Revista do Ministério Público Militar - mpm.mp.br · Nacional de Justiça, em palavras que achou...

374
do Ministério Público Militar Revista Brasília - DF 2014

Transcript of Revista do Ministério Público Militar - mpm.mp.br · Nacional de Justiça, em palavras que achou...

doMinistrio Pblico MilitarRevista

Braslia - DF

2014

Repblica Federativa do BrasilMinistrio Pblico da UnioMinistrio Pblico Militar

Procurador-Geral da RepblicaRodrigo Janot Monteiro de Barros

Procurador-Geral de Justia MilitarMarcelo Weitzel Rabello de Souza

Vice-Procurador-Geral de Justia MilitarRoberto Coutinho

Coordenador da Cmara de Coordenao e Reviso do MPMPricles Aurlio Lima de Queiroz

Corregedora-Geral do MPMHerminia Celia Raymundo

Conselho Editorial

Clauro Roberto de BortolliProcurador de Justia Militar Coordenador

Ronaldo Petis Fernandes Procurador de Justia Militar

Helena Mercs Claret da MotaPromotora de Justia Militar

Romana de CastroSecretria-Executiva

doMinistrio Pblico MilitarRevista

Ano XXXIX - Nmero 24 - Novembro de 2014

Braslia - DF

Revista do Ministrio Pblico Militar

Uma publicao do Ministrio Pblico Militar

Ministrio Pblico MilitarSetor de Embaixadas Norte, Lote 43CEP: 70800-400Braslia - DFTelefone: (61) 3255-7308Homepage: http://www.mpm.mp.br

Copyright 2011. Todos os direitos autorais reservados.

Capa: Assessoria de Comunicao Institucional do MPMProjeto Grfico: Conselho EditorialReviso: Romana de Castro

Tiragem: 1.500 exemplares

As opinies expressas nos artigos so de exclusiva responsabilidade dos autores.

Revista do Ministro Pblico Militar. Ano 1, n.1 (1974) ano 39,n. 24 (nov. 2014). Braslia : Procuradoria-Geral de Justia Mili-tar, 1974

Anual

Continuao de: Revista do Direito Militar, 19741984.

ISSN 0103-6769

I - Brasil. Ministrio Pblico Militar

ditorialE

Cumprindo compromisso autoimposto, o Conselho Editorial do Ministrio Pblico Militar traz a lume a edio anual de seu mais importante produto, a Revista do Ministrio Pblico Militar, que, em sua 24 edio, props-se a abordar, como tema central, a Justia Militar brasileira. Sem embargo de temas outros, focou-se no passado histrico, na percepo atual e no vislumbre de tempos futuros para esse ramo do Judicirio que, apesar de bicentenrio e com palpveis e polpudos servios prestados Nao, ainda , por parte de no poucos, uma Justia desconhecida, mal compreendida e talvez por conta disto at mesmo entendida por desnecessria.

Ao lado dos treze artigos constantes da publicao, de lavra de uma pliade de operadores do direito, ligados de alguma forma Justia Castrense, deixa-se publicado o escorreito discurso proferido pela ministra Maria Elizabeth Guimares Teixeira Rocha, atual presidente do Superior Tribunal Militar, quando de oficina proposta pelo Conselho Nacional de Justia, em palavras que achou por bem o Conselho Editorial perpetuar na presente edio. Palavras que, na perfeita dico da poesia de Borno, so a expresso do pensamento, espelho da alma oriundo, so como o prprio firmamento, so a pura fora do Mundo 1.

1 Jos Luiz Thom Borno (1952-), poeta, ensasta e filantropo, natural de General Cmara/RS, in Reflexes em Pedras e Calmarias, Porto Alegre: Editora Alcance, 2004.

Esperam os atuais componentes do Conselho Editorial do Ministrio Pblico Militar, cujos mandatos encerrar-se-o pouco tempo aps o lanamento da presente publicao, que o tema tratado permita aos leitores um maior conhecimento da mais antiga Justia Brasileira, tambm fornecendo base para o produtivo e apaixonado debate de ideias que est instaurado, na expectativa de que o deslinde dessa discusso possa ser ao menos uma grande reflexo sobre a importncia desse secular ramo do Judicirio, que, sendo responsvel maior pela manuteno de preceitos bsicos da funcionalidade das Foras Militares, tambm se constitui, como essas, em verdadeiro baluarte de nossa soberania.

Boa leitura!

Braslia DF, em novembro de 2014.

CLAURO ROBERTO DE BORTOLLI

Procurador de Justia Militar

umrioS

As novas misses das Foras Armadas e as lacunas no direito brasileiroMarcelo Weitzel Rabello de Souza

A reinveno da Justia Militar brasileiraAntnio Pereira DuarteJos Carlos Couto de Carvalho

IPM Repblica do Galeo: uma abordagem histrica e jurdicaPricles Aurlio Lima de Queiroz

Justia Militar democrtica e de direitos humanosCndido Furtado Maia Neto

Direitos polticos dos militaresPaulo Adib Casseb

Uma perspectiva atual da competncia da Justia Militar da Unio para o julgamento de civisLuiz Felipe Carvalho Silva

Da aferio da tipicidade objetiva dos crimes militares: uma defesa da continuidade do julgamento pelo escabinato nos cri-mes militares cometidos por civis em concurso com militaresNelson Lacava Filho

11

39

59

95

131

161

189

Artigos1

Justia Militar da Unio em evoluo: a mais tradicional justia brasileira e os desafios da atualidadeRicardo Moglia Pedra

A aplicao do princpio da insignificncia pela autoridade policial militarAndr Lzaro Ferreira Augusto

A Justia Militar de ontem em dianteRanna Rannuai Rodrigues Silva

O direito internacional humanitrio e a proteo ambiental durante os conflitos armadosRenaldo Silva Ramos de Araujo

Inconstitucionalidade da correo da denncia por orien-tao de despacho fundamentado do juiz ( 1 do art. 78 do Cdigo de Processo Penal Militar)Ccero Robson Coimbra Neves

Justia Militar no caminho certoScrates Edgard dos Anjos

205

225

265

293

317

343

A importncia das justias militares para o Estado Demo-crtico de DireitoMaria Elizabeth Guimares Teixeira Rocha 359

Parte Especial2

s novas misses das ForasAArmadas e as lacunas no direito brasileiro

RESUMO: A cessao da chamada Guerra Fria gerou, num primeiro momento, a quase imediata multiplicao de novos Estados. Tais fatos, aliados globalizao e anomia dos Estados, tornaram os conhecidos estudos e preparos para a administrao da violncia seja no campo internacional, seja no espectro interno incuos s novas guerras (agora batizadas de conflitos armados) e a todo um elastrio de criminalidade. Apesar de, ao redor do mundo, o nmero de conflitos armados com a participao de Estados ter sofrido um declnio desde 1992, os conflitos armados no estatais subiram acentuadamente desde 2008. O terrorismo, a guerra ciberntica e o narcotrfico instalam-se em fronts amorfos, mutveis, sem fronteira, ao ponto de poder-se asseverar que vivemos a Guerra verso 2.0. Hoje tem-se uma multiplicidade de bens jurdicos a serem tutelados pelo Estado que em ultima ratio repercutem, de forma indita e universalizada, na exigncia cada vez maior de atuao das Foras Armadas na proteo desses bens, tais como a ordem constitucional, a paz pblica, a defesa e segurana externa do Estado, a inviolabilidade dos rgos estatais nacionais e estrangeiros e seus smbolos soberanos, a paz internacional. A atuao cada vez maior das Foras Armadas brasileiras

Marcelo Weitzel Rabello de SouzaProcurador-Geral de Justia Militar

12

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

em atividades e operaes de combate macro criminalidade, que reclamam o envolvimento e contato com a populao civil; a anlise e confrontao do ordenamento jurdico ptrio na legitimao e tutela dessas atividades estatais; e, por fim, a prestao jurisdicional do Estado e o controle externo dessas atividades pelo Ministrio Pblico so objetos deste estudo.

PALAVRAS-CHAVES: Guerra fria. Conflito armado. Terrorismo. Globalizao. Macro criminalidade. Direito militar. Direito internacional. Poltica internacional. Crime militar. Relaes internacionais. Foras Armadas. Segurana pblica. Garantia da Lei e da Ordem. Segurana de grandes eventos. Justia Militar da Unio. Superior Tribunal Militar. Ministrio Pblico Militar. Controle externo da atividade policial.

ABSTRACT: The termination of the so-called Cold War generated, at first, almost immediate multiplication of new states. These facts, coupled with globalization and the anomie of states, became known studies and preparation for the administration of violence in the international arena or in the internal ambit innocuous to new wars (now christened armed conflicts) and a whole strengthening crime. Although, around the world, the number of armed conflicts involving Union have suffered a decline since 1992, non-state armed conflicts have risen sharply since 2008. Terrorism, cyber warfare and drug trafficking install in amorphous, mutable, borderless fronts, to the point of being able to assert that we live up to version 2.0 War. Today has been a multiplicity of legal goods to be protected by the State which reverberate in ultima ratio, and universalized in an unprecedented way, the growing requirement of operation of the Armed Forces in protecting these assets, such as the constitutional order, public peace,

13

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

defense and external security of the State, the inviolability of national and foreign symbols and their sovereign state bodies, international peace. The ever-increasing performance of the Brazilian Armed Forces in activities and combat crime macro operations, claiming the involvement and contact with the civilian population; analysis and confrontation of paternal law in state legitimacy and guardianship of these activities; and finally, the adjudication of the state and the external control these activities by prosecutors are objects of this study.

KEYWORDS: Cold War. Armed conflict. Terrorism. Globalization. Macro crime. Military law. International law. International policy. Military crime. International relations. Armed Force. Public safety. Warranty Law and Order. Security for major events. Military Justice. Higher Military Court. Military Prosecutor. External control of police activity.

SUMRIO: 1. Introduo 2. Estado, direito e segurana 2.1. Em termos prticos, o que tem acontecido 2.2. A hierarquia e disciplina militar 3. A atuao interagncias com as Foras Armadas 4. O arcabouo jurdico brasileiro 4.1. O anacronismo do direito militar 4.2. A influncia da geopoltica e tecnologia na normatividade 5. Concluso 6. Referncias.

1 INTRODUO

Um apanhado ligeiro da histria nos mostra as constantes modificaes no campo social e jurdico no mundo. Modificaes, pois nem sempre a alterao vivenciada significa evoluo do ponto de vista moral, tico e respeito a uma ordem jurdica universal. Consequentemente,

14

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

essas modificaes alcanaram a atividade das FFAA; at a, nada de mais. Ocorre que, ultimamente as alteraes e seus consectrios, no que concerne a atuao das FFAA, ocorreram e tm ocorrido em velocidade crescente e em grande parte motivada por acontecimentos tambm recentes, valendo destacar entre eles o marco conferido pela chamada queda do muro de Berlim.

Se antes o mundo vivia sob a polaridade de dois blocos, a dissoluo desses blocos acarretou enorme transformao nas relaes polticas e em conceitos at ento vigentes. Se antes o espectro da soluo final aliado ao comando de dois grandes Estados impunha uma certa ordem nas relaes, seja no campo de guerras convencionais, seja no mbito de quem estava alinhado com quem na ordem jurdica internacional, brutais modificaes ocorreram aps o rompimento daquela ordem, passando o mundo a viver uma nova (des)ordem no campo da poltica internacional e consequentemente interna. (Des)ordem, pois a organizao de ento assegurava mais a estabilidade do que a paz. Pois que o verdadeiro privilgio das grandes potncias era manter a guerra longe delas. A guerra s acontecia quando a ordem era violada ou no momento em que nova potncia se desenvolvesse e se tornasse maior que a ordem vigente1. Digo poltica, pois a poltica arte de viver em conjunto2.

1 DELMAS, op. cit., pp. 12/13. 2 DELMAS, P. O belo futuro da guerra, Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 14. Vale ressaltar que a poltica gera uma permanente ambivalncia, pois se assegura a previsibilidade das relaes sociais das quais se depende a vida em ambiente associativo e de cooperao, ao mesmo tempo, por meio dos conflitos, gera sempre ameaas de desestabilizao perante a ordem que ela mesmo defende. Ou como afirma Panebianco, Os conflitos de identidade e as lutas pelo poder so sua causa. O paradoxo da poltica, em uma palavra, consiste em que a mesma tanto o problema como a soluo do problema. PANEBIANCO, A. El poder, el Estado, la Liberdade, Madrid, Union Editorial, 2009, p. 325.

15

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

O fim da chamada Guerra Fria3 gerou uma multiplicao quase que imediata de novos Estados e, ainda hoje, v-se diuturnamente a fragmentao de Estados e criao de novos Estados, de novas naes, inspiradas nas mais diversas motivaes (de ordem histrica, cultural, religiosa, identidade grupal [cls, tribos], aspiraes econmicas, etc.), mas que buscam novas estruturas e organizaes de poderes, alterando os clssicos conceitos de Estado, Nao, Povo, que nortearam as relaes internacionais at ento e estruturavam as instituies estatais dos pases4. O sucesso econmico alcanado pelas novas relaes comerciais e educacionais permitiram avanos para diversos pases, mas, no criaram entre eles identidade suficiente para se manterem coesos, valendo diversos exemplos de pases que mesmo pobres se dividiram, alcanando maior pobreza. Tais fatos alteraram profundamente as relaes internacionais e modificaram completamente o que se tinha como estudo e preparo para a administrao da violncia, seja no campo internacional, seja no espectro interno, no tendo o sistema jurdico vigente conseguido dar resposta a tais novidades, ao ponto de Delmas invocar que vivemos agora um direito sem Estado, uma espcie de sociedade civil dos Estados5. Talvez um estado de anomia, expresso que aqui se busca emprestado no sentido exposto por Ralf Dahrendorf6.3 O fim da Guerra Fria marcou tambm o fim do idlio do Ocidente protegido pela fora. ENZENSBERGER, H. M. Perspectivas da Guerra Civil, Lisboa, Relgio D'gua Editores, 1998, p. 9.4 O nmero de Estados soberanos (fiquemos apenas com os Estados Soberanos) mais que dobrou em 50 (cinquenta) anos aps a queda do muro de Berlim (DELMAS p. 14).5 DELMAS, op.cit., p. 17.6 Na realidade a anomia tem sua origem nas cincias sociais em mile Durkheim, quando descreveu um estgio de probabilidade para o suicdio por parte de pessoas. Tal expresso foi adotada pelo socilogo Dahrendorf no sentido de uma desorientao e falta de ordem. Literalmente significa ausncia de nmos, de leis e alcana o que ele chamou espaos sem leis. Ausente no s a lei mas tambm todo o aparato moral e cultural que legitimam a convivncia. Espaos geogrficos

16

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

Emprestando o sentido exposto, se antes tnhamos um sistema jurdico delineado em Estados soberanos7 (soberania cujo conceito se modifica e enfraquece constantemente), em que esses Estados conformavam entre si as regras do jogo no mbito da violncia, o que se v recentemente so conflitos de legitimidade8. A guerra e o existente elastrio de criminalidade decorrem em grande parte da fraqueza do Estado, como conceito at ento conhecido. Como afirmou Delmas9, No apenas inexiste lgica poltica global, da segurana, mas no h mesmo mais lgica regional10.vazios, ausentes as instituies, onde a liberdade se degenera no significado de tudo ser possvel sem qualquer escala de valores como parmetros. DAHRENDORF, Ralf, A Lei e Ordem, Rio de Janeiro, Instituto Libera, 1999, p. 29.

Dentro de um pensamento liberal, as tradies, os costumes so fundamentais na formao do corpo social, sem esses mecanismos que estimulam a virtude social perante o conflito cotidiano, que fornecem os anticorpos s possveis tendncias degenerativas da democracia, nem o mercado, nem o direito, nem os poderes sociais independentes, nem as instituies polticas liberais poderiam tutelar eficazmente a liberdade individual e durar no tempo. PANEBIANCO, op. cit. p. 31. 7 Como j afirmava Bertran de Jouvenel, sobre a soberania e a poltica, No se h visto nunca, nem jamais se ver, um Estado sem frices, sem choques interiores. De indivduo a indivduo, de grupo a grupo, se desenvolvem rivalidades e se suscitam diferenas. Estes antagonismos no desgarram um corpo poltico unido por uma vinculao indiscutida sob um mesmo soberano. Ele o juiz supremo, e suas decises no se pode apelar, mais do que ao mesmo. Enquanto a confiana, o efeito, o respeito, ou o costume se arraiga, unem os sditos a este rbitro, o Estado subsiste; se desmancha to pronto como se perde a autoridade do soberano sobre parte do povo que transfere a sua vinculao a outro lugar; h povo ento, dizer como verdade, j no h um Estado, mas sim, dois, ou, ao menos, tendem a formar-se dois Estados a partir de um s, e um deles ser afogado por outro com a ajuda de meios violentos. H a, um processo horrvel em desenvolvimento e cuja culminao deixar recortes indelveis. JOUVENEL, B. La Soberania. Granada, Ed. Colmares, 2000, pp. 4/5.8 DELMAS, op. cit., p. 17. 9 Op. cit, p. 87.10 Um outro efeito interessante, no que concerne ao fim da Guerra Fria, foi a extino dos movimentos pacifistas e a idosa e presente discusso da legitimao da guerra. Nesse sentido, Zaffaroni j afirmava que as agncias polticas e a guerra j no podiam ser objeto de regulamentao, pois a tecnologia nuclear consagrou de fato e em forma irreversvel, a subtrao da guerra a toda lei. ZAFFARONI,

17

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

Para encerrar este tpico, a realidade atual nas palavras de Nuno Rogeiro:

Trata-se de descrever o esprito do tempo, num mundo em que os conflitos se tornaram microscpicos ou regionais, em que as velhas alianas ideolgicas so substitudas por acordos de convenincia, em que as querelas fronteirias, religiosas, scio-econmicas e tnicas sucedem os confrontos entre sistemas, em que novas prticas criminosas reala a insuficincia das polcias em que a integrao europia na EU e americana na NAFTA acontecem simultaneamente a desintegrao algures, o facto de no existir guerra convencional no significa que alguns problemas no precisam ser resolvidos pela fora armada, ou por uma fora disciplinada, treinada para usar armas mesmo quando no as usa, e habituado a padres de privao, sofrimento e rigor, incompatveis com o estatuto tendencialmente urbano e civil dos servios policiais. 11

2 ESTADO, DIREITO E SEGURANA

Durante trs sculos, o direito viveu em matrimnio com o Estado. T-lo como consorte fornecia a legitimidade que o Estado necessitava na ordem internacional. Desde 1648, pelo tratado de Vestflia (que ps fim a guerra dos trinta anos), estabeleceu-se na ordem internacional

E. R. En busca de las Penas Perdidas. Buenos Aires, Ediar, 1989, pp. 230-231. Afinal como se admitir um direito marcial sob o ngulo de uma guerra nuclear? Ou de outra maneira. Qual o direito a se aplicar em reas arrasadas, cuja destruio total? Ainda no que se refere a realidade nuclear e os dispositivos jurdicos colocados a disposio dos juristas, afirma Noberto Bobbio: a consequncia natural foi o surgimento do pacifismo, haja vista que, quando uma instituio se mostra to poderosa que no se pode mais limit-la, se tenta, ainda que em um primeiro momento somente idealmente, a suprimi-la. Tal se sucedeu com a propriedade no comunismo, com o Estado no anarquismo, com a guerra no pacifismo. BOBBIO, N. El problema de la guerra y las vias de la paz, Gedisa Editorial, 2. ed., 1992, p. 110. 11 ROGEIRO, N. A guerra em paz, a defesa nacional na nova desordem mundial, Lisboa, Hugin, 2002, p. 88.

18

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

a ideia de igualdade e soberania dos Estados. Paradoxalmente, esse status acabou por inserir toda uma perturbao na ordem. Isso deu-se principalmente aps o trmino da Guerra Fria pela rpida proliferao de Estados, em um primeiro momento, e pela ausncia deles em fase concomitante ou posterior.

Conforme informa Delmas, a maior parte dos Estados nasceu do desejo de uma minoria ver suas diferenas reconhecidas. Eles so levados a cultivar o particularismo e, medida que a utopia jurdica tenta impor um modelo nico, os Estados desejosos de legitimidade em relao a nao acentuam, ao contrrio suas diferenas12.

Afinal, as lideranas das minorias regionais tm conscincia de que sua coletividade no ter os meios de se impor caso no busque o status de Estado. Nesse sentido, toda minoria tende irresistivelmente a se erigir em nao e a querer se constituir em Estado13. Fcil observar que tal situao leva a degradao em diversas e variadas comunidades. Natural que na nova (des)ordem surjam cada vez mais reivindicaes tnicas, religiosas ou nacionalistas14. Por bvio, o aspecto econmico tambm no pode ser abandonado, valendo muito ainda a produo de matrias primas como tambm a exposio de poder em rotas comerciais, pois o exerccio do poder e os conflitos armados exigem recursos para as suas aspiraes, mesmo os pases mais desenvolvidos no so capazes de ficar competitivos em toda a cadeia de transformao, necessitando de livres e econmicas rotas para o transporte dos insumos e produtos necessrios15.12 DELMAS, op. cit., p. 158.13 DELMAS, op. cit. p. 156.14 O declnio dos Estados leva presumivelmente a desarticulao das instituies que ainda que de maneira imperfeita, nos estados liberais democrticos tutelam a liberdade. PANEBIANCO, op. cit., p. 266.15 Afinal, guerra e comrcio so as principais modalidades de interao entre os

19

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

[...]os contrapoderes s ganham aquilo que seu abandono enfraquece nos Estados. Quer se trate do grande banditismo ou dos fundamentalismos religiosos, esses contrapoderes no so movidos pela vontade de poderes ocultos []. Eles tem o espao que arrancam ou, mais frequentemente, que lhes abandonado. 16 17

Na viso de Delmas, a fraqueza do Estado causa primeira e comum das instabilidades, pois significa em primeiro lugar seu afastamento da nao. Pode-se contestar essa assertiva como nica e preponderante18, mas correto afirmar como noticia o autor que:

Quando bairros inteiros de uma cidade, regies inteiras dos campos escapam completamente ordem pblica, salvo se essa toma por sua vez uma forma original (esquadres da morte, extorses...) quando alguns dos servios mais elementares no so assegurados, como fornecimento de gua potvel, o Estado simplesmente no existe e evidentemente no tem a menor legitimidade. Ao se apagar, ele abre a porta a mltiplos contrapoderes que misturam a ao criminal e a reivindicao poltica.19

grupos humanos. PANEBIANCO, op. cit. 265.16 DELMAS, op. cit. p. 167.17 Nas zonas de desordem do mundo moderno, a regra no a da Nao-Estado perene e reconhecvel, mas a da profuso de entidades militares infra-estatais, ou de verdadeiros exrcitos privados. E, como ficou demonstrado no caso da Bsnia, de Ruanda, da Serra Leoa, da Somlia, essas feudalidades armadas podem arguir a no obedincia a nenhum poder nacional, e o seu respeito pelas normas convencionais do direito de guerra duvidoso, ou de impossvel fiscalizao. ROGEIRO, op.cit. pp. 427/428.18 A sociologia e a psicologia elencam uma multiplicidade de causas para a violncia. Dahrendorf, por exemplo, em seu A lei e a Ordem enumera uma enormidade de causas a fundamentar a violncia, entre elas, a confuso entre conceitos econmicos e jurdicos, alm da diversidade de problemas sociais, sendo que, em El recomienzo de la historia, admite a fraqueza de um Estado como motivador da violncia urbana. Para Enzensberger, a violncia atual totalmente sem sentido e carece de qualquer ideologia, enquanto que para Igncio Marin Bar, toda violncia em sua escalada detm um componente ideolgico. Poder, Ideologia y violencia. Madrid, Editorial Trotta, 2003. 19 DELMAS, op. cit. pp. 167/168. Enzensberger afirma que estamos vivendo hoje nos grandes centros urbanos, o que ele denominou de guerras civis moleculares.

20

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

A falha dos Estados fraciona as sociedades em campos reagrupados. Cada um procura sua segurana em seus iguais, segundo uma lgica inexorvel de cls20 e de tribos, acrescento agentes que controlam o trfico, a produo de drogas, o contrabando, etc. Ao final, um grupo luta pelo poder, outro, pela sobrevivncia.

Panebianco, por sua vez, oferece reservas quanto ao enfraquecimento do Estado, por entender que as teorias em que se apoia carecem de perspectiva histrica e amplitude espacial, sendo por demais confusas, haja vista que, uma coisa so os estados ocidentais e outra os asiticos e outra ainda os quase-estados (JACKSON, 1993) ou numerosos estados fracassados (ROTBERG, 2004) que povoam os territrios dos ex imprios coloniais europeus e da ex Unio Sovitica. E, carece de perspectiva histrica, porque se limita a sustentar o fim da soberania estatal ainda conservando com ela uma imagem idealizada que em nada corresponde ao que a soberania com suas inumerveis, fortssimas limitaes, tem sido a histria ocidental21. Sendo certo, porm, como afirma esse autor que hoje a violncia uma indstria que opera em condies de crescente rendimento de escala22.

Tais circunstncias provocam diversas consequncias, a imigrao macia uma delas o que gera perturbaes de toda ordem23.

op. cit.20 Os cls e alianas tribais existem desde que a terra habitada pelos humanos, enquanto que as naes s passaram a existir h aproximadamente duzentos anos. As etnias surgem quase de forma natural, por si s, ao passo que as naes so produtos criados conscientemente, por vezes, altamente artificiais, que no sub-sistem sem uma ideologia prpria. Esta base ideolgica, bem como os seus rituais prprios e emblemas (bandeira, hinos), s surgiram no sculo XIX. Expandiram-se por todo o mundo a partir da Europa e da Amrica do Norte. ENZENSBERGER, op. cit., p. 91. 21 Op. cit. p. 306.22 Op. cit. p. 113.23Qualquer migrao leva a conflitos, independentemente do modo como se

21

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

Consequncia tambm a afetao ao meio ambiente, tudo em crculo desvirtuoso que alimenta a violncia e reduz o poder de ao do Estado. A desordem urbana e rural faz-se presente e incentiva a atuao ilcita.

Tamanha desordem leva a outro reclamo quanto atuao das FFAA, a sua participao cada vez maior em termos de ingerncia humanitria ou como Foras de Paz, em ambientes cada vez mais diversos.

Nesse campo, tambm se nota uma mutao provocada pela realidade. Como afirma Nuno Rogeiro24, as operaes de paz so, em geral, para o comando das foras armadas envolvidas,

[...] desafios srios sua capacidade organizativa, na medida em que tarefas propriamente militares (patrulhamento, dissuaso armada, desarmamento coertivo, captura de elementos perigosos, interposio entre ex-beligerantes, defesa de instalaes, reconhecimento, etc.) coexistem com operaes de assistncia civil, programas alimentares, misses mdico-sanitrias, acolhimento e transporte de refugiados, construo de infra-estrutura, aes escolares e sociais, campanhas de relaes pblicas e eforos polticos-diplomticos de mediao e construo de medidas de confiana, em um largo de possibilidades.25 (Grifos do subscritor).

Em razo da diversidade e agressividade de grupos armados nas regies destinadas s Foras de Paz, estas se veem foradas a alterarem

processa, ENZENSBERGER, op. cit. p. 90, quem, aps anlise antropolgica, afirma: O hospede sagrado, mas no deve permanecer.24 Op. cit., p. 497. 25 O Brasil participa com Foras de Paz da ONU, desde 1947, tendo integrado ope-raes no Congo, Angola, Moambique, Libria, Uganda, Sudo, El Salvador, Ni-cargua, Guatemala, Haiti, Camboja, Timor Leste, Chipre, Crocia, tendo ainda cedido efetivos para atuao em Suez e mais recentemente no Lbano. Fonte: Mi-nistrio da Defesa. Livro Branco de Defesa Nacional, p. 163.

22

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

sua doutrina de atuao. Isto ocorreu recentemente no Congo, quando o Conselho de Segurana da ONU encontrou-se na contingncia de criar o precedente de uma brigada de interveno, com poderes para perseguir e atacar grupos rebeldes no leste daquele pas, mesmo em carter preventivo, sem vinculao a alguma agresso especfica, como tradicionalmente ocorria nas demais misses de Foras de Paz26.

2.1 Em termos prticos, o que tem acontecido

Todos esses conflitos e suas consequncias tm reflexos imediatos na formao das tropas nos dias de hoje. Isso torna-se mais gritante no Brasil, quando se observa uma legislao ainda muito distante da realidade que atualmente se apresenta. A atuao das FFAA assume hoje um elastrio de atividades completamente distinto do que foi algumas dcadas atrs. A formao de seus agentes no pode descurar da clssica situao de defesa territorial contra um Estado, como tambm, atuar no combate criminalidade, na minimizao de problemas sociais, no campo humanitrio, na defesa do meio ambiente, na proteo de novas formas de submisso social, como o trfico de drogas, a imposio de uma nova ordem junto comunidade por grupos criminosos ou insurretos, sem esquecermos, ainda, de possveis movimentos separatistas, terroristas, etc.

26 Alm da vasta extenso territorial do Congo, ali militam mais de cinquenta dife-rentes grupos armados com nmero que varia de cinquenta a dois mil agentes. Tais grupos em sua atuao promovem os mais diversos crimes, como uso de crianas em milcias, estupros, mutilaes assassinatos, contra a populao civil. Alm de atacarem indiscriminadamente a populao civil como medida de terror coercitivo na busca de adeptos, tambm digladiam-se entre si. A formao dos grupos varia desde ex-militares, alm de classificaes por segmentos tnicos e milcias tribais armadas pelo governo anterior.

23

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

A vulnerabilidade e assimetria de atuaes envolvendo os conflitos armados exigem novas formas de atuao. Um atentado terrorista tem forte impacto na organizao poltica de um Estado, como atentados cibernticos vulneram uma economia ou impedem a movimentao de uma tropa.

Alm da formao clssica destinada ao militar, qual seja, a proteo contra inimigos regulares tradicionais com interesses no domnio poltico/territorial, como agente destinado segurana do Estado, as FFAA tm que se preparar, cada vez mais, para a defesa deste e para enfrentar adversrios casusticos, conforme os bens sob agresso. Entre eles, contrabandistas, poluidores, sabotadores econmicos, narcotraficantes, espies, terroristas e piratas.

Essa rpida transformao nos quadros castrenses tem sido observada ao redor do planeta. Vai do extremo em se utilizar de foras armadas privadas em pases muito ricos; no servio militar exclusivamente profissional, em pases ricos; no compartilhamento de um servio profissional com o regime de conscritos (obrigatrio), para pases no to ricos ainda; at o ponto de partida de um servio militar eminentemente obrigatrio ou por parte de milcias, naqueles abaixo da ltima classificao27. A motivar tudo isso, e em paralelo, as 27 Noves fora as situaes extremas do que se denominou privatizao das guerras e atuao por milcias ou grupos armados, nenhum Estado abdica da existncia, cada vez mais necessria, da atuao das FFAA. A existncia de uma instituio regular armada, preparada e vocacionada para administrao da violncia se submete aos poderes polticos do Estado, mas detm caractersticas prprias de formao e atuao, pois como informa Jescheck, para alguns agentes, deve-se entender e aceitar uma situao de perigo, em razo de uma relao jurdica especial em que se aplicam obrigaes visando a tolerar o estado de necessidade, exemplificando com apoio na legislao alem que esse dever maior de suportar o perigo se d, por exemplo, ao soldado ( 6 WsrG), em quem presta um servio civil alternativo (ou substituidor) obrigao militar. JESCHEECK, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Granada, Editorial Comares, 4. ed., 1993, p. 440.

24

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

transformaes geopolticas, as enormes transformaes nas relaes sociais e econmicas, adicionadas ao brutal avano tecnolgico verificado nos ltimos anos e em constante evoluo.

Hoje, tem-se uma multiplicidade de bens jurdicos a serem tutelados pelo Estado que, em ultima ratio, repercutem na exigncia cada vez maior de atuao das FFAA na proteo desses bens; circunstncia que h poucos anos no era reclamada quelas instituies. Nesse sentido, busco emprestado o conceito de Roxin, para quem: bens jurdicos so circunstncias dadas a finalidades que so teis para o indivduo e seu livre desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepo dos fins ou para o funcionamento do sistema28, ou como exemplifica Jescheck, entre outros: a ordem constitucional, a paz pblica, a segurana exterior do Estado, a inviolabilidade dos rgos estatais estrangeiros e seus smbolos soberanos, a paz internacional29.

Apesar de, ao redor do mundo, o nmero de conflitos armados com a participao de Estados ter sofrido um declnio desde 1992, os conflitos armados no estatais - definidos pelo Human Security Report Project como o uso de foras armadas entre dois grupos organizados, em que nenhum dos dois governo de um Estado subiram acentuadamente desde 200830. Afinal, como assinalou um economista venezuelano: o terrorismo, a guerra ciberntica e o narcotrfico instalam-se em fronts amorfos, mutveis, sem fronteira [], ao ponto de Marc Hecker e Thomas Rid fornecerem hoje uma titulao de que vivemos uma

28 ROXIN, C.Derecho Penal Parte General. Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, p. 5629 JESCHECK, op. cit. P. 6.30 SARAIVA, A. Fernando Pessoa, poeta Tradutor de poetas. Porto, Lello Editores, 1996, p. 160.

25

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

Guerra 2.031. Tais fatos bem demonstram que os conflitos violentos assumiram carter bem diverso daqueles observados nos sculos XIX e XX.

Hoje, temos armas de fcil aquisio, limites menos definidos entre o que soldado e o que civil e entre tecnologia militar e tecnologia de consumo, alm de um aumento do nmero de conflitos nos quais o que est em jogo menos o territrio e mais os recursos econmicos, crenas religiosas ou ideais de segurana coletiva. Tudo isso, monta o cenrio para uma hiperconcorrncia no campo da guerra e da segurana32, onde se v cada vez mais a necessidade de uma atuao interagncias. Cada vez mais se indaga: o que uma misso de natureza militar? Quando ela deixa de ser? Os componentes que com ela atuam, por vezes, civis, integram ou desnaturam o carter militar da misso? A escolha da(s) resposta(s) ofertar decises jurdicas das mais diversas.

2.2 A hierarquia e disciplina militar

Os prprios conceitos de hierarquia e disciplina militar, to caros s FFAA, ao ponto de ver inserto na CF em seu art. 142, como bens jurdicos tutelados, deixaram de ser conceitos privativos dos Exrcitos e superprotegidos como fins em si mesmos, destinados apenas a manuteno da coeso e disciplina de um corpo armado, para evolurem e hodiernamente tornarem-se para a doutrina um bem jurdico instrumental, cuja finalidade promover a eficincia na atuao da tropa nas mltiplas tarefas hoje exigidas pelo mandato constitucional ptrio, como tambm, no relacionamento com o mundo civil na busca da paz social.31 NAIM, Moiss, O Fim do Poder, S. Paulo, LeYa, 2013, p. 177..32 NAIM, opus cit. p. 178.

26

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

Portanto, conforme preceitua a moderna doutrina europeia a tutelar a hierarquia e disciplina militar, como bens jurdicos eleitos e protegidos pela nossa Constituio Federal, passa pela necessria conscientizao e compreenso de que a disciplina militar um bem jurdico de interesse social. Pertence coletividade, uma vez que est diretamente relacionada com valores supraestatais como o regular funcionamento da democracia e dos poderes constitudos, a paz interna, a segurana pblica, a defesa nacional e a sobrevivncia do Estado, enquanto esta couber, como ultima ratio, eficcia da organizao militar no exerccio legtimo da violncia por parte do Estado, cujo monoplio se ostenta com exclusividade por mandato constitucional s Foras Armadas33.

Tais mutaes tambm se fazem presentes neste ambiente que nos prximo, chamado Brasil. Tanto que o Estado brasileiro, ao traar sua poltica estratgica de defesa, elencou como proteo da soberania nacional a questo das drogas e crimes conexos, a proteo da biodiversidade, a biopirataria, a defesa ciberntica, as tenses decorrentes da crescente escassez de recursos e desastres naturais, os ilcitos transacionais, os atos terroristas e atuao de grupos armados margem da lei34.

3 A ATUAO INTERAGNCIAS COM AS FORAS ARMADAS

Tal contexto envolve necessariamente a participao de rgos e organismos civis, visando mais racionalizao administrativa e eficcia de resultados. No caso especfico do Brasil, isso se torna

33 SNCHEZ, J. L., Proteccin Penal de La Disciplina Militar. Madrid, Dykinson S.L., 2009, p.95.34 Livro Branco de Defesa Nacional, Braslia, 2014, p.32.

27

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

presente em diversos projetos conjuntos com os mais variados ramos da Administrao civil, como Ministrio da Justia, na rea de segurana, como o Ministrio da Sade na rea de vacinao, alm de sua atuao perante o Judicirio da Unio, Tribunais Eleitorais, para ou dar suporte logstico ao processo de sufrgio, ou em operaes de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)35, naquilo que mais bsico no processo democrtico, a garantia da livre manifestao dos candidatos a cargos eletivos em reas dominadas pela criminalidade.

No que tange ao avano tecnolgico, este impe a atuao conjunta com o mais amplo espectro da sociedade civil. A tecnologia que serve hoje atividade militar conjuga-se com benefcios de ordem econmica e social. O satlite, que com sua vistoria protege o meio ambiente, auxilia o universo agrcola e assegura militarmente a proteo do espao territorial nacional. O inverso tambm se d, pois o satlite com misso militar tambm se presta ao desenvolvimento nessas reas mencionadas, como em uma infinidade de outras a que o conhecimento e o domnio da tecnologia podero ainda oferecer (sem deixar de mencionar as consequncias de tais atividades no parque industrial). Nesse sentido, no cabe falar hoje em atividade tecnolgica exclusiva ao Ministrio da Defesa, tanto que para a consecuo de tais desenvolvimentos tecnolgicos, o Ministrio da Defesa atua em conjunto com outros Ministrios, como o da Educao e da Cincia e Tecnologia36.

Se no campo fenomenolgico a realidade nacional e internacional exigem novas formas de atuao, no universo do direito positivo ptrio, muito aqum ainda se encontram. 35 Vide as eleies estaduais e municipais ocorridas em 2012, quando se necessitou da atuao das FFAA em certas reas do Estado do Rio de Janeiro.36 Livro Branco....p. 179.

28

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

Atualmente, no h como dissociar a atividade meio da atuao finalstica das FFAA no contato cotidiano com a sociedade e com a participao da figura do civil. Essa inteirao e convivncia se concretizam de forma direta na formao intelectual, tecnolgica e democrtica da sociedade atual, que em muito contribui para atuao das FFAA. Tal fenmeno pode ser observado no desenvolvimento tecnolgico, em grande parte conjugados com os avanos que servem atividade militar e civil. A vulnerabilidade de um pas no se mede apenas pela ameaa do potencial blico militar de um outro Estado, haja vista os mltiplos aspectos que circundam nos dias de hoje a atividade do Estado e a segurana socioeconmica.

Portanto, vem-se consolidando a atribuio de nova atividade s FFAA, e isso no se d apenas no Brasil, como alerta o jurista Nuno Rogeiro. Atividade que diz respeito a manuteno da ordem pblica em situaes de tumulto, que tem obrigado a suplementar as foras tradicionais com contingentes especiais de polcia militar [....] que necessitam de menos equipamento letal do que o exrcito comum, mas de uma organizao militar, por comparao com a polcia civil. Cada vez mais, as operaes militares envolvem contato com as populaes e assuntos civis, e aqui se pode disseminar uma infinidade de situaes. Necessrio que o Parlamento, o Judicirio, o Executivo e o Ministrio Pblico atuem na busca de solues, na procura da paz social e do respaldo legal e jurdico para essas atuaes37.

4 O ARCABOUO JURDICO BRASILEIRO

No momento em que se exige a atuao das FFAA em mltiplas tarefas, quando se v cada vez mais a necessidade de integrao com

37 ROGEIRO, N. op. cit., pp. 512 e 514.

29

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

outros Poderes da Repblica Federativa, rgos da Administrao e sociedade civil em geral, necessrio que se d os instrumentos adequados a sua efetiva atuao. Se tais instrumentos passam por capacidade oramentria, material fsico e humano, imprescindvel que tambm se ofertem instrumentos jurdicos que no s permitam sua atuao, que evitem excessos, interferncia indevida em outros poderes, rgos e organismos, como tambm auxiliem na soluo de eventuais conflitos. Desta parte que nos cabe aqui elencar a ttulo de ensaio alguns pontos de reflexo.

As misses que necessitam da interveno das FFAA desde aes de apoio paz at operaes de guerra convencional desenvolvem-se em um ambiente conturbado e heterogneo, em que fatores alheios aos militares (legais, sociais, polticos e mediticos) no s condicionam o curso de qualquer misso mas podem determinar o seu desenlace38.

Em termos de poltica de atuao e consequente deciso das FFAA, a CF explicitou os poderes das FFAA, do presidente da Repblica, como chefe supremo das FFAA, bem como do Parlamento. Nesse sentido, as normas vigentes no acompanharam essas transformaes que ainda esto em andamento.

O constituinte foi sbio ao prever, no art. 142 da CF, a atuao das FFAA para Garantia da Lei e da Ordem e dos poderes constitucionais (o que envolve toda uma gama de atuao estatal democrtica, na parte referente aos rgos de segurana pblica). Mas, por outro lado, foi tmido, no s por esquecer a atuao das FFAA como tambm de

38 Everts e Isenia, apud, PIELLA, G. C. Entre Ares y Atenea. El debate sobre la Revolucin en los Asuntos Militares. Madrid, Instituto Universitrio General Gutirrez Mellado, de Investigacin sobre la Paz, la Seguridad y la Defensa, 2008, p. 103.

30

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

diversas outras instituies ou organismos que atuam ou possam atuar na rea de segurana pblica, no elenco de rgos previstos no art. 144 da CF, vide o que se denominou Fora Nacional; alm de outras que possam, pela necessidade dos fatos vir a surgir.

4.1 O anacronismo do direito militar

A questo se torna mais grave ao se observar o contido nos Cdigos Penal e Processual Penal Militar, ambos do final da dcada de sessenta, escritos sob uma gide totalmente diversa da atual, seja no mbito internacional, seja no mbito interno. Cdigos tecnicamente elaborados sob o manto da Guerra Fria, inspirados em misses e dados tecnolgicos daquela poca.

Esses cdigos sequer preveem a atuao das FFAA diante da hiptese de um atentado terrorista. No se reclama aqui a definio por parte da legislao penal castrense do que seja um crime de terrorismo, de to controversa tipificao, como ainda os procedimentos persecutrios a serem observados em tais hipteses, creio que melhor ser, at pelos efeitos que tal atitude causa segurana do Estado e da Sociedade, que uma legislao penal e processual mais ampla, que alcance todo o aparato da definio e persecuo, seja mais adequada, porm, o mnimo que se espera que a Lei permita e organize um mnimo de relao entre os agentes militares envolvidos quando o Estado ou seus cidados forem vtimas de tal prtica. Hoje, revela-se cada vez mais complexa a assertiva do que ou quando se configura uma misso de natureza militar ou no39.

39H assim operaes militares urgentes, para alm (e para aqum) da guerra. Como a constituio de fora de manuteno, desenvolvimento, sustentao e facilitao da paz. Como a criao de foras de polcia internacional. Como o desenvolvimento de misses humanitrias, ou operaes de resgate, salvamento e libertao de

31

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

O que no dizer, ento, da omisso no ordenamento legal de delitos que alcancem o elastrio da biodiversidade, meio ambiente, trfico ilcito de entorpecentes, questo das drogas e crimes conexos, a biopirataria, a defesa ciberntica, as tenses decorrentes da crescente escassez de recursos e desastres naturais, os ilcitos transacionais, alm dos atentados dos atos terroristas e atuao de grupos armados margem da lei, todas situaes em que se exige cada vez mais a participao das FFAA, e todas com um envolvimento cada vez maior da sociedade civil, seja como partcipe da administrao, misso conferida s FFAA, seja como agente transgressor ou vtima.

Uma legislao totalmente insipiente no que se refere proteo ciberntica, destacando-se esta pelo impacto imediato que oferece na vida econmica de um pas e nos meios de comunicao. A revoluo ocorrida no mbito da informao merece um pargrafo destacado.

As novas tecnologias da informao e das comunicaes no s proporcionaram capacidades militares inimaginveis anos atrs, em termos de preciso, capacidade destrutiva ou aquisio e gesto de informaes, mas tambm pareciam ser a soluo mgica eroso do paradigma do cidado-soldado e crescente dificuldade dos Estados ocidentais para empregar a guerra como instrumento poltico.40

refns. Como a assistncia mdica e hospitalar, a construo de infra-estruturas, o treino de foras nacionais de vrios gneros. Como a luta antiterrorista e o combate ao banditismo. Como a interdio e represso ao narcotrfico e ao contrabando, a intimidao de combatentes locais, a vigilncia das vias de comunicao.

Algumas dessas misses podem implicar no s a colaborao internacional de foras militares, mas ainda a cooperao nacional e internacional, entre estruturas militares, ou militares e civis na rea de policiamento e segurana. No foi por acaso que nos EUA, nos fins da primavera de 1997, o Pentgono e o Departamento da Justia publicaram a NCJ 164268, documento sobre o uso de tecnologia comum entre polcias e soldados um cenrio (M) OTTW. ROGEIRO, op. cit. pp. 88/89.40 PIELLA, op. cit., p. 98.

32

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

Essa chamada guerra da informao ou guerra informativa (information warfare), e seu consequente conhecimento, tem sido, segundo alguns, considerada o elemento definidor da guerra ps-moderna, pelo que sua obteno, privao ou corrupo constitui a mxima preocupao dos exrcitos atuais, j que envolve uma gama de providncias que vo do campo psicolgico, da propaganda, inteligncia e contrainteligncia, abarcando assuntos pblicos e, por que no, privados, com o objetivo de lesionar tanto fsica como virtualmente os sistemas de informao e comunicao do adversrio, para ceg-lo, isol-lo, paralis-lo ou para desorient-lo com falsas informaes. Tais mtodos tambm podem ser empregados fora da esfera militar para influir junto opinio pblica domstica com o fim de desacreditar o apoio social como ainda influenciar nas decises polticas, sendo comum que a explorao dessa guerra informativa, muitas vezes, venha a ser produzida por atores no estatais41.

Tanto no mbito interno como externo, certo que a atuao das FFAA d-se e dar-se- em contato mais frequente com a figura do civil, no s no campo da defesa de reas estratgicas, regies fronteirias, parques industriais, vias de acesso e comunicao, etc., como no campo da segurana pblica, vide GLO (emblemtica a participao nos chamados Grandes Eventos Internacionais).

Urge que se ajuste a sistematizao das penas ocorrncia desses contatos quando violadores das normas vigentes em cotejo com o que se espera no campo do direito penal comum.

41 PIELLA, op. cit. p. 169.

33

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

4.2 A influncia da geopoltica e tecnologia na normatividade

Na rea da segurana externa, h um Cdigo Penal Militar preso a uma geopoltica que h muito se modificou e a uma realidade tecnolgica de outrora (o que dizer da preocupao quanto ao delito procedido na frente do inimigo, enquanto que hoje o delito poder ser praticado a enorme distncia e sem qualquer contato pessoal?).

Ainda no campo da atuao externa, e com menor reflexo no interno (mas tambm de ocorrncia possvel), cuja participao das FFAA brasileiras sempre lembrada e convocada, somos signatrios do Tratado que criou o Tribunal Penal Internacional, mas no temos at hoje uma legislao que configure os delitos e a proteo processual que o Tratado reclama.

No plano estritamente processual, a defasagem mostra-se enorme, seja pela possibilidade de uma merecida adequao da composio de juzes perante os delitos praticados por civil, seja no campo da persecuo penal ainda na fase investigatria.

A relao entre quem julga e julgado, no tocante figura do civil, como sujeito ativo de crime militar, algo que merece transformaes: seja por um juiz civil, monocrtico, seja por uma Turma especializada por parte do Superior Tribunal Militar. Alis, o enigma do mistrio: como um Tribunal constitudo de 15 (quinze) Ministros no se subdivide em Turmas? Com tal nmero, factvel at a criao de trs Turmas com atuaes especializadas. Isso traria maior celeridade e especializao na discusso dos feitos.

34

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

A questo da investigao policial e sua relao com os demais rgos que integram a segurana pblica e defesa do Estado tambm merecem uma reflexo e significativa reforma.

sabido que todo pas que detm dimenses continentais no alcana desenvolvimento econmico e social homogneo. Isso um fato. Em um pas em constante transformao econmica como o nosso e de uma geografia fsica e humana to distinta entre as regies (e muitas vezes dentro da prpria regio), as variaes econmicas e sociais fazem-se de forma mais gritante. No crvel que se exija a mesma eficincia (quando ocorre), no aparato policial e investigatrio, quando em misso de GLO em centros urbanos, como o Rio de Janeiro, por exemplo, com misses de GLO em reas da Fronteira Norte do Pas. O aparato policial e material nestas localidades mnimo (quando h), as peculiaridades que envolvem os delitos so diversas, e a logstica descomunal. A carceragem e transporte de um preso algo totalmente diverso do que se v no sul/sudeste. A presena da fora policial, do MP e do Judicirio, pela prpria falta de estrutura administrativa e social, deficitria. Como se falar em encaminhar um auto de priso em flagrante delito em poucas horas, por parte de um peloto de fronteira, para uma autoridade judicial se a autoridade mais prxima fica a quatro, cinco dias de barco?

5 CONCLUSO

Em pargrafos anteriores, foi mencionada a GLO, que alcana mais de perto a compreenso da atuao das FFAA por meio do conhecimento meditico, porm, nessas localidades em que se tem a ausncia de qualquer outro organismo do Estado, polcia, juiz, promotor, at mesmo municpios e o mnimo de uma organizao poltica que um

35

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

organismo local exija, ocorrem delitos. Delitos ditos comuns. Alm do trfico ilcito de substncias, produtos e plantas silvestres e outros elencados neste artigo, que vo alcanar o seu desiderato nefasto nos grandes centros urbanos ou na comercializao em outros pases, delitos outros, como, furtos, roubos, homicdios, etc., que tm como agentes e vtimas a comunidade local, comunidade esta que recorre s FFAA (Estado) na busca de uma soluo.

As persecues desses delitos, em muitas oportunidades no so de atribuio das FFAA, porm, como agentes do Estado, no se podem omitir em sua atuao, pois o reflexo da omisso alcana no a Instituio FFAA, mas a presena, a participao do Estado (algo muito mais amplo que a atuao de um s organismo, FFAA), e todo o significado poltico e agregador que sua presena d. O descrdito de uma comunidade ante a respeitabilidade do Estado mais do que conhecido em termos de consequncias sociais. Da, por curiosidade, no seria o caso de se pensar em face de toda essa disperso de rgos adicionada disperso provocada pela realidade geogrfica unificao, pelo menos, na fase inquisitorial de um s organismo? Ou de uma previso legal que fornecesse segurana ao agente do Estado, vitima e ao agressor, quando dos procedimentos investigatrios perante a logstica imposta?

Alis, em termos de omisso legislativa, j em 1898, ao criticar os Artigos de Guerra de Conde de Lippe, o mestre Evaristo de Moraes j preconizava: Tudo quanto no servir para tirar ao Exrcito sua feio indestrutvel de classe cerrada, tudo quanto no for contrrio imprescindvel disciplina deve ser passado da doutrina, da lei e da

36

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

jurisprudncia civis para os cdigos e para as decises dos tribunais militares42.

Nesse aspecto, o Brasil detm larga vantagem na busca do aprimoramento judicial ante as recentes novidades, pois tem um Judicirio Militar da Unio, como parte integrante do Poder Judicirio, detentor das garantias afetas Magistratura43, plenamente inserido no manto democrtico em que vive o nosso pas. Muito prximo de alcanar a integralidade das recomendaes que a ONU preconizou para a administrao das justias militares nos Estado Democrtico de Direito. Estamos em posio diversa da maioria dos pases, que tem uma Justia Militar como Corte Marcial ou apenas inserida no campo administrativo do Estado. Alm do mais, a Justia Militar da Unio (brasileira) tem junto de si a atuao do Ministrio Pblico Militar, ramo integrado ao MPU, fiscal da Lei e, conforme preconiza o art. 55 do CPPM, ramo destinado preservao da hierarquia e disciplina no mbito das FFAA.

Essas transformaes no se fizeram e nem se fazem apenas na representao protocolar de um Tribunal Superior e dos demais Poderes constitudos. Modificaes das mais diversas fazem reclamar uma atuao mais atenta por parte do Judicirio e do Parlamento diante das demandas que cercam a atividade militar e do emprego das Foras Armadas. Se, quando da EC n 45/2004, conhecida como Emenda da Reforma do Judicirio, entendeu o Legislador que naquele momento poltico nacional a reestruturao da Justia Militar da Unio no se fazia madura, certamente, os dias de hoje e os anseios

42 MORAES, E. Contra os Artigos de Guerra. Rio de Janeiro, Capital Federal, 1898.43 Ao contrrio da maioria dos seus vizinhos que detm uma Justia Militar calcada no sistema Corte Marcial ou como uma justia administrativa.

37

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

da sociedade contemplam espaos de dilogos, conscincia e vontade de promover um amplo debate e as profundas transformaes que devem nortear a prestao jurisdicional e a administrao das Justias Militares brasileiras.

Por fim, compartilho das lies de Panebianco: para que o equilbrio funcione preciso que os atores institucionais, e tambm o pblico que o julga, estejam subjetivamente convencidos de seus valores intrnsecos. pois, necessrio que a cultura poltica existente atribua valor ao equilbrio do poder como instrumento para manter a liberdade44.

6 REFERNCIAS

BOBBIO, N. El problema de la guerra y las vias de la paz. Gedisa: Editorial, 2. ed., 1992.

DAHRENDORF, R. A lei e ordem. Rio de Janeiro: Instituto Libera, 1999.

DAHRENDORF, R. El recomienzo de la historia. Buenos Aires: Katz Editores, 2007.

DELMAS, P. O belo futuro da guerra. Rio de Janeiro: Record, 1995.

ENZENSBERGER, H. M. Perspectivas da guerra civil. Lisboa: Relgio Dgua Editores, 1998.

JESCHECK, H. Tratado de derecho penal. Granada: Editorial Comares, 4. ed., 1993.

JOUVENEL, B. La soberania. Granada: Ed. Colmares, 2000.44 Op. cit., p. 330.

38

MARCELO WEITZEL RABELLO DE SOUZA

MORAES, E. Contra os artigos de guerra. Rio de Janeiro: Capital Federal, 1898.

NAIM, M. O fim do poder. S. Paulo: LeYa, 2013.

PANEBIANCO, A. El poder, el Estado, la liberdade. Madrid: Union Editorial, 2009.

PIELLA, G. C. Entre Ares y Atenea. El debate sobre la revolucin en los asuntos militares. Madrid: Instituto Universitrio General Gutirrez Mellado, de Investigacin sobre la Paz, la Seguridad y la Defensa, 2008.

ROGEIRO, N. Guerra em paz. Lisboa: HUGIN, 2002.

ROXIN, C. Derecho Penal Parte General. Tomo I, Madrid: Civitas, 1997.

SNCHEZ, J. L. Proteccin penal de la disciplina militar. Madrid: Dykinson S.L., 2009.

TOFFLER, A.; TOFFLER, H. Guerra e Anti-Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1995.

ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1989.

reinveno da Justia Militar

Antnio Pereira DuarteProcurador de Justia Militar

Conselheiro Nacional do CNMP

Professor Jos Carlos Couto de CarvalhoSubprocurador-Geral de Justia Militar aposentado

Abrasileira

RESUMO: Concentra-se o presente texto na anlise do perfil con-temporneo da Justia Militar brasileira, sobretudo no processo de sua readequao jusconstitucional, em decorrncia das exigncias surgidas com a criao do Conselho Nacional de Justia CNJ, bem como do incremento de riscos como corolrio do emprego das For-as Armadas em diferentes situaes de garantia da lei e da ordem ou mesmo em atribuies subsidirias, como na represso aos delitos transfronteirios ou dos denominados crimes de repercusso nacio-nal e internacional ocorridos no territrio brasileiro. Intenta-se, ain-da, nessa perspectiva de remodelao, examinar as possveis reas de atuao dessa justia especial, em caso de eventual redefinio de seu papel, em esforo que enseja a reafirmao de sua singular natureza de rgo afeto a todas as questes relacionadas ao ordenamento jur-dico militar.

PALAVRAS-CHAVES: Justia Militar Brasileira. Concepo Tradi-cional. Novos Paradigmas. Ordenamento Jurdico Militar. Perspecti-vas. Insero no CNJ.

40

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

ABSTRACT: This text focuses on the analysis of the contempora-ry profile of Brazilians Military Justice, especially in the process of readjusting its jusconstitucional, due to requirements arising with the creation of the National Council of Justice - CNJ, as well as the in-creased risk as a corollary use of the Armed Forces in different situa-tions guaranteeing law and order or even subsidiaries assignments, as well as repression of the transborder crimes or crimes of domes-tic and international repercussions occurred in Brazil. An attempt is made, also, in this remodeling perspective, to examine possible areas of action of this special justice, in case of an eventual role redefining, in an effort that entails the reaffirmation of its singular nature of an institution related to all military juridical system issues.

KEYWORDS: Brazilian Military Justice. Traditional design. New Paradigms. Military Legal System. Perspectives. Insertion in CNJ.

SUMRIO: 1. Introduo 2. Concepo tradicional 3. Paradig-mas constitucionais 4. Perspectivas 5. Concluses. 6. Referncias.

1 INTRODUO

Por incrvel que parea, a hiptese de reflexo que ora se traz a lume diz respeito a uma justia com mais de duzentos anos de existncia e que vivencia seu perodo de maior questionamento quanto ao formato atualmente delineado no arcabouo constitucional.

A longevidade de tal rgo no tem sido, por si mesma, fator que conduza ao consenso de sua intangibilidade, antes servindo ao propsito de se repensar a sua dimenso, talvez em virtude de um presumvel anacronismo face aos reclamos de um cenrio globalizado,

41

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

no qual o sistema como um todo vem a se impactar com um renovado pluralismo jurdico.

No h dvida de que, passadas tantas fases histricas relevantes do pas, a Justia Militar continua a ostentar uma grande importncia na constelao institucional ptria, embora no raras vezes seja alvo de debates recorrentes em torno de sua prpria legitimidade existencial.

No pano de fundo de tais discusses, inelutavelmente eclodem aspectos concernentes desde o vis garantista da Carta Constitucional at questes inerentes ao panorama internacional, em que cada vez mais as justias militares de diversos pases so restringidas em sua atuao ou mesmo destitudas de sua autonomia judicante.

O modelo brasileiro se apresenta distinto de outros existentes, a comear por se integrar ao prprio Poder Judicirio Nacional, submetido, portanto, ao mesmo contexto garantista, contendo, pois, estrutura que se insere na prpria tendncia de especializao de rgos.

Entre as questes que mais polmica provocam, apresenta-se o julgamento de civis por ditos rgos especializados, situao que ocorre somente no mbito da Justia Militar da Unio, ensejando diferentes posicionamentos.

Outros pontos que decorrem de uma reavaliao de modelo referem-se competncia dessa justia, que atualmente se adstringe esfera penal, quando muitos vm defendendo uma ampliao que alcance todos os fatos jurdicos militares, quer sejam penais, administrativos, disciplinares ou previdencirios. Tambm se projetam discusses

42

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

acerca da atuao dos Conselhos de Justia, que deveriam, segundo a opinio de muitos profissionais da rea, ater-se ao processo e julgamento de crimes propriamente militares.

Todas essas inquietantes temticas reclamam apreciao imparcial, divorciada de juzos tendenciosos ou imaturos, de modo a se trabalhar pela definio de um modelo que se mostre ajustado s exigncias do ainda novel Estado democrtico de direito.

Com essa linha introdutria de ideias, imagina-se poder desenvolver um esforo cientfico em direo tese central do artigo, voltada para refletir a imprescindibilidade de uma renovao dos postulados que aliceram a Justia Militar no Brasil.

2 CONCEPO TRADICIONAL

Na Carta Constitucional brasileira de 1988, ao firmar a base estrutural do Poder Judicirio nacional, o constituinte reputou relevante ao modelo republicano adotado inserir uma justia especialmente destinada soluo das questes penais militares. E ao faz-lo seguiu uma tradio que j vinha sendo sedimentada em outras Cartas constitucionais, desde a origem mais remota de tal rgo judicial, que foi o primeiro a ser instalado no pas, no distante ano de 1.808, por obra e graa de D. Joo VI, atravs do Alvar de 1 de abril1. Desde sua constitucionalizao em 1934, a Justia Militar no mais deixou de 1 Clio Lobo alerta que no entanto, a Constituio de 1891 a ela se referia: Art. 77. Os militares de terra e mar tero foro especial nos crimes militares. 1. Este foro compor-se- de um supremo tribunal militar cujos membros sero vitalcios, e dos conselhos necessrios para a formao de culpa e julgamento dos crimes. Segundo Barbalho, o alvar de 1 de abril de 1808 criou no Rio de Janeiro o conselho supremo militar de justia para tratar dos negcios que pertenciam ao conhecimento do conselho de guerra e conselho do almirantado de Portugal (Constituio Federal, pg. 444).

43

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

figurar nas Cartas republicanas posteriores, fato que demonstra uma orientao nitidamente voltada a conferir relevo tutela da segurana quer sob o ponto de vista externo ou interno, fixando assento a um rgo judicial apto compreenso das graves questes que emergem das relaes especficas do contexto militar.

Veja-se, a propsito, o que nos aponta a doutrina de ZAFFARONI et alii (2003: 310): No Brasil, a Justia Militar foi constitucionalizada em 1934, estando contemplada em todas as Cartas subsequentes. Dispomos de um Cdigo Penal Militar (CPM) e de um Cdigo de Processo Penal Militar (CPPM) que em certos aspectos estiveram mais avanados teoricamente do que a legislao comum.

A Carta de 1988 ainda se preocupou em erigir um ramo tambm singular do Ministrio Pblico da Unio, conferindo-lhe o destacado papel republicano de guardio dos princpios da hierarquia e disciplina, da dignidade e da compatibilidade para com o posto e a patente e titular absoluto da ao penal militar. Com to expressiva misso, o Ministrio Pblico Militar, nascido nos distantes idos de 1920, apresenta-se contemporaneidade como rgo essencial definido pelo constituinte originrio para se manter como fiscal atento das prticas lesivas aos bens, interesses e valores objetos da tutela jurdica militar, revestindo-o dos instrumentos necessrios deflagrao dos mecanismos competentes em nvel preventivo ou repressivo, visando garantir, em derradeiro vislumbre, a continuidade da atividade tpica, indelegvel e impostergvel das Instituies Militares.

44

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

3 PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS

A Constituio Federal de 1988, em seu roteiro republicano, definiu, portanto, como visto alhures, linhas mestras de um modelo em que estabelece paradigmas muito claros em relao ao ethos militar: I Existncia de um ordenamento jurdico militar; II Insero de uma Justia Militar da Unio; III Insero de uma Justia Militar dos Estados-membros; IV Insero de um Ministrio Pblico Militar.

Quanto aos trs primeiros paradigmas, no h como duvidar da preocupao constituinte em explicitar os contornos peculiares da atividade militar, que devem ser sopesados por um rgo especializado do Poder Judicirio, apto aplicao das normas jurdicas que regem esse jus militaris.

O primeiro paradigma, alusivo existncia de um ordenamento jurdico militar, inspira a convico de que tal campo do saber jurdico, por sua conformao singularssima, no pode deixar de ser corretamente perscrutado em seu alcance e sentido, dada a prpria densidade de sua base cientfica. E disso no discrepa a opinio doutrinria de destacados juristas, como se pode perceber do seguinte esclio de ZAFFARONI et alii (2013:311).

O novo desenho constitucional, que restringe a competncia da Justia Militar ao processo e julgamento dos crimes militares cujo conceito, especialmente na convivncia com os crimes comuns, constitui o grande problema tcnico do direito penal militar avanou na superao daquela crise de legitimidade. Inscrito na Constituio e por ela regido, o direito penal militar exprime um direito penal especial e implica portanto um saber especial, vertido para a sua interpretao. Sem embargo de iniciativas pontuais, como as referidas na ltima nota, a doutrina brasileira no tem dedicado

45

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

a este campo de investigao dogmtica sumamente interessante uma reflexo constante e densa.

E essa espcie de marginalizao do Direito Militar no se deve ao fato de que tal segmento no seja relevante cientificamente, mas talvez por mero desinteresse das universidades, que no contemplam, em seus programas curriculares do curso de direito, qualquer estudo sobre disciplinas como o direito penal militar e o direito processual penal militar. Isso infelizmente favorece a alienao sobre to singular campo jurdico, inviabilizando a pesquisa e o estudo que propiciariam largo esclarecimento em torno dos matizes prprios do Direito Militar. Muito em funo de tal distanciamento acadmico que se assiste, no raras vezes, exteriorizao de opinies carregadas, na maioria dos casos, de juzos precipitados ou ao menos desprovidos de um aconselhvel lastro cientfico, pretendendo retirar o prestgio da Justia Militar, seja sustentando sua desnecessidade ou o descabimento de sua existncia autnoma.

No entanto, conforme alerta SOUZA (2009: 84)

A necessidade da Justia Militar justifica-se, pois, pela existncia das Instituies Militares e pela necessidade de um ordenamento jurdico especial, com Cdigos, Leis, Regulamentos etc, para impor severos deveres e responsabilidades e para controlar a vida e as aes dos militares, que so, por natureza e por tudo, inteiramente distintas de qualquer outra classe. H exigncias para esse tipo de regras porque aos militares compete o uso da fora e o exerccio de poderes que demandam controle na defesa dos cidados e da sociedade. da essncia da democracia. Realmente, a conduta dos soldados das Foras Armadas, a postura dos policiais militares estaduais e dos bombeiros militares e seus respectivos atos devem ser rigorosamente acompanhados porque eles so agentes do Estado, e suas atitudes e

46

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

procedimentos devem ser irrepreensveis, sem mancha, tendo em mente o bem comum.

Em nvel de direito comparado, os estudos que vm sendo realizados em torno do fenmeno da jurisdio militar quase sempre apontam situaes atinentes inadequao aos princpios constitucionais ou submisso ao poder poltico, o que poderia, em tese, comprometer a independncia e autonomia de tais rgos judicantes.2

Quanto a tal ponto, parece despiciendo alimentar uma discusso mais acirrada, visto que a Justia Militar brasileira tem sido um rgo de ndole constitucional, voltada aplicao da lei militar, portanto uma escolha constituinte que se tem revelado legtima ao longo dos tempos, sobretudo pelo elevado grau de especializao dos fatos submetidos apreciao, os quais reclamam acentuado conhecimento de institutos, princpios e valores que gravitam nesse ordenamento jurdico sui generis.

No que concerne ao paradigma da insero constitucional de um Ministrio Pblico Militar MPM, nada mais natural que o Estado brasileiro tenha optado pela adoo de um rgo especializado incumbido de tarefas realmente significativas, a tambm sinalizar, por meio do constituinte, que o ordenamento jurdico militar, devido sua base epistemolgica to particular, carece de um ramo do Ministrio 2 o que se observa em textos como de Olga Gil Garca La Jurisdiccin Militar en la etapa constitucional; de Rodolfo Venditti Il Processo Penale Militare e de Giuseppe Riccio Ordinamento militare e processo penale. No mesmo foco, Octvio Augusto Simon de Souza Justia Militar: Uma Comparao entre os Sistemas Constitucionais Brasileiro e Norte-Americano. Nesta ltima obra, o autor assinala as diferenas fundamentais dos dois sistemas, deixando remarcado que, enquanto a Justia Militar brasileira integra e pertence ao Poder Judicirio, contrariamente, a Justia Militar americana, pertence ao Poder Executivo, revestindo os ares de uma verdadeira Corte Marcial.

47

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

Pblico inteiramente devotado ao descortino dos princpios, normas e institutos correlatos a tal campo de produo de diferentes consequncias jurdicas.

4 PERSPECTIVAS

Com o advento da Lei Complementar n 117, de 2 de Setembro de 2004, as Foras Armadas passaram a deter novas atribuies subsidirias, reforando sua atuao nacional e redimensionando, por assim dizer, o prprio papel de guardis do Estado e das Instituies Democrticas, destinadas precipuamente defesa da Ptria, garantia dos poderes constitucionais e garantia da lei e da ordem.

Com efeito, s funes tpicas de Defesa Nacional, abrangendo a salvaguarda dos poderes e a garantia da lei e da ordem, acrescentaram-se funes atpicas, porm no menos significativas, que se inserem, em exame preliminar, num feixe maior de preveno estatal aos diferentes, e cada vez mais difusos, riscos globais, destacadamente aqueles decorrentes de prticas promovidas por organizaes criminosas transnacionais.

Neste sentido, ao definir normas gerais para a organizao, o preparo e o emprego das Foras Armadas, sobredita lei, em compasso com tais e novas exigncias de segurana, no se olvidou de referendar tal atividade como militar para fins de aplicao do art. 9, inciso II, alnea c, do Decreto-Lei n 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Cdigo Penal Militar, o que certamente amplia o leque de ocorrncias penais.

Em to complexa teia de novas atribuies complementares, Marinha, Exrcito e Aeronutica, como Foras Singulares, passam, em suas

48

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

reas prprias de ao, a assumir papis notveis na represso a todas as condutas que venham a comprometer a segurana pblica.

A Marinha brasileira, consoante descrio inserta no art. 17, V da referida lei, passa a ter a incumbncia adicional de:

Cooperar com os rgos federais, quando se fizer necessrio, na represso aos delitos de repercusso nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, guas interiores e de reas porturias, na forma de apoio logstico, de inteligncia, de comunicaes e de instruo.

A seu turno, a Fora Area Brasileira, na linha do comando previsto no art. 18, VI e VII do mesmo diploma, incorpora a responsabilidade extra de tambm:

Cooperar com os rgos federais, quando se fizer necessrio, na represso aos delitos de repercusso nacional e internacional, quanto ao uso do espao areo e de reas aeroporturias, na forma de apoio logstico, de inteligncia, de comunicaes e de instruo; e atuar, de maneira contnua e permanente, por meio das aes de controle do espao areo brasileiro, contra todos os tipos de trfego areo ilcito, com nfase nos envolvidos no trfico de drogas, armas, munies e passageiros ilegais, agindo em operao combinada com organismos de fiscalizao competentes, aos quais caber a tarefa de agir aps a aterragem das aeronaves envolvidas em trfego areo ilcito.

O Exrcito Brasileiro, na esteira do quanto disposto no art. 17A, II, III e IV, assumir como atribuies subsidirias particulares:

Cooperar com rgos pblicos federais, estaduais e municipais e, excepcionalmente, com empresas privadas, na execuo de obras e servios de engenharia, sendo os recursos advindos do rgo

49

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

solicitante; cooperar com rgos federais, quando se fizer necessrio, na represso aos delitos de repercusso nacional e internacional, no territrio nacional, na forma de apoio logstico, de inteligncia, de comunicaes e de instruo; e atuar, por meio de aes preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteirios e ambientais, isoladamente ou em coordenao com outros rgos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as aes de: a) patrulhamento; b) revista de pessoas, de veculos terrestres, de embarcaes e de aeronaves; e c) prises em flagrante delito.

Disso resulta o incremento considervel de riscos, a ensejar prticas ofensivas ao estatuto penal militar e consequentes prises cautelares.

Nessa toada, a manifestao da Ministra e atual Presidente do Superior Tribunal Militar brasileiro, Maria Elizabeth Rocha, em artigo intitulado Julgamento de civis pela Justia Militar e direitos humanos, veiculado na editoria Opinio do Jornal O Globo, datado de 29 de julho de 2014, se mostra completamente adequada, vez que apresenta argumentos slidos em torno do acerto da sujeio excepcional do civil jurisdio militar.

A par das digresses historiogrficas, os civis processados pela Jurisdio Castrense no so apenas aqueles que desacatam militares, os quais, por imposio constitucional, devem garantir a lei e a ordem, como comumente se cr. Julgam-se l criminosos de alta periculosidade, como os integrantes das Farc que adentram o territrio nacional e assassinam militares brasileiros; quadrilhas de narcotraficantes que invadem quartis para furtar armamentos de uso exclusivo das Foras Armadas; marginais que aliciam jovens soldados e os induzem s prticas delitivas, sem olvidar o tiro de destruio, regulado pela lei 12.432/2011 que, se disparado, levar a bito o piloto e os passageiros da aeronave hostil.

50

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

Poder-se-ia argumentar que Justia Federal ordinria caberia apreciar tais delitos, contudo, sobrecarregada de processos, no os julgaria com a necessria celeridade, alm de no deter a expertise em Direito Militar (grifos do original).

Parece claro que o legislador infraconstitucional tambm acenou que, nas aes de garantia da lei e da ordem e mesmo nas tais atribuies de escopo subsidirio, as Foras Armadas estariam a exercer atividade militar sujeita s tipificaes nsitas no ordenamento penal positivado no Decreto-Lei 1001/69.

Por ser classificada como atividade de carter militar, no se pode desconsiderar que toda e qualquer conduta, ainda que praticada por civil, que venha a atingir as Instituies Militares envolvidas no cumprimento de tais misteres, pode-se inserir como delito militar, nos precisos contornos da norma prevista no art. 9, III, d, do supracitado cdex, no se devendo, igualmente, deslembrar de eventuais comportamentos lesivos ao patrimnio sob administrao militar, ordem administrativa militar e mesmo contra militar nas situaes inscritas na alnea c do precitado inciso.

Como consectrio natural da especializao da Justia Militar, mais do que lgico que o processo e julgamento destes fatos de conotao penal sejam realizados em tal mbito jurisdicional, que restou definido constitucionalmente como o seu Juzo Natural.

Evidente que as discusses que procuram repensar a competncia da Justia Militar so totalmente vlidas e tendem a melhorar sua imagem e elevar a qualidade de suas decises. Sob tal tica, muito apropriada a interpretao conforme a constituio levada a termo pelo ministro Gilmar Mendes nos autos de habeas corpus 112.848/

51

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

RJ, que entende que o civil h de ser submetido a julgamento singular pelo juiz-auditor.

Esta interpretao judicial emanada do Supremo Tribunal Federal brasileiro vai ao encontro da iniciativa do Superior Tribunal Militar, que enviou projeto de lei numerado como 7683/2014, objetivando exatamente disciplinar a mencionada competncia monocrtica.

bem verdade que a postura reformista do Judicirio nacional talvez pudesse avanar um pouco mais, como aconteceu em relao s Justias Militares dos Estados-Membros, que passaram a ter competncia monocrtica para controle dos atos disciplinares, na dico do art. 125, 5 da Carta Fundamental, do seguinte teor:

Compete aos juzes de direito do juzo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as aes judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justia, sob a presidncia de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.

Essa ampliao promovida pelo poder constituinte reformador atende em muito aos anseios das justias militares estaduais, que podem melhor aquilatar, por exemplo, os danos provocados aos princpios norteadores das corporaes militares estaduais, pelas condutas violadoras dos regulamentos disciplinares.

Isso remete a uma certa perplexidade que decorre do claro maltrato ao primado da simetria constitucional, na medida em que a Justia Militar da Unio ainda no teve ampliada sua competncia nem mesmo para alcanar o controle das denominadas prticas lesivas disciplina e hierarquia, previstas nos Regulamentos das trs Foras Singulares.

52

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

No se mostra razovel que a congnere estadual de h muito (desde a Emenda Constitucional 45/2004) disponha de tal competncia e, no mbito federal, a Justia Militar da Unio ainda se mantenha limitada competncia meramente penal.

Por isso mesmo, a reforma que se perspectiva no pode desprezar o amplo plexo de consequncias jurdicas que decorre da aplicao das normas do direito militar lato sensu, espalhando-se em todas as suas ramificaes, desde o direito administrativo militar, direito disciplinar militar, direito previdencirio militar at o direito punitivo militar.

Com efeito, o vasto campo do contencioso administrativo militar reclama, igualmente, um rgo judicial especializado, que possa compreender, com a profundidade necessria, os diversos e complexos institutos, princpios e valores que regem sua existncia, lanando efeitos de toda ordem no cotidiano da vida castrense.

No h como menosprezar essas asseres, visto que o controle judicial operado pela Justia Militar pode e deve se estender para alm das prticas penais, atingindo, por sua grande capilaridade e especializao, todos os fatos administrativos, disciplinares e previdencirios militares.

O controle sobre o patrimnio histrico militar, as reas ambientais militares, a sade militar e todos os demais aspectos relativos ao funcionamento orgnico da ordem militar deveriam, por critrio racional, ser efetivados pelos rgos da Justia Militar. Sob tal ngulo, incumbiria ao Ministrio Pblico Militar deduzir diretamente Justia Militar as aes civis pblicas, cumprindo a funo institucional inscrita no art. 129, III, da Constituio de 1988, consistente na

53

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

tutela do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

nesta trilha de fortalecimento de sua atuao, com maior espao de competncia, que a Justia Militar do presente, valendo-se de sua longa histria e experincia, h de se situar no futuro, projetando-se como rgo mais til e cooperativo na estrutura deste essencial Poder da Repblica.

5. CONCLUSES

A reinveno da Justia Militar brasileira corresponde ao prprio anseio estatal de se rearranjar na teia de um cenrio de diferentes riscos e perspectivas.

A criao do Conselho Nacional de Justia, como rgo de controle administrativo, financeiro e disciplinar do Poder Judicirio nacional, certamente representou passo de grande vigor para a aferio do funcionamento da justia brasileira como um todo e da Justia Militar em particular, permitindo diagnosticar reas de vulnerabilidade por um lado e, por outro, projetar correes de rota e fixao de metas, nitidamente voltadas para o aperfeioamento do modelo de justia existente no pas. Neste sentido, o CNJ vem-se tornando um rgo de controle de vasto alcance e importncia, desvelando o padro de uma recomendvel justia para o pas.

Sem sombra de dvida, esse um passo decisivo rumo ao aprimoramento do sistema judicirio brasileiro, cujos indicadores no eram de fato satisfatrios at o diagnstico do CNJ.

54

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

Entretanto, causa estranheza a ausncia de representatividade da Justia Militar no mbito do CNJ. Com efeito, o primeiro rgo especializado do Poder Judicirio nacional, de to vetusta existncia, no integra aquele alto rgo constitucional fiscalizatrio, culminando numa verdadeira desrazo, no apenas por ser a nica que ali no tem assento, mas, e sobretudo, pelo fundamento da uniformidade. De fato, se no figura no CNJ e no participa dos processos decisrios pertinentes ao modelo de justia delineado por tal rgo de controle, com o lanamento de metas e a definio de prticas uniformes, fica por isso mesmo marginalizada, desprestigiada e completamente levada a reboque, sem dialogar com os demais componentes da estrutura do Judicirio ptrio e que se fazem, condignamente, representar perante to expressivo rgo da Repblica.

Sem grandes tergiversaes, mesmo incompreensvel que se alije do rgo mximo de controle do Judicirio brasileiro a justia mais antiga do pas. No h plausvel justificativa que se sustente ante s claras consequncias que se lanam ao rgo controlado completamente destitudo de voz no interior do rgo controlador. E isso milita no em desfavor completamente da Justia Militar em si mesma, mas do prprio Estado democrtico de direito, que se caracteriza pela harmonizao dos poderes, rgos e instituies.

Certo que, em sntese conclusiva, a reinveno da Justia Militar perpassa indispensavelmente pelo reexame da atual composio do CNJ, que no pode deixar de acolher a mais provecta justia do pas. No se pode e nem se deve, sob pena de malferir o primado da legitimidade, desprezar a vontade constituinte que inscreveu referida justia como rgo do Poder Judicirio nacional, merecendo por isso mesmo um assento junto ao CNJ.

55

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

Ademais, a Carta Constitucional em vigncia, ao fixar notveis paradigmas pertinentes ao segmento militar, fez questo de ditar diretrizes ao legislador infraconstitucional, no sentido da definio de um conjunto de regras jurdicas, embasadas em princpios axiolgicos prprios da coeso das instituies militares federais e estaduais, de modo a se erigir como um ordenamento peculiar, vertido para a preocupao de reger as relaes especficas havidas no mbito militar. E para aplicar tais regras to particulares que foram criados os rgos de Justia Militar e um ramo prprio do Ministrio Pblico da Unio.

Sob outro prisma, foroso tambm concluir que os movimentos reformistas da Justia Militar ho de conduzir definio de alguns novos cenrios, nomeadamente quanto competncia em relao aos civis. Este um ponto capital de reflexo, sendo certo que j se tem observado tendncia a se implementar reforma que desloca a competncia para o julgamento de civis do juzo colegiado para o singular, na figura togada do juiz-auditor.

Caminha-se, igualmente, para uma ampliao de competncia, de modo a se viabilizar uma Justia Militar cumulativa, abarcando competncia penal e cvel, alcanando, destarte, todos os fatos suscetveis de emergir das relaes travadas na seara jurdico militar. E, a se confirmar mencionada tendncia, no incorreto inferir que incumbiria ao juiz-auditor, de forma singular, apreciar os fatos administrativos, disciplinares e previdencirios militares. Da mesma forma, em grau de superior instncia, seria inarredvel a criao de uma turma especial perante o Superior Tribunal Militar, preferencialmente formada pelos Ministros togados, aos quais se destinariam os recursos manejados contra as decises de primeira instncia.

56

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

Em reflexo final, a marcha condutora reinveno deste rgo do poder judicirio nacional est acelerando os passos, no devendo perder de vista os pontos sensveis ora trazidos tona, que entremostram uma opo clara do constituinte por dotar o Estado brasileiro de uma Justia apta ao exame imparcial dos fatos penais que afetam as instituies militares, mas que, como visto, pode e deve contribuir ainda mais com o desafogo da justia comum, assumindo novas competncias que se coadunam com seu notrio grau de especializao.

6 REFERNCIAS

DE LALLA, P. Saggio sulla specialita penale militare. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1990.

GARCA, O. G. La jurisdiccin militar en la etapa constitucional. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, Ediciones Jurdicas y Sociales, S.A, 1999.

LOBO, C. Direito processual penal militar. Rio de Janeiro: Forense; So Paulo: Mtodo, 2009.

RICCIO, G. Ordinamento militare e processo penale: natura e limiti dela giurisdizione. Roma: Edizioni Sicientifiche Italiane, 1988.

ROCHA, M. E. G. T. Julgamento de civis pela Justia Militar e direitos humanos. Editoria Opinio. Jornal O Globo, 29.7.2014.

SOUZA, O. A. S. Justia Militar: uma Comparao entre os sistemas constitucionais brasileiro e norte-americano. Curitiba: Editora Juru, 2009.

VENDITTI, R. Il processo penale militare. 4 edizione aggiornata, Milano: Dott. A. GIUFR Editore, 1997.

57

REVISTA DO MINISTRIO PBLICO MILITAR

ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. W. Direito penal brasileiro I. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

58

ANTNIO PEREIRA DUARTE & JOS CARLOS COUTO DE CARVALHO

PM Repblica do Galeo:Iuma abordagem histrica e jurdica

RESUMO: Este trabalho um estudo tcnico do Inqurito Policial Militar conduzido na Aeronutica, referente ao atentado da rua Toneleros, ocorrido em 5 de Agosto de 1954, no qual morreu o Major Aviador Rubens Florentino Vaz e ficou ferido o jornalista Carlos Lacerda. Revela ainda a crise poltica do final do segundo Governo Vargas; o Inqurito n. 71, autuado no Superior Tribunal Militar, relacionado ao General ngelo Mendes de Morais, por suposta participao como mandante do crime; e as atuaes do Ministrio Pblico Militar no acompanhamento do IPM e da Procuradoria-Geral da Justia Militar no STM. Por fim, expe o andamento do Inqurito consagrado como Repblica do Galeo, ou IPM do Galeo.

PALAVRAS-CHAVES: Inqurito Policial Militar. Aeronutica. IPM Repblica do Galeo. Atentado da Rua Toneleros. Agosto 1954. Carlos Lacerda. Assassinato do Major Aviador Rubens Florentino Vaz. Inqurito n. 71 no Superior Tribunal Militar. Ministrio Pblico Militar. Atuao da Procuradoria-Geral de Justia Militar.

ABSTRACT: This paper is a technical study of the military police inquiry conducted in the Air Force, referring to the street Toneleros attack, which occurred on August 5, 1954, in which the major Rubens

Pricles Aurlio Lima de QueirozSubprocurador-Geral de Justia Militar

60

PRICLES AURLIO LIMA DE QUEIROZ

Florentino Vaz has died and the journalist Carlos Lacerda was injured. Also reveals the political crisis of the end of the second Vargas government; Inquiry 71, on filed in Military Court of Appeals, related to General Angelo Mendes de Morais, for his alleged involvement as principal of the crime; and the performances of Military Prosecutor in monitoring the IPM and General Attorney Office of Military Justice in STM. Finally, this paper intends display the progress of the Inquiry enshrined as Repblica do Galeo or IPM Galeo.

KEYWORDS: Military Police Investigation. Aeronautics. IPM Repblica do Galeo. Attack of Toneleros street. August 1954. Carlos Lacerda. Assassination of major Rubens Florentino Vaz. Inquiry 71 in Military Court of Appeals. Military Prosecutor. Acting General Attorney Office of Military Justice.

SUMRIO: 1. Introduo 2. Contexto poltico 3. Inqurito n. 71 Superior Tribunal Militar 4. Referncias.

1 INTRODUO

Rua Toneleros. Rio de Janeiro. Defronte ao edifcio nmero 180 dessa rua de classe mdia do mtico bairro de Copacabana, da ento Capital Federal do Brasil, ocorreu um atentado cuja repercusso poltica e jurdica