Revista diálogos & debates dez 2005

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42 diálogos & debates dezembro 2005 dezembro 2005 diálogos & debates 43 REFUGIADOS REFUGIADOS U m exército debilitado, mas um sargento fiel a sua nação. Sua captura, uma prisão subterrâ- nea, a fuga e uma peregrinação por quatro dias sem nenhum suprimento. Enfim, a saída de seu país, terminada a guerra civil que acabou com a vitória do grupo golpista, adversário do Estado e, portanto, desse sargento. Anos sem perspectiva... E então, sua chega- da a São Paulo, em busca da sobrevivência e da liberdade para a reedificação de sua vida. Uma história real de um re- fugiado que ainda não está terminada, mas escondida sob os véus do anonimato da caótica metrópole. Atualmente a capital paulista abriga cerca de 1,7 mil pes- soas que já adquiriram a legalização de seu status de refu- giado ou esperam a conclusão de seu processo, quase a me- tade do número de refugiados e solicitantes em todo o país. Por meio de alguns organismos institucionais e civis, esses estrangeiros contam com uma série de assistência que co- meça com o apoio jurídico para a solicitação da condição de refugiado, o que lhes possibilita vários benefícios, desde auxílios para que sanem suas necessidades básicas de mora- dia, alimentação, higiene etc., até subsídios culturais e pro- fissionalizantes que facilitam ainda mais suas possibilida- des de inclusão social no novo país. fuga e abrigo: a saga de mohamed O sargento Mohamed é mais um entre muitos que tra- zem de seu país histórias dramáticas e lembranças inde- léveis de uma época que os deixou, quase sempre, entre a vida e a morte. São lembranças que fazem de São Pau- lo – uma das cidades mais violentas do Brasil – um lu- gar até receptivo e promissor para que eles recomecem a vida longe de um ambiente de tamanho risco e temor nos quais viveram. O longo caminho de um guerreiro O homem arquejava fortemente. Havia caminhado por cerca de 300 quilômetros durante quatro dias de fuga. No caminho, três de seus companheiros prisioneiros da asfi- xiante prisão subterrânea não agüentaram de cansaço, fome e sede e estiraram o corpo sobre a terra, incertos de seu des- tino. Ele ainda tentou convencê-los da importância de con- tinuarem juntos, naquela perigosa peregrinação pela sobre- vivência. Afinal, as tropas do exército vencedor, lideradas pelo brigadeiro Anssumane Mané, o chefe do Estado Maior de Guiné Bissau, eram mais numerosas e preparadas para a guerra civil iniciada em junho de 1998 e que dividiu o país por cerca de 11 meses. Por isso, uma fuga solitária não se- ria a alternativa mais sensata naquele momento. POR GUILHERME SARDAS VIndo da guerra civil de Guiné-Bissau para um refúgio seguro na cidade de São Paulo, uma história bem-sucedida de imigração política

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Reportagem sobre a dramática história de Mohamed Lamine Sambu, ex-militar de Guiné Bissau e refugiado na cidade de São Paulo. Após lutar pela sobrevivência na guerra civil guineense, de 1998, fugiu daquele país para o Senegal, depois para o Cabo Verde, chegando ao Brasil em 2005, onde encontrou segurança e apoio para recomeçar sua vida.

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Um exército debilitado, mas um sargento fiel a sua nação. Sua captura, uma prisão subterrâ-nea, a fuga e uma peregrinação por quatro dias sem nenhum suprimento. Enfim, a saída de seu país, terminada a guerra civil que acabou com a

vitória do grupo golpista, adversário do Estado e, portanto, desse sargento. Anos sem perspectiva... E então, sua chega-da a São Paulo, em busca da sobrevivência e da liberdade para a reedificação de sua vida. Uma história real de um re-fugiado que ainda não está terminada, mas escondida sob os véus do anonimato da caótica metrópole.

Atualmente a capital paulista abriga cerca de 1,7 mil pes-soas que já adquiriram a legalização de seu status de refu-giado ou esperam a conclusão de seu processo, quase a me-tade do número de refugiados e solicitantes em todo o país. Por meio de alguns organismos institucionais e civis, esses estrangeiros contam com uma série de assistência que co-meça com o apoio jurídico para a solicitação da condição de refugiado, o que lhes possibilita vários benefícios, desde auxílios para que sanem suas necessidades básicas de mora-dia, alimentação, higiene etc., até subsídios culturais e pro-fissionalizantes que facilitam ainda mais suas possibilida-des de inclusão social no novo país.

fuga e abrigo:a saga de mohamed

O sargento Mohamed é mais um entre muitos que tra-zem de seu país histórias dramáticas e lembranças inde-léveis de uma época que os deixou, quase sempre, entre a vida e a morte. São lembranças que fazem de São Pau-lo – uma das cidades mais violentas do Brasil – um lu-gar até receptivo e promissor para que eles recomecem a vida longe de um ambiente de tamanho risco e temor nos quais viveram.

O longo caminho de um guerreiroO homem arquejava fortemente. Havia caminhado por

cerca de 300 quilômetros durante quatro dias de fuga. No caminho, três de seus companheiros prisioneiros da asfi-xiante prisão subterrânea não agüentaram de cansaço, fome e sede e estiraram o corpo sobre a terra, incertos de seu des-tino. Ele ainda tentou convencê-los da importância de con-tinuarem juntos, naquela perigosa peregrinação pela sobre-vivência. Afinal, as tropas do exército vencedor, lideradas pelo brigadeiro Anssumane Mané, o chefe do Estado Maior de Guiné Bissau, eram mais numerosas e preparadas para a guerra civil iniciada em junho de 1998 e que dividiu o país por cerca de 11 meses. Por isso, uma fuga solitária não se-ria a alternativa mais sensata naquele momento.

P O R G U I L H E R M E S A R D A S

VIndo da guerra civil de Guiné-Bissau para um refúgio seguro na cidade de São Paulo, uma história bem-sucedida de imigração política

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Mohamed Lamine Sambu era um jovem sargento de 21 anos, muito perspicaz e a inteligência vinha lhe garantindo a vida por aqueles meses de intensas batalhas, nas quais lu-tava defendendo um exército debilitado desde o início do conflito. Ao resolver iniciar o assalto ao governo do presi-dente eleito João Bernardo Vieira, popularmente conheci-do como Nino, Anssumane contou com o apoio da maio-ria das forças militares do país, incluindo os oficiais de alta patente, mais experientes, restando a Nino a fidelidade de uma minoria, além de tudo, composta majoritariamente por jovens soldados.

E era o sargento Mohamed que, ofe-gante, insistira em não deixar de cami-nhar e, agora, ao avistar uma pequena vila, tinha a oportunidade de desfrutar de algum descanso na sombra de uma árvore, sem deixar sequer por um se-gundo de desconfiar daquele momen-to de mínimo alívio que gozava. A es-cola militar já havia lhe ensinado uma regra básica, num momento de tensão política e militar como aquele: sempre desconfiar, de qualquer pessoa que fos-se. Qualquer delação poderia custar-lhe a vida. E, portanto, apesar da sede, que era o que mais castigava, o jovem ficou alguns minutos calado sob a árvore, ob-servando o local.

Seus olhos perceberam a algumas dezenas de metros a presença de uma figura insólita. Era um homem que cavava a terra à procura de algo. Pela apa-rência e vestes, o jovem deduziu ser um curandeiro e que deveria estar extraindo da terra algumas raízes, provavel-mente necessárias para fazer suas soluções de cura. O que ele mais queria naquele momento parecia ter encontrado: um local aparentemente isolado para se reabilitar. Mas, de qualquer maneira, sua consciência estratégica e cau-ta ainda o perturbava, impendido de recorrer ao curan-deiro, para qualquer ajuda que fosse. Sua cabeça turbi-lhava de pensamentos e um raciocínio mais seguro veio num átimo.

Mohamed afastou-se um pouco do homem, esconden-do-se atrás de uma outra árvore. Começou, então, a forçar uma tosse, um sintoma simples, mas que certamente cha-maria a atenção de um homem cujo ofício era o de se preo-cupar com a cura dos outros. A resposta foi instantânea:

“Quem está aí?”, perguntou o curandeiro.

Mohamed continuou a tossir, intermitentemente, trans-mitindo fraqueza a ponto, quem sabe, de não conseguir se-quer ouvir a pergunta. Tudo calculado. O curandeiro in-sistiu: “Quem está aí? O que se passa? Precisa de alguma ajuda?”

O homem pôs-se a caminhar, procurando o suposto adoentado. O jovem Mohamed, então, manifestou-se, fez-se ver, numa atitude sabidamente por ele ser ousada, mas justificada pela sua necessidade de sobrevivência.

“Preciso de água, muita água”, pediu o jovem militar, com as vestes tão sujas e depauperadas que nem sequer aludiam

à discreta farda que vestia. O curandeiro balançou a cabeça, ne-

gando-se a atender a súplica. Mas nisso não havia nenhuma resistência em aju-dá-lo. Pelo contrário:

“Não, não pode. Há quantos dias não come ou bebe alguma coisa?”

“Caminho há quatro dias solitaria-mente, sem nenhum suprimento”, disse Mohamed, já intuindo certa confiança naquele sujeito.

“Certo, espere aqui. Trarei um pouco de água, mas beba aos poucos e o míni-mo que puder. Nesta situação, beber de-mais poderá agravar sua situação.”

Daquilo Mohamed não sabia, mas acreditou no conselho que recebera. Bebeu pouco, apesar da vontade qua-

se incontrolável de sanar sua sede com litros e mais litros de água.

“Vou buscar algo para você comer”, disse o curandeiro.Mohamed aquietou-se, mas durante a demora do curan-

deiro a cautela excessiva o perturbou novamente. Aquele tempo poderia ser o suficiente para que o homem, que já agora lhe parecia astuto demais, o delatasse, caso deduzis-se que ele estava fugindo das tropas de Anssumane Mane. Afinal, a notícia de que a guerra terminara, com sua vitória garantida e presumida, poderia já ter chegado aos mais re-clusos cantos de Guiné-Bissau.

Mohamed se escondeu novamente, não perdendo de vista o caminho percorrido pelo curandeiro. Passados al-guns minutos, avistou-o com alguma comida à mão e, não resistindo, caminhou em sua direção, já com a intenção de lhe contar sua história e fugir o mais rápido do país. Co-meu vorazmente.

“De onde você vem? Por que está nesse estado?”

“Vou lhe contar o que se passou comigo.” A serenida-de de seu interlocutor lhe permitiu que narrasse sua histó-ria, sem nenhuma interrupção. “Lutei por Nino. Entrei no exército aos 18 anos e lá na escola militar aprendi tudo o que sei. Aprendi a defender, sobretudo, as leis de meu país, a Constituição. E, iniciada a guerra, não hesitei em ficar ao lado do presidente democraticamente eleito pelo povo, pois é por isso que zelo. Mesmo sendo minoria os militares que o apóiam, fui convicto nesta minha decisão. Acabei captura-do, mas consegui me libertar ao reconhecer um antigo co-lega de exército, já como oficial, cuidando da prisão subter-rânea onde fiquei cativo. Era pouco espaço para muita gente. Tive a sor-te de reservar meu lugar junto a um canto mais arejado, por onde não me faltou oxigênio, enquanto vários ou-tros, mais amontoados, vi morrer por asfixia. Meu colega me abriu a cela e consegui fugir com mais três que souberam aproveitar a ocasião.”

Mohamed falava sem parar e a perspicácia e a coerência com que narrava sua trajetória envolviam for-temente o silencioso curandeiro.

“Desde o início da fuga, fui o úni-co a defender que caminhássemos juntos, até chegarmos a algum lugar seguro. Mas os outros três se rende-ram ao cansaço no terceiro dia e se estiraram sobre a terra. Então, segui sozinho até chegar aqui. Preciso fugir do país, pois as tropas de Anssumane já to-mam conta de tudo.”

Enfim terminou de falar. E ouviu o conselho do curan-deiro:

“Vou conseguir um carro de viagem que te leve ao Sene-gal. Lá estará mais seguro.”

Os carros que faziam a viagem até a fronteira entre Gui-né-Bissau e seu vizinho ao norte, o Senegal, em geral, es-peravam a lotação máxima para partir. O hábito naquele pobre país era esse. Quem quisesse viajar tinha de esperar que outros seis interessados aparecessem e, aí sim, o carro seguia. Mas o tempo, naquele momento de risco para Mo-hamed, poderia significar sua própria vida, por isso a nova idéia de seu agora confiável parceiro:

“Vou pagar a viagem completa para que não seja preci-so esperar as outras pessoas. Assim rapidamente você es-tará longe daqui.”

“Não!”, discordou o jovem militar. “Quando chegarmos à barreira militar próxima à fronteira, certamente desconfia-rão ao ver um carro com apenas um passageiro. É melhor seguir o protocolo e irei com outros seis ocupantes.”

O curandeiro rendeu-se ao inteligente raciocínio de Mo-hamed, assentindo sua opinião. O diálogo acabou ali. Era hora de agir.

Pela sobrevivência, rumo ao norte, ao SenegalOs dois se dirigiram ao local, não muito longe dali, de

onde costumavam sair os veículos em direção à fronteira. A tensão da operação de fuga armada pela dupla era visível. A guerra, que eclodira no dia 7 de junho de 1998, não havia durado mais do que exa-tos onze meses para que Anssuma-ne tomasse o palácio do governo em 7 de maio de 1999, obrigando Nino a pedir asilo político em Portugal. E o que restava, naquele momento da fuga, era a certeza da derrota da cau-sa defendida por Mohamed e o medo de cair novamente nas mãos do exér-cito do novo governo golpista. Esse risco era alto, pois as fronteiras esta-vam intensamente militarizadas com grande parte da população civil a fa-vor dos vencedores. Em seu próprio país, o jovem militar era, definitiva-

mente, um intruso e o que não sabia era que seria também um intruso no próprio veículo no qual pretendia fugir em direção à liberdade.

Finalmente ele entrou no carro, acompanhado de ou-tras seis pessoas. O curandeiro se foi. As pessoas que ocu-pavam o automóvel não sabiam que estavam envolvidas na pretensão de fuga de um militar que lutara do lado do pre-sidente Nino. Mas, talvez pela sua aparência maltratada e o clima de apreensão que contaminava a população em ge-ral pelo recente fim da guerra deu a certeza a um dos ocu-pantes civis de que algo era estranho na presença de Mo-hamed naquela viagem.

“Ao chegar perto da base militar, que ficava a uns 5 qui-lômetros da fronteira, um dos passageiros fez um sinal para um oficial”, lembra-se Mohamed. Em poucos segun-dos, percebeu-se certa mobilização entre os militares. “Um tanque de guerra começou a nos perseguir”, conta. O mo-torista amedrontou-se e compreendeu rapidamente o mo-

As pessoas que ocupavam o automóvel não sabiam

estar envolvidas na fuga de um militar que lutara do

lado do presidente Nino. Mas sua aparência maltratada deu a certeza a um dos

ocupantes de que algo era estranho em Mohamed. E aí ele deu o alarma

Mohamed aquietou-se, mas durante a demora

do curandeiro, a cautela excessiva o perturbou

novamente. Aquele tempo poderia ser o suficiente para que o homem, que

já agora lhe parecia astuto demais,

o delatasse

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tivo daquilo quando, ao esboçar parar o carro para qual-quer tipo de fiscalização ou esclarecimento, ouviu Moha-med obrigá-lo a seguir em frente e acelerar o automóvel em direção aos poucos quilômetros que separavam Gui-né-Bissau do Senegal.

O motorista hesitou. Num movimento brusco, Moha-med jogou-o para o lado e assumiu a direção do veículo. Em alta velocidade, concentrou-se no seu norte, no seu único objetivo naquele instante: a liberdade. Acelerava e avistava o horizonte fronteiriço entre as duas nações. O tanque o per-seguia, e aqueles poucos quilômetros marcaram a lembran-ça do fugitivo como um ato heróico. Enfim ele ultrapassou a fronteira. Sua sobrevivência, naquele momento, es-tava assegurada.

Livre, mas nem tantoMohamed estava livre do risco de

morrer no seu próprio país ou acabar novamente capturado como preso de guerra. Por outro lado, já se via como um desterrado, longe da pátria onde se criara e vivera toda a vida. Também já imaginava a possibilidade de nun-ca mais rever sua família, que, ao iní-cio da guerra, fugiu para uma região rural e mais segura de Guiné-Bissau, preservando-se viva. Era uma famí-lia pobre. O pai, enfermeiro, sustenta-va a casa. A mãe era dona de casa e dividia o marido com outras três esposas. “Eu tinha uma irmã por parte de pai. Mas nunca gostei muito da idéia de ele ter outras mulhe-res, mesmo isso sendo parte da cultura de nosso país”, diz ele, mantendo o mesmo olhar convicto de quando justifi-cou o porquê de defender um exército claramente desfavo-recido durante a guerra.

Em Guiné-Bissau, aproximadamente 98% da popula-ção segue a religião muçulmana, assim como a família de Mohamed. Aqueles que optam pelo cristianismo são, mui-tas vezes, agressivamente segregados, ficando sempre ex-postos a violências de todos os tipos, inclusive da própria família, caso divirjam da crença islâmica dela. Ao menos nesse ponto, o convicto Mohamed nunca manifestou ne-nhuma resistência.

Ao chegar ao território senegalês, logo se dirigiu à base militar mais próxima da fronteira, de onde foi levado ao quartel de Dakar, capital do país. Não houve grandes pro-

blemas. No Senegal ele viveu os primeiros meses sem ne-nhuma ameaça. O governo recém-chegado ao poder em Guiné-Bissau, sabendo que muitos de seus adversários mili-tares e políticos haviam fugido para os países vizinhos, ma-nifestou-se a favor do retorno pacífico desse contingente. Mohamed não acreditou em nenhum momento nisso. E ti-nha razão. Era uma falácia estratégica. “Um guineense tam-bém fugitivo que encontrei no Senegal acreditou no que o governo de Anssumane declarou. Depois de algum tempo, me disseram que ele foi fuzilado ao chegar ao país.”

Porém, com o tempo, a sua permanência no Senegal pro-vou não ser de grande segurança. Du-rante o quase um ano que durara o conflito militar guineense, as relações diplomáticas com os países vizinhos, como o Senegal, foram interrompidas. Com a consolidação do novo poder, no entanto, começaram a ser reatadas. Esse estreitamento acarretou a reto-mada de missões políticas e milita-res de Guiné-Bissau ao país. E, a cada uma dessas visitas, o pânico voltava a incomodar a relativa paz na qual o sargento vivia. “Cada vez que sabia da presença de alguma missão desse tipo, percebia que não estava seguro nem ali.” Resolveu, então, fugir novamen-te para o Cabo Verde, nação formada por um conjunto de ilhas no Oceano

Atlântico, próximas à costa africana, e também colonizada pelos portugueses, como Guiné-Bissau.

Lá Mohamed viveu uma vida simples, sustentando-se por meio de trabalhos esporádicos, mas ao menos sem o te-mor permanente de ser capturado outra vez. Ele viveu por cerca de cinco anos sem grandes perspectivas, longe de sua família, do ambiente militar que o formou e socialmente restrito a pequenos grupos de guineenses fugitivos como ele. Cansou-se quando soube que o Estado Maior do Sene-gal visitaria o Cabo Verde. Com a aproximação entre aquele país e Guiné-Bissau já consolidada, certamente aquilo não deixaria de ser um risco para um fugitivo como Mohamed. “Nessa hora, resolvi ir embora da África, queria atravessar o Oceano, ir para bem longe dali.”

Entre seus compatriotas falava-se muito no Brasil e nos Estados Unidos como opções para recomeçar a vida. “Mas os Estados Unidos, eu pensei, se envolvem em tudo que é guerra no mundo e, ultimamente, têm sido alvo do terror.

Resolvi vir para o Brasil, principalmente por ter informa-ções de ser um lugar livre, sem guerras como as da Áfri-ca e ter um ambiente relativamente pacífico.” O idioma português também não deixava de ser um estímulo para a sua escolha.

Forlateza, CE, Brasil, 6 de maio de 2005Mohamed Lamine Sambu já não era mais o jovem mi-

litar de 21 anos. Agora, aos 28 anos, chegava à capital cea-rense decidido a refazer a sua vida de vez. Chegou de avião, com a passagem paga com o pouquíssimo dinheiro que ti-nha. “Ao descer no Brasil eu tinha o equivalente a 200 reais. ” Já no dia 25 de maio ele chegava a São Paulo, in-formado de que na cidade teria que cumprir as exigências burocráticas para a legalização de seu status de refugiado na Caritas Arquidiocesa-na de São Paulo, entidade civil oficial de assistência aos refugiados, com se-des em São Paulo e Rio de Janeiro.

“Fui muito bem recebido ali”, diz ele. O processo legal de convenci-mento de que sua situação era real-mente de refúgio tramitou de manei-ra tranqüila e em apenas um mês ele recebeu um protocolo de legalização de sua permanência ao ser entrevis-tado por uma equipe do Comitê Na-cional para Refugiados, órgão do governo federal, vinda de Brasília. Sua situação na África era claramente de risco de morte e de perseguição.

Após chegar à capital paulista, ele foi encaminhado à Casa do Migrante, um albergue muito bem cuidado pela Arquidiocese de São Paulo em parceria com a Prefeitura, onde mora até hoje. Nesse tempo, a Caritas também vem lhe garantindo um kit-higiene mensal, com giletes, escova de dente, sabonete, perfume, entre outros itens de necessi-dade básica.

Com dificuldade para arranjar emprego, conseguiu tam-bém, a partir do dia 12 de setembro, uma doação mensal da entidade no valor de 150 reais, que tem utilizado para se locomover à procura de trabalho e para complementar sua alimentação. A assistência, em seu caso específico, vale por três meses.

Mohamed é um homem inteligente e eloqüente. Sua edu-cação militar lhe deu uma postura prática e ativa diante das

dificuldades que não pararam de aparecer em sua vida. Hoje já tem consciência da necessidade de se capacitar profissio-nalmente para, enfim, conseguir uma fonte de renda estável, que o desprenda do bem-vindo e indispensável assistencia-lismo que lhe garante uma vida minimamente digna, num país que conhece há apenas cinco meses.

“Já solicitei vaga para um curso técnico de modelagem no Senai” – entidade com a qual a Caritas tem convênio. “Só estou esperando surgir uma vaga. Não vejo a hora de começar a produzir algo de bom e me aperfeiçoar em al-guma área.” Por enquanto ele visita o Sesc do Carmo algu-

mas vezes por semana para freqüen-tar a biblioteca e usufruir o desconto de 60% no almoço, obtido por meio do “cartão verde”, o cartão-alimenta-ção concedido pela instituição para ajudar os refugiados. “As atividades que oferecem no Sesc são muitas, mas só gosto de ir lá para ler. Meu objetivo maior mesmo é conseguir um emprego”.

Nesse pouco tempo de Brasil, ele se diz impressionado com a beleza das praias do Nordeste, que conhe-ceu durante o período em que des-ceu de Fortaleza para São Paulo, em viagens de ônibus, conforme ia con-seguindo algum dinheiro por meio de trabalhos e serviços rápidos. Mas

infelizmente o tempo restrito já lhe foi também suficiente para que, por alguns dias, ele desconfiasse da segurança que vinha tendo no país.

“Percebi desde o início o preconceito contra os negros no Brasil.” Ao ser encaminhado a uma agência bancária para tirar seu CPF, Mohamed viu-se numa situação em que nem a guerra civil guineense o colocou. “Uma funcionária do banco me indicou uma porta para que eu entrasse. Por engano, eu entrei no local errado e em poucos segundos senti uma arma encostada na minha cabeça. Era o seguran-ça do banco. Isso já está marcado na minha memória, mas de qualquer maneira sinto-me bem mais seguro no Brasil”, conclui Mohamed. g

Guilherme Sardas é formando em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero.

Este texto é um capítulo do livro-reportagem Fuga e Abrigo, Histórias de Refu-

giados em São Paulo, obra escrita em parceria com os alunos Murilo Bonadio e

Denis Eduardo Serio, como Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo.

Nesse pouco tempo de Brasil, se diz impressionado com as praias do Nordeste – mas já teve a oportunidade de sentir o gosto “do outro

lado”: “Percebi desde o início o preconceito contra os negros que existe aqui. Mas me sinto mais seguro

neste país”

Em Guiné-Bissau, cerca de 98% da população segue a

religião muçulmana. Os que optam pelo

cristianismo são, muitas vezes, segregados, expostos

a violências de todos os tipos, até da família,

caso divirjam da crença islâmica