaterial. A arquitectura corrente foi,pelo contrário, mais permeável àsdinâmicas da história, reflectindo, nasua configuração e disposição, tanto asfases de expansão como as dedepressão, mantendo-se, por isso,relegada para segundo plano enquantovalor patrimonial. Deste modo, a partirdo conceito de património urbano,propõe-se outra valorização donúcleo histórico, que inclua asvariabilidades tipológicas, estilísticas eestruturais do tecido construído dacidade como manifestação dacomplexidade do seu passado.

ABSTRACT

This article is a reflection about theclassification of Évora an a heritage city.This classification is still too much based

in the quantity and quality of the cityhistoric monuments, considering ancient

current architecture and urban structuresonly as context of those monuments.Theidealized perspective of Évora’s past thatdominates the majority of the discourses

about the city, symbolised by its mostimportant historic buildings, explains why

ancient current architecture and urbanstructures don’t have yet a heritage

status similar to the monuments. Morepermeable to the history dynamics, the

current architecture and urban structuresforms reflect the epochs of expansion as

well as the epochs of depression. So,what we propose is another way of

seeing the Évora’s value as heritage, amore enlarged one, which includes the

entire city’s elements typological, stylisticand structural variability. Because all this

variability is a manifestation of thecomplexity of Évora’s past.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Património Urbano; Monumento Histórico; Urbanismo;Cidade; História

Key words: Urban Heritage; Historic Monument; Urbanism; City; History

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O PASSADO É UMA CIDADE IDEAL: um olhar sobre a patrimonização de Évora

Paulo Simões Rodrigues*

“Esta cidade-museu, cujas raízes recuam até à época romana, atingiu asua idade de ouro no século XV, quando se tornou residência dos reis portu-gueses. A sua originalidade radica nas casas caiadas de branco, decoradas comazulejos e balcões de ferro forjado datados do século XVI ao XVIII. Estesmonumentos tiveram uma profunda influência na arquitectura portuguesa doBrasil”1 – assim se apresenta o centro histórico de Évora no sítio da UNESCOna Internet dedicado ao património mundial (World Heritage Centre), o qualconsagra a imagem que a cultura nacional construiu desta cidade, fundamen-tada paradigmaticamente no conceito de “cidade-museu”, surgido nos finais doséculo XIX. Encontramo-lo mencionado por Ramalho Ortigão em O Culto daArte em Portugal de 1896 – “Pobre cidade de Évora, um dos nossos mais vastose mais preciosos museus de arqueologia e de arte, (…)”2 – e, já no século XX,na enunciação “necrópole-museu de grande povo” com que Fialho de Almeidaclassifica a urbe alentejana.3 Deu-lhes continuidade, vulgarizando o epíteto, umguia da cidade publicado pela editora Bertrand no ano de 1929, em que Évoraé descrita como “Capital do reino, grande foco de cultura, rica de monu-mentos, com ar de grandeza, das mais típicas cidades do país, Sempre-bela eMuseu de Portugal”4.

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* Assistente, Departamento de História e Centro de História de Arte e Investigação Artística,Universidade de Évora, Portugal

1 Tradução de “This museum-city, whose roots go back to Roman times, reached its golden age inthe 15th century, when it became the residence of the Portuguese kings. Its unique quality stemsfrom the whitewashed houses decorated with azulejos and wrought-iron balconies dating from the16th to the 18th century. Its monuments had a profound influence on Portuguese architecture inBrazil”. http://whc.unesco.org/en/list/361 (08/03/2007).

2 Ramalho ORTIGÃO – “O Culto da Arte em Portugal”. Arte Portuguesa. Lisboa: Livraria ClássicaEditora, 1943 (volume I), p. 92 e 93.

3 Fialho de ALMEIDA – Em Évora. Évora: Diário do Sul, 2002, p. 26.

4 Évora. Excursões na Cidade e Arredores. Lisboa: Bertrand, 1929, p. 3 e 4. Edição que incluía versõesem Português, Inglês e Castelhano.

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No conceito de “cidade-museu” consubstanciou-se a noção de Évoracomo um núcleo urbano “antigo” e “pitoresco”5, “paraíso do aguarelista e doarqueólogo”6 ,“quer pela sua história, quer pelos monumentos que aindaconserva”7,“velho burgo do sul”8,“inesgotável relicário de arte e beleza”9. Estanoção tem raízes profundas no tempo, podendo ser detectada no século XVIII,subjacente à afirmação do padre António Franco (1662-1732) de que “por seruma das mais nobres e antigas da Lusitânia, assim no profano como nosagrado, tem muitas coisas dignas de memória e história”10, ou ainda, maisremotamente, em 1552, através das palavras proferidas por André de Resende(1500? – 1573): “Esta vossa cidade, em outro tempo casa e alojamento dovaloroso e muito nomeado Sertório e, em este nosso, frequente morada ehabitação dos Reis e Príncipes, Nossos Senhores; cidade em sua origem efundação antiquíssima, em a fé católica e religião cristã entre todas as deHispânia ou mais antiga, […]”11. André de Resende dava deste modo início aum longo processo de fixação de uma imagética eborense em que esta cidade,pela antiguidade e prestígio do seu passado, era assumida como interlocutoraprivilegiada da história do país, cujos factos e momentos mais relevantes eramsimbolicamente expostos aos olhos do presente através da arquitectura dosseus principais monumentos. Demonstra-o com particular acutilância a icono-

5 Le Comte A. RACZYNSKI – Les Arts en Portugal. Paris : Jules Renouard et Cie, Libraires-Éditeurs,1846, p. 360.

6 Raul PROENÇA – Guia de Portugal. II. Estremadura, Alentejo, Algarve. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1991, p. 37. Reproduz o texto integral da primeira edição publicada pela BibliotecaNacional de Lisboa em 1927.A parcela do texto do guia dedicada à arte eborense é da autoria deReinaldo dos Santos.

7 Sociedade de Propaganda de Portugal – Évora e Seus Arredores. Indicações Geraes para Uso dosViajantes. Lisboa: Gazeta dos Caminhos-de-ferro, 1916, p. 3.

8 Gustavo Matos SEQUEIRA, Alberto SOUSA – Évora. s.l.: Empresa Nacional de Publicidade, s.d.(193?), p. 7.

9 Frederic P. MARJAY – Évora. A Cidade Milenária e seu Distrito, suas Belezas e seus Encantos. Lisboa:Livraria Bertrand, 1958, p. 19.

10 Padre António FRANCO – Évora Ilustrada. Évora: Edições Nazareth, 1945, 5. Obra manuscrita entre1722 e muito provavelmente 1728 e que é um resumo e uma continuação da homónima redigidapelo padre Manuel Fialho (1646-1718), começada em 1690 e interrompida pelo falecimento doautor.

11 André de RESENDE – “Fala que Mestre André de Resende fez à princesa D. Joana, Nossa Senhora,quando logo veio a estes reinos na entrada da cidade Évora”. Obras Portuguesas. Livraria Sá daCosta, 1963, 61. André de Resende foi o autor da obra seminal sobre a história desta cidade,intitulada precisamente História da Antiguidade da Cidade de Évora e publicada pela primeira vez em1553.

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grafia da cidade que os panoramas de Évora foram fixando a partir da iluminuraque ornamenta o foral manuelino da cidade de 1501 e que as gravuras e asreproduções fotográficas dos séculos XIX e XX retomaram.Atendamos a doisexemplos apenas12, e primeiramente à referida iluminura de 1501 [fig. 1].

12 Sobre o assunto e demais exemplos ver Paulo Simões RODRIGUES – “A Fixação da Imagem daCidade na Origem do Conceito de Património Urbano: o exemplo de Évora”. Arte Teoria. Revistado Mestrado em Teorias da Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2007. Lisboa,n.º 10, 2007, p.142-154.

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Fig. 1 – Iluminura do Foral Novo de Évora, Duarte de Armas (?), c. 1501.© Câmara Municipal de Évora, Arquivo Distrital de Évora.

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Atribuída a Duarte de Armas, conjugando uma visão de conjunto comum apurado sentido verista dos pormenores, a iluminura mostra Évora sobuma cartela com a inscrição Ebura Colonia Romana e representa-a seguindo amesma lógica da evolução da cidade real. Na iluminura, Évora desenvolve-seatravés da massa dos volumes que referenciam a arquitectura corrente dacidade, não plenamente alinhados, mas aos quais se impôs uma certauniformidade através da simplicidade esquemática e cromática que osconfigura e da compacidade do aglomerado de construções anónimas. Esteaglomerado de construções anónimas é pontualmente interrompido pelasescalas amplificadas de alguns edifícios notáveis, representados realisticamenteao pormenor dos elementos arquitectónicos mais característicos. Aconjugação desses dois factores, elevação e detalhe, torna os edifícios assimfigurados em pólos de atracção visual, conferindo-lhes uma importânciasimbólica no contexto da imagem da cidade que o autor pretendeu dar a ver,que é, de resto, por todas as características atrás enunciadas, a de uma cidadeainda medieval13. Começa com o edifício da Sé no cume do morro de S. Bentoque, preponderante, assinala o vértice da pirâmide em que se estrutura opanorama da cidade. À direita, sucedendo-se escalonadamente até ao limiteamuralhado da área urbana, são identificáveis a forma cúbica, rematada pormerlões e um campanário, do antigo templo romano, entretanto transformadoem açougue14, a igreja de S. Mamede e o convento de S. Domingos15. Noextremo oposto, junto à cintura da Cerca Nova, destaca-se o complexo doconvento, igreja e paço de S. Francisco. Imediatamente abaixo de S. Francisco,a edificação colada ao pano da muralha e com o telhado colorido a azulpoderá corresponder à ermida de Nossa Senhora da Orada. Ao centro dacomposição, no eixo de uma das mais importantes portas da cidade, a de

13 Alexandre PAPAGEORGIOU – Intégration Urbaine. Essai sur la réhabilitation des centres urbains histo-riques et leur rôle dans l’espace structuré de l’avenir. Paris:Vincent, Fréal et Cie Editeurs, 1971, p. 56.

14 O açougue da cidade, na acepção de um mercado de carne e não apenas na de um matadouro,funcionaria no antigo templo romano desde, pelo menos, o século XIV. Paulo Simões RODRIGUES– “Giuseppe Cinatti e o restauro do templo romano de Évora”. A Cidade de Évora. Évora: CâmaraMunicipal, 2000 (II série, nº. 4), p. 273 -284.

15 O Convento de S. Domingos foi demolido depois da extinção das ordens religiosas, por volta de1842, para dar lugar à praça D. Pedro IV, actual praça Joaquim António Augusto Aguiar. Deste imóvelrestam hoje apenas algumas arcadas. Paulo Simões RODRIGUES – “Em Busca da Cidade Perdida.Condição e Destino dos Monumentos Históricos Eborenses (1834-1920)”. Évora Desaparecida.Fotografia e Património. 1839 … 1919 (catálogo da exposição). Évora: Câmara Municipal, CIDEHUS,CHA, 2007, p. 57.

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Alconchel, a marcar a localização da praça Grande (actual praça do Giraldo),junto a uma torre, estarão a igreja de Santo Antoninho e a Pousada Real dosEstaus. Note-se que todos os edifícios referenciados, com excepção do temploromano, apresentam as respectivas coberturas pintadas de azul16, cor que serepete noutras construções que ainda não foram completamente identificadas,mas cuja relevância conseguimos percepcionar pela sua elevação acima docasario mais vulgar. Detenhamo-nos, contudo, naqueles que foram constituídoscomo elementos referenciais da estrutura plástica e do significado da ilumi-nura: a Sé, S. Francisco e o açougue.

A Sé Catedral de Évora (séc. XIII), tão minuciosamente debuxada quese pode entrever os diferentes formatos das janelas rasgadas nas torres dafachada, o claustro arborizado, a peculiar torre da lanterna, a rosácea num dosbraços do transepto – cuja visibilidade implicou a simultaneidade de duasperspectivas distintas, com a extremidade do transepto alinhada à fachada dotemplo – e as ameias que rodeiam a cobertura, com os seus altos coruchéuse a bandeira do reino destacadamente desfraldada, é o ponto mais distante doolhar do espectador, verdadeiro foco em relação ao qual foi estabelecida aescala de todos os restantes elementos do panorama.A catedral é o elementounificador da imagem, símbolo da comunidade urbana e da sua sublimação17.Como tal, marca o centro original da cidade e, simultaneamente, a naturezareligiosa da formação do reino18, a sua génese cristã enquanto efeito dareconquista da Península Ibérica aos Muçulmanos e o papel de Évora nesseprocesso, a primeira cidade a ser expugnada a sul do rio Tejo, em 1165, peloaventureiro Geraldo Sem Pavor, em nome de D. Afonso Henriques.

Em baixo, numa posição perpendicular à catedral, a fazer-lhe contra-ponto num plano mais aproximado dos olhos do espectador, aparece oconjunto arquitectónico de S. Francisco (sécs. XV e XVI), com a bandeira dorei hasteada sobre o corpo do paço (reconhecemo-la pela esfera armilar) e a

16 Teresa Botelho Serra aponta para esta possibilidade da cor dos telhados ser uma forma de agenciaras distintas importâncias das construções, recorrendo-se ao azul para marcar os edifícios nobres.Teresa Botelho SERRA – “O Foral Manuelino de Évora e as suas Iluminuras”. Foral Manuelino deÉvora. s.l.: Câmara Municipal de Évora, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 74 e 75.

17 Paolo SICA – La Imagen de la Ciudad. De Esparta a Las Vegas. Barcelona: Gustavo Gili, 1977, p. 62.

18 A missão cristianizadora da monarquia portuguesa é ainda sublinhada pelas cinco chagas de Cristoevocadas pelas armas reais do estandarte do reino que a Sé ostenta. Maria Ângela BEIRANTE –“Évora no dealbar do Império”. Foral Manuelino de Évora. s.l.: Câmara Municipal de Évora, ImprensaNacional – Casa da Moeda, 2001, p. 32.

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igreja ainda em construção, que o realismo do autor representa incompleta eintroduzindo perfis minúsculos de operários e a figuração de uma grua.A soluçãoesquemática encontrada revela a clara intenção de fixar a contemporaneidadeda iluminura, de inscrever o panorama na temporalidade concreta da suarealização – o início do século XVI, reinado de D. Manuel I – e de fazer contra-cenar, no domínio do simbólico, “a majestade régia com a majestade daurbe”19. Deste modo, podemos deduzir que S. Francisco simbolizava a Évorado presente – está localizado, de resto, no término do núcleo urbano – e certi-ficava o estatuto superior de uma cidade que acolhia frequentemente o rei ea sua corte – a bandeira assinala a presença do rei no paço. Por outro lado, alocalização, dimensão e nível de pormenorização da igreja e do paço de S. Fran-cisco estabelece uma interacção visual com a catedral que as vincula e, simulta-neamente, sujeita o presente ao passado, ao passado da cidade e do reino. Esteencadeamento deve ser entendido como uma afirmação da legitimidade dopoder do rei e da dinastia de Avis, em virtude da origem da linhagem régia sedever a uma crise, a de 1383-1385, que pôs no trono um filho natural deD. Pedro I, o Mestre de Avis, D. João I20. Mas deve também ser compreendidocomo uma asseveração da antiguidade da cidade, factor que a prestigiavaporque antecedia a própria nacionalidade, tendo em conta que Évora era jáum núcleo urbano durante o período romano, facto que é peremptoriamentedeclarado, embora com um erro histórico, na inscrição que coroa o panorama:Ebura Colonia Romana21. A presença do templo romano, com a aparência deuma torre-fortaleza, demonstra materialmente essa antiguidade.A sua cristiani-zação, evidente no campanário, evocaria, talvez, a conversão dos eborenses sobo império romano, justificando-se por esta via a atenção que era concedida aoconhecimento de um pretérito em que o paganismo havia sido dominante22.

19 Maria Ângela BEIRANTE, op. cit., p. 33.

20 Sílvia LEITE – A Arte do Manuelino como Percurso Simbólico. Lisboa: Caleidoscópio, 2005, p. 17 - 47.

21 A inscrição comete um erro histórico porque Évora nunca foi uma colónia romana, mas ummunicípio de direito latino. Sobre os motivos por de trás deste erro ver Rafael de Faria DominguesMOREIRA – A Arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal. A Encomenda Régia entre o Modernoe o Romano. Lisboa: tese de doutoramento em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, 1991 (volume 1), p. 212 e 213.

22 André de Resende alude à tradição que identifica S. Mansos como o responsável pela conversãodos habitantes de Évora ao cristianismo, referindo ainda que estes terão sido os primeiros a sê-loem toda a Península Ibérica. André de RESENDE, op. cit., p. 32 e 33.

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No Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora encontra-se depo-sitada a reprodução fotográfica de uma Vista Geral do Rossio de S. Brás [fig. 2], dedata desconhecida, executada provavelmente entre 1899 e 1920, e atribuídaao fotógrafo José Serra23. Desta Vista Geral do Rossio de S. Brás resultou umnovo panorama da cidade de Évora, agora captando a zona Sul da cidade, masque surpreende, salvaguardadas a distância cronológica e a diferença de

suportes, pelos paralelismos que podemos encontrar com a iluminuraquinhentista. Na Vista Geral do Rossio de S. Brás, o flanco da catedral, com osseus coruchéus e as suas torres, continua ser o vértice da composição. Está noplano mais distante do ponto de vista do espectador, a marcar a cota da urbe,embora aqui de uma perspectiva trapezoidal e não de uma estruturapiramidal, resultante da intenção significativa do fotógrafo de a incluir naimagem. A partir de aqui, em diferentes níveis de distância e escala, até ao

23 Com o registo GPE0207. Cármen ALMEIDA – Évora – Objectos Melancólicos. Casal de Cambra:Caleidoscópio, 2005, p. 144 e 145.

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Fig. 2 – Vista Geral do Rossio de S. Brás, José Serra (?), 1899 – 1920 (?). © Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal deÉvora (GPE0207).

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limite da área urbana marcada pelo vazio do Rossio de São Brás, estão visíveisparcelas de alguns dos edifícios mais paradigmáticos da cidade, marcos da suahistória e da sua arte. Imediatamente abaixo da Sé, vislumbra-se uma parcelado palácio do Vimioso (séc. XV), a cobertura da igreja da Misericórdia (séc. XVI)e o convento da Graça (séc. XVI). Do lado oposto, à direita, por de trás dacopa das árvores, novamente em contraponto à catedral, embora de outraperspectiva, a igreja do convento de S. Francisco. Relativamente centrais, entrea igreja de S. Francisco e a Catedral, no termo do aglomerado urbano, estãoos dois corpos do mais importante edifício da Évora Oitocentista, o chamadopalácio Barahona (1856-1867), desenhado pelo arquitecto italiano GiuseppeCinatti para José Maria Perdigão, um abastado proprietário fundiário.

Na Vista Geral do Rossio de S. Brás, a atenção do espectador é centrada,mais uma vez, no momento em que a imagem foi captada, na cidade moderna,simbolizada não apenas pelo edifício projectado por Cinatti, mas também, esobretudo, pelo próprio espaço do rossio, que ocupa todo o primeiro planoda reprodução fotográfica. O ponto de vista escolhido pelo fotógrafo foi certa-mente condicionado pela relevância urbana que a zona do Rossio de S. Brásadquiriu com a construção da estação do caminho-de-ferro a Sul da cidade,inaugurado em 1863. Daqui saía, pela porta do Rossio, a avenida da Estação,futura avenida Barahona. Podemo-la ver do lado direito da Vista Geral do Rossiode S. Brás, marcada por um renque de árvores que aprofunda a distância entreos dois primeiros planos da composição. Revisita-se assim a lógica esquemáticada iluminura de 1501, interligando-se três momentos fulcrais da história dacidade através dos seus monumentos: a conquista cristã na Idade Média coma Sé, o apogeu fomentado pela presença frequente dos monarcas nas centúriasde XV e XVI com a igreja de São Francisco, a prosperidade das novas elitesfundiárias e a perspectiva do progresso material no dealbar do século XX como palácio Barahona e o caminho-de-ferro. O presente é novamente interpre-tado como o culminar de um processo histórico que o legitima e lhe conferesentido.

Os edifícios assinalados, ao pontuarem a malha urbana, funcionam comochaves de acesso ao significado da imagem. São pontos de referência que dão“legibilidade” e “imaginabilidade” aos panoramas de Évora, conforme a teori-zação proposta por Kevin Lynch na década de 1960. A “legibilidade” está rela-cionada com o modo como as parcelas de uma cidade são percepcionadas eorganizadas numa estrutura coerente, apresentadas de uma forma definida e

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intensa aos nossos sentidos. A “imaginabilidade” tem a ver com a capacidadede um objecto material produzir ou evocar uma imagem memorável numdado observador24. Conjugadas, “legibilidade” e “imaginabilidade” implicamuma condição integradora através da qual o significado que emana da imagemse torna inteligível25.Ao serem reconhecíveis devido ao carácter realista da suarepresentação e ao se inter-relacionarem pelo modo como foram integradosna estrutura das composições em análise, os monumentos referenciados confi-guram a imagem de Évora como uma cidade de um profundo valor histórico,de tal modo ubíquo que o passado não se limita a sê-lo, mas age sobre opresente, moldando-o ou dando sentido à mudança e até à ruptura. Estabele-cendo uma relação intrínseca entre lugar, arquitectura e história, as duas ima-gens abordadas, a iluminura e a fotografia, consignam a cidade como locus damemória colectiva dos cidadãos, da população26. Reflectem a asserção deMaurice Halbwachs de que todas as acções e os movimentos de uma comuni-dade ou de um grupo são passíveis de ser traduzidos em termos espaciais, eque o lugar ocupado por essa comunidade ou esse grupo não é mais que areunião de todos esses termos. Todas as parcelas do espaço que ocupamcorrespondem a tantos outros diferentes aspectos do sistema e da vida dassuas sociedades27.

Significa isto que entre os séculos XVI e XIX, apesar dos circunstan-cialismos específicos de cada época, se sedimentou uma imagética de Évora ese constituiu a tradição iconográfica de uma cidade histórica e nobre com asquais, no século XX, a população se sente totalmente identificada e às quaisestá intimamente ligada28 – a repetição sistemática da formalização da imagemde Évora criou um estereótipo e tornou-se num eufemismo29. Imagética e

24 Devemos salvaguardar que quando Kevin Lynch teoriza as noções de “legibilidade” e “imagini-bilidade” parte da referência da cidade concreta, não da sua representação. Cremos, porém, queessas noções são aplicáveis também às representações ou reproduções de cidades. Kevin LYNCH– A Imagem da Cidade. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 20.

25 Leandro M. V. ANDRADE – “Image of the City”. Enciclopedia of the City. London. New Kork:Routledge, 2005, p. 249.

26 Aldo Rossi entende locus “como a relação singular e no entanto universal, que existe entre umacerta situação local e as construções aí localizadas. Aldo ROSSI – A Arquitectura da Cidade. Lisboa:Edições Cosmos, 2001, p. 151, 154 e 192.

27 Maurice HALBWACHS – La Mémoire Collective. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, 133.

28 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 22.

29 M. Christine BOYER – The City of Collective Memory. The Historical Imagery and Architectural Enter-tainments. Cambridge. London:The MIT Press, 1994, p. 313.

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iconografia que conformam uma Évora pretérita ideal, circunscrita aos prin-cipais monumentos dos períodos históricos mais representativos. É essa idea-lização que encontramos representada no frontispício que abria a primeirapágina dos números do Manuelinho d’ Evora, periódico eborense publicadoentre 1879 e 1904 (1ª série), composto a partir de uma panorâmica obtidamais uma vez do Rossio de S. Brás, na qual se concentram os principaisedifícios históricos da cidade: Convento do Carmo, igreja da Misericórdia, Sé,convento da Graça, palácio Barahona e convento de S. Francisco (da esquerdapara a direita). A enquadrá-los, o templo romano e a figura do Manuelinho deÉvora30, a segurar, na mão direita, um estandarte com o escudo da cidade31 e,na mão esquerda, uma cartela semelhante à da iluminura, mas com o nomedo jornal. Em primeiro plano, escudos com datas relevantes da história deÉvora e da nação: 1166 (conquista da cidade aos muçulmanos), 1383 (domínioda cidade pelos partidários do Mestre de Avis, futuro D. João I), 1637 (levan-tamentos de Évora contra a monarquia filipina) e 1808 (ocupação e saque dacidade pelo exército napoleónico). Esta era uma versão mais próxima doreferente da realidade do que a veiculada nos primeiros números desteperiódico. Nestes, os monumentos acumulam-se no horizonte do espaço darepresentação não segundo a sua distribuição no espaço real, mas de acordocom o critério da sua capacidade evocativa, como num mostruário, formandouma alegoria mnemónica da cidade de Évora [fig. 3]. Ao centro destacava-senovamente a figura de Manuelinho de Évora empunhando a bandeira dacidade. Rodeavam-no, do extremo direito para o esquerdo da imagem, otemplo romano, o Palácio Barahona, a torre da lanterna da Sé, o perfil da igrejade S. Francisco e o Aqueduto da Água da Prata. Em primeiro plano, a ladearManuelinho de Évora, o busto de Sá de Miranda e um medalhão com a esfingede André de Resende.

Nos discursos sobre a cidade – na literatura de viagens, nos guias dacidade, em artigos de jornal e de revista, em textos de cariz mais académico

30 Tido como o tolo da cidade, ficou popularmente conhecido porque o seu nome, Manuelinho deÉvora, apareceu nas ordens dos levantamentos da cidade de 1637 contra o domínio castelhano,identificando-o como seu autor, ocultando a identidade dos verdadeiros responsáveis. Seria talvezum tal Manuel Martins, irmão da Misericórdia de Évora. A efabulação à volta desta figura tornou-aprotagonista de várias obras literárias.

31 Em que estão representados Geraldo Sem Pavor a cavalo e as cabeças dos dois mouros que,segundo a tradição, ele decapitou aquando da conquista da cidade.

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ou propagandístico – é também o monumento isolado que preside aoscritérios de apreciação do espaço urbano, que caracteriza e marca osmomentos e os processos de transformação do território em causa32.Quando aludem ao casario é para realçar o carácter pitoresco e antigo dacidade, juízo de valor eminentemente oitocentista que se referia à ambiênciasugerida pela arquitectura corrente e ainda não ao seu valor enquanto fontedo conhecimento da história de Évora33. Nessas publicações, tanto nos textoscomo nas respectivas ilustrações, os monumentos mais enunciados ou

32 Aldo ROSSI, op. cit., p. 128.

33 Leve-se em atenção, a título de exemplo, os guias da cidade publicados entre a segunda metadedo século XIX e a primeira do XX, nos quais eram propostos itinerários que sintetizassem umadeterminada impressão geral da cidade, aquela que se pretendia deixar nos viajantes nacionais eestrangeiros: Roteiro e Breve Notícia dos Principais Monumentos da Cidade de Évora que devem servistos pelo Viajante de António Francisco Barata (Évora, Imprensa do Governo Civil, 1871), Atraveza Cidade de Evora ou Apontamentos sobre a Cidade de Evora e seus Monumentos de Caetano daCâmara Manuel (Évora, Minerva Comercial, 1900), Évora e Seus Arredores. Indicações Geraes paraUso dos Viajantes da Sociedade de Propaganda de Portugal (Lisboa, Gazeta dos Caminhos de Ferro,1916), Guia de Portugal. II. Estremadura, Alentejo, Algarve, Algarve de Raul Proença (Lisboa, FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1991, 1ª edição de 1927), Évora. Excursões na Cidade e Arredores (Lisboa,Bertrand, 1929) e Évora de Gustavo Matos Sequeira e Alberto Sousa (Empresa Nacional dePublicidade, s.d.).

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Fig. 3 – Cabeçalho do jornal Manuelinho d’ Evora, 1882.

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reproduzidos (em panorâmicas gerais ou apenas em pormenores arquitectó-nicos) veiculavam uma imagem de Évora enquanto lugar da memória históricanacional, cujos edifícios marcavam a sua cartografia, simultaneamente espaciale temporal, designadamente a Sé (Idade Média, sécs. XIII-XIV), a igreja de S. Fran-cisco (séc. XIII-XVI) e o palácio de D. Manuel ou Galeria das Damas (séc. XVI),o Aqueduto da Água da Prata (séc. XVI), os conventos dos Lóios (séc. XV), deNossa Senhora do Carmo (séc. XVII, adaptação do paço seiscentista mandadoconstruir em 1524 pelo 4º duque de Bragança, D. Jaime)34 e de Nossa Senhorada Graça (séc. XVI), os mosteiros de Santa Clara (séc. XV-XVI, ocuparam eadaptaram o paço dos Falcões) ou de S. Salvador (séc. XVII), a ermida de S. Brás(séc. XV), a igreja de Santo Antão (séc. XVI), o Colégio do Espírito Santo(Universidade, sécs. XVI-XVIII), a igreja do Espírito Santo (sécs. XVI-XVII), etc.Todos estes monumentos correspondem a permanências e só estas podemmostrar aquilo que a cidade foi, tudo aquilo que o seu passado difere do pre-sente ou, por outro lado, a continuidade da comunidade. São, na perspectivade Aldo Rossi, elementos primários, “visto que participam da evolução dacidade no tempo de modo permanente, identificando-se frequentemente comos factos constituintes da cidade”35. Não é aleatoriamente que os monumentosque se destacam nas panorâmicas, que foram aumentando com a passagem dotempo, coincidem com aqueles em que os discursos e as narrativas produzidossobre a cidade se detêm mais minuciosamente. Representam a cidadeidealizada em conformidade com a importância que a historiografia lhe foiatribuindo, a de um dos principais centros político-administrativos e culturaisdo país nos séculos XV e XVI. Apareciam, por isso, também associados adestacadas personalidades do passado, personagens históricas das quais osmonumentos eram documentos perenes da sua existência: a Casa de Garciade Resende ou o paço de D. Manuel.

O que temos vindo a constatar permite-nos concluir que até à primeirametade do século XX, quer nas imagens, quer nos discursos, o valor históricoda cidade de Évora ancorava-se predominantemente no conjunto dos seusmonumentos isolados. Dificilmente se consegue detectar uma conceptuali-zação da entidade cidade no seu todo como objecto de arte ou de civilização.Daí o conceito de “cidade-museu”, o qual subentende que a estrutura urbana,

34 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 80.

35 Aldo ROSSI, op. cit., p. 76, 124 e 142.

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que inclui a massa da arquitectura corrente e as vias de circulação, não detémum valor histórico-artístico por si só, vale enquanto moldura e espaço deexposição, ou seja enquanto contexto dos monumentos históricos. Os monu-mentos históricos eram as obras de arte que a “cidade-museu” albergava.Logo, este conceito de “cidade-museu” não deve ser confundido, como notaFrançoise Choay, com a noção da cidade como bem patrimonial36, emboraradique nele o mais recente de património urbano.

A partir da década de 1930, o conceito de “património urbano” veioreconhecer o valor histórico, estético e nacional da totalidade do tecidourbano das cidades antigas, incluindo o da arquitectura dita corrente, queconstitui a essência das suas áreas construídas. O seu valor estético foi intuídopela primeira vez por John Ruskin (1819-1900), cujo interesse por cidades tãobelas e antigas como Veneza advinha da decoração das habitações de menornotoriedade e dimensão, mais que da riqueza artística dos palácios37. Ourbanista austríaco Camillo Sitte (1843-1903) evidenciou-o e analisou-o naobra Der StädteBau nach seinen Künstlerischen Grundsätzen (O UrbanismoSegundo os seus Fundamentos Artísticos) de 1889. O arquitecto italiano GustavoGiovannoni (1873-1947), depois da Primeira Guerra Mundial, sublinhou ovalor da cidade antiga para a História e para a História da Arte38.

Apesar de se deter sobretudo nas áreas urbanas que continham gran-des monumentos ou obras de maior qualidade arquitectónica, Camillo Sitteconstatou que nas cidades antigas, principalmente nas da Europa do Sul, osedifícios mais emblemáticos e monumentais, nomeadamente as igrejas, nãoestavam localizados no centro das praças ou isolados, solução recorrente nourbanismo Oitocentista, mas embebidos na continuidade do tecido cons-truído39. Na sua obra Vecchie città ed edilizia nuova de 1931, Gustavo Gio-vannoni desenvolveu a tese de Sitte afirmando a natureza urbana dos monu-mentos, que só encontram o seu pleno significado integrados na arquitectura

36 Françoise CHOAY – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 166.

37 John RUSKIN – Las Siete Lámparas de la Arquitectura. Barcelona: Alta Fulla, 1997, p. 211 (1ª ediçãoinglesa de 1849).

38 Françoise CHOAY – “Patrimoine (bâti urbain et rural, paysager ou naturel)”. Dictionnaire de l’Urbanisme et de l’ Aménagement. Pierre MERLIN, Françoise CHOAY (dir.). Paris: PressesUniversitaires de France, 1988, p. 472.

39 Camillo SITTE – L’art de bâtir les villes. L’urbanisme selon ses fondements artistiques. S.l. [Paris]: Seuil,1996, p. 29 e 30.

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“menor”, defendendo a sua conservação do contexto urbano em que estavaminseridos:

“Les mêmes caracteres qui lient étraitement les grands monumentsau petit tissu des édifices mineurs unissent l’architecture et lastructure urbaine en une seule entité, organisée par une idée logiqueet cohérente. Ils constituent un élément extrinséque essentiel pourl’appréciation des monuments et son l’expression d’une conceptionunitaire du monument et de son contexte ou, si l’on préfère, d’unearchitecture collective proprement urbaine. Il est plus grave d’altérercet ensemble que l’endommager un monument”40.

O monumento, com a sua arquitectura singular, e as construções que orodeavam compunham parte de um ambiente urbano que se devia manter41,constituíam o “património urbano”, conceito que nasceu pela mão de Gio-vannoni neste seu texto de 1931:“Si nous ne voulons pas que l’Italie perde sonmerveilleux patrimoine urbain et architectural (…)”42.

O ano de 1931 revela-se verdadeiramente auspicioso, pois é tambémmarcado pela Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos, o primeirodocumento oficial de escala internacional a recomendar o respeito pelo “carác-ter e fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança de monumentos antigoscuja envolvente merecesse ser objecto de cuidados especiais”, devendo“mesmo ser preservados alguns conjuntos e certas perspectivas particular-mente pitorescas”43. Os paralelismos com as reflexões formuladas por Gus-tavo Giovannoni são evidentes e devem-se, muito certamente, à participaçãodeste arquitecto, a encabeçar a delegação italiana, na Conferência Internacionalde Atenas (21 a 30 de Outubro) que deu origem à citada Carta44.

40 Gustavo GIOVANNONI – L’urbanisme face aux villes anciennes, S.l.: Seuil, 1995, p. 59.

41 Não quer dizer que não pudessem ser necessárias demolições parciais de áreas ou elementos, pormotivo da sua degradação ou adulteração estilística, por razões de salubridade ou por necessidadede circulação. Mas, caso assim sucedesse, essas demolições deviam ser rigorosamente controladas.Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. Cit., p. 358 – 364.

42 Gustavo GIOVANNONI, op. ct., p. 219.

43 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA – Património Arquitectónico e Arqueológico. Cartas,Recomendações e Convenções Internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 44.

44 Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 236 – 238.

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Dois anos depois, a Carta de Atenas sobre o Urbanismo Moderno vai maislonge declarando:

“A vida de uma cidade é um acontecimento contínuo que semanifesta através dos séculos por obras materiais, traçados ouconstruções, que lhe conferem personalidade própria e das quaisemana, pouco a pouco, a sua alma. Estas obras são testemunhospreciosos do passado que serão respeitados, em primeiro lugar, peloseu valor histórico ou sentimental, e depois porque algumas têm umaqualidade plástica na qual encarnou o mais alto grau da intensidadedo génio humano. Fazem parte do património humano (…)”45.

A tomada de posição da Carta de Atenas sobre o Urbanismo Modernorelativamente ao valor patrimonial das cidades, apesar de pertinente, comreflexos importantes na teoria e na prática arquitectónicas e do urbanismo dosanos posteriores – sendo hoje uma questão central dos debates à volta dotema das cidades –, não teve, contudo, repercussões a curto prazo em termosda produção de medidas oficiais e públicas concernentes à preservação deáreas urbanas antigas. Será apenas em 1976 que o consignado na Carta deAtenas se concretizará parcialmente na Recomendação sobre a Salvaguarda dosConjuntos Históricos e da sua Função na Vida Contemporânea da UNESCO(Nairobi, Quénia, 26 de Novembro). A parcialidade dessa concretização ficoua dever-se ao teor demasiado vago e generalista da Recomendação, que não serestringe às cidades, aludindo a todas as classes de construções e espaços,sejam cidades históricas, bairros antigos, aldeias ou casario, tanto em meiourbano como em meio rural, incluindo as estações arqueológicas e paleonto-lógicas e todo o povoamento humano de reconhecido valor arqueológico,arquitectónico, pré-histórico, histórico, estético ou sócio-cultural. Não deixoude ser, no entanto, um passo decisivo na direcção da consagração dopatrimónio urbano em 1987, com Carta Internacional sobre a Salvaguarda dasCidades Históricas da ICOMOS (Washington D.C., 7 a 15 de Outubro), refe-rente “a conjuntos urbanos históricos, de maior ou menor dimensão, incluindoas cidades, as vilas e os centros ou bairros históricos com a sua envolventenatural ou construída pelo homem, os quais, para além de constituírem

45 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 51.

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documentos históricos, são a expressão dos valores próprios das civilizaçõesurbanas tradicionais”46. Entre estes dois documentos chega a haver, inclusiva-mente, quem utilize a expressão “centros urbanos históricos”, definindo-oscomo aqueles que comportam um património imóvel importante, concen-trando monumentos arquitectónicos e outros edifícios, e estruturas urbanasaltamente interessantes pela qualidade da sua forma ou da sua composição epelo testemunho que eles oferecem da continuidade do devir urbano (valorestético e histórico da composição). De acordo com esta perspectiva, o valordos “centros urbanos históricos” reside menos na riqueza dos seus monu-mentos arquitectónicos que na sua identidade urbana específica, o que implicaum ambiente de vida característico no seu seio47.A própria natureza da cidadee dos conjuntos urbanos tradicionais resulta dessa dialéctica entre a“arquitectura maior” e a sua envolvente48.

Em suma, à cidade reconhece-se um estatuto patrimonial a par do dosmonumentos históricos, em virtude de também este ser portador de valoresmorfológicos, estéticos e arquitectónicos de qualidade e elevado significado,podendo esses valores resultarem de uma acção não planeada, e até anónima,e do somatório de processos históricos seculares. Isto significa que “Partesinteiras da cidade apresentam sinais concretos do seu modo de viver, uma suaforma e uma sua memória”49.

No que respeita a Évora, as primeiras impressões de uma historicidadeque não se confinava às grandes obras de arquitectura e respectivasenvolventes surgem também na década de 30 do século XX, estando bemperceptível num texto de Gustavo Matos Sequeira, com ilustrações de AlbertoSousa, intitulado precisamente Évora, em que a tónica era posta numaidentidade urbana alicerçada na “hibridês estranha” de “inspiração árabe”50 damaioria das suas habitações e na irregularidade pitoresca das suas ruas:

46 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 177 e 215.

47 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 20 e 21.

48 Françoise CHOAY, op. cit., p. 172.

49 Aldo ROSSI, op. cit., p. 143.

50 “A hibridês estranha de Évora fere-nos logo aos primeiros passos. A inspiração árabe infunde-atoda. O temperamento alentejano reflecte-a nas minúcias mais ocultas (…)”. Matos SEQUEIRA,Alberto SOUZA – Évora. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, s.d., p. 21.

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“Os enfiamentos, inimigos do pitoresco, pela monotonia dos efeitos epelo regrado das linhas, quási não existem em Évora.Tudo é esquinado,reentrante, irregular, caprichoso.As ruas como as casas, talhadas semplano topográfico nem harmonia de volumes, oferecem, com oimprevisto, um constante interesse visual. Os ressaltos são constantesnas fachadas, não sempre rectilíneos como os da Alfama lisboeta,mas também de curvas combinadas, como as da célebre “Casa doMocho”, na Selaria, que semelhava um perfil de azas (sic) arqueadasgraciosamente. (…)Os miradouros de Évora são de variadíssimo tipo. Há-os à moirisca,de paredes cerradas como torrelas, com frestas de tejolo, arrendadas.São assim o da rua do Cenáculo e o do convento de Santa Clara.Outros são de arcarias de volta inteira ou de arcos de ferradurapoisados em delicadíssimos colunelos de mármore, rematandovarandas abertas, servindo de átrio torrejado a escadarias, ouisolando-se em terraços como o da rua do Colégio, (…)”.51

Apreciação que vinha de encontro ao defendido por GustavoGiovannoni, para quem a irregularidade das ruas das cidades antigas tinha umpitoresco que se opunha à regularidade monótona do século XIX e conferiaà malha urbana um valor estético:

“(…) des effets architecturaux fondés sur le contraste des masses,sur les espaces étroits et clos, sur l’harmonie pittoresque des formesirréguliéres. Ces caracteres, aux antípodes de la banalité académiquequi prévaut trop souvent dans le traitement des villes modernes, sontdignes d’être étudiés afin de leur trouver de nouvelles applications”52.

Esta não seria, porém, a abordagem dominante, embora tenha apare-cido com frequência, sobretudo em obras de divulgação ou de carácter maisgenérico, como um segundo nível de discurso, lateral à análise e descrição dosmonumentos mais relevantes, e raramente saiu desses limites. É o que sucedeno relatório do ICOMOS (International Council on Monuments and Sites), no

51 Matos SEQUEIRA, Alberto SOUZA, op. cit., p. 22 e 23.

52 Gustavo GIOVANNONI, op. cit., p. 59.

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qual são destacados as principais fases da história da cidade através das suasedificações mais representativas, desde o chamado templo Diana para aromanização, passando pela catedral relativamente ao período medieval, atéao surto construtivo dos séculos XV e XVI, quando foram edificados osconventos dos Lóios, com a sua igreja de S. João Evangelista, do Carmo e daGraça, ou a igreja de Santo Antão, o Aqueduto, a Universidade e a igreja doEspírito Santo, o palácio dos condes de Basto, etc., às quais se somam as casasnobres como a de Garcia de Resende. São enunciados todos os imóveis quederam conteúdo ao critério IV do processo de classificação de PatrimónioMundial pela UNESCO, um dos dois em que Évora se inscreveu e que a dácomo o melhor exemplo da cidade da idade de ouro portuguesa desde adestruição de Lisboa pelo terramoto de 175553. Logo de seguida, não deixade sublinhar que a originalidade também advém da coerência da suaarquitectura menor dos séculos XVI, XVII e XVIII, que encontra a sua melhorexpressão na forma da miríade de casas baixas e caiadas de branco, comcoberturas de telha ou terraços, cujos limites estreitam as ruas54. O mesmorelatório realça ainda a disposição das ruas, de configuração medieval nocentro da cidade antiga e de expansão concêntrica, verificada até ao séculoXVII, nas restantes zonas intra-muros.

Em finais da década de 1990, numa monografia realizada por TúlioEspanca, conhecido estudioso local, publicada postumamente numa colecçãoda Editorial Presença dedicada às cidades portuguesas, a estrutura do texto, aforma de dar a conhecer a cidade, foi organizada em função, novamente, dosmonumentos eborenses considerados mais representativos para a Arte e paraa História. O título de um dos capítulos, o segundo, é particularmente sinto-mático, “Uma urbe de tradição monumental”55. Ou seja, ainda faz corres-ponder a cidade histórica às suas áreas antigas e monumentais, considerando--as as mais representativas pela sua riqueza arquitectónica, para demonstrar o

53 O outro é o critério II, que refere que a paisagem urbana de Évora permite compreender hoje ainfluência exercida pela arquitectura portuguesa no Brasil, em sítios como Salvador da Baia (inscritoem 1985 na lista do Património Mundial). http://whc.unesco.org/en/list/361 (08/03/2007), p. 1 e 2.

54 Destaca o ferro forjado das varandas como elemento uniformizador da traça arquitectónica.

55 Túlio ESPANCA – Évora. Lisboa: Editorial Presença, 1996 (2ª ed.), p. 37.

56 Jesús M. GONZÁLEZ PÉREZ, Rubén C. LOIS GONZÁLEZ – “Historic City”. Enciclopedia of theCity. Roger W. CAVES (ed.). London. New Kork: Routledge, 2005, p. 230.

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valor simbólico, artístico e económico de Évora56. Postulado que só é rompidoquando Túlio Espanca se detém na cidade Oitocentista, em breves referênciasao Palácio Barahona e ao Jardim Público57, ou em áreas urbanas maisparadigmáticas como a praça do Geraldo e o largo das Portas de Moura. Alógica discursiva de Espanca manteve o cânone da cidade monumental quecontinua a sobrepor-se a qualquer outra possibilidade de cidade histórica queporventura se pudesse encontrar em Évora. Consequentemente, protelou-seno tempo o favorecimento de um imaginário de cidade habitado apenas pelosmonumentos que aglutinam em si a essência do significado histórico da urbee que agrupados, como nas imagens seleccionadas de um guia de viagem,configuram a representação de um passado ideal. A ideia de cidade estáabstraída da sua realidade histórica concreta e secundariza um dos seusaspectos mais ricos, complexos e valiosos, o carácter miscigenado, empírico eimprovável da sua arquitectura e das suas artérias, que os autoresOitocentistas designaram de “pitorescas” e que Matos Sequeira descreveu doseguinte modo:

“Se o plano de construção não existe fundamentalmente, resultandoas casas de sucessivos acrescentamentos em que os pisos sedesigualam e em que as escadas, escaninhos e passagens abundam,a cobertura, dado o indisciplinado da planta e a necessidade deapertar os aproveitamentos, gerou os terraços frequentes, suprimindomuita vez o revestimento superior da telha, terraços que são umasvezes jardins improvisados, outras mirantes, estendedores de roupa erecintos de secagem de frutos, como as varandas alpendradas donorte. O aspecto da cidade particulariza-se assim”58.

Pelas circunstâncias da sua história individual, Évora integra-se no grupode cidades históricas habitadas que se desenvolveram em vários ciclosevolutivos59, sem a interrupção das destruições e das profanações violentasque atingiram grande parte das urbes europeias, provocadas por catástrofesnaturais ou conflitos bélicos. Até o sucedido durante a terceira invasão

57 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 40 – 42.

58 Matos SEQUEIRA, Alberto SOUZA, op. cit., p. 23.

59 Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 342.

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francesa (1808), no decorrer da qual Évora foi ocupada e saqueada peloexército napoleónico, não infligiu danos graves no edificado. Évora tambémpouco sofreu com os efeitos das transformações rápidas e por vezes radicaisque a industrialização imprimiu nos tecidos urbanos europeus. Acresce aindaque a área da cidade não teve uma expansão significativa até ao início doséculo XX60, fazendo com que a quase totalidade das remodelações eintervenções sucedidas até à centúria anterior tenham acontecido dentro doperímetro das muralhas, impedindo que se desenhasse uma mais claradiferenciação entre o casco antigo e as zonas modernizadas61. O que resultounuma cidade de perfis irregulares, em cujas habitações e outras edificaçõesconvivem elementos, espaços e corpos de diferentes épocas, em sucessivasapropriações e reaproveitamentos de pré-existências, assimiladas e adaptadasempírica ou eruditamente, conforme as necessidades ou as modas vigentes,onde um arco manuelino emparelha com uma janela moderna ou seconfronta com um painel de azulejos barroco e se sobrepõem superfíciescompostas por matérias de diferentes épocas, por vezes rasgadas por arcos deformatos variáveis – veja-se as arcadas que rodeiam a praça do Geraldo.A estapluralidade, o branco das paredes caiadas, o ferro forjado das varandas e olimite da cota dos edifícios dá uma aparente uniformidade, como sublinhou orelatório do ICOMOS de 1986. A constância desta pluralidade é, em si, comosublinhou Giovannoni, um factor uniformizador da percepção que temos dacidade.

Essas assimilações, sobreposições e reaproveitamentos procederam-sepor três vias. A primeira, a que tem mais em comum com o sucedido noutrascidades históricas europeias, decorreu das campanhas de construção que seprolongaram no tempo, devido à sua dimensão e altos custos, e que, por essemotivo, acabaram por reflectir as alterações do gosto e fizeram conviverdiferentes estilos no mesmo objecto arquitectónico. O mesmo sucedeu com

60 Em 1527, Évora era a terceira cidade mais habitada do reino de Portugal, ultrapassada apenas porLisboa e Porto, com 11 252 habitantes. Cerca de três séculos depois estava já em sétimo lugar com11 653 habitantes, atrás de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal, Coimbra e Elvas. No ano de 1911,apresentando uma população de 14 068 indivíduos estava já em 10º lugar da tabela, ali semantendo em 1940. Na segunda metade do século XX, desce para 12º lugar com 24 144habitantes e em 1981 para 13º com 34 851 habitantes.Teresa Barata SALGUEIRO – A Cidade emPortugal. Uma Geografia Urbana. Lisboa: Edições Afrontamento, 1999, p. 427 – 431.

61 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., 22; Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 344 e 345.

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as remodelações ou as reconstruções acontecidas em épocas posteriores à daconstrução original, as quais eram usualmente executadas segundo osprincípios estéticos em vigor aquando da obra, independentemente dasépocas artísticas a que pertenciam os edifícios intervencionados. Foi o que sepassou com a Sé de Évora, cuja estrutura ainda românica se cruza comelementos góticos e até renascentistas, e onde se acoplou uma abside barroca(1718-1746), riscada pelo arquitecto alemão João Frederico Ludwig (ouLudovice), por ordem de D. João V, em substituição da primitiva medieval.

A segunda via tem a ver com o estatuto de um dos principais centrospolíticos do reino que Évora adquiriu com a dinastia de Avis, sobretudo entrea segunda metade do século XV e o século XVI, com os monarcas e a cortea residirem ali por frequentes temporadas, destacando-se D. João III como orei que mais tempo aí permaneceu. Para esse fim, tendo o castelo da cidadeficado gravemente danificado aquando do conflito que opôs a facção doMestre de Avis à de D. Beatriz (infanta de Portugal e rainha de Castela), nodecorrer da crise de 1383-85, adaptou-se o convento de S. Francisco a paçoreal, realizando-se obras de remodelação e ampliação entre os reinados de D.Afonso V e D. João III (c. 1455 – c. 1556).A estadia da corte na cidade motivoumuitos nobres e altos funcionários da coroa (estatutos muitas vezes coinci-dentes na mesma pessoa), a par das famílias tradicionais (por vezes umanobreza rural) que possuíam os seus domínios nos arredores da cidade, avirem-se instalar em Évora, construindo o seu solar ou pousada, ou retomandoantigas residências familiares. Indicador do que dissemos será o considerávelaumento de casas nobres dentro das balizas cronológicas consideradas quevão ocupar, para além da área em redor do palácio real, a parte mais antiga dacidade, a zona em redor da catedral, ligada às famílias que mais cedo seinstalaram em Évora. A construção de moradias nobres e a ampliação, arenovação e o melhoramento das antigas levou frequentemente à assimilaçãode estruturas e propriedades vizinhas, operações que podiam implicar areutilização de elementos ou o acréscimo de novos ao edificado preexistente.Deste processo resultaram residências que, apesar do seu carácter nobilitado,ficaram embebidas no contínuo da malha urbana, destacando-se das restantesconstruções pela inserção de alguns elementos de maior originalidade equalidade arquitectónicas e decorativas, como arcos, janelas, galerias, mirantes,coruchéus, merlões, etc. Veja-se o exemplo do Palácio da Torre das CincoQuinas (ou dos Melos e posteriormente Cadaval) [fig. 4], assim com o da Casa

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Soure [fig. 5], que no século XVI anexaram torres da primitiva muralha62, eainda da Casa Cordovil, com o seu mirante mudéjar (séc. XVI) [fig. 6].

A terceira via foi já brevemente enunciada e deriva da cidade ter ficadolimitada à área intramuros até aos finais do século XIX, obrigando a que todasas intervenções e modernizações ali realizadas tivessem sido executadas àcusta da transformação e até da destruição de muitas preexistências.Várias dascasas nobres que sobreviveram até à actualidade, apesar de manterem ascaracterísticas da sua traça primitiva, sofreram, nas épocas posteriores ao seulevantamento, modificações de vária ordem que lhes alteraram a feição geral.A arquitectura doméstica revelou-se, de facto, particularmente permeável àsalterações das necessidades funcionais, da sensibilidade e da cultura dos seus

62 Ana Maria de Mira BORGES – Évora: da Reconquista ao século XVI. Alguns aspectos dodesenvolvimento urbano e arquitectura. Évora: Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica,Universidade de Évora, 1988, p. 160-162 e 166.

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Fig. 4 – Palácio dos Duques de Cadaval, Évora, 2006. © Fotografia do autor

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Fig. 5 – Casa Soure, Évora, 2006. © Fotografia do autor

Fig. 6 – Casa Cordovil, Évora, 2006. © Fotografia do autor

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habitantes. Diversos exemplos demonstram-no. O paço de Nuno MartinsSilveira (futuro paço dos condes de Sortelha), edifício onde hoje funciona aCâmara Municipal, ocupou, por volta de 1450, uma estrutura romana pré-existente e uma parcela da muralha do núcleo central da cidade. Depois, em1604, os seus proprietários cederam parte do corpo do palácio ao conventodo Salvador (convento de Clarissas). Quanto ao palácio dos Condes de Basto(de S. Miguel da Freiria na origem e depois dos Castros), terá provavelmenteaproveitado o que restava da alcáçova real e está alcandorado sobre panosdos muros da antiga muralha romana, muçulmana e visigótica. Passou por pelomenos duas fases de obras que, nos séculos XV e XVI, lhe imprimiram umafeição tardo-gótica (com frestas e abóbadas nervuradas), a que se acrescentou,posteriormente, uma elegante loggia de influência italianizante na frontaria, umagaleria alpendrada nas traseiras, e, no interior do paço, uma decoração depintura a fresco com motivos mitológicos e de inspiração greco-latina.A plantaé irregular, resultante dos acrescentos e das alterações de que foi alvo ao longodos séculos. O restauro ali efectuado pelo conde Vilalva, que o comprou em1958, sublinhou essa sucessão de intervenções trazendo à superfície ele-mentos que o tempo tinha ocultado, como janelas geminadas e arcos de ferra-dura que haviam sido entaipados.63 O palácio da Inquisição, construído pordeterminação de Filipe III, sob a direcção do arquitecto-mor Mateus do Couto,assimilou umas casas que pertenciam ao figaldo Tristão da Cunha e aosherdeiros do Coudel-mor, D. Francisco da Silveira64, e o antigo templo romano,este último até por volta de 1844 ou 1845, quando foi libertado desses anexospor ordem da câmara municipal e iniciativa de Joaquim Cunha Rivara65.A casasenhorial quinhentista de proprietário desconhecido sita na rua de Burgos,onde hoje estão instalados a Direcção Regional da Cultura e o Instituto doPatrimónio Arqueológico e Arquitectónico, levantada sobre uma casa romana,dos quais se podem ver alguns alçados pintados. O paço dos Melo deCarvalho, cuja estrutura data da centúria de XVI, reformada na de XVIII,incorporou uma torre medieval, quadrangular, do século XII, na Rua Nova. OQuartel dos Dragões, iniciado por ordem de D. João V em 1736, mas termi-

63 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 22 e 23.

64 Susana Pastor Ferrão MENDES – Antigo Tribunal da Inquisição. Évora: Fundação Eugénio de Almeida,2003, p. 3.

65 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 26.

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nado apenas sob a égide de D. Maria I, em 1807, foi construído sobre as infra-estruturas do Castelo-Novo, mandado levantar por D. Manuel I, do qual semantiveram visíveis, na base da nova edificação, cordões decorativos esculpidoscaracteristicamente manuelinos.

Ainda em relação à explicitação desta terceira via, de realçar as parti-cularmente intrusivas consequências da extinção das ordens religiosas em1834 e das sucessivas nacionalizações sofridas pelos seus bens imóveis até1911, que vieram permitir a demolição de algumas estruturas conventuais, dasquais se salvaram apenas os elementos tidos como artisticamente valiosos,alguns deles reintegrados noutras edificações, antigas e recentes – assim sucedeucom o convento de S. Domingos66. A finalidade destas demolições foi ganharespaço para erigir imóveis, instalar equipamentos e adaptar as vias às necessi-dades da vida moderna. Outras dessas estruturas conventuais foram adaptadasa novas funções.

Deste complexo processo histórico ficou uma arquitectura urbana delarga variabilidade morfológica que permite um outro entendimento do valorpatrimonial da cidade, mais completo e menos colado ao simbolismo históricodos grandes monumentos, embora sem negar a sua fundamental relevânciapara a história da cidade, para a história da arte e para a história entendida noseu sentido mais amplo. Um conceito de património urbano que compreendea cidade, mesmo a do passado, como uma entidade complexa e emmovimento de acordo com o estabelecido na Carta Internacional sobre aSalvaguarda das Cidade Históricas de 1987: “Todas as cidades do Mundo, porserem o resultado de um processo de desenvolvimento mais ou menosespontâneo ou de um projecto deliberado, são a expressão material da diver-sidade das sociedades ao longo da sua História”67. São organismos urbanosvivos, não restritos ao conglomerado de monumentos históricos e dotados deuma escala arquitectónica e uma estrutura de espaço específicas68. Os dife-rentes elementos que compõem o espaço urbano e que constituem aarquitectura mais comum, a dimensão material da cidade, convertem-se em

66 Demolido para permitir a abertura da praça D. Pedro IV, actual praça António Augusto Aguiar. Umdos seus portais serve ainda hoje a entrada do cemitério de Nossa Senhora dos Remédios,instalado na cerca do convento homónimo. Paulo Simões Rodrigues; op. cit., p. 57.

67 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 215.

68 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 47.

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objectos do saber. A cidade pode, sem dúvida, ser concebida como uma obrade arte que, no decorrer da sua existência, sofreu modificações, alterações,acréscimos, diminuições, deformações, às vezes verdadeiras crises destrutivas69.

Em Évora constatamos aquilo que John Ruskin intuiu no século XIX:que ao longo dos séculos, sem que aqueles que a edificaram ou habitaramtivessem essa intenção ou disso estivessem conscientes, a cidade representouo papel memorial do monumento, tanto pelas grandes construções como pelamais modesta das arquitecturas70. Confirma-se também o axioma defendidopor Gustavo Giovannoni de que a cidade histórica constitui em si ummonumento, mas é ao mesmo tempo um tecido vivo71. Desta leitura fica nãouma “cidade museu” que representa um passado ideal, mas, se quisermosmanter a expressão, uma “cidade museu” que mostra a realidade concreta doseu passado, feito de avanços e recuos, de dinamismos e paralisias, deexpansões e depressões, de grandes personalidades e pessoas comuns, todosfactores actuantes na configuração da urbe.

69 Giulio Carlo ARGAN, op. cit., p. 73.

70 Embora Ruskin não consiga perspectivas historicamente a cidade histórica que intuiu, pois defendea sua irredutível manutenção sem quaisquer alterações, devendo ser assim, como no passado,habitada. Françoise CHOAY, op. cit., p. 158 e 159.

71 Françoise CHOAY, op. cit., p. 171.

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Gonçalo Byrne nasceu em Alcobaça em 1941. É arquitecto, diplomadopela ESBAL em 1968. Após efectuar estágio com Raúl Chorão Ramalho noBairro dos Olivais e trabalhar com Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, cons-tituiu atelier próprio em 1975, iniciando em 1991 o gabinete GB Arquitectos. Foidirector da Revista JA – Jornal de Arquitectos em 1980.Tem exercido actividadedocente desde 1986, ministrando aulas e dirigindo seminários de projectoarquitectónico em várias Universidades nacionais (no Porto, na CooperativaÁrvore, entre 1986 e 1998, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Univer-sidade de Coimbra desde 1992) e internacionais (Lausanne, Nápoles, Lovaina,Barcelona, Nancy,Veneza, Gratz, Navarra, Harvard). Recebeu em 2005 o graude Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Arquitectura da Universidade

* (EEN) Arquitecta-Urbanista; Docente Convidada a tempo parcial (1982-2003) da FCSH-UNL, emacumulação com Função Pública Estatal (aposentada em 2006)

** (LFL) Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSH-UNL (Bolseira FCT); Membro do Instituto de História da Arte – FCSH-UNL

ENTREVISTAcom o Arquitecto Gonçalo Byrne

conduzida por Elisabeth Évora Nunes* e Luísa França Luzio**

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Arq. Gonçalo Byrne. © GB ARQUITECTOS

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Técnica de Lisboa. Condecorado com a Grande Ordem de Santiago da Espadapela Presidência da República Portuguesa em 2005.

Foi várias vezes premiado em Portugal (Prémio AICA/SEC em 1988,Prémio Nacional de Arquitectura em 1988 e de novo em 1993), Prémio Aquisi-ção/Arquitectura em 1995, Prémio Valmor em 2000, Prémio A Pedra emArquitectura em 2001) e no Estrangeiro (Medalha de Ouro da Academia deArquitectura de França em 2000, Prémio TECU Architecture Award em 2002).A sua vasta obra arquitectónica abarca desde projectos de pequena escala atéacções de planeamento urbano, incluíndo numerosas intervenções em Patri-mónio Arquitectónico.Tem estado representada em exposições na Europa, nosEstados Unidos e na América Latina, sendo alvo de numerosos estudos publica-dos em catálogos, artigos de revistas e outras publicações.

A entrevista que aqui se publica é um pequeno excerto da realizada emMaio de 2007, quando, durante duas tardes, nos recebeu em Lisboa, no seuatelier ao Rato, falando-nos longamente de arquitectura e de cidade, explici-tando teoricamente a fundamentação do seu projectar. A sua vivência profis-sional, permite-nos obter uma perspectiva, experienciada na primeira pessoado arquitecto, sobre a problemática do “fazer cidade hoje”.

(EEN) Gostaria de começar por te perguntar como concebes e equacionas na tua práticaprofissional quotidiana, a relação entre arquitectura e história, nomeadamente na óptica da história da cidade?

Para mim a história é a disciplina que melhor permite transpôr para oprojecto arquitectónico a noção de que se está a trabalhar no tempo.Tambéma arqueologia tem uma característica extremamente interessante, ao tornar visívele táctil uma estratificação formal temporalmente distinta, sendo em si mesmauma espécie de premonição do que vai ser a arquitectura. Eu, às vezes, brincocom os meus alunos dizendo:“Nós estamos a projectar arqueologias”. Porque,de algum modo, a arquitectura que estamos a fazer hoje é, para todos os efei-tos, apenas um estrato temporal, que permanecerá em alguns casos, enquantoforma erodida. Esta ideia de que a arquitectura também está inserida, em certamedida, no mundo da arqueologia, mas de uma arqueologia que é prospectiva,é uma ideia que me parece muito interessante.

Ao contrário da história da Revolução Francesa, que se debruça sobreum facto cultural que já não existe, a arte e a arquitectura continuam presentes,

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continuam a confrontar-nos com a sua existência material. Considero absoluta-mente necessário para um arquitecto o livro The Shape of Time de George Kubler,enquanto livro de reflexão sobre a história. Quanto a mim, é muito interes-sante, pois é um historiador a identificar como uma das grandes dificuldades dasua prática, a necessidade de lidar com os movimentos de transição histórica.Tendêncialmente, um historiador identifica os períodos históricos a partir decertas características de permanência. Ora, o arquitecto está sempre no tempoda transição, da diacronia. Isto porque a arquitectura é sempre de algum modouma transformação, ou seja, o projecto pega numa pré-existência, que tantopode ser o Museu Machado de Castro em Coimbra com dois mil anos anosde história, como pode ser um troço do deserto; e essa leitura temporal dapré-existência é processada mediante o questionar do que fazer com ela. E issoé normalmente veículado através de um programa, o que é complicado à par-tida porque os programas violentam, muitas vezes, a transformação ainda antesda fase de projecto.

Os edifícios têm todos uma vida própria, com ciclos de perda e ciclosde reabilitação, quando os têm, porque nós temos exemplos de várias cidadesque, hoje em dia, são belíssimas ruínas, mas não são mais do que isso, perderama vida. E a coisa mais danosa, para uma estrutura física, é a perda de uso. Mesmoque o uso seja a memória. Eu acho que um monumento puro tem o usoespecífico da memória, que é um uso simbólico, mas faz parte da vida humanaprecisar dessas referências. Porque a arquitectura sempre foi a expressão dasexigências do vivido. O que é impressionante na arquitectura é que o que atorna específica é tudo e nada, quer dizer é completamente transdiciplinar edepois gera sínteses, que têm que ser geridas com o projecto. E um projectoconsiste fundamentalmente nisto, pegando numa situação que existe e reelabo-rando-a, deixando qualquer coisa que não é exactamente o que existia, mesmoquando se trata de um projecto de restauro.

(LFL) Dessa matriz especificamente sincrética, que identifica para qualificar o campo de acção daarquitectura, poder-se-á inferir a obrigatoriedade de uma relação temporalmente dialógica ediacrítica face à preexistência? Quero dizer, tratando-se de uma intervenção num edifício ou numconjunto urbano com uma carga Patrimonial forte, também neste domínio faria sentido para siafirmar que “a arquitectura não deve ter má consciência por ser uma Arte”?

Leon Battista Alberti, no Cinquecentto, refere esta coisa notável: dum ladohá um restauratio, do outro há um inovatio; mas de um ponto de vista total,

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qualquer uma das operações é incompleta para não dizer impossível, porquê?Porque o restauratio, quer dizer trazer o passado para o presente, é possívelenquanto congelamento da forma física, mas não enquanto restituição de vida;eu falo sempre dessa incongruência quando, na arquitectura de todos os dias,um cliente me pede um casa “Português-Suave” ou uma casa “século XIX”. Poroutro lado, temos o inovatio, a novidade a todo o custo, a partir da tábua rasa,que também é uma operação impossível, porque a vida não se cria ex-novumdesta maneira. Mas Alberti usa uma terceira expressão, ao afirmar que, entre orestauratio e o inovatio, existe o instituitio. E “instituir” é, de facto, o que aarquitectura faz, mesmo que se trate de um restauro. E Alberti, que escreveuno século XVI, provou a sua teoria com um projecto que é o famoso TemploMalatestiano de Rimini, que é uma obra absolutamente espantosa.

Em Itália há várias cidades com gravíssimos problemas, porque têmplanos de salvaguarda do centro histórico que só permitem o restauro filoló-gico, excessivamente restritivo, ficando vazias, porque não geram vida.

(LFL) Teórica e praticamente, o projecto de intervenção deverá pois ser entendido como ummediador face ao reconhecimento da preexistência, estabilizando-se perante esta numa plataformade coexistência?

Exactamente, coexistência, porque o que é interessante na cidade é queela é histórica, precisamente, porque é dinâmica. A arquitectura interessa-memuito como forma de conhecimento, mas há nela outra dimensão que meinteressa igualmente: é que os arquitectos, nesta estratificação histórica, projec-tam e lidam com “contentores de vida”. E isto é um valor muito importante,sobretudo hoje em dia, quando a arquitectura virou quase um auto-referentede si própria, vício de arquitecto com o qual estou em total desacordo. Se mepedirem para fazer um edifício entre edifícios existentes, ao longo de uma rua,eu não defendo a condição da auto-referência, como fiz no caso da Torre deControle de Tráfego do Porto de Lisboa, antes pelo contrário, interessa-memuito mais o valor do espaço público da rua e da continuidade ou, se quiser,da sequencialidade histórica, do que do símbolo isolado.

O facto da arquitectura propôr “contentores de vida” faz com que osedifícios tenham uma vida própria: uma vez construídos eles vão permanecer,temporalmente. No entanto, eu costumo acrescentar ao Rossi, que fala da cidadecomo estrutura da permanência, algo mais que com ela coexiste, que são osfactores de vulnerabilidade. A vida vai interferir com os edifícios e em simultâ-

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neo nós sabemos à partida, quando estamos a projectar um edifício, que esseedifício vai interferir com a vida das pessoas e, às vezes, violentamente. E isso é,para mim, uma das dimensões mais nobres da arquitectura.

Há dois textos de Rafael Moneo que, a este título, considero exempla-res. Um é o que ele escreveu tomando como exemplo a mesquita de Córdoba,onde fala, pela primeira vez, sobre a vida própria dos edifícios, introduzindo esseconceito das contemporaneidades sucessivas; a mesquita parece-nos hoje uni-tária quando, na verdade, tem uma sequência de evolução temporal, ainda noperíodo árabe e, depois, com aquela intrusão da igreja, mas que Moneo defende,apesar da violência, como respeitando uma série de regras que aprendeu dalógica da mesquita. Mas o que o texto procura acentuar é, fundamente, o factode os edifícios terem uma vida própria porque contêm vida, não só estão muitopara lá da permanência e dos autores que os fazem, como estarão sujeitos asabe-se lá a quê... É claro que nós, arquitectos, queremos acreditar que umbelíssimo projecto de arquitectura é muito resistente e pode aguentar, facil-mente, sem ser destruído, mas não é garantido que assim aconteça...

Num segundo texto, escrito quinze anos depois deste, Moneo diz queos arquitectos projectam solitários. E di-lo de uma forma que considero muitobonita, que é: o edifício, uma vez construído, permanece em enorme solidão.Em solidão, porque o arquitecto que o produziu e o imaginou, tal como osconstrutores que o fizeram, têm uma vida muito mais curta do que a do edi-fício. E o edifício fica na sua enorme solidão, sujeito a reinterpretações, tantodos próprios utilizadores, como dos arquitectos que os utilizadores forem cha-mar, ou de quem tiver leituras críticas sobre ele.

Ao nível das cidades há uma vulnerabilidade, que é indiscutível e quetoda a gente aceita, que é a vulnerabilidade das grandes catástrofes.A outra quejá é menos consensual é a do mau uso e, por fim, a prior de todas, a do esqueci-mento e do abandono. É a pior de todas, porquê? Porque o esquecimento e oabandono têm, no fim da recta, a ruína e a anulação. E esse fenómeno existenos edifícios e existe ao nível da transformação da cidade.

(EEN) Ora, tudo o que já referiste obriga a uma gestão, por vezes complicada, tanto pelacoexistência das Instituições Tutelares do Ordenamento, como das do Território Edificado e Natural,nos diferentes níveis de competência política, com as pressões dos particulares e das Autarquias,na perspectiva económica e do curto prazo. Queres citar alguns dos problemas de maiorconstrangimento profissional?

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Eu estou a trabalhar com Itália há muitos anos, mas a construir só há anoe meio. É muito maior a história das coisas não feitas, do que a das já realizadas.E depois, quando se consegue ir para a frente, vem a Sovrintendenza dei beniculturali, que normalmente tem uma visão extremamente estática. Posso contaruma pequena anedota de um concurso que ganhámos em Vicenza, umconcurso para a construção de um ginásio mínimo numa escola do ensinosecundário, a qual era já uma adaptação de um antigo convento. Ora, a escolatinha um recreio, um espaço muito amplo, muito arborizado; e nós ganhámosesse concurso, propondo um cubo muito discreto, com um ripado de madeira,que se metia bem debaixo das árvores. Quando começámos a trabalhar noprojecto, este teve que ir à Sovrintendenza para aprovação e a arquitecta res-ponsável disse-me que não, porque no centro histórico não era possível fazercubos. E eu pedi-lhe imensa desculpa, mas lembrei-lhe que no centro históricode Vicenza existiam imensos cubos, desde o românico até, pelo menos, aoséculo XIX. Ela dizia-me que não eram cubos e eu insistia que sim, que eramcubos, só que um era românico, o outro era renascentista, o outro... Este pe-queno exemplo mostra, creio, como é fundamental que o projecto, hoje, saibadialogar com a história, valorizando o que existe e respeitando o que está aolado, mas afirmando a sua contemporâneidade. E sempre assim foi, exceptu-ando os revivalismos, que sabemos serem devidos ao pensamento românticoe, depois, o discurso do pós-moderno, que é muito perigoso; e o que é curiosoé que o pós-modernismo cola muito bem com este historicismo, mas muitaspessoas não têm consciência disso.

(EEN) Ao fazeres intervenções em Património Classificado como em Alcobaça, tiveste de gerir múltiplascontradições, desde as exigências legais, às expectativas criadas pela Autarquia, à mitificação domonumento, além dos hábitos de acessibilidade das empresas turísticas, tendo gerado conflitualidade.Explica um pouco, pois nas sessões públicas, pela maquete, nada o previa na tua proposta?...

Essa obra consistiu na remodelação da área envolvente do Mosteiro deAlcobaça. É espaço público e eu tenho que reconhecer que a transformação éradical. E fui confrontado com uma “Acção Cautelar”, que não teve provimento,que pedia a paragem imediata das obras e a nulidade contratual; mas isso foiexactamente quando a obra começou.

O que é curioso, hoje em dia, nestes movimentos de cidadania, é que háde tudo. E o que acontece é que, normalmente, os mais activos são os que se

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opõem. E este fenómeno é bem conhecido, como no caso da Torre Eiffel,aquando da sua construção, gerando-se um movimento que mobilizou toda ainteligência parisiense, com Alexandre Dumas à frente, a recolher assinaturaspara não a deixar construir, porque era um atentado ao património. Agora, vaihoje propôr demolir a Torre Eiffel e vais ver... E isto é muito engraçado, porquehá aqui uma coisa que é curiosa, porque a cidadania, enquanto manifestação dehábitos e memórias adquiridas, tem uma relutância, eu diria quase expontânea,à transformação.

E nós sabemos que as cidades se fazem historicamente com mudança.Hoje, Haussmann não teria feito nada; e, no entanto, a cidade de Paris hoje ébela como é bela, graças a um esventramento muito violento. Hoje, em Veneza,nunca terias tido uma igreja como a do Redentor, de Palladio, porque é comple-tamente fora de escala: do outro do lado Canal da Giudecca, tens o casario e,de repente, surge aquela explosão paladiana, fabulosa, mas que hoje não pas-sava! Está fora de escala, completamente!

No resto da Europa as pessoas passaram por duas Grandes Guerras eaperceberam-se, fruto dessa experiência violentissima, que há lógicas de rege-neração possíveis e que estas podem produzir coisas positivas. Creio que esteé um processo de aprendizagem mútua e nós temos que aprender a dialogar,a arquitectura tem uma dimensão pedagógica que é fundamental.

(LFL) Sendo arquitecto, como vê a gestão do legado do século XX em termos de PatrimónioArquitectónico? A forma como ao nível das cidades portuguesas se tem vindo a salvaguardar ou ademolir edifícios, ou o carácter de algumas das intervenções realizadas, não denuncia tambémdiferentes gradações de consciência da contemporâneidade acerca de si própria?

É uma questão que eu acho complexa, porque tem um pouco a ver como que eu dizia sobre o texto de Moneo, de que os arquitectos projectam soli-tários e os edifícios uma vez acabados ficam entregues a si próprios, não é? Euacredito que a arquitectura fica como testemunho, mas depois o seu autordesaparece, se tiver sorte ainda vive vinte e tal ou trinta anos com a sua obra,durante os quais vai sofrer imensamente se lhe alteram a janela, não é? Agora,essa obra pode, a certa altura, aparecer classificada. Como é que uma obra setorna património? Eu acho que, de algum modo, a arquitectura produz patri-mónio, o que é uma afirmação completamente contestável, porque nós sabe-mos que há arquitecturas péssimas, arquitecturas assim-assim, arquitecturas

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boas e arquitecturas muito boas. Mas eu, às vezes, até me pergunto se as quevão ser reconhecidas são aquelas que eu hoje considero muito boas. E tenhoesta dúvida, até porque este reconhecimento não depende, de todo, de mim,depende, eventualmente, de alguns colegas meus daqui a quarenta anos,depende com toda a certeza de outras gerações de historiadores.

É por isso que me parece difícil falar de património sem alguma distânciade tempo. Nós hoje já estamos muito preocupados com o DOCOMOMO,com o património Moderno, mas eu sinto que, em relação a algumas obras, hápouca distância temporal para fazer o julgamento. Esta questão é uma questãoque eu devo dizer que a mim, como arquitecto, não me angustia muito.

(EEN) Como avalias então o carácter das alterações sucessivas, explícitas ou camufladas, a conjuntosurbanos que tinham a sua coerência própria e que se vão esventrando? Estou a pensar por exemplono Bairro do Arco do Cego, mas é um fenómeno que encontramos um pouco por todo o lado...

É a história do neo-fachadismo, do qual é exemplo máximo Bruxelas, acidade mais desastrada e terrível da Europa em intervenções desse género. Eutenho uma visão em relação ao património e, concretamente, no que toca àquestão do fachadismo, que é: enquanto as fachadas pombalinas são fachadasque são projectadas claramente com esse objectivo, têm uma carga deperenidade fortíssima, muitas das fachadas que a nossa cidade construiu, já nosanos ’30 eram muito más! Quer dizer, já eram péssimas! E o que se passa é quenós estamos a conservar coisas que são péssimas! Porque a boa cidade, quenão tem por detrás a regra indiscriminada da permanência da fachada, semprese fez com contemporaneidades ao lado umas das outras.

Portanto, eu não vejo razão para que hoje não se possa fazer assim, nãotem que ser por contraste, pode ser por analogia, o que acho é que tem queser por diálogo e interpretando, correctamente, algumas regras urbanas. Nãotem que ser obrigatoriamente a manutenção formal da fachada, creio que emLisboa se tem abusado claramente dessa receita. Às vezes pergunto-me se nãovale a pena correr o risco de fazer um bom exercício de uma fachada contem-porânea e ter a coragem de demolir a outra.

O arquitecto Fernando Távora tem um texto fabuloso sobre isso, ondediz que “a fazer mal, então é preferível morrer de pé”, se não se pode fazerbem, reinterpretando. A única receita que eu sei é que é muito importantedialogar do ponto de vista formal, do ponto de vista da escala, do ponto devista da continuidade urbana, com uma grande exigência crítica e de qualidade.

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(LFL) Para terminar, gostariamos de lhe propôr que nos falasse da Torre de Controle de Tráfego doPorto de Lisboa, que mencionou há pouco, um dos seus projectos em que mais se sente a mútuareferênciação entre o edifício e a cidade...

Uma das coisas que me interessou muito quando participei neste con-curso foi a localização proposta. Em Lisboa identificamos momentos particu-lares em que se processou uma espécie de condensação de toda a contem-poraneidade, produzindo testemunhos muito icónicos. Para um edifício tercarga de monumento – quer dizer de memória, de singularidade – normal-mente estabelece uma relação muito interessante com o espaço vazio à suavolta, e isso é muito importante para mim.

Fiz uns esquiços que acompanharam a memória descritiva, em que faziauma espécie de sequência que começava com a tipologia da Praça do Co-mércio que é, claramente, uma Place-Royale em que o vazio é fundamental,porque é o chamado espaço de respeito à figura régia. Este é talvez o exemplomais extremado e radical de que para um edifício se tornar auto-referente temde ter um grande vazio à sua volta.A Praça da Comércio sendo uma das praçasmais notáveis da produção Iluminista europeia, pode ser considerada ummomento singular, como o haviam sido o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre deBelém, ou mesmo, ainda que desastradamente, o Padrão dos Descobrimentos,que têm uma relação directa com o rio, com o vazio, que é fundamental paraa sua singularidade.

Outro momento singular que então citei é o que encontramos na Ponte25 de Abril, que considero um ícone em termos de contemporaneidade. Emprimeiro lugar, não é um edifício de monumento, porque é um edifício que temum uso e normalmente o monumento afasta-se; sendo uma infra-estrutura,corresponde a um momento, justamente essencial, na génese da cidademetropolitana. Por outro lado, a Ponte é interessante porque é o cruzamentoda grande infra-estrutura da auto-estrada, que imprime uma marca na cidademetropolitana, com a infra-estrutura da memória, da história, do rio. É muitofeliz, como desenho, por duas razões: primeiro, ao ter dois pilares cria, à escalada cidade, uma nova porta sobre Lisboa; segundo, porque sendo o perfil do rioTejo um perfil irregular, a ponte, partindo da cota da margem esquerda, que éuma arriba acentuada, projecta essa cota sobre a margem direita da cidade, quetem uma pendente mais ou menos suave. Ao fazer esta passagem sobre umacidade que tem uma escala muito mais doméstica, projectando este sistema de

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viadutos, faz algo que eu acho muito bonito, porque permite uma leitura e umapercepção da cidade, que é também do nosso tempo, que é a leitura dinâmicado automóvel, a leitura em movimento. Estes valores foram muito importantespara mim quando trabalhei este projecto.

O programa do concurso era pragmático: propunha a Torre tal como ospostos de observação dos aeroportos, um edifício na base de uma grandecoluna, onde se colocavam os equipamentos tecnológicos, encimada por umdisco todo em vidro para permitir a observação. Concluí que não tinha que serassim. Podia pegar nestes espaços de trabalho e dividi-los por pisos. A Torre deControle tem uma hierarquia muito estabelecida, se reparar, respeita até ahierarquia do edifício clássico: o embasamento em pedra, o corpo do edifícioem cobre e a “cornija” em vidro, muito transparente, coincidindo com os pisosde observação, campeado com um terraço. A seguir, o raciocínio foi outro. Eraobrigatório que a Torre aparecesse na ponta de um esporão, entrando pelo rio.Qualquer que fosse o projecto que se fizesse ali, iria estar na berlinda, ficariatão destacado, teria um vazio tão grande à sua volta, que estavam reunidastodas as condições para que o edifício tivesse uma leitura um pouco “icónica”.

(LFL) Mas curiosamente essa dimensão “icónica” do edifício parece prender-se com uma leituraprévia que fez de Lisboa e que, à posteriori, propicía que o edifício estabeleça uma relação quasemetonímica com a cidade...

Hoje em dia, creio que se exagera na dimensão auto-referente da arqui-tectura, mas há certas condições e ocasiões em que a arquitectura deve assu-mir conscientemente essa dimensão. E este era, indubitavelmente, um dessescasos. Nunca estamos em condições de saber se aquilo que projectamos vai ounão assumir essa condição icónica, aí há outro factor, que é o factor tempo e ainterpretação futura; no entanto, aprendendo um pouco com o exemplo dosedifícios mencionados anteriormente e com o que os caracteriza, pareceu-meque este iria transportar sempre a carga da nossa contemporaneidade.

Pareceu-me interessante valorizar dois aspectos. Um é essa espécie detributo à importância do rio, enquanto caminho da viagem e da descoberta;também por isso a opção de fazê-la inclinar, introduzindo-lhe um certo vectordinâmico – porque se eu fizesse um edifício vertical, seria o máximo de cargaestática – e eu gostaria que o edifício pudesse insinuar que se mexe, que se vaiembora também. Por outro lado, pareceu-me igualmente importante valorizar

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algo que é talvez o lado difícil e fascinante da nossa cultura contemporânea, queé: nós estamos a viver um momento histórico em que as certezas estão muitoem causa, não é que elas não existam, a visão que tenho é que têm que serprocuradas no dia a dia.

Há um filósofo italiano, Gianni Vattimo, que escreve sobre a condição dacontemporaneidade e, falando concretamente sobre o projecto de arquitec-tura, diz que um dos grandes problemas hoje é que para além do projecto épreciso construir a fundamentação do projecto; e isto, para mim, é uma atitudemuito interessante porque, desde logo, introduz no projecto arquitectónicouma dimensão ética que me parece essencial. Numa altura em que já nãopodemos dizer que o projecto está bem porque tem pilotis, assenta numa tábuarasa, como dizia Corbusier, porque esse tempo já lá vai, hoje temos que justificara coerência do edifício mediante critérios que obviamente têm a ver com oespaço que está à sua volta, porque esse é o espaço da cidade e o espaço dacidadania.

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RESUMO

A candidatura da Baixa pombalina aPatrimónio da Humanidade foipreparada, pela Câmara Municipal deLisboa, em 2004 mas, por razõespolíticas diversas, não foi aindaformalizada. Neste artigo abordam-sealguns aspectos do trabalho realizadopelo Conselho Científico daquelacandidatura. Saliente-se adeterminação da área a classificar,incluindo, no seu interior, a “alta” daBaixa pombalina, ou seja o Chiado,bem como os aspectos historicamenteinovadores do urbanismo e daarquitectura determinadas pelo Planoda reconstrução pós terramoto de1755 que têm dois contextos: ourbanismo europeu do Iluminismosetecentista e a tradição portuguesade “fazer cidades” no vasto espaçocolonial.

ABSTRACT

The application of the area of BaixaPombalina for classification as World

Heritage was prepared by the City ofLisbon in 2004 but for several political

reasons has not yet been formalized.Thisarticle deals with some aspects of the

preparatory work conducted by theScientific Committee that prepared the

application.The area to be classifiedshould be underlined. It includes the area

of Chiado as well as the historicallyinnovative aspects of the 1755 post-

earthquake Reconstruction Plan framedby a double context: that of EuropeanEnlightenment urbanism of the 1700s,

and the Portuguese “city making”tradition developed in the vast colonial

space.

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade

Palavras-chave: Cidade Histórica; Baixa de Lisboa; Urbanismo Português;Salvaguarda; Baixa-Chiado

Key words: Historic city; Lisbon downtown; Portuguese urbanism; Safety;Baixa-Chiado

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No século XVIII português, o único acontecimento verdadeiramenteoriginal foi o terramoto de 1755 – e o nascimento de uma novacidade que disso foi consequência. Esta é a última das antigas cidadesda Europa e a primeira das cidades modernas”.

José-Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo

Alguns factos, 2004-07

Em 2004, a então vereadora da cultura da Câmara Municipal de Lisboa(CML), Eduarda Napoleão decidiu avançar com a proposta da candidatura daBaixa a Património da Humanidade, trabalhando com o apoio do Presidenteda Câmara, Pedro Santana Lopes e com a competência técnica do seu assessorJoão Mascarenhas Mateus. Este veio a ser o responsável pela preparação damesma candidatura, e sua apresentação pública, no final 2005, trabalhando comdiversos serviços da Câmara e, especialmente, com o Conselho Científico (CC)que, entretanto, fora criado, presidido por mim e integrando reconhecidosespecialistas (Ana Tostões, José Sarmento de Matos, José Monterroso Teixeira,Maria Helena Ribeiro dos Santos e Walter Rossa).

Esclareço, à partida, que, para todos os membros do CC, a intenção dacandidatura foi entendida, não uma finalidade em si mesma (apesar da impor-tância simbólica da sua desejável e esperável aprovação) mas um território depossibilidades para aprofundar o estudo da área e alertar para o seu gravíssimoestado actual.

Apesar da qualidade do dossier final da proposta, o Governo portuguêsentendeu não o enviar à UNESCO por considerar que ele carecia de uma

* Professora Auxiliar, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal

A CANDIDATURA DA BAIXA POMBALINA A PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE

Raquel Henriques Silva*

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componente essencial: “o plano de gestão” para a conservação, valorização edinamização do bem. Era verdade, mas ainda hoje estou convencida que teriasido melhor que ele tivesse sido formalmente apresentado. Iniciar-se-ia maiscedo um segundo nível de debate, com compromissos para a acção. Aliás, nãoteria sido a primeira vez que uma candidatura portuguesa seria apresentada eaprovada sem Plano de Gestão (como se sabe, é, ainda hoje, a situação de Sintra).

Em 2006, já noutro contexto de governação da Câmara Municipal, aentão vereadora Maria José Nogueira Pinto criou um grupo de trabalho coma finalidade de elaborar uma proposta adequada para a requalificação da“Baixa-Chiado”. Uma das razões apontadas para esta iniciativa foi que delapoderia resultar “o plano de gestão” exigido pelos normativos das candidaturasa Património da Humanidade. Este Grupo de Trabalho apresentou o seuRelatório final ainda em 2006, difundindo-o amplamente junto dos mais varia-dos grupos de interesse, incluindo os escassos moradores. No entanto, mercêde uma profunda crise política no seio da Câmara Municipal (que conduziu àeleição intercalar de 2007), ele ficaria detido na Assembleia Municipal, semaprovação final e sujeito a diversos questionamentos políticos e técnicos quenão tiveram ainda resposta.

Tudo leva a crer que a nova governação da CML, empossada em 1 deAgosto de 2007 (no momento em que escrevo este artigo) irá retomar o Rela-tório do Grupo de Trabalho e talvez reapreciar o estado actual da candidaturada Baixa Pombalina a Património da Humanidade. Sobre o significativo e qualifi-cado trabalho realizado, este lugar maior de Portugal irá, finalmente, entrar numciclo novo.

O que pretendo com este artigo (que passa a escrito e actualiza aconferência do curso livre do IHA, dedicado às “Cidades Portuguesa, Patrimó-nio da Humanidade”) é, primeiro, sintetizar as razões que o Conselho Científico(CC) de 2004-05 elencou para justificar a oportunidade e adequação da candi-datura. Depois, reflectir sobre alguns princípios e estratégias que decorrem daProposta de Revitalização da Baixa-Chiado.

Definição e âmbito geográfico da Baixa Pombalina

A primeira questão que ocupou o CC foi a definição da área a proporpara classificação a Património da Humanidade. A CML pensara, inicialmente,restringi-la ao território entre a Praça do Comércio e o Rossio/ Praça da Figueira,

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aquele que fora já objecto de classificação nacional: a Praça do Comércio comoMonumento Nacional (1910), o restante conjunto de arruamentos e praças,como Imóvel de Interesse Público (1978).

Na opinião unânime do CC, essa opção seria definitivamente empo-brecedora da historicidade do Bem e coarctaria as dinâmicas essenciais para asua salvaguarda. Por isso, se entendeu propor que a classificação se ancorassenum documento célebre e inquestionável: a Planta da reconstrução de Lisboa,certamente elaborada por Eugénio dos Santos, talvez já com a colaboração deCarlos Mardel, e sancionada pelo Senado da Cidade e pelo Marquês dePombal, datável de 1758. Como se sabe, esse instrumento fundador da cidadecontemporânea abrange, além da área da “Baixa”, o território da sua “Alta” ouseja a colina do Chiado, estendendo-se, para ocidente, até aos arruamentosenvolventes da Praça de S. Paulo.

Esta opção provocou inicialmente alguma resistência: afinal não era a“Baixa” a concretização maior da Lisboa pós terramoto? Não era aí que esta-vam os seus valores monumentais mais expressivos e que se podia compre-ender o urbanismo iluminista adoptado, implicando uma disciplina absolutasobre a arquitectura? Por outro lado, alargar a área ao Chiado não seria inu-

Nova Lisboa, cópia da denominada planta número 5 (?) c. 1758. Lisboa, Museu da Cidade.

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tilizar a própria designação da Candidatura que sempre se pensou como “BaixaPombalina”? Foi, como se calculará, uma reflexão muito interessante e departilha de saberes há muito adquiridos.

Embora não se tenha encontrado melhor designação do que a historica-mente consagrada (Baixa Pombalina) a verdade é que uma das particularidadesmais ousadas do plano de Eugénio dos Santos foi precisamente a sua com-plexidade topográfica, envolvendo, além do território plano da Baixa, a colinade S. Francisco e, a partir dela, o redesenho do Chiado, entrosando-se com oBairro Alto de matriz quinhentista que o terramoto em grande parte preser-vara. Descendo de novo para o Tejo, para reconstruir, com radicalidade abso-luta, o ribeirinho bairro de S. Paulo que se articula também com a retícula daBaixa, através da Praça do Município, da Rua do Arsenal e do Cais do Sodré.

Depois de ter pensado na eventualidade de designação alternativa - quemelhor representasse a autoria do plano, a sua diversidade topográfica e a suavária concretização – o CC não entendeu necessário mudar a designação de“Baixa Pombalina” para “Baixa-Chiado”, reconhecendo, embora, que esta se foipopularizando, desde a inauguração da estação de Metro com o mesmo nome.

Foi a primeira e mais saborosa vitória do CC. Hoje é consensual que a“Baixa” contém uma “Alta” e uma adjacência ocidental; que este território, comhistória, topografia e vivências bem diversificadas, foi entendido como um todo,pelos arquitectos da reconstrução da cidade; que é a sua inteireza que deve serobjecto de classificação. Pouco interessa que poucos se lembrem da autoria dadisseminação deste adquirido, antes só consensual entre alguns especialistas.

Depois de encontrada a justificação inquestionável para a opção da áreaa classificar, o CC iniciou aquela que foi a sua tarefa técnica mais complexa,desenvolvida sobretudo por Maria Helena Ribeiro dos Santos, com a boa cola-boração de técnicos do Gabinete da Baixa-Chiado: descrever, rigorosamente,com indicação dos números de polícia, o perímetro da área a classificar.

Depressa se percebeu que nem os limites recentes da Sociedade deReabilitação Urbana (SRU) para a Baixa-Chiado, nem os da área abrangida pelaactuação do Gabinete da Baixa-Chiado se adequavam aos princípios que defini-mos, visando, no essencial, garantir a mais ampla protecção das vistas sobre oBem, e, ainda, a máxima coerência topográfica e histórica da, também definidae descrita,“zona de transição”. Por isso, o trabalho desenvolvido foi meticulosís-simo, construindo-se sobre diversas visitas à vasta área abrangida. Para quemnele participou, foi a oportunidade de um reencontro com uma diversidade

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extraordinária de questões, envolvendo épocas históricas do urbanismo deLisboa, situações monumentais consolidadas mas também zonas de extremafragilidade e de incerteza em relação à sua protecção patrimonial.

Infelizmente, o facto de a candidatura ter sido detida não permitiu garan-tir a aceitação formal da proposta do CC para a zona de transição que impli-cará, aliás, a revisão de alguma regulamentação actualmente existente. Mesmoa sensibilização que o Instituto Português do Património Arquitectónico chegoua revelar em relação ao assunto – ancorada na proposta de classificação, comomonumento nacional, de toda a área a candidatar a Património da Humanidade– não teve também sequência, enredada nas indefinições e restruturações doInstituto que não estão ainda terminadas. Por isso, esta é uma das importantesquestões que terá de ser ponderada, embora grande parte do perímetrodefinido tenha sido utilizado na Proposta de Revitalização da Baixa- Chiado.

Critérios justificativos da proposta de classificação

Definida a área a classificar, os seus limites e zona de transição, o CCconcentrou-se sobre os diversos critérios determinados pela UNESCO parafundamentar a classificação do Bem. Foi um período intenso de trabalho con-junto, sobre sucessivas sugestões ou propostas dos vários membros, queconduziu a preencher-se todos os seis critérios regulamentares, embora tal nãofosse necessário.

Sendo consultáveis os textos finais produzidos, compreender-se-á quenão os transcreva aqui. Mas será útil referenciar que justificámos que a Baixa“representa uma obra-prima do génio da criatividade humana” (1º critério)pela qualidade moderna do seu plano, do ponto de vista urbanístico, arquitec-tónico e tecnológico, propondo níveis elevados de vivência económica, social,política e cultural. Salientou-se também que a eficácia do Plano se entrosa comuma tradição multissecular de “fazer cidade”, praticada pelos portugueses, des-de o século XV, em todas as regiões do seu vasto império, assumindo-se entãoLisboa como resultado último dessa extraordinária experiência, corpo e ima-gem de uma capital imperial.

Esta continuidade dinâmica foi relacionada com as diversas cidades,classificadas como Património da Humanidade, que têm matriz urbanística ehistórica portuguesa. É o caso de S. Salvador da Baía, S. Luís, Diamantina e Góias

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(todas no Brasil e objecto de artigo específico nesta Revista de Renata Araújo),Galle no SriLanka e a Colónia do Sacramento no Uruguai.

No sentido de destacar, por relacionamento, o caso de Lisboa, referiram--se experiências antecedentes (Turim, através dos contactos com Filipe Juvarra;Londres, possivelmente pela intensificação das relações com a Grã-Bretanhaatravés de D. Catarina de Bragança, rainha britânica à época do grande incêndiode 1666), considerando-se também os casos de Reims, Nancy, Lyon e, sobre-tudo, Edimburgo, cujo plano data de 1766.

Noutros momentos do preenchimento dos sucessivos critérios, salientou--se a história ímpar das decisões políticas que envolveram o delineamento e exe-cução do Plano, implicando a demolição do muito que restava da cidade baixa, aproibição de intervenções particulares, a definição conceptual e técnica de umaordem arquitectónica sobre novo loteamento. Destacou-se também a imple-mentação das infra-estruturas, a determinação regulamentar dos usos, em termosde habitação e das actividades comerciais, a distinção do centro político da capital,assumido na Praça do Comércio, de arquitectura erudita, aberta sobre o Tejo.

Além das rupturas, foram salientadas as continuidades: o facto de a Baixapombalina, apesar do corte radical que introduziu na vivência e imagem deLisboa, catalizar, não só a já referida experiência imperial de “fazer cidade”, masa própria história antiquíssima da capital. É o que acontece com a contençãodo Plano, respeitando os bairros antigos (Mouraria, Alfama Castelo. Graça),recriando percursos da cidade desaparecida, de articulação Sul-Norte e Este-Oeste (as célebres Rua Nova e Rua Nova d’El-Rei de fundação quinhentista) ereconfigurando o Terreiro do Paço, totalmente desaparecido, como praça nova,geométrica e normalizada, mas que mantém elementos essenciais do passado,como as arcadas dos pisos térreos e os torreões de fecho. Sob este aspecto,não deixou de enumerar-se a integração de elementos de arquitecturas eruditas,desaparecidas enquanto totalidade, nas novas igrejas, ou a modernidade comque a estrita malha predial foi capaz de acolher, sem perturbação, o prestigiadoConvento do Corpus Christi, incluindo a sua reconstruída igreja. Como se sabe,a poderosa laicização da imagem da cidade é um dos aspectos mais radicais damodernidade pombalina (submetendo a Igreja ao Estado) e é visível no modocomo, em toda a área da reconstrução, as numerosas igrejas se encaixam namalha constrangente do edificado.

Pormenorizou-se, particularmente, as novidades tecnológicas do Plano,relacionadas com as condutas de esgotos, o traçado das ruas e passeios e a

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prevalência do quarteirão na composição arquitectónica, no interior do qual seestruturavam os ritmos do loteamento e a tipificação das volumetrias, desde adefinição das cérceas à organização interior dos edifícios, e à estandardizaçãode diversos elementos construtivos. Neste âmbito, valorizou-se o inovadorsistema da gaiola pombalina, relacionando-o com outros sistemas afins, masdestacando a sua incontornável originalidade que tem vindo a ser objecto deconfirmação por estudiosos estrangeiros.

Apesar do CC considerar que o valor essencial da Baixa pombalina é acomplexidade, eficácia e historicidade do Plano, não deixou de registar os tem-pos longos, com contextos diversos, da sua concretização: na verdade mais decem anos, se se considerar a data da inauguração do Arco da Rua Augusta(1873). Neste âmbito, interessa salientar as conclusões de trabalhos entretantorealizados, nomeadamente pela Direcção Geral dos Edifícios e MonumentosNacionais (DGEMN) que, em 2004, dedicara a revista Monumentos (nº 21) àBaixa Pombalina.

Destaco, particularmente, a datação rigorosa das primeiras edificaçõesda Baixa propriamente dita, baseada no inventário do imposto predial Décimada Cidade que permitiu confirmar a importância da edificação na época de D.Maria I, e caracterizar os valores da arquitectura de “um segundo pombalino”.Os seus referentes de conforto, ornamentação e distinção imagética começa-ram a alterar aspectos constitutivos do Plano, mesmo em termos do loteamentoe da definição da cércea.

É nessa época, após o desaparecimento de todos os autores do Plano,que o Chiado se foi caseando, ao longo de ruas quase integralmente redese-nhadas, manejando a maior liberdade que o Plano lhe atribuíra, de modo queo pombalino conforma ali uma arquitectura que mescla casas nobres e palace-tes com prédios por vezes designados, na documentação, “casas nobres dealuguer”. Elas estendem-se à Rua do Alecrim e bairros anexos da Emenda e Ruadas Flores, enquanto, ao Cais do Sodré e a S. Paulo, se manteve, mais estrita-mente, a urbano-arquitectura inicial, baseada na figura estruturante do quarteirão.

Mas, terminado o Antigo Regime e instaurado o liberalismo, a Baixa con-tinuou a ser a imagem mais impressiva de Lisboa onde as novas operaçõesurbanísticas se conformaram ainda às normas do Plano da Reconstrução, mes-mo quando envolveram situações antes impensáveis, decorrentes da extinçãodos conventos, em 1834.Assim aconteceu, por exemplo, em relação ao imensoterritório do ex-convento de S. Francisco.

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Pense-se também no caso do Rossio, onde o edifício delineado porCarlos Mardel ou Reinaldo Manuel, para albergar a Inquisição, depois de ardido,foi substituído pelo Teatro Nacional D. Maria II, desejado por Almeida Garrettpara educação de um povo de cidadãos. A sua elegante arquitectura neo-clássica, já romantizada, da autoria de Fortunato Lodi (1846) adequou-se àampla praça que, entretanto, tivera o chão decorado com uma das primeirascomposições basálticas a preto e branco, tão características do urbanismoromântico; no fim do século, chegarão as fontes monumentais de origem fran-cesa e as primeiras demolições e reconstruções, modernizando, no gosto ecléc-tico de 1900, as fachadas e os interiores de habitações e, sobretudo, as lojas dospisos térreos.A Baixa foi então, e até aos anos de 1950, o bairro chic de Lisboa,pela riqueza burguesa das suas lojas, a boémia de cafés, teatros e cinemas, aproximidade do “país dos jornais” no Bairro Alto, mas também a vida maissoturna de bancos e da administração pública.

Valorizando as diferenças, as alterações que ao longo de duzentos ecinquenta anos ocorreram no território da Baixa, pôde, no entanto, provar-se

Vista área de Lisboa, em primeiro plano, a Praça do Comércio (c. 1960)

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que o seu valor de integridade se mantém, no essencial, intacto. Não questio-nado pelas apropriações da história, de gostos e funcionalidades novas, essaintegridade tem sobrevivido também às situações de declínio e abandono quecomeçaram a delinear-se na década de 1960, relacionadas, primeiro, com asnovas centralidades económicas e financeiras, e, progressivamente, pelo aban-dono demográfico que atinge, hoje, uma expressão dramática.

Compreende-se assim que, para todos os membros do CC, a prepara-ção da Candidatura da Baixa a Património da Humanidade teve, como já afirmei,um entendimento estratégico, recomendando-se, em diversos monumentos doano de trabalho, a urgência de se criarem instrumentos legislativos adequadospara se iniciar a valorização patrimonial do Bem. Infelizmente, até 2006, nada foifeito, tendo os dossiers da candidatura sido sepultados não sabemos onde.Quanto aos pareceres e sugestões do CC, talvez nunca tenham sido lidos porquem de direito.

O Plano Baixa-Chiado

Como inicialmente referi, em 2006, nova esperança surgiu para a salva-guarda e revitalização da Baixa Pombalina, com a criação de um grupo de tra-balho presidido pela então vereadora Maria José Nogueira Pinto que, emSetembro de 2006, apresentou, sob a forma de dossier, uma Proposta de Revi-talização para a Baixa-Chiado.

Fiz parte desse grupo de trabalho, fundamentalmente porque se enten-dia que, a elaboração de um estudo, destinado à acção, poderia vir a ser consi-derado o “Plano de Gestão” necessário para a apresentação da candidatura daBaixa a Património da Humanidade. Embora, em consciência, tenha subscrito eassumido publicamente o documento final, não me identifico com alguns dosprojectos ali definidos e que, na arquitectura geral do Plano, são consideradosfundamentais.

Trata-se, como se sabe, de questões da maior complexidade e comelevadíssimo grau de risco.A maioria dos membros daquela equipa - sobretudoManuel Salgado, enquanto arquitecto, e Augusto Mateus, enquanto economistae sociólogo – considera que a intervenção deve ser extensiva e densa, demodo a dotar aquela zona da cidade com condições atractivas para o investi-mento, para o comércio e sobretudo para o turismo. Admitem por isso, em-bora com preocupações de salvaguarda patrimonial, intervir significativamente

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quer no loteamento, quer nas funções tradicionais. Exemplos maiores da radi-calidade da intervenção são, por exemplo, a proposta de um hotel de luxo naala mais nobre da Praça do Comércio, com parque de estacionamento subter-râneo, ou a criação de um “centro comercial a céu aberto” nas Ruas da Vitóriae de Santa Justa.

A minha reserva temerosa em relação a este tipo de projectos não é,no entanto, absoluta.A degradação e abandono da Baixa é tal, em termos patri-moniais e vivenciais, que criar uma dinâmica de investimento significará, neces-sariamente, possibilidades de trabalho positivo de salvaguarda.

No entanto, preferiria uma filosofia de intervenção de pequena escala, o“fazer conjunto da concertação local” (Choay, 2005) capaz de criar um con-junto coerente de intervenções qualificadas nos numerosos prédios (alguns daprimeira época da edificação) cuja estrutura construtiva e arquitectónica éainda quase integralmente pombalina.Tal seria realizado com a eficácia de gabi-netes técnicos de acompanhamento (o da Baixa-Chiado seria bastante, enri-quecido com excelentes técnicos que andam, desmotivadamente, a vegetar emdiversos serviços), estimulando, acompanhando e servindo a extrema diver-sidade de interesses públicos e privados em jogo.

Vista geral das praças do Rossio e da Figueira

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A questão maior da salvaguarda da Baixa – que qualquer instrumentofinanceiramente poderoso poderá pôr em causa – é, no interior da coerênciado Plano, a extraordinária diversidade de situações existentes, determinandoactuações igualmente diversas. O que se agrava pelo facto que, apesar dosimensos progressos, o inventário sistemático, profundo, informado das existên-cias, não está concluído. Por isso, o empenho em promover os estudos queestão por realizar (envolvendo desde a geologia às artes decorativas, passandonão só pelas engenharias e as arquitecturas, mas também pela história econó-mica, social e cultural) irá ser condição de efectiva adequação dos planos arealizar.

A Proposta para a Revitalização da Baixa-Chiado procura integrar estanecessidade de estudo interdisciplinar com a criação de uma espécie nova deEscola de Artes e Ofícios, sedeada na zona e envolvendo, em termos de pós-graduações e mestrados, diversas faculdades que asseguram formação nosdomínios do património, estendendo-se ao design e às indústrias culturais. Estaé uma excelente proposta, como o é também a de instalar, na ala ocidental daPraça do Comércio, um núcleo do Museu da Cidade, acolhendo a grandediversidade e riqueza das colecções pombalinas. Ideia já antiga, sucessivamenteapresentada com algumas variantes, ela deverá ser, na minha opinião, mais doque o instituto museu, um centro de estudo e de divulgação, capaz de servirpúblicos muito diversos, dos cidadãos comuns e turistas aos níveis mais exi-gentes de investigação.

O que é essencial – e assim termino – é que a consciência da excepcio-nalidade histórica e patrimonial da Baixa esteja no cerne de todos os planos desalvaguarda, modernização e dinamização. Essa consciência é, em primeiro lugar,um imperativo histórico constrangente que não poderá ser mais torpedeado.Foi-o no passado, em inúmeras situações que, desde os anos 40, geraram a“Baixa betonizada” mas, há luz da nossa cultura contemporânea, não pode vol-tara a sê-lo (e, no entanto, obras em preparação ou em curso continuam ainflectir esta exigência).

A valorização dos patrimónios históricos tem vindo a adquirir – desdeos anos 80, quando se iniciou o crescimento imparável do turismo mundial –um significado económico e cultural que antes não possuía, senão em casos deexcepcionalidade monumental. Nas nossas sociedades nómadas e cada vezmais iguais entre si – em que o peso das diferenças históricas e culturais nãotem cessado de enfraquecer – os centros históricos das velhas cidades euro-

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peias tornaram-se mais-valia inquestionável. Mas, para os mais atentos, compre-ende-se já que as gerações futuras vão cansar-se desses lugares de excepçãoem que quase já só existem turistas e uma oferta cultural sem marcas departicularidade antropológica. Pelo contrário, na Baixa-Chiado, como em todosos bairros históricos de Lisboa, será ainda possível viver quotidianamente,aceitando os limites que os sítios e as casas velhas nos impõem.

Alguns, como eu, consideram que esses limites são leves e familiares epreferem-nos às comodidades indiscutíveis das cidades satélites. Por isso, olho,com inquietação, os novos hotéis de cinco estrelas que esventraram integral-mente velhos edifícios de que só resta a pele remaquilhada dos seus centená-rios corpos, ou os apartamentos de luxo que, identicamente, exigem eleva-dores, parques de estacionamento e, eventualmente, piscinas no terraço. Estassituações – todas infelizmente existentes, pelo menos em projecto – sugeremque o grande investimento (e os excelentes técnicos que o servem) negamhoje a velhice das cidades, como os homens e mulheres do jet set mundialnegam, para si próprios, o seu normal processo de envelhecimento. Será queos “não-lugares” do século XXI (Augé, 2005) se irão instalar nas pregas,artificialmente alisadas, da cidade histórica?

Bibliografia

Considerando a vastidão da bibliografia fundamental sobre o tema, remeto,os leitores interessados, para - Monumentos. Revista Semestral de Edifícios eMonumentos Nacionais, nº 21, Setembro de 2004 - que apresenta um elencoapreciável de bibliografias especializadas nos seus sucessivos artigos. As obras quea seguir destaco não são ali citadas:

AUGÉ, Marc (2005) – Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremoder-nidade. Lisboa: 90º (1ª ed.: 1992)

CHOAY, Françoise (2005) – Património e Mundialização. Évora: Casa do Sul Editora/Centro de História da Arte da Universidade de Évora.

PORTAS, Nuno (2005) – Os Tempos das Formas. Vol. I – A cidade feita e refeita.Universidade do Minho/ Departamento Autónomo de Arquitectura.

RODRIGUES, Paulo Simões (2005) – Lisboa, a Construção da memória da cidade.Évora: Casa do Sul Editora/ Centro de História da Arte da Universidade deÉvora.

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Recensões

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Peter Klein é professor na Univer-sidade de Tübingen (Alemanha). Temdedicado grande parte da sua inves-tigação ao estudo dos Beatus, esta-belecendo linhas de correlação icono-gráfica entre os diferentes manuscritosexistentes. A obra aqui apresentadaresulta do estudo e análise sistemáticada iconografia das iluminuras doApocalipse do Lorvão (Ms. Lorvão 43;Casa Forte nº160), actualmente con-

servado no IAN-TT, considerado peloautor como sendo “um dos primeiros emais sumptuosos manuscritos ilumina-dos do jovem reino de Portugal”1 bemcomo uma das raras cópias que che-garam até nós exemplificativas da tra-dição pictórica mais antiga dos Beatus.

O autor utiliza uma metodologiade trabalho concisa e clara. Partindoda análise codicológica do manuscri-to2, aborda a sua procedência, origem

KLEIN, Peter K. – Beato de Liébana:La ilustración de los manuscritos de Beato y el apocalípsis de Lorvão.Valência: Património ediciones, 2004.

1 Peter Klein, ob, cit., p.11.

2 Igualmente elaborada pelos dois autores que dedicaram uma monografia ao Apocalipse do Lorvão:EGRY, Anne de – O Apocalipse do Lorvão e a sua relação com as ilustrações medievais doApocalipse. Lisboa: F.C.G., 1972; PEIXEIRO, Horácio Augusto – Um olhar sobre a iluminura doApocalipse de Lorvão. Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superior de Tecnologia,Departamento de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicas para professorcoordenador. Acerca do tema dos Beatus consultar a obra de dois eminentes investigadores,YarzaLuaces e John Williams, que se têm debruçado sobre o estudo do conjunto destes manuscritos,com um capítulo dedicado ao Apocalipse do Lorvão (Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana:Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005; John WILLIAMS – The Illustrated Beatus: acorpus of the illustrations of the commentary on the apocalypse. London: Harvey Miller Publishers,2003.Volume V). No domínio da análise iconográfica não podemos esquecer os trabalhos levadosa cabo por Maria Adelaide Miranda sobre a iluminura românica em Portugal com referências aoApocalipse do Lorvão (Maria Adelaide MIRANDA “A iluminura românica em Portugal”, in A ilumi-nura em Portugal: identidade e influências. Lisboa: B.N., 1999. p. 166-171). Por último não possodeixar de referir a contribuição do Prof. Doutor Aires Augusto do Nascimento, nomeadamente naleitura que este faz da iluminura do fl.153v do Apocalipse do Lorvão, no qual o dragão, símbolo dodiabo, invade a esfera do celeste, salientando que “neste mundo ordenado de criaturas, não existeapenas o “alto”, isto é , o valor, o céu, mas também o “baixo”, a privação de valor, a terra, os infernos. Ainvasão da esfera superior é símbolo da subversão dos valores, de desregramento, próprio do demónio”(Aires Augusto do NASCIMENTO, “O sufrágio: o trinitário gregoriano”, in A Imagem do tempo:livros manuscritos ocidentais, Catálogo da exposição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000,p.432-434).

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e estilo, bem como as relações com ailuminura românica3 em Portugal, situ-ando-o na tradição dos Beatus exis-tentes. Um breve capítulo é dedicadoà utilização do Comentário ao Apoca-lipse por Beato de Liebana, pelos mon-ges, a partir do estudo das glosas exis-tentes no Beato do Lorvão bem comono de Alcobaça (século XIII), que per-mitem comprovar uma leitura dotexto mencionado no refeitório. Ocerne do seu estudo é tratado nocapítulo mais relevante da obra dedi-cado às iluminuras do Apocalipse doLorvão e à sua relação com os res-tantes Beatus.

Peter Klein vai distinguir três per-sonagens na elaboração do ApocalipseLorvão: o escriba, identificado no cólo-fon como sendo Egeas, e os ilumina-dores; através da análise da escrita edas tintas preta e vermelha, utilizadasno texto e nas miniaturas, contesta o

facto de alguns autores atribuírem amesma identidade ao copista e ao ilu-minador, destacando inclusive a dife-rença subjacente a nível do trata-mento plástico do rosto, patente emcertas iluminuras. Como suporte des-ta análise vai igualmente servir-se daleitura iconográfica, atribuindo ao artis-ta mais hábil as iluminuras que melhorilustram o texto bíblico bem como odo comentário e a capacidade de in-trodução de novos elementos icono-gráficos coerentes com a temáticaabordada e a um segundo artista(aquele que executa grande parte dasiluminuras) os “erros iconográficos”4 exis-tentes, considerando-o um iletrado5.

Numa tentativa de determinar oscriptorium donde saiu o Apocalipse doLorvão, Peter Klein parte das análisesestilísticas já estabelecidas, pelos au-tores que estudaram este manuscrito,com o Livro das Aves (este executado

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3 Note-se que o autor se limita a referir as relações já estabelecidas por outros investigadores,nomeadamente por Anne d’Egry e Adelaide Miranda.

4 Peter Klein, ob. cit., p.24.

5 Os resultados da investigação (a publicar) levada a cabo pela Profª Doutora Adelaide Miranda(Coordenadora pela FCSH-UNL) e pela Dra. Ana Lemos, bolseira da Fundação para a Ciência e aTecnologia (FCT), no âmbito do projecto “A cor na iluminura portuguesa: uma abordageminterdisciplinar” (POCTI/EAT/33782/2000), suscitam algumas interrogações quanto à posição dePeter Klein ao considerar todo o desvio iconográfico como um erro do iluminador ao mesmotempo que atribui a um outro artista, a capacidade de introduzir novos elementos iconográficos.Note-se que o autor considera como novos elementos iconográficos todos aqueles que se inseremna temática abordada. Esta dicotomia entre “novos elementos iconográficos” e “erros” põe de ladoqualquer capacidade inventiva e / ou de leitura por parte do iluminador. Estaremos, tal como PeterKlein o afirma, perante “erros iconográficos” (Peter KLEIN, ob. cit., p.24) ou, segundo AdelaideMiranda e Ana Lemos, perante um desvio da tradição iconográfica dos Beatos?

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no scriptorium do Lorvão) e com oSaltério de Santa Cruz (BPMP, Ms.27)6,cuja proveniência não se encontradevidamente comprovada. Assim,através da comparação estabelecidaentre a iluminura da Crucifixão doSanta Cruz nº 27 e algumas das ilumi-nuras do Apocalipse do Lorvão, avançaum novo dado na investigação dofundo pertencente ao Mosteiro doLorvão e no reconhecimento da exis-tência dum scriptorium ao considerarque o Santa Cruz nº 27 poderá tersido obra deste mesmo scriptorium,deixando em aberto a questão dofacto do estilo das figuras destes trêsmanuscritos poderem representar umcunho próprio do atelier de iluminuradeste Mosteiro.

Considera, no entanto, o estilodas iluminuras do Apocalipse do Lor-vão bastante peculiar e sem paralelotanto na escultura como na pintura,destacando a sua paleta de coresextremamente reduzida mas nãoexplora este factor, determinante noestudo deste manuscrito.

Antes de entrar propriamente naanálise das iluminuras do manuscritodo Lorvão, Peter Klein, a partir dassemelhanças e divergências aponta-das, pelos autores que se debruçaramsobre o estudo dos Beatus, com

outros manuscritos do grupo, no-meadamente com o Beato de Osma,dá-nos um panorama geral, decom-pondo-as e analisando-as uma a uma,permitindo apreender as linhas con-dutoras que unem o Apocalipse doLorvão a alguns dos Beatus e as inter-ligações existentes entre os doisRamos.

A análise das iluminuras do Apo-calipse do Lorvão e da sua relação comos outros Beatus, pertencentes tantoao Ramo I como ao II7, um capítulofundamental deste trabalho, constituíauma lacuna no estudo destes manus-

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6 MIRANDA, Maria Adelaide – A iluminura românica em Portugal. In A iluminura em Portugal:identidade e influências. Lisboa: B.N., 1999. p.136.

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critos. Peter Klein, numa linha abertapor Yara Luaces, abre uma nova pers-pectiva de abordagem na sua tenta-tiva de identificar qual a representa-ção que se encontra mais próxima daversão original, redimensionando aimportância do Apocalipse do Lorvãoface ao conjunto dos restantes ma-nuscritos, não só pelos elementosiconográficos que o ligam a uma tra-dição mais antiga (oriental e bizantina)mas também pela inovação trazida nocampo iconográfico. As estreitas rela-ções iconográficas entre o Apocalipsedo Lorvão e o Beato de Osma haviamjá sido salientadas pelos autores quese dedicaram ao estudo do grupo dosBeatus. No entanto, Peter Klein partedesse conhecimento adquirido refe-renciando e analisando os modeloscomuns aos dois manuscritos, bemcomo reafirmando o papel que tive-ram na modificação da iconografiatradicional, ao mesmo tempo que

atribui ao iluminador/ou iluminadoresdo Apocalipse do Lorvão a introduçãode alguns elementos iconográficosespecíficos a este manuscrito como,por exemplo, a figura de Cristo, debraços abertos, no fl.112r8 e a figurado cavaleiro, coroada, no registosuperior bem como a figura com umaseta cravada no peito na margemexterior do fl.115r, representação essasem paralelo noutro manuscrito dosBeatus e que, nomeadamente, nãoaparece mencionada no texto bíblicoda storia nem no comentário, cons-tituindo, a sua representação nestacena, uma incógnita É interessante oparalelismo que o autor faz entre asfiguras mencionadas do fl.115r e afigura do 1º cavaleiro do fl.108v9

interpretando-o à luz da leitura docomentário que “compara al primerjinete com las palabras de los predi-cadores, personificados en el jinete, que«al igual que flechas, persiguen el

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7 O conjunto dos Beatus encontra-se dividido em dois Ramos principais, o Ramo I e o Ramo II, quepor sua vez se subdividem em diversas ramificações. Este stemma, proposto por Peter Klein(Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005,p.45) com base num preexistente elaborado por Wilhelm Neuss, resulta da análise dos Beatusexistentes e das relações intrínsecas estabelecidas entre eles. O Apocalipse do Lorvão, únicomanuscrito português do conjunto dos Beatus, para além de ser o único do século XII que seencontra datado (1189), pertence ao Ramo I, considerado o mais próximo do protótipo.

8 Peter Klein, ob. cit., p.78, o autor refere que “los brazos extendidos de Cristo en ambos registosparecen ser también una invención del ilustrador de nuestro Beato, pues carecen de paralelo enotras ilustraciones”.

9 Yarza Luaces salienta as semelhanças, mas também as incongruências entre estas duas figuras,vendo no cavaleiro do fl.115 a representação do Anticristo e na figura que se encontra na margemexterna um dos “santos que derraman su sangre” (Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana:Manuscritos iluminados. M. Moleiro Editor, S.A., 2005, p.272). Já Horácio Augusto Peixeiro levantaalgumas questões quanto a esta atribuição referindo que “parece estranho que esta figura, tão elaborada,

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corazón humano, eliminando la incre-dulidad»”10, questionando a intro-dução deste elemento iconográfico narepresentação temática da aberturado sexto selo.

Igualmente importante para oestudo das vias iconográficas é a iden-tificação de elementos existentes noApocalipse do Lorvão e apenas visíveisnoutros Beatus do Ramo II, tal comoo “extraño disco doble”11 na figura deCristo na cena da Ceifa e da Vindima(fl.172v), permitindo, deste modo,estabelecer uma ligação com o RamoII e pressupondo a existência dumaversão original comum aos dois ramos.

Esta abordagem sistemática, apartir da análise de cada uma das ilu-minuras do Apocalipse do Lorvão,decompondo os pormenores de cada

uma das cenas, estabelecendo asligações existentes, seja com osmanuscritos pertencentes ao Ramo I,seja com os do Ramo II12, permiteuma visão mais abrangente da impor-tância do manuscrito do Lorvão noestudo do conjunto dos Beatus dan-do-lhe o lugar de destaque que estemerecia a nível internacional. PeterKlein considera as iluminuras doLorvão como “un testimonio único dela tradición original”13 mas, os ele-mentos iconográficos adicionados emalgumas das suas composições (talcomo no Beato de Osma), levam-no apensar que o modelo no qual ele seinspirou não estará tão próximo doarquétipo como até agora se supu-nha, avançando mesmo com a hipó-tese de se tratar dum manuscrito

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possa ter uma carga negativa, sabendo que o Anticristo apresenta sempre determinadas característicasiconográficas que o identificam” para além de se encontrar no plano superior da composição“normalmente reservada a figuração com conteúdo positivo” (Horácio Augusto PEIXEIRO – Um olharsobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão.Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superiorde Tecnologia, Departamento de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicaspara professor coordenador, p.107). Note-se que na discussão em torno da identificação docavaleiro do fl. 115 seria interessante ter em conta a análise iconográfica de Aires Augusto Nas-cimento ao fl.153v justificando a presença do mal na parte superior da composição (Aires Augustodo NASCIMENTO, ob. cit., p.434).

10 Peter Klein, ob. cit., p.79.

11 Peter Klein, ob. cit., p.110.

12 Peter Klein vai, no entanto, privilegiar as ligações preestabelecidas por outros investigadores, com oBeato do Burgo de Osma (Ramo I), bem como com outros Beatus pertencentes ao mesmo Ramo,na análise das iluminuras. Ainda que tenha chamado a atenção para a ligação com alguns manus-critos do Ramo II, nomeadamente através da análise de um elemento iconográfico, o “extraño discodoble” na figura de Cristo, fl.172v (Peter KLEIN, ob. cit., p.110) não alarga a investigação nesse campodescurando a existência de outros elementos de comparação passíveis de ligarem o Apocalipse doLorvão a Beatus deste ramo. Adelaide Miranda e Ana Lemos (investigação em curso no âmbito doprojecto interdisciplinar citado) estabeleceram algumas ligações com o Beato do Seu de Urgell.

13 Peter Klein, ob. cit., p.147.

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moçárabe, do século X, que poderiaser idêntico ao Beato (actualmenteperdido) oferecido em 959 ao Con-vento de Guimarães “com miniaturasabstractas y esquemáticas”14, apon-tando os erros iconográficos existen-tes como passíveis duma má inter-pretação do iluminador do modeloque tinha à sua disposição15.

Este trabalho abre novas pers-pectivas de análise ao vincar a impor-tância do Apocalipse do Lorvão noestudo do stemma iconográfico dosBeatus mas aborda muito superficial-mente a questão da paleta de coresespecífica a este manuscrito (laranja,amarelo e vermelho) bem patente naanálise que o autor faz da iluminurado fl.43r, quando refere que esta, passoa citar : “…resulta muito bem conce-bida graças ao contraste das coreslaranja e amarelo”. Fica por estabele-cer, uma ligação entre a cor utilizada ea simbologia da composição. Igual-

mente, apesar de constatar que a corse limita a preencher os fundos dacomposição e que é dada primazia aodesenho, o que considera “típico deuna tendência específica del scriptoriumde Lorvão (véase en particular el «Livrodas Aves»), pero única en el románicoportugués, a excepción de algunos para-lelos distantes en manuscritos del con-vento cercano de Santa Cruz de Coim-bra”16, o autor não procura estabe-lecer ligações artísticas.

Outro ponto a assinalar é o factode Peter Klein, ao abordar o pano-rama das relações com a escultura,não mencionar as ligações já estabele-cidas com o românico português17.

Trata-se, no entanto, de um tra-balho monográfico fundamental parao conhecimento dum manuscritoportuguês, na continuidade dos tra-balhos pioneiros de Anne de Egry ede Horácio Augusto Peixeiro.

Ana Lemos*

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14 Peter Klein, ob. cit., p.147.

15 Adelaide Miranda e Ana Lemos, na investigação levada a cabo no âmbito do projecto “A cor nailuminura portuguesa: uma abordagem interdisciplinar” (POCTI/EAT/33782/2000), analisaramalguns desses erros iconográficos numa perspectiva diferente considerando que estamos peranteum desvio, por parte do iluminador, da iconografia tradicional (trabalho a publicar).

16 Peter Klein, ob. cit., p.147.

17 Vários autores abordaram a questão das ligações existentes com a escultura do românico português,salientando as semelhanças entre o Cordeiro apocalíptico, adulto, de pontas reviradas, represen-tado na Igreja de Fonte Arcada (Póvoa do Lanhoso) e o Cordeiro do Apocalipse do Lorvão, bemcomo o apoio dos pés com arcos em ferradura, da figura de Cristo no fl.207, com o representadono tímpano da Igreja de Sepins (datado de 1080). Note-se que este campo de investigação neces-sita de um estudo mais aprofundado podendo trazer algumas luzes para a compreensão de certoselementos iconográficos patentes no Apocalipse do Lorvão.

* Bolseira de Investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), no âmbito do projecto “ACor na iluminura portuguesa: uma abordagem inter-disciplinar” (POCTI / EAT / 33782/200).

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Delineada durante o ano de 2006pelo Instituto Português de Museus(IPM) e publicada em Maio de 2007,já sob a responsabilidade do recém--criado Instituto dos Museus e da Con-servação (IMC), a revista Museologia.ptconstitui um importante contributoface à aridez editorial que se verificaem Portugal nesse domínio. A rare-facção de publicações regulares sobremuseus e museologia é, desde hámuito, sentida no meio profissional eacadémico que contou, em tempos,com o Boletim do Museu Nacional deArte Antiga, cuja reedição, já anunciada,tem permanecido por concretizar, nãoesquecendo a revista Museu, aindahoje publicada pelo Círculo Dr. Joséde Figueiredo (Grupo de Amigos doMuseu Nacional Soares dos Reis).

Ao contrário do que se verificanoutros países, esta lacuna não temsido colmatada pelas associações deprofissionais do sector, marcadas poruma maior ou menor dinâmicaeditorial. É o caso da Asociación Es-pañola de Museólogos, responsável

pela edição da Revista de Museologíaque publicou, em 2000, um númeromonográfico dedicado a Portugal eque, coordenado por Maria da LuzNolasco, teve a colaboração de diver-sos investigadores e profissionais per-manecendo, até ao surgimento deMuseologia.pt, como a mais consis-tente iniciativa editorial sobre a rea-lidade museologia nacional1.

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1 Nolasco, Maria da Luz (coord.), Museos y museología en Portugal. Una ruta ibérica para el futuro,número monográfico da Revista de Museología, Asociación Española de Museólogos, 2000

Museologia.pt. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, ano I, n.º 1 (Maio 2007)

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Dirigida por Clara Frayão Ca-macho, subdirectora do IMC, a revistaem apreço surge como um comple-mento do Boletim da Rede Portuguesade Museus, concebido como um merocanal de notícias de temas museo-logicos, cuja publicação trimestral seiniciou em 2001 e pretende, naspalavras da sua directora, “afirmar-secomo um fórum de debate de ques-tões e problemas dos museus e daMuseologia, divulgar práticas inova-doras, reflectir linhas e tendênciasculturais contemporâneas, contribuirpara o aprofundamento da reflexãomuseológica e constituir um instru-mento de referência para os profissio-nais do sector” (p.VIII). O seu público--alvo é constituído por docentes eestudantes dos cursos de Museologia,de Património, de Conservação eRestauro, podendo (e devendo) alar-gar-se a todo o tipo de profissionaiscuja actividade se relaciona com osector museológico, tais como artis-tas, designers, arquitectos ou historia-dores.

Museologia.pt organiza-se emcinco partes essenciais, cada uma comum número variável de ar tigos:“projectos e experiências”, “exposi-ções”, “história e memórias”, dossiê –museus e arquitectura” e “interna-cional”. O dossiê, que constitui o seucaderno central (pp. 105-195) traça,pela mão de museólogos e arqui-

tectos, uma panorâmica das maisrecentes intervenções nesse domínio,umas já concluídas, outras em fasefinal de obras ou em pleno estaleiro.Ao todo são nove museus, caracteri-zados pela diversidade geográfica, detutela e temática (arte, arqueologia,história, literatura e indústria) masunidos, na sua quase totalidade, porum aspecto que, como Raquel Hen-riques da Silva faz notar no textointrodutório a esta secção, se revelanuma marca identitária entre nós: aadaptação de espaços pré-existentes,quase sempre carregados de história.

A primeira parte, “projectos eexperiências” (pp. 12-49), compre-ende vários artigos de que desta-camos o de Luís Raposo onde sãoabordados, sucessivamente e em tesegeral, os aspectos conceptuais, legais,metodológicos e práticos inerentes àdefinição da lista de “bens de interessenacional”, adoptada em 2006 pelosmuseus do Ministério da Cultura,dependentes do ex-IPM. Já JoaquimOliveira Caetano reflecte sobre umprocesso de investigação que se en-contra em curso e que envolve umaequipa alargada de âmbito interna-cional: o estudo e conservação doretábulo da Sé de Évora, obra fla-menga da transição do século XVpara o século XVI, pertencente àscolecções do museu da daquelacidade.

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Em “exposições” (pp. 53-81) édado lugar de relevo a esta funçãomuseológica, sobressaindo a profundaavaliação que María Jesús Ávila faz damostra dedicada a Amadeo de Souza-Cardoso (Fundação Calouste Gulben-kian) a partir da análise do conceito eobjecto que a orientaram, dos objec-tos que a integraram e da sua dispo-sição no espaço. A insuficiência da“folha de sala” como instrumentointermédio de interpretação conta-seentre os problemas apontados pelaautora, tema que é problematizadopor Clara Mineiro num artigo sobre aimportância do texto nos museus.

O resultado de uma entrevista aAdília Alarcão, figura marcante dasúltimas décadas da museologia emPortugal, é publicado em “história ememórias” (pp. 85-101), sob a formade texto corrido, opção questionávelque levou a uma fragmentação desne-cessária dos depoimentos. Conduzidapor José Luís Porfírio e Graça Filipe,esta entrevista centra-se nos teste-munhos sobre o seu percurso e expe-riências (sobretudo no Museu Mono-gráfico de Conímbriga e no MuseuMachado de Castro), tendo sidoprivilegiados os aspectos da acção edo trabalho dos museus ligados àformação, às competências, à adminis-tração e à direcção de museus. Aindanesta secção, Henrique CoutinhoGouveia evoca sumariamente o pano-

rama museológico português doúltimo século, tendo em atenção aLei-quadro dos Museus Portuguesespublicada em 2004.

Numa abertura a realidadesextra-nacionais e a fechar a edição, arubrica “internacional” (pp. 198-219)dá a conhecer as politicas museo-lógicas e os sistemas de museus deEspanha e do Brasil com base nosartigos de Marina Chinchilla Gómez eJosé do Nascimento Júnior/MárioChagas respectivamente. Tendo emconta as afinidades de cariz cultural elinguístico mantidas com Portugal,revela-se interessante comparar aslinhas orientadoras e as concretiza-ções alcançadas por estes dois países.

São estes os conteúdos essenciaisdo primeiro número de Museologia.ptque, tirando partido da larga expe-riência editorial do antigo IPM, apre-senta-se claro e actual, ainda que pou-co arrojado sob o ponto de vista grá-fico. Tratando-se de um projectocolectivo, aberto a numerosas cola-borações (cerca de quatro dezenas),ele ressente-se um pouco pelo factode nem todos os artigos possuírem amesma substância, sendo desejávelum maior equilíbrio nas próximasedições. A ausência de uma rubricadedicada a recensões críticas, previstamas não concretizada, afigura-se tam-bém como uma lacuna a ser colma-tada futuramente. Aguardemos pois

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pelo segundo número deste projectoque, tendo em conta a sua periodici-dade anual – e não semestral como

seria preferível – deverá surgir emMaio de 2008.

Hugo Xavier*

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* Mestrando em Museologia e Património pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de LisboaBolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia

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Varia

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A fundação

No dia 4 de Outubro de 1426, orei de Portugal D. João I (1357-1433)assinava o seu testamento definitivonos paços régios da vila de Sintra. Aescolha deste local para a realizaçãode tal acto poderá não ter sido frutode um qualquer acaso; na verdade, D.João I sempre dedicou especial afeiçãoa esta montanha tão próxima deLisboa e ao palácio régio aí implan-tado, que ampliou e dotou com umconjunto de dependências de grandesignificado no contexto da própriaarquitectura civil europeia dos finaisda Idade Média. Ainda hoje existentese conservadas no seu essencial, essasdependências – estruturadas em tornode um pátio central e tendo comoregisto visual mais significativo as duasmonumentais chaminés – formam umdos conjuntos mais definidores tantoda arquitectura desse palácio quantoda efabulação e do maravilhoso que osséculos lhe criaram, de forma notável1.

Nesse princípio de Outono de1426, ao assinar o testamento muito

provavelmente no recolhido interiorde uma das câmaras do seu paláciode Sintra, D. João I cumpria um dosrituais mais importantes da sociedadetardo-medieval na preparação indivi-dual da morte, quando dela se intuía aiminência: a resolução de todos osproblemas pendentes – quer fossemespirituais quer fossem materiais – comque se pretendia alcançar primeiro apaz com Deus, depois consigo pró-prio e com a sociedade e desta formalograr, conjuntamente com a boa me-mória dos homens, a salvação eterna.

Por entre as diversas cláusulasque preenchem com normalidade ositens recorrentes nestes instrumentoslegais, avulta surpreendentemente, notestamento de D. João I, o teor e aextensão das considerações reserva-das a um único edifício – o Mosteirode Santa Maria da Vitória ou da Batalha.

O monarca, com efeito, testemu-nha na primeira pessoa tanto as moti-vações mais imediatas que o levarama erigir este edifício e as circunstânciasda sua entrega a uma ordem religiosaespecífica – a Ordem de S.Domingos –,

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1 Sobre o Palácio Nacional de Sintra, nome por que hoje é designado este paço medieval, consulte-se SILVA, José Custódio Vieira da, The National Palace, Sintra, London, Scala Books/InstitutoPortuguês do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002.

MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VITÓRIA- a fundação, o programa, os arquitectos, as fontes de influência -

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quanto o modo de sustentação eco-nómica de uma comunidade men-dicante que, por ficar anormalmenteafastada de um centro urbano, comoera de uso, deixaria de contar com osrespectivos moradores para acudiremà sua subsistência.

A explicitação tão alargada depreocupações deste tipo num testa-mento tardo-medieval, para além denão ser o mais comum, é desde logodemonstração segura da grande im-portância que o rei D. João I atribuía aesta sua fundação, até porque não erao Mosteiro da Batalha o único edifício

que havia fundado, remodelado ou,como se viu relativamente ao Paláciode Sintra, ampliado. Vale a pena, porconseguinte, deter-nos em algumasdas palavras ditadas pelo monarca aLopo Afonso e registadas naquele dia4 de Outubro de 1426 e, desta forma,acompanhar mais de perto, paramelhor as entender, as consideraçõespor ele expendidas.

«Item porque nos prometemos nodia da batalha que ouvemos com el Reyde Castela, de que Noso Senhor Deusnos deu vitória, de mandarmos fazer aahomrra da dita Nossa Senhora SamtaMaria, cuja vespera emtom era, allyaçerqua domde ella foy, huum Moes-teiro, o quall, depois que foy comesado,nos requereo o doutor Johan das Regas,do noso comelho, e frey LourençoLamprea, noso comfessor, estamdo nosem o çerquo de Mellgaço, que hordena-semos que fosse da hordem de SamDomymguos e nos duvidamos de hofazer, porque asy foy noso prometi-mento de se fazer aa homrra da ditaSenhora Samta Maria: e rrespomderamnos que a dita hordem em espeçiall eramuyto da dita Senhora, declarando nosas rrezõoes porque.As quaaes vistas pernos acordamos e prouve nos de hor-denar o dicto Moesteiro que fose dadita hordem»2.

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2 GOMES, Saúl António, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha (Séculos XIV a XVII),Vol. I, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002, p. 135-136, Doc. 52.

Batalha: Capela do Fundador. © Fotografia do autor

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Na altura em que este testa-mento foi redigido, haviam-se passadoquarenta e um anos desde o dia emque, a 14 de Agosto de 1385, o rei D.João I de Portugal se defrontara como forte exército do rei de Castela, noscampos de Aljubarrota. Recém-acla-mado rei nas cortes de Coimbra,realizadas entre Março e Abril dessemesmo ano de 1385, D. João I, que atéaí era apenas mestre da ordem militarde Avis, havia contado, entre outros,com o apoio precioso do doutor Joãodas Regras (?-1404) – notável legista eprofessor da Universidade de Lisboa edotado, como diz o cronista FernãoLopes, de grande «sotillidade e clarezade bem fallar» – para, escudado emargumentos de grande consistênciadialéctica, convencer aquele magnoconclave a considerá-lo como o únicoque, entre vários outros pretenden-tes, reunia efectivamente todas ascondições para ser escolhido rei dePortugal3.

Com efeito, o trono portuguêsencontrava-se vago desde a morte dorei D. Fernando, ocorrida em 22 deOutubro de 1383. A perspectiva –que se tornou certeza – de o rei deCastela, casado com D. Beatriz, filhaúnica do monarca lusitano, invocar os

direitos legítimos de sua mulher parase assenhorear da coroa de Portugal,tinha feito despoletar uma crise degrande amplitude que, entre váriosconfrontos militares de maior oumenor envergadura, conheceu o seumomento culminante exactamente a14 de Agosto de 1385. Nessa tarde,nos campos de Aljubarrota, o exércitoportuguês, comandado por D. João I,infligia uma pesada derrota ao maisnumeroso e melhor equipado exér-cito castelhano, obrigando o rei deCastela, também denominado João I, aabandonar apressadamente o campode batalha e a perder a esperança deascender ao trono de Portugal.

No dia daquele embate, vésperada festa de Nossa Senhora da Assun-ção, e perante a dimensão de tudo oque estava em jogo, D. João I dePortugal invocou a protecção da mãede Cristo, prometendo-lhe, em casode vitória, a construção e dedicaçãode um mosteiro. Foi o que, perante asorte favorável das armas, se apressoua cumprir.

Para concretizar essa promessa,escolheu não o próprio campo debatalha, por nele não existirem ascondições julgadas necessárias, masantes um local muito próximo, locali-

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3 Consulte-se, a este propósito, a obra de COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Rio de Mouro,Círculo de Leitores, 2005, p. 59-73.

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zado a norte, «a par da Canoeira» notermo da cidade de Leiria4. Dotadode melhores condições topográficas esobretudo de água em abundância,indispensável à vivência de umacomunidade, essa quinta foi adquiridaao respectivo proprietário, EgasCoelho, amigo e companheiro decombate do rei5. Desta forma nascia,como ex-voto de uma promessa assimcumprida, o Mosteiro de Santa Mariada Vitória.

O significado da sua construção,no entanto, não se esgotava no cum-primento honesto daquele voto; cor-porizava também, e logo desde o mo-mento da formulação dessa promes-sa, a consagração de D. João I comorei de Portugal. Com efeito, a vitóriamilitar obtida através da protecção daVirgem Maria – «nossa defensora edestes reinos», como se lhe refere opróprio monarca6 – era entendidacomo o assentimento do poder divinona legitimação definitiva de D. João Icomo rei, já que esse mesmo assen-timento, por parte do poder doshomens, primeiro fora obtido nasCortes de Coimbra. De qualquermodo, a vitória em Aljubarrota assu-mia-se, no fundo, como a consagração

da sua eleição como rei de Portugal, jáque era o sinal indispensável dalegitimação divina, conseguida atravésdo apoio da Virgem. A fundação domosteiro prometido adquiria, porconsequência, valor de símbolo – omais excelente – da nova dinastiainiciada em D. João I, expressamentelegitimada pela vontade e poderdivinos.

A ordem religiosa escolhida pelorei para povoar o Mosteiro da Batalhaacabou por ser, como o próprio mo-

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4 SOUSA, Frei Luís de , História de S. Domingos, Porto, Lello e Irmão, Editores, 1977, p. 631.

5 CORREIA, Vergílio, Batalha. Estudo Historico-Artistico-Arqueologico do Mosteiro da Batalha, Porto,Litografia Nacional, 1929, p. 9.

6 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 630.

Batalha. © Fotografia do autor

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narca uma vez mais confirma no seutestamento, a ordem dominicana. Nãoterá sido essa, no entanto, a suaintenção primeira, uma vez que só ospedidos insistentes feitos pelo seuconfessor, o dominicano frei JoãoLampreia, e pelo doutor João dasRegras durante o prolongado cercoda vila de Melgaço, no norte dePortugal, terão levado o monarca aconsiderar essa hipótese e a aceder aesses pedidos.Assim, e atendendo aosargumentos que lhe foram apresen-tados, D. João I apressava-se, em Abrilde 1388, a passar a indispensável cartade doação aos dominicanos, que logotomaram posse do mosteiro.

Por essa altura, a montagem doestaleiro e as obras de construção,cujos custos eram suportados pelasrendas do almoxarifado de Leiria,deveriam estar já em bom anda-mento. Depreende-se isto, por umlado, através da afirmação, uma vezmais, do próprio monarca que, no seutestamento, diz claramente que oMosteiro já estava começado quandoo doutor João das Regras e Frei JoãoLampreia lhe solicitaram, durante oreferido cerco de Melgaço, que odoasse aos dominicanos; por outrolado, da insistência que estes revela-ram na feitura do pedido e do alcancedos argumentos expendidos transpa-

rece a necessidade e a urgência de seanteciparem a qualquer outra iniciativaque o rei tivesse em mente, em ter-mos da doação definitiva do mosteiro,atendendo às obras já iniciadas e ànecessidade de solucionar, nesse tem-po exacto, a planificação e organiza-ção dos espaços conventuais.

Reveste-se de todo o interesse,por consequência, tanto sob o pontode vista histórico, para um melhorentendimento de mentalidades daépoca, quanto sob o ponto de vistaarquitectónico, para uma melhorcompreensão das soluções utilizadasno edifício, tentar perscrutar qual aordem religiosa a quem D. João I pen-saria entregar, afinal, a nova casamonástica.

O único argumento expendidopelo rei no seu testamento (que é,aliás, a principal causa expressa dasmuitas hesitações quanto à entregaaos frades dominicanos) relaciona-secom a intensidade da prestação doculto «aa homrra da dita NossaSenhora Samta Maria»7, a quem eleprometera dedicar o mosteiro. Porisso mesmo, e para convencer o reiD. João I a mudar de opinião, tiveram,quer o seu confessor dominicanoquer o doutor João das Regras, deinsistente e repetidamente provar-lheque «a dita hordem em espeçiall era

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7 GOMES, Saúl António, ob. cit., p. 135.

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muyto da dita Senhora»8, ou seja, quedesde o início a Ordem de S. Domin-gos tinha precisamente como umadas características mais definidoras eidentitárias da sua espiritualidade a de-voção muito intensa a Nossa Senhora.

O teor das hesitações expressaspor D. João I fazem-nos crer que aprimeira ideia ocorrida ao monarcaterá sido a de entregar o Mosteiro deSanta Maria da Vitória aos mongescistercienses. Se havia ordem religiosaque, desde as origens, se distinguirapela profundidade do culto prestadoà Mãe de Deus e pela grande ênfaseposta na sua difusão era a Ordem deCister, salientando-se de modo parti-cular, pela autoridade teológica e in-tenso misticismo emanados da suapalavra falada e escrita, a acção de S.Bernardo de Claraval. O próprio reiD. João I, por que mestre da ordemmilitar de Avis, conhecia bem deperto a regra cisterciense, cujas pres-crições serviam de norma à congre-gação militar que comandava.

A estes argumentos acresce aindao de o então abade do mosteirocisterciense de Alcobaça – D. João deOrnelas – ser não só amigo do mo-narca como seu apoiante declaradona oposição ao rei de Castela. Signi-ficativo desta amizade é o facto de obaptizado do infante D. Afonso, filho

primogénito de D. João I, morto pre-maturamente aos dez anos, se terrealizado precisamente neste mosteiro.

Encontrando-se o lugar de Alju-barrota, onde ocorrera o combate,tão próximo de Alcobaça e podendo-se inclusivamente deitar mão dosistema de filiação tão típico da orga-nização cisterciense para ligar as duascasas monásticas, parecia bem lógicoentregar a estes monges a nova fun-dação promovida por D. João I, atécomo agradecimento pelo impor-tante apoio prestado pelo referidoabade D. João de Ornelas. Além domais, o rei poderia também pouparem doações várias ou mesmo emcedências de bens de raiz indispen-sáveis à sobrevivência de uma novacomunidade de religiosos, uma vezque o mosteiro de Alcobaça era, sobo ponto de vista económico, suficien-temente poderoso para acudir comos seus rendimentos à sustentação doconvento de Santa Maria da Vitória.No seu testamento, aliás, o monarcanão se esquece de lembrar essa cir-cunstância, ou seja, a de ter sido for-çado a comprar, após autorizaçãopapal para o efeito, todo um conjuntode bens imóveis como garantia de sub-sistência da comunidade dominicana aquem acabara por entregar o referidoconvento de Santa Maria da Vitória.

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8 Id., ibidem.

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Finalmente, a existência no mos-teiro alcobacense do panteão régioonde, em mausoléu de excepcionalvalia artística, se guardava o corpo dorei D. Pedro I (1320-1367), pai de D.João I, poderia constituir razão suple-mentar para que este último pensasseem entregar o Mosteiro da Batalhaaos monges de Alcobaça, uma vezque, através desta ligação, ganhavauma nova e mais consistente visibili-dade a sua ascendência régia e semenorizava, pela mesma forma, a suabastardia pelo lado materno. Nosprimeiros tempos de governo, comefeito, D. João I sentiu recorrente-mente a necessidade de afirmar essasua ascendência real para legitimar,sob o ponto de vista do direito here-ditário, o poder de governar que nasCortes de Coimbra lhe havia sidoentregue: «filho del-rei D. Pedro»,assim mandou gravar no elmo queencima o seu brasão de armas colo-cado sobre a porta lateral da igreja doMosteiro da Batalha.

Todo este conjunto de razõespermite sustentar, como acima disse-mos, que a ideia inicial do rei D. João Iterá sido a de entregar a nova casareligiosa aos monges do Mosteiro deAlcobaça. Assim também melhor secompreende a razão pela qual (pelomenos aparentemente) o conjunto

pensado e começado a construir pelomonarca e correspondente, sem dúvi-da, ao projecto por ele financiado, nãotenha previsto várias das dependên-cias necessárias a uma comunidademendicante, mesmo que afastada deum centro urbano. Na verdade, e paraalém da igreja e sacristia, a construçãojoanina ficava, de início, limitada aoclaustro régio e, neste, à casa docapítulo, dormitório, cozinha e refei-tório, ou seja, às dependências estrita-mente necessárias a uma comunidademonástica cuja principal missão seria ade honrar a Virgem Maria através deorações propiciatórias da protecçãodivina, no cumprimento rigoroso dovoto feito por D. João I de «mandarfazer casa de oração, em a qual àhonra e louvor da dita Senhora sefaça serviço a Deus»9. De resto, aproximidade da casa-mãe de Alco-baça permitiria acudir com presteza atodas as outras necessidades materiaise espirituais inerentes à vida dessaeventual comunidade cisterciense.

Se era esta a intenção primeirado rei, a verdade é que, no final, osargumentos do Dr. João das Regras ede frei João Lampreia, apresentadosdurante os longos e excepcional-mente trabalhosos dias do cerco deMelgaço, foram convincentes.A par dadevoção mariana que era apanágio da

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9 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 631.

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Ordem de S. Domingos desde a suafundação, o apoio que, naquele finaldo século XIV, os dominicanos davamao papa de Roma contra o deAvinhão (que Castela apoiava), teráigualmente pesado na decisão de D.João I de entregar, por fim, o novomosteiro à referida Ordem de S. Do-mingos. De qualquer modo, e como oprincipal cronista desta ordem emPortugal – Frei Luís de Sousa (1555-1632) – não se esquece de anotar, osdominicanos «não davam voto nemtraça, nem ordem em cousa alguma,porque toda a fábrica estava à contadel-Rei, e dos que em seu nomepresidiam nela»10.

O programa construtivo. Os arquitectos.

Embora não haja certezas sobre adata exacta de início das obras deconstrução do Mosteiro de Santa Mariada Vitória, a formação do grande esta-leiro, adequado à grandiosidade doprojecto desejado por D. João I, ter--se-á iniciado um ano ou dois após abatalha de Aljubarrota. Como já refe-rimos (e não será demasiado insistir),é uma vez mais o próprio monarca aadiantar essa informação no seu testa-

mento, ao afirmar que o conjuntomonástico, aquando do cerco deMelgaço ocorrido ainda no ano de1387, havia já sido começado.

Nestas circunstâncias, é forçosoreconhecer e salientar, desde logo, arapidez com que o monarca se apres-sou a cumprir a promessa feita a 14de Agosto de 1385, atendendo a queas dimensões arquitectónicas e artís-ticas do projecto por si acalentado,pouco usuais na arquitectura portu-guesa medieval (só o mosteiro deAlcobaça, eventualmente, se lhe po-deria equiparar em grandiosidade eimponência), implicavam, a par dofinanciamento, um grande esforço deselecção e recolha de meios materiaise de constituição de uma equipamuito alargada de mestres, oficiais eartífices das diversas especialidadesadequadas a esse projecto.

Conhece-se, aliás, parte substan-cial da documentação relativa à cons-tituição e funcionamento desse gran-de estaleiro de obras, que o torna per-feitamente condizente com a organi-zação de estaleiros congéneres euro-peus da mesma dimensão11, bemcomo, desde há muito, a sequênciados mestres principais responsáveispela condução do projecto arquitec-

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10 Id., p. 632.

11 GOMES, Saúl António, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV, Coimbra, Instituto deHistória da Arte – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990.

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tónico.Vale a pena, de qualquer modo,recensear os arquitectos mais impor-tantes pela realização de uma dasobras de referência de toda a arqui-tectura portuguesa e, embora demodo mais restrito, também da pró-pria arquitectura gótica europeia.

O primeiro arquitecto é AfonsoDomingues, activo no Mosteiro deSanta Maria da Vitória desde o inícioda construção até ao ano de 1402,data presumível do seu falecimento. Aele se deve a concepção e a traçageral do complexo monástico quecompreendia, como já se afirmou, aigreja e a sacristia e, a par delas, oclaustro com as dependências ineren-tes à orgânica conventual, isto é, a casa

do capítulo, o dormitório, a cozinha eo refeitório. Cerca de 14 anos passa-dos a dirigir os trabalhos de constru-ção permitiram-lhe erguer grandeparte da igreja, a sacristia e duas alasdo claustro (a virada a Nascente e avoltada ao Sul), tendo ainda iniciado acasa do capítulo.

Em 1402 sucede-lhe Huguet (?-1438), um mestre estrangeiro que seencontrava já a trabalhar, com AfonsoDomingues, nas obras batalhinas, em-bora sem exercer funções de chefia.Durante os longos 36 anos em que semanteve operante na direcção doestaleiro coube-lhe finalizar, natural-mente, o trabalho iniciado pelo pri-meiro arquitecto, concluindo, dessa

Batalha: lavabo do claustro régio. © Fotografia do autor

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forma, a igreja, o claustro, a casa docapítulo e demais dependências. Fê-lo,porém, introduzindo sempre que pos-sível, de forma sábia e articulada, for-mulações arquitectónicas e decora-tivas inovadoras e completamentediferenciadas das de Afonso Domin-gues, cuja formação técnica nãoesconde um sabor mais arcaizante: aarrojada abóbada que cobre, numúnico lanço, a casa do capítulo é, nesteaspecto, a demonstração primeira emais evidente das capacidades dosegundo mestre da Batalha. Na ver-dade, o tipo de cobertura que AfonsoDomingues previra para este espaço– o esquema tradicional de umaabóbada apoiada em dois conjuntosde colunas centrais, como se vê nacasa do capítulo do Mosteiro de Alco-baça – foi ultrapassado pelo lança-mento de uma única abóbada estre-lada, sem quaisquer apoios para alémdos muros da própria quadra capi-tular, num desafio técnico que aindahoje suscita surpresa e admiração.

Mestre Huguet não se limitou, noentanto, a completar, mesmo queinovando, o programa delineado porAfonso Domingues. Deve-se-lhe tam-bém, por encomenda directa de D.João I e de seu filho o rei D. Duarte(1391-1438), a planificação de raiz deduas capelas de planta centralizada: aCapela do Fundador e a(s) Capela(s)Imperfeita(s). A primeira, pensada por

D. João I numa fase mais tardia dafundação do Mosteiro da Batalha paraseu túmulo e da mulher, a rainha D.Filipa de Lencastre, e para panteão dasua linhagem e de outros príncipes,pôde Huguet realizá-la na totalidade;a(s) segunda(s), encomendada(s) pelorei D. Duarte com idêntica finalidadede panteão familiar, ficaram inacaba-das até aos dias de hoje. Essa é, aliás, arazão para o nome de Capelas Imper-feitas que a História lhes reservou.

Enquanto a Capela do Fundadordesenha, em planta, um quadrado,transformando-se o volume em octó-gono apenas ao centro – como dosselgrandioso que impregna de sagrado otúmulo dos Fundadores e os glorifica–, as Capelas Imperfeitas assumemdesde logo uma planta octogonal,colocando-se as diferentes capelasfunerárias numa disposição radianteque torna mais dinâmico este espaço,ao mesmo tempo que ganham umaautonomia e individualidade inexis-tentes na Capela do Fundador. E seHuguet tivesse logrado concluir estaobra (só as mortes quase simultâneasdo rei D. Duarte e do próprio arqui-tecto terão impedido que tal se con-cretizasse), a abóbada que a deveriacobrir constituiria um outro mo-mento de grande arrojo e criativi-dade, atentas as dimensões do vão,ainda hoje causadoras de algumespanto.

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Huguet, na plena posse dos seusrecursos técnicos e artísticos, amadu-recidos nos muitos anos à frente doestaleiro batalhino, levou até às últi-mas consequências, nas Capelas Im-perfeitas, a proposta que, esboçada naousada abóbada da casa do capítulo,havia sistematizado logo de seguida nasingular Capela do Fundador.A impor-tância inovadora daquele projectoencomendado pelo rei D. Duarte ava-lia-se tanto melhor quanto, no con-texto peninsular, o seu panteão – asCapelas Imperfeitas – é precoce emrelação a outras estruturas semelhantesque então foram sendo construídas,como é o caso das capelas funeráriasde D. Álvaro de Luna e de D. Alonsode Cartagena, na catedral de Toledo,ou da Capela do Condestável, nacatedral de Burgos.

O terceiro mestre a dirigir o esta-leiro de obras do Mosteiro da Batalhaé Martim Vasques, cuja actividade,exercida entre 1438 e 1448, se terálimitado a concluir trabalhos já emcurso nas dependências conventuais,executadas durante a regência doinfante D. Pedro (1392-1449), irmãodo rei D. Duarte. Não se lhe podeatribuir, na verdade, qualquer inter-venção de maior consistência, seja em

termos estruturais seja em termospuramente plásticos ou decorativos.Osconturbados tempos políticos, culmina-dos com a morte do infante D. Pedrono embate de Alfarrobeira, tambémnão se mostraram os mais favoráveispara o lançamento de qualquer ini-ciativa de fundo que não apenas acontinuidade do que por então se fazia.

Maior relevância adquire o seusucessor e sobrinho, Fernão de Évora,que, como quarto mestre, desempe-nhou o cargo de 1448 a 1477. A elese deve a construção do segundoclaustro do Mosteiro da Batalha:conhecido por claustro afonsino, donome do rei – D. Afonso V (1432-1481) – que o terá financiado, introduzuma linguagem estética nova que, noseu despojamento formal, se dife-rencia por completo das propostasnervosas e movimentadas de mestreHuguet.Ao mesmo tempo, Fernão deÉvora ergue pela primeira vez umclaustro com dois pisos, segundo umaproposta cujos contornos arquitectó-nicos se aproximam de soluções já hámuito consolidadas na arquitecturaquer religiosa quer civil do Levantepeninsular, particularmente da cidadede Barcelona e da sua área de in-fluência12.

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12 Consulte-se, sobre este assunto, o que já escrevemos em O Tardo-Gótico em Portugal.A Arquitecturano Alentejo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 41-50 e 79-90; e em Para um Entendimento daBatalha: a influência mediterrânica, Actas do III Encontro sobre História Dominicana,Tomo 1, ArquivoHistórico Dominicano Português,Vol. IV/1, 1991, pp. 83-88.

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Apesar da sua simplicidade e des-pojamento, o claustro afonsino doMosteiro da Batalha não perde nacomparação com a opulência dovizinho claustro real, a que se encostapelo lado sul. Enquanto este, apesarda riqueza e variedade de soluçõesque tanto Afonso Domingues quantoHuguet lhe plasmaram, representa umponto de chegada, aquele torna-seum ponto de partida: após ele, todosos claustros se irão erguer preferen-cialmente em dois andares e, maisainda, será acrescentado, a muitosoutros, o segundo andar de que nãodispunham13.

Vale ainda a pena acrescentar queeste claustro afonsino, cuja constru-ção, por há muito habitarem o con-vento, terá sido orientada quase decerteza pelos dominicanos, respondenão só melhor às exigências da suavivência comunitária, devido à dispo-sição de celas individuais no segundopiso que permitem o estudo e a me-ditação solitários, como assinala umanova vivência conventual dos valoresevangélicos da pobreza e da simplici-dade de vida por que muitos cristãos,quer religiosos quer mesmo laicos,clamavam já no século XV.

Após o afastamento do mestreFernão de Évora da direcção do esta-leiro, segue-se um período de algumafrouxamento nas obras do Mosteiroda Batalha, visível na instabilidade dosmestres. «Em menos de 8 anos(1477-1485), são nomeados quatroarquitectos, quando os quatro mes-tres anteriores tinham coberto umperíodo de quási um século»14.

Deste modo, o último nome que,pela qualidade do seu trabalho, im-porta fazer sobressair nesta sequênciados principais mestres responsáveispela construção de uma imagem con-sistente do Mosteiro da Batalha, den-tro ainda dos pressupostos da arte eda estética góticas, é o de MateusFernandes, activo entre 1490 e 1515,ano em que faleceu, a 10 de Abril.Deve-se-lhe o segundo grande mo-mento construtivo das Capelas Im-perfeitas, realizado, após o longo hiatoque a paragem da sua construçãorepresentou, em obediência ao desejoda sua finalização ordenada e finan-ciada pelo rei D. Manuel I (1469-1521).

Se Mateus Fernandes, a exemplodo arquitecto que primeiro as haviaconcebido – mestre Huguet –, não lo-grou também alcançar a sua conclu-

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13 SILVA, José Custódio Vieira da, Para um Entendimento da Batalha: a influência mediterrânica, ob. cit.,pp. 87-88.

14 SANTOS, Reinaldo dos, Batalha. Guia de Portugal. II. Extremadura,Alentejo, Algarve. Lisboa: BibliotecaNacional de Lisboa, 1927, p.674.

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são, por desinteresse posterior domonarca, pôde, no entanto, deixarbem expressa a sua marca pessoal,criando, particularmente no magnifi-cente portal de entrada, uma dasprimeiras e mais originais manifesta-ções da Arte Manuelina. Este portal,pelas suas grandes dimensões (cercade 15 metros de altura por 7,5 me-tros de largura), pela sua dupla afir-mação para o exterior e para o inte-rior, pela grandiosa obra escultóricaem que todo ele se converte, fragili-zando-o e impedindo a colocação dequaisquer portadas de madeira, trans-forma-se, afinal, num arco de triunfocelebrativo da realeza de Portugal,muito particularmente da pessoa dorei D. Manuel I, a quem uma sucessãode acasos (para ele felizes) fizeraaceder ao trono15. O trabalho com-plexo das bases, a molduração dife-renciada das arcarias, a decoraçãovariadíssima e requintada dos inter-colúnios (a hera, a alcachofra, os fes-tões, as sugestões têxteis, os entran-çados de cestaria), o talhe de relevoora superficial ora profundo quearranca contrastes violentos de luz esombra – tudo se conjuga para fazerdeste arco triunfal um dos momentos

de maior criatividade da Arte Manu-elina e talvez mesmo, pelo seu teoreminentemente celebrativo, a suaobra mais grandiosa.

Ao arquitecto Mateus Fernandesse poderá atribuir também o preen-chimento das bandeiras de grandeaparato do claustro régio, portadorde uma gramática decorativa igual-mente denunciadora daquela mesmalinguagem tão característica da arteportuguesa do reinado de D. Manuel I.A grilhagem das bandeiras, com efeito,é constituída por troncos e festõesondulantes que, ao entrecruzar-se,emolduram romãs mas também cruzesde Cristo e, em cada arcada central,marcando o eixo da quadra correspon-dente, uma discreta esfera armilar16.

Além destes arquitectos princi-pais, vários outros, de menor nome-ada, dirigiram ao longo de todo oséculo XV as demoradas obras doMosteiro de Santa Maria da Vitória. Asua participação ter-se-á limitado,tanto quanto é possível inferir dadocumentação escrita e da análisearquitectónica, a dar continuidade aostrabalhos em curso. No entanto, umdos aspectos relevantes suscitadospela prolongada actividade do esta-

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15 Sobre o alcance e a extensão deste problema, consulte-se SILVA, José Custódio Vieira da, AImportância da Genealogia e da Heráldica na Representação Artística Manuelina. O Fascínio do Fim,Lisboa: Livros Horizonte, 1997, pp. 131-151.

16 A importância atingida pelo arquitecto Mateus Fernandes fica bem patente no facto de ser o únicoa ficar sepultado no interior da igreja do Mosteiro da Batalha, em campa rasa situada na nave domeio, ao pé da porta principal.

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leiro batalhino é o facto de se teremoriginado laços familiares entre diver-sos artistas, destacando-se, entre to-dos, um tal mestre Conrate cujas duasfilhas se haveriam de casar, uma, BrancaEanes, com o carpinteiro João de Sintra,outra, Catarina Eanes, com o vitralistamestre Guilherme. Deste últimocasamento nascerá Isabel Guilherme,que irá desposar o último arquitectocom intervenção digna de realce nasobras do Mosteiro de Santa Maria daVitória e já aqui referido – MateusFernandes. Quanto ao citado mestreGuilherme, apesar de ser vitralista deofício, chegou a assumir em 1480(embora por pouco tempo) a direc-ção do estaleiro. Este facto, se por umlado credita o seu valor e influência,indicia também que os trabalhos maisimportantes então a decorrer poresses anos finais do século XV deve-riam ser os da feitura e colocação devitrais, de acordo com um programaque, pela quantidade e qualidade, serevelava completamente inédito naarte medieval portuguesa.

As fontes de influência. As repercussões.

A dimensão grandiosa do Mos-teiro de Santa Maria da Vitória, poucocomum nos monumentos medievais

portugueses, aliada à sua qualidadearquitectónica e estética inovadora,tem suscitado, entre vários historia-dores da arte tanto nacionais comoestrangeiros, opiniões divergentessobre as suas fontes de influência.Muito cedo, aliás, a importância desteconjunto monástico medieval foi re-conhecida e discutida pela sociedadeculta europeia dos finais do séculoXVIII e princípios do século XIX,através do excelente e inédito tra-balho de levantamento arquitectónicorealizado por James Murphy (1760-1814), um arquitecto irlandês entusi-asta da arquitectura medieval (e muitoespecialmente da arquitectura gótica).O livro daí resultante, publicado emfascículos entre 1792 e 1795, paraalém da sua repercussão imediata naInglaterra e da influência directa sobrea geração romântica portuguesa deensaístas, historiadores, documenta-listas e estetas da primeira metade doséculo XIX, entusiasmou de modoparticular historiadores da arte e daarquitectura alemãs, ao ponto de deleser feita uma tradução em alemão, em181317.

Este reconhecimento quer inter-nacional quer nacional da importânciae da originalidade do Mosteiro daBatalha tornou-o alvo, a partir de

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17 PEREIRA, Paulo, James Murphy e o Mosteiro da Batalha. Lisboa: Instituto Português do PatrimónioCultural (IPPC), 1989, pp. 16-17.

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1840, de profundas e consistentesobras de restauro, numa acção pio-neira em Portugal. Particularmentenotável foi o trabalho consciencioso ede grande qualidade desenvolvidopelo primeiro restaurador, Luís daSilva Mouzinho de Albuquerque, entre1840 e 1843 e que, como o próprioconfessou, teve como fonte de inspi-ração os desenhos do livro de JamesMurphy.

Apesar de tudo, a continuaçãodos restauros levou à destruição devárias instalações conventuais locali-zadas a nascente do mosteiro, numaatitude impregnada por uma menta-lidade romântica que via o Mosteirode Santa Maria da Vitória quase sócomo um símbolo histórico e nacio-nalista, esquecendo a vivência da co-munidade dominicana durante váriosséculos. Contribuiu também para estaatitude o facto dessas instalaçõesdemolidas (de que fazia parte outroclaustro) serem do século XVI e nãojá do estilo gótico, que apaixonavaparticularmente os restauradores18.

Por estas mesmas razões, convirátambém dizer desde logo que, se aqualidade dos levantamentos e dese-

nhos realizados pelo referido JamesMurphy não pode, de forma nenhu-ma, ser posta em causa, já a fidelidadede representação do edifício originalterá de ser equacionada com maiorprudência. Os esboços e apontamen-tos por ele feitos no local, onde per-maneceu treze semanas, foram depoiscompletados no seu ateliê em Lon-dres segundo uma idealizada per-feição arquitectónica e gráfica que nãocorrespondia de todo à realidadefísica do mosteiro19.

Luís da Silva Mouzinho de Albu-querque e os seus continuadores norestauro do Mosteiro de Santa Mariada Vitória, ao seguirem de perto aspropostas de James Murphy, poderãoter sido os responsáveis pela intro-dução de elementos formais estranhosao edifício original e, desse modo, peloacentuar do tom decorativo inglêsque, muito cedo, alguns críticos seapressaram a reconhecer, filiando aarquitectura do Mosteiro da Batalhadirectamente nas influências doperpendicular20. O facto de o rei D.João I ter sido casado com D. Filipa deLencastre (1360-1415), filha do duqueJoão de Lencastre e neta de Eduardo

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18 NETO, Maria João Baptista, O Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória de 1840 a 1900.Cadernos de História da Arte. Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Letras de Lisboa,1991, p. 232.

19 NETO, Maria João Baptista, James Murphy e o Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória noSéculo XIX. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 45.

20 Id., ibidem.

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III de Inglaterra, também influenciouaprioristicamente o sentido crítico dealguns historiadores que considera-ram esta circunstância razão suficientepara por si só poderem afirmar, semquaisquer hesitações, que o arqui-tecto responsável pelo plano e cons-trução do edifício havia sido um mes-tre inglês, acompanhando, para esseefeito, a rainha D. Filipa de Lencastrena sua vinda para Portugal21.

Hoje não subsistem dúvidas nemquanto à pessoa do primeiro arqui-tecto do Mosteiro da Batalha, AfonsoDomingues, nem quanto à sua nacio-nalidade portuguesa. Embora não seconheça o seu trajecto profissionalnem, muito menos, onde teria feito asua aprendizagem, deveria ser, neces-sariamente, um mestre de reconhe-cido merecimento, senão mesmo ode maior competência em Portugal,para o rei D. João I lhe ter entregue aconcepção e direcção inicial dagrande obra régia, mantendo-o sem-pre, até à sua morte, na direcção doestaleiro.

Sabe-se que Afonso Dominguespossuía uma casa em Lisboa, na fre-guesia da Madalena, onde eventual-mente residiria. Conhecia, portanto

(se é que não terá mesmo feito nela asua aprendizagem), a obra que, pelosmeados do século XIV, o rei D.AfonsoIV (1291-1357) mandara erguer na Séromânica de Lisboa – uma cabeceiragótica, constante de uma abside e deum deambulatório com capelas radi-antes, obra que no reinado de D. JoãoI, mercê de um terramoto, houve quereconstruir em parte. Este programamonumental, adoptando uma lingua-gem formal e estética ao nível damelhor arquitectura episcopal euro-peia de então, revelava-se igualmenteinovador no contexto da arquitecturagótica portuguesa (apenas o mosteirocisterciense de Alcobaça, iniciado em1178, apresenta uma estrutura destetipo). Como afirma Mário Chicó, esta«nova cabeceira representa o únicoesforço realizado em Portugal para seatingir a monumentalidade das gran-des igrejas góticas do Norte [daEuropa]»22.

Poder-se-á pensar, inclusivamente,que a outra obra arquitectónica dereferência no final do século XIV, man-dada erguer pelo rei D. Fernando(1345-1383) para albergar o seumonumento funerário – o chamadoCoro Alto da igreja de S. Francisco de

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21 SÃO LUIZ, Frei Francisco de, Memoria Histórica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Mariada Victoria, chamado vulgarmente da Batalha. Obras Completas.Tomo I e Tomo X. Lisboa: ImprensaNacional, 1827, pp. 282-283.

22 CHICÓ, Mário T., A Arquitectura Gótica em Portugal. 3ª ed., Lisboa: Livros Horizonte, 1981, p. 129.

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Santarém – tenha sido da responsabi-lidade do arquitecto Afonso Domin-gues. Com efeito, o trabalho por elerealizado no mosteiro de Santa Mariada Vitória não só acompanha deperto, nas soluções formais e deco-rativas, algumas das propostas maisidentificadoras dos referidos monu-mentos de Lisboa e de Santarémcomo denuncia também, em certosaspectos, uma linguagem algo arcai-zante, integradora de um discursobem característico da arte portuguesamedieval. Nada, nas suas propostaspara o Mosteiro da Batalha, denunciaa influência do mundo gótico inglês.

O conhecimento da nacionali-dade de Huguet, segundo mestre doMosteiro da Batalha, revela-se maisproblemático. É certamente de ori-gem estrangeira, já que o seu nomenão deixa quaisquer dúvidas. Des-conhece-se até ao momento, no en-tanto, a sua nacionalidade precisa:inglesa, francesa ou catalã, têm sido aspropostas avançadas, com argu-mentos de maior ou menor consis-tência, por diversos historiadores23.

A verdade é que a sua interven-ção, longa de 36 anos, como mestre eresponsável das obras do complexomonástico revela um artista conhe-cedor de soluções definidoras do

tardo-gótico que estavam a ser usadasum pouco por toda a Europa. Desdea decoração caracteristicamente fla-mejante que invade capitéis, pináculose coruchéus até ao lançamento deabóbadas estreladas de grande efeitoplástico – as primeiras a ser construí-das em Portugal –, a sua arte requin-tada marcou indelevelmente o Mos-teiro de Santa Maria da Vitória.Trouxefórmulas novas que soube empregaradmiravelmente, sem deixar de res-

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23 Inclinamo-nos para a sua origem levantina, concretamente catalã, como já o afirmámos em «Paraum entendimento da Batalha: a influência mediterrânica», ob. cit..

Batalha: lavabo. © Fotografia do autor

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peitar as características estruturais edecorativas devidas ao primeiro mes-tre: daí a harmonia que existe emquase todo o monumento24. A haveralguma proposta sua que aparenteligações com a arquitectura góticainglesa, será unicamente o caso dasabóbadas estreladas que lançou nacasa do capítulo e na Capela do Fun-dador, aprestando-se para o fazer,provavelmente, também nas CapelasImperfeitas. Tudo leva a crer que asabóbadas estreladas terão sido er-guidas pela primeira vez em Inglaterra.Na altura, porém, em que mestreHuguet as desenha para o Mosteiroda Batalha, elas estavam já há muitodisseminadas pela Europa e, como tal,qualquer arquitecto de qualidade, in-dependentemente de ser ou não in-glês, saberia desenhá-las e construí-las.

Pode dizer-se, portanto, que é noMosteiro da Batalha e pela mão demestre Huguet que o tardo-gótico fazo seu aparecimento em Portugal,daqui irradiando um pouco para todoo país. Mestres pedreiros, canteiros,carpinteiros, simples artífices forma-dos no estaleiro grandioso e longa-mente activo do Mosteiro de SantaMaria da Vitória, foram, chamados oupor iniciativa própria, prestar o seu

contributo a obras várias, assim disse-minando a nova arte batalhina. Entreoutras, na igreja da Graça de Santa-rém, na igreja do Carmo de Lisboa,nas catedrais da Guarda e de Silves, naigreja da Conceição de Beja, no cas-telo de Porto de Mós, essas influênciasganham uma visibilidade total25, po-dendo mesmo afirmar-se, com VergílioCorreia, que a fábrica da Batalha «foia grande mestra dos artífices nacio-nais até o segundo quartel do séculoXVI»26.

Curiosamente, o quarto mestre –Fernão de Évora – adopta um formu-lário totalmente oposto ao de Huguet.Em lugar do brilhantismo decorativo edas novidades estruturais, utiliza noclaustro afonsino uma linguagem sim-plificada até ao limite, sem concessõesa qualquer formulário decorativo quenão seja a presença de discretoselementos heráldicos em algumas daschaves da abóbada do piso térreo.

O contraste quase brutal exis-tente entre estas duas propostas plás-ticas, que mais se amplia por estaremassim colocadas lado a lado, é bemreveladora das sensibilidades porvezes contraditórias que perpassampelos tempos finais da Idade Média eque encontram, no Mosteiro de Santa

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24 CHICÓ, Mário T., ob. cit., p. 157.

25 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., pp. 40-41.

26 CORREIA,Vergílio, ob. cit., p. 17.

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Maria da Vitória, uma feliz formulaçãoque lhe assinala, uma vez mais, umpapel determinante na arquitecturado século XV.

O tardo-gótico em Portugal, ini-ciado com a intervenção do segundomestre nas obras do Mosteiro deSanta Maria da Vitória, integra, naverdade, dois discursos paralelos econtraditórios. O primeiro é, como seacabou de dizer, aquele que constadas propostas de mestre Huguet. Re-velando, em alguns elementos, nítidaproveniência do Norte da Europa,caracteriza-se pela prioridade no usodo arco contracurvado e de soluçõesdecorativas ricas e complexas querespeitam uma gramática definidoradesse momento final da arte gótica. Osegundo, originário do trabalhodesenvolvido por Fernão de Évora noclaustro afonsino, privilegia a simpli-cidade estrutural e decorativa, adop-tando soluções de tendência geome-trizante e de volumes definidos comgrande clareza que se relacionam,

preferentemente, com uma sensibili-dade mediterrânica visível, de modomais intenso, na zona da Catalunha edo Midi francês. Duas linhas de força– o gótico flamejante do Norte daEuropa e o gótico austero, de linhassóbrias, do Sul mediterrânico – queirão continuar a defrontar-se naevolução posterior do tardo-góticoem Portugal27: ambas experienciadaspela primeira vez no Mosteiro deSanta Maria da Vitória e, pela suaqualidade pioneira e exemplar, imita-das e difundidas um pouco por todoo país – assim também rematando,pela forma mais visível das suas pro-postas artísticas, o sentido come-morativo e de celebração que havialevado D. João I a construí-lo.

José Custódio Vieira da Silva*

27 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., p. 50.

* Professor Associado, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal

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1. Introdução

Nascida das águas e de um gestode profundo humanismo, a cidade dasCaldas da Rainha possui um patrimó-nio de valor excepcional e universal,associado a um hospital para o Populus,legado no final do século XV pelarainha D. Leonor e que mantém aindaa sua autenticidade assistencial aosmais desprotegidos.

Na sua origem, esta vila renas-centista estabeleceu uma profundarelação com as águas curativas; nãotão monumental como qualquer urberomana, nem tão poética como aislâmica, teve nas águas o suporte daprosperidade económica de um cen-tro urbano que criou em si mesmoum dinamismo próprio e constituiu osustento da indústria artesanal e docomércio, e por isso com significadopara as suas gentes. Nos seus pri-meiros séculos, a água, depois deservida no corpo humano, corria àflor do corpo urbano na pendentenatural do terreno, activando moinhose azenhas que geraram os ofícios maisimportantes e uma economia localflorescente. Esta relevou desde sem-pre um centro oleiro pujante pelaqualidade das margas da terra e cria-tividade das mãos dos seus artistas.Mais tarde, a movimentação de visi-

tantes alimentou o trabalho dos seushabitantes em actividades que se diver-sificaram cada vez mais. O hospital éconsiderado mais do que um edifícioem si mesmo, sobrevivendo para alémdo banho medicinal em períodoestival e de uma actividade colectiva etemporal. É por estas razões que estee outros patrimónios não sobrevivemsem o valor humano e sem que osmesmos tenham sentido para ascomunidades e para quem os visita.

As Caldas do Populus, que seestruturaram dentro destas premis-sas, não ficaram fechadas intramuros,mas foram desde sempre constituídaspor espaços abertos, favorecendo asrelações entre os seus cidadãos, con-vidando os de fora para fazerem jus àhospitalidade de sempre.

Hoje, este conjunto histórico mo-numental e simbólico é constituídopelo Hospital Termal Rainha D. Leo-nor – considerado o primeiro e maisantigo dos hospitais termais europeuse a primeira grande unidade assisten-cial em Portugal –, pela Igreja de Nos-sa Senhora do Pópulo, Mata RainhaD. Leonor e pelo Parque D. Carlos I,como elementos patrimoniais e teste-munhos do seu decurso histórico.

É nas palavras dedicadas recente-mente a este património, porque in-substituíveis pela sua análise apaixona-

Das Caldas do Populus à Cidade Aberta à Humanidade

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damente atenta e conhecedora, quefundamos as nossas próprias convic-ções e esperanças de que estes valo-res venham a ser justamente reconhe-cidos, nacional e universalmente. Opresente contributo deve ser um sinalacrescido de alerta, na comunidadecientífica e nos decisores públicos.

2. Justificação de «Valor Universal eExcepcional» do Conjunto Termal

O Conjunto Termal das Caldas daRainha respeita os critérios essenciaispara que lhe seja reconhecido, formal-mente, o seu valor universal e excep-cional.

É manifestamente verdade queeste conjunto constitui um exemploeminente de fixação humana e deocupação do território tradicional«representando várias culturas (a dabalneoterapia, a da beneficência social,a da literatura e das artes)» (Aires--Barros 2005), permanecendo notempo, directa e materialmente asso-ciado a acontecimentos, a tradições ea ideias, e a obras de significadoexcepcional. Neste valor indubitável, oConjunto Termal das Caldas da Rainhafornece um testemunho único da per-manência da vertente assistencialdurante mais de cinco séculos, comotradição cultural viva, desde o magní-fico conjunto de espaços e equipa-

mentos sem paralelo na estruturahospitalar epocal – grande edifício euma das maiores casas de assistênciado seu tempo –, com base numa«concepção culta, espiritual e assis-tencial da ideia de cidade» (Sousa2005). A primeira grande obra decaridade da rainha D. Leonor foi afundação do grande Hospital dasCaldas, precursor do movimento dasMisericórdias que correu mundo.

O papel da sua fundadora, rainhaculta, peregrina, mecenas, impulsiona-dora das artes do Renascimento, foiessencial num primeiro tempo. Ohospital das águas, dedicado a SantaMaria do Pópulo ou de Nossa Senhorado Pópulo (denominação popular),tornou-se lugar de cura e de des-canso estival «para reis e príncipes,finas aristocracias e escritores dedescansada passagem. À ritualizaçãoreligiosa das águas termais promovidapelas dádivas de D. Leonor somar-se--ia uma longa especialização das Cal-das como espaço de retiro, passeio,veraneio, visita» (Sousa 2005).

O Hospital das Caldas passou aestar dotado das melhores condiçõespara os doentes mais desfavorecidosmas também para a família real e cor-te que habitualmente o frequentavam.Quando esta prática se tornou modana Europa, as estâncias termais maisem voga conservaram um ambientecosmopolita, mas sem atingirem a par-

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ticularidade das Caldas em conciliartambém o valor assistencial em condi-ções modernas para a época. A ten-dência de vilegiatura, que viria aproliferar em toda a Europa, teve nasCaldas da Rainha, a partir da recons-trução do Hospital no século XVIII, oatributo de conciliar num mesmoedifício os doentes pobres ou deser-dados, internados nas suas enferma-rias comunitárias, de forma gratuita, earistocratas e burgueses ricos, nacio-nais e estrangeiros, que frequentavamos banhos (piscinas), mas alojando-secom mobílias e recheios em casasalugadas. O banho reunia as classes.Os mais pobres eram acolhidos àsombra da instituição de assistênciafundada pela rainha D. Leonor e osmais ricos constituíam um grupoabastado de veraneantes que paga-vam as aplicações terapêuticas.

Da política centenária de bene-ficência e de assistência social, da con-tínua exploração de um recursomineral peculiar como são as águastermais caldenses, da criação e manu-tenção de uma atmosfera de repouso,paz mental e lazer, da envolvência queimpregna um bom património cultu-ral, «os tempos têm depositado emtodo este sítio das ‘caldas’ esta bene-merência: nas suas águas quentes, nassuas árvores acolhedoras, nos seusmonumentos distribuidores de pra-zeres e de graças, nos seus hospícios

dadores de benesses, no todo envol-vente, capaz de incentivar a motivaçãopara a criação artística, da literatura àsartes.» (Aires-Barros 2005).

Simultaneamente, trata-se de umpatrimónio vulnerável nos seus ele-mentos centrais, a Água e o HospitalTermal, quando no primeiro caso seprende com questões ambientais e depreservação do principal recursonatural e, no segundo, com o efeitodeste – de características geoquímicaspeculiares – sobre os materiais pé-treos, com mutações irreversíveis.Ainda assim, este hospital perdurou,mantendo o seu carácter regeneradornas gentes que o procuram.

A fundação do Hospital das Cal-das coincidiu com uma nova percepçãodo espaço, de reconhecimento do lugardo corpo, distante da imperfeição peca-minosa medieval. Inicialmente, trata-sede um espaço de cura, de vaporescálidos, onde a ciência vai tendo umpapel cada vez mais relevante, para setornar também no espaço do novoconceito oitocentista, ligado ao ócio ea espaços de encontro, manifestadonas experiências espaciais do banho,no «tomar águas», no passeio e no jogo.

O pulsar dos tempos deixou tra-ços da criatividade humana: primeiro,no complexo fundador hospital-igreja;segundo, na obra arquitectónica darefundação no século XVIII, a partir daqual se tornou num exemplo pioneiro

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de arquitectura termal e engenhariahidráulica e num elemento estrutu-rante do urbanismo, em que os me-lhores recursos artísticos e técnicosserviram o objectivo estratégico dopaís; terceiro, na manifestação higie-nista e moderna de finais do séculoXIX.

O primeiro tempo revela umainstituição e espaços edificados pio-neiros. A existência de corpo clínicopróprio (médico, enfermeiro, boticá-rio) e enfermarias para doenças inter-correntes, nomeadamente as febris,surge apenas no fim do século XV,registando-se noutros locais europeus,até esse momento, o funcionamento

de hospícios, hospedarias, leprosariase gafarias, destinados a pobres. Afundação anterior de estruturas hos-pitalares junto a nascentes de águastermais passou por um número redu-zido de camas, sem médico, nemenfermeiros. Em toda a Europa, exis-tiam hospitais militares e termas ondeeram tratados doentes pobres, mas amaioria deles era apenas frequentadapor doentes sarnosos e leprosos, oque, só por si, era motivo para afastaroutros enfermos, com receio do con-tágio. Assim, a construção do Hospitalde Nossa Senhora do Pópulo reuniuem si todo um programa assistencialinovador (hospital, confraria de cari-

Gravura de 1747 presuntiva do primitivo Hospital Termal, fundado em 1485, reprodução de bilhete-postal.Colecção dos autores

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dade e igreja) e deu origem a umanova povoação – facto que não sepassara noutros países – que cedobeneficiou do desenvolvimento indu-zido pela actividade do seu HospitalTermal. Portugal passou a ter o seuprimeiro grande hospital e o primeirono mundo com as características fun-damentais dos hospitais modernos,recorrendo ao emprego das águas ter-mais como medicina predominante.

Dada a sua notável organização –na gestão e na estrutura técnica eprofissional –, o Hospital Termal foipioneiro numa moderna prestação decuidados terapêuticos (o banho, a me-dicação, a alimentação e o repouso),até à fundação no século XVI deoutros hospitais, em Inglaterra e Fran-ça. Nenhum deles teve a importânciado das Caldas ou perdurou no tempo.

Cumulativamente, a estrutura doHospital das Caldas tem na capeladedicada ao Populus o seu elementoartisticamente mais sublime, onde osacamados nas enfermarias encontra-ram a simbiose perfeita entre a fé e aArte. As características únicas e quali-dades formais e artísticas da Igreja deNossa Senhora do Pópulo foramesclarecidamente tratadas pelo pro-fessor José Custódio Vieira da Silva,que se lhe refere relevando o seu«valor intrínseco, sob o ponto de vistaarquitectónico, que não só a indivi-dualiza como lhe confere um lugar

Torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. © Fotografia dos autores

Pia baptismal da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo,bilhete-postal. Colecção dos autores

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preciso, pelo seu assinalável valor, nocontexto da época artística de que fazparte» (Silva 2005). O seu experi-mentalismo na Arte Manuelina con-densa-se nas novidades e no interesseartístico dos diferentes aspectos dacapela-mor, bem como no arco triun-fal que lhe dá acesso e na porta dasacristia que atesta a fundação desteempreendimento pela inscrição escul-pida no filactério do seu vão – partesde um todo que conjuga o Tardo--gótico europeu com os primeirossinais do Manuelino e que faria escolaao longo da primeira metade doséculo XVI. Até a sua implantaçãosingular, a uma cota extraordinaria-mente baixa relativamente à circula-ção viária, merece interesse, reforçadopela proximidade do olhar à magníficatorre sineira.

Pena é que algumas intervenções– ditas de conservação e restauro –,designadamente na pia baptismal, nãotenham respeitado recentemente osmais rigorosos métodos científicos.

O Conjunto Termal das Caldas daRainha testemunha também uma con-siderável troca de influências no querespeita à arquitectura termal, desig-nadamente na campanha de obras doséculo XVIII, a qual representou umverdadeiro laboratório da arquitec-tura utilitária traçada ao estilo joanino,mas já denunciando raízes pombalinasque viriam a ser confirmadas na enor-

me empreitada de construção dosedifícios de rendimento da Baixa deLisboa. À visão estratégica expressano desenho da rede de aquedutos echafarizes ligam-se os profundosconhecimentos técnicos de Manuelda Maia, no delineamento do «monu-mento termal», e a arte dos seus cola-boradores, especialmente Eugéniodos Santos, que assumiu o papel devulto na execução dos planos arqui-tectónicos. O novo Hospital passou aconstituir um marco na arquitecturatermal, pela inovação das soluçõesfuncionais e estruturais e antecedeu,em algumas décadas, o desenvolvi-mento construtivo das termas centro--europeias.

Para além deste aspecto, a refun-dação do Hospital Termal das Caldasda Rainha, entre 1747 e 1750, enqua-dra-se nos primeiros sinais do ter-malismo moderno na Europa, asso-ciados ao «higienismo» e às práticasassentes na ratificação científica, man-tendo intacta a relação do indivíduocom a água (para além da terapia), nadimensão religiosa e na dimensãosocial mais profunda. Este é um casoexemplar na história do termalismouniversal, de como a evolução de umaestrutura face ao avanço do conheci-mento das terapias não deixa de ladoo traço fundador desta instituição.

O seu cariz urbano deve-se aocrescimento da assiduidade social e à

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sua localização privilegiada. As activi-dades económicas floresceram. Equando no século XIX se descobreuma vida social, sanitária e culturalmais intensa – inscrita em rituaispróprios de que a estada de espa-nhóis, aristocratas e burgueses trazum suplemento de vibração –, entãoo espaço conforma-se numa concep-ção própria: o Passeio da Copa dálugar ao grande Parque, a Matapropicia o deleite da paisagem natural,o Clube de Recreio alarga-se, a Casada Convalescença abre portas, obanho individualiza-se. Ainda assim, abuvette é um ponto de convergência

e central relativamente a toda a plantatérrea do edifício hospitalar, queentretanto se elevou num piso mais,passando a ter como concorrente osnovos e excêntricos Pavilhões, queficariam para sempre associados auma arquitectura de sonho – única –,debruçada sobre um parque termalgerador da mundaneidade e de par-tilha pela comunidade local.

No final de oitocentos, Caldas daRainha e os seus espaços e edificaçõesassociados à prática termal e ao vera-neio tornam-se no ideário de umlugar salubre e, por isso, em condiçõesde enfrentar o século seguinte, de

Fachada do Hospital Termal joanino, reprodução de albumina. Colecção dos autores

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mudanças profundas: a vila torna-secidade, expandindo-se em diferentesfunções e formas, mas mantendo oseu traço fundador de hospitalidadepara todos.

O conjunto termal ilustra assim,na sua continuidade histórica, o per-manente suporte assistencial que lhevem de origem: apoio terapêutico aosdoentes mais desfavorecidos, lugar devilegiatura e de moda das cortes, daaristocracia e das classes mais abas-tadas e refúgio dos invasores fran-ceses e simultaneamente das tropasportuguesas e inglesas e, mais tarde,dos refugiados Boers do início doséculo XX e dos Judeus da II GrandeGuerra.

Caldas da Rainha desenvolve umhábito que se espalharia pela Europa,ligado ao início do termalismo mo-derno.As refinadas elites intelectuais earistocratas, os inválidos acompa-nhados ou não pelos seus médicos, osescritores, artistas e figuras mundanasaderem paulatinamente à moda dastermas.

No meio desta ambiência, algunsepisódios marcam a universalidadedeste hospital, designadamente noapoio aos desprotegidos dos confron-tos de guerra.

Durante as invasões francesas emPortugal, o Conselho da Regência, queD. João VI nomeara antes da ida parao Brasil, encarregou o administrador

Casa da Copa do Hospital Termal, reprodução de fotografia. Colecção dos autores

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geral dos hospitais militares de tratarcom o Provedor do Hospital dasCaldas da instalação de condições dealojamento às tropas napoleónicascomandadas por Junot. O Hospital dasCaldas, que só abriria em Maio, ofere-cia condições para de imediato rece-ber os contingentes de soldados,curiosamente de todas as partes, fran-ceses, ingleses e portugueses, sofridosde sarna, que aí se juntaram procuran-do a cura para o que a guerra lhescausara.

Na segunda guerra dos Boers(1899-1902), que opôs os colonossul-africanos de origens holandesa efrancesa ao exército britânico, a viladas Caldas serviu de pátria a Boers,depois da sua passagem por Moçam-

bique fugidos dos tumultos. Por faltade acomodações e por grandes pres-sões das forças inglesas, estes refugia-dos foram deslocados em Março de1901. Uma vez chegados a Lisboa,foram transportados para seis locais,fixando aí a sua residência enquantodurasse a guerra. A particularidade deas Caldas terem um novo, amplo evazio edifício – os Pavilhões doParque – junto do Hospital Termal,decorrente da campanha de obras definal do século XIX, foi decisivo paraacolher 351 indivíduos. Os respon-sáveis locais pelo Hospital Termal,habituados às regras hospitalares,desdobraram-se para atenuar osproblemas de adaptação dos novos«hóspedes»: falta de vestuário, dificul-

Gravura de 1894 do Parque D. Carlos I no ano da sua construção, reprodução. Colecção dos autores

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dades para se habituarem aos tempe-ros da cozinha portuguesa, especial-mente devido à utilização do azeite,assistência médica, serviço religiosoem actos de culto público. No que serelaciona com a educação, foi fundadauma escola nas Caldas da Rainha, fre-quentada por 117 alunos, que foraminstruídos por holandeses. Após aassinatura do acordo de paz, em Maiode 1902, o governo português acaboupor transferir os refugiados, agoracidadãos britânicos, para a responsa-bilidade do governo do Reino Unido.O regresso realizou-se a 19 de Julhodesse ano, tendo sido embarcados nonavio de guerra inglês Bavarian, comdestino à África do Sul, levando e

deixando um traço de saudade pelaintensa convivência entre os doispovos. Este sentimento viria a repetir-se durante a II Grande Guerra. EntreJunho de 1940 e Maio de 1941, passa-ram pelo país cerca de 40.000 pessoasem fuga de Hitler e do Holocausto.Uma parte substancial dos refugiadosfoi conduzida para as Caldas, até obte-rem passagem para um país de destinofinal, de preferência os Estados Unidos.

Segundo o historiador João B.Serra, «era gente anónima, persona-lidades destacadas das ciências e dasletras, da medicina, realizadores eactores de cinema, figuras políticas,historiadores, ensaístas, compositoresalemães, austríacos, franceses, polacos,

Lago e Pavilhões do Parque, reprodução de cliché da década de 1920. Colecção dos autores

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e de outras nacionalidades (gregos,luxemburgueses, holandeses dinamar-queses, etc.), expulsos dos seuspaíses.» (Serra 2006).

O impacte nas Caldas e no seuconjunto termal foi relevante. Por aíse alojaram, durante algum tempo, osestrangeiros residentes, que confe-riram uma nova atitude social de cafése vida nocturna animada no teatro enos salões do Clube de Recreio, bemcontrária ao espírito conservador erural da época. Sucediam-se asactividades desportivas nos camposde jogos do Parque e da Mata. Eragente que vivia na incerteza, mas queencontrou nas Caldas refúgio e inte-gração, tal como, reciprocamente, sedenotaram mais-valias decisivas paraas mulheres caldenses e para as aquis-tas a banhos.

Tem sido fundamental para acomunidade residente e flutuante aexistência dos espaços verdes (Mata eParque) no contexto do conjunto ter-mal das Caldas da Rainha, como áreasde importância ambiental e de belezanatural e estética, e testemunhos devárias épocas.

Aí existem importantes e signifi-cativos habitats naturais para a con-servação in situ da diversidade bioló-gica, para além do seu papel funda-mental associado ao valor da águamineral natural. Segundo o professorFernando Catarino,

«não deixa de causar admiraçãoe até regozijo que a mais-valiarepresentada por este vastopulmão verde se tenha mantidoaté aos nossos dias e resistido àpressão do alastrar urbano.Raros serão os sítios urbanosque possam ombrear com asCaldas da Rainha e que possamorgulhar-se de ter o seu principale mais valioso núcleo histórico,neste caso as Termas e o con-junto impressionante do Hos-pital, da Igreja e do Palácio Real,em integração tão feliz, que porum lado se cola sem nenhumaarrogância com as construçõeshumildes do primitivo traçadourbano e, por outro, se deixaenvolver no abraço protector damagnífica moldura vegetal, quede um e doutro lado dão mere-cido enquadramento ao lugar.»(Catarino 2005)

Ainda assim, ao longo dos tem-pos, as transformações da Mata e doParque são resultantes das constantesalterações motivadas pelas solicita-ções dos aquistas e pelos problemastécnicos. Têm sobrevivido, porém, anão poucos desmandos por parte deresponsáveis locais, sendo por issoespaços essenciais de preservação evalorização no âmbito de um Planode Gestão.

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3. Plano de Gestão

Desde 1999 que existe aberto aopúblico o Museu do Hospital e dasCaldas, integrado na antiga Casa Real,sendo um elemento de estudo edivulgação do Património, bem comocentro do percurso museológicotermal, constituído este pelos espaçose edifícios representativos da Históriado Hospital Termal e seus respectivosconteúdos. O Museu foi um dos pro-jectos lançados pelo médico MárioGualdino Gonçalves, enquanto Direc-tor do Centro Hospitalar das Caldasda Rainha, que traçou para este vastoconjunto perspectivas de gestão eprojectos para alguns edifícios maisdegradados e potencialmente impor-tantes para o relançamento da activi-dade termal.

O papel do Museu durante operíodo de 1999 a 2005, durante oqual a co-autora deste texto foi suacoordenadora técnica, pautou-se poruma intensa abertura à comunidade,com especial destaque para o tra-balho com as escolas, integrando umaequipa de voluntários, de aquistas, fun-cionários e colaboradores do CentroHospitalar, em diferentes áreas disci-plinares – geologia, hidrologia, biologia,história da arte, literatura, artes plás-ticas –, que estruturou projectos deconsolidação da imagem e da impor-tância do Património, apresentando-o

à comunidade local, ao país e em dife-rentes intervenções no estrangeiro.

Numa escala alargada à cidade, acriação de um território de inovação– envolvendo a arquitectura, as artes,o design e as ciências da água e dasaúde – pode induzir uma estratégiade desenvolvimento local, a qual foiefectivamente traçada no quadriéniode 2002 a 2005 pelo co-autor destetexto, no âmbito da Câmara Muni-cipal. Essencialmente, identificam-seneste projecto três objectivos: em pri-meiro lugar, como suporte de umaactividade económica ligada ao ter-malismo; em segundo lugar, paradesempenhar um papel de actuali-zação permanente do conhecimentoe para facilitar a transferência doknow-how universidade-sector deactividade; e, em terceiro lugar, paraactuar como catalizador da regene-ração urbana e económica do centrourbano para beneficiar a comunidade.Tem de ser um projecto de longoprazo, onde a componente da qualifi-cação urbanística assume uma impor-tância decisiva, para além da inter-acção entre os sectores empresarial,de ciência, ensino e formação e acomunidade, permitindo criar umespaço atractivo para viver, trabalhar eaprender no centro da cidade; umespaço onde ocorra a inovação, comambiente propício, recursos humanosqualificados, adequada oferta de for-

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mação e de bens culturais, incluindo,necessariamente, a cultura científica etecnológica.

A transformação do centro urba-no, como nó de um sistema, permitiriadesenvolver, no campo das ciências dasaúde e da água e no das artes, designe arquitectura, uma economia deterritório capaz de provocar a inova-ção nas actividades do termalismo, dolazer, do ensino, da investigação e daregeneração urbana. Esta especializa-ção competitiva da cidade das Caldasda Rainha e do seu centro urbano emparticular aproxima-a de um mercadomais vasto, com repercussão tambémna imagem externa. Uma aposta inte-grada que, assente numa estratégiaque beneficie toda a comunidade eque lance pontes para um inter-câmbio internacional, seria um cami-nho desejável para criar novos hori-zontes, para criar o futuro.

Estas ideias devem configurar opapel inovatório da cidade no con-texto dos indicadores da competiti-vidade em função de diferentes lei-turas da cidade para além do seucentro urbano, dos pontos de vistaadministrativo, empresarial, residencial,cultural, logístico, do conhecimento edo turismo e lazer.

Se a aposta no relançamento dotermalismo nas Caldas da Rainha forlevada a sério, pensamos que pode-mos ligar um conjunto de perspec-

tivas correlacionadas entre si, designa-damente nas áreas da saúde, do patri-mónio e do turismo. As novas ten-dências de procura emergentes nosmercados internacionais e nacional,centradas em motivações ligadas àrecuperação física e intelectual e aobem-estar, apontam para a necessi-dade de equacionar as valências daestância termal no contexto dosrecentes conceitos que hoje confi-guram a nova realidade do termalis-mo. Em simultâneo, há que mantergarantias de autenticidade e integri-dade do Conjunto Termal das Caldasda Rainha, baseadas em pilares funda-mentais: a protecção e o enquadra-mento legislativo no quadro adminis-trativo português, o envolvimento detodos os actores interessados no pro-cesso de classificação e valorização, ocontrolo de padrões físicos que per-mitam a monitorização do nível deconservação do sítio, a aplicação siste-mática e contínua de um plano degestão destinado à conservação. Esteplano de gestão deverá ser articuladosegundo as fases de consolidação dosestudos, conservação, manutenção,monitorização, protecção e valorização.

Estes princípios devem começarna preservação do elemento Água.Segundo o professor Aires-Barros:

«chamar a atenção para o facto deas águas minerais serem geo-recur-sos renováveis em função de uma

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gestão racional da sua exploração eutilização pelo Homem.Assim se explica a necessária corre-lação íntima entre a gestão cuidadado fluido termal em si e na suaenvolvente e a necessidade de con-siderar o próprio ambiente e apaisagem como recursos materiaiscuja fruição supõe condicionantesestreitos e estritos.Acresce que, nocaso das Caldas da Rainha, o valorecológico de recurso geo-hidroló-gico, como são as suas águas ter-mais é fundamental para a preser-vação da biodiversidade tão carac-terística da região ao longo do tem-po» (Aires-Barros 2005).

Complementarmente, há a neces-sidade urgente em conservar e res-taurar o património cultural, natural earquitectónico e de integrar a comu-nidade em acções de valorização dopatrimónio e dos espaços públicos,designadamente os verdes. Nestaperspectiva, também os professoresFernando Catarino e João CaldeiraCabral alertam sobre a importânciada vegetação e da paisagem:

«Na Mata são múltiplas as valênciasque concorrem para a grande im-portância deste património e paraa necessidade imperiosa de urgen-tes acções de intervenção que

Capa de Cidade Termal, boletim de cultura urbana, n.º 10, Outubro de 2005, direcção de Jorge Mangorrinha. Câmara Municipal das Caldas da Rainha.

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garantam o seu revigoramento esustentabilidade. É óbvio que, numaanálise imediata, são os valoresestéticos da própria Mata e a ine-rente protecção e amenizaçãoambiental, de que as termas e acidade directamente beneficiam, osque acolhem mais fácil consenso.Porém, são outras valências inesti-máveis deste singular patrimóniomas a que, temos que admitir, con-tinua a não ser dado o relevo quede facto merecem, tanto na simplesavaliação ou valorização ambientaldos sítios como na justificação eenquadramento de políticas trans-versais relativas à gestão e conser-vação dos recursos naturais.É o caso da ocorrência de habitatsmuito variados e contrastantes nasua estrutura e ecologia organiza-dos em sistemas de grande com-plexidade assentes num reticuladode manchas e corredores ecológi-cos e ecótonos extremamente re-presentativos da biodiversidade po-tencial regional.Tais majorações do valor ecológicoresultam da continuidade espacialda Mata e dos espaços verdes quelhe são contíguos, o Parque e a im-portante mancha, expectante, deespaços agrícolas e florestais comoque a ser asfixiados pela malha ur-bana» (Catarino 2005).

Caldeira Cabral, por seu turno,refere «que é vital que, com umacorrecta visão de planeamento estra-

tégico, se aproveite de imediato a dis-ponibilidade de terrenos ainda exis-tente, unindo esforços necessários parao aproveitamento daquela que será aúltima oportunidade de manter asCaldas da Rainha como Cidade Ter-mal» (Cabral 2005).

São estas convicções, de quemconnosco estudou recentemente estepatrimónio, que servem de balizas parasublinhar a sua relevância universal,até há poucos anos escassamentedivulgada. Exige-se que o país e a cida-de lhe devolvam o seu olhar e queesta se valorize em torno de um pro-jecto à escala urbana, a longo prazo,sublinhante das «mais variadas facetasde um local e do seu transcorrerhistórico onde um denso patrimóniocultural intangível, cobre, cimenta,aglutina um amplo património tangí-vel, arquitectónico, artístico e aindanatural, ambiental, paisagístico. Umtodo prenhe de valores que o tornamúnico em si e na sua persistência tem-poral» (Aires-Barros 2005). DestasCaldas do Populus, que «deram aoPortugal de Quinhentos um dos maisimportantes programas de edificaçãode uma ideia de Renascimento do es-paço urbano ao cultivado serviço daassistência à pobreza e à miséria comque se foi longamente pintando, entreaflição e fatalismo, a vida do Povo dePortugal: saberemos agora, cinco sé-culos depois, preservar e renovar este

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* Licenciada em História. Mestranda em Museologia e Património. Investigadora.

** Licenciado em Arquitectura. Mestre em História Regional e Local (especialização em Património).Doutorando em Urbanismo na Universidade Técnica de Lisboa.

projecto único? Saberemos, mais ain-da, preservar transformadamente umpatrimónio único a nível nacional eeuropeu numa lição verdadeiramenteuniversal?» (Sousa 2005).

E perguntamos nós, querem osportugueses – a começar pelos calden-ses – reconhecer o pioneirismo desteconjunto patrimonial como secularrelação do Homem com a Água?

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Helena Gonçalves Pinto*, Jorge Mangorrinha**

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A escultura realizada na Casa deEscultura dirigida por Joaquim Ma-chado de Castro (1731-1822) para osjardins do Palácio de Belém é maisvolumosa do que geralmente se crê.Ainda não há muito, no catálogo DoPalácio de Belém editado pelo Museuda Presidência da República de 2005,o texto sobre “Escultura. Do Paláciode Belém” da autoria de Carla VarelaFernandes, entre as várias esculturasde jardim abordadas, de Machado deCastro referencia apenas os já conhe-cidos Apolo e Diana.

O texto começa, e bem, por dis-tinguir as esculturas encomendadas,concebidas e realizadas para os jardinsdaquelas que, vindas de outrosedifícios e até de outros museus, láforam colocadas e readaptadas á pos-teriori.

A autora apresentou novos eimportantes dados no que se refere àanálise das esculturas italianas impor-tadas, nomeadamente com a desco-berta do esboceto de terracota paraa Morte de Cleópatra de IosephMazzuoli conservado pela PinacotecaNazionale, mas em depósito noIstituto delle Belle Arti de Siena.

O nosso contributo vai limitar-sea acrescentar mais um degrau noconhecimento da escultura realizada

na Casa de Escultura dirigida porJoaquim Machado de Castro para osjardins do Palácio de Belém, e fazeruma ou duas rectificações sobre estamatéria no texto em questão.

Definitivamente pouco conheci-das, inclusive dos autores coetâneos –pois as esculturas não são referidasnas descrições coevas do palácio nemdas dos viajantes a Lisboa –, existemoito estátuas realizadas para a QuintaReal de Belém noticiadas pelo próprioJoaquim Machado de Castro na cartade 3 de Fevereiro de 1817 publicadapor Henrique Lima (1925: pp. 319-323) em que, para se defender dasacusações das delongas na entregadas encomendas, redige uma breveresenha da vastíssima obra que reali-zara até então.

Numa primeira frase, reportandoa Belém, o escultor com uma per-gunta retórica – “Quem fez cuido q. seisestátuas em mármore, que estãoguardadas em uma Casa das Quintasde Belém, se não estes calumniados?”(Henrique Lima, 1925: p. 320) –, infor-ma-nos sobre a quantidade de está-tuas que já teria feito à muito tempopara Belém: seis. Na mesma missiva, opróprio Machado de Castro noticiaque em 1817 ter-se-iam realizado maisduas estátuas em mármore de Itália

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Machado de Castro nos jardins de Belém

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para Belém, prontas para deixar aCasa de Escultura ao mesmo tempoda Gratidão do Palácio da Ajuda, comose pode ler neste trecho: “Agora douParte a V. Ex.ª, como Principal Ministroda Repartição em que sirvo; e ao Snr.Visconde de Santarém, como Encarre-gado em Particular do complemento doPalácio Novo; de q aqui se achão tresEstatuas promptas a sahir desta Casa:duas em marmore de Italia p.ª as ReaesQuintas de Belem: e huma em marmorede Perpinheiro, representando a Gratidão:que he uma das determinadas p.ª oPalacio Novo; cuja sahida fica ao Arbitriode Vossas Excellencias” (HenriqueLima, 1925: pp. 322-323).

Temos então notícia de oito está-tuas realizadas no Laboratorio deJoaquim Machado de Castro para aQuinta Real de Belém, mas quaisserão estas estátuas entre o vastopatrimónio escultórico dos jardins ePalácio de Belém?

Apolo e Diana seriam certamenteduas delas – como está patente no“Catálogo da obra documentada deJoaquim Machado de Castro e da suaOficina no Museu de Arte Antiga” (inBoletim do Museu Nacional de ArteAntiga, Vol. III, nº 1, Lisboa, 1956) daautoria de Maria José de Mendonça –,cujos respectivos modelos são da fac-tura de José Joaquim Leitão – segundoinformação gravada na base do mo-delo – e Francisco Leal Garcia, como

nos informa a etiqueta de papel cola-da na base do modelo escrita pelamão de Francisco de Assis Rodrigues– filho de Faustino Assis Rodrigues,braço direito de Machado de Castro–, na qual se lê “Fran.co Leal Garcia f.”.Não se percebe é porque é quedepois de indicar correctamente osnúmeros de inventário dos modelosde barro cozido na nota dezassete, aoinvés da imagem do modelo de Diana

Diana. Laboratorio de Joaquim Machado Castro; José Joaquim Leitão; c. 1778; modelo em barrocozido; Alt. 34 x larg. 12,5 x Prof. 10,5; Lisboa;M.N.A.A., inv. 54 Esc. © M.N.A.A.

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– a que aliás a legenda pertence –surge na página 216 do dito catálogoa imagem do modelo em barro cozidoda Fortaleza, modelada por NicolauPossolo (nº inv. 55 Esc, M.N.A.A.).

Quanto a estas duas esculturaspodemos rectificar a data da sua rea-lização avançada por José Queiroz(Cerâmica Portuguesa,1907) e aceitepor Varela Fernandes como circa1770. Efectivamente, sabemos queestavam a ser realizadas em 1778para manter ocupados os ajudantesde Machado de Castro quando aCasa de Escultura enfrentava proble-mas de sobrevivência depois da mortede D. José I, como está patente nacarta de Machado de Castro de 26 deMaio de 1778 à Junta do Comércio:“No tempo da suspensão das ObrasPublicas me achava encarregado dafactura de duas Estatuas, em q. ellestrabalhavão, de Apollo, e Diana, q. e porordem de S. Mag.de se fazião p.ª osseus Reaes Jardins; e as quaes estãobastantemente adiantadas. Tambemestava de concluir o painel de baixorelevo allegorico, no reverso do pedestalda Real Estatua Equestre; pois abrevidade com q. e se fez não deu lugara poder se acabar, e se acha imperfeito;o q. e lamentão não só os Nacionaes,mas ainda os Estrangeiros” (IAN/TT,Junta do Comércio, mç. 68, cx. 219, cf.documento encontrado por MiguelFaria e que nos foi gentilmente

cedido). Esta fonte permite-nosprecisar que já se trabalhava nasestátuas do Apolo e Diana à data dasuspensão do Laboratorio em 1777,prolongando-se a sua execução paralá de Maio de 1778.

Apolo e Diana tinham sido enco-mendadas ainda no tempo de D. JoséI, para colocar ainda não se sabia se navaranda ou nos jardins da Quinta deBelém – porque a principal preo-cupação fora manter os escultoresocupados –, razão pela qual em 1817ainda se encontravam guardadasnuma casa da Quinta de Belém, comodescreve Machado de Castro na cartade 3 de Fevereiro de 1817. Factocurioso dada a actual localização dasesculturas – visíveis mesmo para quemnão frequentasse o Palácio.Assim, sempropósito bem definido nem localiza-ção definitiva prevista, as estátuas deApolo e Diana só muito depois da suaexecução vieram a ocupar esta posi-ção estratégica, numa cidade voltadapara o rio. O que explica a despro-porção das mesmas face ao edifício.

Os modelos de barro cozido deApolo de Francisco Leal Garcia – e nãoFaria como está no texto de CarlaVarela Fernandes –, e de Diana deJosé Joaquim Leitão, com os quaisfazem conjunto as esculturas do parAdónis e Vénus sobre a balaustrada doJardim de Buxo, permitiam-nosdeduzir que encontrámos quatro das

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seis estátuas referidas inicialmente porMachado de Castro. No entanto, adocumentação confirma a realizaçãode Apolo e Diana mas não fazqualquer alusão a nenhuma dasoutras estátuas, pelo que no estadoactual da investigação seria prematuroavançar com estas atribuições.

É de frisar que apesar da iden-tificação da autoria dos modelos estarcorrecta, visto tratarem-se de doisajudantes de Machado de Castro –Francisco Leal Garcia e José Joaquim

Leitão – as esculturas foram enco-mendadas à Casa de Escultura dirigidapor Machado de Castro e face à orga-nização faseada da produção escul-tórica em fino-setecentos, início deOitocentos, a autoria das obras nãodeixa de ser, à vista do próprio tempo,do director do Laboratorio, JoaquimMachado de Castro.

Conseguimos identificar mais duasesculturas realizadas no Laboratorio deMachado de Castro para o Jardim daQuinta de Belém baseando-nos num

Minerva. Laboratório de Joaquim Machado Castro; c. 1785; modelo em barro cozido; Alt. 29 x larg. 13 x Prof. 9,5; Lisboa; M.N.A.A., inv. 54 Esc. © M.N.A.A.

Minerva. Laboratório de Joaquim Machado Castro; c. 1785; estátua em pedra; Tamanho maior que o natural;Lisboa; Jardim do Palácio de Belém. © Ana Duarte Rodrigues

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outro modelo encontrado nas reser-vas do M.N.A.A. – Minerva. Colocadassobre os pavilhões em forma deanfiteatro (1780-84), já construído notempo de D. Maria I, as duas escul-turas apresentam semelhanças for-mais e iconográficas evidentes quepermite concluir pela mesma autoria.

Quanto à última encomenda deduas esculturas prontas em 1817,colocamos a hipótese de uma delasser o Hércules Farnesio, que se encon-tra actualmente no Jardim-Museu doInstituto de Investigação CientíficaTropical, e fazia então parte integranteda Quinta Real de Belém. A pesquisadocumental confirmou as nossas sus-peitas e acrescentou-nos algumasinformações sobre a execução e adatação desta escultura: João JoséElveni – outro ajudante de Machadode Castro –, em 6 de Agosto de 1806,encontrava-se desde há bastantetempo a trabalhar num Hércules des-tinado às reais quintas. Nesse docu-mento lê-se: “Informaçao’ a respeito doRequerim.to do Ajudante da Caza daEsculptura Joao’ Jozé Elvenich; remetidap.ª o R.al Erario em 6 de Agosto de 1806.

Senhor. = Havendo o Professor daCaza da Esculptura reprezentado porhuma conta datada em 7 de Mayo doprezente anno , que o Ajudante daEsculptura Joao’ Jozé Elvenich empre-gado na Aula e Laboratorio da mesmaCaza, o primeiro que se admetio para o

ajudar na obra da Estatua Equestre; eque ficou continuando a ter exercicio,empregando-se nas mais obras que alise tem feito: logo ao principio derademonstraçoens do seu genio orgulhozo,que debalde elle Professor intentoumoderar, com admoestaçoens quesempre forao’ inuteis; e que nestesultimos tempos mandando-o trabalharem huma Estatua de Hercules, quehavia alguns annos estava projectadapara alguma das Reaes Quintas, nelatinha empregado immenso tempo,comunicando a sua laxidao’ ao com-panheiro com quem trabalhava: ultima-mente, que dando-lhe huma admoestaçao’mais viva, em que lhe espunha, que oseu procedimento o obrigava a darparte da sua conduta; respondera que odeploravel estado da sua saude lhe não’premitia trabalhar na pedra, e que oempregasse em modellar: que atten-dendo a ser o mais antigo, e ter ajudadonas principaes obras daquella Cazacom sufficiente prestimo, o removera dapedra, e o destinara para modelar, ondese tem portado com igual successo; poisque em hum Grupo, que muito bem sepodia fazer em 6 dias mais bemacabado, gastara nelle 31. Que allem dasua neglicencia no trabalho, o seu orgulho,a soltura de lingoa, e outros relaxadoscostumes, o punhao’ na preciza obriga-çao’ de dar esta parte. O que sendoprezente ao Ex.mo Inspector Geral dasObras Públicas mandou por Portaria de

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* Doutoranda em História da Arte da Idade Moderna na Faculdade de Ciências Sociais e Humanasda Universidade Nova de Lisboa, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT(POCTI, do Quadro Comunitário de apoio III 2000-2006, com fundo comunitário FSE e nacionais).

12 de Mayo deste anno, que o sobreditoJoao’ Jozé Elvenich, fosse expulço, eriscado da Folha por onde vencia o seujornal. Hé quanto posso informar a V.A.R.que mandará o que for servido. Caza daIntendencia das Obras Publicas 5 deAgosto de 1806. Do Intendente dasObras Publicas. = Duarte Jozé Fava.”(IAN/TT, Ministério das Obras Públicas,Comércio e Indústria, Intendência dasObras Públicas, lv. 36, (1803-1809), fls.47 a 48, in Ana Duarte Rodrigues, AEscultura de Vulto Figurativa do Labora-tório de Joaquim Machado de Castro(1771-1822): produção, morfologia, ico-nografia, fontes e significado, dissertaçãode Mestrado apresentada à F.C.S.H./U.N.L., vol. II, Lisboa, 2004, p. 137).

Entretanto, o ajudante de Macha-do de Castro foi retirado do trabalho

da pedra, e ficamos sem saber se che-gou a terminar a estátua.

Infelizmente, o contributo danossa investigação não permite aindaidentificar as oito estátuas realizadasna Casa de Escultura dirigida porMachado de Castro, contudo espera-mos que outros trabalhos acrescen-tem novas informações e interpreta-ções àquelas que aqui se apresentampara podermos num futuro próximodeterminar com o máximo de segu-rança o relevo da presença de Ma-chado de Castro nos jardins do Palá-cio de Belém.

Ana Duarte Rodrigues*

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Dando continuidade ao sincerodesejo de abrir um espaço de con-fluência entre publicações no domínioda História e História da Arte defiliação académica (mais ou menosdirecta), venho relembrar que asrevistas, conceptualmente mais próxi-mas da Revista de História da Arte,continuam de boa saúde, manifes-tando um salto considerável de quali-dade, nomeadamente no que respeitaao espaço dado às imagens e, emgeral, à sua elevada resolução e arti-culação discursiva. Estou a referir-me,claro, a Artis, Revista do Instituto deHistória da Arte da Faculdade deLetras de Lisboa, com direcção deVítor Serrão, e a Arte Teoria, Revista doMestrado em Teorias da Arte daFaculdade de Belas-Artes da Univer-sidade de Lisboa, de que é directorJosé Fernandes Pereira.

O nº 5 da Artis, 2006, tem extra-ordinária amplitude histórica e temá-tica, estendendo-se do Antigo Egiptoa Picasso, mas estes dois referentes demodo nenhum dão conta do lequedas áreas envolvidas, com artigos ino-vadores, referindo-me às áreas em quetenho alguma competência crítica.Quanto à Arte Teoria, foram publica-dos, em 2007, dois números, sendo onº 10 dedicado ao tema da Cidade.

Em qualquer dos números, o grafismoé de superior qualidade, bem como ariqueza documental, em termos dedesenho e reprodução.

Não sendo objectivo desta nota, arecensão crítica das revistas – antes asua notícia – o que li em geral e emprofundidade (e, neste modalidade,foram, com proveito, muitos artigosquer da Artis, quer da Teoria e Arte)proporciona-me, confesso, uma pro-funda alegria disciplinar. É extraordi-nária a quantidade e qualidade detrabalho que actualmente ocorre nodomínio da História e Teoria da Artee, a partir dele, se abre, com trocas

Arte em revista(s)

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enriquecedoras, a outras áreas disci-plinares. Como parte substancial des-tas investigações ou síntese da maiorqualidade se articula com trabalhosacadémicos, em cujos júris participa-mos mais ou menos em conjunto, háque salientar, com a mesma profundaalegria, a rede inter-escolas da Históriada Arte em Portugal. Por outro lado,verifica-se também, cada vez mais, odesenvolvimento e ampliação de con-tactos internacionais. Sinceramente,dou os mais sinceros parabéns aosconselhos redactoriais das duasrevistas!

Não tendo em mãos o nº 2 daMurphy, acabado de sair quandoescrevo esta nota, tenho ainda doisdestaques a fazer, pedindo desculpapor outras ausências, devidas a igno-rância da minha parte e falta detempo para a colmatar.

Saúdo, muito especialmente, Mar-gens e Confluências – um olhar contem-porâneo sobre as artes, com direcçãode Maria José Laranjeiro, editada pelaEscola Superior Artística do Porto-Guimarães, em periodicidade semes-tral. Li, com grande agrado e proveito,o nº duplo 11-12, dedicado ao tema“Mulheres ar tistas Argumento degénero” que mantém um sólido ebelo grafismo, amplo e adequadolugar à imagem de qualidade. Ele foi--me generosamente enviado peladirecção mas acontece que, quando

estava a preparar um pequeno artigosobre Arte Pública, acabara de mecruzar com um número anterior dasMargens (nº9) onde colhi inovadormaterial. Foi assim, por este duplocircunstancialismo, que conheci arevista: culpa minha que já deveriaconhecê-la antes! Mas aqui deixo oregisto para outros distraídos interes-sados, como eu. Com colaboração deproveniências diversificadas, revelandoredes de comunicação solidária(incluindo autoras da Universidade deVigo e, no nº 11-12, com especialgenerosidade, alguns homens…) osartigos circulam entre reflexões con-temporâneas, projectos artísticos einvestigação histórica, garantindo àrevista um aprazível lugar entre asciência das arte (teoria, crítica e his-tória) activado por uma “vontade dearte”, através dos projectos artísticos.Especialmente eficaz é então o jogoentre as imagens que são projecto eas que são documentação, histórica ecrítica, envolvendo estes diversos do-mínios num clima propiciatório decriatividade.

O meu segundo destaque vaipara Intervalo, revista anual que publi-cou, em Maio de 2007, o seu terceironúmero. Extremamente discreta naapresentação, tem como editores LuísHenriques, Mariana Pinto dos Santos,Olímpio Ferreira e Silvina RodriguesLopes, gente da História e Teoria da

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* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UniversidadeNova de Lisboa, Portugal

Arte Contemporâneas, da Literatura,dos Estudos Culturais, em que as tran-sumâncias entre domínios científicosnão se fazem por diluição, mas fortecontaminação disciplinar. Co-ediçãoda Vendaval e da Diatribe, Intervaloestá ancorada numa reivindicação detrabalho intelectual com pontes entrevários sistemas institucionalizados ereivindicada independência. Como seproclama na folha de rosto de todosos números: “Parte da convicção deque a subordinação a estratégias desucesso e de imposição de imagens emodelos não é uma fatalidade”. Osartigos, submetidos, sem excesso, aotema de cada número, são inovadorese indagantes (tal como as entrevistas,excelentes) com lugar à ficção e àspolíticas, no sentido da utópica (re)in-venção da polis. Deixando de lado

excelentes trabalhos, destaco, noúltimo nº 3, o de Silvina RodriguesLopes “Resistir às máquinas identitá-rias…” em que se debruça a um ar-tigo de Luís Henriques, publicado nonº 2 (“Fado, Futebol, Fátima, Foices eMartelos, Combates pelo senso co-mum no século XX português”) e,literalmente, desfaz Portugal Hoje, Omedo de existir de José Gil. Confessoque tive desejo de ter sido eu a escre-ver tão brilhante artigo. Mas, emborasejam questões que estão no centrodas minhas preocupações, não teriacapacidade. Fica um apelo aos edito-res das Intervalo: embora tudo sepossa pesquisar, dêem-nos duas linhasde referência curricular ou existencialdos autores.

Raquel Henriques da Silva*

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O espaço Web tem vindo a assu-mir progressivamente uma importânciacrescente enquanto veículo de comu-nicação entre as instituições científicase o exterior. Enquanto ferramenta dedivulgação, tem permitido a universi-dades ou centros de investigação,darem-se a conhecer a públicos pro-gressivamente mais alargados e comgrande celeridade, partilhando a acti-vidade dos seus membros, os projec-tos científicos em curso e mesmoalguns produtos finais, sendo cada vezmaior, entre outros, o volume detrabalhos científicos com acesso

on-line disponibilizados por bibliotecase departamentos universitários. Poroutro lado, algumas instituições, parti-cularmente no campo da História daArte, facultam ainda o acesso aos seuscatálogos bibliográficos e/ou visuais,relevantes para investigadores oualunos exteriores à instituição e agorafacilmente acessíveis à distância.

Podemos encontrar um exemplobem sucedido da utilização dainternet pelas instituições científicasno domínio da História da Arte noKunsthistorisches Institut in Florenz(http://www.khi.firenze.it).

História da Arte na World Wide Web (II)

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Fundado em 1897 e integradodesde 2002 na Max Planck Society, oInstituto de História da Arte Alemãoem Florença colabora com váriasuniversidades e museus, promovendoa pesquisa de académicos consagradose de jovens investigadores em His-tória da Arte. Albergando a maiorbiblioteca mundial especializada noRenascimento Italiano (aproximada-mente 240 000 volumes) o KHI con-tinua a assumir-se como uma das maisdestacadas instituições de investigaçãona área.

Uma das principais valias da suarenovada página on-line (disponívelem italiano, inglês e alemão) resideprecisamente no facto de possibilitara consulta dos índices da biblioteca(menu OPAC), permitindo uma cons-tante actualização bibliográfica no querespeita às principais áreas de inves-tigação do Instituto. É igualmente per-mitida a consulta on-line do extensoarquivo fotográfico (constituído porcerca de 580 000 imagens) e dedi-cado maioritariamente à arte italiana(http://www.khi.fotothek.org).

É ainda possível aceder a um útilconjunto de links de entre os quais sedestacam: Verbundkatalog KUBIKAT(http://www.kubikat.org), o qual reúneos catálogos das bibliotecas deHistória da Arte do KunsthistorischesInstitut in Florenz, do Zentralinstitutfür Kunstgeschichte / Munique e da Bi-

bliotheca Hertziana – Max PlanckInstitute for Art History / Roma;artlibraries.net(http://www.artlibraries.net), umabase de dados sediada na BibliotecaUniversitária da Universidade deKarlsruhe e que se apresenta comoum meta-catálogo a nível europeu dereferências bibliográficas de Históriada Arte, incluídas em bases de dadosespecializadas; arthistoricum.net(http://www.arthistoricum.net), siteque reúne a base de dados anteriorcom o ART-Guide – Colletion of ArtHistory Websites e o ARTicles online –Art historical articles from e-jounals,bem como vários portais temáticos.

Traduzindo de igual forma esseélan comunicacional em ambienteWeb por parte das instituições acadé-micas e criando no mesmo movi-mento uma publicação exclusiva-mente on-line, encontramos a revistaIMAGE [&] NARRATIVE: OnlineMagazine of the Visual Narrative(http://www.imageandnarrative.be),constituída como plataforma dedebate teórico no campo dos estudosda imagem.

Oriunda do Instituto de EstudosCulturais da Faculdade de Letras daUniversidade Católica de Lovaina(Bélgica), é dirigida por Jan Baetens,Hilde Van Gelder (Departamento deHistória da Arte) e Anneleen Mass-chelein (Departamento de Estudos

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Literários: Literatura e Cultura). Oconselho editorial engloba membrosde universidades nos Estados Unidos(The Ohio State University, Universityof Washington-Bothell), Alemanha(Universität Hamburg, UniversitätLeipzig), Itália (Università di Bologna),África do Sul (University of the FreeState), Filipinas (Ateneo de ManilaUniversity) e Inglaterra (Saint-Martin’sCollege London), operando umcruzamento com várias instituiçõesespalhadas pelo mundo.

Apresentando-se como umarevista de narratologia visual, IMAGE[&] NARRATIVE conta até ao mo-mento com dezassete números temá-ticos. Nela são publicados artigos

inéditos em inglês e francês (apresen-tando os respectivos resumos nosdois ediomas) em seguida a um textode introdução ao tema aglutinador decada número, contando no fim comuma secção de recensões críticas.Aproveitando a possibilidade de con-tínua actualização de conteúdos deri-vada do suporte virtual, a revistadispõe de períodos longos de Call forPapers e publica faseadamente algunsdos números em função dos artigosrecebidos.

IMAGE [&] NARRATIVE foi inau-gurada com Cognitive Narratology emNovembro de 2000. Seguiram-se-lheBande dessinée et fanatastique (Setem-bro de 2001), Illustrations (entre

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* Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSH-UNL(Bolseira FCT); Membro do Instituto de História da Arte – FCSH-UNL

Março e Outubro de 2001), GenderIssue (Setembro de 2002), TheUncanny (Janeiro de 2003), MediumTheory (de Janeiro a Agosto de 2003),Graphic Novel IAWIS (de Fevereiro aOutubro de 2003), Mélanges /Miscellaneous (Maio de 2004), Perfor-mance (Outubro de 2004),The Visuali-sation of the Subaltern in World Music 1(Março de 2005), The Visualisation ofthe Subaltern in World Music 2 / Imagesin Advertising (Maio de 2005), Opening

Peter Greenway’s Tulse Luper Suitcases(Agosto de 2005), The ForgottenSurrealists: Belgian Surrealism Since1924 (Novembro de 2005), Painting /portrait (Julho de 2006), Battles aroundImages: Iconoclasm and Beyond(Novembro de 2006), House / Text /Museum (Fevereiro de 2007) e TheDigital Archive (Abril de 2007).

Luísa França Luzio*

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01. Objectivos

A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparaçãodesta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têmcomo objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentosproduzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.

02. Regras e especificações para publicação de artigos

02.1 Formatação

02.1.1 Aplicação Microsoft Office Word

02.1.2 Tipo de letra Times New Roman; tamanho 12

02.1.3 Numeração das páginas Sequencial

02.1.4 Notas de rodapé Numeração automática

02.1.5 Formatação dos parágrafos Alinhamento à esquerda, não indentados, com duplo

espaçamento entre linhas

Normas de redacção de artigos/recensões

Revista de História da Arte(publicação semestral do Instituto de História da Arte da Faculdadede Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)

A Revista de História da Arte é uma revista académica semestral de teoria e históriada arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto deHistória da Arte e Edições Colibri. Destina-se predominantemente à comunidadecientífica e académica, incluindo professores, investigadores e estudantes.Cada número da Revista de História da Arte é dedicado a um tema específico,tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertasa outros domínios temáticos:Varia, Recensões e Notícias.

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02.2 Tamanho

Os artigos não devem exceder as 5 000 palavras, ou cerca de 30 000caracteres (incl. espaços).

02.3 Língua

Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.

02.4 Título

Claro e sintético em maiúsculas.

02.5 Subtítulo

Opcional.

02.6 Resumo

Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200palavras, ou cerca de 7500 caracteres (incluindo espaços), em portuguêse, sempre que possível, em inglês.

02.7 Palavras chave

Para cada artigo deverão ser indicadas, no máximo, 5 palavras chave.

02.8 Nota biográfica sobre o autor ou autores

02.8.1 Assinatura a acompanhar o artigo02.8.2 Afiliação Institucional02.8.3 Contacto de email (opcional)

02.9 Citações

Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por:(apelido do autor data de edição da obra citada, nº da página)

02.10 Sistema abreviado autor-data

As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autordata, página).Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47).No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994,262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devemser citados como notas finais, e não como referências bibliográficasabreviadas.

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02.11 Bibliografia

Toda a bibliografia segue as seguintes normas:Exemplos:

MonografiasSilva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte.Artigos de publicação em sérieMoreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel daSilva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123.

Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autoresdeverão consultar as normas de publicação no sitewww.chicagomanualofstyle.org

02.12 Ilustrações

02.12.1 Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem serfornecidas em provas em papel ou digitalizadas em altaresolução (300 dpi’s), em formato jpg ou tif, para um formatomáximo de 28x22 cm;

02.12.2 Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiroindependente;

02.12.3 Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues empapel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas darespectiva legenda;

02.12.4 No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cadailustração deve entrar, do seguinte modo: fig. 1; fig. 2; etc.;

02.12.5 Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relaçãode todas as imagens, legendas correspondentes, e respectivosficheiros que contêm essas mesmas imagens.

Exemplo:Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) >Foto001.jpg

02.13 Créditos das Ilustrações

02.13.1 No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquermaterial que envolva a autorização de terceiros, é da responsa-blidade destes obter a respectiva autorização escrita e assumir oseventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, emcasos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar--se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.

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386 Revista de História da Arte Nº 4 – 2007

02.13.2 Os créditos devem ser fornecidos para cada uma dasilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright

03. Regras e especificações para publicação de recensões críticas

03.1 Obra recenseada

03.1.1 A obra recenseada deve ser identificada do seguinte modo:Autor, data de edição, título, local de edição e editora.

03.1.2 A citação de outras obras para além da recenseada será feitaexclusivamente no texto

03.2 Tamanho

As recensões críticas não devem exceder as 1000 palavras, ou cerca de6500 caracteres (incluindo espaços).

03.3 Outras regras

As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos,designadamente: N02.1, N02.3, N02.7, N02.8.

04. Direitos de Autor

No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material queenvolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprioobter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuaisencargos associados a essa autorização. No entanto, em casosexcepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedidode autorização com a assunção de encargos.

05. Revisões de Provas

O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versãofinal a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendopossível alterações substantivas.A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Editorial,que garante a reprodução fidedigna dos textos.

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Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 387

06. Envio dos trabalhos

06.1 Todo o material em formato digital deverá ser enviado para o seguinte endereço:

[email protected]

06.2 Todo o material em formato não digital, incluindo ilustrações,legendas, resumo, deverão ser assinados, e enviados para:

Instituto de História da ArteRevista de História da ArteFaculdade de Ciências Sociais e HumanasAv. de Berna, 26 C1069-061 Lisboa

07 Selecção e publicação de artigos/recensões

07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revistade História da Arte serão submetidos à apreciação do ConselhoEditorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação. Estepoderá, caso entenda necessário, recorrer ao seu concelho dereferees, solicitando parecer científico. Em qualquer dos casos, éobrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver anexo 1).

07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia os artigos propostospara publicação, a sua originalidade científica.

07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Artereservam-se o direito de proceder à uniformização das referênciasbibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradasindispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto.

07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Artereservam-se o direito de proceder à:

1. reprodução, qualquer que seja o suporte;2. colocação à disposição do público universitário ou outros;

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388 Revista de História da Arte Nº 4 – 2007

3. divulgação, nas suas diversas modalidades: redes digitais, sites....;4. distribuição e venda de exemplares da obra;

07.5 Os autores serão informados no prazo de três meses, qual a dataprevisível de publicação.

07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista.Os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos.

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Revista de História da Arte – Apreciação de artigos

Título do artigo:

Recepção do original:

Envio ao referee: Código de referee:

Parecer:1. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte

centrado nas questões metodológicas? Sim Não

2. O artigo parece-lhePublicável na forma actualPublicável com ligeiras modificaçõesPublicável se for refeitoNão publicável

3. O artigo éDemasiado longo (indicar onde deve ser encurtado)Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido)Apropriado

4. Apresentação do artigoEstruturaBibliografia

5. Conteúdo do artigo (utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es),recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes):

5.1. Tema, novidade, pertinência5.2. Revisão do estado da questão5.3. Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização,profundidade, etc.)5.4. Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos,hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos,tratamento de dados, desenvolvimento da análise, fundamentação dasconclusões, etc.)5.5. Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada)5.6. Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão)5.7. Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original)

6. Comentários (não assinados)

Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 389

ANEXO 1Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida pelos membros

do Conselho Editorial e/ou do Conselho de Referees internacional, em face das respectivas especialidades

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Enviar para:

Instituto de História da ArteFaculdade de Ciências Sociais e Humanas

Av. de Berna, 26 C1069-061 Lisboa

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Assinatura 1 ano, 2 números: 15 Euros (inclui portes de correio)

Cheque passado à ordem da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/UNL.

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