Revista do Dandara 2012

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É no momento de sua primeira grande renovação de quadros que o Coletivo Feminista Dandara traz a público uma revista que vem sendo pensada, dialogada e redigida desde 2009. Acreditamos que nossas experiências de militância feminista valem à pena serem compartilhadas, já que, embora nossa passagem pela Universidade seja sempre finita, nossas ideias e ideais podem respeitar a outra temporalidade – e que assim seja! Sem dúvida, esse é para nós um momento de grandes balanços. De alguma forma, esse sentimento transborda de todas as páginas, mas está presente, sobretudo, nos textos sem assinatura que foram construídos de forma coletiva pelas integrantes do grupo: em todos há um pouco de cada uma de nós, seja na primeira redação, em uma ou outra sugestão de alteração ou mesmo na revisão final. Ao longo desse processo procuramos também ouvir a voz de mulheres que dedicam suas vidas a bandeiras imprescindíveis para a construção de uma sociedade mais justa e que foram fundamentais na constituição da nossa identidade enquanto feministas. Para nós, essas entrevistas possibilitaram não apenas um aprofundamento de nossos vínculos, mas também uma oportunidade para que um número maior de pessoas conheça trajetórias políticas tão relevantes para a luta contra as desigualdades entre homens e mulheres. Nas próximas páginas vocês encontrarão ainda presentes literários que nos foram dados por apoiadoras queridas e um texto escrito por duas importantes pensadoras feministas que possibilitaram que trouxéssemos aqui reflexões com a acuidade necessária para melhor compreensão de um tema capital para nós: a divisão sexual do trabalho. Desejamos a todas e todos uma excelente leitura! Coletivo Dandara, março de 2012

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ra1. Editorial 4

2. Conhecer o Dandara é também conhecer a luta feminista! 5A origem e os desafios do Coletivo Dandara na faculdade de direito da Universidade de São Paulo e no movimento feminista

3. Entrevista: Maria Amélia de Almeida Teles 14“A vida, a vida só é possível reinventada”

4. Educação popular com mulheres? 19Considerações sobre a experiência do Coletivo Dandara no curso de Promotoras Legais Populares de São Paulo

5. Entrevista: Adriana Aragão e Beth BeliO projeto do Bloco Afro Ilú Oba de Min: as mulheres que tocam tambores

6. MatriarcalPor Mariana Salomão Carrara

7. Divisão sexual do trabalho e o mercado de trabalho brasileiroPor Taís Viudes de Freitas e Tatau Godinho

8. Violência doméstica: ultrapassando o âmbito privadoConsiderações sobre a experência do Coletivo Dandara no Departamento Jurídico XI de Agosto

9. Legalizar o aborto, direito ao nosso corpo!Maternidade não é destino: é escolha

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10. “Mas antes de mais nada: o que é uma mulher?”Por Julia Almeida Baranski

11. A importância da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero

Em briga de marido e mulher, a gente mete a colher!

12. Entrevista: Setor de Gênero do Movimento dos (as) Trabalhadores (as) Rurais Sem Terra

Uma revolução dentro da revolução

13. Entrevista: Terezinha GonzagaMulheres, Cidade e Política

14. MimetósPor Mariana Carrara

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1.editorialrevistadodandara É no momento de sua primeira grande renovação de quadros que o Coletivo Feminista Dandara traz a público uma revista que vem sendo pensada, dialogada e redigida desde 2009. Acreditamos que nossas experiências de militância feminista valem à pena serem compartilhadas, já que, embora nossa passagem pela Universidade seja sempre finita, nossas ideias e ideais podem respeitar a outra temporalidade – e que assim seja! Sem dúvida, esse é para nós um momento de grandes balanços. De alguma forma, esse sentimento transborda de todas as páginas, mas está presente, sobretudo, nos textos sem assinatura que foram construídos de forma coletiva pelas integrantes do grupo: em todos há um pouco de cada uma de nós, seja na primeira redação, em uma ou outra sugestão de alteração ou mesmo na revisão final. Ao longo desse processo procuramos também ouvir a voz de mulheres que dedicam suas vidas a bandeiras imprescindíveis para a construção de uma sociedade mais justa e que foram fundamentais na constituição da nossa identidade enquanto feministas. Para nós, essas entrevistas possibilitaram não apenas um aprofundamento de nossos vínculos, mas também uma oportunidade para que um número maior de pessoas conheça trajetórias políticas tão relevantes para a luta contra as desigualdades entre homens e mulheres. Nas próximas páginas vocês encontrarão ainda presentes literários que nos foram dados por apoiadoras queridas e um texto escrito por duas importantes pensadoras feministas que possibilitaram que trouxéssemos aqui reflexões com a acuidade necessária para melhor compreensão de um tema capital para nós: a divisão sexual do trabalho. Desejamos a todas e todos uma excelente leitura!

Coletivo Dandara, março de 2012

2. Conhecer o Dandara é também conhecer a luta feminista

Relembrar a história do Coletivo Dandara e os desafios e debates políticos que o grupo tem enfrentado desde o seu surgimento, permite-

nos identificá-lo com a luta das mulheres e do movimento feminista

A origem do grupo e identidade política

O Coletivo Dandara é um grupo feminista cujas concepções políticas se originaram e se desenvolveram no campo da esquerda. Esta identidade política reflete o fato de que a trajetória política de suas integrantes esteve marcada pela militância em um partido estudantil que unificava, através de uma frente ampla, diversas tendências políticas de esquerda da Faculdade de Direito da USP. Em 2007, algumas militantes do Fórum da Esquerda, à época na gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP, percebendo a resistência do grupo à pauta feminista e o rebaixamento do status político atribuído a este debate, bem como a todos os que não eram passíveis de assimilação imediata pelo debate tradicional de economia política, comumente inscritos no bloco denominado de “opressões”, formaram um grupo de discussão em gênero e feminismo. A desvalorização da pauta feminista ficou notadamente evidente no mês de março daquele ano, quando foi realizada uma discussão interna sobre a opressão da mulher em razão das mobilizações relativas ao 8 de março - Dia Internacional de Luta das Mulheres, mobilizações das quais algumas integrantes do grupo já participavam. A discussão de março de 2007 evidenciou a necessidade de uma maior valorização da pauta feminista dentro do grupo, de modo que a formulação e a intervenção política em torno desta luta não se esgotassem nas campanhas pontuais relativas ao dia 8 de março. À luz de tal compreensão foi agendada a primeira reunião do então Núcleo de Mulheres da São Francisco, já com caráter auto-organizativo, vale dizer, já com a proposta de ser um espaço político protagonizado exclusivamente pelas mulheres. Ainda que tal decisão não tenha se dado, neste primeiro momento, com base em todo o referencial teórico e prático que o grupo incorporou posteriormente, já evidenciava a escolha pela construção de um

espaço no qual as mulheres compartilhassem e problematizassem as suas experiências relacionadas à opressão de gênero, sem ter a sua participação política inibida pela presença masculina. Em contraposição à visão de alguns militantes, o feminismo não veio para dividir a esquerda, pelo contrário, para permanecer neste campo político era necessário compreender a fundo a lógica subjacente às práticas machistas reiteradas acriticamente no seio dos grupos de esquerda. Apenas a partir da compreensão dos mecanismos sociais reprodutores da desigualdade entre homens e mulheres é possível atuar nestes grupos com vistas a enfrentá-la. A saída de algumas militantes do Fórum da Esquerda para a construção do Coletivo Dandara faz parte de um fenômeno histórico mais amplo, marcado pela saída de diversos grupos feministas de organizações de esquerda ao longo de todo o século XX. Tal processo ocorreu sem a identificação com uma dinâmica de despolitização ou afastamento das feministas do projeto político da esquerda, e sim com a necessidade de redimensionar este projeto a partir da perspectiva historicamente invisibilizada das mulheres. Ao longo dessa trajetória histórica, as feministas tiveram que combater, no âmbito da esquerda, muitos discursos que excluíam o feminismo da estratégia política da esquerda ou, quando muito, o inseriam de forma protocolar e subalternizada. Nesse sentido, ganhou difusão um discurso triunfalista, influenciado pela constatação da acelerada inserção das mulheres no mercado de trabalho, que propagava a idéia de que o “feminismo é anacrônico”, “as mulheres já conquistaram tudo”, e de que o “feminismo é coisa de mulher mal-resolvida”. Todavia, embora o ingresso das mulheres no mercado de trabalho seja condição necessária para a sua emancipação, não é suficiente. Não se trata, pois, de uma panacéia. Ainda que seja um pressuposto para a libertação das mulheres, na medida em que lhes proporciona a vivência do espaço público e a inserção neste enquanto novos sujeitos do debate político, nos marcos do modo de produção capitalista,

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a inserção das mulheres no mercado de trabalho tem um feitio necessariamente alienante. Outra contradição desse processo reside no fato de que a inserção massiva das mulheres no processo produtivo, para além de não tê-las desincumbido do desempenho do trabalho doméstico e de cuidados – ampliando a sua jornada de trabalho e a sobrecarga de exploração que sobre elas recai –, se deu de forma subalternizada, mediatizada pelas relações de poder e dominação entre homens e mulheres. Isso se expressa no fato de que as mulheres foram absorvidas nos postos de trabalho mais precários, intensivos e nas áreas mais rotinizadas, recebendo remuneração inferior a dos homens pelo desempenho da mesma função. Com efeito, o capitalismo, no processo de desenvolvimento constante das suas forças produtivas, demandou o emprego da força de trabalho feminina, mas o fez apropriando-se das desigualdades de gênero, tornando a divisão sexual do trabalho (a separação entre o trabalho dos homens e o trabalho das mulheres e a inferiorização deste último) parte indispensável da divisão social do trabalho que o sustenta. Contudo, não há que se negar que a inserção das mulheres no mercado de trabalho, ao retirá-las de seu confinamento histórico no ambiente privado, viabilizou as condições materiais para a elaboração de um agir coletivo no engendrar de uma consciência de si enquanto categoria social oprimida. Há ainda aqueles que possuem uma visão etapista, segundo a qual primeiro há que se emancipar os trabalhadores para depois construir a igualdade entre mulheres e homens. Não percebem que o feminismo é elemento constitutivo da luta socialista. A construção do socialismo – se o que se pretende é que este se efetive enquanto uma etapa histórica de transição para uma sociedade marcada pela igualdade social plena entre os indivíduos – é impossível sem o elemento feminista, até porque as mulheres correspondem a cerca de 70% da população miserável do mundo. Além disso, entendendo que a divisão do trabalho entre os sexos (na sua estrutura atual) surgiu anteriormente ao capitalismo – de forma que a relação assalariada capitalista pressupõe a apropriação do trabalho doméstico não remunerado – o combate ao atual modo de produção capitalista passa, necessariamente, pelo combate da exploração-dominação das mulheres, tanto na esfera privada quanto na esfera pública, sob pena de forjarmos uma ação política que não atinge o sistema na integralidade de sua base de sustentação econômica e ideológica.

Como falar em classe trabalhadora, se não considerarmos as mulheres que a compõem e o processo histórico que as afastou do poder, convertendo-as em um grupo social subjugado? Ademais, a tese de “primeiro a revolução socialista, depois a emancipação das mulheres” acarreta um imobilismo político inadmissível, sob um ponto de vista verdadeiramente humanista, porque implica em não fazer nada hoje em prol da emancipação das mulheres.

Permanecemos, portanto, alinhadas politicamente com um campo sociopolítico que se identifica com o do Fórum da Esquerda. Comungamos de um projeto político que desnaturaliza o sistema social, desnudando a opressão de gênero e a desigualdade de classe, entendo-os como fatos históricos inseridos no metabolismo social como elementos estruturantes da sociedade. Uma vez que existem diferentes leituras teóricas e segmentos políticos dentro do feminismo, o Coletivo optou por reivindicar e participar da construção de um feminismo que consubstancia uma estratégia anti-capitalista, sem que isso implique desconsiderar a questão da mulher como estruturante da escala vertical da sociedade.

Intervenção na Faculdade de Direito da USP, 2008.

Auto-organização, participação política e crítica ao poder institucionalizado e à forma consagrada de fazer política

A rejeição/desconsideração enfrentada pela questão de gênero no bojo dos movimentos políticos, historicamente estimulou as militantes feministas a formarem grupos compostos apenas por mulheres, o que lhes daria condições para a elaboração de uma teoria específica acerca da sua opressão, capaz de orientar a sua prática política e apta a modificar o olhar tradicional da esquerda acerca da luta das mulheres. Processo similar ocorreu com o Coletivo Dandara, que também fez a opção por construir um espaço auto-organizado de mulheres. Dentre as muitas as razões apresentadas para se optar pelo modelo auto-organizativo, iremos elencar algumas. A opção tem como ponto de partida a constatação de que a relação entre homens e mulheres na sociedade patriarcal não é uma relação entre iguais, que existe uma cultura machista discriminatória, condições materiais desiguais, liberdades díspares, oportunidades distintas, etc. A partir da constatação dessa desigualdade presente nas relações sociais entre os sexos, que conformou e é conformada pela sobreposição hierárquica do grupo social dos homens ao grupo social das mulheres, pelo que se concede àqueles o controle das esferas produtiva e reprodutiva atrelado ao monopólio do poder de decisão política, conclui-se que a superação destas desigualdades estruturantes de todo o corpo social não é possível a partir de uma reação individual. Na perspectiva de uma luta coletiva, as mulheres são oprimidas enquanto grupo social e tal grupo oprimido busca, mediante a auto-organização, construir um espaço político para compreender e enfrentar os mecanismos reprodutores das desigualdades que as subordina. Esse processo não difere do vivenciado no seio de outras lutas sociais, em que o oprimido, em condição de submissão, busca a sua emancipação e para tanto, entende como essencial a sua organização. As mulheres são as que sofrem na pele a opressão, que sentem, no cotidiano, a necessidade de superar a ordem patriarcal, visto que, embora esta também estabeleça limitações aos homens, mediante a imposição de papéis sociais rígidos de masculinidade (“homem não chora”), os papéis sociais ditos masculinos gozam de maior prestígio social e superior status econômico em face dos impostos às mulheres. O espaço auto-organizado representa também

um momento em que as mulheres socializam as experiências que sofrem, em que se sentem mais confortáveis para relatar as suas experiências de violência doméstica e outros fatos conflituosos que marcaram o seu processo de socialização. É nestes espaços que se constrói uma identidade entre as mulheres enquanto categoria socialmente oprimida e é na luta emancipatória impulsionada pela percepção coletiva dessas contradições de gênero que se descobrem enquanto sujeitos do processo social e político. Além disso, toda a organização é indispensável para propagar uma visão de mundo contrária à visão hegemônica. Por meio da organização interferimos coletivamente na dinâmica social, visto que não será o sistema patriarcal que “naturalmente” vai

“dar uma chance” para as mulheres contestarem a opressão que sofrem. Por outro lado, se observarmos os espaços mistos, podemos dizer que estão “viciados”: os homens, via de regra, protagonizam as discussões e as disputas de poder, visto serem educados para ocupar o espaço público e para estabelecer relações pautadas por um paradigma hierarquizante que visa à dominação.

O Coletivo Dandara, por todas essas razões, optou pela auto-organização como instrumento para fomentar a participação política das mulheres, tanto nos espaços auto-organizados quanto nos grupos mistos. No entanto, entendemos que a luta protagonizada pelas mulheres não implica separatismo, ou a exclusão dos homens. Não negamos o apoio e a participação dos homens que lutam COM a gente, e não PARA a gente, eis que não queremos delegados nem representantes, mas companheiros. Mais que isso, conclamamos os homens a se unirem à luta das mulheres. Não somos sexistas, os homens não são nossos inimigos. Em que pese

Congresso interno, 2010

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reconhecermos que a existência de desigualdades materiais entre os sexos conferem aos homens privilégios materiais em detrimento das mulheres, o que torna os interesses desses grupos antagônicos, a luta das mulheres é contra a organização social patriarcal. Em muitos momentos, desde a formação do Coletivo, contamos com o companheirismo de vários homens, os quais participaram de nossos espaços de formação, apoiaram as atividades desenvolvidas pelo grupo, construíram conosco alianças para fazer penetrar a pauta feminista em outros espaços do movimento estudantil e contribuíram para o enfrentamento cotidiano ao machismo. Ademais, permeia toda a prática política do grupo a contestação à forma pela qual o poder político foi e é estruturado. Um poder que ao se estruturar, não apenas consolidou o domínio de uma classe econômica sobre outra, como também a exclusão histórica das mulheres da vida política/pública, elemento central da ordem patriarcal que gera impactos na vida das mulheres e na própria política. Nesse sentido, cumpre notar que a conquista de postos de poder dentro do Estado por algumas mulheres, via de regra, constitui um processo mediante o qual as mulheres se vêm impelidas a assumir comportamentos e práticas políticas socialmente reputadas como masculinas. Mais que isso, essas mulheres têm a sua atuação política subjugada às exigências econômicas e sociais fundantes da escala social vertical, as quais sustentam, material e ideologicamente, a exploração-dominação levada a cabo pela elite branca, proprietária e heterossexual no poder. Assim, o Coletivo Dandara não perde de vista a problematização do próprio poder político, o qual incorpora os mecanismos de desvalorização e subordinação das mulheres. Por exemplo, tais espaços políticos são construídos como espaços em que vige a racionalidade, o personalismo e a hierarquização das relações, de forma que as mulheres, representadas como emotivas, compreensivas e socializadas com base na ética do cuidado, não teriam aptidão política para ocupá-los. Aliás, o próprio feminismo permite o redimensionamento da concepção restrita do que se tem acerca do que é político, ao ressaltar a politicidade das relações sociais travadas fora do âmbito institucional e também no âmbito privado, tendo consagrado, inclusive, a expressão “o pessoal é político”. Caminhamos para desconstruir os discursos

que “naturalizam” e que, portanto, consideram neutra e imutável a forma histórica pela qual o poder político se estruturou. O modelo conceitual do paradigma político dominante, como viemos ilustrando, funda-se em um protótipo de ser humano correspondente ao indivíduo do sexo masculino, branco, proprietário e heterossexual. Por óbvio, tal padrão é construído a partir do ponto de vista dos segmentos sociais com maior poderio econômico e político, os quais impõem a sua experiência cognoscitiva da realidade como parâmetro para a totalidade dos sujeitos. Reconhecermo-nos, portanto, enquanto feministas de esquerda implica questionar o caráter do poder institucionalizado e o modo consagrado de fazer política. As formas e as ferramentas de fazer política não estão desvinculadas dos fins que pretendem atingir. Em outras palavras, os métodos desse sistema de opressão não podem servir à libertação das (os) oprimidas (os). Assim como Paulo Freire constrói outra forma de educar, fundamentada em outra filosofia e métodos, uma pedagogia do oprimido, nos desafiamos a construir outra forma de fazer política e de nos organizarmos, rompendo com as falsas dicotomias: razão/emoção, público/privado, força/sensibilidade, disputa/solidariedade etc.

O Dandara como parte do movimento feminista

Estabelecendo uma comparação entre os grupos do campo da esquerda que atuam na Faculdade de Direito da USP, todos imbuídos do compromisso de trazer as contradições da realidade social e os movimentos populares para o âmbito da Universidade, e o Coletivo Dandara, percebemos que, nesse aspecto, o nosso grupo goza de uma particularidade, eis que ao mesmo tempo em que sempre esteve referenciado no movimento feminista, foi se constituindo como parte deste. As militantes que iniciaram o Dandara precisaram buscar nas organizações feministas já atuantes, como a Marcha Mundial de Mulheres, o instrumental teórico, organizacional e da ação política para construírem o grupo. Dessa forma, o Dandara já surgiu inserido no movimento feminista. Participamos e auxiliamos na organização de todas as ações do 8 de março, desde que surgimos, e procuramos acompanhar as demais atividades do movimento feminista, como a Frente Paulista pela Legalização do Aborto e contra Criminalização das Mulheres. Ao longo dessa trajetória, também nos

aproximamos de outras organizações feministas como a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, a União de Mulheres de São Paulo, a Liga Brasileira de Lésbicas, assim como das mulheres do Centro de Informação da Mulher (CIM), das mulheres do PSTU, das mulheres da UNEAFRO e do bloco afro Ilu Oba de Min. O nosso interlocutor ultrapassou os muros da faculdade de Direito e da Universidade, conseguimos nos fazer presentes no movimento feminista com a consciência de que é fundamental a perspectiva da unidade para fazer avançar a luta feminista, mas sem ignorar as divergências táticas e estratégicas existentes no seio de tal movimento.

Ata do 8 de março - Dia Internacional de Lua das Mulheres, 2009

Formação política, intervenção na universidade e extensão

Todos esses posicionamentos e convicções do Dandara surgiram de vários encontros de formação, de eventos na faculdade/universidade e de uma vivência prática em contato com as mulheres oprimidas da classe explorada. Criamos o hábito de organizar momentos de formação interna e também espaços mistos, nos quais os companheiros poderiam também contribuir. Esses momentos atuam como difusores das pautas feministas no movimento estudantil e fortalecem a legitimidade do grupo perante os grupos políticos da Faculdade. Ambos os espaços de formação serviram para a construção de um repertório, a criação de um instrumental para a interpretação da realidade e para a atuação crítica, e, dessa forma, para forjar vivências

compartilhadas e a nossa identidade coletiva. Aliado a esses momentos, também organizamos eventos que buscavam dialogar com a conjuntura da faculdade ou com debates em pauta na sociedade. Realizamos eventos sobre “mulheres encarceradas”, “violência doméstica contra a mulher e Lei Maria da Penha”, “mulheres, mundo do trabalho e crise econômica”, “trabalho doméstico e opressão racial”, “ questão lésbica”, “legalização do aborto” etc. Mas não reduzimos a nossa atuação política ao espaço da Faculdade de Direito. Nesse sentido, em 2009, participamos do Grupo de Discussão sobre opressões da Calourada do DCE; do espaço de discussão sobre “Racismo e Machismo” realizada no Encontro Nacional de Estudantes de Nutrição (XXVI ENENUT); da oficina de gênero no Encontro Nacional das Assessorias Jurídicas Universitárias (ERENAJU) e de uma discussão sobre sexualidade organizada pelo Centro Acadêmico da Faculdade de Nutrição da USP. Em 2010, participamos da Semana de Ciências Sociais, organizada por Centros Acadêmicos da USP; de debate sobre “Feminismo na Universidade”, a convite do Centro Acadêmico 22 de Agosto da Faculdade de Direito da PUC; do Curso de Formação organizado pelo Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU-USP) e de debate sobre “Machismo e Homofobia”, organizado por estudantes da USP como parte das atividades preparatórias para o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual. Isso se deu, por um lado, por buscarmos travar o debate feminista para além da Faculdade de

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Direito e acumular a nossa avaliação política acerca das suas possibilidades de penetração no movimento estudantil. Com efeito, tais momentos nos ajudaram a refletir acerca de quais são as contradições vivenciadas pelas estudantes e pelos estudantes universitários que podem tornar fértil o debate feminista na Universidade e no movimento estudantil. Por outro lado, por termos permanecido durante alguns anos como o único grupo feminista da USP, acabamos sendo muito demandadas para participar de espaços de formação política, principalmente a partir de 2009, quando percebemos significativo crescimento da demanda pelo debate feminista na Universidade.

Ultrapassando os muros da Universidade, o grupo optou por desenvolver um projeto de extensão universitária, com vistas a ampliar o seu contato com as mulheres da classe trabalhadora. Tal trajeto é permeado pela nossa escolha por um feminismo que não dissocia as questões de classe, gênero e raça. Esta concepção política ampliou e radicalizou o nosso discurso feminista, a ele incorporando as reivindicações das mulheres da classe mais desfavorecida e, ao mesmo tempo, colocou-nos diante da dificuldade de pautar bandeiras feministas - ou de adotar um viés de abordagem destas -, que efetivamente dialogassem com a realidade das estudantes universitárias e as sensibilizasse para a luta feminista. Por outro lado, a sedimentação desta identidade política fez surgir a demanda por nos aproximarmos de mulheres cuja experiência da opressão de gênero é atravessada por outros mecanismos de dominação e exploração, como os de classe e raça, que a ela se associam potencializando a desigualdade de gênero e os seus efeitos excludentes. A extensão universitária é um dos suportes do tripé em que se assenta a Universidade, juntamente com o ensino e a pesquisa. A prática extensionista tem em seu cerne o propósito de aproximar, numa

relação horizontal e dialógica, de um lado, o saber acadêmico, a Universidade e seus estudantes, dos saberes populares e da realidade social contraditória em que se inserem; de outro, incentivando-os a se engajar na luta pela superação dessas contradições e, como parte de um mesmo processo, na disputa por transformações do papel desempenhado pela Universidade para a manutenção das desigualdades sociais, re-significando a sua estrutura, a pesquisa e o ensino acadêmicos. Quando fizemos a opção por desenvolver um projeto de extensão universitária tivemos o SAJU-USP como importante aliado. Desde então, o vínculo de troca e companheirismo político permanece. O SAJU-USP existe desde 2005 e se constituiu como um dos primeiros grupos de extensão da Faculdade de Direito. Participamos do ciclo de formação do SAJU e de espaços congressuais durante o ano de 2008 com vistas à compreensão do que é extensão e de quais são as implicações da prática extensionista. Desta forma, a concepção de extensão construída no Dandara está muito apoiada no acúmulo histórico do SAJU, que compreende a extensão enquanto diálogo entre estudantes e os movimentos sociais norteado por uma intencionalidade política emancipadora. Vale dizer, não se trata de qualquer diálogo, é um diálogo orientado para uma tomada de consciência crítica que embase uma ação política transformadora, apta a modificar a realidade concreta das nossas interlocutoras, bem como nossa própria visão de mundo e do Direito. Partimos das demandas concretas das mulheres oprimidas sempre buscando fazer relação com o global, com os fatos históricos e materiais que instituíram a opressão e a exploração que essas mulheres vivenciam. A extensão universitária é, portanto, essa troca coletiva de saberes entre a Universidade e o universo das oprimidas, orientada para a mudança na vida das mulheres, e para a (re)definição da nossa ação política na Universidade, da nossa formação política e dos nossos valores. Iniciamos um projeto de extensão em parceria com o SAJU-USP na Vila Itororó em março de 2008. Para construir conosco essa iniciativa também convidamos mulheres de partidos estudantis de esquerda das Faculdades de Direito da PUC e do Mackenzie, as quais conhecemos no Encontro Nacional da Rede Popular de Estudantes de Direito (REPED), ocorrido em 2008. Assim, demos início ao trabalho com as mulheres da Vila Itororó, comunidade localizada na Bela Vista, centro de São Paulo, e que desde 2007 é ameaçada de desapropriação (a

Formatura das Promotoras Legais Populares, 2011

prefeitura paulistana visa construir no local um centro cultural para levar a cabo sua política urbanística higienista, que propõe a “revitalização” do centro, vale dizer, expulsar toda a população pobre que aí habita há décadas, para torná-lo uma região atrativa de investimentos imobiliários). Enfrentamos muitos desafios para consolidar um trabalho de educação popular com as mulheres da Vila Itororó. Notamos que elas tinham dificuldades de conciliar as atividades políticas com os afazeres domésticos. Frequentemente elas tinham que se ausentar das reuniões para cuidar da comida, lavar roupa, limpar a casa, o que evidenciava a sobrecarga de trabalho que recai sobre as mulheres. Além disso, ao administrar o seu tempo escasso, as mulheres priorizavam as reuniões do SAJU, em que se discutia a questão que sentiam como mais proeminente, no caso, a questão da moradia. Assim, poucas participavam das discussões. As mulheres chegaram a sugerir, muitas vezes, que fizéssemos um trabalho com as meninas mais jovens, as quais vivenciavam muitos conflitos relacionados à sexualidade, engravidavam cedo e sofriam violência de seus namorados, muitos deles envolvidos com o tráfico. Chegamos a preparar algumas oficinas, mas sentimos que não tínhamos formação política e a vivência necessárias para atuar com as jovens. Por outro lado, as mulheres já tinham direcionado suas forças na luta por moradia digna, que lhes traria ganhos imediatos mais significativos.

A nossa curta tentativa de atuação na Vila Itororó serviu para acumularmos uma maior compreensão acerca dos fatores presentes na vida das mulheres que condicionam a sua participação política e devem ser levados em conta quando se pretende desenvolver um projeto de educação popular voltado para elas e com recorte de gênero. Com efeito, a atuação das mulheres em espaços auto-organizados concorre com as tarefas domésticas, com o cuidado com os filhos e é até mesmo inibida pelos companheiros que não autorizam ou deslegitimam

a sua participação nestes espaços. Mais que isso, a experiência na Vila Itororó serviu para percebermos a dificuldade de organizar mulheres em torno da luta feminista, dado que, muitas das vezes, esta militância implica envolver-se numa forte luta ideológica, sem que se vislumbrem conquistas econômicas imediatas. Também amadurecemos nossa concepção de extensão, entendendo que para nós, estudantes, é importante ter o apoio de pessoas com mais formação e vivência no trabalho político com mulheres. A partir disso, buscamos conhecer projetos já desenvolvidos com mulheres, orientados pela perspectiva de gênero e pelo método freiriano. Outro ponto destacado foi a importância de trabalharmos em projetos que pudessem ser traduzidos em objetivos simples e claros para as educandas e educadoras, o que permitira avaliar os resultados, (re)orientar continuamente a ação e não desestimular as envolvidas. Ademais, ficou patente a importância de que estes projetos de educação popular tenham um tempo de duração definido, de forma que a sua cronologia se adeque à dinâmica rotativa do movimento estudantil. Como estudantes, estamos na Universidade de passagem, de forma que um projeto minimamente estruturado, com início, meio e fim, nos oferece mais condições de desenvolver uma ação coletiva consciente, organizada e concretizável.

Promotoras Legais Populares

Com o intuito de desenvolver um trabalho de educação popular com mulheres, buscamos construir diversas parcerias, com a Ação Educativa; o Instituto Polis; a Sempre Viva Organização Feminista (SOF); o Departamento Jurídico XI de Agosto (DJ) e o Curso Supletivo do Colégio Santa Cruz. Embora algumas meninas, já tivessem participado do curso de promotoras de Diadema, foi em uma conversa com Terezinha Gonzaga, militante feminista da União de Mulheres de São Paulo, que fomos convidadas para participar do Projeto das Promotoras Legais Populares de São Paulo. A União de Mulheres de São Paulo coordena o Projeto das Promotoras Legais Populares há mais de 15 anos em São Paulo. O projeto busca unir educação popular, feminismo e direito, com uma perspectiva crítica. A partir de uma reunião com Maria Amélia de Almeida coordenadora do curso, surgiu a parceria para a construção do projeto. Desde 2009, o Coletivo Dandara contribui na coordenação do Curso de Promotoras Legais Populares. Discutimos sobre as Promotoras em artigo dessa revista dedicado especificamente a esse tema.

Mulheres da Vila Itororó, 2009

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Os (novos) diálogos de 2010

Começamos o ano com a aproximação de novas militantes, trazendo novas perspectivas e desafios para o grupo. O maior deles foi conseguir ampliar o debate dentro da própria Faculdade. Nesse sentido, procuramos realizar debates sobre temas pouco abordados, mas que de alguma forma estivessem em evidência. Entre eles, destaca-se o evento sobre Mulheres e Futebol, realizado no início da Copa do Mundo. Outro momento que merece destaque foi a discussão sobre mulheres lésbicas que atraiu pessoas que nunca antes haviam se aproximado, o que permitiu um debate bastante estimulante. No segundo semestre, aprofundamos a busca por formas criativas de sensibilização e intervenção na Faculdade. Assim, logo na primeira semana de aulas, a exposição de recortes de perfis de bonecas com casos de violência foi o instrumento encontrado para dialogar com os alunos sobre a questão da violência contra as mulheres, em sintonia com a demanda por debate criado pelos casos de Geisy Arruda e Eliza Samudio. Um evento cheio sobre o assunto, na sequência, destacou o reconhecimento das opressões de gênero e a atualidade da pauta. Ainda em Agosto, pela primeira vez nos organizamos para realizar intervenções na Semana de Visibilidade Lésbica. Buscamos desvelar a pauta por meio de uma exposição de imagens no pátio conjugada a uma sessão de filmes e debate, com o intuito de revelar a dupla opressão e o duplo menosprezo que sofrem essas mulheres na sociedade e na mídia. Pouco tempo depois, um convite do novo coletivo de mulheres da então gestão do Centro Acadêmico 22 de Agosto, o Yabá, foi o passo inicial para uma ampla frente de mulheres universitárias pela legalização do aborto, responsável por eventos na ECA, na São Francisco e na PUC. O grupo também foi responsável pela articulação de um ato na Praça da Matriarca, que reuniu os mais diversos grupos da luta feminista, como a Marcha Mundial das Mulheres

e Movimento Mulheres em Luta. Infelizmente, dias depois o tema do aborto foi apropriado como instrumento de polarização política no 2º turno das eleições presidenciais, reflexo da fragilidade do Estado enquanto laico, da ofensiva neoliberal na saúde e do retrocesso da consciência social acerca da autonomia do corpo das mulheres.

Em outubro, vivemos um dos momentos mais marcantes de 2010. Em outra intervenção no pátio, que questionava, por meio de cartazes, a presença de mulatas seminuas no espaço surreal do tradicional Grito do Peru, procuramos conjugar a discussão da opressão de gênero com a de raça. Como esperado, o Coletivo causou polêmica em reivindicar uma postura diferente perante as tradições da faculdade e consolidou o grupo como um importante agente de luta na disputa ideológica. Seguiram-se a isso mais um evento cheio, sobre corpo e poder, além de panfletagem no pátio, que só fizeram evidenciar uma maior proximidade das Dandaras com o universo dos estudantes. Por esses instrumentos, procuramos expor as contradições sobre a presença das mulheres negras na universidade, que colocam em xeque, por um lado, o mito da democracia racial e o da superação do machismo, que caem por terra ao observamos as pouquíssimas cadeiras nas salas de aula ocupadas por mulheres negras e nos outros espaços da faculdade, e, por outro, o estereótipo da sexualidade tão ligado às mulheres negras, que ganha força no Grito do Peru, ocasião que reforça tal ideia e está muito longe de ser uma forma de valorização da cultura negra (pelo contrário). A última grande atividade do ano foi também bastante nova e enriquecedora para nós. Reconhecendo a importância política do projeto Promotoras Legais Populares, os professores Marcus Orione Gonçalves Correia e Jorge Souto Maior convidaram o grupo e a União de Mulheres de São Paulo para protagonizar duas aulas do curso

Intervenção na Faculdade de Direito da USP, 2011

Também em 2009 realizamos uma parceria como Departamento Jurídico XI de Agosto na construção do Grupo de Trabalho “Maria da Penha”, voltado para atender mulheres em situação de violência doméstica. Debruçaremos-nos sobre nossa experiência no DJ em outro artigo específico desta revista.

Liga Maria da Penha no Departamento Jurídico XI de Agosto

Direitos Sociais e Método, inserido no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Além de termos tido a oportunidade de planejar, juntamente com Maria Amélia Teles, espaços de diálogo com um grupo tão diferente daqueles com os quais estávamos habituadas, essa experiência foi extremamente importante para qualificar o recorte de gênero como instrumento de análise da estrutura social, bem como para destacar seu indispensável imbricamento com as demais lutas valorizadas pela esquerda, tanto orgânica como aquela voltada para a produção acadêmica. Na ocasião, também cabe destacar a estimulante discussão sobre os avanços e limites da Lei Maria da Penha, inclusive de suas repercussões no campo do Direito do Trabalho.

História feita por mulheres e contada por mulheres.

Essa é a trajetória do grupo até o final do ano de 2010. O Coletivo Dandara, há quase 5 anos, vem construindo a pauta feminista dentro e fora da universidade, com debates, intervenções e ações políticas. Essa construção merece um registro. A revista do Dandara vem consolidar o percurso político do grupo e registrar nossas atividades e acúmulos teóricos e práticos. A compilação de nossas experiências também significa um importante momento de avaliação e autocrítica que nos possibilitará avançar em algumas discussões. A revista cumpre ainda o papel de aprofundarmos nosso diálogo com a universidade e com o movimento feminista. Por meio do registro das experiências do Dandara, esperamos contribuir com a transmissão do nosso tímido acúmulo

para as militantes que a partir de agora lhe darão continuidade, para os outros grupos de mulheres que esperamos que se constituam na Universidade e para o movimento estudantil como um todo, o qual pode incorporar muitas contribuições teóricas e práticas do movimento feminista para repensar o seu discurso e a sua forma de fazer política, tornando-os mais inclusivos. A primeira história que gostaríamos de contar é a história das mulheres1. Queremos contar a história do Coletivo Dandara, como expressão do movimento feminista, como parte da história das mulheres que não pode mais ficar na invisibilidade. Afinal, as mulheres se fazem presentes e estão em movimento.

1 PERROT, Michelle, Minha História das Mulheres, São Paulo: Contexto, 2008, p.16.

Evento na Faculdade de Direito com Marcia Tiburi e Elisa Gagiulo, 2012

Dandara

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3. Entrevista: Maria Amélia de Almeida Teles

“A vida, a vida só é possível reinventada”Reinvenção - Cecília Meireles

O contato pessoal do Dandara com Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, ocorreu no final de 2008, quando buscávamos construir um projeto de extensão universitária. Como ela já organizava o projeto de Promotoras Legais Populares há 14 anos, era uma grande referência no âmbito da educação popular em direitos com caráter feminista. Assim, marcamos uma reunião com ela na sede da União de Mulheres de São Paulo e, após poucos minutos de conversa, tamanho o entusiasmo com que ela nos apresentou o projeto e a generosidade política com que abriu aquele espaço para nós, já estávamos envolvidas na décima quinta edição do curso de Promotoras Legais Populares de São Paulo. Ao longo de 2009, os vínculos do Dandara com Amelinha se aprofundaram, sobretudo em razão do curso das Promotoras Legais, cujo processo dialógico de educação ensejou um significativo crescimento político para o nosso grupo. Nesse período, Amelinha reforçou-se como referência política do Dandara, convertendo-se agora também em uma grande companheira que fortalece a nossa atuação com a experiência e a rebeldia de quem participou de grande parte das lutas sociais brasileiras dos últimos anos. Justamente pelo histórico comprometimento com a ação coletiva para a superação das desigualdades estruturantes do capitalismo e do patriarcado, bem como pela inquebrável convicção crítica e emancipadora, entendemos que a melhor forma de apresentarmos Amelinha na nossa revista seria através de um relato de suas próprias experiências nos movimentos sociais. O presente texto é fruto de algumas horas de conversa com a Amelinha, nas quais ela dividiu conosco algumas experiências significativas de sua militância política.

O início da militância Eu sou Amelinha Teles, sou mineira, nasci em Contagem, em 1944. Quando eu nasci, a segunda guerra mundial já estava chegando ao final e isso teve uma repercussão muito grande na vida em sociedade. Eu sou filha de sindicalista comunista, portanto já fui nascer dentro da militância política e isso foi muito forte na minha formação. Eu entrei no Partido Comunista em 1960, com

15 anos, mais ou menos, e eu entrei com aquele idealismo de mudar o mundo. Aprendi logo o método de alfabetização de Paulo Freire e fui a muitas favelas dar aulas de alfabetização. Eu militei muito tempo no Partido Comunista, mas sempre vi muitos problemas dentro dele, principalmente com as mulheres. Por que era assim: havia pouquíssimas mulheres, pois eu sou do tempo em que pouquíssimas mulheres iam para um partido clandestino, no qual tinha que fazer pichação em porta de fabrica, fazer panfletagem. Tinha mulher que o pai não deixava, o namorado não deixava, o irmão não deixava. Às vezes o irmão até era do partido e não deixava a irmã ir. E isso era uma coisa que me incomodava, eu pensava: “que diabo, o irmão vai e a irmã não pode! Mas comunista não é tudo igual?”.

A descoberta do feminismo

Eu falo que o dia exato em que eu me tornei feminista foi no dia 19 de março de 1964, porque nesse dia teve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Eram milhares e milhares de mulheres. Nessa época eu morava em Belo Horizonte e se falava em 250 mil mulheres, o que significava quilômetros e quilômetros de mulheres. Nunca mais na minha vida inteira, até hoje, eu vi 250 mil mulheres juntas, marchando assim. Naquela marcha eu vi as mulheres que a gente saía para defender: mulheres negras, empregadas domésticas, mulheres pobres. E, vamos dizer assim, as patroas delas eram poucas e saiam como as coordenadoras do “evento”. E havia também os padres, que vinham com aqueles santos, aquelas coisas. E era assim: lutando contra a reforma agrária, dizendo que era uma bandeira comunista, falando “cuidado que o Brasil vai cair na mão dos comunistas”. E aquilo me doeu demais, aquilo me fez chorar muito, eu chorei na rua, eu ficava olhando e chorando. Aí eu pensei que no âmbito da esquerda tinha alguma coisa errada, porque em vez de ganharmos as pessoas para a nossa luta, nós estávamos entregando essas pessoas para a ultra-direita, porque aquele pessoal

era o supra-sumo do conservadorismo.

Ditadura militar, repressão política e clandestinidade

Maria Amélia de Almeida Teles no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), 1973

Logo depois, ocorreu o golpe militar e nos primeiros dias meu pai foi preso porque era comunista conhecido. Eu também fui presa, então não tinha mais tempo para pensar nas mulheres. Eu fui presa em um quartel do exército em que não tinha lugar para as mulheres, todo mundo que estava preso lá era homem. Acho que eles prenderam a mulher e depois pensaram “o que eu faço com essa mulher aqui?”. Mais tarde, em 1972 /1973, eu acabei ficando junto com as mulheres na cadeia. Fora o tempo da tortura, em que se fica muito isolada, eu vivi com 23 mulheres na prisão. No coletivo das mulheres discutíamos muito nossas questões, foi onde pudemos falar das nossas experiências pessoais sem nos preocuparmos com o que achavam os companheiros da organização. Cada mulher era de um movimento diferente, cada uma vinha de um lugar diferente, de modo que a nossa convivência nesse coletivo foi uma troca muito bonita. Ali eu já estava muito certa de que eu tinha que seguir o feminismo, assim, eu saí da cadeia em 1974 com essa perspectiva feminista, ainda que nebulosa.

Quando eu saí da primeira prisão, em 1964, fui procurar meu pai, porque ele ficou desaparecido por seis meses. Havia muitas mulheres procurando os maridos, irmãos, filhos, sobrinhos etc. Eu era uma mulher que ia procurar o meu pai, mas eu tinha um compromisso político com aquela luta que as outras mulheres que procuravam seus parentes desaparecidos não tinham. Elas lutavam, com muita força, com muita garra, com muita emoção, mas elas não tinham consciência política. E isso me chamava muita atenção, eu pensava que tinha alguma coisa errada, pois como que os homens que elas estavam procurando tinham consciência política e elas não? Em seguida, eu fui para a clandestinidade. Na clandestinidade, militei só com homens. Eu tinha clareza da discriminação que existia ali, toda hora eu tinha que discutir com os companheiros que estava sendo discriminada porque eu era mulher. Eu trabalhei na imprensa do partido, fazendo jornais e outras publicações, além da parte de distribuição do material produzido.Todos os jornais “A classe operária” dessa época que tinham coisas sobre a questão da mulher fui eu que escrevi, mesmo com muita censura do partido. Eu também fiz as primeiras discussões sobre o dia 8 de março dentro do partido, ainda clandestino, com os homens. As mulheres foram chegar no partido depois de 68, mas eu só convivi com mulheres em coletivo na cadeia, porque essas mulheres que entravam na militância tinham tarefas específicas e eu continuei na minha tarefa de imprensa, que era ocupada pelos homens.Entre 74 e 75, eu entrei em contato com as mulheres do clube de mães, mulheres da periferia, em um contexto em que a Igreja Católica era muito forte. Era um movimento popular só de mulheres, mas elas não chamavam de movimento popular de mulheres, e sim de movimento do custo de vida. Eu comecei a acompanhar o movimento pelo custo de vida, o movimento pela anistia política e o movimento de mulheres que estava nascendo. E eu fiquei ligada nos três movimentos porque o movimento popular sempre foi a minha praia mesmo, no movimento de anistia eu estava muito interessada, pois era uma coisa que me dizia respeito, e o movimento de mulheres também. Então eu fiquei ligada nos três, tanto é que eu entrei no movimento feminista com essas três características. Aí alguém conta para nós, eu não sei nem como eu fiquei sabendo, que tinha sido declarado o Ano Internacional da Mulher pela ONU e que foi convocada a Primeira Conferência Internacional da Mulher na Cidade do México. Em função disso, vinham

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aqueles documentos para nós, tudo clandestino, tudo escondido, falando que as mulheres eram as mais pobres do mundo, que as mulheres são mais analfabetas, que as mulheres trabalham mais que os homens... Isso tudo que estão falando agora foi lá que eu aprendi, em 1975.

Feminismo na esquerda

No primeiro número do jornal “Brasil Mulher” nós não usamos a palavra feminismo, sendo que no segundo a gente já usou. E quando a gente falava em “feminismo”, a briga era grande, porque muita gente com a mesma concepção da esquerda tinha rejeição não só ao termo “feminismo”, mas ao conteúdo dele. Achavam que nós éramos separatistas, que íamos separar as mulheres dos homens e que isso enfraqueceria a classe operária. Acho que é um discurso que até hoje repercute. Quando as feministas levantam que o pessoal é político, essa bandeira me caiu muito bem, pois o meu pessoal sempre foi político, eu nunca vivi um pessoal não político. Outra bandeira, “este corpo nos pertence, nós que vamos decidir sobre ele” causou muito problema dentro do partido. Eu fui expulsa do PC do B por causa do feminismo. Quando falávamos em corpo, havia uma palavra de ordem que era muito bonitinha: “FMI, cambada de ladrão, controlam o nosso útero e roubam o nosso pão”. Mas o partido foi radicalmente contra, a direção do partido à época (1984) considerou que útero era um palavrão, e eu tive que mostrar pra eles que era uma palavra cientificamente correta... Isso é para vocês terem uma idéia de como era um pessoal muito atrasado. Eles falavam assim: “você tem que pensar primeiro na classe operária” e nós falávamos “mas a classe operária tem sexo, e o sexo feminino da classe operária é diferente do sexo masculino, assim como o sexo masculino é diferente do sexo feminino”. Eu me lembro deles falando: “classe operária não tem negócio de sexo, não”. Dentro da esquerda havia vários discursos para desconstruir o feminismo. Tinha um discurso de que nós havíamos importado o feminismo, porque veio muito material da Europa e dos EUA. Aí a gente falava assim: “mas Marx também veio da Europa e ninguém é contra”. Eles falavam que o feminismo era um desvio da classe operária, que só interessava às mulheres da classe média. Aí, em 79, nós resolvemos fazer o Primeiro Congresso da Mulher Paulista e juntamos duas mil mulheres populares no Teatro Ruth Escobar. Desmascaramos esse discurso, pois se a mulher que era, digamos, da USP, ia mais às reuniões do que a

mulher que era lá do Campo Limpo, era compreensível. Não era por causa do interesse, mas sim porque a menina que estuda na USP tem mais tempo, mais disponibilidade que a outra. Agora quando íamos ao Campo Limpo, a outra estava lá e gostava da conversa, ficava ali discutindo e queria conversar.

Maria Amélia de Almeida Teles no Primeiro Congresso da Mulher Paulista, 1979

E eles falavam: “as mulheres querem conversar, mas sobre as questões de classe, as questões econômicas, não sobre as questões de sexualidade, isso aí até pega muito mal ficar conversando com essas mulheres”. E eu digo: “pega muito bem, vocês precisam ver quanto elas gostam. Se a gente fala de sexualidade junta muito mais mulheres do que se falar sobre salário”. Quer dizer, tudo que eles falavam, nós mostrávamos que era o contrário e mostrávamos com a mobilização das mulheres. Quando os homens viram o sucesso do Primeiro Congresso da Mulher Paulista, com um monte de mulheres do povo, um monte de mulheres negras - e também a esquerda viu o sucesso que foi - eles começaram a ficar com medo do feminismo. Porque eles viam a gente como uma força paralela, porque eles não conseguiam ver a possibilidade de ter um diálogo com a gente.

Ascenso do movimento feminista e sua institucionalização O movimento era uma coisa bonita, a gente trocando experiências entre nós, mulheres de várias classes, de várias orientações sexuais, de várias raças-etnias, de vários partidos políticos de esquerda. Eu acho interessante porque o feminismo no Brasil, esse feminismo que a gente retoma, nasceu com muita força. A necessidade histórica era muito forte.

Nossa, foi muito bonito! Eu até escrevo no meu livro que o primeiro 8 de março que nós fizemos foi lá no MASP, eu não sei quem conseguiu o auditório do MASP para nós, e nele cabiam exatamente 300 pessoas. Quando nós chegamos lá, tinha muita polícia infiltrada, porque em 76 ainda havia muita polícia, muita repressão. A partir daí, todo ano foi ter comemoração do 8 de março. E as discussões durante o ano, no nosso caso, foram em dois jornais: o “Nós mulheres” e o “Brasil Mulher”. Mas o jornal era um pretexto, na verdade, ele era o que menos interessava, o que interessava era a gente se reunir e discutir de tudo, já com uma posição claramente feminista. Entendíamos que buscar as causas da discriminação contra as mulheres era importante, mas chegou uma hora em que discutíamos tanto isso que a chegamos à conclusão de que, independentemente de chegarmos a um acordo sobre as causas da discriminação da mulher, todo mundo concorda que a mulher é discriminada, então vamos lutar para combater a discriminação. Então fazíamos grupos com muita diversidade política, era muito heterogêneo. Algumas de nós aceitávamos como sendo o patriarcado a causa da opressão, quer dizer, é o ponto de vista marxista: a primeira divisão do trabalho é a divisão sexual do trabalho que cria condições para o desenvolvimento do patriarcado. Hoje a antropologia já tem outros conhecimentos, se desenvolveu muito depois de Engels, mas o interessante é que o conceito de patriarcado desnaturaliza essa discriminação. Posteriormente nós começamos também a falar em gênero, que é um medidor. Quando eu falo em gênero, eu comparo o termo com óculos e quando você tem óculos você enxerga melhor. E se você tem óculos e tem uma cabeça feminista enxerga melhor ainda. Então eu só vejo gênero como algo útil para nós dentro de uma leitura feminista. Porque do que adianta eu saber que a mulher é discriminada e tal, se não sei qual é a minha intervenção nisso? Como eu vou reagir? Que estratégias? Nós temos que ter uma força articulada para poder romper com isso, tem que ter um sistema fortalecido, mais entrelaçado entre o social, a economia, a política, a religião, para fazer esse bloqueio. Não é só o aspecto psicológico, há a necessidade de uma ação maior contra o que está amarrando o nosso corpo, a nossa alma, as nossas decisões e eu entendo que isso é fruto de um sistema muito bem construído. Nem todas as mulheres usufruem das nossas conquistas. Nós conquistamos, de 1975 até agora, o direito de ser ou não ser mãe. A pílula fez

diferença e quem lutou para que houvesse uma política de distribuição dos meios contraceptivos foram, principalmente, as mulheres. O divórcio no Brasil também é uma conquista. Creche como direito da criança pequena também é uma conquista do movimento feminista. Nós conquistamos o reconhecimento da violência contra a mulher. No dia 10 de outubro de 1980 foi a primeira vez que nós fomos à escadaria do Teatro Municipal, onde uma mulher que era da USP, branca, linda, escreveu uma carta denunciando a violência que ela sofreu dentro de casa pelo marido, branco, de classe média. Violência contra mulher era considerada “coisa de preto”, falavam que era coisa de favelado que bebia muito. A Constituição é uma espécie de coroamento dessa luta, pois essa constituinte foi feita com muita mobilização das mulheres. Ela trouxe, pelo menos no campo formal, uma igualdade que muitos dizem ser plena. Uma ou outra feminista diz que dá até para depreender da Constituição o direito ao aborto. Se nos anos 70 teve uma construção inicial do feminismo articulado com a luta contra a ditadura, na década de 1980, nós pegamos um movimento mais organizado, aí começaram a formar as chamadas Organizações Não-Governamentais, as ONGs. Começaram também a ter órgãos governamentais, que são os Conselhos da Condição Feminina, a primeira Delegacia da Mulher, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Então começaram a ser criados órgãos não-governamentais e órgãos governamentais para tratar do feminismo. E o feminismo começa a ter uma característica profissionalizada. Nem todo mundo é só militante, só ativista. Então você vai ver essa institucionalização, especialização do feminismo. Eu acho que nos anos noventa, nós vimos o movimento superespecializado. Nos anos noventa, para você ser feminista, você deveria falar inglês, se não você não conseguia ou teria imensa dificuldade em participar, pois as principais atividades passaram a ser internacionais. Quer dizer, nós chegamos a esse absurdo de ter que conviver com a tecnocracia no feminismo. Você tinha que ter condições de participar de tudo quanto é conferência internacional, então você tinha que falar inglês, para se fazer entender.

Ainda há por que lutar!

Eu acho que a partir de 2000 o feminismo começa a voltar para a sua origem, ele tem necessidade de voltar, porque essa sofisticação, ao mesmo tempo em que responde a uma necessidade da internacionalização do movimento e facilita a participação de algumas mulheres, deixa, por outro lado, uma mulherada muito

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grande fora dos feminismos e elas querem entrar. Então hoje, do ponto de vista da metodologia de trabalho, eu vejo a necessidade de voltar para os anos 70. Porque nós que introduzimos a educação popular, as oficinas, até porque nós tínhamos que aprender muita coisa com a nossa própria experiência e isso fez com que a fossemos muito criativas, tinha que inventar. E essas experiências das mulheres, de lidar com o povo, de conhecer o povo, é uma experiência maravilhosa.

Maria Amélia de Almeida Teles após o ato do 8 de março, 2010

O que é interessante mesmo é que a gente conseguiu tanta coisa, e ao mesmo tempo ainda tem tanta coisa para lutar. A gente vê que a nossa cidadania está ainda no campo formal, ainda muito restrita à elite. Muita gente está excluída. Quantas mulheres não são espancadas ou ameaçadas e as Delegacias não fazem nem boletim de ocorrência? É essa contradição: as políticas públicas foram conquistadas, mas os serviços executados são cada vez piores. Hoje um grande entrave para o feminismo é o neoliberalismo. As pessoas trabalham muito mais, a velocidade com que as pessoas têm que desempenhar as tarefas é muito grande, estão sob pressão o tempo todo. A mulher ainda tem o problema da quantidade de trabalho que não é remunerado. Não tem ninguém que faça no lugar dela, então, se ela não fizer hoje, amanhã tem o dobro de trabalho. Vejo isso como um problema sério para a participação política das mulheres.Esses dias um rapaz chegou me dizendo que nós, mulheres, é que éramos as educadoras e que continuávamos

transmitindo essa ideologia machista. É muito fácil culpar a mulher, responsabilizá-la pela própria opressão, mas eu costumo responder que quem educa não é só quem fica com o filho. O pai educa também pela omissão, quando ele não assume a responsabilidade de educar os filhos, ele educa pela ausência. A mulher é obrigada, por causa da discriminação, a cuidar sozinha dos filhos, mas a educação deveria ser um processo coletivo. Enquanto só a mulher for responsável pela educação dos filhos, evidentemente, o machismo vai permanecer. Machismo é ideologia, idéias que passam na cabeça de homens e mulheres. São muitas as dificuldades do movimento feminista. Não são diferentes das dificuldades dos outros movimentos, só que o feminismo tem uma luta ideológica muito intensa, mais do que os outros. Não adianta pensar que a burguesa não está sofrendo discriminação, porque está; de uma forma diferente da outra que é pobre, mas está. Nós temos que nos dar conta da complexidade do nosso movimento. Nesse cenário, acho que o Curso de Promotoras Legais Populares é muito importante porque abre uma porta para as mulheres se colocarem, trazerem suas dúvidas, experiências, entrar em contato com outras pessoas. Eu vejo que a Educação Popular facilita o diálogo, a troca de experiências, a construção coletiva de um conteúdo teórico e prático. A mulher fica mais empoderada, mais convencida de que pode transpor barreiras, porque está em grupo dialogando, o que traz mais confiança e segurança. O feminismo que me encantou e que me encanta sempre é essa abertura para todas as mulheres. Você pode ser gorda, magra, velha, jovem. Nós somos mulheres, temos idéias, experiências, queremos conversar sobre isso.

4. Educação popular com mulheres?

Considerações sobre a experiência do Coletivo Dandara no curso de Promotoras Legais Populares de São Paulo

“Todas nós aqui estamos construindo uma nova cultura. A cultura do não”

(Ramona - Integrante do 15º Curso das Promotoras Legais Populares)

Introdução

O objetivo desse texto é apresentar o Curso das Promotoras Legais Populares de São Paulo e a experiência do Coletivo Dandara enquanto parte da coordenação do projeto. Em um segundo momento, a partir da vivência do Coletivo, alguns pontos foram levantados que merecem reflexão.

Sobre as Promotoras Legais Populares

Em 2009, o Coletivo Dandara começou a acompanhar a coordenação do 15º Curso de Promotoras Legais Populares de São Paulo1, em parceria com a União de Mulheres de São Paulo (UMSP). A aproximação com o Curso das Promotoras ocorreu a partir de uma conversa com Terezinha Gonzaga, da União de Mulheres, que conhecemos durante o Seminário

organizado pelo Instituto Polis sobre “Mulheres e Direito à cidade”. Após a conversa, ela nos convidou para participar de uma reunião ordinária da União de Mulheres, oportunidade em que conhecemos Maria

1 A iniciativa de organizar cursos de capacitação/formação de lideranças mulheres foi estimulada na América Latina pelo Cladem (Comitê Latino- Americano e do Caribe para a Defesa dos Diretos da Mulher). No Brasil, foi o grupo Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre, que primeiro implementou o Curso de Promotoras Legais Populares, em 1993, seguido pela UMSP em 1995.

Amélia Teles, a Amelinha, militante feminista histórica e principal idealizadora e organizadora do curso em São Paulo. Em São Paulo, o Curso das Promotoras tem duração de um ano e tem como público mulheres de diferentes realidades, como líderes comunitárias e de movimentos sociais, estudantes, donas de casa, funcionárias da rede pública, particularmente das áreas relacionadas à implementação de políticas sociais, etc. Os encontros ocorrem semanalmente, com uma carga de quatro horas semanais e desenvolvem uma problemática diferente, que envolve demandas das participantes, temas relacionados ao direito, à opressão das mulheres, à mídia, ao Estado e à política numa perspectiva que extrapola o âmbito institucional e os limites da disputa eleitoral. O enfoque principal do curso é a questão da violência contra a mulher. O objetivo, todavia, não é tratar dos diversos temas de forma meramente técnica/instrumental; a intenção que perpassa todos os espaços do curso é a de politização dessas mulheres, a fim de estimular um processo coletivo de tomada de consciência crítica acerca da realidade que vivenciam enquanto mulheres e, assim, impulsionar o engendramento coletivo de uma ação política transformadora. Nesse sentido, a discussão/problematização de uma sociedade estruturada pelo patriarcado e pelo capitalismo e marcada pelas opressões de gênero, raça e classe está presente em todo o curso e é parte da sua intencionalidade política. Sobre essa intencionalidade, o pedagogo e militante político Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, bem expressou que “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”2. Em outras palavras, nenhuma educação é neutra ou é desvinculada dos valores que acompanham o educador. A chave para a compreensão da educação popular reside neste reconhecimento de que todoprocesso educacional carrega uma intencionalidade política. Nesse sentido, a educação popular constitui

2 FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996, 29ª Ed, p. 125.

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a materialização de uma intencionalidade política que visa à transformação da sociedade de classes, hierarquizada e patriarcal, na qual homens e mulheres têm autonomia e condição humana negadas. Por isso, busca-se explicitar a intencionalidade política das PLPs. Nesse sentido, problematizar o caráter patriarcal da sociedade, bem como desnudar as opressões de gênero, raça e classe são objetivos presentes em todo o curso. O Coletivo Dandara vem buscando, gradualmente, exercer uma participação mais ativa nos encontros, tentando contribuir para que esse processo de politização e mobilização das mulheres se opere por meio de uma emancipação coletiva, na qual todas se percebam como sujeitos políticos e enxerguem as colegas como companheiras de luta. O grupo procura estabelecer uma relação de troca com as mulheres, acreditando que através do diálogo as participantes podem refletir sobre as suas histórias de vida e os conflitos que as perpassam, politizando-os, pelo qual se libertam da realidade sufocante e solitária oriunda do seu confinamento histórico ao âmbito privado, notadamente à família, representada pela ideologia dominante como o seu espaço de plenitude e auto-realização. Nossa participação também visa a motivar o debate, sempre pautado pela ênfase na questão de que as opressões que as mulheres sofrem não são problemas individuais e, por isso, é apenas no espaço coletivo, através da ação política, que é possível a sua efetiva emancipação. Portanto, o papel do Dandara vem sendo, a cada encontro, facilitar as discussões através de um recorte de gênero e destacar elementos históricos e conjunturais da sociedade patriarcal. Assim, potencializa-se a capacidade de debater criticamente e de relacionar ações individuais à comportamentos universalmente naturalizados. É outro desafio do grupo sempre reavaliar o curso - examinando como as mulheres interagem, quais instrumentos faltaram para estimular uma reflexão mais profunda e quais as demandas mais prementes das mulheres - a partir da compreensão das condições materiais colocadas em suas trajetórias de vida. Buscamos, dessa forma, sempre melhorar a estrutura do espaço, compreendendo que conteúdo e método são indissociáveis. O Coletivo busca re-pensar o curso para garantir que a intencionalidade política não se perca, sempre através do estabelecimento de ponte comunicativa entre o universo jurídico-acadêmico

Vivência – prática e teoria em diálogo

dos palestrantes e a realidade vivida pelas mulheres. No bojo dessas avaliações, possuem relevância, para efeito de discussão nesse texto, alguns pontos teóricos e práticos que norteiam a dinâmica, a organização e os objetivos do curso. Com efeito, a experiência do Coletivo Dandara no primeiro semestre de 2009 no curso de PLP’s nos proporcionou muitas reflexões sobre questões que o grupo somente debatia no plano teórico, ilustrando concretamente a compreensão que já tínhamos da educação popular enquanto práxis - vale dizer, enquanto relação dialética entre prática e teoria. São essas as questões que serão abordadas a seguir.

O Coletivo Dandara nasceu em 2007, como um grupo político e de formação feminista. Em meados de 2008, surgiu a demanda por desenvolver um projeto de extensão universitária, fomentada, em grande parte, pela aproximação do grupo do SAJU-USP (Serviço de Assessoria Jurídica Universitária), que nos proporcionou o contato com a RENAJU (Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária) e ofereceu as portas de entrada para a produção teórica de Paulo Freire. O Curso das Promotoras Legais Populares foi um dos espaços possíveis que o grupo identificou para o desenvolvimento da prática extensionista, começando a atuação do grupo no curso de São Paulo em 2009.

Por que um projeto de extensão?

Seguindo a perspectiva do que ficou conhecido como tripé-universitário (Ensino-Pesquisa-Extensão), o grupo acredita que a universidade pública deve manter um constante diálogo com a sociedade e que o conhecimento por ela produzido não deve permanecer restrito ao campo das abstrações, dos idealismos e da pretensa neutralidade tão afetos ao debate acadêmico. Ao mesmo tempo, percebemos que o ensino e a pesquisa jurídicos não fogem a essa regra, sendo construídos a partir de um paradigma androcêntrico, que desconsidera as mulheres enquanto sujeitos de direitos, e que reproduzem os interesses das elites dominantes, posto que ocultam as contradições materiais estruturantes das relações sociais, bem como os interesses antagônicos que decorrem dessa realidade conflituosa. Por isso mesmo, trata-se de um conhecimento (re) produzido a serviço do status quo, absolutamente descomprometido com os sujeitos das transformações sociais. Assim é que a nossa participação no Curso de Promotoras Legais

Populares se expressa como uma oportunidade de se contrapor a este modelo que visa à neutralização de todo potencial transformador da Universidade para construir, junto com as mulheres, um Direito que faça sentido para elas, referenciado nas suas experiências e demandas concretas e, ademais, que por elas seja apropriado enquanto instrumental potencializador das suas lutas.

É nesse sentido que o Dandara optou por desenvolver a educação jurídica popular com um recorte de gênero, por a reconhecermos como um instrumento que possibilita às mulheres o conhecimento dos direitos que lhes são assegurados pelos documentos legais, criando condições, portanto, para que possam lutar pela sua efetivação. Mais que isso, buscamos proporcionar às mulheres o reconhecimento desses direitos como produto da luta histórica dos movimentos sociais, incentivando a sua mobilização em torno da conquista de novos direitos que nos aproximem da idéia coletiva de justiça social. Ressalte-se que este processo político permite identificar as limitações do discurso jurídico e da estrutura normativa para a subversão da ordem patriarcal de gênero e para construção da igualdade entre homens e mulheres, o que cria condições para o gradual rompimento com a ideologia que atrela o Direito positivado ao justo, desmistificando o limite tênue, sob o aspecto político, entre o respeito à ordem e a oposição a ela. Também, a aproximação das PLP’s reflete uma demanda do grupo por aproximação do movimento de mulheres, reflexo da nossa identidade política. Isso porque o Coletivo Dandara, desde o seu surgimento, aproximou-se de uma corrente feminista que busca compreender a opressão das mulheres de forma indissociada dos recortes de classe e de raça-etnia, inserindo o feminismo no bojo de uma luta ampla por transformações estruturais das relações sociais e econômicas, sem as quais não é possível a emancipação feminina. Em que pese a nossa opção

por este referencial teórico, no dia-a-dia do grupo, as mulheres com as quais dialogávamos no âmbito da Universidade eram, em sua esmagadora maioria, brancas e de classe média, o que nos proporcionava uma janela de visão muito estreita acerca das formas pelas quais se materializa a opressão das mulheres na sociedade brasileira. Assim, queríamos auferir o sentido e a necessidade histórica deste feminismo mediante o seu confronto com a realidade das mulheres pobres e negras da periferia, sem as quais a luta feminista não pode ser construída dentro de uma perspectiva efetivamente transformadora, mas tão somente no marco da reivindicação de direitos, os quais, uma vez positivados, só se tornam efetivos para as mulheres pertencentes às elites, não constituindo ameaça ao status quo das classes privilegiadas. Não que não quiséssemos debater o feminismo com as mulheres estudantes, mas porque compreendíamos que o feminismo a ser construído com elas, para o qual deveríamos sensibilizá-las, deveria partir da vivência com as mulheres da classe trabalhadora. Vale dizer, seria preciso enxergar e entender a realidade dessas mulheres pobres, negras, estudantes de assistência social, mães, donas de casa, líderes comunitárias, empregadas domésticas freqüentadoras do curso de PLP’s, para reunir elementos para a afirmação de um referencial feminista efetivamente transformador, posto que não restrito à proposição de reformas dentro dos estreitos limites do Direito, mas condicionado a uma profunda transformação das relações sociais, econômicas e políticas. Muitos desses pressupostos teóricos vão ganhando consistência e forma na medida em que são colocados na prática e permanentemente rediscutidos. Foi na (con)vivência com essas mulheres que o grupo pôde refletir sobre aspectos caros ao movimento feminista como um todo, ao Direito e à luta política numa perspectiva mais ampla, entre eles:

Educação popular somente com mulheres

Uma das reflexões de Paulo Freire sobre a Educação Popular era seu objetivo de romper com o silêncio dos oprimidos. Ora, as mulheres há muito vivem no silêncio, principalmente no que tange às relações travadas no âmbito privado, em que se perpetra a violência e o trabalho doméstico das mulheres é naturalizado e invisibilizado. O curso pretende retirar as mulheres desse silêncio, formar mulheres mais atuantes nos espaços públicos e

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defensoras das reivindicações feministas. Para isso, o espaço de formação não poderia reproduzir toda a estrutura hierarquizante de transmissão do saber; Tirar essas mulheres oprimidas do silêncio requer, portanto, uma educação que, em si, no processo de educar, seja transformadora. Um trabalho de educação popular apenas com mulheres segue, então, um ponto de vista estratégico. É obvio que é importantíssimo fazer um processo educativo para denunciar a estrutura machista que impera na sociedade de que participem homens e mulheres. No entanto, é feita a opção por atuar apenas com mulheres e existem justificativas para essa escolha, que vão de encontro com a problematização da realidade e o imperativo de transformação da mesma.

A problematização da realidade

Um dos conceitos importantes para a Educação Popular, desenvolvidos por Paulo Freire, é a leitura de mundo1, sendo a tentativa de buscar no universo do educando elementos que sejam os pontos de partida para a problematização. Através da leitura de mundo, o educador busca um olhar mais crítico sobre a realidade que cerca o educando, vale dizer, o desvelamento da mesma. A leitura de mundo procura refletir sobre a realidade de um grupo de educandos que partilham da mesma realidade. Quando é realizada a educação popular apenas com mulheres o que é problematizado? Tendo em vista que, historicamente, a família é o lugar social que tem sido imposto às 1 “(Paulo Freire) Defendia a tese de uma educação que desenvolvesse a consciência crítica, que promovesse a mudança social. E não haveria mudança sem a compreensão crítica da realidade vivida, ou seja sem a leitura do mundo. (...) A conscientização é o processo pedagógico que busca dar ao ser humano uma oportunidade de descobrir-se através da reflexão sobre a sua existência.” ANTUNES, Ângela. Leitura do Mundo em Paulo Freire. Caderno de Formação.Organizada pela Escola Multimeios. p. 67.

mulheres, em contraposição à sua participação no âmbito público, são problematizados os seus relatos pessoais de violência doméstica, o tempo gasto com o trabalho doméstico não-remunerado, a busca constante por atingir os padrões de feminilidade, inclusos aí os padrões estéticos, que expressam formas de controle e disciplinamento do seu corpo e de sua subjetividade, as restrições impostas à sua sexualidade, etc. Em outras palavras, fazer educação popular com mulheres é trazer ao público as relações privadas, ou seja, é estabelecer relações com o total através do particular. Por exemplo, podemos olhar para uma briga entre um casal e dizer, simplesmente, que o homem é violento porque bebe demais ou sofre com problemas psicológicos, tratando o problema como estritamente individual. Por outro lado, quando procuramos inserir as relações particulares na totalidade das relações sociais, percebemos que não se trata apenas de um problema particular, mas que estamos diante de uma sociedade construída sob égide de uma ordem patriarcal que instaura a desigualdade entre mulheres e homens. Assim, percebemos que o processo histórico que estabeleceu o grupo social dos homens como superiores e detentores do poder social e econômico na sociedade manifesta-se também nas relações sociais atreladasao privado e à intimidade. Portanto, entendendo as relações sociais entre mulheres e homens na sua totalidade, compreendemos melhor essas relações no âmbito privado, suas condicionantes estruturais, ao mesmo tempo em que para elaborar essa dimensão totalizante adotamos como ponto de partida as relações particulares. Essa especificidade de trabalhar somente com mulheres não é um impedimento para que homens e mulheres reflitam sobre as mesmas questões, mas privilegiar um espaço em que seja garantida a voz da mulher em torno de tais questões, sem censuras, sem a presença inibidora dos homens - que historicamente têm cumprido o papel de tutelar as mulheres, representando os seus interesses na esfera pública. Assegurando que as mulheres se apropriem das discussões e assumam protagonismo nos espaços, é fortalecê-las enquanto sujeitos políticos e, portanto, como agentes transformadores.

Ação transformadora

A intenção de despertar uma consciência crítica da realidade por meio da Educação Popular não pode ser desvinculada da prática. Para Freire, esse processo educativo tem a função de motivar e

impulsionar uma ação transformadora. Entendendo os oprimidos como os protagonistas necessários da transformação de uma sociedade livre, a educação popular volta-se para eles, eis porque são aqueles que sofrem materialmente com as conseqüências de uma ordem social desigual. Da mesma forma, o movimento feminista entende que as mulheres são, necessariamente, as protagonistas da sua emancipação, para a qual se coloca a necessidade de subverter a ordem capitalista e patriarcal. No entanto, a educação popular não propõe apenas uma reflexão sobre realidade descolada da prática. Na medida em que os/as oprimidos/as desvelam a realidade opressora, eles vão se comprometendo com a práxis, com uma ação transformadora. Assim, o curso busca essa intervenção na realidade, considerando que ele em si mesmo já expressa uma prática coletiva transformadora, que desafia o lugar social subalterno e reificante tradicionalmente imposto às mulheres, e que deve ser intensificada com o fim de promover mudanças sociais. Dessa forma, trabalhar somente com mulheres é incentivá-las a lutar por ações que promovam a igualdade entre homens e mulheres. Dito de outra forma, a educação popular com recorte de gênero reconhece as mulheres como protagonistas da luta feminista e que suas ações serão voltadas para a construção de uma sociedade não-machista, cujos frutos emancipatórios beneficiariam também os homens.

Auto-organização

Esse tema está muito relacionado com o anterior. Os espaços auto-organizativos são muito polêmicos, independentemente da convicção política. O Coletivo Dandara é um grupo auto-organizado por mulheres, com diferenças evidentes em face dos grupos políticos mistos. Da mesma forma, o Curso das Promotoras gera desconfiança por ser destinado apenas a mulheres. Essa desconfiança em face o espaço auto-organizativo muitas vezes carrega a lógica sexista de que o homem deve pautar os espaços e que subestima a capacidade organizativa das mulheres. Sem contar que tal desvalorização dos espaços em que as mulheres são protagonistas revela uma tentativa de manutenção/transferência das questões sociais de gênero para a esfera doméstica, não as reconhecendo como questões políticas. No espaço auto-organizado as mulheres sentem que podem compartilhar a violação que sofreram porque não serão humilhadas, ninguém dirá que o tipo de usurpação que sofreram tem peso menor ou responsabilizarão as mulheres pela violência sofrida. Esse momento de partilhar as dores e as afetividades é uma faísca para que as mulheres percebam que as violações que passaram não são questões restritas ao âmbito privado, nem individuais. No entanto, mesmo para essas mulheres que se reconhecem, é difícil desconstruir os valores que carregam: a imagem

Ato de encerramento da 15a turma de Promotoras Legais Populares, 2009

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da mulher sem auto-estima, da mulher que permite bater, da mulher que deve servir ao marido e da mulher que, enquanto mãe, é a grande responsável por todo o machismo existente na sociedade. Imagine se antes de discutirem entre elas, homens reiterassem esses e outros argumentos, homens que muitas vezes elas amam e respeitam...certamente restaria prejudicada a construção de uma consciência crítica por essas mulheres. Outro ponto é a participação das mulheres. Existem espaços que as mulheres são a maioria (movimento de moradia, orçamento participativo2), nos quais os homens continuam figurando como porta-vozes das mulheres, de forma que elas ficam excluídas dos processos diretivos e decisórios. Isso porque a relação entre homens e mulheres não é uma relação entre iguais na sociedade patriarcal, tanto em função das condições materiais distintas, quanto devido a fatores culturais que envolvem a socialização diferenciada de homens e mulheres: o homem é treinado para ocupar o espaço público, logo tem muito mais facilidade de se impor nele. Não se trata, portanto, de defender a participação das mulheres apenas em número, mas de tentar fomentar uma participação consciente. Para que essa participação se concretize, as mulheres precisam estar munidas de informações, reflexões e saberes que permitam discordar da realidade imposta e é também condição o seu auto-reconhecimento como sujeito da própria história. Assim, o espaço auto-organizativo é visto por nós como um meio para o empoderamento coletivo das mulheres. Cidadania A UMSP (União de Mulheres de São Paulo) teve um papel ativo no processo de redemocratização do país e uma presença marcante na Constituinte3 . Assim como outros movimentos sociais, o movimento feminista lutou para que os direitos das mulheres fossem reconhecidos pela Constituição de 1988. Esse processo ilustra um deslocamento do campo de 2 “Uma pesquisa do Etapas sobre a presença das mulheres no Orçamento Participativo do município de Recife (2004) mostrou que 58% eram mulheres e as conclusões apontam para a necessidade de fortalecer a identidade de gênero na política de luta pelo direito à participação e democratização, pois apesar de forte presença das mulheres nas plenárias, 64,3% delas afirmam nunca expressar seu pensamento durante os trabalhos”. SANTORO, Paula Feire. “Gênero e planejamento uma aproximação”, p. 5.3 “Segundo o boletim da UMSP (1987), em 26 de março de 1987, 300 mulheres foram à Brasília levar suas reivindicações – sem nomear os grupos ou tendências políticas.(...) A UMSP destacou-se, na Constituinte, pela sua proposta de legalização do aborto, elaborada juntamente com o Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde e o Grupo de Saúde Nós Mulheres do Rio.” P. 76. Dissertação da Arlene Martinez Ricoldi

disputa política em direção aos espaços institucionais, movimento realizado não apenas pelas militantes feministas, como também por diversos movimentos sociais. Embora seja controverso o peso que deva ser dado às disputas institucionais, acreditamos que as mobilizações em torno da promulgação de leis e do estabelecimento de políticas públicas que visem à diminuição das desigualdades de gênero contribuem para a transformação da vida das mulheres. Para serem ativas nesse processo, pleiteando a efetivação de direitos já garantidos pela legislação e defendendo a inserção de direitos ainda não positivados, as mulheres precisam, em primeiro lugar, ter conhecimento do que já está na lei, das instituições jurídicas e políticas, desenvolvendo uma percepção crítica dos mesmos. Esse acesso à informação, sem que esteja desvinculado de uma reflexão consciente da realidade, é uma das formas de fomentar uma cidadania ativa. Assim, o curso busca estimular uma cidadania mais participativa e exercida coletivamente. As mulheres, ao participarem dos espaços públicos, desconstroem uma cidadania idealizada por e para os homens . Trata-se de um exercício da cidadania que aponte para os movimentos sociais como espaços viabilizadores do protagonismo político dos oprimidos durante (e através) do seu engajamento em lutas coletivas.

Desmistificação e uso tático do Direito

O Curso pretende capacitar as Promotoras Legais Populares (PLPs) com um instrumental jurídico útil à defesa dos direitos das mulheres, principalmente em casos de violência doméstica. Essa capacitação legal passa pela necessidade de traduzir o Direito às promotoras, para que elas possam disseminá-lo nos seus espaços de atuação. As próprias participantes trazem muitos

questionamentos, reclamações e, não raramente, dúvidas que, apesar da aparente simplicidade, são cruciais para a efetivação de direitos - grande exemplo é o conhecimento dos meios para acessar a Defensoria Pública. Nesse diálogo com as promotoras, os limites do Direito ficam evidentes, já que freqüentemente as demandas trazidas ultrapassam a contribuição pontual que o Direito pode oferecer. Pouco a pouco, descobertas são feitas: legislações já existentes e não aplicadas ou que ainda preservam forte caráter sexista, lacunas normativas a serem preenchidas, etc... Para transformação dessas tristes realidades, fica nítida a dificuldade da ação individual e a necessidade de reivindicações coletivas. Assim, as promotoras começam a conhecer os limites do Direito, desmistificando-o, e deixando de enxergá-lo como técnica auto-suficiente e isolada das relações sociais. Percebem que para sua concretização é necessária pressão e mobilização social, pois o Direito possui um conteúdo político e há que se disputá-lo. Além disso, quando as mulheres se dão conta de que o direito não traz todas as repostas, começam a redimensioná-lo. Constatam que a solidão, a baixa auto-estima e o abandono não serão resolvidos por um mero trâmite legal. Conhecem assim o caminho do aprendizado e do fortalecimento no coletivo. Da mesma forma, desmistificação e redimensionamento também se dão entre as integrantes do Coletivo Dandara. Através do contato com as mulheres que sofrem cotidianamente com conflitos friamente debatidos nos tribunais, é possível compreender de forma mais ampla os mecanismos legais, pelo que nos tornamos aptas a criticá-los e reconhecer os seus limites. Tal processo é bem exemplificado pela questão da violência doméstica. Conhecer relatos de mães e filhas que sofrem reiteradamente com o ciclo da violência é o primeiro passo para atribuir vida e cor às folhas de autos que correm pelas mãos de diversos operadores do Direito. Para nós estudantes, este contato com quem sofre é um dos raros momentos em que o Direito se apresenta sem abstrações, de forma duramente concreta e reveladora. Por outro lado, cabe reconhecer o papel tático do direito e de alguns marcos legais. A Lei Maria da Penha, por exemplo, é um marco legal importantíssimo para coibir a violência doméstica contra mulher, que traz mecanismos de proteção, prevê centros de reeducação ao agressor e busca construir um novo paradigma de direito penal, ancorado nas premissas da criminologia feminista, que denuncia a sua seletividade negativa quando se trata de coibir o ilimitado poder patriarcal na

Conclusão

O Curso das Promotoras Legais Populares, a vivência com as mulheres que sofrem inúmeras violações no trabalho, em casa, na rua e nos demais espaços em que convivem, permite uma reflexão mais aprofundada a partir de nossos referenciais teóricos. O momento de refletir sobre as PLPs dentro do Coletivo Dandara é um re-pensar do Direito e das relações sociais de gênero. Nós optamos pela extensão universitária para que esses momentos fossem possíveis e é dessa forma que acreditamos na transformação do conhecimento, seja ele jurídico ou não, em algo menos vazio e mais próximo da realidade em que nós e a Universidade estamos inseridas, possibilitando, assim, um trânsito dialógico de idéias que inclua todos e todas nesse processo de troca.

esfera doméstica. Ademais, os debates em torno da Lei Maria da Penha possibilitam aos profissionais e estudantes de Direito a reflexão acerca da questão da violência doméstica e sobre como essa situação de violação de direitos humanos é tratada pela sociedade. Por fim, ainda que o Coletivo entenda que o direito é um instrumento que pode ser utilizado em defesa da mulher, reconhece que uma sociedade verdadeiramente igualitária e livre de opressões somente será atingida com uma transformação não só das consciências individuais, como também, e fundamentalmente, do modo material de produção e reprodução da vida.

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5. Entrevista: Adriana Aragão e Beth Beli

O projeto do Bloco Afro Ilú Oba de Min:as mulheres que tocam tambores...

“Essas Mulheres do cativeiroCansadas dos maus tratos do senhor

Tiraram seus tambores da senzalaLevaram para avenida

E cantaram pra Xangô”(Composição – José Cecílio)

As entrevistadas, Adriana Aragão e Beth Beli, são arte-educadoras e mestras fundadoras do grupo Ilú Oba de Min. Acreditando numa sociedade mais justa, não racista e não sexista e, ainda, entendendo que o processo de ensinamento perpassa a utilização das tradições orais e da ludicidade, em 2006, as mestras criaram o projeto Bloco Afro Ilú Oba de Min, constituído por uma série de atividades voltadas a cultivar e fortalecer a cultura africana e afro-brasileira no Brasil, bem como a promover a participação e o protagonismo da mulher na arte e no aprendizado da percussão.

Coletivo Dandara: O que é e como surgiu o Ilú Obá de Min? Quais são seus trabalhos atualmente? Beth Beli: Bom, o que é o Ilú Obá? Vou começar pelo significado. O nome é tirado de um livro que chama “Povo do Santo”, de Raul Lody. Na verdade, a maneira como está escrito lá é Ilú Abá-Demin, que é um nome de um tambor usado numa cerimônia pra Oxum1, na Nigéria... Foi daí que me veio a idéia. Mas, como o grupo é guiado por Xangô2 e a palavra obá também é utilizada para se referir a rei3, Obá se refere a rei Xangô. Sendo Ilú o tambor,1 Oxum é uma orixá feminina que controla a fecundidade e é uma divindade do rio de mesmo nome que corre na Nigéria, em Ijexá e Ijebu. O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam ou um controle sobre certas forças da natureza; ou a possibilidade de exercer certas atividades; ou, ainda, o conhecimento das propriedades das plantas e sua utilização. O poder, axé, do ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão. Referência: http://www.scribd.com/doc/6898406/Pierre-Verger-Os-Orixas-pdf2 Orixá masculino. Para referências, rever nota anterior3 Destaca-se a diferença em relação à orixá feminina Obá, “divindade do rio de mesmo nome”

ao invés de Ilú Abá ficou Ilú Oba. Faltava, então, o significado da expressão de min. Aí eu fiquei pensando... Demin... “de minhas mãos”! Então, eu coloquei, Ilú Obá de Min! O significado: Ilú = tambor, Obá = rei Xangô, de min = de minhas mãos... “As mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô”! Adriana Aragão: Atualmente, o grande foco do Ilú é o carnaval, é esse processo das oficinas de rua, o trabalho que a gente faz com as mulheres que chegam de todos os lugares de São Paulo. Tem também o “Ilú na mesa”, que é feito na Ação Educativa4. Beth Beli: Durante o ano, como a Adriana falou, tem o “Ilú na Mesa”, que é o momento de reflexão para as próprias mulheres: mulheres interessadas nos assuntos de cultura negra e no debate de gênero. É um momento para as mulheres do Ilú refletirem onde elas estão, o que estão cantando. As convidadas são sempre mulheres, uma da academia e uma “da oralidade”, falando do mesmo assunto. As pessoas que vêem o Ilú de fora, sempre vêem a gente naquele glamour todo que é o carnaval, e não sabem muito bem o que acontece para se chegar até esse momento: as reflexões, os trabalhos, as informações que têm que ser passadas em relação a esse assunto de cultura negra e de mulheres. Coletivo Dandara: Observando essas atividades do Ilú Obá, as letras das músicas, os temas dos carnavais, as suas homenageadas e o próprio nome do grupo, nota-se que o trabalho de vocês é essencialmente desenvolvido por e para mulheres. Qual a razão de tal escolha e porque as oficinas de percussão são destinadas apenasa mulheres? Beth Beli: Bom, na verdade, o que nos une, o que 4 Organização que atua na promoção dos direitos da educação e da juventude. Para maiores informações: http://www.acaoeducativa.org/

une todas essas mulheres, é o tambor. Eu acredito que seja isso, deve ter milhões de outras razões, mas a essência do que leva essas mulheres ao Ilú é o tambor; inclusive porque o próprio nome já atrai pra isso, né? Ilú é tambor, como eu já expliquei. O fato de ser um trabalho de mulheres pra mulheres é pra dar um empoderamento à mulher em todos os sentidos: poder tocar, cantar, compor, deixar fazer os seus desejos ali dentro, ser ouvida, ser aceita... Acho que esse é um dos maiores motivos, por que é um trabalho feito pra mulheres. E, também, por se tratar de um trabalho de cultura negra, isso que o Ilú desenvolve, e tendo essa cultura pouca voz - desenvolvido por mulher menos ainda - novamente o Ilú Obá se torna um lugar de dar voz à mulher que protagoniza esse resgate da cultura negra. Coletivo Dandara: Com relação às oficinas de percussão, o motivo é esse, então? No corpo de baile do Ilú podem participar homens, mas na bateria não, certo? Beth Beli: É, na percussão não! Não participam homens. Porque por muito tempo foi tirado esse direito das mulheres de tocar, por se dizer que percussão é uma coisa de homens, que os tambores são só os homens que podem tocar. E isso não é verdade. Qualquer pessoa pode tocar, então as mulheres também podem. Essa proibição foi um movimento do homem de tirar das mulheres mais essa prática. Quem disse que só os homens podem tocar percussão? Isso foi uma coisa inventada por eles! [risos] Por isso as nossas oficinas de percussão acontecem desse jeito, para as mulheres poderem aprender, e reconhecer que a prática de tocar foi tirada de suas ancestrais, num tempo em que as mulheres não tinham voz nenhuma, em que tinham que obedecer ao que os homens ditavam. E quando as mulheres aprendem a tocar e vão permanecendo no Ilú, elas começam a reconhecer que esse poder de tocar realmente lhes foi tirado, uma vez que foi tirado de suas ancestrais. Muitas mulheres do Ilú comentam: “nossa, há muito tempo eu queria isso, queria tocar”. Isso que elas sentem é como se fosse uma expressão da memória que elas têm e carregam de suas ancestrais que não podiam tocar. E, no Ilú, elas encontram o lugar em que realizam o desejo de tocar, que é seu, mas que também trazem de suas ancestrais. Coletivo Dandara: Numa reunião do Ilú Obá uma mulher se emocionou ao contar que sua experiência no grupo permitiu-lhe se redescobrir

enquanto mulher negra. Qual dimensão vocês acham que o trabalho do grupo tem na vida de mulheres como essa, oprimidas por uma padrão de beleza e de comportamento brancos que são estranhos aos seus corpos e às suas histórias de vida? Adriana Aragão: Ah sim! Nos ensaios fechados do carnaval essa moça já havia falado algumas coisas com relação a isso, mas essa reunião foi o primeiro momento em que ela fala mesmo o que acontece com ela. As mulheres negras se colocam atrás da mulher branca, não se afirmam, não se vêem como negras, não assumem o cabelo, não dizem “é, meu nariz é assim mesmo” e não se acham inteligentes e capazes. É um caminho pra submissão e pra rejeição. Essa pessoa, no fim, não se assume enquanto mulher negra. Por isso, às vezes, é preciso sim um trabalho de um grupo artístico ou um trabalho social, um coletivo em que essa pessoa se encontre. O que aconteceu com essa moça foi isso, ela chegou no Ilú e se reencontrou com uma coisa que já era dela, resgatou sua ancestralidade e a relação com a sua cultura e estabeleceu uma nova

relação com ela mesma e com a sua família, que tinha perdido os valores da cultura negra. Beth Beli: É isso mesmo. Porque nas nossas famílias (eu como mulher negra) isso acontece mesmo. Meu pai sempre dizia que eu tinha que ser melhor e eu nunca entendia o que ele queria dizer com isso, só

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fui entender mais tarde. A família negra faz questão de negar sua realidade e tenta seguir outros valores. Na nossa família, dizem que a gente tem que estudar muito, que a gente tem que se dar bem na vida, que a gente tem que casar com um homem branco. Acham que isso é o certo, fazem isso pra evitar nosso [dos filhos] sofrimento e por saber que as pessoas negras sofrem. Nossos pais não tinham uma maneira de conversar isso com a gente, eles simplesmente diziam: “vocês têm que ser melhor”. Com isso, eles fazem com que a gente não assuma a negritude. E eles falavam isso pra nos proteger mesmo, mas não têm a consciência de que vão, na verdade, perdendo sua identidade e fazendo com que seu filho também perca. Então, quando essa moça se emociona, é porque ela fala “NÃO” a tudo isso. Adriana Aragão: ...e acho que o Ilú levanta essas questões! Beth Beli: É, tem isso, tem esse trabalho coletivo. É como se essa menina se espelhasse em nós, nesse trabalho todo que realizamos, como se ela olhasse para o espelho e dissesse “ah! é isso que eu quero ser, eu não quero ser outra, ser aquilo que é bom pra sociedade, aquilo que a sociedade quer colocar pra gente.” Adriana Aragão: O Ilú trabalha indiretamente, através da cultura, a auto-estima, o se reconhecer, a busca da identidade. Num caso desses, porque essa pessoa fica toda assim emocionada? Porque é a identidade dela, ela se reencontra. O que acontece é que até esse momento ela estava vivendo uma coisa que ela não era, ela estava em busca de coisas que não eram aquilo que ela queria de fato. No Ilú, as mulheres vão se encontrando, negras, brancas...

Beth Beli: A gente tem uma integrante que está no grupo desde o início, que é da comunidade de Paraisópolis e que, inclusive, esse ano tomou a decisão de cantar no grupo. No começo, ela entrava de cabeça baixa e, hoje, ela teve uma transformação na sua fala, no seu jeito, no jeito de se assumir, de se vestir... Ontem a gente até se encontrou e comentou um pouco disso: que na novela tem uma protagonista

negra5, só que aquilo ainda não representa a mulher negra. Pra ter um cabelo daquele é caríssimo, pra ter aquela pele daquele jeito... E aí, pra piorar, criam a irmã dessa personagem, negra também, mas o oposto: com cabelo alisado, menor de idade, com um filho fruto de uma história com um “bandido”, negro também. E a mãe delas tem uma pousada em Búzios... [risos] Então, a emissora faz isso com a pessoa que assiste: deixa ela sem noção do que fazer. Muitas mulheres negras podem olhar a personagem principal e dizer: “ah, então é isso!”. E aí, amanhã, elas vão pagar caríssimo pra ficar com o cabelo igual ao da Taís

Araújo. Ainda por cima, colocam lá outra mulher negra pra “se dar mal”. Porque afinal não colocaram uma mulher branca, menor com filho, namorando “traficante” pra fazer esse papel? Não. Colocaram uma mulher negra. As redes de comunicação criam essa briga entre os próprios negros, impondo qual é o padrão a ser seguido para se dar bem, qual é o padrão de beleza e qual é padrão para ser aceita, ou não, entre os próprios negros. E quando uma pessoanegra assiste àquilo se destrói todo um trabalho de movimento negro, por exemplo. Colet ivo Dandara: De que forma o resgate dos elementos do candomblé - os instrumentos, os toques,

os cânticos, a corporeidade, as tradições em roda - contribuem para uma resistência e um combate ao racismo no Brasil? Beth Beli: Essa história do movimento negro... eu não sei em geral, no Brasil todo, mas em São Paulo o movimento negro foi retomado pelas mulheres. Quando se fala desse movimento, fica parecendo que é uma coisa feita só pelos homens. E até era mesmo, mas ele nunca terminou, porque as mulheres retomaram essa luta. Por exemplo o Geledés6 , uma instituição de mulheres coordenada pela Sueli Carneiro, uma mulher negra. Então esse trabalho que a gente realiza no 5 Beth Beli refere-se à personagem interpretada pela atriz Taís Araújo na novela da Rede Globo.6 http://www.geledes.org.br/

Ilú faz parte desse movimento também. Ele é o movimento negro, pois a gente trabalha com as questões do candomblé. Ninguém coloca o candomblé na rua e ainda tocado por mulheres no ritmo em que sempre foi tocado pelos homens. O Ilú faz isso! Quando a gente vai pras ruas, ainda mais no centro da cidade, onde a gente sabe que passam milhões de pessoas de várias religiões, com diversos questionamentos, e “leva o candomblé”, isso é um trabalho político, sim! É um trabalho, muito de grão em grão pra desmistificar essa coisa negativa que se tem em relação ao candomblé. A gente acha que isso tem que ser respeitado, até porque a gente não tá levando o candomblé mesmo, aqueles rituais fechados que ocorrem nos terreiros. A gente tá levando a cultura, a musicalidade para o público ter contato, porque na África todo mundo vê as cerimônias, lá as elas não são fechadas como são aqui. E se outras religiões podem falar o que pensam, a gente também tem esse direito e foi por isso que escolhemos a rua. Claro que em breve teremos a nossa sede, mas a gente vai continuar nas ruas, porque ali o contato é direto. Adriana Aragão: E é o acesso à cultura, é disputar os espaços públicos, a política permeia por aí também. Todo mundo tem o direito de utilizar os espaços públicos e, hoje, o problema é que se tem que pagar para utilizar esses espaços. Se é um espaço público, porque você tem que pagar pra utilizá-lo? A gentesó está usufruindo uma coisa que todo mundo tem direito a usufruir, que são as ruas, as praças da cidade. No nosso desfile de carnaval mesmo, a gente pára ruas e avenidas importantes da maior cidade do país. Obviamente a gente não está levantando nenhuma bandeira política específica, mas o que existe é uma

política cultural, sócio-cultural, aí envolvida. O Ilú não levanta nenhuma bandeira, mas a forma como a gente trabalha já é política. É um movimento porque a gente se utiliza da ousadia - na palavra mesmo daqueles que acham que é uma ousadia – da mulher na rua tocando tambor, ritmos do candomblé, dançando as danças dos orixás. Pra quem não está acostumado é realmente uma ousadia. E em toda boa política você tem que ser ousado, se não for não vai pra frente. Os movimentos são ousados, sejam eles quais forem, movimento sem terra, sem teto, enfim, eles são ousados, vão atrás de espaço, estão nas ruas, fazem coisas que contrariam. Beth Beli: Contrariam e mexem com os nossos comportamentos. Quando o Ilú surgiu, a gente não pensou “ah, então tá, vamos montar um grupo, vamos na prefeitura tirar licença e depois vamos falar com o subprefeito da sé....” Não, não foi assim! A gente nem pensou nisso, a gente pensou em juntar a mulherada, botá-las na rua pra tocar e agregar pessoas, muitas, diferentes, pensantes, com várias idéias... Coletivo Dandara: “Uma mulher tocando tambor onde o mesmo não era permitido”. Essa é parte da história de uma das mestras do Ilú, Adriana Aragão, que se aprofundou no estudo do candomblé pra poder entender o conflito presente em sua própria vida. Gostaríamos que você comentasse um pouco sobre isso e explicasse se são feitas releituras dessas manifestações religiosas/culturais, já que, a princípio, você enquanto mulher não poderia tocar.

Adriana Aragão: No candomblé mulher não toca... tem uma relação com a purificação...

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Coletivo Dandara: Mas vocês resgatam o candomblé e colocam justamente só mulher pra tocar... Adriana Aragão: Mas aí é que tá! É a política! Na verdade é assim - e tem relação com o que a Beth já discutiu antes, dessa história toda da mulher não poder tocar - a mulher sempre pôde tudo, uma questão matriarcal mesmo. Elas tinham esse direito de tocar, mas isso foi tirado delas. Isso é uma questão machista antiga e que está também dentro da religião, uma hierarquia que é obedecida. Só que a gente tem que pensar que isso foi feito pelo homem. E o que a gente precisa, ao tocar nesse assunto, é falar nos orixás. Na umbanda, onde eu fiquei dez anos da minha vida, eu não tinha esse problema de não poder tocar. O problema apareceu quando eu comecei a freqüentar o candomblé. Mas o que eu sempre acreditei é que era o orixá que estava me dando esse direito de tocar, não era o pai de santo, nem a mãe de santo, não era o homem, era o orixá. Esse meu caso teve uma repercussão grande, vários pais de santo vieram até minha casa pra tentar entender o que se passava. Inclusive um pai de santo queria me iniciar no candomblé como ekedi , mas eu não aceitei. Enfim, mais tarde, outro pai de santo africano, que a minha tia conhecia, veio ajudar no meu caso: jogou os búzios e se confirmou a minha permissão para tocar. Ele ainda explicou pra nós que essa proibição era uma coisa criada pelos homens. Disse que as mulheres tocam sim tambor e que, inclusive, há rituais em que só mulheres tocam. Essa é a minha história. E a ousadia de se levar isso para o lado artístico não foge a essa idéia de que as mulheres podem sim tocar. Hoje há várias mulheres percussionistas que são do candomblé e que são reconhecidas dentro dele. Por outro lado,

ainda há rituais em que as mulheres estão proibidas de pegar alguns instrumentos. Então, o que o Ilú busca é falar disso no sentido cultural da religião, colocar na rua os ritmos do candomblé tocados pelas mulheres, mesmo que dentro dessa religião ainda existam proibições como esta. Beth Beli: Acho que é uma questão de respeito. Eu acho sim que a gente tem muito que discutir sobre isso da “mulher não poder”, em que momento ela perdeu esse direito de tocar, mas deve haver um respeito também. Numa palestra que assisti na PUC-SP, de um antropólogo chamado Toyin Falola, ele comenta que existem rituais de homens que mulheres não podem sequer chegar perto, que têm que ficar a tantos metros de distância, mas que, igualmente, existem rituais feitos por mulheres que homens também não participam e não se aproximam. Enfim, se há esse equilíbrio, acho então que estamos falando de respeito. Tem uma historinha, que Mamady Keita conta, que é mais ou menos assim: na Guiné as mulheres tocavam djembê e dançavam, num lugar distante da aldeia, e os homens sempre ficavam de longe olhando. Um dia eles resolveram se aproximar um pouquinho e no outro dia mais um pouco, até chegar onde as meninas faziam as brincadeiras. Aí falaram pra elas, tentando convencê-las, “vocês só dançam e a gente toca”. E elas: “nã-nã-nã-nã-não”. E eles todos os dias iam até lá e faziam isso. Até que teve um dia que eles conseguiram e elas disseram “tá bom, vocês tocam djembê”. E foi, então, que elas perderam esse direito de tocar. E aí todo mundo fala que o djembê é um instrumento dos homens. Não! A forma dele, inclusive, é um pilão, onde as mulheres fazem todo o preparo das alimentações e na outra parte elas tocam. Só que aí, quando delas é tirado o direito de tocar, elas ficam só com a parte de cozinhar... e lavar... e passar e... [risos]

6. MatriarcalMariana Salomão Carrara

A janela aberta e dois ventiladores bamboleantes, a ferrugem arranhando num ventinho quase sem movimento, Pode vento que não se mexe, mãe? Alena bate no chão um boneco verde, entre o losango das perninhas molhadas de suor e carpete. Bem baixinho, faz a voz do bicho que conversa tristonho com uma tampa de caneta. Mãe, pode uma dinossaura ter um filho canetinha? Estela suspira um monossílabo, virando a poltrona de leve na direção de um dos ventos estáticos, Não é possível que não se faça uma porcaria de um vento! Pende a cabeça para trás e estica os braços numa cruz úmida, pontinhos de pó misturando na testa. Passa o dorso da mão displicente na cabeça da menina. Queria saber, mãezinha, pode um bicho desses ter pra filhote uma canetinha... Lá fora o silêncio do calor já abafou todas as vozes, até a feira vende silenciosa as suas frutas derretidas, Nesse calor ninguém faz filhote, não, Alena, nem dinossauro nem caneta. A menina aperta o plástico do boneco e olha os olhos estrábicos de ternura, a lingüeta do bicho pendendo para o lado num charme perene, Deve poder sim, mãe, é só o pai ser bem caneta, pode nascer uma caneta... verde, talvez... Estela alcança as chinelas com as pontas dos pés sem se mover da cruz, Vamos virar bolinhas de sagu nessa fervura. Alena faz o boneco escalar devagar a poltrona até chegar à cabeça pendente da mãe, os olhos envesgam de ponta-cabeça diante da linguinha marota do dinossauro, Por que você não leva esse bicho pra comprar umas laranjas aí na frente, ahn? Alena senta de repente no chão, encosta nas costas da poltrona, a cabecinha encaixada embaixo da cabeça da mãe, Meu pai é como, mãe? eu pareço mais com ele ou com você? Estela desfaz a cruz

desenrolando o dorso, a cabeça doída da peripécia. Afasta os cabelos da nuca, abana, sopra por dentro do vestido, Por que você pareceria o pai, Alena? criança não tem nada que ver com pai, não. pai é coisa que inventaram, você não tem mais idade pra acreditar nessas coisas. Alena levanta e rasteja no tapete quente até a janela. Contempla quieta a lentidão do sol

sobre as gentes passantes, Mas ninguém faz filhote sozinho, né... Estela respira num enfado, ajeitando a coluna na poltrona, E você não está vendo que você inteirinha foi eu que fiz sozinha, menina? ...vem aqui. Alena olha a mãe e afasta a cabeleira dos olhinhos sérios. Corre de repente num salto, cai num abraço suarento que ela aperta esmagando o dinossauro entre as barrigas. Você vai aprender na escola, Leninha. Estela ajeita a menina no colo em posição de estudos, as perninhas imóveis de atenção. Antes ia tudo bem, mas um dia eles inventaram que os filhos eram deles, amarraram a gente em casa pra não acontecer filho de outro, e ficaram aí, mandando em vocês, enchendo a vida dessas regras deles. tudo mentiras, Aleninha, tudo umas mentiras. Alena ilumina o sorriso

confuso, acomoda a cabeça no colo quente. Estela vai acumulando devagar os cabelos da menina num chumaço molhado, procura alguma coisa pra amarrar o penteado, Fui eu que fiz você, completinha. Alena balança as perninhas, abraça o dinossauro num consolo sincero. Então não tem jeito de nascer uma canetinha.

Mariana Salomão Carrara é apoiadora do Coletivo Dandara e se formou na Faculdade de Direito da USP em 2009. Atualmente, é Defensora Pública.

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7. Divisão sexual do trabalho e o mercado de trabalho brasileiro

Taís Viudes de Freitas e Tatau Godinho

O mercado de trabalho brasileiro, a partir dos anos 1980, assistiu a um aumento expressivo da participação feminina. As mulheres, embora ao longo de toda a história tenham realizado atividades na esfera produtiva, passaram a, cada vez mais, se inserir no mercado de trabalho. Em uma série de estudos, esse período foi caracterizado pela existência de um processo de feminização do mundo do trabalho (Araujo et al, 2004; Nogueira, 2004). Segundo os dados da PNAD de 2009, no Brasil, elas compõem 42,6% da população de ocupados contra 57,4% de homens1. O aumento da participação feminina na população de ocupados foi constante a partir dos anos 1970, período em que elas representavam 18,5%, subindo para 26,6% em 1980 e ultrapassando os 40% já na década de 1990. No entanto, ainda que a presença feminina seja marcante no mercado de trabalho, ao olharmos para o modo como este se configura, notamos que homens e mulheres não se encontram em posição de igualdade. As trabalhadoras tendem a se concentrar nos postos mais precarizados e menos valorizados. De acordo com os dados da PNAD de 2009, entre as mulheres ocupadas, 52,2% estavam inseridas na categoria de empregadas (no entanto aproximadamente 25% destas não possuíam carteira de trabalho assinada), 17% eram trabalhadoras domésticas, 16,1% trabalhava por conta própria, 2,7% eram empregadoras, 6,3% não eram remuneradas e 5,7% trabalhavam para o próprio consumo. Além disso, os dados apontam que as mulheres, em 2008, recebiam salários equivalentes a 67,1% dos rendimentos masculinos2.1 Os dados têm como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD – para o ano de 2009. Fonte: IBGE, 2010.2 Segundo os dados, vem ocorrendo uma lenta aproximação entre os salários de homens e mulheres. Em 2004, as mulheres recebiam o equivalente a 63,3% dos rendimentos masculinos, percentual que seguiu crescente deste então (IBGE, 2010). Além do ritmo extremamente lento desse fenômeno, não se pode prever que seja constante. Por outro lado, Meszáros (2002) indica que este nivelamento dos salários entre homens e mulheres decorreria de uma redução do salário da força de trabalho em geral, o qual estaria se aproximando dos baixos salários a que as mulheres sempre estiveram submetidas. Ele chama isto de uma tendência ao nivelamento do índice diferencial da exploração, sendo um nivelamento que se dá por baixo, ou seja,

O desemprego também incide fortemente sobre as mulheres. Segundo os dados da PNAD de 2009, as mulheres eram 58,3% dos desocupados. Estudos, como o de Nádya Guimarães (2004), revelam que o trabalho feminino é o primeiro a ser atingido em um momento de crise econômica ou de uma reformulação no sistema produtivo. As mulheres são expulsas do mercado de trabalho para, em seguida, serem reinseridas em postos mais precários, menos valorizados e, muitas vezes, sem a garantia de direitos trabalhistas. Esse é o caso dos processos de terceirização e do trabalho em domicílios, bem como do trabalho em tempo parcial – que normalmente é acompanhado por salários reduzidos – e do trabalho informal. Nestes, as mulheres estão em maioria. A disparidade entre trabalhos femininos e masculinos e as condições em que as mulheres se encontram no mercado de trabalho evidenciam o que chamamos de “divisão sexual do trabalho”. Esta se refere a uma divisão social do trabalho que difere o trabalho de homens e mulheres, estando ancorada em uma relação que permeia toda a vida em sociedade, que são as relações sociais de sexo. Esta relação toma as diferenças biológicas de cada sexo para determinar práticas distintas entre homens e mulheres. O que chamamos de “relações sociais de sexo” é uma relação construída socialmente, que se caracteriza por ser antagônica, assimétrica e hierarquizada. Danièle Kergoat (2003) aponta que a construção social desta relação tem uma base material e não apenas ideológica e, por ser hierarquizada, ela se constitui como uma relação de poder e de dominação. Desta forma, não apenas foram determinadas práticas distintas para homens e mulheres, como foram atribuídos diferentes valores a elas. Assim, aos homens coube a esfera pública e o trabalho produtivo, sendo mais valorizados socialmente, e às mulheres, atrelou-se a esfera privada e o trabalho reprodutivo, os quais não foram valorizados socialmente. As mulheres foram submetidas a uma posição de opressão e de submissão em relação aos este nivelamento não decorre de uma melhora nos rendimentos femininos, mas sim de uma piora dos rendimentos em geral. Assim, o capitalismo se apropria do trabalho feminino para reduzir as condições e o valor da força de trabalho em geral.

homens. Esta relação antagônica se reflete no campo do trabalho. Como indica Danièle Kergoat (1989), as relações sociais de sexo e a divisão sexual do trabalho não podem ser analisadas separadamente, uma vez que elas são indissociáveis e formam, em conjunto, um sistema. A divisão sexual do trabalho tem como base dois princípios fundamentais (Kergoat, 2003):

• o da separação: existem trabalhos específicos de homens – “trabalhos masculinos” – e específicos de mulheres – “trabalhos femininos”; • o da hierarquização: os trabalhos masculinos são mais valorizados socialmente. A partir destes dois princípios, estabelece-se uma divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo e masculino e feminino. O trabalho doméstico e de cuidados foi, historicamente, configurado como responsabilidade primordial feminina. A função primeira da mulher era o cuidado do lar e da família. A família se configurava com base em um modelo

dual: o homem provedor e a mulher dona de casa e mãe. O trabalho realizado pelas mulheres no âmbito doméstico se dá de forma gratuita, permanecendo invisível ao longo da história. O trabalho da reprodução, tão fundamental para o desenvolvimento do sistema capitalista, ao permitir a reprodução da força trabalhadora, o cotidiano da vida das pessoas e a criação das novas gerações, não era valorizado socialmente. Apontava-se que esta era uma função natural da mulher, que deveria ser feita em prol dos outros e “por amor”. Como aponta

Helena Hirata (2002), foi necessário que o movimento feminista denunciasse a invisibilidade deste tipo de trabalho, sua importância para o desenvolvimento social e econômico e sua relação indissociável do processo de organização da sociedade para que se começasse a discutir criticamente a separação artificial entre trabalho produtivo e reprodutivo. Ao evidenciar a separação dessas duas esferas como um constructo social, que alimenta o capitalismo, o movimento feminista trouxe a exploração do trabalho das mulheres para dentro das análises do sistema capitalista e da sociedade em geral, denunciando sua posição fundamental na organização econômica e social e que até então permanecia apagada (Faria e Nobre, 2002; 2003)3. Na participação da força de trabalho feminina na esfera chamada produtiva, a lógica de assimetria entre os sexos foi reproduzida e intensificada. As mulheres que, no século 19, trabalhavam nas fábricas e indústrias foram incorporadas na esfera produtiva como uma força de trabalho menos valorizada. Considerava-se que o salário feminino era apenas complementar ao do homem e, portanto, justificava-se seu baixo valor. Da mesma forma, as habilidades que as mulheres já dispunham, como aquelas aprendidas na esfera doméstica por meio do trabalho de costura, por exemplo, foram apropriadas pelos empresários, mas sem serem reconhecidas e valorizadas. Elas apareciam como habilidades naturais femininas e não como qualificações para o trabalho. Certas habilidades tidas como femininas – como paciência, acuidade visual, destreza manual, atenção e delicadeza – foram tomadas como naturais e inatas às mulheres. Esta naturalização foi determinante quanto às condições e às posições que as mulheres passaram a ocupar na esfera produtiva. A ocupação da esfera produtiva se deu, assim, por nichos, isto é, segmentos profissionais que passaram a concentrar um ou o outro sexo. As mulheres predominam nas atividades onde o trabalho é mais rotineiro, monótono, manual, submetido a um forte controle da chefia e envolve baixa tecnologia. Ao contrário, os homens se concentram em atividades que envolvem mais um trabalho de concepção e faz uso de maquinários complexos e 3 Nesse sentido, o movimento de mulheres contribui de forma fundamental para que a análise das formas de exploração e dominação dê conta de aspectos importantes da complexidade das relações humanas e do desvendamento dos mecanismos de dominação. Ao fazer isso, desafia também os movimentos políticos de esquerda, ao pensar outro projeto de sociedade no qual a reprodução da vida humana e o bem viver das pessoas sejam centrais, a romper com a lógica dominante de produção e de mercado e com a dicotomia entre o que se considera trabalho produtivo e improdutivo.

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de tecnologia. Da mesma forma, as atividades que requerem uso de força física e envolvem situações de perigo ou insalubridade tendem a concentrar os homens. Essa divisão e hierarquização dos trabalhos e funções foram se alterando em diferentes momentos, podendo criar uma readequação da inserção de mulheres e homens, mas sem, no entanto, eliminar a divisão sexual do trabalho. As atividades ligadas ao cuidado e que se aproximam do trabalho realizado pelas mulheres no âmbito doméstico são majoritariamente ocupados por elas, como é o caso das áreas de enfermagem e serviço social, bem como do emprego doméstico. Segundo indica Cristina Bruschini (2000), as mulheres se concentram no setor de prestação de serviços, seguido pela área social e o comércio de mercadorias, além do setor agrícola. Neste último, elas predominam nas atividades voltadas para o autoconsumo familiar e não remuneradas. Nas últimas décadas, uma série de estudos

vem apontando uma tendência crescente de mulheres ocupando carreiras de nível superior e postos de maior prestígio e valorização. Embora haja esta tendência, a maior parte da força de trabalho feminina segue nos postos de menor qualificação e remuneração, mais precarizado e vulnerável do mercado de trabalho. Esta situação aponta para a ocorrência de um processo de bipolarização do trabalho feminino, no qual um contingente reduzido, mas crescente, de mulheres ocupam cargos mais valorizados socialmente e, por outro lado, uma massa de trabalhadoras segue nos postos mais marginalizados (Bruschini e Lombardi, 2000). O crescimento no número de mulheres ocupando postos mais valorizados está ligado ao aumento do nível de escolaridade feminina. No entanto, cabe ressaltar que as mulheres ainda encontram dificuldades para ascender nas carreiras e galgar postos de maior prestígio na hierarquia das empresas. Autoras, como Anne-Marie Daune-Richard

(2003), apontam para a existência de um “teto de vidro”, isto é, uma barreira invisível que dificulta e/ou impede a passagem das mulheres para estes postos mais valorizados. Elas, muitas vezes, têm que dedicar mais anos à profissão e aos estudos para alcançar a mesma função que um colega de trabalho homem4. Ademais, como já mencionado, elas seguem recebendo menores salários. Esta disparidade é, com frequência, justificada pelo argumento de que as mulheres são mais frágeis e encontram maior dificuldade para agir em situações que exigem tomada de decisão e autoridade. Assim, elas são consideradas como menos aptas para assumirem postos de controle e de comando nas empresas. Esses e outros argumentos, renovados a cada momento no mercado de trabalho, são utilizados para aumentar o grau de exploração e discriminação das mulheres e atribuir as funções mais valorizadas aos trabalhadores do sexo masculino. Do mesmo modo, prevalece, no imaginário dos empregadores, a idéia de que as mulheres se dedicam menos integralmente que os homens à carreira profissional. A maternidade e o cuidado dos filhos disputam, na vida delas, espaço com a profissão. Assim, as mulheres teriam menos disponibilidade de tempo para realizar horas-extras, viajar e realizar treinamentos fora da empresa (Abramo, 2007). No entanto, é importante considerar que o trabalho de cuidados – de filhos, maridos e outros parentes dependentes – e o trabalho doméstico segue como um fator decisivo nas condições de participação das mulheres no mercado de trabalho. Isto porque estas atividades continuam sendo majoritariamente consideradas como responsabilidades femininas. As mulheres seguem realizando a maior parte do trabalho doméstico e de cuidados em suas residências. Segundo dados da PNAD, no ano de 2009, 90% das mulheres ocupadas afirmaram realizar afazeres domésticos contra apenas 49,7% dos homens ocupados. Os dados da PNAD de 2005, ao apontar o tempo gasto com os afazeres domésticos, indicaram que as mulheres ocupadas afirmaram gastar em média 21,8 horas por semana enquanto que os homens ocupados dedicavam apenas 9,1 horas a esse tipo de trabalho (IBGE, 2006). Devido a esta responsabilização, a carreira profissional feminina é entrecortada, isto é, é marcada por entradas e saídas do mercado de trabalho ou por alterações que acompanham o ciclo vital (Georges e Guimarães, 2005; Carrasco, 2003). A presença de 4 Segundo os dados da PNAD, de 2009, as trabalhadoras brasileiras apresentam, em média, 8,7 anos de estudo, enquanto que os trabalhadores do sexo masculino apresentam, em média, um ano a menos (IBGE, 2010).

filhos pequenos tem participação decisiva sobre o percurso das carreiras profissionais femininas, inclusive determinando as formas de inserção das mulheres no mercado de trabalho, as quais muitas vezes significam a submissão a atividades informais e precarizadas. A articulação entre trabalho doméstico e trabalho profissional é, portanto, um fator decisivo quanto à ocupação e à posição das mulheres no mercado de trabalho. Esta é uma tensão presente para as mulheres de todas as classes sociais. Para aquelas das classes econômicas mais favorecidas, que normalmente são as mesmas que se inserem na minoria crescente de mulheres em carreiras de nível superior e em cargos de chefia, a questão se resolve a partir da contratação de outras mulheres para realizarem suas atividades domésticas. A presença da empregada doméstica é marcante nos lares das famílias brasileiras. De acordo com os dados da Pesquisa Mensal de Emprego, os/as trabalhadores/as domésticos/as, em fevereiro de 2010, somavam 7,6% da população economicamente ativa nas seis regiões metropolitanas. Em 2009, 94,5% dessa categoria era composta por mulheres e apenas 36,9% do total dos/as trabalhadores/as domésticos/as tinham vínculo de emprego formalizado na carteira de trabalho5. Para aquelas que não têm a possibilidade de contratar outras mulheres, a solução, muitas vezes, é a inserção no mercado de trabalho em atividades que permitam alguma forma de “flexibilidade” para as tarefas domésticas e familiares. Assim, o trabalho em domicílio e o trabalho em tempo parcial (tipos de trabalhos marcados, geralmente, por uma ausência de direitos trabalhistas e por baixos salários, respectivamente) são considerados como ideais para a inserção da força de trabalho feminina, uma vez que permitem a elas compatibilizar o trabalho doméstico e de cuidados com o trabalho profissional e remunerado. Muitas mulheres também recorrem a outras mulheres das redes próximas a elas, como a rede de parentesco e de vizinhança, para conseguirem fazer essas tarefas. Este ciclo contribui para manter o trabalho doméstico e de cuidados como responsabilidade das mulheres e mantê-lo como um problema que deve ser resolvido entre elas no 5 Fonte: IBGE, 2010. As seis regiões metropolitanas consideradas são: Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. É importante frisar que se considera trabalhador doméstico a pessoa que trabalha prestando serviço doméstico remunerado em dinheiro ou em benefícios, em uma ou mais unidades domiciliares. A pesquisa abarca nessa categoria as empregadas domésticas, faxineiras, diaristas, babás, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras, arrumadeiras e acompanhantes de idoso, de doente, de criança à escola, entre outros.

âmbito privado. O movimento feminista tem questionado a responsabilidade exclusivamente feminina por este tipo de atividade. Há a necessidade de se desnaturalizar o papel da mulher como o de ser

mãe e esposa. Atualmente, é comum vermos chamadas – em propagandas televisivas, por exemplo – que clamam pela necessidade de a mulher ser uma profissional qualificada, manter um padrão de beleza agradável e ser uma boa mãe e esposa. Estas se tornam obrigações impostas às mulheres, que levam a uma sobrecarga de funções, bem como a naturalização quanto ao papel da mulher na sociedade. O movimento feminista reivindica que não apenas o trabalho doméstico e de cuidados deva ser tomado como uma responsabilidade igualitária entre homens e mulheres, como também cabe ao Estado assumir parte deste tipo de atividade, inclusive pela oferta de políticas públicas, como por meio de restaurantes e lavanderias coletivos, creches, ampliação da jornada escolar, entre outros (Silveira, 2008). As contradições evidentes e que ainda persistem no mercado de trabalho apontam para uma série de obstáculos que são enfrentados pelas mulheres, seja para se inserirem e se manterem nele, seja para avançar no sentido de uma relação igualitária entre homens e mulheres. Elas seguem recebendo menores salários, permanecendo nos postos mais precarizados de trabalho, submetidas a trabalhos intensos e sem proteção social. Seguem como as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados, pela manutenção do cotidiano das pessoas e das famílias. Assim, o capitalismo se apropria e explora o trabalho feminino em duas vertentes: na esfera produtiva e na da reprodução social. Alterar essas relações hierárquicas entre homens e mulheres demanda mudar profundamente a sociedade em

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que vivemos, isto é, findar tanto o sistema produtivo capitalista que explora os trabalhadores – e mais incisivamente as mulheres – como as relações machistas que perduram no tempo e que mantêm uma relação de poder e de dominação dos homens sobre as mulheres. Referências bibliográficas:

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Thaís Viudes de Freitas e Tatau Godinho são da Sempre Viva Organização Feminista (SOF) e da

Marcha Mundial das Mulheres

8. Violência doméstica: ultrapassando o âmbito privado

Considerações sobre a experiência do Coletivo Dandara no Departamento Jurídico XI de Agosto

A violência doméstica contra a mulher é uma das mais severas manifestações das relações de poder e dominação que definem o lugar subordinado das mulheres em nossa sociedade. Sendo assim, o combate a essa forma de violência sexista – perpetrada sistematicamente contra as mulheres pelo simples fato de serem mulheres – tem sido uma bandeira histórica do movimento feminista. Nesse sentido, o Coletivo Feminista Dandara, forjado e inserido no âmbito da universidade, partiu para a prática extensionista buscando contribuir para a efetivação dos direitos humanos das mulheres, tendo como horizonte a construção de relações igualitárias entre homens e mulheres, tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Vale ressaltar que não se reivindica a tradição teórica jusnaturalista frequentemente atrelada aos discursos sobre os direitos humanos, mas o seu sentido histórico-social. Sob essa perspectiva, a noção de direitos humanos das mulheres concerne às necessidades sentidas e enunciadas pelo grupo social das mulheres em cada estágio de desenvolvimento econômico, social, político e cultural da sociedade. Ocorre que, via de regra, as necessidades reais das mulheres não são consideradas nos processos históricos de afirmação dos direitos humanos, eis que tanto a sua estrutura normativa quanto a sua operacionalização são expressão de um olhar androcêntrico. Com efeito, tanto o Direito, quanto o discurso liberal acerca dos direitos humanos foram formulados pelos homens para regular relações públicas (de poder e propriedade) entre os homens. Nesse sentido, adotam o homem branco, heterossexual e proprietário como protótipo de ser humano, negando às mulheres o exercício dos direitos ditos “universais”. Compreendemos que tratar a violência doméstica contra a mulher como uma faceta da sistêmica violação dos direitos humanos das mulheres implica romper com o enfoque privatista (e ideológico) que comumente circunscreve essa relação conflituosa ao âmbito da intersubjetividade, do arbítrio, da intimidade, isto é, da não ingerência

estatal. Porém, ainda que a violência doméstica contra a mulher seja perpetrada, na maior parte das vezes, em círculo íntimo, permeada por relações de convivência, afetividade e hospitalidade, não há que se negar que seja resultante da existência de relações desiguais entre os sexos, de forma que o seu enfrentamento deve ser incorporado ao plano do debate político e travado no espaço público. Assim, o presente artigo pretende introduzir, com recorte de gênero, a questão da violência doméstica contra a mulher, compartilhando os acúmulos do grupo decorrentes das experiências proporcionadas pelo atendimento de mulheres em situação de violência doméstica junto ao Departamento Jurídico XI de Agosto no ano de 2009.

Considerações sobre as especificidades da violência doméstica

A constatação de que a violência doméstica faz parte do cotidiano de várias mulheres, tanto no Brasil quanto ao redor do globo, não extrapola o senso comum. O ambiente doméstico, pretenso espaço de segurança, é, na realidade, o ambiente mais perigoso à integridade física e psicológica das mulheres, uma vez que aí as agressões domésticas são mais freqüentes que as perpetradas em qualquer outro espaço social. Esse aparente paradoxo se explica em função das relações desiguais entre os gêneros. Se, por um lado, a esfera familiar é aquela em que se realizam os papéis sociais de esposa, mãe e dona de casa, impostos às mulheres ao longo do seu processo de socialização, o espaço público é o lócus, a priori, de consecução dos papéis masculinos, aos quais se agrega maior prestígio social e valor econômico. Disso decorre que enquanto as mulheres estão mais suscetíveis à violência praticada no ambiente doméstico, por seus próprios companheiros, cônjuges, pais etc, a violência estatal, declaradamente exercida através do seu aparelho punitivo, tem os homens como destinatários preferenciais.

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Assim, quando se trata de violência contra as mulheres, o agressor, via de regra, acaba sendo aquele com quem a mulher mantém relações de afeto e intimidade. Justamente por isso, o afastamento do agressor do ambiente familiar acarreta uma série de consequências diretas e indiretas para a agredida, desde a drástica redução da renda familiar aos eventuais danos emocionais e psicológicos sofridos pelos filhos. Dessa forma, a violência de gênero praticada no ambiente familiar possui uma série de características que a particularizam. Os questionamentos acerca dos motivos que levam a mulher a permanecer ao lado do agressor mesmo depois da primeira demonstração de violência são recorrentes. Diante deles, não se pode ignorar que, no âmbito das relações familiares, a violência comumente manifesta-se em ciclo, no seio do qual as agressões se repetem com frequência e potencial lesivo crescentes. Em geral, o ciclo de violência se inicia com a fase de acúmulo de tensão. Aos poucos, a tensão começa a se concretizar por meio de atritos, insultos e ameaças. Em seguida, vem a fase da agressão, em que a descarga descontrolada da tensão que foi se acumulando gera grandes danos à integridade física e psicológica da mulher. Há, por fim, a fase da reconciliação, na qual o agressor busca redimir-se e ser perdoado. Surgem desculpas e promessas diversas; a ação do agressor é envolvente e carinhosa com vistas a convencer a mulher de que tudo o que aconteceu não se repetirá. Apesar de tipológica, esta descrição do ciclo de violência se mostra condizente com os relatos apresentados pelas mulheres em situação de violência doméstica, mostrando que o comportamento do agressor não decorre pura e simplesmente, como é frequentemente afirmado, de fatores como “personalidade forte”, “gênio difícil”, doenças psíquicas, dependência de álcool ou de outros entorpecentes. Valendo-se da perspectiva de gênero, a análise do ciclo de violência possibilita despatologizar os protagonistas da violência doméstica, evidenciando as densas relações de poder subjacentes a tal dinâmica e, assim, abrindo espaço para politizar o seu enfrentamento.

Expectativas sociais de gênero

Ao observarmos a violência perpetrada pelos homens contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar, evidencia-se que esta é reflexo da imposição de expectativas sociais distintas em face dos comportamentos de homens e mulheres.

Reproduzem dessas expectativas os discursos que consideram as atitudes violentas como “tipicamente masculinas” e enxergam nessas manifestações a forma “natural” pela qual os homens solucionam seus conflitos. Desde a infância, os homens não são estimulados a dialogar e a demonstrar descontentamento de outra forma que não através da violência, refletindo a construção social que associa o masculino às noções de poder, domínio, força e agressividade. Por outro lado, a construção do feminino está baseada em noções muito distintas. Espera-se das mulheres o cumprimento de papéis marcados pela afetividade, compreensão e submissão, os quais “evitam reações violentas” se rigorosamente desempenhados. Ganham cores, então, d iscursos discriminatórios consolidados em máximas como “apanhou porque mereceu” e “só apanham porque gostam”. Cabe ressaltar ainda que, no bojo da sociedade patriarcal, a construção dos papéis sociais femininos funda-se em padrões restritivos da autonomia das mulheres, projetados notadamente sobre seus corpos. Uma vez que tais interdições são amplamente interiorizadas pelas mulheres ao longo do seu processo de socialização, estas mulheres vivenciam uma contínua heteronomia, o que, não raro, acarreta a naturalização e o subsequente conformismo diante da violência que sofrem. Assim é que as manifestações de violência adquirem um status de normalidade na vida das mulheres, como se estivessem todas elas irremediavelmente sujeitas a tal dinâmica sexista. Não raras vezes, surge o argumento de que a educação e os estímulos recebidos desde a infância foram realizados por mulheres, sendo estas as culpadas pela formação de homens machistas e de mulheres fracas. Todavia, é essencial considerar que embora as mulheres carreguem a consciência opressora – derivada da ideologia patriarcal que perpassa todo o corpo social – e contribuam para a transmissão de valores machistas, elas não podem ser responsabilizadas exclusivamente pela legitimação ideológica da desigualdade de gênero: as figuras masculinas educam, ainda que pelo exemplo da ausência. Ademais, a constatação de que as mulheres contribuem, através da educação, para reprodução do machismo evidencia mais uma vez a sua subordinação, na medida em que explicita a ausência de uma consciência de si para si, livre da cosmovisão e dos mecanismos cognoscitivos do opressor. Também nesse sentido, vale dizer que ao

frequentarem espaços públicos, a exemplo de creches e espaços coletivos de lazer, as crianças também são influenciadas pela imposição de padrões de comportamento masculinos e femininos, dicotômicos e hierarquizados, de forma que, desde cedo, a sua consciência, o seu corpo e as suas condutas, são cunhadas pelas expectativas sociais de gênero. Dessa forma, evidencia-se que, em um percurso marcado pela transferência da responsabilidade do agressor para a vítima, as mulheres são culpabilizadas duplamente: seja porque a elas se atribui a responsabilidade pelo desencadeamento da violência que sofrem, dado não terem se comportado “como uma mulher deveria se comportar” no imaginário sexista, seja porque são protagonistas no processo de educação dos agressores.

A experiência no Departamento Jurídico XI de Agosto

Buscando um maior diálogo com os alunos e alunas da Faculdade de Direito da USP a respeito das questões de gênero subjacentes às relações jurídicas pretensamente neutras, bem como uma experiência prática orientada para a efetivação dos instrumentos jurídicos de proteção dos direitos humanos das mulheres – em especial a Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha –, a construção de um Grupo de Trabalho no Departamento Jurídico XI de Agosto foi caminho trilhado pelo grupo ao longo de 2009. Ainda no final de 2008 houve a elaboração de um projeto que pretendia extrapolar o paradigma usual da prestação de assistência jurídica. A proposta era realizar o trabalho de forma mais reflexiva e coletiva, nunca por meio de atendimentos individuais. A discussão do caso envolveria todas as participantes do Grupo de Trabalho, entendendo que dessa forma conseguiríamos aprofundar a compreensão das relações sociais conflituosas que estão na raiz da violência doméstica. Ademais, à luz da apreensão do problema em sua complexidade, buscávamos construir formas de intervenção, jurídicas e não-jurídicas, orientadas para o enfrentamento da violência doméstica na perspectiva da globalidade, politizando-o. Importante ressaltar que a opção por este modelo coletivo de atuação também decorre da intenção prévia de que a atuação no Grupo de Trabalho permitisse forjar um acúmulo conjunto no que tange à compreensão do problema da violência doméstica, configurando-se, nesse sentido, como espaço de reflexão-ação feminista.

O projeto vislumbrava não apenas interpor o conflito de gênero perante o Judiciário, com base na demanda das mulheres por nós assistidas, mas construir e fortalecer um grupo de discussão por elas composto. O principal propósito dessa discussão seria o compartilhamento de experiências e a busca de soluções, de práticas coletivas para o enfrentamento do problema.

Em um primeiro momento, tivemos dúvidas acerca da possibilidade desse novo modelo de intervenção ensejar mudanças positivas para as mulheres atendidas. Questionamos se a ruptura com o modelo tradicional de atendimento, marcado pela bipolarização entre o operador jurídico e o assistido, não poderia gerar insegurança ou até mesmo a sensação de submissão a exposição excessiva. Por considerarmos fundamental a desconstrução da hierarquia na relação entre cliente-advogado, decidimos apostar na ruptura do modelo individual de atendimento. A aposta deu certo. Tivemos a feliz surpresa de ouvir das assistidas que o atendimento coletivo proporcionou, na realidade, a sensação de segurança, acolhimento e de conforto para expor detalhadamente o seu histórico de violência, sem a necessidade de preocupar-se em resumir pragmaticamente condutas violentas que, não raro, foram reiteradas por anos de relacionamento. Com efeito, tal observação não surgia sem razão: as assistidas que ressaltavam a importância de um atendimento coletivo já haviam se direcionado a algum dos serviços públicos de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e sofreram com a violência institucional decorrente das ações ou omissões de servidores e servidoras, notadamente os das Delegacias de Defesa da Mulher. Durante as conversas com as assistidas,

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tornou-se evidente que muitas delas sentiam-se, de certa forma, merecedoras das agressões sofridas, posto não terem conseguido romper com as relações violentas anteriormente. Além disso, cabe destacar que a vergonha e o receio de julgamentos prévios foram apontados como obstáculos no processo de ruptura com o companheiro e de busca por apoio. Constatamos que, em grande parte dos casos, a mulher procura o atendimento jurídico com demandas correlatas à situação de violência, tais como regulamentação de visitas, divórcio, guarda dos filhos e fixação de pensão alimentícia. Notamos, também, que frequentemente o agressor instrumentalizava os filhos em comum com a assistida para conseguir se reaproximar dela e, inclusive, perpetrar novas agressões. A responsabilidade de quem opera as ferramentas do Direito é imensa, já que muitas vezes a existência de uma situação de violência fica restrita às entrelinhas do discurso da mulher que pede auxílio. Assim, é de enorme relevância para a adequada instrumentalização jurídica uma compreensão mínima das relações de poder que perpassam as relações sociais entre os sexos travadas no âmbito doméstico-familiar. Voltando à questão do diálogo com a Faculdade de Direito da USP, notamos que ainda é bastante difícil para a comunidade jurídica reconhecer a importância da Lei Maria da Penha. Concluímos que a compreensão da relevância das alterações que a Lei instaura no que diz respeito ao tratamento da mulher em situação de violência doméstica, tratando-a como sujeito de direitos em prol de quem devem ser executadas políticas públicas de caráter protetivo e preventivo, passa pelo reconhecimento de que o Direito Penal deve cumprir o papel de conter a violência ilimitada perpetrada contra as mulheres no âmbito doméstico, o que implica, inclusive, deixar de atuar puramente a partir da chave prender/soltar para passar a incorporar as demandas reais das vítimas por proteção, o que não implica, necessariamente, em recrudescimento da resposta punitiva. Outra inovação buscada pela Lei Maria da Penha é a aproximação, nos casos concretos, entre o Direito Penal e o Direito Civil. É clara a insuficiência da intervenção penal em situações de violência doméstica. Não à toa a resposta penal deve ser sempre residual. Essa maior aproximação dos ramos do Direito permite uma atuação jurídica mais próxima da complexidade do conflito real, menos alienada. O jurista típico, tão acostumado à segmentação positivista da técnica, vista como um fim em si mesmo, permanece relutante.

É preciso ter claro que a Lei Maria da Penha é um instrumento jurídico tão relevante e absolutamente distinto dos demais justamente porque foi concebida pelo movimento feminista a partir da compreensão das relações desiguais de gênero. Rompe com a lógica de invisibilização e banalização da violência doméstica contra a mulher, não só pela sociedade como também pelo próprio sistema de justiça penal, como era a praxe nos Juizados Especiais Criminais, instituídos pela Lei nº 9.099/951. A prática no Judiciário, entretanto, vem sendo a contínua resistência à aplicação da Lei. Não são raros os operadores que ainda culpabilizam a mulher em situação de violência doméstica, que insistem na exposição dela ao agressor em momentos desnecessários ou tentam repetidamente levá-la a desistir do processo e reconciliar-se com ele. Tais posturas refletem a crença de que casos de violência doméstica são de menor potencial lesivo e não deveriam sequer ser levados até o Judiciário. Ignoram, portanto, que a violência doméstica constituiu uma das mais graves violações à dignidade humana das mulheres.

1 A Lei 9.9099/95 instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e representou uma experiência problemática na judicialização da violência doméstica, eis que não continha dispositivos capazes de contemplar a natureza do conflito e a relação de poder presente nestes casos. Desta feita, tal diploma ficou popularmente conhecido como “a lei da cesta básica”, dada a tolerância com que a violência doméstica contra a mulher era tratada.

Conclusão

A intervenção jurídica, apesar de se mostrar como importante ferramenta para resolução de conflitos que permeiam as situações de violência no âmbito privado, mostra-se insuficiente para contemplar as necessidades das mulheres que sofrem com o problema. Diante dessa constatação, o Coletivo Feminista Dandara defende a Lei 11.340/06 como instrumento importante na defesa dos direitos humanos das mulheres; no entanto, temos consciência de que para romper definitivamente com as práticas de violência doméstica é necessária uma transformação da sociedade patriarcal em que vivemos e que não se realizará por meio do Judiciário. A experiência no Grupo de Trabalho Maria da Penha mostrou que a concretização dos objetivos da Lei ainda depende muito do combate às formas tradicionais de tratamento da questão pela comunidade jurídica brasileira, em especial pelo Poder Judiciário.

9. Legalizar o aborto, direito ao nosso corpo!

Maternidade não é destino: é escolha

No início do ano de 2008, no estado brasileiro do Mato Grosso do Sul, cerca de duas mil mulheres foram indiciadas pela suposta prática de aborto. Seus nomes foram encontrados em cadastros de uma clínica clandestina localizada na cidade de Campo Grande. Tal clínica era suspeita de ter realizado 10 mil abortos nos últimos 20 anos. Desse total de casos, oito mil estavam prescritos. Essas mulheres não mais poderiam ser processadas e julgadas pelo Estado. As duas mil mulheres restantes sofreram o peso da justiça punitiva pela prática de aborto, sendo, em alguns casos, condenadas à pena de prisão e, em sua maioria, tendo seu processo suspenso, de acordo com o art. 89 da Lei 9.099/95. Contudo, tal procedimento não as eximiu da imposição estatal de severas condicionantes, identificadas com a prestação de serviços comunitários relativos ao cuidado com crianças. A medida infligiu verdadeira tortura psicológica a estas mulheres já penalizadas pelo estigma social imposto em decorrência da escolha pelo aborto. A criminalização de tais milhares de mulheres não é um caso isolado no espaço e no tempo, muito embora o episódio choque pela violenta dimensão que adquiriu: a expressão limite do poder punitivo foi acionada contra elas. A ação da justiça encontra respaldo imediato no Código Penal Brasileiro, o qual prevê o crime de aborto em seus artigos 124 a 126. Em outras palavras, o aborto é considerado crime no Brasil, ainda hoje, sendo penalizado tanto o terceiro que realiza aborto na gestante, consentido ou não, quanto a própria mulher. A previsão legal do crime de aborto, entretanto, não é neutra. O Código Penal Brasileiro, em vigor desde 1940, apesar das várias alterações sofridas por meio de leis especiais, ainda reflete a ideologia patriarcal predominante na sociedade brasileira ao manter o aborto como tipo penal. Vale dizer, a criminalização do aborto não resulta de um debate abstrato. Diferentemente, a opção político-criminal pela tipificação está no cerne da histórica opressão de gênero, cujas raízes se assentam na desigualdade entre homens e mulheres que perpassa todas as relações sociais, inclusive aquelas atinentes à sexualidade. Manter o aborto como crime implica

em penalizar todas as mulheres que resistem ao paradigma da maternidade como destino inexorável, pois ainda que não se efetive a intervenção punitiva estatal, subsiste a penalização no plano simbólico. Nesse sentido, a intervenção penal revela-se como instrumento de controle da sexualidade feminina Historicamente a vida das mulheres sempre esteve determinada pela crença ou pela escolha do outro: aquilo que a Igreja define como o papel da mulher, aquilo que o pai e o marido decidem para vida de suas filhas e esposas. Longe de romper com tal lógica de controle, apesar das mudanças em nossa sociedade, o surgimento do Estado implicou em novos mecanismos de disciplina e normatização, estruturados pela desigualdade de gênero. Com efeito, a tipificação do aborto pelo Código Penal Brasileiro significa impedir que a mulher decida livremente sobre sua sexualidade, sem coerção, visto que o Estado arroga para si o poder de decidir sobre a reprodução da mulher, cujo corpo é convertido em espaço de regulação punitiva.

Concluir, por sua vez, que a descriminalização e a legalização do aborto – enquanto políticas opostas à tipificação – seriam igualmente uma forma do Estado intervir na vida reprodutiva das mulheres é um equívoco grande. Isto porque, primeiramente, não

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é correto pensar que o dilema reside em posicionar-se a favor ou contrariamente à prática do aborto. O Estado quando opta por criminalizar ou legalizar não está decidindo que a mulher não deve ou deve abortar. Ele apenas atua sobre as conseqüências da decisão que é tomada pela própria mulher. Por esse motivo, o papel intervencionista do Estado não é um problema, até porque, historicamente, o movimento feminista efetua o combate ao Estado Liberal que se ausenta de garantir condições de vida dignas aos indivíduos, mediante políticas públicas de cunho social. O problema está no tipo de intervenção estatal que se apresenta na vida das mulheres. Assim, se criminalizar é um problema, pois se trata de uma resposta violenta a uma decisão da mulher, tanto porque aciona o direito penal, quanto pelo fato de não garantir qualquer assistência médica ou psicológica à mulher que opta pela interrupção de uma gravidez indesejada, descriminalizar e legalizar o aborto são ingerências positivas. E não porque obrigam a mulher à prática, mas porque garantem que ela faça sua escolha livremente, sem o peso do direito penal e com toda a assistência necessária, seja para garantir um aborto seguro, seja para assegurar uma gravidez saudável para a mãe e para o bebê. O aborto, assim como a maternidade, deve ser compreendido como um direito das mulheres, situado no bojo dos direitos sexuais e reprodutivos, e, assim, assegurado pelo Estado. Ser mãe deve ser uma opção, uma decisão de foro íntimo da mulher; a maternidade não deve ser compreendida como destino “natural” de todas as mulheres. Deve-se ter em mente que a idéia da mulher como mãe é histórica, construída por uma sociedade patriarcal, cujo controle sobre a sexualidade da mulher serve a interesses político-econômicos. A ruptura do paradigma que aponta o papel de mãe como elemento fundante do espaço social das mulheres tem como requisito a desconstrução da gestação enquanto projeto inquestionável na vida das mulheres, isto porque nascer mulher não implica em ter que ser mãe, até mesmo porque a vivência da sua sexualidade não deve estar limitada à função reprodutiva. Nesse sentido, abortar ou resolver levar uma gravidez até o final são decisões que dizem respeito à esfera de autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, sobre sua vida. Para que essa autonomia possa ser exercida e para que o aborto seja um direito efetivo, o Estado deve garantir condições materiais para que se dê consecução a essas escolhas. A legalização do aborto, portanto, não é uma reivindicação isolada. O mesmo movimento feminista que hoje reivindica tal direito, em décadas passadas,

conquistou o amplo acesso das mulheres à pílula anticoncepcional, de forma a prevenir a gravidez indesejada e desvincular a sexualidade da reprodução. Nesse sentido, o aborto seguro inscreve-se no âmbito das políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos. A legalização do aborto configura-se, portanto, como medida indissociável de projetos de educação sexual, planejamento familiar, acompanhamento gestacional e oferta gratuita de contraceptivos, bem como de uma rede social que proporcione condições práticas que evitem a sobrecarga de trabalho assumida pelas mulheres em razão da sua responsabilização exclusiva pelo cuidado com os filhos, tal como a garantia do direito à educação infantil de qualidade, aí incluídas as creches.

A Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF)1 , entidade que atua em 150 países na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, divulgou em 30 de maio de 2007 um relatório2 sobre o aborto inseguro no mundo, intitulado “Morte e negação: Abortamento inseguro e Pobreza”. Segundo a pesquisa, em todo o mundo, 211 milhões de mulheres engravidam por ano, das quais 87 milhões de forma involuntária. Essa situação, por sua vez, gera 46 milhões de abortamentos intencionais a cada ano, dos quais 19 milhões são feitos de forma insegura e 70 mil resultam em morte materna. No Brasil o quadro não é diferente. Segundo o relatório, o país é responsável por 1 milhão de interrupções de gravidez de forma insegura a cada ano, do que decorre a morte de 180 a 360 mulheres. O aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil e, quando não leva à morte, gera conseqüências físicas e psicológicas gravosas para a vida das mulheres. Todo ano o Sistema Único de Saúde (SUS) atende cerca de

1 http://www.ippf.org/NR/rdonlyres/EB54D2F2-BB46-48EE-8FB9-4BF6570E6A1C/0/SexualRightsDeclarationPortuguese.pdf2 http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_c o n t e n t & t a s k = v i e w & i d = 3 3 0 0 & I t e m i d = 1

250 mil mulheres que chegam aos postos médicos com infecções e hemorragias decorrentes de abortos mal feitos. Nos países em que o aborto é legalizado, a morte em virtude desta prática é insignificante, como bem demonstra o exemplo da Romênia, onde a legalização implicou na diminuição, não do número de abortos, que se manteve praticamente o mesmo, mas da taxa de mortalidade materna em virtude da prática. Ciente de que a ilegalidade do aborto é justamente a causa que confere riscos à saúde e à vida das mulheres, além de lhes impor vergonha e medo, a morte materna em virtude de aborto clandestino constitui uma tragédia humana que pode ser evitada com a sua legalização. Nesse sentido, temos novamente que a discussão não deve ser deslocada: é fato que milhões de mulheres fazem aborto e que elas não deixam de fazê-lo em razão de ser criminalizado. O problema, portanto, situa-se no montante de mortes e seqüelas que a criminalização e a não legalização ocasionam. Por esse motivo, o aborto também deve ser tratado como uma questão de saúde pública, sendo obrigação dos governos nacionais a criação de mecanismos que reduzam as mortes e seqüelas sofridas pelas mulheres que decidem abortar. Entendê-lo dessa forma não significa fazer uma apologia à prática do aborto, pois, uma vez assegurado enquanto direito, as mulheres poderão escolher por fazê-lo ou não, cada uma podendo decidir de acordo com sua crença e com os seus projetos pessoais, assegurado o respaldo do Estado. Os efeitos do aborto inseguro, realizado sem o suporte infra-estrutural e dos profissionais da rede de saúde pública, são ainda mais severos se adentramos na questão de classe e raça. A gravidez indesejada é um problema, sobretudo, para as mulheres da periferia. Nos países em que o aborto é criminalizado, e no Brasil especificamente, as mulheres que fazem aborto seguro ou que se expõem a menor fator de risco, têm classe e cor. Para as mulheres ricas e em sua maioria brancas, o aborto é realizado em clínicas de qualidade e a preços elevados. Por esse motivo, apesar de proibido, para essas mulheres, na prática, o aborto é descriminalizado, visto que elas pouco sofrem com os efeitos da repressão penal e tampouco com a falta de amparo estatal. Já as mulheres pobres e negras sofrem duplamente, tanto com as consequências do abortamento inseguro, pois não dispõem de recursos para abortar em clínicas minimamente seguras, quanto com a criminalização que é mais dura para elas, dado o caráter sabidamente seletivo do sistema penal. A respeito desse quadro, o estudo da IPPF

mostra que 96% dos abortos inseguros realizados no mundo ocorrem nas regiões pobres, respondendo a África por 58% deles e a América Latina, logo em seguida, por 17%. No Brasil, as mulheres pobres, jovens e nordestinas são as mais vulneráveis ao abortamento inseguro, tendo sido registradas na região nordeste 686 internações no SUS. A taxa de 2,73 abortos provocados para um grupo de 100 mulheres no Nordeste, região mais pobre do país, também é maior que a média nacional. Segundo a diretora da IPPF, Carmem Barroso, o número elevado de abortos no Brasil é, fundamentalmente, um problema sócio-econômico: “O Nordeste é a região mais pobre do Brasil, onde as mulheres têm menos acesso à informação, menos acesso aos meios de evitar uma gravidez e que, portanto se vêem desesperadas com a gravidez indesejada e recorrem ao aborto em maior número”.

Assim, mais do que descriminalizar o aborto, retirando a sua previsão típica do Código Penal, é preciso legalizá-lo, assegurando-se que o Estado assuma seu papel na prestação de serviços de saúde pública à mulher e na garantia de direitos que permitam a todas as mulheres exercer a autonomia sobre seus corpos e suas vidas. Evidencia-se, uma vez mais, que não se defende a obrigatoriedade do aborto ou, tampouco, trata-se do estímulo a tal prática. A defesa da legalização diz respeito ao imperativo de garantir o direito a todas as que escolhem fazê-lo, e não somente às ricas, que dispõem de recursos para pagar altos preços por ele. Por fim, não podemos nos furtar do debate de discutir a laicidade do Estado. O discurso de maior influência contra a descriminalização e a legalização

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do aborto no Congresso Nacional e na sociedade civil é atribuível, em grande medida, às instituições religiosas, sobretudo católicas e evangélicas. Entretanto, nenhuma moral religiosa é capaz de refletir a totalidade de posições presentes na sociedade, de modo que, à luz das previsões constitucionais atinentes à laicidade, não cabe ao Estado dar guarita para que uma crença se sobreponha a outras crenças presentes em nossa sociedade. Daí o imperativo democrático da ressignificação do aborto, agora em termos seculares, de forma a promover a verdadeira neutralidade religiosa das leis e do Estado. Além disso, a própria questão atinente ao marco do início da vida não é consensual nem no âmbito filosófico, nem no religioso, nem no científico, variando conforme a concepção de cada um, não cabendo ao Estado impor qualquer delas. Enquanto expressão da dignidade e da autonomia das mulheres, o aborto legalizado se opõe ao paradigma da gestação enquanto dever. Em outras palavras, aquelas que forem contrárias ao aborto por motivos e crenças diversas simplesmente não o farão. Por outro lado, as mulheres que avaliam não ter condições de levar uma gravidez adiante, até porque, muitas das vezes, a paternidade é “abortada”, ou simplesmente não querem ter um filho em um momento preciso de sua vida, o direito ao aborto lhes dará a possibilidade concreta de escolher sem se expor a tantos riscos. Ressalte-se que a escolha pelo aborto não diz respeito predominantemente à realidade das adolescentes, às quais se associa a prática sexual irresponsável. Muito pelo contrário, o perfil das mulheres que já praticaram aborto no Brasil, segundo estudo3 realizado por pesquisadores e pesquisadoras

3 A versão preliminar do estudo foi publicada em 2008, tendo reunido resultados de 2 mil pesquisas sobre aborto realizados no Brasil nos últimos 20 anos. O estudo contou com o apoio do Ministério da Saúde e das Organizações

da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é composto por mulheres em idade reprodutiva, as quais possuem de 20 a 29 anos de idade, trabalham, têm pelo menos um filho (mais de 70% do total), usam métodos contraceptivos, são de religião católica e mantêm relacionamentos estáveis. Os dados revelam que as mulheres que optam pelo aborto o fazem à luz da vivência da maternidade e que a gravidez indesejada não é oriunda de relações sexuais furtivas, mas concebida no seio de relacionamentos estáveis. Além disso, a constatação de que as mulheres que já praticaram aborto, em sua maioria, fazem uso de contraceptivo pode indicar utilização inadequada ou descontínua desses métodos, bem como o enfrentamento de dificuldades para negociar com o parceiro sexual o emprego regular do contraceptivo, em função das relações de poder que perpassam o âmbito da sexualidade. Nesse sentido, afirma Dulce Xavier, ex-integrante da entidade Católicas pelo Direito de Decidir, “temos que respeitar todas as manifestações religiosas, mas queremos que a saúde pública respeite a cidadania de todas as mulheres”4 . Isso nos permite concluir que a luta pelo direito ao aborto tem como elemento central e imprescindível o reconhecimento das mulheres enquanto sujeitos políticos capazes de decidir sobre o próprio corpo e definir seus projetos de vida. Somente com esse reconhecimento é possível pensar em construir uma cidadania plena para as mulheres de modo a obter uma sociedade efetivamente igualitária entre homens e mulheres.

Pan- Americana e Mundial de Saúde. O acesso à coleção institucional do Ministério da Saúde, na íntegra, pode ser obtido através do site: http://www.saude.gov.br/bvs4 Fala da representante, à época, das “Católicas pelo Direito de Decidir”, no dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, e também dia do lançamento do Comitê Pró-legalização do aborto, na cidade de São Paulo, em 29 de maio de 2007.

10. “Mas antes de mais nada: o que é uma mulher?”

Julia Almeida Baranski

“Mas antes de mais nada: o que é uma mulher? “Tota mulier in útero: é uma matriz”, diz alguém.

Entretanto, falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: “não são mulheres”,

embora tenham útero como as outras. Todo mundo concorda em que há fêmeas na espécie humana; constituem hoje, como outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos

que a feminilidade “corre perigo”; e exortam-nos: “Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem-se mulheres”. Todo ser humano do sexo feminino

não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade

misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. Será esta

secretada pelos ovários? Ou estará congelada no fundo do céu platônico? E bastará uma

saia ruge-ruge para fazê-la descer à terra?” (Simone de Beauvoir – O Segundo Sexo)

Despertadores não eram necessários. As manhãs, em primeiro despontar de luz, abriam-lhe os olhos e, pontualmente, preparavam-na para o mundo. Todos os dias, ainda sonolenta, ela fazia o próprio café, visto que, mulher independente, sozinha vivia e, todos os dias, ainda com sabor de sonho nos lábios, ela vestia os sapatos de salto e a meia-calça de finos fios pretos. Uma vez vestida, cambaleava nas alturas a caminho do banheiro; os saltos, altíssimos, impediam-na de fixar os pés no chão. Em frente ao espelho, sustentando os supercílios e por isso mesmo em expressão de espanto, ela delineava a lápis e rímel um olhar qualquer, inventava um rosto novo brincando de des-ser-se. Mas este amanhecer iniciou-se de todo estranho. A pontualidade da luz não fora suficiente para abrir-lhe os olhos, e o mundo tardou-se letárgico. Por ordens do corpo a mulher, enfim, levantou-se.

Não foi instantânea a compreensão do inusitado, da manhã decorrida em horas. Impensando, tentou inutilmente executar, um a um, os seus coreográficos moveres de todo-o-dia. Porém, braços e pernas desobedeciam-na. As mãos remexiam o armário da cozinha, aflitas porque incapazes de encontrar o pó de café; os pés insistiam em permanecer descalços, aprazia-lhes a frieza do ladrilho contra as suas solas espalmadas. E, num virar-de-cabeça desajeitado, a sua imagem lhe foi de súbito revelada; de frente para a janela, ela vitralmente refletida, decidia se assombro ou encanto. Desconhecia-se.

Acostumei-me a desver. Meus olhos arregalados não mais viam o quê me sucedia, dia a dia, seria meu nome Marta ou Maria, eu transformando-me em quem não era, naquela que não sou. Ofertaram-me tanto, exibiram-me a felicidade em tantas vitrinas, prometeram-me tão-atraentes absurdos que eu também quis oferecer-me a outros. Mas eu, enquanto absorvia o real, despia-me de mim mesma. Por isso agora quando não trago o rosto manchado de preto, quando no corpo há apenas a fina fibra de algodão branco, por isso hoje eu me perco. Na verdade, perdida estivera, hoje: o encontro. Com calma, dirigiu-se ao quarto.

É preciso que me dispa de tudo para cobrir-me de mim. Os braços da mulher, desde cedo inobedientes, tonificaram-se. Despiram-lhe a camisola, lançaram-na ao chão. Estava nua. E nua se deitou. Atrasarei o mundo até amanhã.

Julia Almeida Baranski Julia é aluna da Faculdade de Direito da USP e

apoiadora do Coletivo Dandara.4544

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11. A imporância da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero

Em briga de marido e mulher, a gente mete a colher!

É bastante recente no cenário político brasileiro a problematização da questão da violência doméstica contra a mulher. Com efeito, apenas a partir dos anos 80 o movimento feminista acumula a força social necessária para pautar o debate público sobre tal forma de violência, evidenciando-a como uma manifestação do exercício sistemático do poder e da dominação masculinas com vistas à subordinação das mulheres. Mais que isso, demonstrou-se que a violência doméstica contra a mulher é produto da existência de relações desiguais entre os sexos, atuando, junto com a ideologia, para promover a legitimação e reprodução material dessa estrutura social verticalizada. As relações desiguais entre homens e mulheres, por sua vez, não pairam no ar. Pelo contrário, a forma histórica pela qual homens e mulheres organizam as suas vidas, conforme a qual são delineados os papéis masculinos e femininos e cristalizada a hierarquização entre estes, é definida pelo lugar que ocupam na organização geral do trabalho social, isto é, pela divisão sexual do trabalho. O cerne da divisão sexual do trabalho reside na sexualização da cisão econômica entre a esfera reprodutiva e a esfera reprodutiva. Disso decorre a atribuição prioritária do trabalho doméstico e de cuidados, responsável pela reprodução da força de trabalho, às mulheres, em contraposição ao desempenho do trabalho produtivo, que gera mercadorias para a troca, pelos homens. Além disso, agrega-se maior valor econômico e prestígio social às atividades protagonizadas pelos homens, mesmo quando as mulheres – sem que sejam socialmente desincumbidas da execução do trabalho doméstico – se inserem no mercado de trabalho e passam a desempenhar a mesma função que os homens. Sendo assim, a existência material de homens e mulheres está marcada pela atribuição de valor social e de status econômico diferenciado ao trabalho de acordo com o sexo de quem o realiza. Nesse sentido, pode-se dizer que a violência

doméstica contra as mulheres corresponde a um mecanismo que visa a manter a mulher “no seu devido lugar” dentro da divisão sexual do trabalho. Com efeito, via de regra, justifica-se a violência a partir de argumentos como os de que a mulher não preparou a comida na hora certa, não limpou direito a casa, saiu sem pedir permissão, usou uma roupa “inadequada”. Resta evidente que tais exigências pretendem fixar a mulher no seu papel de mãe, esposa fiel e dona de casa zelosa. Tal violência é legitimada na medida em que é exercida pelo marido ou namorado, aos quais se delega o direito de “corrigir” as suas esposas/namoradas, vale dizer, o poder disciplinar e punitivo no âmbito doméstico. Não bastasse esse discurso que atribui às mulheres a responsabilidade pela violência que sofrem, vigem também aqueles que pretendem exculpar os agressores. Tais discursos recorrem a argumentos como os de que a violência doméstica contra a mulher decorre da degradação das relações sociais no quadro das famílias de baixa-renda; da falta de acesso à educação formal; da dependência química de álcool ou entorpecentes; do desemprego; de surtos episódicos de raiva – associados à “natureza” agressiva dos homens – ou de transtornos mentais – frequentemente invocados nos casos de violência sexual. Todavia, não cabem discursos economicistas que atribuem a violência doméstica aos segmentos sociais mais pobres, ou que convertem em causa da violência fatores que apenas contribuem para a sua precipitação como o são o alcoolismo e o consumo de drogas, ou que tratam a violência contra a mulher como evento isolado e acidental, tampouco a patologização do agressor. Em verdade, a violência doméstica contra a mulher ocorre de forma reiterada no seio das relações familiares, operando mediante uma espiral ascendente, segundo a qual as agressões se tornam cada vez mais freqüentes e lesivas. Ademais, não se trata de um fenômeno contingente, mas de um

problema social fundamental, que se apresenta de forma generalizada e duradoura na sociedade patriarcal, posto que é seu elemento estruturante. Não obstante, historicamente, o Estado tem se eximido de intervir no seio das relações familiares, ancorado na ideologia que segrega o espaço privado do espaço público e que dicotomiza o “natural” e o “social”, dissimulando a divisão sexual do trabalho e a divisão do trabalho entre o Estado e família. Assim, o âmbito familiar é representado como esfera da reprodução biológica, em que predominam relações instintivas, de afeto, cuidado e carinho, pelo que a violência contra a mulher aparece como prática natural de resolução de conflitos, expressão, pois, do exercício legítimo do poder patriarcal.

Desde a conformação do Estado e do seu aparato repressor em benefício da classe econômica dotada de maior poder social – processo ocultado pelas teorias contratuais legitimadoras do poder político –, as mulheres não foram reconhecidas como sujeitos políticos, tampouco como sujeitos de direitos. O Estado e o Direito foram estruturados pelos homens para regular as relações de poder e propriedade vigentes entre homens no espaço público. Da mesma forma, o aparato punitivo estatal estabeleceu-se no espaço público – lócus privilegiado de realização dos papéis sociais masculinos – como instância repressiva das ações contrárias à moral do trabalho e às relações sociais de produção vigentes1. Por outro lado, o controle social das mulheres sempre foi exercido prevalentemente através de mecanismos informais de controle, cumprindo as agências de controle formal um papel residual no que diz respeito às mulheres (o que se observa pelas baixas taxas mundiais de encarceramento feminino). Todavia, esses mecanismos de controle informal, tais como a educação, a religião e a família, não exercem funções paralelas às do sistema punitivo formal, pelo contrário, tal como ele, são funcionais à manutenção do status quo: capitalista, racista e patriarcal. A família constitui um espaço social central para a definição do papel social fundante do paradigma de feminilidade: a maternidade e, de forma imbricada, o desempenho do trabalho doméstico e de cuidados. Este padrão de gênero é inscrito no corpo das mulheres através de mecanismos diversos, 1 BARATTA, Alessandro. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: Criminologia e feminismo. Org: CAMPOS, Carmen Hein de. Sulina. 1999.

O sistema jurídico e a ideologia penal não são neutros

dentre eles o exercício conformador e disciplinante da violência. Aliás, não é de hoje que o movimento feminista destaca a família enquanto instituição social que é perpassada pela totalidade das contradições estruturantes da sociedade e que, ao mesmo tempo, constitui uma mediação importante para a reprodução dessas mesmas determinantes sociais. Nesse sentido, a violência contra as mulheres praticada no âmbito de relações de afeto, convivência ou hospitalidade pelos seus cônjuges, companheiros, irmãos, pais etc, constitui um submecanismo informal de controle das mulheres, respaldado pela seletividade negativa, isto é, pela não intervenção limitadora do aparato punitivo do Estado. É que, em que pese o discurso jurídico-penal, pretende-se a racionalização (e conseqüente legitimação) do poder repressivo exercido pelas agências punitivas, valendo-se, para tanto, de um repertório genérico e abstrato, pretensamente neutro e universal, sabemos que o Direito Penal é desigual por excelência. Isso se expressa tanto nas suas instâncias de criminalização primária, vale dizer, na sua estrutura normativa, quanto na sua operacionalização, na qual resta mais flagrante a sua atuação seletiva, seja para capturar e punir os setores sócio-econômicos mais vulneráveis e débeis, seja em sua omissão em face da imposição de penas privadas às mulheres. Observe-se que, sob essa perspectiva de falta estrutural da tutela penal quando se trata da violação dos direitos humanos das mulheres, o Direito Penal reagiria apenas excepcionalmente, isto é, tão somente nos casos de violência doméstica que tivessem alcançado maior projeção midiática e, em razão disso, gerado maior comoção social e clamor punitivo. Todavia, ainda nestes casos, a resposta penal consubstancia uma medida que visa estritamente à legitimação simbólica do próprio sistema punitivo, o qual resta desestabilizado pela sensação de impunidade artificialmente disseminada no corpo social pela espetacularização da violência. De forma alguma, a punição “exemplar” dos agressores nestes casos isolados – convertidos em verdadeiros rituais públicos de condenação, a despeito de toda sorte de garantias fundamentais do réu – rompe a lógica estrutural de imunização penal dos homens ante ao sistema punitivo quando a ação típica por eles praticada é expressão do poder social que a organização social patriarcal lhes confere. Pelo contrário, estas são exceções que confirmam a regra. E este padrão imunizante é constatável, mesmo tendo em conta o fato de que os homens

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jovens, negros e pobres são os alvos preferenciais do aparato repressor do Estado. Isto porque, quando se trata de violência doméstica contra a mulher, a regra é a cumplicidade masculina, que reúne os homens penalmente imunizados em função do poder que possuem na estrutura capitalista e os explorados neste modelo econômico, pertencentes às classes subalternas, sob a omissão patriarcal do poder punitivo. Dessa forma, os não-conteúdos do Direito Penal, no que tange ao exercício ilimitado do poder masculino no âmbito familiar, desnudam a legitimação pública das relações violentas que subordinam as mulheres; é dizer, o respaldo do poder praticamente absoluto exercido pelos homens sobre o território físico e simbólico do lar, evidenciando que o sistema jurídico e a ideologia penal não são neutros, pelo contrário, reforçam os papéis de gênero.

A aplicação da Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, não significou uma ruptura com a legitimação pública do controle informal exercido sobre as mulheres através da violência. Diferentemente, implicou na (re)privatização deste conflito, do que decorreu a sobreposição de uma violência institucional àquela que motivou as mulheres a recorrer ao sistema de justiça penal, vale dizer, na duplicação da vitimação feminina. O novo procedimento penal passou a abarcar os crimes classificados como de “menor potencial ofensivo”, assim definidos com base no valor da pena máxima que lhes era cominada, que não deveria ser superior a 2 anos. Adotado o valor máximo da pena como critério para definição dos crimes abarcados pela Lei 9.099/95, os Juizados Especiais Criminais passaram a julgar os delitos de trânsito e os cometidos no bojo de conflitos que envolvessem agressões físicas leves e verbais. Ocorre que a adoção desse critério (quantum da pena) de natureza meramente técnico-formal esteve fundada no estabelecimento de uma relação automática entre a gravidade de um delito e a pena que se lhe aplica em abstrato, a qual expressa um raciocínio excessivamente padronizador em matéria de política criminal. Isso porque, embora seja possível quantificar a pena, o mesmo não vale para a mensuração do grau de lesão ao bem jurídico provocado por um crime, de forma que a cominação abstrata de pena é sempre atividade irracional que

A Lei 9099/95: reprivatização do conflito e duplicação da vitimação feminina

não pode servir de critério único para determinar a incidência ou não de determinado procedimento penal a certo crime ou rol de crimes2. Embora grande parte dos crimes tipicamente cometidos no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, como os de lesão corporal leve, ameaça e injúria, sejam sancionados com penas inferiores a 2 anos de reclusão, excetuados desse rol somente os crimes de homicídio e abuso sexual, não cabe defini-los como de menor potencial ofensivo. Isto porque tais crimes não são episódicos, isto é, expressão de conflitos ocasionais entre homens, como o são, via de regra, os conflitos de trânsito e as brigas entre vizinhos que a lei pretendia regular. Diferentemente, são manifestações da existência de relações de poder que sustentam ciclos de agressões que, não raro, culminam na morte da mulher. Portanto, a Lei 9.099/95 ignorava os riscos fatais da escalada da violência perpetrada no âmbito doméstico, a qual se consuma em circunstâncias em que a mulher dispõe de escassos meios de defesa e de reação eficaz à violência, não conta com a presença de testemunhas, nutre afeto pelo agressor e, em certos casos, dele depende economicamente. Além disso, o paradigma consensual de resolução de conflitos adotado pela Lei 9.099/95 não era compatível com situações em que vigem relações de poder entre as partes, contribuindo, na verdade, para reforçá-las e, na esteira, os padrões de gênero hierarquizados que manipulam. É que, na prática, o consenso obtido não expressava uma composição produzida mediante transigências recíprocas das partes. Pelo contrário, resultava da imposição às mulheres da responsabilidade integral pela sua formulação, apelando para que assumissem o seu papel de mães e esposas às quais incumbe compreender e perdoar incondicionalmente o agressor, bem como zelar pela preservação da família, ainda que isso signifique relativizar o seu direito a uma vida livre de violência. A preocupação central com a eficiência na prestação jurisdicional que marca a Lei 9.099/95 revela uma racionalidade econômica orientada para a busca de eficiência na prestação jurisdicional, que contrasta tanto com a preservação das garantias da ampla defesa e da presunção de inocência do réu (submetido a sanções penais – ainda que não privativas de liberdade – sem prova de autoria)3 2 CAMPOS, Carmen Hein de, CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e juizados especiais criminais: análise desde o feminismo e o garantismo. In. Revista de Estudos Criminais. Ano V. jul/set 2005. nº 19.3 É que a Lei 9.099/95 é fruto de um conjunto de reformas judiciárias implementadas no contexto de avanço do

O enfrentamento da violência de gênero e a Lei Maria da Penha

quanto com a proteção da vítima e a prevenção de novas agressões a que está sujeita.

Ao lançar os crimes de violência doméstica contra a mulher na vala comum dos crimes de menor potencial ofensivo, submetendo-os todos ao mesmo tratamento processual penal, a Lei 9.099/95 acabou por banalizar a violência doméstica contra a mulher, na medida em que não ofereceu respostas públicas ao conflito; a lei, portanto, não considerou as relações de poder e dominação que lhe são subjacentes e não conferiu espaço de protagonismo às vítimas. Ocorre que somente a partir desses pressupostos é possível a efetiva compreensão do conflito e das expectativas das vítimas em face do sistema penal, com base no que se viabiliza a garantia da sua proteção e a prevenção de novas agressões. Ressalte-se que a denúncia feita pelo movimento feminista acerca da inadequação do procedimento penal instaurado pela Lei 9.099/95 aos casos de violência doméstica contra a mulher, fundada, sobretudo, na explicitação das relações de poder subjacentes a este conflito, é perpassada pela compreensão do caráter androcêntrico do Direito e da sua não-neutralidade de gênero, em que pese a legitimidade mediante um discurso racionalizador geral e abstrato. Dessa forma, coloca-se para o movimento feminista e para o conjunto dos movimentos sociais o imperativo de explicitar o papel desempenhado pelo

neoliberalismo. Sob essa tônica, operou-se a redefinição do papel do Estado, que exigia, entre outros aspectos, a redução dos gastos públicos mediante o desafogamento do judiciário. Tal racionalidade econômica concretizou-se na formatação de um paradigma de persecução penal consensual, potencialmente mais célere e eficiente, que implicou na relativização de garantias fundamentais do réu. Ainda que se argumente, a despeito de tais críticas, que a Lei 9.099/95 pode ser inserida numa lógica de contenção da violência persecutória e punitiva, certo é que o procedimento penal que previu não se adequou aos casos de violência doméstica contra a mulher.

Direito para a reprodução do status quo mediante o seu confronto com as contradições estruturantes das relações sociais e os interesses antagônicos dela originários. Este exercício permite-nos identificar a viabilidade e os limites da utilização da ferramenta jurídica ao longo do processo dinâmico de luta pela efetiva universalização dos direitos, vale dizer, pela satisfação das necessidades reais de todos os indivíduos.

A promulgação da Lei “Maria da Penha” (11.340/2006) como reação à inaptidão dos instrumentos previstos pela Lei 9.099/95 para promover o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher – de que é exemplo inconteste o caso de Maria da Penha Fernandes, cujo nome apelidou a lei em comento –, está impregnada dessas reflexões acerca do papel político do Direito e das possibilidades de sua instrumentalização em prol de lutas engajadas na promoção de transformações estruturais na sociedade. A Lei Maria da Penha surge como uma ferramenta legal para conferir tratamento diferenciado a relações desiguais que vitimizam as mulheres, negando a ficção jurídica que iguala todos e todas sob a rubrica de sujeitos de direitos igualmente livres. Nesse sentido, não há que se dizer que a lei fere o princípio da isonomia pelo simples fato de que sua aplicação se restringe aos casos de violência domestica contra a mulher, não se aplicando, portanto, aos homens. As agressões perpetradas contra os homens já são tuteladas pelo Código Penal. As mulheres, em contraposição, historicamente têm sido negadas enquanto sujeitos do direito a uma vida livre da violência no âmbito doméstico e familiar. Ressalte-se, contudo, que a Lei Maria da Penha não é uma política afirmativa. As políticas afirmativas possuem natureza transitória e constituem um conjunto de providências positivas com vistas a equiparar as condições e oportunidades dos grupos sociais historicamente marginalizados social, econômica e culturalmente. Ademais, a intervenção punitiva é necessariamente excludente, do que decorre que a pena criminal não pode ser utilizada como política promocional relativamente às mulheres, pelo que se estaria instrumentalizando o indivíduo (réu) em prol da consecução de finalidades estatais. A imposição de sanção penal, num Estado de Direito e conforme a doutrina do Direito Penal

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Movimento feminista e movimento da “Lei e da Ordem”: protagonismos sociais antagônicos

Mínimo – que propõe a redução rigorosa da esfera de criminalização e do cárcere –, só se sustenta, minimamente, pela necessidade de tutela de outro bem de relevante valor social. A Lei Maria da Penha é um instrumento legal voltado para garantir a proteção da integridade física e psicológica e a vida de cada mulher individualmente agredida; do mesmo modo, visa ao direito à igualdade do grupo social das mulheres, eis que a violência sexista perpetrada contra cada uma delas é imbuída do escopo de controlá-la e dominá-la pelo simples fato de ser mulher e, portanto, de configurar a subjugação das mulheres enquanto grupo social. Em outras palavras, se tivermos em conta a deslegitimação estrutural do Direito Penal que decorre da denúncia do seu caráter seletivo e da falência completa das funções ressocializadoras do cárcere, uma esfera de criminalização deve estar intimamente ligada à necessidade de proteção de direitos humanos. É dizer, quando e s t r i t a m e n t e fundada na proteção n o r m a t i v a d a s necessidades reais de determinado grupo social, no caso em comento, as mulheres. Assim preceitua a doutrina do Direito Penal Mínimo. Tais necessidades nada mais são do que as potencialidades de existência e de qualidade de vida das mulheres, as quais correspondem ao grau de desenvolvimento da capacidade humana de produção material e cultural no nosso atual contexto econômico e social4. Ressalve-se, ainda, que a Lei Maria da Penha também não se identifica com uma medida de caráter transitório, como são as políticas afirmativas, eis que a existência de uma tutela penal específica no que concerne aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher deve perdurar enquanto este for um mecanismo social generalizado e fundamental para retroalimentar as relações de poder entre homens e mulheres. Assim, as redefinições no formato dessa tutela adviriam de um movimento geral de consolidação de uma política criminal alternativa em direção à construção de alternativas ao Direito Penal.4 BARATTA, Alessandro. Princípios del derecho penal mínimo (para una teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal.In: Criminología e sistema penal.pp. 299-334

Ainda assim, os adeptos da criminologia crítica e defensores de um Direito Penal Mínimo criticam o movimento feminista sob a alegação de que este, no afã de assegurar a visibilização da violência sexista, acaba assumindo um discurso marcadamente criminalizante e punitivista, que ratifica e reforça a função excludente do sistema punitivo, aproximando-se de discursos conservadores como o do movimento da “lei e da ordem”.

Tal crítica não prospera. É evidente que a Lei Maria da Penha e a legislação penal de emergência elaborada pelo movimento da “lei e da ordem” são produto de protagonismos sociais antagônicos. De um lado, tem-se o movimento feminista, que

desempenhou um papel crucial nas l u t a s p e l a r e -democratização do país e uma lei que deriva de exaustivo debate público, a qual pretende materializar uma política criminal efetivadora dos direitos humanos de um grupo social h i s t o r i c a m e n t e oprimido a partir

do enfrentamento de um problema social não contingente. De outro, tem-se o movimento da “lei e da ordem”, que não é novidade no sistema de repressão capitalista, sendo sempre recuperado em determinados momentos históricos em que a classe no poder (branca, heterossexual e proprietária) sente a necessidade de aumentar a repressão para a manutenção da “ordem”. Tanto o é que ele remete ao período da ditadura militar, desta feita expresso sob a rubrica da doutrina da segurança nacional. A doutrina da segurança nacional instrumentalizava-se do medo oriundo do clima de intranqüilidade social, difundido mediante a manipulação da ameaça comunista, – traduzida no inimigo interno e externo –, para justificar a atuação repressiva do Estado. Qualquer semelhança com o movimento da “lei e da ordem”, portanto, não é mera coincidência. O movimento da “lei e da ordem” tem

A criminologia feminista e a criminologia crítica devem ser uma só

em seu cerne a expansão e o recrudescimento irracional do poder punitivo, levado a efeito pela edição de leis penais de emergência, elaboradas em contextos sociais marcados pela sensação de insegurança pública, artificialmente fomentada pela mídia a partir da espetacularização de crimes e da instrumentalização de suas vítimas. Trata-se, portanto, de uma um política criminal elaborada a partir da exceção, pensada e executada pela tecnocracia estatal com vistas à expansão do poder punitivo para a tutela da ordem. Assim é que embora ambos os movimentos se valham do recurso à pena pública, não se pode dizer que em ambos os casos o discurso justificador da pena (consideradas as contradições que lhe são imanentes) parta do mesmo ponto de vista para atingir as mesmas finalidades políticas. Há uma diferença clara entre o uso do aparato repressivo para assegurar o controle de um grupo social sobre outro, reforçando a violência estrutural através da violência institucional, e o uso do Direito Penal pelos setores historicamente oprimidos como continuidade de uma luta social travada em toda a sociedade. Se tal constatação, por um lado, não isenta o uso tático do Direito Penal pelas mulheres e outros setores sociais oprimidos, por outro não exime o movimento feminista de um uso criterioso e seletivo da ferramenta penal para que esta não se converta em um uso tático conjuntural, cujo principal efeito seria o fortalecimento do poder punitivo que não discrimina somente elas, como outros grupos sociais, particularmente os negros e pobres, alvos preferenciais das malhas do sistema penal5. Assim, o recurso à intervenção penal – para que não se converta em um uso puramente simbólico – deve sempre operar dentro de estreitos limites, associado à inexistência de meios alternativos de proteção eficaz dos direitos humanos em jogo e deve sempre estar imbuído da compreensão de que não será o recurso ao poder punitivo ou a demanda pelo seu incremento que resolverá as contradições estruturais que sustentam a vitimização dos setores sociais que a reivindicam.

Ademais, no que diz respeito às críticas feitas pelos criminólogos críticos, há que se destacar que a busca pela compreensão do funcionamento seletivo 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A mulher e o poder punitivo. In. Mulheres: vigiadas e castigadas. Seminário Regional “Normatividade Penal e Mulher na América Latina e Caribe. CLADEM.São Paulo, 1995. pp. 23-38

do sistema de justiça penal e do processo social de definição e percepção da criminalidade exige um olhar sobre as chaves de dominação e exploração vigentes em nossa sociedade. Tais chaves implicam na análise não apenas das relações de classe e raça, mas também de gênero, partindo da premissa de que estas não são categorias hierarquizáveis, mas chaves de dominação-exploração que se sobrepõem parcialmente e se redimensionam reciprocamente. Nesse sentido, da mesma forma que acreditamos que a criminologia feminista só pode desenvolver-se oportunamente no campo epistemológico cunhado pela criminologia crítica, rompendo com o determinismo biológico quando da identificação das causas do crime e do comportamento delitivo – ambos considerados como categorias ontológicas –, por outra via, a criminologia crítica deve incorporar as contribuições da criminologia feminista que permitiram a ampliação das concepções acerca das funções efetivas do poder punitivo por trás das suas funções declaradas, evidenciando que aquelas também são seletivas quanto ao gênero. Dessa forma, coloca-se o imperativo de que a criminologia crítica e a criminologia feminista sejam uma só. Nessa consubstancialidade, se realiza a crítica ao papel desempenhado pelo Direito Penal na reprodução das desigualdades de classe (e de gênero) e de gênero (e de classe). A adoção de tal ponto de vista implica em romper tanto com a visão genérica e abstrata acerca da classe trabalhadora, evidenciando que ela possui dois sexos, quanto deixar de enxergar as mulheres como uma categoria social homogênea, isenta de contradições quando, muito pelo contrário, sabe-se que ela é atravessada por contradições de classe e de raça. Isto é, a compreensão da seletividade do sistema de justiça penal, de que a punição tem servido historicamente ao domínio de uma classe sobre outra, não nos exime de compreender que esse Direito Penal não apenas serve a uma classe social, mas também tem privilegiado um gênero específico, o masculino. A Lei Maria da Penha reflete, portanto, um paradigma de política criminal que se vale da perspectiva de gênero, sem desconsiderar a contribuição teórica da criminologia crítica. Ademais, não recai no uso simbólico do Direito Penal, eis que ao partir da compreensão do problema da violência doméstica contra a mulher em sua totalidade, prioriza a mudança de procedimento penal em detrimento da exasperação das penas e delineia um conjunto de políticas públicas que vão para além da normatividade penal.

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A Lei Maria da Penha: aspectos de uma política criminal elaborada sob a perspectiva de gênero

Primeiramente, a lei, sem tipificar novos delitos, redimensiona a gravidade dos já existentes quando perpetrados no contexto de um ciclo de violência doméstica. O recrudescimento da resposta penal atinente aos respectivos delitos tem em conta a especial condição de vulnerabilidade da mulher em situação de violência doméstica; vale dizer, o fato de que a violência é contra ela praticada na calada do ambiente doméstico e familiar, justamente na esfera mais íntima da vida privada, na qual ela deveria se sentir mais protegida e onde dispõe de recursos limitados de defesa e reação à violência. Não bastasse, a lei tem em conta o fato de que as agressões no bojo do ciclo de violência doméstica se tornam progressivamente mais lesivas, podendo levar a mulher à morte e, ademais, considera que as ameaças muitas vezes impõem à mulher um sentimento de vigília permanente, o que constitui um quadro de tortura psicológica que perdura por décadas acentuando a sua vulnerabilidade. Também, o aumento da sanção penal decorre do intuito político criminal de evitar que os casos de violência doméstica continuassem sendo submetidos à competência dos Juizados Especiais Criminais, cujo procedimento penal produzia efeitos (re)privatizantes do conflito e (re)vitimizantes das mulheres que recorriam ao sistema de justiça, conforme já explicitado. Portanto, o elemento central da Lei é a busca pela garantia de um procedimento penal apto a dar voz à vítima, assegurando-lhe o protagonismo necessário para que influencie a adoção de medidas judiciais de caráter protetivo que atuem para a prevenção de novas agressões. Ademais, a Lei destrincha as múltiplas formas de manifestação da violência doméstica e familiar contra a mulher, quais sejam: física, moral, sexual, patrimonial e psicológica. Dessa forma, tornou-se possível visibilizar a violência contra a mulher mediante a ampliação da percepção quanto às suas múltiplas formas de expressão, escancarando práticas historicamente incorporadas ao cotidiano das relações de poder travadas entre homens e mulheres no âmbito doméstico como se delas naturalmente fizessem parte – o que inclusive constituía uma das suas principais causas de sub-notificação. Nesse sentido, contribuiu ao introduzir

a perspectiva de gênero, para romper com a lógica heterônoma segundo a qual as mulheres concebem a sua autonomia e o que seja a violação da sua integridade a partir da cosmovisão, dos aparelhos cognoscitivos e de um saber-poder jurídico de caráter androcêntrico. Mais que isso, a lei, ao relacionar todas essas modalidades de violência com um contexto de relações de poder e dominação, exige dos profissionais do Direito um olhar mais amplo para os fatos típicos judicializados, inserindo-os no plano das contradições materiais estruturantes das relações sociais, o que permite redimensionar a gravidade e os riscos atrelados a uma ameaça ou lesão corporal. Ao prever a leitura e o enfrentamento da violência sexista em sua totalidade, a lei prevê que os juizados de violência doméstica contra a mulher tenham competência para julgar matérias da área cível e criminal a ele atinentes. Ademais, a lei prevê a adoção de medidas protetivas, dentre as quais se insere a de afastamento do agressor do lar conjugal em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução processual. Tais medidas cautelares concedidas pelo juiz criminal não apenas visam assegurar a proteção da mulher em situação de violência doméstica, evitando que venha a ser vítima de novas agressões, como tornam desnecessária a determinação da prisão processual do réu. Note-se que, nos casos de violência doméstica contra a mulher, a prisão cautelar do agressor poderia constituir medida mais gravosa que a própria pena eventualmente aplicada ao fim da instrução processual. Por constituírem uma modalidade de tutela de urgência menos restritiva da liberdade do réu que a prisão cautelar, as medidas protetivas consubstanciam uma política criminal garantista e mais que isso, desencarceradora, a qual mereceria ser irradiada para todo o sistema processual penal, especialmente se tivermos em conta que, no Brasil, quase a metade da população carcerária é composta por presos provisórios. Também são previstas pela lei equipes multidisciplinares para garantir às mulheres que tentam romper com o ciclo da violência e procuram apoio estatal, atendimento por psicólogo e assistente social. Estes profissionais, além de ouvir a mulher, podem providenciar o seu encaminhamento – e também o de seus filhos – para equipamentos da rede social de apoio, como as casas-abrigo, nos casos em que mulher sofre iminente risco de morte e precisa abandonar a sua casa, o seu emprego e toda a sua rede de vínculos sociais. Também incumbe a estes

profissionais providenciar a inclusão da mulher em políticas públicas habitacionais e de geração de renda que forneçam a ela condições materiais para recomeçar a sua vida longe do agressor, ou mesmo com ele, porém com autonomia econômica. Outro aspecto diferencial da Lei Maria da Penha é a previsão de assistência jurídica para a vítima. Tal assistência cumpre papel crucial para protegê-la da violência institucional levada a efeito pelos operadores das agências penais, que marca todo o seu trajeto pelo sistema de justiça criminal, mediante a reprodução de discursos machistas que culpabilizam a mulher pela agressão sofrida e a incentivam a não prosseguir com a denúncia ou manifestam resistência expressa à aplicação da lei. Ressalte-se que assegurar a participação da vítima no processo penal, através da garantia da assistência jurídica, não ocorre para que se dê consecução à eventual vingança. A participação no processo é uma condição para que a mulher fragilizada pela situação de violência doméstica exerça os seus direitos ao longo do processo, evitando-se a aplicação de dispositivos vedados pela lei como a transação penal e a composição civil e atendendo à expectativa da vítima de ver o seu problema redimensionado pelo poder público. Essa expectativa de ver-se protegida pelo Estado não se confunde, portanto, com anseios punitivos em face do agressor. Pelo contrário, em se tratando de situações de violência doméstica, a vítima conhece o agressor e cultiva a seu respeito uma visão não maniqueísta, incompatível com a tarja social do “criminoso” que é a marca ideológica da desumanização que legitima a intervenção punitiva. Nesse sentido, via de regra, o fundamental para a mulher em situação de violência é pôr fim à situação de violência. Essa demanda exige uma complexificação da resposta estatal ao problema, vale dizer, que Estado se aproprie da gestão do conflito, deslocando-o da esfera privada para a

esfera pública; garanta o poder de fala da vítima, pelo que equipara, ao menos no curso do processo, as suas condições com as do agressor, e com base neste exercício, construa alternativas para além do binarismo prender/soltar. Negar, aprioristicamente, o recurso ao Direito Penal pelos grupos sociais historicamente oprimidos com base na defesa cega de um Direito Penal Mínimo mais se confunde, paradoxalmente, com uma postura política de não questionamento do aparato repressivo. É que tal posição reflete um purismo acadêmico que, por não tolerar as contradições imanentes aos instrumentos políticos desenvolvidos pelas lutas emancipatórias nos marcos da ordem, redunda num imobilismo político. Mais que isso, negar a extrapolação da luta social (de classe e de gênero) para o âmbito do Direito Penal – o que não implica em convertê-lo em arena privilegiada das lutas sociais ou em panacéia – seria semelhante a dizer que os oprimidos não podem se valer taticamente dos mecanismos formais de controle. Tal discurso, não tem em conta, ademais, que assegurar às mulheres uma vida livre de violência, sem subalternizar o enfrentamento das contradições entre os sexos que marcam a dinâmica interna da classe trabalhadora, é fortalecer a classe trabalhadora em sua totalidade. Acreditamos que a Lei Maria da Penha cumpre importante papel no atual enfrentamento do problema da violência doméstica contra a mulher e da lógica machista que legitima o controle masculino sobre o nosso corpo, a nossa capacidade reprodutiva, a nossa sexualidade, a nossa força de trabalho, enfim, sobre as nossas vidas. O combate a este mecanismo de cerceamento da nossa autonomia é parte essencial do processo emancipatório em que nós, mulheres, nos afirmamos enquanto sujeitos históricos e políticos, conscientes de que a transformação da nossa condição de opressão é obra da nossa própria resistência e luta.

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12. Entrevista: Setor de Gênero do Movimento dos (as) Trabalhadores (as) Rurais Sem Terra

Uma revolução dentro da revolução

Esta entrevista foi concedida ao Coletivo Feminista Dandara por Lourdes, Soraia e Itelvina, militantes do Setor de Gênero do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O MST é um movimento social que surgiu em 1983 a partir das CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base) e dos Sindicatos Rurais, tendo historicamente se organizado em torno da luta por reforma agrária no país. Em suas últimas ocupações em defesa da reforma agrária, o MST tem privilegiado o enfrentamento das empresas transnacionais e do modelo de desenvolvimento econômico neoliberal, dependente e ambientalmente insustentável que representam. Chama a atenção o fato de que muitas dessas ações foram organizadas e protagonizadas por mulheres, notadamente no período próximo à celebração do 8 de março, data em que se resgata o histórico invisibilizado de lutas das mulheres. A participação decisiva das mulheres do MST nas ações contra o agro-negócio pode indicar um processo interno de questionamento do padrão patriarcal que normatiza as relações entre homens e mulheres do movimento. Assim é que decidimos lançar o olhar e dar voz às mulheres do Setor de Gênero do MST, travando um debate mais aprofundado sobre os avanços do feminismo neste movimento social paradigmático, tendo em vista a sua extensa trajetória de lutas, que o tornou internacionalmente reconhecido e bastante relevante para a alteração da correlação de forças políticas no Brasil e também a nível de América Latina.

Setor de Gênero do MST - No começo do movimento, no final da década de 70, tem um marco que consideramos muito forte no nosso debate interno. Ao se criarem os acampamentos, uma forma de organização mais coletiva, a nível nacional, uma questão que chama a atenção do movimento é a participação das famílias. Até então, os outros movimentos eram mais baseados na adesão individual.

As pessoas iam aos sindicatos dos trabalhadores rurais e faziam a sua sindicalização – e aí se tem o exemplo das Ligas Camponesas de diversos movimentos -, mas de forma muito individual. E sempre os homens. Na história, normalmente os homens é que cumpriam esse papel no movimento camponês. Com a criação dos acampamentos, a condição de adesão é dada para toda a família. Já nos primeiros acampamentos do MST, nas regiões sul e sudeste, é muito forte a participação da família. Naquele período, os militantes do MST vinham de duas grandes forças, ou das CEBS ou dos sindicatos. As CEBS eram as comunidades de base da Igreja, adeptas da teologia da libertação. Muitas mulheres que vieram para o MST, num primeiro momento, eram lideranças das CEBS. Surgiram muitas lideranças mulheres nos acampamentos. Naquele momento, já se fazia a discussão de que o movimento camponês, o Movimento Sem Terra, tem a sua origem no campo, onde a opressão é muito forte, o patriarcado é muito forte, os homens que mandam. Os sindicatos, sobretudo, trazem a reflexão de que como um movimento social que quer transformar a realidade, nós teríamos que discutir a participação das mulheres. Isto é, se só o marido vai para a luta, como era até então - e ainda continua em muitos aspectos -, se só ele vai para a greve e para a mobilização, se só ele é sindicalizado e a mulher fica somente dentro de casa, que consciência política vai crescer nessa mulher? A vinda da família marca essa diferença. As mulheres, ao fazerem a luta pela terra e no processo da organização, começam a assumir tarefas de coordenação, vão para as marchas, para as negociações e começam a se dar conta da sua condição de opressão também. Essa identidade de classe vai vindo junto com a identidade do ser mulher, de gênero. No primeiro congresso do MST, já tiramos a determinação de que a participação no congresso deveria ser de 50% de mulheres, isso em 1984. Em 1985 é fundado o MST, que se constitui como movimento

O processo de visibilização e Enfrentamento da opressão das mulheres no MST: “o novo não é depois, o novo tem que ser hoje”

nacional autônomo em relação à Igreja e aos partidos. Nesse congresso, o movimento já tira, entre os seus primeiros objetivos gerais, combater a violência e buscar a participação igualitária das mulheres. Isso se deu porque, internamente, já havia essa discussão das próprias mulheres de que elas não estavam representadas dentro movimento, de que havia contradições na sua participação, sobretudo no sentido de reconhecê-las como participantes da luta pela terra. As mulheres fizeram uma primeira assembléia para discutir os seus problemas e como elas iam se organizar. Uma das primeiras demandas das mulheres era pela sindicalização. A lógica da época era a de que as mulheres tinham que se sindicalizar para serem reconhecidas, para aparecer, para participar das reuniões, das assembléias, dar o seu voto, inclusive para resolver os problemas de previdência. Na prática, a lógica do movimento era a lógica do movimento camponês de um modo geral. Eram os homens que eram a maioria nas direções e nos coletivos. Portanto, tem um trabalho inicial que é anterior ao surgimento do movimento e que foi forçando o MST a fazer esse diálogo sobre a participação das mulheres. E isso se deu até o início da década de 90. Nesse período, as mulheres tiravam como determinação se organizar no município, construir grupos produtivos de mulheres para que pudessem dar visibilidade à sua luta dentro dos acampamentos, dentro dos assentamentos. O trabalho com as mulheres se inicia muito na base para se fortalecer. Ainda em 1986, em Piracicaba, aqui em São Paulo, acontece o Encontro da Mulher Trabalhadora Rural, que reúne mulheres de todo o país, não só mulheres sem terra. No início da década de 90, a gente começa o diálogo com outros movimentos internacionais de mulheres. Em 1994, participamos do Congresso latino-americano dos camponeses da América Central e da América do Sul. Nessa época, ainda não havia a Via Campesina. Ali as mulheres começam a dialogar com movimentos de mulheres de outras organizações a nível de América Latina. Em 1996, no Cajamar, pela primeira vez, se sistematiza a nível nacional, um primeiro diagnóstico nacional acerca da situação das mulheres dentro do MST.

O surgimento do Setor de Gênero do MST: auto-organização e participação política das mulheres

A discussão do Setor começou em 99, com o debate das linhas políticas. A construção, pelo movimento, das linhas políticas é um processo muito

participativo. Para que seja definida uma linha política tem um processo de debate, realizado em todos os estados. Há uma comissão de sistematização nacional que elabora um relato que vai para o encontro nacional, onde é aprovado. Tirar uma linha política significa que o conjunto do movimento dá importância. Linha política é decisão interna, do conjunto da organização, não é das mulheres, o conjunto do movimento incorpora e isso se torna decisão política para ser implementada. Em 2000, no nosso encontro nacional, o debate do setor de gênero volta e nós aprovamos a sua criação entre as linhas políticas. O indicativo de avançar na organização das mulheres acaba implicando na necessidade de que esse debate funcione também a partir da organização do setor, tendo em vista o papel estratégico que os demais setores desempenham no conjunto do movimento. Assim, todos os estados têm que construir o setor de gênero, envolver a pauta para dar conta de avançar na aplicação das linhas políticas definidas. Ainda são poucos os homens que o setor de gênero consegue envolver, mas a sua existência deu uma fortaleza interna e qualificou politicamente o processo das mulheres dentro do movimento. A metodologia que temos adotado no Setor é prioritariamente a do trabalho e menos a da composição. Temos feito discussões nos cursos do MST, nas instâncias do movimento, reuniões de direções e também o diálogo com outros setores. Tem poucos homens no setor, 99% são mulheres, mas isso não significa que nós não temos feito o debate com os homens e que eles não participem. Também temos utilizado uma metodologia que é a de não termos pessoas específicas do setor de gênero. O setor de gênero é composto por mulheres dos diferentes setores do movimento. A gente avalia que essa metodologia fez com que avançássemos muito mais no debate do que se tivéssemos pessoas específicas para fazer o trabalho. Como dialogávamos com movimentos feministas de mulheres, percebíamos o diferencial de sermos um movimento de mulheres e homens. Ser um movimento misto implica em um constante diálogo e em uma permanente construção de enfrentamento e negociação, no âmbito do debate político. Por isso, ao invés de usarmos o termo “cota”, que é obrigatória, nós usamos o termo “meta”, no que diz respeito à participação das mulheres no movimento. Sendo uma meta, ela vai sendo alcançada na medida em que o movimento vai tomando consciência da real problemática da participação das mulheres e, assim, a meta se constitui como um mecanismo permanente de pressão interna. A mulher está ali, porque não

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vem? : essa é a linha. Ao mesmo tempo, não abandonamos como metodologia o trabalho específico com as mulheres. A gente faz o trabalho com os homens, traz o debate para dentro do movimento, avança nas relações de gênero dentro do movimento, mas utilizando como metodologia a participação das mulheres no movimento... E isso se firma até hoje. Esse debate foi tão importante que foi nesse período que se criou a identidade da mulher sem terra, a partir dos grupos das mulheres, do debate específico e, fundamentalmente, a partir de 2000, quando o 8 de março foi resgatado como dia integrante da jornada de lutas das mulheres. A identidade da mulher sem-terra é um elemento muito importante na afirmação das mulheres como sujeitos sociais e políticos de um processo em construção. As mulheres são as que vão na frente apaziguar a violência da polícia? Não! Não são as mulheres que vão ser buchas de canhão, segurar a repressão. As mulheres são protagonistas de um processo e chega o momento de ir a frente para fazer o enfrentamento necessário com a polícia e com o exército.

A introdução do debate feminista no movimento e a sua relação com a luta de classes: desconstruindo o “etapismo”

Obviamente que os conflitos internos sempre existem, porque quando falamos de gênero estamos falando de poder. Mas a luta de gênero e de classe têm que ser feitas em conjunto e não uma após a outra. Existe um padrão de dominação na sociedade que é capitalista e patriarcal e os processos de transformação que atendem aos nossos princípios e aos nossos objetivos são uma construção. Portanto, a luta de classes não consiste apenas em fazer mudanças nas bases econômicas, materiais da

sociedade, mas tem toda uma questão relacionada a concepções, a valores, à cultura, que corresponde a esse padrão de gênero que está estabelecido, e que tem que ser alterado, senão não é completa nenhuma transformação social, nenhuma mudança na perspectiva socialista de transformação. A luta de classe vem colada na luta de gênero e vice-versa. Isso implica trazer o debate de gênero para o movimento e entender que é estratégico, e que as transformações pelas quais nos movemos implicam em construir um outro modelo de ser humano e de sociedade. Tem uma afirmação internamente no movimento de que esta questão não é coisa das mulheres, mas tem a ver com o conjunto da organização e do movimento e com o nosso horizonte político. Vamos trazendo o debate feminista a partir dessa clareza e dessa concepção. No primeiro encontro das mulheres, já se iniciou o debate “gênero e classe”. Naquela época, já se falava em feminismo, mas havia no MST uma resistência muito grande ao conceito de feminismo porque era extremamente equivocado. Hoje a gente avalia que a esquerda brasileira, não só o MST, se equivocou no conceito de feminismo, pois entendiam que as feministas queriam tomar o lugar dos homens. Havia uma resistência muito grande para discutir. Naquele período, o debate de gênero foi importante. Ele “amenizou” o conflito. Falávamos: vamos discutir gênero e gênero se refere a homens e mulheres. Para nós que nos organizávamos como coletivo de mulheres naquela época, o conceito de gênero foi importante para introduzir no movimento o debate da opressão, apesar dos limites que ele já apresentava para nós. Ele amenizava o conflito, ele não discutia o fundamental, mas ele deu entrada pra gente convocar os homens para fazer o debate da opressão das mulheres. Avaliamos hoje no Setor de Gênero que nós não podemos discutir gênero nessa agenda que guia o debate governamental, ou da ONU, ou nesses patamares dos encontros internacionais de mulheres que não interligam gênero com a discussão de classe. Para nós, só faz sentido discutir opressão se ela estiver dentro da nossa luta geral do movimento por terra, por reforma agrária e por transformação social. James Petras, teórico estadunidense, resumiu isso nessa frase: uma revolução dentro da revolução. Isto é, ao mesmo tempo em que estamos fazendo o enfrentamento do inimigo externo ao movimento, precisamos também fazer a luta dentro do movimento pra pensar novas relações entre homens e mulheres, para pensar a condição da participação das mulheres, para pensar um novo jeito de se organizar.

Criando condições para a participação política das mulheres no movimento: instrumentos de socialização do trabalho doméstico e de cuidados e de garantia do acesso das mulheres à terra.

Na década de 90, o MST se propõe a criar a Ciranda Infantil. Quando agente ia pro trabalho de base, convocar as mulheres para participar dos cursos de formação ou das jornadas de lutas, muitas mulheres diziam que não tinham com quem deixar seus filhos, porque amamentavam ou os filhos não estavam na idade escolar. A Ciranda Infantil passa a ser formada nos locais em que está acontecendo uma atividade do movimento e é composta por educadoras e educadores que ficam com as crianças enquanto as mulheres estão participando da luta. A Ciranda Infantil foi um dos primeiros avanços para permitir que as mulheres participassem das ações do movimento, principalmente a nível nacional. A construção de refeitórios e lavanderias coletivas também faz parte das linhas políticas do MST, mas ainda não é uma realidade no Brasil inteiro. É resultado desse debate de que o privado tem que se tornar público. O espaço da casa tem que ser assumido pelo conjunto do movimento. Há experiências de refeitórios e lavanderias coletivas, mas são mais presentes na região sul do Brasil. Outros Estados têm experiências mais localizadas, pontuais. Um debate que a gente vem fazendo com o governo, por exemplo, é o de que ao se criar o assentamento, sejam criados, como parte da infra-estrututra, tal como as casas, espaços coletivos de lavanderias e refeitórios. Isto porque já temos um debate acumulado de que no acampamento, como tudo é muito coletivo, as mulheres participam muito mais das ações políticas. Quando o acampamento passa a ser assentamento, cada uma vai para sua casa e o trabalho doméstico volta a ser uma tarefa prioritariamente das mulheres. Ao criar lavanderias e refeitórios, as mulheres têm tempo livre para participar das atividades políticas e das atividades econômicas do assentamento. Por exemplo, há um assentamento no Paraná que tem um refeitório coletivo em que é feito rodízio: a alimentação é para todos durante toda a semana e as famílias só cozinham em suas casas nos finais de semana e no jantar, café e almoço é no refeitório. Todas as mulheres participam da cooperativa porque vão trabalhar em todos os outros setores que se organizam dentro do assentamento.

É uma experiência que deu muito certo porque é um assentamento pequeno. O desafio é implementá-la num assentamento com 500 famílias. Tem um assentamento no Rio Grande do Sul, o da Irma, onde, por 15 anos, houve refeitório coletivo. Os maridos ficaram pressionando para que as mulheres voltassem a cozinhar em casa, porque o tempero era diferente. Acabaram, por um período, com o refeitório coletivo na cooperativa. Em menos de 1 ano as mulheres reivindicaram o retorno do refeitório porque não estavam conseguindo conciliar as tarefas da cooperativa com as tarefas domésticas. As linhas políticas do Setor de Gênero do MST são conquistas para as mulheres, mas são desafios permanentes, estamos sempre em movimento, cada realidade é uma realidade, cada assentamento vê de uma forma e reinventa aquela experiência. É assim que se faz o debate da construção da nova sociedade, do novo homem, da nova mulher. O novo não é depois, o novo tem que ser hoje. Se não fizermos mudanças hoje, o que nós vamos construir de novo? Essa construção é obra nossa enquanto classe trabalhadora e vem de um acúmulo dos processos revolucionários da esquerda. James Petras utiliza o exemplo da Nicarágua em que as mulheres participavam ativamente do processo anterior à revolução, mas depois da revolução voltaram para casa. É o que ocorre se não há um processo permanente, organizado o tempo inteiro: anterior e posterior. Outro enfrentamento importante para as mulheres sem terra diz respeito à titulação das terras. Ao conquistar a terra, a titulação não é dada para as mulheres ainda hoje. Ainda permanece a lógica da representação: o homem é o chefe de família, que é o dono da terra, e as mulheres e os filhos são dependentes dele. Essa luta para que as mulheres sejam reconhecidas como titulares das terras vem desde o início do movimento. Existe uma portaria desde o governo FHC, que virou uma portaria interna do INCRA, mas ela só vale para assentamentos novos, de 96/98 para cá. Nos assentamentos antigos, que somam o maior número dos assentamentos, a situação permanece a mesma. Porém, em nenhum momento esta portaria é exigida pelos próprios técnicos do INCRA quando realizam o primeiro processo de cadastramento. Muitas vezes, se não há um processo de tensão interna provocado pelas mulheres no próprio dia, isso passa desapercebido. Além disso, muitas vezes existe resistência dos próprios maridos. Os próprios técnicos do INCRA não têm formação. Chegam ao cúmulo do absurdo de dizer

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que o cadastramento é informatizado e, dessa forma, que o programa contendo o formulário de cadastro não foi alterado para incluir um quadradinho que permite assinalar a mulher como proprietária. Essa portaria é uma conquista que ainda não se desdobra na realidade.

A construção das bandeiras feministas no MST: aborto e violência doméstica contra a mulher

A gente tem grandes desafios no debate com as mulheres do campo, justamente por conta das duas opressões que consideramos, a cultural e a econômica. Há a influência da igreja muito forte e, no aspecto econômico, a invisibilidade do trabalho das mulheres. Então existe uma demanda muito grande por trabalho de base. O tema do aborto, por exemplo, é um tema extremamente difícil de ser trabalhado com as camponesas hoje porque há um peso cultural enorme. Não é que a gente não concorde com a bandeira de luta, que tem a ver com a forma como o capitalismo entra na vida das mulheres, tratando o seu corpo como mercadoria. Mas é um tema muito novo para nós, em termos de sistematização teórica acerca da sua importância ou não. É um debate muito novo e a nível nacional a gente está tentando fazer um diálogo para compreender o que isso significa. Não temos ainda definições internas do movimento claras para discutir temas como aborto, e não só esse como o tema da violência, que é extremamente naturalizada no campo. A violência doméstica é algo velado dentro das quatro paredes. Às vezes ninguém fica sabendo, apenas quando ocorre um escândalo. O sistema incute e alimenta a violência: “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; “o casamento é sagrado”. Violência, aborto e homossexualidade são temas que o movimento feminista hoje discute muito intensamente, mas só agora que nós estamos nos apropriando dessas discussões. Não estamos no campo das definições políticas, não chegamos ainda no patamar de dizermos se somos a favor ou não, o que reflete a metodologia do MST. Nós só nos posicionamos em relação a determinados temas quando há uma clareza geral do movimento de que aquilo é consenso na nossa base. O tema da violência, por exemplo, nós já conseguimos pautar dentro da Via Campesina, que é mais ampla que o MST, e hoje estamos com uma

campanha muito forte de combate à violência dentro dos movimentos que compõem a Via Campesina e, consequentemente, dentro do MST. A gente ainda não tem elementos suficientes para discutir como se combate a violência. A Lei Maria da Penha é apenas uma ferramenta de debate, não serve para o campo. Primeiramente porque não tem delegacia no campo, segundo porque a policia é nossa inimiga. Como é que a polícia bate nos sem-terra, nas mulheres e depois você vai lá e diz “meu companheiro tá me batendo” justamente para o policial que é nosso inimigo? Além disso, não adianta só a denúncia, é preciso criar condições para que a mulher rompa com a situação de violência. Porque, economicamente, as mulheres ainda são dependentes de seus companheiros. No campo, isso ainda é muito forte porque o homem ainda é o provedor da família. Estamos num processo de discussão, queremos inibir a violência no sentido de criar consciência. É um trabalho interno de formação política para criar a consciência de que temos valores humanistas, de que as pessoas não são objetos, são sujeitos políticos. Até chegar a esse nível de consciência, acreditamos que é um longo debate. Denunciar não resolve o problema. O homem vai preso num dia e é solto no outro, principalmente nos pequenos municípios onde estão localizados os nossos assentamentos. Em um assentamento, adotamos o mecanismo de dar 3 avisos para o homem que agride a mulher: primeiro, a coordenação do assentamento conversa diretamente com os dois; se ele bate de novo, é levado para a Assembléia para que todos fiquem sabendo; no terceiro momento ocorre a expulsão do agressor, o que é mais difícil, porque envolve o INCRA e é preciso justificar a expulsão. A expulsão, contudo, não é suficiente, porque uma vez expulso o agressor, a mulher o acompanha e ele continuará a agredindo. Há experiências interessantes em que as próprias mulheres se organizam para se solidarizar com as companheiras que sofrem a violência. Na região de Promissão, por exemplo, tem tarde de bolo e café para receber a companheira que sofreu a violência. A importância da construção do assentamento como uma comunidade está justamente em possibilitar esse controle. Embora ainda seja insuficiente, é o controle social que muda a violência.

Os impactos do modelo agrícola do agro-negócio na vida das mulheres do campo: inaugurando um novo ciclo de lutas

O debate do agro-negócio entra na nossa discussão das mulheres, mais especificamente, com

o debate das sementes. Quando a Via Campesina começou a discutir que com esse modelo agrícola baseado no que hoje denominamos de agro-negócio, há o desaparecimento das sementes, já discutia que ele gera um impacto direito na vida das mulheres. Isso porque, no campo, fundamentalmente, as mulheres são as guardiãs das sementes, as responsáveis por guardar a variedade das sementes para a próxima produção. A Via Campesina tira como indicativo fazer uma campanha: “as sementes são um patrimônio da humanidade”. E a partir disso a gente vai descobrindo quais empresas estão entrando no campo e o que elas estão fazendo. E na medida em que vamos tomando conhecimento da realidade do campo na América Latina, internacionalmente e também no Brasil, vamos percebendo que as mulheres são as mais afetadas. Por exemplo, com a entrada de agrotóxicos no campo, desde a década de 60, o índice de doenças é muito maior. E como as mulheres são as que cuidam dos doentes no campo, na maioria das vezes, encontram dificuldades de participar ativamente das atividades políticas. Os assentamentos ficam cercados pelo mono-cultivo. No MS, eles batem veneno de avioneta. Eles contaminam até 10 km do entorno, por ação do vento, segundo estudos da universidade do MS. Os assentamentos estão todos contaminados também. Não se consegue produzir mais nada. A pressão para o arrendamento é muito grande. As pessoas saem para trabalhar, há o desaparecimento do campesinato, que é a expulsão dos camponeses para a cidade, e as mulheres são as primeiras a serem expulsas com toda a família e são as primeiras a procurar emprego na cidade, são as semi-assalariadas. Em alguns assentamentos, as mulheres vão trabalhar de empregadas domésticas nas cidades. A produção dos quintais é de subsistência, mas é também o que garante muitas coisas durante a entre-safra. Esse cuidado desaparece quando as mulheres saem para trabalhar na cidade porque os homens não fazem isso, se dedicam à produção extensiva. Esta tarefa especificamente desempenhada pelas mulheres vai se secundarizando, vai deixando de acontecer e torna-se necessário comprar comida na cidade. Além disso, como a mulher desempenha o trabalho doméstico, ela sente de maneira muito forte o peso do desaparecimento dos alimentos e a dificuldade de produção da comida. Ainda, estudos mostram que a água dos lençóis freáticos está toda contaminada. Uma pesquisa feita com mulheres que estão amamentando demonstrou

que o leite materno está contaminado com resíduos de produtos agro-químicos. Há o aumento do câncer de pele, do câncer de mama, dos índices de má formação fetal, surgem problemas de depressão etc, tudo como conseqüência desse modelo de produção no nosso país, voltado para o mono-cultivo e para a exportação, para garantir esse modelo insustentável que não gera emprego e até utiliza trabalho escravo. Hoje o Brasil é o maior consumidor de agro-tóxicos do mundo. São apenas cinco empresas que coordenam todo esse ramo. Além disso, a mesma empresa - como é o caso da Novartis -, que produz o veneno é responsável pela produção dos medicamentos e produtos de beleza. Cria-se a doença com o agro-tóxico e também o remédio para resolvê-la – e muitas vezes não resolve - e impõe-se um padrão de beleza para as mulheres, isto é, existe uma cadeia interligada. A luta das mulheres nos últimos 8 de março tem sido para dizer: esse tipo de desenvolvimento nós não queremos no Brasil. Nesse último período, as mulheres sem-terra têm feito o enfrentamento direto às empresas transnacionais, queremos fazer esse diálogo com sociedade e pressionar o governo dizendo que nós queremos permanecer no campo, queremos constituir nossas famílias no campo, que não é qualquer tipo de desenvolvimento que nós queremos, não é esse que acaba com o meio-ambiente, não é esse que cria problemas sociais, não é esse que expulsa toda a família do campo. Sobretudo nas últimas lutas temos trazido o tema da soberania alimentar, que passa por produzir uma comida de qualidade, pela defesa do meio-ambiente, pela garantia das sementes como patrimônio da humanidade. Nós retomamos o debate de um novo modelo agrícola baseado na agro-ecologia e sem a produção de veneno. O capitalismo é muito devastador e só pensa no agora, só pensa no lucro, não pensa no futuro de quem vem. O campo tem muito essa tarefa de pensar as gerações futuras, a luta das mulheres tem sido muito para fazer esse diálogo com a sociedade. Nossa luta atual tem sido a do enfrentamento direto às empresas. Não é que tenhamos abandonado aquelas bandeiras específicas, que se mantêm, dos direitos das mulheres, mas hoje o fundamental é garantir a permanência no campo, que nós vemos como um lugar para se viver com qualidade. Compreendemos que essa luta pela permanência no campo é fundamental para garantir as lutas mais específicas pela garantia de direitos.

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13. Entrevista: Terezinha GonzagaMulheres, Cidade e Política

Conhecemos Terezinha Gonzaga em um Seminário sobre “Mulheres e Direito à Cidade”, promovido pelo Instituto Pólis. Na época, o Dandara tentava desenvolver um trabalho de educação popular com recorte de gênero junto às mulheres da Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó (AMAVILA), comunidade localizada no bairro da Bela Vista, no centro de São Paulo. Atuávamos no local em parceria com o SAJU-USP, que prestava assessoria jurídica aos moradores e moradoras ameaçados de despejo, em razão de uma ação de desapropriação dos imóveis para a construção de um centro cultural. Em face das dificuldades que vivenciamos para consolidar um espaço perene de discussão de gênero na Vila, buscamos a ajuda da Terezinha, que já tinha larga experiência em travar o debate feminista no seio do movimento de moradia, em geral protagonizado por mulheres. Após uma longa conversa, Terezinha, sentindo a nossa vontade de pôr os pés no barro, nos convidou para participar da construção do Curso de Promotoras Legais Populares de São Paulo em parceria com a União de Mulheres. Desde então, a União de Mulheres se constitui como uma importante referência política para o grupo, tanto no que tange à nossa concepção de feminismo, quanto no que se refere à educação popular em direitos com mulheres. Terezinha é formada em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP, integra a União de Mulheres de São Paulo, já coordenou o Curso de Promotoras Legais Populares na cidade de Taboão da Serra e trabalha na prefeitura desta cidade no desenvolvimento de políticas urbanísticas, bem como na execução de projetos de urbanização e de regularização fundiária em favelas, nos quais está incluída a crítica às relações sociais de gênero.

Profissão e política

Quando eu tinha sete anos, nos idos de 1960, vi as imagens da inauguração de Brasília na televisão. Foi um impacto imenso, ainda mais porque era a primeira vez que eu assistia à televisão. Aquela coisa toda ficou na minha cabeça e se somou à influência do meu pai, que já trabalhava na marcação do posteamento para rede elétrica e na construção civil, e me levava como ajudante nas férias. Eu tinha um fascínio pelo espaço público e queria ser urbanista.

Meu pai trabalhava em uma indústria química, a Nitroquímica dos Ermírio de Moraes em São Miguel Paulista, bairro periférico da cidade de São Paulo, onde também nasci e morei até os meus 6 anos. A Nitroquímica era a maior poluidora do Tietê. Essa discussão, que ainda não era chamada de ambiental, trazia a briga, realizada pelos operários organizados nos sindicatos, contra a poluição da cidade e do bairro. Meu pai foi demitido junto com outros por denunciarem a opressão e os acidentes de trabalho. Meu pai era militante e foi a vida toda, então eu acabava participando de todas essas conversas de política local e nacional e de solidariedade internacional. Discutir o espaço público e o Brasil foi uma tônica da minha formação e toda essa vivência me influenciou profissionalmente, porque ainda existem muitos urbanistas – e não são poucos – que são meros tecnocratas, inclusive alguns dentre os que vivem na política partidária.

Gênero e feminismo

A questão do feminismo é muito forte para algumas mulheres da minha geração. Vivemos um momento, nas décadas de 70 e 80, em que o movimento feminista teve um papel preponderante e sempre com um cunho de esquerda, pois vivíamos sob uma ditadura. Sempre nos preocupamos em todos os encontros com a discussão da cidade e do país. Por exemplo, na primeira eleição para prefeito na cidade de São Paulo fizemos uma pesquisa com as mulheres. Perguntávamos o que elas queriam para a cidade, o que elas queriam para o transporte, saúde e educação: foram 200 questionários. Naquela época, ao perguntarmos às mulheres sobre estas questões, as respostas eram sempre preocupadas em resolver os problemas da família e, principalmente, dos filhos. As mulheres pouco reconheciam as suas especificidades. Isto é decorrente de uma construção social patriarcal e machista, na qual a mulher não tem espaço. Começamos a trabalhar a interpretação da cidade com um olhar da mulher feminista já na Academia. Conheci a Sonia Calió, geógrafa feminista, em 1993. Ela tinha estado na França e conhecido planejadoras urbanas feministas que faziam essa reflexão. Aí resolvi juntar a questão de gênero com

a minha profissão, entendendo o espaço construído como reflexo das relações sociais, econômicas e culturais. Adotei as relações sociais de gênero como uma visão de mundo, compreendendo que se materializam na arquitetura e no espaço urbano/cidade.

Divisão sexual do trabalho e capitalismo

Existem algumas análises que entendem que as relações sociais não correspondem aos modelos econômicos definidos. Eu não vejo dessa forma. Acredito que o sistema capitalista se apropriou da relação de poder desigual entre homens e mulheres para conseguir aumentar a extração de mais-valia. O sintoma disso é a questão do trabalho doméstico: o capitalismo manteve essa relação de poder e usa a submissão da mulher. Isso se reflete nas profissões ainda incentivadas para a maioria das mulheres, relacionadas ao cuidar: temos mulheres professoras, enfermeiras, psicólogas e nas atividades de limpeza. A mulher é desqualificada no público e no privado. Um exemplo de política urbana: as mulheres varredoras de rua. Antes eram os homens chamados de lixeiros. Há uns 20 anos, passaram a ser mulheres e coloram um nome bonito: “as margaridas”, mas isso significava uma desqualificação. Era um momento em que os homens não estavam querendo receber aquele salário para realizar tal serviço. Também aconteceu com as cobradoras de ônibus. Quando a profissão se feminiza, na certa, vem acompanhada de uma desqualificação do salário; existe uma relação direta.

A experiência das mulheres na cidade: gênero no espaço urbano

Trajetos e transportes

A cidade é o retrato das relações socioeconômicas, o espaço construído que interfere na vida cotidiana e vice-versa. Os trajetos das mulheres são muito interessantes para entender como a dinâmica da cidade e o machismo interferem em suas vidas. Na minha pesquisa de mestrado, entrevistei 300 mulheres em 5 regiões da cidade. Percebi que para entender a vida das mulheres não dá para pensar a cidade de São Paulo descolada da região metropolitana, pois elas transitam em toda a região. Um dos objetivos desta pesquisa era levar as mulheres a pensar do ponto de vista das necessidades delas, e muitas respondiam “pra mim eu nunca pensei, peraí!”.

Ao fim, fiquei impressionada. As mulheres que vivem nessa região têm inúmeras propostas para melhorar a cidade. Quando eu perguntava se a cidade era mais violenta para o homem ou para a mulher, a porcentagem que percebia que era pior pra mulher não foi a maior. Isto mostra que as mulheres ainda não incorporaram uma perspectiva de gênero. O feminismo procura trazer essa consciência em torno da questão de gênero. O que mais as incomoda é o assédio sexual e o medo do estupro, daí os itinerários e a localização dos pontos de ônibus e a iluminação pública serem questionados. Algumas até sugeriram que existissem ônibus só para mulheres. As mulheres sofrem muito com casos de abusos sexuais no transporte púbico, com o desrespeito sobre o corpo da mulher.

Lazer

Nessa pesquisa, eu também procurei saber sobre a relação das mulheres com parques e praças. Por que só as jovens vão passear? Por que elas têm medo de ir sozinhas? Por que mulheres, quando têm filhos pequenos, mesmo com parques próximos de casa, não os frequentam? Descobri que elas se incomodavam porque não havia bancos para sentarem perto da onde as crianças brincavam, não havia espaço para colocar a mamadeira do filho mais novo, nem fraldários. Acabavam cansadas e irritadas quando iam aos parques. Acabei descobrindo que os momentos de lazer eram a conversa com a vizinha na porta, a ida ao culto. Algumas respondiam que seu lazer era assistir à televisão passando roupa,

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fazendo comida. Assistir à televisão, sem outra tarefa concomitante, era resposta rara. O próprio conceito de lazer para as mulheres não é definido. Quando eu falava em ócio elas achavam um pecado. Quando terminava a pesquisa, eu tinha a sensação de que as mulheres eram burros de carga. Não conseguia pesquisar no dia seguinte. Sentia uma angústia muito grande. A vida das mulheres na cidade é pesada. Percebi que a dupla jornada de trabalho está colocada tanto na classe média quanto nas classes populares, principalmente para as que têm filhos. Claro que para as mulheres de classes populares é mais estafante. Quando se tornam mães, a maioria das mulheres vai procurar trabalho mais próximo de onde mora porque o encargo da maternidade é muito pesado. Essas mudanças na vida das mulheres são violentas e não encontram apoio da sociedade. A maternidade não é, ainda, considerada como uma função social.

Títulos de propriedade Já foi muito debatida essa questão da titularidade da propriedade no nome da mulher. Só em 1988 é que foi garantido este direito. De um lado, existe um questionamento se isto não significa reforçar o papel da mulher, torná-la provedora da casa. Por outro, quem fez essa proposta pretendia que a mulher passasse a ter poder econômico. Afinal, que libertação a mulher pode ter se não possuir poder econômico? Sou socialista, e há um tipo de socialismo que questiona a propriedade privada. Agora, ter a garantia de um teto não é propriedade privada, é? Temos que observar que as relações interpessoais são permeadas pela idéia de propriedade privada, do meu, do ter, tanto é que quando se trata de violência doméstica, o problema de fundo é o homem querer ser proprietário do corpo da mulher e de sua vida. Nesse caso, acredito que estamos falando de direito à moradia, de uma política afirmativa para empoderamento da mulher. Também entendemos que, na separação, a mulher deva ter prioridade, pois em geral fica com a guarda os filhos. No entanto, os juízes, quando aplicam o direito de família, repartem igualmente. Tornando a mulher titular da casa, podemos equilibrar a relação de poder dentro do ambiente doméstico.

O apitaço de Taboão da Serra

Em um episódio do Globo Repórter, que falava sobre o 8 de março, foi transmitido o “apitaço” que aconteceu em uma favela de Recife. Quando uma mulher apanha as vizinhas apitam e correm para socorrê-la. No dia seguinte, ao chegarmos no Jardim

Vale das Flores, favela que está sendo urbanizada, algumas mulheres apareceram: “Terezinha, você viu o apitaço na favela de Recife pelo combate à violência contra a mulher? Vamos fazer aqui?”. Eu falei com a comissão de moradores e com a Coordenadoria da Mulher para municipalizar o ato. As mulheres ficaram muito felizes de verem sua idéia assumida pelo governo. Tivemos muitas mulheres nas ruas apitando, gritando, falando no microfone. E todo ano fazemos. Foi bem interessante. Acredito que devemos fomentar grupos de fortalecimento, dos quais surjam propostas das mulheres. É nesses espaços que as mulheres constroem outra identidade, diferente dessa construída nas bases do patriarcado. Além disso, tais espaços proporcionam a saída das mulheres do isolamento.

Políticas públicas de gênero e disputa de poder

Não vejo dificuldade para o desenvolvimento de políticas públicas, mas sim no comportamento de gestores que querem se perpetuar no poder e personalizam as ações. Quando pensamos em políticas de equidade ameaçamos tais gestores porque são criadas condições para uma autonomia da mulher. Essa é uma questão mundial. Dizer que não existe essa relação de poder é um equívoco, porque se não existissem essas relações desiguais, não existiria o movimento feminista. O movimento feminista surgiu porque existe uma base objetiva, que é a mulher lutando em cada espaço que está presente. Infelizmente, existe uma tendência a olhar para a mulher como “coitadinha”, ou como culpada pela sua discriminação, dissociada, portanto, de sua história na sociedade. Não é nem uma coisa nem outra. Mas, infelizmente, as mulheres ainda não construíram uma proposta de gerenciamento do poder e o modelo estabelecido é hierárquico e opressor.

14. MimetósMariana Carrara

A contração discreta no cenho a cada puxada insistente nos fiozitos ainda rentes do rosto, o queixo já na vermelhidão dos poros doídos. A última inspeção no zoom do espelho que embaça à mínima respiração, —Porcaria de espelho. As primeiras palavras da manhã saem irremediavelmente escuras, espremidas no inchaço da laringe. Cobre o pescoço com as mãos e procura no reflexo um ângulo bom, um charme de cabeça que esconda a bolinha quase galinácea na frente da garganta. Lara irrompe no quarto em busca compenetrada por um sapato, —Você viu o outro pé deste? mas já desiste calçando qualquer coisa roxa, —Meu Deus, Nima, você ainda está assim! Desse jeito não chegamos nunca. Nima não abala a pose no espelho, sente a pele das bochechas com o dorso da mão.—Fica sempre uma sensação de carcaça... E se ressente da voz que desmonta o jogo na aridez indisfarçável do acordar masculino. —Está uma graça, e veja se vamos logo, Nima, seja um pouquinho sensata e abra mão da meia hora da maquiagem, anda. Nima se ergue sem mudar o ritmo, traz o estojo de maquiagem com um sorriso de travessura.—Falo sério, criatura. Hoje estou irritadíssima e você de novo pensando que mulher é assim, o tempo todo saiazinha e enfeitinho na cara, ah, faça-me o favor, cansei desse atraso de vida.Nima abre o olho com os dedos e molha o lápis na ponta da língua, Lara minúscula espera de pé já com a bolsa no ombro. —Ah, Larinha... Sabe o que eu sempre quis ser? – guarda o lápis e puxa do estojo um conjunto de sombras — Um manequim, uma boneca dessas de loja, sabe? Sempre achei lindo imaginar as vendedoras diligentes colocando os braços nas mangas dos vestidos, as mãos de gesso em posição de balé. Depois ajeitam as perucas, avaliam as combinações, ajustam o tecido à cintura com alfinetes... Fico pensando que elas devem ter até nomes, essas bonecas.—Ah, não, Nima! Rímel, não! Anda logo, senão vou sozinha. Olha pra mim, está vendo algum rímel, vestidinho, esses seus saltos altos impossíveis!? Não precisa ser mais mulher que todas as mulheres que você conhece!—Lara, Lara... Tudo tão automático pra você, minha pequenininha. Você pode abrir mão do que você quiser que continua tendo qualquer coisa nos olhinhos que

dá conta de dizer tudo. — aperta os cílios no curvador e sorri melíflua olhando a outra pelo espelho — Eu só vou poder abrir mão disso tudo no dia em que todas as mulheres de todo o país tiverem outras manias, e quando todos os homens tiverem outras manias sobre todas as mulheres. — Abandona o espelho e num salto infantil estende um vestido à amiga — Mas por enquanto sou uma manequim sempre na moda, pode me vestir que eu fico bem quietinha na vitrine. Lara enfia os braços dela nos buracos das mangas e passa com força a gola pela cabeça, a maquiagem num quase-borrão desastroso. —Mas você acredita, Larinha, que eu descobri que as vendedoras arrancam os braços, colocam a roupa na manequim, e depois encaixam de novo?? A doida ainda se demorava um tempão de conversa pro ar e a desgraçada ali me olhando sem braço toda sumida num camisolão...—Anda, Nima, não te tirei braço nenhum.—Não tirou porque não precisa... Experimenta inventarem aí que mulher-que-é-mulher não anda por aí com braços. Ah! Eu era a primeira a ter de tirar os meus.—Vira mulher de uma vez então, Nima. Vai lá, dinheiro é o que não falta. Não agüento mais, parece que não quer ser mulher inteira, credo. —Já falei que não faço de jeito nenhum. — Sobe o zíper e procura um sapato na desordem colorida dos gavetões — Mania sua de achar que mulher é só cavar um buraquinho, eu disse, a qualquer hora me arrancam os braços pra enfiar mais fácil o vestido. Depois me arrancam o sexo, revestem tudo com uma pele fria e eu saio por aí, a mais genuína das infelizes... De jeito nenhum, Lara. Pode ir chamando o elevador, só falta trocar de bolsa. De jeito nenhum... Você pode negar o quanto quiser, mas meu pênis é bem feminino. —Ah meu deus... Vem logo, o elevador já está aqui. Daqui a pouco você me aparece com um pacote de absorventes.Nima se detém um instante no espelho da passagem, alisa o rosto num carinho apaixonado.—E quando o ódio agride, Lara, quando o mundo vem com cinco pedras na mão pra cima de mim, eu preciso de um homem sempre pronto a revidar cada soco, a ameaçar os monstros com golpes cegos de braços. E esse homem leal eu só acho em mim.

Mariana Salomão Carrara é apoiadora do Coletivo Dandara, se formou na Faculdade de Direito da USP em 2009. Atualmente, é Defensora Pública.

www.marianacarrara.blogspot.com62 63

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Agradecemos tod@s @s apoiador@s que

são parte da nossa história:

União de MulheresPromotoras Legais PopularesMarcha Mundial de MulheresSempre Viva Organização FeministaSAJUFórum da EsquerdaAvante!Grupo Ilu Oba DeminSetor de gênero do MSTAlessandro OctavianiCarlos Alberto SallesDiogo Rosenthal CoutinhoFernando Dias MenezesHelena Regina Lobo da CostaMarcus OrioneMariângela Gama de Magalhães Gomes

Desenho da capa: Amanda PaulistaDiagramação: Gabriela Justino, Francisco Cruz, Carolina Costa e Carol Ana Ribeiro

Dandaras que fazem e contam essa história:

Isadora Brandão (Turma 179)Ligia Trindade (Turma 179)Marina Ganzarolli (Turma 179)Talita Melo (Turma 179)Raquel Pimenta (Turma 180)Yasmin Pestana (Turma 180)Renata Elias (Turma 181)Thaís Chanes (Turma 181)Ticiane Natale (Turma 181)Ana Flora Pontes (Turma 182)Gabriela Justino (Turma 182)Carolina Costa (Turma 183)Naira Teixeira (Turma 183)Ana Côrtes (Turma 184)Carol Ana Ribeiro (Turma 184)Leila Giovana Izidoro (Turma 184)

Publicação do Coletivo Feminista DandaraFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Contato - [email protected]: http://coletivofeministadandara.blogspot.com

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