Revista do TCE-RJ - Nº 4

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É com enorme satisfação que publicamos mais uma edição da Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro reforçando o que frisamos nos números anteriores quanto ao padrão de qualidade.

Tivemos o cuidado de levar até você, que nos acompanha pari passu, número a número, artigos de colaboradores de alto nível que vêm nos brindar com estudos extremamente didáticos e de alto teor técnico.

Abrimos a temática com o professor Jorge Miranda, catedrático da Faculdade de Lisboa, discorrendo sobre os novos paradigmas do Estado social.

Em seguida, José Cretella Júnior e José Cretella Neto, pai e fi lho, ex-professor e professor da USP, observam sobre a nova modalidade contratual da administração pública no contrato de parceria público-privada.

Na sequência, o mestre Fábio Konder Comparato, professor da USP, enfoca um interregno agitado entre dois autoritarismos.

Fechando, com maestria ,o ex- Procurador Sepúlveda

Pertence e ex-Ministro do STF, por intermédio de voto com acórdão, fala sobre a inviolabilidade de parlamentar, com introdução produzida pelo Procurador aposentado Humberto Ribeiro Soares.

Nesta edição, publicamos, além dos votos selecionados dos Conselheiros, os judiciosos pareceres de Marianna Montebello Willeman e Aline Pires Carvalho Assuf, que retratam as conclusões do Ministério Público junto ao TCE alicerçando os votos proferidos.

Enfi m, tivemos a honra e o privilégio de ver estampados em nossa Revista artigos inéditos, fato que nos deixa muito gratifi cados e, porque não dizer, prestigiados pelos insignes mestres nacionais e internacionais.

A missão de informar com qualidade é prioridade máxima.

O nosso compromisso é levar até o leitor uma doutrina de qualidade, iluminando o saber com o foco sempre voltado para o enriquecimento cultural.

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TRIBUNAL DE CONTAS DOESTADO DO RIO DE JANEIRO1° SEMESTRE / 2012

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Ficha catalográfica

Rio de Janeiro (Estado). Tribunal de ContasRevista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro – v. 2, n. 4 (jul./dez. 2012) Rio de Janeiro: O Tribunal

SemestralISSN: 0103-5517

EXPEDIENTE

Coordenadora-Geral de Comunicação Social, Imprensa e EditoraçãoFernanda Pedrosa

Jornalistas responsáveis: Fernanda Pedrosa/ Bru-no Matos/ Editor executivo e revisor: Fernando de Lima / Projeto gráfico e arte: Inês Blanchart / Diagramação: Margareth Peçanha e Daniel Tiriba / Fotografia: Jorge Campos / Pesquisa de glossá-rio: Luiz Henrique Almeida Pereira

ImpressãoJ.DI GIORGIO EDITORES - ARTES GRÁFICAS Rua Vaz de Toledo 536, Engenho Novo - Rio de Janeiro - RJCEP 20780-150 / Tel.: 2501-5042E-mail: [email protected]

Tiragem — 500 exemplaresDistribuição gratuita

Os textos assinados nesta publicação são de exclusiva responsabilidade dos seus autores

Endereço para correspondênciaTribunal de Contas do Estado do Rio de JaneiroCoordenadoria-Geral de Comunicação Social, Imprensa e EditoraçãoPraça da República, 70 / 4º andar CEP 20211-351 – Centro – RJTel.: (21) 3231-4135 Fax: (21) 3231-5582E-mail: [email protected]

Conselho Deliberativo

Presidente Jonas Lopes de Carvalho Junior

Vice-PresidenteAluisio Gama de Souza

ConselheirosJosé Gomes GraciosaMarco Antonio Barbosa de AlencarJosé Maurício de Lima NolascoJulio Lambertson RabelloAloysio Neves Guedes

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EditorialJonas Lopes de Carvalho Junior

DoutrinaOs novos paradigmas do Estado socialJorge Miranda

Contrato de Parceria Público-PrivadaObservações sobre esta nova modalidade contratual da Administração PúblicaJosé Cretella Júnior e José Cretella Neto

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A Constituição BrasileiraUm interregno agitado entre dois autoritarismosFábio Konder Comparato 40

Recurso ExtraordinárioSepúlveda Pertence 64

VotosAposentadoria e Fixação de ProventosAluisio Gama de Souza 84

Ato de Inexigibilidade de licitaçãoJosé Gomes Graciosa 94

Ato de Inexigibilidade de licitaçãoMarco Antonio Barbosa de Alencar 104

RepresentaçãoJosé Maurício de Lima Nolasco 114

Aposentadoria e Fixação de ProventosJulio Lambertson Rabello 124

ConvênioAloysio Neves Guedes 144

PareceresTermo Aditivo - Barcas S.A. - Transportes MarítimosAline Pires Carvalho Assuf 155

Inspeção Ordinária Marianna Montebello Willeman 173

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SUMÁRIO

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Quando lançamos o primeiro número da REVISTA DO TRIBUNAL DE

CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, prometemos ao leitor uma

publicação que pudesse trazer uma doutrina de qualidade, e ficamos

muito felizes ao constatar que, ao produzir este quarto número, nosso

padrão tem sido mantido.

É motivo de orgulho poder receber contribuições de renomadas

personalidades do mundo jurídico e publicar sua exegese em nossas páginas.

Temáticas das mais diversas são enfocadas por mestres do Direito,

abordando importantes reflexões.

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Professores como Jorge Miranda, catedrático da Faculdade de Lisboa e

da Universidade Católica Portuguesa; José Cretella Júnior e José Cretella

Neto, o primeiro, professor aposentado de Direito Administrativo da USP

e o segundo, mestre, doutor e livre-docente em Direito Internacional pela

Universidade de São Paulo; Fábio Konder Comparato, doutor honoris causa

da Universidade de Coimbra, e Sepúlveda Pertence, ex-presidente do

Supremo Tribunal Federal, nos dão o tom desta edição.

Os votos de meus pares, escolhidos pelos próprios, vêm contribuir, e muito,

com os jurisdicionados para futuras decisões, pois são questões que se

apresentam no decorrer de suas gestões.

Com muita honra e satisfação estamos abrindo um novo e importante

espaço, neste número, para publicação de pareceres dos nossos

Procuradores, representantes do Ministério Público junto ao Tribunal. Esses

pareceres servem de base para que os Conselheiros desta Casa tenham

uma visão ampla do ponto de vista jurídico e, consequentemente, possam

produzir seus votos.

Agradecemos profundamente a essas personalidades que escrevem, dão

vida às nossas páginas e fazem com que o nosso leitor cada vez mais se

orgulhe de possuir uma Revista do TCE-RJ.

JONAS LOPES DE CARVALHO JUNIOR Presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro

EDITORIAL

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DOUTRINA

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Jorge Miranda*

Os novos paradigmas do Estado social

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JORGE MIRANDA*Professor catedrático da Faculdade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa.

I

1. O Estado constitucional, representativo ou de Direito, surgiu nos séculos XVIII e XIX, como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em conter o poder político tanto internamente, pela sua divisão, quanto, externamente, pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade. “Il faut que le pouvoir arrête le pouvoir”, ensinava MONTESQUIEU.

Quando instaurado, coincidiria com o triunfo da burguesia. Daí o realce da liberdade contratual, a absolutização da propriedade, a recusa, durante muito tempo, do direito de associação (dizendo-se que ela diminuiria a liberdade individual), a restrição do direito de voto aos possuidores de certo montante de bens ou de rendimentos, únicos que, tendo responsabilidades sociais, deveriam assumir responsabilidades políticas (sufrágio censitário).

Contudo, como assinala GUSTAV RADBRUCH, na sua Filosofia do Direito (II, 4ª ed. portuguesa, Coimbra, 1961, 137, 138), a liberdade reclamada pela burguesia, no seu interesse de classe, só pelo facto de ter sido reclamada sob a veste do direito, veio a aproveitar ao quarto estado e a redundar em prejuízo dos próprios interesses da burguesia sob a forma do direito de associação. “É justamente por efeito desta auto regência do jurídico que até as próprias classes inferiores podem ter interesse na realização do direito estabelecido pelas classes superiores … Esse direito, apesar de ser de classe, é sempre direito e, sendo direito, jamais ousará apregoar francamente o interesse de classe dominante. Encontrá-lo-á sob a roupagem duma forma jurídica, redundando, qualquer que seja o seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos”.

Seria, assim, menos em resultado das críticas doutrinais ao liberalismo, nas suas vertentes filosófica e económica – críticas de vários quadrantes desde as socialistas, de diferentes matrizes, à da Doutrina Social da Igreja – do que, por efeito da progressiva organização dos trabalhadores em sindicatos e em partidos, que, no exercício da liberdade, seriam reivindicados direitos sociais ou direitos económicos, sociais e culturais – direitos económicos para garantia da dignidade do trabalho, direitos sociais para segurança na necessidade e direitos culturais como exigência do acesso à educação e à cultura e, em último termo, de transformação da condição operária.

2. Estes direitos apenas lograriam ser consagrados constitucionalmente aquando das convulsões decorrentes ou subsequentes à primeira guerra mundial, em que foram mobilizados milhões de soldados e com a qual ocorreria uma larga mudança de mentalidades. De qualquer forma, a industrialização,

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a urbanização e a erradicação do analfabetismo torná-los-iam inevitáveis. E, como se sabe, os primeiros textos constitucionais que os consagrariam seriam a Constituição mexicana de 1917, a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, da Rússia, de 1918, e a Constituição alemã de 1919 (a Constituição de Weimar).

Vem a ser a partir desta altura que começa a falar-se em Estado social como Estado contraposto ao liberalismo económico, embora, em “era de ideologias e de revoluções”, sejam intransponíveis as distâncias entre as concessões e os tipos históricos que conseguem impor-se. São, de todo em todo, inconfundíveis e irredutíveis o Estado soviético marxista, o Estado corporativo fascista ou fascizante e o Estado designado por Estado social de Direito.

3. O ponto básico está em que o Estado social de Direito, se incorpora os direitos sociais, não apaga, nem subverte as liberdades, mormente as liberdades públicas, e, em geral, todos os direitos e garantias individuais; em que, se afasta o liberalismo económico, continua fiel ao liberalismo político; e em que, se exige para o Estado um papel insubstituível na economia, não exclui a iniciativa privada e o mercado.

Vindo na continuidade do Estado liberal (ou como sua segunda fase) – mais por transição constitucional do que por via revolucionária –, o Estado social de Direito retira do princípio da soberania nacional, que aquele já proclamara, o corolário lógico do sufrágio universal; e, por seu turno, o sufrágio universal viria a ser um meio privilegiado de conquista de mais e mais direitos sociais. Ao governo representativo burguês vai suceder a democracia representativa.

Ao mesmo tempo e não por acaso, procura se aperfeiçoar e consolidar a tutela de uns e outros direitos, reforçando o controlo de constitucionalidade e da legalidade pelos tribunais (tribunais constitucionais e administrativos ou órgãos homólogos) e por outras formas.

Em suma: liberdade e direitos sociais, Estado prestador de serviços e interventor, sob feições e em graus diversos, nos mecanismos económicos, mercado condicionado e regulado (ou economia social de mercado), separação de poderes (mesmo se diferente, em vários pontos, do século XIX). Em suma ainda: Estado democrático de Direito (ou Estado de Direito) é o outro nome do Estado social de Direito.

4. Para o Estado social de Direito, a liberdade possível – e, portanto, necessária – do presente não pode ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por

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justas que sejam, a alcançar no futuro. Há que criar condições de liberdade – de liberdade de facto, e não só jurídica; mas a sua criação e a sua difusão somente têm sentido em regime de liberdade. Porque a liberdade (tal como a igualdade) é indivisível, a diminuição da liberdade – civil ou política de alguns (ainda quando socialmente minoritários), para outros (ainda quando socialmente maioritários) acederem a novos direitos, redundaria em redução da liberdade de todos.

O resultado almejado há de ser uma liberdade igual para todos, construída através da correcção das desigualdades e não através de uma igualdade sem liberdade; sujeita às balizas materiais e procedimentais da Constituição; e susceptível, em sistema político pluralista, das modulações que derivem da vontade popular expressa pelo voto.

Nos direitos de liberdade parte-se da ideia de que as pessoas, só por o serem, ou por terem certas qualidades ou por estarem em certas situações ou inseridas em certos grupos ou formações sociais, exigem respeito e protecção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de necessidade – umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos exógenos (económicos, sociais, geográficos, etc.) – e da vontade de as vencer para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da mesma comunidade política.

A existência das pessoas é afectada tanto por uns como por outros direitos. Mas em planos diversos: com os direitos, liberdades e garantias, é a sua esfera de autodeterminação e expansão que fica assegurada, com os direitos sociais é o desenvolvimento de todas as suas potencialidades que se pretende alcançar; com os primeiros, é a vida imediata que se defende do arbítrio do poder, com os segundos é a esperança numa vida melhor que se afirma; com uns, é a liberdade actual que se garante, com os outros é uma liberdade mais ampla e efectiva que se começa a realizar.

Os direitos, liberdades e garantias são direitos de libertação do poder e, simultaneamente, direitos à protecção do poder contra outros poderes (como se vê, quanto mais não seja, nas garantias de intervenção do juiz no domínio das ameaças à liberdade física por autoridades administrativas). Os direitos sociais são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de promoção. O conteúdo irredutível daqueles é a limitação jurídica do poder, o destes é a organização da solidariedade.

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Liberdade e libertação não se separam, pois; entrecruzam-se e completam-se; a unidade da pessoa não pode ser truncada por causa de direitos destinados a servi-la e também a unidade do sistema jurídico impõe a harmonização constante dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas.

II

5. A passagem dos direitos sociais das Constituições para a prática foi ocorrendo, nos últimos cem anos, em ondas sucessivas e, em alguns casos, com refluxos.

Na Europa a sua época de ouro vai desde 1945 até aos anos 80, com abonos familiares, segurança social abrangendo todas as vicissitudes das vidas das pessoas, serviço nacional de saúde geral e gratuito ou tendencialmente gratuito, garantia de acesso de todos aos graus mais elevados do ensino, segundo as suas capacidades e independentemente das condições económicas, políticas de pleno emprego, garantia do mínimo existencial, etc. Alude-se, com frequência, a um modelo social europeu. Na realidade, ele toma configurações diversas em virtude de fatores variáveis; melhor será considerar um modelo nórdico, um modelo britânico, um modelo francês, um modelo da Europa central, um modelo da Europa meridional.

Fora da Europa, entre os países anglo-saxónicos ou de influência anglo -saxónica, muito nítido é o contraste entre os Estados Unidos (onde só muito recentemente se tenta estabelecer um sistema de saúde universal), de uma parte, e a Austrália e a Nova Zelândia, de outro lado, e de outro lado ainda, a África do Sul (onde graças ao Tribunal Constitucional, se têm conseguido alguns avanços sociais). Não menos significativas são as concretizações muito variáveis nos países da América Latina. Já em quase todos os países asiáticos e africanos são ainda tímidas as realizações de Estado social.

No tocante a Portugal e ao Brasil remontam às Constituições, respectivamente, de 1933 e de 1934, as primeiras normas definidoras de direitos sociais, acompanhadas de instituição de previdência. Mas, em rigor, o Estado social apenas se irá desenvolver por força e na vigência das novas Constituições democráticas de 1976 e 1988, tendo vindo a jurisprudência constitucional a desempenhar um relevante papel (mais no Brasil do que em Portugal).

6. Os direitos sociais ou o princípio da socialidade (na fórmula cunhada por alguns Autores) manifestam-se também para lá do Estado, na sociedade

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internacional. Segundo o art. 22º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, toda a pessoa, como membro da sociedade, pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. E elencos mais ou menos densos constam do Pacto Internacional de Económicos, Sociais e Culturais, da Convenção interamericana de Direitos do Homem, da Carta Social Europeia, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e das convenções internacionais de trabalho.

O nível de proteção internacional é muito menos apurado do que o dos direitos de liberdade, o que não quer dizer que não possa existir e desenvolver-se. Como observa AMARTYA SEN (The Idea of Justice, 2009, trad. A ideia de Justiça, Coimbra, 2010, pág. 504), se a viabilidade fosse uma condição necessária para que as pessoas tivessem qualquer tipo de direitos, então não seriam apenas os direitos económicos e sociais, mas sim todos os direitos – e mesmo os direitos de liberdade – a terem de ser vistos como um contrassenso, pois é inviável que se chegue a garantir a vida e a liberdade de todos contra quaisquer transgressões.

III

7. Hoje, no início do século XXI e de um novo milénio, o panorama político constitucional é, de novo, de grande instabilidade, incerteza e múltiplas contradições.

Já não existem, desapareceram ou entraram em queda irreversível quase todos os regimes totalitários e autoritários e o constitucionalismo de matriz ocidental, identificado agora com a democracia representativa e pluralista e com o Estado de Direito dir-se-ia prevalecer. Todavia, não se denotam poucas as deficiências e indefinições que ostenta (ligadas ao funcionamento dos sistemas eleitorais e de partidos e às dependências dos mecanismos financeiros e dos poderes económicos). Nem é pequena a sua falta de autenticidade em numerosos países.

O capitalismo financeiro transnacional tornou-se ator privilegiado no jogo político, económico e social. Apesar de estar ligado à crise desencadeada, em setembro de 2008, pela falência do banco Lehmann Brothers, tem vindo a adquirir crescente poder e contra os “mercados” pouco êxito têm todas as politicas públicas. Verificou-se aquilo que, com propriedade, MARIO TURCHETTI

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(Tyrannie et tyrannicide de l’Antiquité à nos jours, Paris, 2000, págs. 973 e segs.) designa por “economização do mundo”.

À escala de toda a Humanidade acrescem a degradação da natureza e do meio ambiente, os movimentos de migração do Sul para o Norte, a multiplicação de conflitos regionais ou locais com ingerências ditas humanitárias (ditadas, por vezes, por objetivos estratégicos), os fundamentalismos religiosos, as tensões étnicas, os obstáculos ao interculturalismo, a erosão de valores éticos familiares e políticos, a corrupção endémica, enfim surtos de terrorismo maciço.

Estamos muito longe da sociedade solidária (a que apelam o art. 1º da Constituição portuguesa e o art. 3º da Constituição brasileira). E, mesmo nos países aparentemente mais estabilizados, as pessoas defrontam-se com aquilo que se vem denominando sociedade de risco. Através do sistema jurídico, o Estado havia se tornado o principal garante da confiança em massa de que necessitava a sociedade moderna. Mas a dimensão, sem precedentes, do risco e do perigo, desgastou, diz BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência, I, Porto, 2000, págs. 165 e 169), a credibilidade dessa confiança.

Não se chegou, pois, ao “fim da história” – muito longe disso; apenas se chegou ao fim de certa época ou a um momento de transição, com todas as virtualidades que, apesar de tudo, pode conter. E até um Autor como FRANCIS FUKUYAMA (The end of history and the last man, 1992, trad. portuguesa O fim da história e o último homem, Lisboa, 1992, págs. 324 e 325; e ainda págs. 303, 310 e segs. e 320, 321), que fala numa “história direcional e universal rumo à democracia liberal”, reconhece que, ainda que a maioria das carruagens da caravana da história chegue eventualmente ao seu destino, não sabemos se os seus ocupantes, ao olharem em redor, não julgarão inadequadas as novas circunstâncias e “resolverão dar início a uma nova e mais distante viagem”.

8. Muito em especial, tornou-se na Europa um lugar comum declarar a existência de uma crise ou rutura do Estado social ou mesmo em Estado pós-social (por exemplo, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, Lisboa, 1995, págs. 122 e segs., ou JOSÉ CASALTA NABAIS e SUZANA TAVARES DA SILVA, O Estado pós-moderno e a figura dos tributos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, 3965, Novembro Dezembro de 2010, pág. 88). E, por certo, do Reino Unido a Portugal, da França à Suécia, em moldes não sem semelhança, ele enfrenta quer dificuldades quer ataques sem paralelo.

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Tem que se reconhecer que contribuíram para a situação fatores de ordem interna:

– As demandas excessivas de grupos sociais, com a criação de uma cultura de subsídiodependência frente ao Estado e, como escrevia JOSÉ GREGORIO PECES BARBA em 1995 (Ética, Poder y Derecho – Reflexiones ante el fin del siglo, pág. 38), gerando uma patologia de direitos ou uma ampliação de prestações tão egoístas como a provocada pela mentalidade privada da sociedade organizada segundo a lei da oferta e da procura;

– As duplicações de estruturas organizativas, os desperdícios e as gestões incompetentes, inadequadas ou corruptas;

– O facilitismo do crédito bancário.

Isto a par:

– Da baixa da natalidade e envelhecimento das populações, tornando problemática a subsistência, a prazo, dos serviços sociais;

– Da proliferação das tendências corporativas desagregadoras da coesão social.

Assim como ressaltam as causas externas:

– O mercado global, com penetração de produtos vindos de países com mão de obra barata e desprovida de proteção social, e levando a deslocalização de empresas para esses países;

– A concorrência desleal entre Estados no domínio do sistema tributário;

– O capitalismo financeiro transnacional, já referido, os off shores ou “paraísos fiscais” e a especulação bolsista;

– Ao domínio das correntes neoliberais, exigindo a desregulação de setores básicos da economia e privatizações sem freio;

– Ao desaparecimento ou apagamento dos partidos democratas cristãos;

– A crise de identidade dos partidos social democratas, socialistas e trabalhistas;

– À perda de influência dos sindicatos.

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9. Os anos de 2010 e 2011 marcam o auge da crise, agravada pelo endividamento das famílias e pelo endividamento público dos Estados Unidos e de grande parte dos países europeus, juntamente com a recessão e, noutras partes do mundo, com o sobreaquecimento da economia.

Resta saber até onde os remédios trazidos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu – cortes orçamentais, aumento dos impostos, liberalização dos contratos de trabalho, aumento das taxas e tarifas dos serviços públicos – atingem a economia real e se, por isso – por previsível diminuição das receitas tributárias – não vão acarretar o arrastamento da crise por mais e mais tempo conforme vêm alertando PAUL KRUGMAN e outros importantes economistas.

No entanto, também resta saber se medidas de linha keynesiana ou na esteira do New Deal de Roosevelt poderiam constituir alternativa satisfatória em anos bem diferentes da dos anos 30 do século passado.

De todo o modo, vão avultando os efeitos sociais da crise: aumento do desemprego e da precariedade do trabalho, ausência de expectativas da juventude, em vez de prestações sociais universais programas de cunho assistencialista, crescimento da criminalidade. Tal como se vão afetando os mecanismos de democracia representativa, compelidos a consignar os ditames dos organismos financeiros internacionais.

10. A despeito de tudo, apenas franjas neoliberais radicais defendem, pura e simplesmente, o fim do Estado social. Compreende-se porquê: porque ele se revelou elemento pacificador, integrador e propulsor de crescimento económico e a sua supressão desencadearia instabilidade e conflitualidade; porque ele se encontra radicado na consciência jurídica geral onde quer que se tenha implantado; e porque, assim, em democracia representativa, não se vislumbra como o eleitorado tal pudesse aceitar.

Aquilo a que se assiste, em vários países europeus, entre os quais Portugal, é a uma espécie de estado de necessidade económico-financeira (paralelo, diz-se, ao estado de sítio) que determina larga redução de prestações sociais ou, noutros termos, restrição ou suspensão de certas incumbências do Estado, embora não de direitos sociais em si mesmos (não se pode suspender, por exemplo, o direito à proteção da saúde ou o direito ao ensino). Mas não falta quem tema que se acabe por cair na desconstrução ou, pelo menos, na quebra da sua qualidade (ao passo que no Brasil, felizmente, se assiste a uma caminhada segura na construção do Estado social).

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11. Em contrapartida, uma postura de imobilismo ou de cristalização não tanto do adquirido quanto da forma como está adquirido mostrar-se-ia muito negativa e contraproducente. Em face das deficiências internas apontadas justificam-se medidas corretivas e adaptações, desde a desburocratização à coordenação de serviços sociais com as autoridades independentes reguladoras das atividades económicas à luz de um princípio de eficiência; e desde a racionalização dos tipos de prestações ao aproveitamento concertado dos meios públicos e dos meios e potencialidades de grupos existentes na sociedade civil (como as instituições particulares de solidariedade social do art. 63º, nº 5 da Constituição portuguesa), pois o Estado, se deve ter o primado, não deve ter o exclusivo da efetivação dos direitos sociais.

Não apenas isto. A reforma e a revitalização do Estado social passam pela democracia participativa, requisito da democracia inclusiva (democracia participativa que não é o mesmo que a democracia semidireta através do referendo). Passam pela participação dos cidadãos e dos grupos de cidadãos na definição das políticas públicas setoriais e na gestão e no controlo dos serviços que diretamente os afetam. Eis o que a Constituição portuguesa prevê na seara dos direitos dos trabalhadores [arts. 54º, nº 5, alíneas d) e e) e 56º, nº 2, alíneas b) e p)], dos direitos dos consumidores (art. 60º, nº 3), da segurança social (art. 63º, nº 2), do serviço nacional de saúde (art. 64º, nº 4), do planeamento urbanístico (art. 65º, nº 6), da proteção das famílias [art. 67º, nº 2, alínea g)], da política de juventude (art. 70º, nº 3), dos direitos à educação e à cultura (arts. 73º, nº 3, 77º e 78º, nº 2). Eis o que a Constituição brasileira prescreve acerca dos direitos dos trabalhadores (art. 10º), da seguridade social (art. 194º, § único), da saúde (art. 198º-III), da assistência social (art. 204º II). Tudo reside então em querer conferir efetividade às normas constitucionais.

12. A este propósito, GOMES CANOTILHO [A governança do terceiro capitalismo e a Constituição social (Considerações preambulares), in Entre Discursos e Cultura Jurídica, obra coletiva, Coimbra, 2006] alvitra uma reinvenção do Estado social, com cooperação e comunicação entre os atores sociais mais importantes e os interesses políticos organizados, levando a um Estado cooperativo (pág. 149), não sem salientar que a garantia dos direitos sociais pressupõe uma articulação do Direito com a economia progressivamente neutralizada pela expressão do mercado global (pág. 146).

Por outra parte, JOÃO CARLOS LOUREIRO (Adeus ao Estado social?, Coimbra, 2010, págs. 40 e segs.) sublinha que tempos difíceis não significam o fim do Estado social; e que uma esperança sustentável – razoável na formulação

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de DANIEL INNERATY – é tarefa de todos, um “plebiscito de todos os dias”, exigindo uma “esperança democrática”.

E, mais à frente, diz: “A falência de uma compreensão obesa do Estado social – o Estado-providência – que se traduziu numa «colonização do mundo da vida» e em mecanismos de desresponsabilização das pessoas, não deve ser lida como sinónimo de réquiem pelo Estado social. (…) Este, calejado pela maturidade do tempo, não escapa ao pós da circunstância: não ao da sua superação, mas ao do alargamento do campo de adjetivação (…) e, a par da responsabilidade de prestação, afirma se uma responsabilidade de garantia” (págs. 108 109).

IV

13. Voltando ao núcleo ineliminável de toda esta problemática – os direitos sociais.

Sobre eles importa frisar, necessariamente em breve síntese:

1º) Como os direitos de liberdade, os direitos sociais fundam-se na dignidade da pessoa humana (art. 1º da Declaração Universal, art. 1º da Constituição portuguesa, art. 1º III da Constituição brasileira).

2º) Os direitos sociais são direitos universais, são direitos de todos os membros de comunidade política; não são só direitos das classes trabalhadoras (como terão sido no início e como pretende o pensamento marxista), nem tão pouco direitos dos pobres ou dos carentes (como seriam numa linha neoliberal de um Estado mínimo) e, como de certo modo sugere VIEIRA DE ANDRADE (Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois, in Anuário Português de Direito Constitucional, 2006, pág. 139).

3º) São direitos universais, ainda que alguns atribuídos em razão de categoria de pessoas (as crianças, os jovens, as pessoas portadoras de deficiência, os idosos) ou em razão de situações especiais (as grávidas, os privados de família normal, os toxicodependentes, os deslocados) – porquanto todos que pertençam a essas categorias ou se achem nessas situações deles devem beneficiar.

4º) São direitos universais, sem que isto implique necessária gratuitidade universal das prestações; longe disso, gratuitidade universal não tem

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cabimento senão quanto a prestações correspondentes a bens jurídicos essenciais e universais.

5º) São direitos universais, embora muito dificilmente seja possível efetivar todos, simultaneamente, com toda a mesma intensidade.

6º) São direitos universais, no presente e possuem outrossim uma dimensão transgeracional e de futuro (para recorrer ao título do livro de JUAREZ FREITAS – Sustentabilidade – Direito ao Futuro, Belo Horizonte, 2011) direitos através dos quais se manifesta a solidariedade entre gerações a que também aludem tanto a Constituição brasileira (art. 223º) quanto a portuguesa (art. 66º).

7º) Apesar de não constarem dos elencos dos arts. 288º da Constituição portuguesa e 60º, § 4º da Constituição brasileira, os direitos sociais devem considerar-se, à luz dos respetivos sistemas, limites materiais de revisão constitucional, cláusulas pétreas.

14. Os direitos fundamentais sociais são também, como não poderia deixar de ser, suscetíveis de tutela através dos tribunais, conquanto em moldes bem mais circunscritos do que os direitos de liberdade.

Como escreve SÉRVULO CORREIA, “o âmbito da pronúncia jurisdicional encontra-se limitado pela reserva de conformação política do legislador, não cumprindo ao julgador extrair directamente dos enunciados constitucionais conteúdos justiciáveis; o juiz possui no entanto competência excepcional para, julgando segundo a equidade, corrigir os efeitos mais nocivos da inacção do legislador, ou seja, as situações de necessidade exceciona ou de injustiça extrema possibilitadas pela inacção legislativa, condenando as entidades públicas com atribuições na matéria em prestações de conteúdo mínimo susceptíveis – à luz das circunstâncias do caso concreto – de reparar ofensas intoleráveis à dignidade da pessoa humana”1.

Mas importa lembrar JORGE REIS NOVAIS (Direitos Sociais, Coimbra, 2010, pág. 27), alertando que “o desvio forçado de verbas não negligenciáveis para atender às imposições judiciais concretas pode pôr em causa e forçar mesmo a inflexões significativas ou retrocesso na política de saúde globalmente programada em direção a uma melhoria das condições de setores mais desfavorecidos. Quem, na prática, beneficia das estratégias maximalistas de realização dos direitos sociais no plano jurídico não é a grande massa dos excluídos, a que não vem ao sistema, não recorre aos tribunais, porque não tem condições para tanto”.

1 - Interrelação entre os regimes constitucionais dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais e o sistema constitucional de automomia do legislador e de separação e interdependência de poderes, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, obra coletiva (coord. de Jorge Miranda), Coimbra, 2004, pág. 970.

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15. A transparência dos procedimentos legislativos, a eficácia da Administração, o célere funcionamento das instituições judiciárias, a real responsabilidade do Estado e dos seus agentes – política, financeira, civil e criminal e a contenção das pulsões corporativistas mostram-se indispensáveis para a cabal efetivação dos direitos sociais. Todavia, são os condicionalismos económicos e económico-financeiros os que mais avultam e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais liga a progressiva efetivação dos direitos aos recursos disponíveis – ao “máximo de recursos disponíveis” (art. 2.º, n.º 1).

Fala-se aqui no ajustamento do socialmente desejável ao economicamente possível (JEAN RIVERO, Les droits de l’homme, catégorie juridique?, in Perspectivas del Derecho Publico en la segunda mitad del siglo XX, obra coletiva, III, pág. 32), na subordinação da efetividade concreta a uma reserva do possível (GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra, 1982, pág. 365; INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, 10ª ed., Porto Alegre, 2009, págs. 284 e segs.), na reserva financeira do possível ou do financiamento possível (PAULO GILBERTO COGO LEIVAS, Teoria dos direitos fundamentais sociais, Porto Alegre, 2006, págs. 99 e segs.; JORGE REIS NOVAIS, Direitos sociais, Coimbra, 2010, págs. 87 e segs.), num princípio de sustentabilidade (JOÃO CARLOS LOUREIRO, Adeus …, cit., págs. 128 e segs. e 261 e segs.) ou no caráter de direitos quantitativos, como direitos de medida (CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, Coimbra, 2010, pág. 305).

A apreciação dos fatores económicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação dos direitos cabe aos órgãos políticos e legislativos – não aos da Administração nem aos tribunais. Não corresponde a uma simples operação hermenêutica, mas a um confronto complexo das normas com a realidade circundante.

De resto, sendo abundantes as normas e escassos os recursos, dessa apreciação poderá resultar a conveniência de estabelecer diferentes tempos, graus e modos de efetivação dos direitos. Se nem todos os direitos económicos, sociais e culturais puderem ser tornados plenamente operativos em certo momento ou para todas as pessoas, então haverá que determinar com que prioridade e em que medida o deverão ser. O contrário redundaria na inutilização dos comandos constitucionais: querer fazer tudo ao mesmo tempo e nada conseguir fazer.

Seja como for, o conteúdo essencial de todos os direitos deverá sempre ser assegurado, e só o que estiver para além dele poderá deixar ou não de o ser

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em função do juízo que o legislador vier a emitir sobre a sua maior ou menor relevância dentro do sistema constitucional e sobre as suas condições de efetivação.

16. Não posso deixar de aludir ao tema da proibição do retrocesso social.

Sobre ele, a doutrina portuguesa – como a de outros países – acha-se fortemente dividida entre os Autores que a afirmam (GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, DAVID DUARTE, CRISTINA QUEIROZ), os que negam (MANUEL AFONSO VAZ, JORGE REIS NOVAIS, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO) e os que, apesar de a negar, acolhem um qualquer princípio de salvaguarda de um grau maior ou menor de concretização legislativa das normas de direitos sociais (JOÃO CAUPERS, VASCO PEREIRA DA SILVA, RUI MEDEIROS, VIEIRA DE ANDRADE, TIAGO DE FREITAS, PAULO OTERO). E no Brasil parece próximo deste último entendimento INGO SARLET. Sobre tudo isto, pode ver-se o vol. IV do meu Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., Coimbra, 2008, págs. 435 e segs.

Quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional português, nela regista-se uma evolução assinalável.

O acórdão n.º 39/84 (sobre o serviço nacional de saúde) orientou-se perentoriamente na linha do princípio da proibição do retrocesso social: “Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas. Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.

“Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) num obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social”.

Contudo, em sucessivos arestos, o Tribunal foi suavizando o seu enfoque do

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problema e adotando formulações mais moderadas. O acórdão n.º 509/2002 (sobre rendimento social de inserção) é o que melhor traduz essa inflexão, por aduzir que: 1.º) onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível determinar com segurança as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade, a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de proteção atingido é necessariamente mínimo, já que só o poderia fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não viesse a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão; 2.º) noutras circunstâncias porém, a proibição de retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o caráter de opções legislativas fundamentais.

17. Por mim, penso que, quando as normas legais vêm concretizar normas constitucionais não exequíveis por si mesmas, não fica apenas cumprido o dever de legislar como o legislador fica adstrito a não as suprimir, abrindo ou reabrindo uma omissão. Assim o exige a própria força normativa da Constituição.

Não se visa com isso revestir as normas legais concretizadoras da força jurídica própria das normas constitucionais ou elevar os direitos derivados a prestações a garantias constitucionais. Essas normas continuam modificáveis como quaisquer outras normas ordinárias, sujeitas a controlo da constitucionalidade e passíveis de caducidade em caso de revisão constitucional (sem prejuízo de limites materiais). Nem sequer vêm a prevalecer sobre outras normas ordinárias; como tais, nenhuma consistência específica adquirem.

O que se pretende é, na vigência de certas normas constitucionais, impedir a ab-rogação pura e simples das normas legais que com elas formam uma unidade de sistema. O legislador, de acordo com os critérios provenientes do eleitorado, pode adotar outros modos e conteúdos de concretização. Nada obriga, por exemplo, a que o serviço nacional de saúde (art. 64.º) ou o sistema de ensino (arts. 74.º, 75.º e 76.º) tenham de obedecer sempre aos mesmos paradigmas: podem ser, ora mais centralizados ora mais descentralizados, ora mais socializantes ora mais liberalizantes. O que não pode é o legislador deixar de prever e organizar tal serviço e tal sistema.

Porém, porque os direitos sociais estão sujeitos à reserva do possível, as respetivas normas concretizadoras têm de ser entendidas nestes termos:

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1.º) Quando se verifiquem condições económicas favoráveis, essas normas devem ser interpretadas e aplicadas de modo a de delas se extrair o máximo de satisfação das necessidades sociais e a realização de todas as prestações;

2.º) Ao invés, não se deparando tais condições – em especial por causa de recessão ou de crise financeira – as prestações têm de ser adequadas ao nível de sustentabilidade existente, com eventual redução dos seus beneficiários ou dos seus montantes;

3.º) Situações de escassez de recursos ou de exceção constitucional podem provocar a suspensão destas ou daquelas normas – não a das normas constitucionais atributivas dos direitos a que se reportam (insisto), mas elas hão-de retomar a sua efetividade, a curto ou a médio prazo, logo que restabelecida a normalidade da vida coletiva.

Há uma relação necessária constante entre a realidade constitucional e o estádio de efetividade das normas, entre a capacidade do Estado e da sociedade e os direitos derivados a prestações, entre os bens económicos disponíveis e os bens jurídicos deles inseparáveis. Por isso, deve concluir-se: 1º) Somente é obrigatório o que seja possível; 2º) mas tudo quanto seja possível torna-se obrigatório.

18. Uma última palavra acerca do problema de saber como devem ser encaradas e suportadas as despesas inerentes à satisfação das necessidades coletivas. Aqui deparam-se três orientações bastante demarcadas:

a) A do Estado mínimo, que tende a atribuir todos ou quase todos esses encargos aos indivíduos ou a grupos privados;

b) A do Estado marxista, que tende, pelo contrário, a confiá-los ao Estado;

c) E a do Estado social, que aceita assumir os custos de satisfação de necessidades básicas, embora não os das demais necessidades a não ser na medida do indispensável para assegurar aos que não possam pagar as prestações os mesmos direitos a que têm acesso aqueles que as podem pagar.

Se, obviamente, as Constituições portuguesa e brasileira rejeitam o Estado mínimo (em face da soma de tarefas e incumbências que atribuem às entidades públicas, à luz do desígnio de “uma sociedade mais solidária”),

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muito menos se compadecem com o Estado marxista. De resto, no caso português, duas normas relevantíssimas tomam em conta os meios económicos ou as condições económicas dos cidadãos: as normas sobre o acesso à Justiça (art. 20º, nº 1) e sobre o serviço nacional de saúde [art. 64º, nº 2, alínea c), após 1989].

19. Sem dúvida, recai sobre o Estado assegurar, por meio de impostos, a assistência materno-infantil, os cuidados de saúde (ou, pelo menos os cuidados primários), o ensino básico e o secundário obrigatórios, o apoio no desemprego, a integração dos deficientes e dos marginalizados, o auxílio material às vítimas de crimes e de calamidades naturais, etc. A essencialidade dos bens ou a universalidade justificam-no.

Por outro lado, quanto às restantes necessidades – ou porque não afetam identicamente todos os cidadãos, ou porque não revestem para todos o mesmo significado ou porque dependem de circunstâncias nem sempre previsíveis – pode justificar-se uma partilha dos custos da sua satisfação (até porque se verifica uma partilha de benefícios). O Estado deve pagar uma parte, os próprios outra parte e até onde possam pagar.

Os que podem pagar, devem pagar. E é preferível que paguem em parte (até certo limite do custo real) o serviço ou o bem, diretamente, por meio de taxas, e não indiretamente, mediante impostos, por três motivos: 1) porque assim tomam consciência do seu significado económico e social e das consequências de aproveitarem ou não os benefícios ou alcançarem ou não os resultados advenientes; 2) porque, em muitos casos, podem escolher entre serviços ou bens em alternativa; 3) porque mais de perto podem controlar a utilização do seu dinheiro e evitar ou atenuar o peso do aparelho burocrático.

Diversamente, os que não podem pagar, não devem pagar (ou devem receber prestações pecuniárias – bolsas, pensões, subsídio de desemprego para poderem pagar).

Mas a fronteira entre necessidades básicas e outras necessidades não é nunca rígida, nem definitiva. Depende dos estágios de desenvolvimento económico, social e cultural e da situação do país. E é também o sufrágio universal que, em cada momento, a traça, através das políticas públicas prosseguidas pelos órgãos por ele legitimados. Tudo em qualquer caso, insista-se, no respeito da dignidade de cada uma e de todas as pessoas humanas.

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Contrato de Parceria Público-PrivadaObservações sobre esta nova modalidadecontratual da Administração Pública

José Cretella Júniore José Cretella Neto

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Introdução - Contratação pela AdministraçãoPública

A Administração contrata tradicionalmente com entidades privadas me-diante procedimento licitatório.

A legislação não define licitação1 , mas a doutrina tem-se ocupado em con-ceituar esse típico instituto do Direito Administrativo. Licitação (que deriva do latim licitatione(m) = ato ou efeito de venda de lances num leilão ou hasta pública, acusativo de licitatio, onis2) pode ser definida como “o pro-cedimento administrativo por via do qual a Administração Pública busca conseguir a proposta mais vantajosa, seja para a execução de obras e servi-ços, seja para a compra de materiais e gêneros, seja, até, para alienação de bens de seu patrimônio”3.

É um procedimento integrado por atos e fatos da Administração e atos e fatos do licitante, todos contribuindo para a formação da vontade contra-tual4, ou seja, o objetivo da Administração é contratar com quem possa fornecer bens e/ou prestar serviços de interesse público.

Esses contratos administrativos, como bem assinala Edmir Netto de Araújo, “são dotados de regime jurídico próprio e especial, porque especial é a re-lação entre os interesses em jogo: de um lado, o interesse do particular em prestar o serviço ou desempenhar a atividade, auferindo rendimento, por isso; de outro, o interesse do Estado no cumprimento de uma finalidade pública, que se sobreleva ao interesse privado, gerando uma posição de supremacia estatal que, em nosso entendimento, não desvirtua, em ab-soluto, a figura do contrato, mas antes, a tipifica como contrato de direito público”5.

A partir de 2004, o ordenamento jurídico brasileiro passou a autorizar a Administração Pública a celebrar contratos em mais uma modalidade, o chamado contrato de Parceria Público-Privada (PPP).

Definimos contrato de parceria público-privada como “o acordo firmado entre a Administração Pública e entes privados, que estabelece vínculo jurídico para implantação, expansão, melhoria ou gestão, no todo ou em parte, e sob o controle e fiscalização do Poder Público, de serviços, empre-endimentos e atividades de interesse público em que haja investimento pelo parceiro privado, que responde pelo respectivo financiamento e pela execução do objetivo firmado”6.

JOSÉ CRETELLA JÚNIOR é Professor Titular (aposentado) de Direito Administrativo da Facul-dade de Direito da USP; Advogado em São Paulo

JOSÉ CRETELLA NETOé Mestre, Doutor e Livre--Docente em Direito Internacional pela Facul-dade de Direito da USP; Advogado em São Paulo

1- Vide Lei nº 8.666, de 21.06.1993. 2 - Cretella Júnior, José. Das Licitações Públicas, 17ª ed., Rio, Ed. Forense, 2001, p. 49. 3 - Schiesari, Nelson. Direito Administrativo, Hemeron Editora, 1975, p. 149; também estudaram e conceituaram o instituto e suas modalidades: Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 38ª ed., Malheiros Ed., 2012, p. 287; Medauar, Odete. Direito Ad-ministrativo Moderno, 16ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 195; e Cretella Júnior, José. Curso de Direito Administrati-vo, 18ª ed., Ed. Forense, 2006, p. 300; e Araújo, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrati-vo, 5ª ed., Ed. Saraiva, 2010, pp. 529-530.4- Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 24ª ed., Ed. Atlas, 2011, pp. 356-357.5 - Araújo, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrati-vo, Op. cit., p. 661.6 - Cretella Neto, José. Co-mentários à Lei das Parcerias Público-Privadas-PPPs, 2ª ed., Rio de Janeiro, GZ Editora, 2011, p. 1.

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Em boa hora, veio o legislador brasileiro acrescentar mais essa ferramen-ta jurídica que permita à Administração Pública a celebração de contra-tos, nacionais e internacionais, que permitam impulsionar o crescimento econômico do País, condição absolutamente necessária para melhorar as condições sociais, de saúde, de emprego e de educação de seu povo, embora, evidentemente, não suficiente para colimar todos esses objetivos, que dependem, ainda, de políticas públicas mais abrangentes e eficazes em outras áreas, como saúde, educação, segurança pública, etc. Assim, reconhecendo a problemática e desejando colocar em prática uma estratégia diferente, um Projeto de Lei (PL nº 2.546/03) foi elaborado pelo governo e por lideranças empresariais, contemplando uma nova forma de relacionamento entre o Poder Público e as empresas privadas, regulando os chamados contratos de Parceria Público-Privada-PPP.

A ideia central envolvendo as PPPs, além do envolvimento conjunto do go-verno com empresas particulares, é dirigir recursos para setores considera-dos prioritários, mas onde o retorno econômico não seria suficientemente elevado para atrair investimentos apenas do setor privado.

Após tramitação de mais de um ano do referido PL, foi este convertido na Lei nº 11.079, de 30.12.2004, que terminou por adotar definição mais con-cisa do instituto: “Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa”. (art. 2o, caput)

Tem, portanto, natureza jurídica de contrato administrativo de concessão, nas modalidades patrocinada ou administrada. A lei estabelece que ne-nhuma dessas modalidades deve ser confundida com a chamada conces-são comum, aquela regida pela Lei nº 8.987, de 13.02.1995, quando não en-volver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

O caput do art. 1o e o parágrafo único da Lei das PPPs indicam os sujeitos de Direito aos quais a norma legal se dirige, ou seja, delimita seu campo de aplicação ratione personae.

Subjetivamente, portanto, são abrangidas pela Lei nº 11.079/04, as seguin-tes entidades:

1. os órgãos da Administração Pública direta;2. os fundos especiais;3. as autarquias;

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4. as fundações públicas; 5. as empresas públicas;6. as sociedades de economia mista; e7. as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Es-tados, Distrito Federal e Municípios

2. Novo marco jurídico na contratação pela Ad-ministração Pública - o contrato de PPPs - alguns pontos relevantes

Instituída pela mencionada Lei nº 11.079/2004, essa modalidade de con-tratação administrativa é espécie do gênero concessão.

Assim, na modalidade concessão patrocinada, o empreendedor re-cebe como retorno por seu investimento, tarifas pagas pelos usu-ários (como pedágios, por exemplo), mais uma contraprestação da União; já na modalidade concessão administrada, o empresário receberá tão somente a contraprestação da União, pois não cabe a cobrança de tarifas pelo serviço. Esses recebimentos, por parte do empreendedor, somente começarão a ocorrer quando o serviço esti-ver disponível e a qualidade do serviço atingir as metas mínimas es-tabelecidas no edital de concorrência. As contraprestações poderão ser vinculadas ao pagamento de financiamentos.

A lei impôs limitações à participação do Poder Público: União, Esta-dos e Municípios somente poderão comprometer o montante má-ximo de 1% (art. 22) de suas receitas líquidas com o pagamento das contraprestações. Caso Estados ou Municípios ultrapassem esse per-

centual, deverão ser imediatamente suspensos os repasses da União.

Instituições financeiras públicas – como o BNDES – somente poderão fi-nanciar até 70% do montante de cada empreendimento. Caso haja par-ticipação de fundos de pensão, o percentual pode ser elevado para 80% (art. 27).

Criar-se-á um Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (art. 16, caput), com recursos provenientes do Orçamento e ativos da União (tais como ações de empresas públicas de fácil negociação). O fundo terá na-tureza privada e os recursos deverão ser destinados exclusivamente aos projetos realizados na modalidade PPP. O propósito do fundo é assegurar

O fundo teránatureza privada

e os recursos deverão ser destinados

exclusivamenteaos projetos

realizados na modalidade PPP.

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que as contraprestações estatais sejam pagas, caso o Estado não cumpra as obrigações de pagamento. Com isso, evita-se o problema dos precatórios – verbas estatais resultantes de condenações em processos judiciais, cujo pagamento atrasa em muitos anos – e assegura-se ao investidor privado o rápido ressarcimento dos valores acordados. Não apenas a União deve-rá criar um fundo garantidor; Estados e Municípios que desejarem realizar projetos com base nas PPPs, também deverão criá-los.

Os projetos cobrem variadíssima gama de setores: rodovias, ferrovias, usi-nas de geração de energia, obras portuárias, projetos de irrigação, hospi-tais, etc.

Veda-se, no entanto, a celebração de contrato de PPP exclusivamente para o fornecimento de mão de obra, o fornecimento e a instalação de equipa-mentos ou a execução de obras públicas (art. 2º, § 4º, III). Para ser apro-vado, o contrato de PPP precisa, obrigatoriamente, prever a prestação de algum tipo de serviço.

A redação do PL nº 2.546/03 foi aprovada pela Câmara, com emendas, em 17.03.2004, sendo remetida ao Senado Federal, onde recebeu nova nume-ração: PL nº 10/2004. O referido projeto institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada, no âmbito da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aplicando-se também aos órgãos da administração direta, aos fundos especiais, às autarquias, às fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mis-ta e às demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Converteu-se na Lei nº 11.079, promulgada em 30.12.2004, após receber veto (Mensagem Presidencial nº 1.006, de 30.12.2004 ao Presidente do Senado Federal) a dois dispositivos, o inciso II do art. 11 e o § 3º do art. 28.

As PPPs no Brasil, segundo o formato proposto pelo governo federal, sur-gem como alternativa à simples privatização, com o governo oferecendo garantias de pagamento e rentabilidade ao setor privado em contratos pú-blicos, com o objetivo de incentivar e atrair investimentos, especialmente nos setores de infraestrutura e de produção de bens e serviços à população. É considerado, por seus defensores, como a única forma para impulsionar o desenvolvimento do País, diante da escassez de recursos orçamentários e da pouca lucratividade de determinados setores, pela mobilização de

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vultosos recursos para suprir demandas nas áreas de segurança pública, habitação, saneamento básico, infraestrutura viária e elétrica.

Trata-se de modalidade de contratação diferente das praticadas, e que adapta a legislação brasileira, para permitir que a administração pública possa compartilhar riscos e financiamentos com o setor privado.

Até a promulgação da Lei nº 11.079/04, para contratar obras públicas, a legislação pátria permitia à Administração que o fizesse com fundamento na Lei de Licitação e Contratos7 e as Leis de Concessão e Permissão8.

Justiça seja feita, a César o que é de César: a iniciativa pela busca de novas fontes de recursos para realizar obras públicas não tem origem em qual-quer partido ora governista.

Recorde-se o pioneiro projeto do então vereador paulistano e Professor Titular da Fundação Getúlio Vargas, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquer-que, apresentado à Câmara Municipal de São Paulo em 1994, que recebeu o número 259/94, e foi aprovado em 09.03.1994. Esse projeto criava os Certificados de Potencial Adicional de Construção-CEPACs, após ter sido aplaudido em um congresso internacional de administradores públicos em Toronto, Canadá.

A implantação dos CEPACs foi, no entanto, judicialmente impedida, na época, por iniciativa de um então vereador do PT, que entendeu ser o projeto “desastroso para a cidade”. Os argumentos foram, afinal, repelidos pela Justiça e, após longa tramitação pelos meandros administrativos e le-gislativos, a lei dos CEPACs chegou ao Executivo municipal paulistano para sanção da então prefeita Marta Suplicy, no entanto, a vetou em agosto de 2001. O Secretário Municipal das Finanças da época, João Sayad, chegou a conceder entrevista ao jornal “Gazeta Mercantil”, na qual condenou o pro-jeto, que, em seu entender, poderia “degradar a cidade”.

O CEPAC ressurgiu com a chamada Operação Urbana Água Espraiada (Lei nº 13.260/01) e também com o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei nº 13.430/02).

No âmbito federal, o CEPAC foi incluído, em 2001, no Estatuto da Cidade, que regulamenta artigos da Constituição Federal que dispõem sobre a legislação urbana. Finalmente, em 2003, a Comissão de Valores Mobiliários-CVM, baixou a instrução 401/03, regulamentando a negociação e a distribuição de CEPACs.

7 - Trata-se da Lei Federal de nº 8.666, de 21.06.1993, que regulamenta o art. 37, XXI da Constituição Federal, tendo revogado o Decreto-Lei nº 2.300, de 21.11.1986, e sido parcialmente alterada pelas Leis nos 8.883, de 08.06.1994, 9.648, de 27.05.1998, e 9.854, de 27.10.1999. Além dessas, a Lei nº 10.520/02, acresceu às modalidades de licitação previstas na Lei nº 8.666/93 a modalidade de pregão.

8 - Lei nº 8.987, de 13.02.1995, e Lei nº 9.074, de 07.07.1995. A Lei nº 8.666/93 cria os meios para a escolha das melhores condições e das propostas mais vantajosas para a realização de obras, serviços, compras, alienações públicas. As Leis nos 8.987/95 e 9.074/95 estabelecem os meios para a transferência de patrimônio público e delegação, mediante concorrência, da prestação de serviços públicos pela iniciativa privada (pessoas jurídicas ou consórcio de empresas) que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo deter-minado, em troca de cobrança de tarifas dos usuários, finais dos serviços. Uma série de leis posteriores também disciplina determinados aspectos da contratação pública, como a Lei nº 12.462, de 04.08. 2011, que estabelece o Regime Diferenciado de Contratações Públicas.

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Segundo o ex-deputado federal e vereador Marcos Cintra, Secretário Muni-cipal de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho de São Paulo (gestão 2008-2012), idealizador dos CEPACs, estes resolvem dois problemas: “cap-tam recursos não-tributários para financiar gastos públicos e absorvem, para a coletividade, a renda diferencial gerada por investimentos gover-namentais, renda esta normalmente absorvida pelos agentes privados”9.

Finalmente, no poder municipal em São Paulo (e também, a partir de 2003 no Poder Executivo federal), o Partido dos Trabalhadores, despertando para a realidade de não mais poder comportar-se como partido de oposi-ção, sem responsabilidades administrativas, rendeu-se à ideia e começou a usar esse instrumento em diversas ações municipais, em S. Paulo: o leilão dos CEPACs realizado em 20.07.2004 negociou, em 15 minutos, 100 mil títulos, que geraram para os cofres da Prefeitura cerca de R$ 30 milhões em projetos urbanísticos. Os recursos serão empregados na construção de duas pontes e 600 casas na Zona Sul de São Paulo.

Os CEPACs são instrumentos tão inovadores quanto as PPPs, recentemente aprovadas. O PT, agora não mais como oposição, deverá utilizar-se delas como instrumento de governo para promover inúmeros investimentos ne-cessários para sustentar o desenvolvimento da economia.

As chamadas “parcerias público-privadas” – PPPs, na abreviatura já consa-grada – constituem formas de contrato por tempo pré-fixado e longo (no caso da lei sob comentário, de 5 até 35 anos, segundo o art. 5°, I) entre o Estado e o setor privado para a realização, principalmente, de obras e ser-viços de infraestrutura, de valor não inferior a R$ 20 milhões (art. 2º, § 4º, I) – investimentos que tradicionalmente propiciam baixo retorno – visando à diminuição dos riscos das empresas mediante concessão de garantias extras de pagamento em relação a outras despesas públicas.

Nas PPPs, os interessados nos projetos definidos pelo governo devem formar uma empresa para participar da licitação pública, a Sociedade de Propósito Específico-SPE. Vencedores, poderão construir as obras, e serão remunerados de modo convencionado caso a caso, sendo os pagamentos a que fazem jus efetuados com prioridade sobre os demais investimentos públicos, o que é garantido pela denominada cláusula de precedência.

Uma importante restrição à interferência governamental é que o Estado não poderá controlar a SPE criada para realizar o empreendimento (art. 9º, § 4º). Os financiadores do investimento, ademais, poderão reestruturar

9 - Cintra, Marcos. Novas Fontes de Investimentos Públicos, artigo publicado na edição de 06.09.2004, jornal Folha de S. Paulo, p. B-2.

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financeiramente as operações, a fim de garantir melhores condições de funcionamento e continuidade na prestação dos serviços.

As PPPs constituem a principal alternativa à falta de recursos públicos para as obras de infraestrutura, investimentos considerados urgentes para as-segurar o crescimento econômico do Brasil. São mecanismos, na verdade, já testados em outros países, como a Grã-Bretanha, a Espanha, Portugal e a África do Sul. No Brasil, antes da aprovação da lei federal das PPPs, leis estaduais semelhantes já haviam sido aprovadas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás.

Importante progresso na lei é o estabelecimento da opção de solucionar os eventuais litígios entre a União e as empresas envolvidas nas PPPs por meio de arbitragem10 (art. 10, III, b), ou seja, por método privado de resolução de disputas, sem recorrer ao moroso e incerto Poder Judiciário brasileiro.

O funcionamento do Poder Judiciário brasileiro é motivo de fundada in-segurança, por parte dos investidores, especialmente os estrangeiros. Em-bora a arbitragem ora incentivada não seja obrigatória – como, aliás, é do feitio desse método alternativo de solução de conflitos – a ênfase nessa opção deverá obviar mais um dos percalços à atuação de empreendedores privados no País.

O mecanismo não está isento de críticas: seus adversários vislumbram nas PPPs a possibilidade de aumentar a dívida pública – a ser paga pelos governos futuros – e também, conforme as regras de seleção dos parcei-ros privados, a abertura de caminhos para a corrupção. Além disso, não aceitam participação majoritária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social-BNDES nem de fundos de pensão de empresas es-tatais.

Os gastos governamentais com as PPPs apresentam a peculiaridade de não ser contabilizados como dívidas, o que não esconde a realidade, ora mascarada por meio de artifício contábil, de onerarem os cofres públicos. De qualquer modo, não poderão ultrapassar 1% (um por cento) das recei-tas líquidas da União (art. 22).

As decisões do órgão gestor colegiado, integrado por representantes da Casa Civil e dos Ministros da Fazenda e do Planejamento, não precisam ser tomadas por unanimidade. Segundo a lei aprovada, esse órgão gestor deverá ser criado por ato do Poder Executivo.

10 - Sobre arbitragem, vide nossos Curso de Arbitragem, 2ª ed., Campinas, Millennium Ed., 2009 e Comentários à Lei de Arbitragem Brasileira, 2ª ed., Rio, Ed. Forense, 2007. Método que goza de grande prestígio nos países industrializados, a arbitragem ainda engatinha, no Brasil. No entanto, se espera que ganhe renovado alento nos próximos anos, depois de vencidos os obstáculos e atrasos de natureza cultural de que ainda padecem muitos de nossos operadores jurídicos.

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Esse órgão, denominado pelo Decreto nº 5.385, de 04.03.2005, de Comitê Gestor de Parcerias Público-Privada Federal-CGP, será integrado por um representante, titular e suplente, dos seguintes órgãos: a) Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que o coordenará; b) Ministério da Fa-zenda; Casa Civil da Presidência da República (art. 2º).

Essa estrutura e o sistema de votação, na prática, retiram o poder de veto do Ministério da Fazenda, responsável pelo fechamento das contas do Te-souro, o que representa fator de risco a desequilíbrios orçamentários.

As parcerias público-privadas têm conhecido relativo sucesso em Portugal, na Alemanha e na Grã-Bretanha.

Neste último, três modalidades de cooperação entre os setores público e privado foram criadas11:

› a introdução da propriedade, pelo setor privado, de empresas estatais, usando toda a gama legal possível de estruturas (colocação de ações no mercado ou entrada de um sócio estratégico);

› a Iniciativa Financeira Privada (Private Finance Initiative-PFI) e outras configurações, nas quais o setor público contrata para adquirir serviços de qualidade durante prazos longos, de modo a obter vantagens das competências de gestão do setor privado, incentivadas pela existência do risco financeiro privado. Isso inclui concessões e franquias, onde um empreendedor privado assume a responsabilidade pelo fornecimento de um serviço público, incluindo a manutenção, a ampliação ou a construção da infraestrutura necessária; e › a venda de serviços do governo ao mercado em geral e outras estruturas de parcerias, nas quais as competências do setor privado e seu financiamento são usados para explorar o potencial comercial dos ativos governamentais.

É preciso destacar que a Lei das PPPs não inova, propriamente, em nosso ordenamento jurídico, dado que amplia a figura da concessão, o que pode ser saudado como uma evolução do instituto, possibilitando ao Estado criar uma forma de crédito e financiamento de projetos importantes para o Estado, que não poderiam ser realizados por falta de recursos públicos, além de possibilitar transferência de tecnologia.

Não se esqueça, também, que, em muitos casos, a concessão tem sido

11 - PFI: Meeting the Invest-ment Challenge, Her Majesty’s Treasury Report, Julho de 2003. Em 2000, o Governo Britânico publicou o documento Public Private Partnerships – the Government’s Approach, que detalhou o funcionamento de cada uma das formas de parceria.

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usada com sucesso, como ocorreu com as principais rodovias do Estado de São Paulo (chamadas, equivocadamente, de “privatizações”), a partir da gestão do governador Mário Covas (1995) e cuja administração/operação estão a cargo de consórcios de empresas (Ecovias, Autoban, etc.), sempre por períodos limitados de tempo.

Qualquer um que tenha circulado por essas rodovias notará a diferença entre suas condições de segurança e manutenção e as das demais rodo-vias do País, especialmente as federais não “privatizadas” ou “concedidas à iniciativa privada”, eufemismo criado pelo governo para evitar desavenças com a ala radical do PT.

Apesar das críticas – procedentes – aos altos valores dos pedágios cobra-dos, bem como do excessivo número de cabines de cobrança, entende-mos que, dado ao parceiro privado um horizonte jurídico seguro, não há porque não lhe transferir a gestão de serviços públicos, mediante certas condições e controles apropriados. No caso das rodovias, seria importante revisar as tarifas e adequá-las às possibilidades de pagamento dos usuá-rios, o que é um aspecto que não invalida o modelo.

Sem dúvida, não apenas São Paulo, mas também Minas Gerais se adianta-ram ao Governo Federal, editando, respectivamente, as Leis nos Estados esses que se adiantaram ao Governo Federal e editaram leis próprias so-bre o tema, respectivamente as Leis nos 11.688, de 19.05.2004 e 14.868, de 16.12.2003.

Igualmente, no caso dos Correios, desde a década de 1990, já se consegui-ra ampliar significativamente a rede por meio do sistema de franchising que, a nosso ver, funciona bastante bem, embora o mecanismo esteja obs-tado principalmente por iniciativa do Ministério Público, o qual, inexplica-velmente, se mostra refratário a certas modalidades modernas de contra-tação12.

Como o Estado brasileiro não dispõe de recursos para investir os bilhões de reais de que o Brasil necessita para desenvolver-se, importante é avaliar com espírito aberto as novas modalidades de financiamento e execução, para oferecer serviços públicos de alto nível.

Nesse sentido, alguns projetos prioritários já começam a ser delineados.

O Ministério do Planejamento arrolou, inicialmente, algumas obras priori-

12 - Abordamos o tema em nosso livro Do Contrato Internacional de Franchising, 2ª ed., Rio, Ed. Forense, 2002, pp. 65-69. O contrato de fran-chising envolvendo os serviços e a marca dos Correios veio de tal modo desfigurado que mais se aproxima da concessão de serviço público.

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tárias, que entende serem iniciadas até 2007, dentre as quais se desta-cam13 (entre colchetes, o valor estimado das obras, na época):

obras ferrovias: [total estimado = R$ 2,4 bilhões]

• construção da variante ferroviária Ipiranga-Guarapuava (PR) [R$ 220 mi-lhões];• construção do contorno ferroviário de Curitiba (PR); [R$ 150 milhões]• construção do Anel Ferroviário (Ferroanel) de São Paulo – Tramo Norte (SP/RJ) [R$ 200 milhões];• construção do contorno ferroviário de São Félix, próximo a Salvador (BA) [R$ 40 milhões];• construção da ferrovia Transnordestina no trecho entre Petrolina (PE)–Missão Velho (CE) [R$ 364 milhões];• construção da ferrovia Transnordestina (Ramal do Gesso), entre Araripina e Salgueiro (PE) [R$ 346 milhões];• construção do trecho ferroviário Estreito-Balsas (MA); [R$ 480 milhões]• construção do trecho ferroviário Alto Taquari-Rondonópolis (MT) [R$ 400 milhões];• trem turístico do Pantanal (MS) [R$ 200 milhões].

obras rodoviárias: [R$ 7,251 bilhões]

• construção do Rodoanel de São Paulo – Trecho Sul (SP) [R$ 1,9 bilhões];• duplicação do trecho paulista da BR 116 – Rodovia Régis Bittencourt (SP) [R$ 970 milhões];• duplicação de trecho da BR 381 – São Paulo (SP) a Belo Horizonte (MG) [R$ 1,5 bilhões];• arco rodoviário na BR-493 – Porto de Sepetiba (RJ)-BR-040 [R$ 250 mi-lhões];• duplicação da BR 101 e entroncamento rodoviário com a BR 324 – divisa AL/SE [R$ 381 milhões];• duplicação da BR 101 – próximo a Natal (RN) – divisa Rio Grande do Norte com Paraíba [R$ 1,591 bilhões];• construção da BR 163 – rodovia entre Santa Helena (MT) e Santarém (PA), divisa MT/PA [R$ 623 milhões].

obras portuárias: [R$ 760 milhões]

• adequação do complexo viário do Porto de Santos (SP) [R$ 500 milhões];• melhorias na infraestrutura – Porto de Sepetiba (RJ) [R$ 100 milhões];

13 - Fontes: Ministério do Planejamento e reportagem PPP vai ajudar a infraestrutura. Mas demora, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, ed. de 11.07.2004, p. B3.

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• recuperação e ampliação do porto de Itaqui (MA) [R$ 160 milhões].

obras de irrigação: [R$ 2,668 bilhões]

• Jaíba (MG) [R$ 1,3 bilhões];• Salitre (BA) [R$ 362 milhões];• Baixio do Irecê (BA) [R$ 750 milhões];• Pontal (PE) [R$ 256 milhões]. Um dos autores do presente artigo comentou a Lei nº 11.079/04, sem se alongar em demasia, propositadamente, na conceituação dos institutos

correspondentes do Direito Administrativo e do Direito Constitu-cional, fazendo-o, é claro, mas apenas para estabelecer definições operacionais, referenciando a melhor bibliografia especializada. O objetivo é esclarecer seu alcance, para que advogados, adminis-tradores governamentais, empresários e juízes disponham de uma ferramenta doutrinária, a um só tempo conceitual e prática.

Algumas imperfeições devem ser apontadas no novo diploma le-gal, desde já dentre outras, formulamos as seguintes críticas: a) a lei é confusa em alguns dispositivos e redundante em outros, além de tratar da mesma matéria em artigos dispersos, em lugar de concentrá-los; b) a regulamentação dos FGPs em nível federal não foi acompanhada por normas equivalentes para os Estados, para o Distrito Federal e para os Municípios; c) o valor para o patrimônio dos FGPs é relativamente baixo, insuficiente para as necessidades do País; e d) não faz sentido a necessidade de aprovação, pelo Te-souro Nacional, de todos os projetos, inclusive os estaduais e mu-nicipais.

CONCLUSÕES

Ainda é bastante recente entre nós a lei que possibilita a forma de contra-tação por meio de parceria público-privada, daí ser prematuro chegar-se a conclusões definitivas sobre seu funcionamento; Provavelmente, após o kick-off dos projetos, a Lei nº 11.079/04 seja re-formulada, para torná-la instrumento legal mais eficaz para impulsionar o desenvolvimento econômico do Brasil, eliminando barreiras e entraves inúteis.

Ainda é bastante recente entre nós a lei que

possibilita a forma de contratação por

meio de parceria público-privada, daí

ser prematuro chegar-se a conclusões

definitivas sobre seu funcionamento.

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Ao examinar esse novo diploma legal, não nos parece o momento adequa-do para tecer considerações sobre o possível sucesso ou fracasso do mo-delo econômico ao qual confere sustentação jurídica, embora não deva ser perdida a oportunidade de lamentar os obstáculos criados pelo Partido dos Trabalhadores, enquanto oposição, para que fossem colocados em prática esses novos mecanismos.

Desperdiçaram-se cerca de 10 anos por conta da imaturidade política de um partido que não soube colocar seus próprios interesses de lado, em lu-gar de contribuir para o desenvolvimento da nação. Esta atitude não pode ser esquecida e a lição deve ser aprendida, de que a construção da socieda-de não deve depender do partido político que ocupa – sempre transitoria-mente – a posição de governo.

Como em toda ação humana, haverá acertos e erros.

Aprender rapidamente com os eventuais erros terá sido a maior virtude dos idealizadores, do legislador e dos executores do mecanismo das PPPs, em especial se o aprendizado se converter em correções de rota que, feitas de boa-fé – o que, diga-se, seria de esperar muito de qualquer governo – possam acelerar o desenvolvimento do Brasil.

O que nos preocupa, dentre outras características do projeto, além da sem-pre presente possibilidade de ensejar a corrupção – esse flagelo que aflige nossa sociedade há séculos – é a não-contabilização dos gastos com as PPPs na dívida pública. O aumento de despesas leva, invariavelmente, a um aumento de tributos – e essa é uma das poucas promessas de campa-nha não feitas durante a disputa, mas que todos os políticos, quando no poder... sempre cumprem.

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A ConstituiçãoBrasileiraUm interregno agitado entre dois autoritarismos

Fábio Konder Comparato

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FÁBIO KONDER COMPARATOé Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O direito e o avesso constitucional

Logo após a Revolução Francesa, o aristocrata Joseph de Maistre dizia que a França passara a dividir-se em dois países: o legal e o real. Para ele, as mudanças radicais operadas no regime político, a partir de 1789, confinavam-se à superfície das coisas. O país continuava monárquico, como sempre fora, e dividido nos três estamentos: o clero, a nobreza e o povo.

Pois bem, essa opinião de um dos mais retrógrados autores da época tem o seu ponto de verdade. Uma Constituição não é apenas, como pensaram os revolucionários norte-americanos e franceses do final do século XVIII, o documento solene que enuncia o sistema normativo supremo de organi-zação política de um país. Por trás dessa forma, ou, se se quiser, no lado do avesso, há uma outra realidade, igualmente normativa, mas que não goza da chancela oficial. Tal como a politeia dos filósofos gregos, trata-se de algo semelhante a uma Constituição não escrita, mas nem por isso menos vigente, formada pelos usos e costumes tradicionais, os valores predomi-nantes na sociedade e o complexo campo dos poderes privados.

Entre essas duas dimensões constitucionais, estabelece-se uma relação de recíproca influência. O direito positivo é tanto mais forte e eficaz, quanto menos oposição encontre do lado da mentalidade social, dos costumes políticos assentados e da urdidura dos poderes econômico-sociais, tecida na sociedade. Se ocorre o contrário, a Constituição oficial pode se transformar em mero ornamento jurídico.

No tocante aos costumes e valores políticos presentes historicamente na sociedade brasileira, um lugar de preeminência sempre foi ocupado pelo espírito de conciliação entre as forças opostas. Em toda a nossa história política, um mau acordo sempre foi tido como preferível a um claro rompimento.

A nossa Independência não resultou de uma insurreição dos brasileiros contra o rei de Portugal, mas da revolta dos portugueses contra a permanência do rei no Brasil. A journée des dupes do 7 de abril de 1831, como a denominou Teófilo Ottoni, com a abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho, não passou, no dizer acertado de Joaquim Nabuco, de “um desquite amigável entre o Imperador e a nação, entendendo-se por nação a minoria política que a representa”1. Durante todo o segundo reinado, os dois partidos existentes alternaram-se amigavelmente no governo,

1 - Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975, pág. 57.

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mas o ponto alto desse falso parlamentarismo foi, justamente, o gabinete dito de “conciliação”, que tomou posse em 6 de setembro de 1853, sob a chefia de Honório Hermeto Carneiro Leão. A proclamação da República nasceu de um “lamentável mal-entendido”, para tomarmos emprestada a expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda a respeito da experiência democrática entre nós:2 o Marechal Deodoro da Fonseca queria destituir o primeiro-ministro, o Visconde de Ouro Preto; não tencionava mudar o regime político. A Revolução de 1930 decidiu-se na batalha de Itararé, que nunca chegou a ser travada.

Ora, o período histórico que ora nos ocupa foi balizado por episódios do mesmo gênero conciliatório: ele se iniciou com a pacífica deposição do ditador Getúlio Vargas em outubro de 1945, e encerrou-se com a mal chamada “revolução” de 1964, que não passou de um golpe de Estado, perpetrado por meio de um lance estratégico de movimentação de tropas, sem combate algum.

Quanto ao sistema de poder em vigor entre nós, ele tem sido invariavelmente oligárquico. As Constituições, autênticas ou contrafeitas, se sucedem, contendo proclamações sempre harmônicas com os valores políticos predominantes no mundo civilizado do momento. Mas esse direito constitucional mal esconde o seu avesso: em menos de dois séculos de vida política independente, logramos constituir um liberalismo de senzala, uma república privatista e uma democracia sem povo. A minoria que manda é sempre composta do chefe de Estado – Imperador ou Presidente da República –, em associação com grupos variados: parlamentares, burocratas, militares, proprietários e empresários e, antigamente, a Igreja Católica. Só o povo fica de fora, mas é justamente dele que as Constituições, a partir de 1934, declaram, solenemente, que emanam todos os poderes.

Ambos esses fatores, os valores políticos em vigor e o sistema efetivo de poder, foram determinantes na elaboração da Constituição que iria encerrar o período da ditadura getulista.

O ocaso do Estado Novo

A partir de 1943, a Segunda Grande Guerra entra em sua fase final e principia, coincidentemente, o ocaso do Estado Novo, instaurado por Getúlio Vargas em outubro de 1937, com a revogação da Constituição de 1934 e a outorga ao país de uma carta constitucional de fachada.

2 - Raízes do Brasil, 5ª edição revista, Rio de Janeiro, José Olímpio, 1969, pág. 119.

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A democracia, nos anos que precederam o conflito bélico, foi considerada um regime político ultrapassado, incapaz de enfrentar os novos desafios do século XX, sobretudo no campo econômico-financeiro, com a depressão mundial iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929. Foi tão só com a perspectiva da iminente derrota das potências do “Eixo” – a Alemanha, a Itália e o Japão –, que o regime democrático, fundado na liberdade – política, econômica e cultural –, recobrou prestígio. Entre nós, após a Revolução de 1930, os únicos partidos atuantes, o comunista e o integralista, eram nitidamente antiliberais.

A União Soviética, que resistira bravamente à invasão nazista, conseguiu mudar o curso da guerra com a rendição do 6º Exército alemão em Stalingrado, no dia 2 de fevereiro de 1943. Com isso, o movimento comunista, no mundo todo, perdia, pelo menos durante algum tempo, a conotação de inimigo mortal da democracia. Tais acontecimentos forçaram Getúlio Vargas a alterar rapidamente a orientação política do Estado Novo, que nascera como um arremedo moderado do fascismo. Jamais chegou a se aproximar do totalitarismo, mas foi, indubitavelmente, um regime autoritário. Aliás, a distinção entre essas duas formas de Estado foi feita em doutrina, pela primeira vez, por um autor alemão radicado nos Estados Unidos, Karl Loewenstein, ao analisar no Brasil o funcionamento da ditadura getulista.3 Ele salientou que no Estado autoritário, não obstante a supressão da liberdade política, a vida privada conserva uma certa autonomia. No Estado totalitário, diversamente, desaparece a distinção entre a esfera pública e a privada: tudo é estatal.

No campo externo, pressionado pelos Estados Unidos, já em julho de 1941 Getúlio assina um pacto secreto com o governo ianque para a construção de bases aéreas e navais no extremo oriental do Nordeste brasileiro, como trampolim para o transporte de tropas e armamentos norte-americanos em território africano, onde já operava a Wehr-macht. Em compensação, o governo americano libera um empréstimo de 20 bilhões de dólares para a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Em agosto do ano seguinte, após o torpedeamento de 21 navios mercantes brasileiros que navegavam em nosso mar territorial, o governo declara o estado de beligerância e, logo após, a declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália. Um ano depois, em 9 de agosto de 1943, cria-se a Força Expedicionária Brasileira, que é finalmente enviada a combater na Itália em 1944.

3 - Brazil under Vargas, The MacMillan Company, Nova York, 1942.

O movimento comunista, no mundo todo, perdia, pelo

menos durante algum tempo,

a conotação de inimigo mortal da democracia.

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A influência norte-americana fez-se presente também no plano da política interna, envolvendo os militares. Em 1943, o General Manuel Rabelo cria a Sociedade Amigos da América, que contava com o apoio dos Generais Horta Barbosa e Candido Rondon. Em 1944, Oswaldo Aranha, desde há muito amigo dos americanos, desliga-se do Ministério das Relações Exteriores. Apesar de tudo, o ditador conseguiu adiar a mudança política interna até o início de 1945. Em 28 de fevereiro desse ano, ele tenta uma última cartada para manter em funcionamento o Estado Novo, e assina a Lei Constitucional nº 9. Ela altera fundamente a Carta de 1937 e determina que dentro de noventa dias sejam fixadas em lei “as datas das eleições para o segundo período presidencial e Governadores dos Estados, assim como das primeiras eleições para o Parlamento e as Assembleias Legislativas”. A expressão “segundo período presidencial” era bastante sutil. Ela pressupunha que o ditador exercia legitimamente, até então, a presidência da República, e ao mesmo tempo nada dispunha com respeito à sua eventual “reeleição”, uma vez terminado o “primeiro período presidencial”. Em 2 de abril 1945, pouco mais de um mês antes da rendição da Alemanha nazista, Getúlio preparou-se para enfrentar a nova distribuição de cartas do jogo político, aproximando-se dos comunistas. Atendendo ao apelo feito por um enviado do governo norte-americano após a Conferência de Ialta em fevereiro, foram estabelecidas relações diplomáticas com a União Soviética e decretou-se a anistia de todos os que haviam cometido crimes políticos desde julho de 1934. Com isso, Luiz Carlos Prestes pôde deixar a prisão, e passou a apoiar a permanência do ditador no poder. Enquanto isso, Getúlio fugia, como o diabo da cruz, de qualquer aproximação com os integralistas, herdeiros do fascismo. Os Estados Unidos, por intermédio do embaixador Adolph Berle Jr.4, voltaram a fazer pressão em favor da reconstitucionalização do país, o que acabou ocorrendo em maio com a edição do Decreto nº 7.586. Ele fixou as eleições do Presidente da República e dos membros da Assembleia Nacional Constituinte para o dia 2 de dezembro de 1945. Iniciou-se, então, em todo o país, a movimentação de comunistas e líderes sindicais em defesa da “Constituinte com Getúlio”; vale dizer, da eleição de Vargas para o “segundo período presidencial”.

4 - Tratava-se de reputado scholar, autor, juntamente com Gardiner Means, do ensaio clássico Modern Corporation and Private Property, em 1932.

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Dessa vez, porém, o grande feiticeiro não logrou paralisar seus adversários com hábeis passes de mágica. Em 29 de outubro, um grupo de generais, liderado por Góis Monteiro, congrega a maior parte das Forças Armadas e depõe Getúlio Vargas.

A Constituinte de 1946

Embora deposto da presidência da República, Getúlio conseguiu exercer uma influência decisiva sobre as eleições de 2 de dezembro

de 1945. Em primeiro lugar, apoiou abertamente a candidatura do seu ex-ministro da guerra, General Eurico Gaspar Dutra, que acabou sendo eleito Presidente da República. Em segundo lugar, criou dois dos três partidos que dominaram a cena política até 1964: um à direita, o Partido Social Democrático, e outro à esquerda, o Partido Trabalhista Brasileiro. O PSD era o partido dos antigos interventores nos Estados e reunia os latifundiários, bem como os empresários que presidiam as federações das indústrias em Estados importantes, como Roberto Simonsen em São Paulo, Euvaldo Lodi no Rio de Janeiro e Américo Giannetti em Minas Gerais. Já o PTB era o partido dos sindicatos operários, que sempre viveram atrelados ao Ministério do Trabalho. Ou seja, como disse ferinamente Carlos Lacerda, o grande líder antigetulista da época, enquanto o PSD criava a miséria, o PTB explorava as suas consequências. Aproveitando-se das disposições da lei eleitoral, que permitia candidaturas individuais em mais de um Estado, Getúlio Vargas foi eleito, na legenda do PSD, deputado federal por 7 Estados e

senador por São Paulo e Rio Grande do Sul. Optou pela cadeira de senador do Estado gaúcho. A oposição a Getúlio organizou-se sob a bandeira da União Democrática Nacional, que representou na origem uma frente ampla contra o Estado Novo, composta principalmente de intelectuais liberais e da esquerda, de advogados (os “leguleios em férias”, como os classificou Getúlio), de militares favoráveis à liderança mundial dos Estados Unidos, de banqueiros e alguns setores da classe média. Em pouco tempo, porém, os políticos da esquerda abandonaram o partido, que dentro em pouco passou a cortejar abertamente os chefes militares golpistas.5

5 - Veja-se, a esse respeito, a monografia ainda insuperada de Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o Udenismo – Ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945 – 1965), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

Embora deposto da presidência da República,

Getúlio conseguiu

exercer uma influência

decisiva sobre as eleições de 2 de dezembro de

1945.

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Apurados os votos, verificou-se a seguinte distribuição de bancadas partidárias na Assembleia Constituinte:

PSD – 54,0%; UDN – 26,0%; PTB – 7,5%; PCB – 4,7% 6

Diante dessa distribuição de cadeiras, seria de esperar-se que os dois grandes partidos getulistas se unissem, dispensando qualquer negociação com a UDN. Não foi isto, porém, o que ocorreu durante os trabalhos constituintes: os parlamentares conservadores, tanto do PSD, quanto da UDN, passaram a atuar sem grandes divergências entre si, e a minoria da esquerda ficou reduzida à impotência. Reproduzia-se, assim, mais uma vez, a política de conciliação entre conservadores e liberais, a qual dominou todo o nosso segundo reinado. Essa inesperada harmonia entre adversários políticos prosseguiu, uma vez encerrados os trabalhos constituintes, durante todo o governo do General Dutra, com a presença de dois udenistas, Raul Fernandes e Clemente Mariani, na chefia, respectivamente, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Agricultura e Saúde. Duas grandes discussões dominaram os trabalhos constituintes, iniciados em 31 de janeiro de 1946: a liberdade de funcionamento dos partidos políticos e a autonomia dos sindicatos.7 Sobre ambas, pairava o espectro comunista. É verdade que o mundo já havia entrado, então, no período da chamada Guerra Fria, que opunha os Estados Unidos e seus aliados à União Soviética e seus satélites. O Código Eleitoral de 1945 dispunha, em seu art. 114, que o Tribunal Superior Eleitoral poderia negar registro a qualquer partido cujo programa fosse contrário aos princípios democráticos ou aos direitos fundamentais do homem, como definidos na Constituição. O Partido Comunista Brasileiro havia obtido o seu registro em maio de 1945. Mas já em março do ano seguinte, portanto com os trabalhos constituintes apenas iniciados, dois deputados8 ajuizaram uma ação de cassação desse registro partidário na Justiça Eleitoral. A ação foi julgada procedente, por acórdão do Tribunal Superior Eleitoral de 7 de maio de 1947, com base no disposto no art. 141, § 13 da Constituição de 1946: “É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem”.

6 - O Partido Comunista Brasileiro elegeu 15 deputados e um senador (Luiz Carlos Prestes), para grande temor dos conservadores.7 - Sobre o assunto, consultar-se-á com proveito a monografia de João Almino, Os Democratas Autoritários – Liberdades individuais, de associação política e sindical na constituinte de 1946, São Paulo, Brasiliense, 1980.8 - Tratava-se de Barreto Pinto e de Himalaia Virgulino. O primeiro perdeu o mandato, pouco tempo depois, por procedimento declarado incompatível com o decoro parlamentar: havia posado de cuecas para uma revista semanal de grande circulação. O segundo foi procurador junto ao infame Tribunal de Segurança Nacional, instituído por Getúlio Vargas após a frustrada revolta comunista de 1935.

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Era a primeira vez que uma Constituição brasileira adotava disposição dessa ordem e, o que foi pior, no capítulo consagrado aos direitos e garantias individuais. Nem mesmo a Carta fascistoide de 1937 chegara a tanto. A segunda questão a suscitar grandes debates, durante os trabalhos de elaboração da Constituição de 1946, foi a da autonomia sindical. A ela ligou-se, indissociavelmente, o reconhecimento da greve como um direito

fundamental dos trabalhadores. O início dos trabalhos constituintes coincidiu com o aumento substancial do número de greves e o notável incremento da sindicalização de trabalhadores. Em janeiro e fevereiro de 1946, registraram-se em todo o país mais de 60 movimentos paredistas, e no dia 20 de fevereiro, só em São Paulo, havia cerca de 100.000 operários em greve. O aumento no número de trabalhadores sindicalizados cresceu substancialmente, passando de um total de 474.943 em 1945, para 797.691 em 1946. O governo Dutra não esperou a conclusão dos trabalhos constituintes para intervir no campo das relações de trabalho. Aproveitando-se do fato de continuar em vigor a Constituição de 1937, o Presidente da República editou, em 15 de março de 1946, o decreto-lei nº 9.070, que dispôs “sobre a suspensão ou abandono coletivo no trabalho”, estabelecendo, a esse respeito, a distinção entre atividades profissionais fundamentais e acessórias. Na categoria das primeiras, onde a greve era proibida, o decreto-lei incluiu as seguintes atividades profissionais: “serviços de água, energia, fontes de energia, iluminação, gás, esgotos, comunicações, transportes, carga e descarga; nos estabelecimentos de venda de utilidade ou gêneros essenciais à vida das populações; nos matadouros, na lavoura e na pecuária; nos colégios, escolas, bancos, farmácias, drogarias, hospitais e serviços funerários, nas indústrias básicas ou essenciais à defesa nacional”.

Como se isso não bastasse, o decreto-lei determinou que o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio teria o poder de, mediante simples portaria, incluir outras atividades entre as consideradas fundamentais (art. 3º, § 1º). A Constituinte deparou-se, assim, com o fato consumado: a greve deixava, praticamente, de existir como remédio legal. Os debates parlamentares foram, desde então, meramente retóricos. Enquanto os deputados do PSD

Em janeiro e fevereiro

de 1946, registraram-se

em todo o país mais de 60

movimentos paredistas, e no dia 20 de

fevereiro, só em São Paulo, havia cerca de 100.000

operários em greve.

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diziam preferir que as restrições ao direito de greve fossem expressamente incluídas na Constituição, os comunistas não admitiam restrição alguma. Quanto aos udenistas, malgrado ou em razão mesma de seu decantado liberalismo, encontravam-se muito divididos.

Prevaleceu, afinal, a emenda proposta pelo Professor Hermes Lima, paradoxalmente originário da Esquerda Democrática: “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará”. A fórmula foi desde logo aceita com alívio pelos conservadores, pois a lei já existia: era o decreto-lei nº 9.070, que ninguém mais pensou em revogar. O mesmo quiproquó repetiu-se em matéria de liberdade sindical. A proposta apresentada ao plenário pela Comissão encarregada de elaborar o projeto de Constituição afirmava o princípio da liberdade sindical, atribuindo à lei competência para regular “a forma de constituição, a representação legal nos contratos coletivos de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público.” Os deputados comunistas imediatamente propuseram que o artigo se limitasse a declarar a liberdade de associação profissional ou sindical. Essa posição contou com o apoio da UDN, cujos deputados queriam, a todo custo, desvincular os sindicatos do governo e desfazer, portanto, nesse particular, o modelo fascista adotado por Getúlio Vargas. Após acalorados debates, as forças getulistas do PSD e do PTB acabaram por se impor, sendo finalmente aprovado o art. 159, com redação idêntica à da proposta inicial da Comissão elaboradora do projeto de Constituição. Os sindicatos brasileiros continuariam, pois, controlados pelo governo federal.

A Constituição posta à prova dos fatos

O balanço final da Constituição, em seus quase 18 anos de vigência, mostra, lamentavelmente, que o avesso prevaleceu sobre o direito. Os grandes pontos negativos da organização constitucional foram a inaptidão do Estado a promover o desenvolvimento nacional, a persistência de um sistema agrário retrógrado e a constante insubordinação das forças militares aos poderes constituídos. Vejamos, mais de espaço, cada um desses pontos.

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1 - Os empecilhos institucionais à promoção do desenvolvimento nacional Na data em que a Constituição entrou em vigor, 18 de setembro de 1946, começava a firmar-se, no mundo todo, a distinção doutrinária entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, em função da existência, ou não, de um processo harmônico de crescimento autônomo e de redução das desigualdades sociais e regionais. Entendia-se, naquela época, que competia ao Estado nacional dirigir esse processo, o que exigia uma adequada organização dos poderes públicos. O modelo do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), já posto em prática nos países escandinavos, principiava a ganhar adeptos em toda a Europa Ocidental.

A nova Constituição brasileira, porém, nada inovou a respeito das funções estatais, relativamente à de 1934; esta inspirada, principalmente, no modelo de Weimar de 1919, no tocante aos direitos sociais. Ora, o respeito a estes últimos, ao contrário do que sucede em matéria de liberdades fundamentais, pressupõe a ação e não a abstenção estatal. A organização dos poderes públicos prendia-se – e até hoje se prende, aliás – ao esquema clássico tripartido de Locke e Montesquieu, próprio de um Estado estático, separado da sociedade civil, e cuja principal função era a edição de leis. A noção dinâmica de políticas públicas, como programas de ação governamental, sempre esteve ausente dessa concepção teórica. No mundo contemporâneo, a consequência inevitável da inadequação estrutural do Estado à realização de políticas públicas foi, em todos os países, a concentração de

competências funcionais, regulares ou irregulares, no mal chamado Poder Executivo, em evidente contradição com o princípio da separação de poderes, fundamento da teoria clássica de organização do Estado. Até hoje, ainda não logramos estruturar os poderes públicos em função do desenvolvimento nacional, com a criação de um órgão de previsão e planejamento, autônomo em relação ao Poder Executivo, e que atue no longo prazo, não sujeito às periódicas mudanças eleitorais, mas contando com a participação efetiva dos setores diretamente interessados da sociedade civil: trabalhadores, empresários, pesquisadores, grupos sociais vulneráveis.

No momento em que a Constituição

foi elaborada, não haviam ainda

penetrado no meio dirigente brasileiro

as noções de desenvolvimento e

subdesenvolvimento.

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Ora, no momento em que a Constituição foi elaborada, não haviam ainda penetrado no meio dirigente brasileiro as noções de desenvolvimento e subdesenvolvimento.

O governo Dutra manteve-se, a esse respeito, fiel aos cânones da economia política clássica, depositando toda a sua confiança na livre iniciativa e na colaboração do capital estrangeiro.

Ao voltar legitimamente à presidência da República pela via eleitoral, em 1951, Getúlio Vargas pôs fim à orientação liberal privatista do seu antecessor. Logo após a posse, foi criada, junto à Secretaria da Presidência, uma Assessoria Econômica, composta de competentes administradores públicos de orientação nacionalista. Esse órgão exerceu, na prática, as funções de planejamento, dando especial atenção à política de investimentos na infraestrutura do país. Da Assessoria Econômica presidencial saíram, entre outros, os projetos de criação da Petrobras, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, do Fundo Rodoviário Nacional e da Eletrobras.

O projeto de criação da Petrobras, enviado ao Congresso Nacional em 6 de dezembro de 1951, foi afinal transformado em lei quase dois anos depois (Lei nº 2.004, de 3 de outubro de 1953). O novo diploma legal, vencendo duras resistências no país e no exterior, instituiu o monopólio estatal do petróleo.

A segunda grande tentativa para pôr em ação um programa de desenvolvimento nacional, malgrado os entraves constitucionais na organização de poderes públicos, ocorreu com a presidência de Juscelino Kubitschek. No quinquênio 1956 – 1961, o governo federal adotou, enfim, a prática do planejamento de políticas públicas para a consecução de resultados predeterminados. Foi o Programa de Metas. Escolheram-se trinta e uma metas, classificadas em 6 grandes grupos: energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e, finalmente, construção de Brasília.9

O cérebro de toda essa política de previsão e planejamento foi Celso Furtado. Ele participou do Grupo Misto de Estudos BNDE–CEPAL, que deu a público, em 1955 e 1956, o Esboço de um programa de desenvolvimento para a economia brasileira: período de 1955–1962.

Celso Furtado foi também, como todos sabem, o inspirador da criação da

9 - Sobre o assunto, vejam-se Celso Lafer, JK e o Programa de Metas – Processo de planejamento e sistema político no Brasil, 1956-1961, bem como a monografia de Maria Victoria de Mesquita Benevides, O Governo Kubitschek – Desenvolvimento econômico e estabilidade política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, pp. 210 e ss.

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Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, no final do governo Kubitschek (Lei nº 3.692, de 13 de dezembro de 1959). Sem dúvida, os constituintes de 1946 manifestaram preocupação com o problema da seca do Nordeste e com a valorização da região amazônica. Decidiram, a esse respeito, incluir na Constituição disposições específicas de vinculação da renda tributária da União (arts. 198 e 199). Mas, como a experiência tem amplamente demonstrado, a obtenção de recursos financeiros, desligada de uma ação planejadora, nada resolve.

A criação da SUDENE representou a primeira experiência positiva de reformulação do federalismo brasileiro. Tal como o New Deal do Presidente Roosevelt nos Estados Unidos, durante a grande crise mundial iniciada em 1929, passou-se de uma organização federal estática a um federalismo cooperativo e desenvolvimentista. Por isso mesmo, a criação de um órgão de desenvolvimento para a região nordestina ampliada teve que enfrentar duras resistências do meio político local, acostumado a recusar toda interferência externa em suas bases eleitorais próprias. No caso, essa interferência apresentava, ainda, a agravante de ser feita pelo governo federal, pois a Sudene era vinculada à presidência da República.

Outro problema não resolvido, durante todo o período de vigência da Constituição de 1946, foi o do controle monetário e cambial. Os surtos de inflação foram frequentes, e a disponibilidade de moeda estrangeira para pagamento das importações, muito restrita. As

unidades componentes da federação, a começar pela própria União, não se submetiam a nenhuma disciplina fiscal. Demais, o país não tinha Banco Central, sendo a política de moeda e de crédito desempenhada por um departamento do Banco do Brasil, a SUMOC – Superintendência da Moeda e do Crédito, obviamente sujeito às injunções governamentais.

2 - A questão agrária Não é exagero afirmar que a política agrária, isto é, o sistema oficial de atribuição de direitos reais sobre terras agrícolas, foi o principal fator de organização da sociedade brasileira, até meados do século passado. Em razão dele, com efeito, desenvolveu-se quase toda a nossa vida política e econômica, e moldaram-se as classes sociais.

Como a experiência tem

amplamente demonstrado,

a obtenção de recursos financeiros,

desligada de uma ação planejadora,

nada resolve.

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A Constituição de 1946, em seu art. 156, limitou-se a reproduzir, com duas alterações, as normas inovadoras da Constituição de 1934 sobre o mundo rural. Uma dessas alterações foi a admissão expressa de que as terras públicas seriam suscetíveis de alienação e não apenas de concessão de uso. A outra consistiu em ampliar, de dez para vinte e cinco hectares, a área rural objeto de usucapião excepcional.

Mas no tocante especificamente à reforma agrária como política global de repartição de terras, a Constituição continha uma disposição genérica, sem nenhuma força cogente e, pior ainda, inaplicável:

Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.

O art. 141, § 16, aí citado, tornava impraticável qualquer plano de reforma agrária, pois exigia fosse paga, nas desapropriações, “prévia e justa indenização em dinheiro”. A exigência de pagamento de indenização em dinheiro resultou de emenda ao texto do projeto original da Constituição, em reação contra as expropriações de imóveis urbanos, efetuadas no Rio de Janeiro para a abertura da Avenida Getúlio Vargas, cuja indenização se efetuou em apólices da dívida pública.

Como se percebe, os constituintes jamais tiveram em mira a necessidade de uma reforma agrária. Ora, essa omissão foi um dos focos infecciosos que levaram o país à supressão do regime constitucional em 1964.

O movimento de organização dos trabalhadores rurais no país inicia-se em 1950, com a realização em Campanha (MG), por iniciativa da Ação Católica Brasileira, da Primeira Semana Ruralista. O movimento prossegue, no Nordeste, com a criação, em 1º de janeiro de 1955, em Vitória de Santo Antão (PE), da Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco, embrião das futuras Ligas Camponesas, dirigidas pelo advogado Francisco Julião Arruda de Paula.

A reação dos grandes proprietários rurais foi imediata e intensificou-se sobremaneira com a investidura de João Goulart na presidência da República. Com efeito, a reforma agrária foi a principal das Reformas de Base,

Não é exagero afirmar que a

política agrária, isto é, o sistema

oficial de atribuição de direitos reais sobre terras

agrícolas, foi o principal fator

de organização da sociedade brasileira, até

meados do século passado.

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apresentadas pelo Presidente como seu programa de governo, uma vez encerrada a fase parlamentarista. Na intensa campanha ideológica desenvolvida, então, pelos latifundiários e empresários em preparação ao golpe de estado de 1964, tais reformas sempre foram apresentadas como um programa de “comunistização” do país.

O paradoxo é que uma das primeiras emendas constitucionais editadas pelo regime militar à Constituição de 1946 visou justamente possibilitar a reforma agrária (Emenda Constitucional nº 10, de 9 de novembro de 1964).

Ela acrescentou ao art. 147 os seguintes parágrafos:

§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinquenta por cento do Imposto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas.

§ 2º A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões, bem como sobre as características dos títulos, a taxa de juros, o prazo e as condições de resgate.

§ 3º A desapropriação de que trata o § 1º é da competência exclusiva da União e limitar-se-á às áreas incluídas nas zonas prioritárias, fixadas em decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais cuja forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme for definido em lei.

§ 4º A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de lati-fúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias e úteis, que serão sempre pagas em dinheiro.

§ 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será de competência de órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal.

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§ 6º Nos casos de desapropriação, na forma do § 1º deste artigo, os pro-prietários ficarão isentos dos impostos federais, estaduais e municipais que incidam sobre a transferência da propriedade desapropriada.”

Em 30 de novembro daquele mesmo ano de 1964, o governo militar fez com que o Congresso Nacional votasse a Lei nº 4.504, mais conhecida como Estatuto da Terra, que permanece em vigor até hoje, embora com várias ab-rogações.

3 - O descontrole do poder militar

Tirante o Governo Dutra, todos os que o sucederam foram abalados por múltiplas rebeliões militares, amplas ou localizadas. Se não, vejamos.

Em fevereiro de 1954, o chamado “manifesto dos coronéis”, reivindicando uma ampliação dos recursos orçamentarios destinados ao Exército e protestando contra o aumento do salário-mínimo em 100%, forçou Getúlio Vargas a exonerar João Goulart, Ministro do Trabalho, e o General Ciro Espírito Santo Cardoso, Ministro da Guerra.

Na madrugada do dia 5 de agosto, em frente à sua residência, Carlos Lacerda sofreu um atentado, que o feriu e matou o Major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, encarregado de sua guarda pessoal. Imediatamente, os oficiais mais graduados daquela Arma reuniram-se em comissão de inquérito no aeroporto do Galeão (a chamada “República do Galeão”), e poucos dias depois obtiveram a confissão de membros da guarda pessoal do Presidente Getúlio Vargas de que o atentado fora por eles planejado e executado. A partir de então, os oficiais superiores do Exército e da Marinha manifestaram-se solidários com a Aeronáutica e passaram a exigir a renúncia de Getúlio. Buscou-se, sem êxito, até o dia 23 uma fórmula de conciliação. No dia seguinte, pela manhã, recebendo do irmão, Benjamin Vargas, a informação de que o oficialato das três Armas exigia sua renúncia imediata da presidência da República, Getúlio suicidou-se, provocando em todo o país, desde logo, a revolta popular.

Em 11 de novembro de 1955, o então Ministro da Guerra, General Henrique Teixeira Lott, decidiu prevenir um golpe de estado em preparação para impedir a posse do Presidente da República regularmente eleito, Juscelino Kubitschek de Oliveira. O Presidente em exercício, Carlos Luz, foi deposto e o Vice-Presidente Café Filho, que sucedera Getúlio e se afastara da presidência por razões de saúde, impedido de voltar ao poder.

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Em 1956 e 1959, oficiais da Aeronáutica declararam-se em estado de insurreição contra o Presidente Kubitschek, em Jacareacanga e Aragarças, respectivamente.

Após a renúncia do Presidente Janio Quadros em 25 de agosto de 1961, os ministros militares, Marechal Odílio Denis, Almirante Sílvio Heck e Brigadeiro Gabriel Grün Moss, declararam-se contrários à posse do Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava ausente do país em viagem oficial. Imediatamente, o Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, levantou-se contra os militares, obtendo o apoio do comando do III Exército, sediado em Porto Alegre.

O confronto acabou sendo resolvido por meio de uma transação conciliatória: os ministros militares aceitaram a investidura de João Goulart como Presidente da República, contanto que se adotasse o sistema parlamentar de governo; o que foi feito pelo Congresso Nacional ao votar a emenda constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961. Dita emenda previa, em seu art. 25, que a lei “poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”. Realizado o plebiscito, uma ampla maioria optou pelo retorno ao sistema presidencial de governo. O Congresso Nacional, dando cumprimento à vontade popular, aprovou a emenda constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963.

Em 12 setembro de 1963, centenas de sargentos, fuzileiros e soldados da Aeronáutica e da Marinha de Guerra sublevaram-se em Brasília, ocupando na madrugada importantes centros administrativos. O

motivo do levante foi a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, confirmando a inelegibilidade das pessoas enumeradas no art. 132, parágrafo único da Constituição (praças de pré, suboficiais, subtenentes, sargentos e alunos das escolas militares de ensino superior).

Finalmente, o vitorioso golpe de estado de 31 de março e 1º de abril de 1964 pôs fim ao regime constitucional instaurado em 1946.

Que concluir de tais fatos? A conclusão se encontra inscrita na máxima exarada por Montesquieu, no capítulo IV do Livro XI do Espírito das Leis: « pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir ». Entenda-se: não é o direito que

O vitorioso golpe de estado de 31 de março e 1º de abril de

1964 pôs fim ao regime

constitucional instaurado em

1946.

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detém o poder, mas somente um contrapoder. É indispensável, portanto, que pela própria disposição dos diferentes poderes no tabuleiro político eles estejam contrapostos uns aos outros.

É aí que se vê, com a maior clareza, a insuficiência da análise positivista de uma Constituição. É muito fácil comentar textos normativos in abstracto. Basta manter um mínimo de coerência e a correta interpretação técnica do sentido dos vocábulos. Mas não é por esse método que se chega, minimamente, a compreender (cum prehendere) o direito vivo.

Dir-se-á que a disposição constitucional de poderes e contrapoderes não é tarefa jurídica e sim política. Ora, como se a política nada tivesse a ver com o direito e vice-versa! Como se uma Constituição atuasse no vácuo! Desde o início desta exposição, advertiu-se que, tal uma indumentária, toda Constituição tem um direito e um avesso; ou, em outras palavras, uma substância e uma forma. Contentar-se em analisar unicamente esta última é o mesmo que verificar a adequação de uma vestimenta a um manequim.

Toda relação de poder contém um elemento material e outro espiritual ou axiológico; um elemento de força e outro de justiça. O poder murcha ou se esvazia, rapidamente, quando um desses dois elementos desaparece.

Os gregos sempre foram bem conscientes da necessidade de não separar a justiça da força. A mitologia personificou essas duas ideias em deuses irmãos: Kratos e Bia. Foi a eles que Zeus confiou a missão de punir Prometeu de sua rebeldia culpável.10 Themis, a deusa da justiça, tem sido, desde a antiguidade, representada sob a figura de uma mulher que porta numa mão a balança e noutra a espada.

“A justiça sem a força”, lembrou Pascal, “é impotente; a força sem a justiça, tirânica. A justiça sem a força é contradita, porque há sempre pessoas más; a força sem a justiça é acusada. É mister, portanto, juntar a justiça à força e, para tanto, fazer com que o justo seja forte, ou o forte seja justo”. Ou, como assinala Camões:11

Quem faz injúria vil e sem razão,Com forças e poder em que está posto,Não vence, que a vitória verdadeiraÉ saber ter justiça nua e inteira.12

10 - Veja-se a tragédia Prometeu Acorrentado de Ésquilo, versículo 13.11 - Pensées, ed. Brunschvicg, nº 298.12 - Os Lusíadas, canto X, estrofe LVIII.

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De sua parte, Max Weber, ao distinguir a força (Macht) do senhorio (Herrschaft), salientou que o titular deste último jamais pode satisfazer-se com o fato puro e simples da obediência de seus subordinados. Ele procura sempre, de uma forma ou de outra, obter a confiança dos subordinados.13

Analogamente, o controle do poder faz-se de modo objetivo e subjetivo. Pode-se evitar o abuso de poder pela distinção de competências, como preconizaram Locke e Montesquieu, ou pela separação física de forças ou recursos materiais.

Este último modo de controle do poder é o mais apropriado no campo militar. Durante a nossa Velha República, o governo federal só não conseguiu intervir nos três Estados que dispunham de uma força militar respeitável, capaz de se opor ao Exército nacional: São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Como lembrado acima, o golpe de estado ensaiado pelos três ministros militares, em 1961, só não teve êxito, porque o III Exército, no Rio Grande do Sul, recusou-se a aderir.

Sob o aspecto subjetivo, a existência de uma justificativa social, representada pela aceitação majoritária do poder pelo povo, está na base da moderna teoria da legitimidade. Cada regime político tem a sua própria justificativa ética ou razão de ser; ou, como preferiu dizer Montesquieu, um princípio que anima a sua natureza. Esse princípio, para o grande pensador francês, seria, na república ou na democracia, a virtude, entendida como “amor da pátria, isto é, amor da igualdade”14; na monarquia, a moderação ou a honra; no regime despótico, o medo.15

Seja como for, bem se vê, nessa classificação um tanto formalista de Montesquieu, que nenhum regime político funciona sem que o povo respeite os governantes. Se esse respeito, nos regimes despóticos, é fundado no temor da repressão, nos demais regimes ele é todo feito de confiança.

Aí está o grande fator de equilíbrio na organização política, como já havia salientado Confúcio, muitos séculos antes:

Zigong: Em que consiste governar?O Mestre: Em cuidar para que o povo tenha víveres suficientes, armas bastantes e para que ele confie nos governantes.Zigong: E se fosse necessário dispensar uma dessas três coisas, qual seria ela?O Mestre: As armas.

13 - “Keine Herrsachaft begnügt sich, nach aller Erfahrung, freiwillig mit den nur materiellen oder nur affektuellen oder nur wertrationalen Motiven als Chance ihres Fortbestandes. Jede sucht der Art der beanspruchten Legitimität zu erwecken und zu pflegen” (Wirtschaft und Gesellsachaft, 5ª ed. revista, Tübingen, J.C.Mohr, 1985, pág. 122).14 - Foi esta a explicação dada por Montesquieu, na Advertência preliminar que fez publicar após as primeiras edições do Espírito das Leis, aos que o acusaram de negar a existência de virtude no regime monárquico.15 - De l’Esprit des Lois, Livro III.

Toda relação de poder

contém um elemento

material e outro espiritual ou

axiológico; um elemento de força e outro

de justiça.

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Zigong: E das duas outras, qual seria dispensável?O Mestre: Os víveres. Desde sempre, os homens são sujeitos à morte. Mas sem a confiança do povo, não há ordem política que subsista.16

É exatamente por isso, que os regimes fundados preponderantemente na força são todos, apesar das aparências, fracos. E é também por isso, que as classes dominantes, hoje, tomaram consciência de que um dos pressupostos indispensáveis à permanência no poder, numa sociedade de massas, é o controle dos meios de comunicação de massa; pois são eles que logram forjar, em grande parte, aquele elemento essencialmente mutável, que denominamos opinião pública. Ora, o que se viu, durante todo o regime constitucional instaurado em 1946, foi, de um lado, a inexistência de uma soberania popular efetiva, dotada de instrumentos jurídicos de controle da ação dos governantes. Ao povo, só coube votar em candidatos escolhidos previamente pelos partidos, sem poder destituí-los em caso de perda de confiança (recall) e sem o direito de impor sua vontade aos governantes por meio de plebiscitos e referendos. O recurso ao povo, mediante a consulta plebiscitária de janeiro de 1963, foi uma exceção à regra do mando oligárquico, possibilitada unicamente pelo fato de sua divisão interna.

De outro lado, tivemos – e continuamos tendo – manifestações de confiança popular, não no regime político, mas tão só em governantes determinados: naquela época, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Deparamo-nos aí, mais uma vez, com dois traços salientes de nossa mentalidade coletiva, em todos os tempos: a cultura da personalidade, isto é, o apego a pessoas e não a instituições ou protocolos, e o espírito cordial, ou seja, uma orientação de vida norteada pelos sentimentos e não pela fria razão.17 Para a massa do povo, bom governante é aquele com quem se pode manter relações, reais ou falsas, de aproximação e quase intimidade; não é o administrador racional e distante. O povo tinha manifesta empatia com Gegê, o Pai dos Pobres, e com JK, o otimista construtor de Brasília. Não tinha empatia alguma com os chefes militares e os políticos conservadores. À época, as massas populares permaneceram impermeáveis às ideologias políticas, as quais, ao contrário, continuaram a encantar os intelectuais, sobretudo quando expressas em formas fixas e leis genéricas, que dispensam todo esforço de raciocínio e compreensão da realidade, necessariamente complexa e cambiante. Foi o que sucedeu com o

16 - Entretiens de Confucius, livro XII, 7, tradução do chinês, introdução e notas de Anne Cheng, Éditions du Seuil, Paris, 1981, pág. 97.17 - Cf. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., capítulos I. e V.

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positivismo e o marxismo, entre nós. Ao contrário, o integralismo, mais adstrito a símbolos e manifestações teatrais, no estilo tradicional das procissões religiosas, e fundado na veneração de um líder máximo, alter ego de um cacique tribal, não deixou de atrair multidões, mais fascinadas do que convencidas; e, por isso, feneceu rapidamente, com a derrota do fascismo no qual se inspirara.

Dir-se-á, no entanto, que os líderes do movimento de 1964 arregimentaram militares, religiosos, empresários e latifundiários com muita propaganda ideológica, à qual os militantes da esquerda responderam com ideologias contrárias. É verdade, mas aqueles defendiam seus privilégios e propriedades, enquanto estes acabaram, em grande parte, por sacrificar o seu futuro, quando não a própria vida. O resultado é que a massa do povo assistiu naquele momento, sem compreender, ao confronto de ideias, parecendo perguntar como o burro da fábula: Não terei a vida toda de carregar a albarda? Em suma, por força do pronunciado descompasso entre a nossa vida política e o texto formal da Constituição de 1946, os seus preceitos vigoraram despidos de efetividade, sobretudo no terreno profundamente minado das relações entre o poder civil e a força militar. Lições para o tempo presente

Das três questões fundamentais que puseram em xeque o regime constitucional de 1946, duas delas – a inaptidão do Estado a promover o desenvolvimento nacional e a ausência de reforma agrária – permanecem irresolvidas e continuam a ensombrecer o futuro do país na vigência da Constituição de 1988. A organização das funções e poderes estatais permanece alheia às exigências modernas de previsão e planejamento na elaboração e

condução das políticas públicas. O Poder Executivo continua hegemônico e concentrador de atribuições, mas desenvolve suas atividades no curto prazo do mandato de seu chefe, em busca de resultados fáceis e vistosos, que garantam a vitória nas próximas eleições. Essa tendência, que é uma constante de nossa vida política, ganha força atualmente com o predomínio do capitalismo financeiro, fundado na rápida circulação de riquezas, com a superposição de títulos especulativos, cuja vinculação aos valores materiais

Continuamos à espera da

criação de um órgão estatal de planejamento,

que seja autônomo

em relação ao Poder Executivo

e trabalhe no longo prazo, com

a participação efetiva dos

setores diretamente

interessados da sociedade civil.

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de origem torna-se cada vez mais remota. Continuamos à espera da criação de um órgão estatal de planejamento, que seja autônomo em relação ao Poder Executivo e trabalhe no longo prazo, com a participação efetiva dos setores diretamente interessados da sociedade civil. A política de injusta distribuição da renda nacional continua a aprofundar a desigualdade. Ao contrário do que sucedeu durante o período de vigência da Constituição de 1946, o Banco Central tornou-se autônomo em relação à presidência da República, ainda que essa autonomia não tenha sido inscrita no texto constitucional. Além disso, o Congresso Nacional aprovou, em 2000, a Lei Complementar nº 101, que instituiu regras precisas de responsabilidade fiscal em todas as unidades da federação.

Mas o reverso dessa moeda é negativo. Durante os últimos governos, a política de moeda e de crédito deixou de ser instrumental, para tornar-se uma verdadeira finalidade pública, à qual devem submeter-se todas as demais políticas. Demais, o endividamento público passou a substituir largamente a arrecadação de recursos financeiros por meio de impostos. O serviço da dívida pública – pagamento de juros e amortização do capital – atingiu proporções gigantescas: cerca de 7% do PIB. Para se ter uma ideia aproximada do que isso significa em termos de repartição da riqueza nacional, é preciso considerar que, nos últimos exercícios financeiros, as parcelas pagas aos portadores de títulos públicos de dívida têm representado o quádruplo das despesas totais com o custeio do SUS – Sistema Único de Saúde, e mais de treze vezes o gasto anual com o Bolsa Família, durante o governo Lula. Quanto ao Poder Legislativo, ele tende a representar cada vez menos o povo no seu conjunto. Em primeiro lugar, porque desde a Constituição de 1891 dividimos o povo em unidades federadas, profundamente desiguais em densidade demográfica e situação socioeconômica. Em segundo lugar, porque o corpo de representantes do povo continua dominado majoritariamente, em razão do nosso defeituoso sistema eleitoral, por parlamentares ligados às oligarquias locais, ou sustentados na vida pública pelo poder econômico privado. Em suma, a relação de confiança política continua, até hoje, a ser pessoal e não institucional. Ela pode ser incrementada com um programa de assistência social inteligente e eficaz, como sucedeu nos dois mandatos do Presidente Lula. Mas esta não é, por certo, uma garantia do desenvolvimento nacional, exigida pela Constituição de 1988 (art. 3º, II). É muito mais fácil e

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produz melhores resultados eleitorais distribuir uma média de R$100,00 por mês a cada família pobre o país, do que abrir postos de emprego formal para os mais de dois milhões de jovens que entram, todos os anos, no mercado de trabalho.

No tocante à reforma agrária, muito embora a Constituição em vigor a tenha tornado impositiva, esse dever fundamental do Estado tem sido

mediocremente cumprido nos últimos vinte anos. A principal razão para esse resultado insatisfatório é, ainda uma vez, o atrelamento das políticas públicas exclusivamente ao governo, que exerce poderes discricionários na execução do orçamento e atua sempre no curto prazo, sem previsão nem planejamento adequados. O resultado é que, nos últimos anos, tem crescido a prática da escravidão agrícola, bem como o desalojamento de famílias de lavradores. Além disso, tem aumentado vertiginosamente a área total de terras adquiridas por estrangeiros, e vêm se multiplicando os conflitos oriundos da apropriação irregular de terras habitadas por indígenas. Isto, sem falar no fato de que a questão agrária, hoje, já não se confina à necessidade de uma justa redistribuição da terra agrícola, mas vincula-se, sempre mais, ao dever fundamental do Estado de preservar o meio ambiente, impedindo os desmatamentos criminosos. Ora, para surpresa geral, a questão das relações entre o poder civil e as forças militares, que ocupou a maior parte da cena política no período compreendido entre 1946 e 1964, volta à ordem do

dia. Até há pouco, tinha-se a impressão de que se tratava de um problema superado com o advento da Constituição de 1988. Foi só com o atual debate sobre o alcance da lei de anistia de 1979, que se percebeu ter o conflito permanecido em estado latente, pronto a ressurgir a qualquer momento. Esquecemo-nos de que a lei de anistia foi negociada pelos últimos governos militares com o Congresso Nacional, como condição para se permitir a reconstitucionalização do país. Para o estamento militar, deixar de considerar anistiados os companheiros de farda que reprimiram criminosamente os opositores políticos, durante o regime castrense, seria quebrar os termos da negociação efetuada sob os governos de Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. Saberemos vencer essa resistência, de modo a cumprir integralmente os deveres fundamentais decorrentes do sistema mundial de direitos humanos?

Tem aumentado vertiginosamente

a área total de terras adquiridas por estrangeiros,

e vêm se multiplicando os

conflitos oriundos da apropriação

irregular de terras habitadas por

indígenas.

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A primeira condição, para tanto, é vencer o tradicional regime oligárquico, reconhecendo ao povo brasileiro aquela soluta potestas de que falava Bodin; ou seja, uma soberania efetiva e não meramente retórica. Ora, isto implica, antes de mais nada, em quebrar o monopólio do Congresso Nacional de alterar a Constituição. Afinal, que soberania é essa, que não permite ao seu titular decidir, em última instância, sobre mudança constitucional alguma? Que democracia é essa, na qual o povo não tem nem mesmo o poder de iniciativa de emendas constitucionais; não tem o direito de votar em referendos e plebiscitos sem autorização dos seus representantes, nem o poder de destituir os mandatários que elegeu? Essas as indagações capitais que devem ser feitas ao país pelas entidades cujo dever estatutário consiste em defender o Estado Democrático de Direito, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil.

São Paulo, 1º de setembro de 2008.

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RecursoExtraordinário

Sepúlveda Pertence

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VOTO SOBRE INVIOLABILIDADE DE PARLAMENTARDA AUTORIA DO MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

DADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Tarefa das mais difíceis e quase torturante – de que me incumbiu a Revista – foi a de escolher Voto do Ministro Sepúlveda Pertence dado no Supremo Tribunal Federal no desempenho da nobre missão de Ministro da Corte (da qual se aposentou), dentre a pletora dos que de sua autoria, já que todos são de enorme dignidade e superlativa erudição. Com uma carreira extremamente benfazeja às letras jurídicas, nota-se de todos os votos que ele proferiu na Suprema Corte, o extremo cuidado que Sepúlveda Pertence imprimia ao estudo das teses, que levava ao mais aprimorado grau científico de ourivesaria jurídica.

Assim, pretendendo levantar a situação quanto a Vereador, selecionei, aleatoriamente, o voto em que ele funcionou como Relator, no RE 210.917/RJ, do Plenário, sobre tema de sua inviolabilidade parlamentar.

Recordo que, dos principais provimentos da Constituição Federal sobre tal tema, há o inciso VIII do art. 29 {“Art. 29 (...) VIII – inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município.”}, o inciso IX do mesmo art. 29 [“proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto nesta Constituição para os membros do Congresso Nacional e, na Constituição do respectivo Estado, para os membros da Assembleia Legislativa”] e, ainda, o art. 53 [“Art. 53 – Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”]

A evolução da construção do Supremo ao longo dos anos e à luz da Carta de 88 (mas, desde 1914 em caso em que Ruy Barbosa funcionou como advogado) pode ser aferida pelos arestos no RE 140.867/MS, de 30/06/1996, no HC 74.201/MG de 12/11/1996 e no RE 210.917/RJ de 12/08/1998 este no Plenário da Corte. Adviria o nº RE 220.687?MG, de 13/04/1999, reportando-se àquele último.

Pois bem, o Pleno, no RE 210.917/RJ de 12/08/1998, é da relatoria do cultíssimo Ministro Pertence e entendi de escolhê-lo.

Penso, tão somente, que a jurisprudência ainda carece de, no trato

HUMBERtO RiBEiRO SOARESProcurador do Estado do Rio de Janeiro aposentado

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evolutivo, dedicar-se mais detalhadamente ao aspecto dos abusos. O que, espero, há de ocorrer, possivelmente pela via do confronto de bens constitucionais.

Mas, é um prazer ler o voto deste excepcional e corretíssimo jurista que é Sepúlveda Pertence. Recomendo aos leitores da Revista com empenho.

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO

VOTO

Não se questiona a efetividade dos fatos nem suas circunstâncias.

Gira sim a controvérsia sobre estar ou não a responsabilidade da recorrente no episódio – em particular, a sua responsabilidade civil por danos morais acarretados ao recorrido pelas publicações – coberta pela inviolabilidade de que é titular, nos termos do art. 53 da Constituição.

É problema, logo se vê, de pura qualificação jurídico-constitucional de fato certo, a cuja solução está precisamente destinado o recurso extraordinário.

Duas são as indagações a responder: se o fato cabe no âmbito material da inviolabilidade parlamentar; a segunda, se a extensão da eficácia dessa imunidade real alcança, além da responsabilidade penal, a responsabilidade civil do parlamentar por danos morais oriundos das notícias.

A primeira questão, da resposta afirmativa, ao que penso, a leitura vigente da jurisprudência do Tribunal sobre o art. 53 da Constituição, no ponto em que - rompendo linha constante dos textos constitucionais anteriores - deixou de restringir a esfera da imunidade real às manifestações emitidas pelo parlamentar "no exercício de suas funções" (Constituição do Império, art. 26; CF 1937, art. 43) "no exercício das funções do mandato" (CF 1934, art. 31), ou simplesmente "no exercício do mandato" (CF 1891, art. 19; CF 1946, art. 44; CF 1967, art. 34; CF 1969, art. 32).

Aqui, não se pode irrogar ao Tribunal o misoneísmo exegético ou a interpretação retrospectiva que sói atribuir-se, muitas vezes com razão, à jurisprudência constitucional que, avessa às inovações de uma Constituição, continua a decidir, na sua vigência, como se nada houvesse mudado ...

Certo num primeiro momento APen. 292, 12.4.89, Gallotti, RTJ 135/489 -, os termos do acórdão parece testemunharem certa indiferença do Tribunal acerca da alteração constitucional; dela entretanto, tomou conhecimento tão logo se mostrou decisiva para os casos enfrentados e, então, não lhe negou as consequências inovadoras entendidas cabíveis (v.g., InqQ0 396, 21.9.89, Gallotti, 10 Ql42?, a/RE 210917-7 - RJ RTJ 131/1039; InqQ0 390, 27.9.89, Pertence, RTJ 129/970; Inq. 503, 24.6.92, Pertence, RTJ 148/73; AgInq 874, 22.3.95, Velloso, DJ 26.5.95).

SEPÚLVEDA PERTENCEProfessor e jurista, foi presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.

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Não chegou o Tribunal, é verdade, à posição extremada de entender irrestrita a imunidade, de modo a cobrir qualquer delito de palavra imputável a Deputados ou Senadores (cf, Sérgio O. Médici, Imunidades Parlamentares na nova Constituição, RT 666/403, abr. 1991).

Nem foi ao ponto de incluir, no âmbito da irresponsabilidade, toda e qualquer manifestação de caráter político-parlamentar como sustentam opiniões respeitáveis, como, em parecer no Inq. 390, o d. Procurador da República Eugênio Aragão (RTJ 129/971), em sede doutrinária, o il. Advogado Orcir Peres (Imunidade Parlamentar - Alcance, Rev. Br. C.Crim., 13/144) e, em decisão individual, de 1.8.97, no Inq. 1296, o em. Ministro Nelson Jobim (DJ 14.8.97).

Lê-se nessa última, depois de erudita recordação das restrições impostas pelo direito anterior:

"O art. 53 suprimiu a menção ao exercício do mandato e não o fez somente por ser desnecessária a restrição.

Suprimiu para dar outro contexto de incidência e aplicação da prerrogativa.

Observe-se que a mesma Carta, quando trata das prerrogativas dos Vereadores, retoma a cláusula do "exercício do mandato" e cria outra restrição:

"Art. 29. ...

VI. inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do município."

Quer a Constituição Federal de 1988 outro tratamento para a prerrogativa quando se tratar de Parlamentares Federais (art. 53) e estaduais (art. 27, § 10). A sua opção foi explícita quando, para estes, suprimiu o que os textos anteriores continham e, para os vereadores, os manteve com acréscimo.

O texto de 1988 passou a valorar a ATIVIDADE POLÍTICA do parlamentar.

Entenda-se como exercício do mandato ou de suas funções, todas aquelas atividades vinculadas ao desempenho, pelo Parlamento, de suas funções constitucionais. É o parlamentar, nessa perspectiva, uma agente das funções do Parlamento. O exercício do mandato tem por objetivo viabilizar a realização, pelo Parlamento, de suas funções.

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A atividade política do parlamentar inclui o exercício do mandato e de suas funções. No entanto, nele e nelas não se esgota. É mais ampla.

A atividade política dos parlamentares abrange uma gama de funções e tarefas de natureza vária. É nos partidos, cuja responsabilidade é maior que a dos não parlamentares; é nas eleições; é nos debates na mídia, etc."

O Plenário, contudo, repita-se, não foi a tanto, como reconhece o Ministro Jobim: provam-no as decisões que repeliram a invocação da inviolabilidade parlamentar na hipótese de ofensas irrogadas a adversários em atos de campanha eleitoral (cf. Inq. 503, 24.6.92, Pertence, RTJ 148/73, e Inq. 496, 23.9.93, Gaivão, RTJ 150/688) ou aquelas dirigidas ao atual Prefeito por seu antecessor - malgrado ser esse último Deputado Federal -, porque "insertas em uma disputa política municipal", a revelar "sua clara desvinculação para com o ofício parlamentar federal do indiciado", (Inq 803, 30.8.95, Gallotti, RTJ 156/772, 776).

16. De outro lado, porém, penso que a orientação dominante no Tribunal não está na passagem da ementa, invocada pelo acórdão recorrido, do Inq. 510, de 1.2.91, de que V.Exa., Senhor Presidente, foi o relator, e na qual se lê que apenas são passíveis da tutela de imunidade material "os comportamentos parlamentares cuja prática seja imputável ao exercício do mandato legislativo": trata-se de consideração lateral do voto de V. Exa., data venia, sem relevo no caso então decidido, um exemplo de escola de ofensa sempre compreendida na esfera tradicional de inviolabilidade, qual seja, aquela contida em discurso proferido da tribuna de uma das Casas do Congresso Nacional.

Estou em que a linha de nossa jurisprudência dá maior relevo à alteração constitucional discutida, como se verifica nos dois leading cases já referidos, nos quais a interpretação dela constituiu efetivamente premissa necessária das decisões dos casos concretos.

O primeiro é o Inq. 396, 21.9.89, relator o em. Ministro Gallotti: para concluir pela incidência da nova regra de imunidade real a "ofensa desferida fora do recinto das sessões, por Deputado Federal à honra de Senador, em razão de entrave que estaria sendo oposto, pelo último, à tramitação de projeto de lei", não foi preciso imputar juridicamente o discurso ofensivo ao exercício do mandato mas apenas reconhecer existente "a vinculação - de natureza lógica - "entre o discurso questionado e a atividade parlamentar do representado".

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Na linha do acórdão, proferi voto-vista (RTJ 131/1046), que desenvolvi ao relatar pouco depois, em 29.9.89, o Inq. 390, de cujo voto condutor peço vênia para recordar o seguinte:

"1. Questão similar foi resolvida na Sessão Plenária de 21-9-89, quando se declarou extinta a punibilidade do Deputado Fábio Feldman por ofensas ao Senador Humberto Lucena (Inq. 396, rel. em. Ministro Octavio Gallotti).

Tendo pedido vista dos autos, acompanhei o voto do relator, o em. Ministro Octavio Gallotti.

Li e endossei passagem do seu voto, em que S. Exa. observava:

"Esse silêncio (do art. 53) não tem, todavia, o efeito de tornar extensível, para além do exercício do mandato, a proteção da imunidade material, pois esta não pode ser entendida como um privilégio pessoal do deputado ou senador, mas como verdadeira garantia da independência do exercício do poder legislativo. É assim, inerente ao instituto, o liame indispensável entre a prerrogativa em causa e a função parlamentar. E os crimes contra a honra, que não sejam praticados no desempenho do mandato, são objeto somente da imunidade formal, cabendo às Casas do Congresso resguardar a sua independência, mediante a concessão ou a recusa, caso a caso, da licença para o processo de seus membros)".

Nessa linha, disse eu, é que lhe acompanhava a conclusão; donde acrescentei a necessidade de explicitar certa reserva à tese do brilhante parecer da Procuradoria-Geral. E prossegui:

Não creio, por exemplo, que o tratar-se de "exteriorização da opinião política" seja bastante para, em qualquer hipótese, expungir a criminalidade da ofensa à honra alheia perpetrada por membros do Congresso Nacional: do contrário, estaria consagrado em seu favor e em detrimento de seus adversários um injustificável privilégio, por exemplo, nas campanhas eleitorais em que disputassem a reeleição ou outro cargo eletivo.

Estou assim em que, ainda quando se cuide de discursos políticos, é de excluir-se a imunidade material, se a ocasião, o local, o propósito ou outras circunstâncias relevantes evidenciarem a total desconexão do fato com o exercício do mandato ou a condição de parlamentar.

Por tudo isso, a mim me parece que, para compatibilizar a amplitude sem precedentes, da nova inviolabilidade parlamentar, com os

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princípios basilares da Constituição, entre os quais o do pluralismo e o da isonomia, o Tribunal deve reservar-se o poder de examinar, caso a caso, o contexto do fato, a fim de evitar que a prerrogativa legítima se converta em odioso privilégio.

Se, não obstante, naquele caso, se reconheceu a abolitio criminis, é que se levaram em conta as circunstâncias do fato: reunião pública entre parlamentares e cidadãos militantes de movimentos ecologistas, realizada no Auditório Nereu Ramos, no próprio edifício da Câmara dos Deputados, denominada Alerta do Meio Ambiente à Nação, no correr da qual o Deputado Feldman, notório integrante da Frente Verde, teria feito acusações ao Senador Lucena, a propósito de alegado retardamento na tramitação de um projeto de lei de preservação das baleias. Todo esse contexto do fato, como pude acentuar, tornava mais estreito e, inequívoco o liame entre o discurso questionado e a atividade parlamentar do representado.

Daí, parece, a unanimidade da decisão.

O em. Ministro Brossard, por exemplo, acompanhou, no caso, o voto do relator e o meu, embora declarando entender que nada mudou de substancial, no ponto, entre a Constituição de /946 e a atual. Explicou S. Exa.: sendo a imunidade garantia da função legislativa e não do mandatário, era ocioso dizer que só protegia suas opiniões, palavras e votos, "no exercício do mandato".

De seu turno, também o em. Ministro Célio Borja sublinhou que só reconhecia, naquele caso, a imunidade material, porque se tratava de um episódio parlamentar sobre assunto parlamentar.

Considero, data venia, que o âmbito da imunidade material efetivamente se ampliou no texto constitucional de 1988 em relação ao de 1946, ou, pelo menos, em relação à interpretação predominante sob a vigência deste ou de preceitos constitucionais idênticos.

No referido Inq. 396, o voto do Ministro Gallotti citou passagem de Raul Machado Horta, que entendia já naquele regime anterior, que a imunidade devesse compreender manifestações alheias à área específica do exercício do mandato e abranger manifestações dele decorrentes, a exemplo do relatório que o congressista fizesse das suas atividades parlamentares, em reunião com os eleitores ou em correspondência a eles dirigida.

Essa não foi, porém, a orientação que então prevaleceu. A consulta à

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doutrina e à jurisprudência convencerá que a tese dominante foi mais restritiva (Barbalho, Comentários, 1924, pág. 99; Maximiliano, Comentários, 1948, 11/48; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, 1953, 11/243); Rosah Russomano, O Poder Legislativo na República, 1960, fl. 140).

Exemplo dela é a opinião de Pontes de Miranda (ob. loc. cit.), citada no parecer, para quem, sob o art. 44 da Constituição de 1946, a inviolabilidade do parlamentar "só se refere ao que profere, ou escreve, no exercício da função, discursos, no recinto, pareceres e votos proferidos no edifício do corpo legislativo ou nas sessões conjuntas, opiniões emitidas no desempenho de comissões da sua câmara, ou em qualquer lugar por incumbência dela". Admitia, o grande tratadista, que a imunidade cobrisse a publicação do discurso ou de qualquer trabalho parlamentar, advertindo que "susceptível de aplicação penal, porém, a publicação de discurso que não foi dito, ou do trabalho que não foi apresentado à câmara, ou a qualquer das comissões, ou em desempenho de missão da Câmara".

Hoje, – e daí o meu voto no caso Feldman – estou em que a eliminação, no art. 53 CF, da cláusula restritiva "no exercício do mandato" - permite efetivamente que se dê à imunidade material uma extensão maior, de modo a compreender na sua esfera de proteção manifestações que, embora não se possam estritamente caracterizar como exercício da função parlamentar, dela são consequências inarredáveis, em particular no tempo das comunicações de massa.

É preciso não olvidar, contudo, como frisou, com razão, o parecer do Ministério Público, que, mesmo na sua dicção vigente, a garantia "refere-se a senadores e deputados, evidentemente enquanto tais" (fl. 40).

O decisivo para que incida a regra da inviolabilidade parlamentar será, assim em cada caso, que haja um nexo de implicação recíproca entre a manifestação de pensamento do congressista, ainda que fora do exercício do mandato, e a condição de deputado ou senador.

Em outros termos, a imunidade material cobre hoje não apenas o que disser o mandatário no exercício do mandato, mas também em razão dele.

É induvidoso, assim, para voltar ao parecer da Procuradoria-Geral, não ser admissível "estender a vantagem ao cidadão acaso mandatário que inverte com ofensas, e.g., contra seu vizinho de residência, pois, nesse âmbito de interesses, não há considerá-lo sendo senador ou deputado federal" (fl. 41).

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Nossa divergência começa, porém, no ponto em que, logo em seguida, o parecer entende compreender-se nas novas dimensões de irresponsabilidades, "até, exteriorizações de opinião política, no sentido coloquial mesmo - estampadas em jornais, proferidas por deputado ou senador em diversas situações da vida social".

Est modus in rebus. Tratar-se de opinião política ou de opinião sobre políticos não me parece suficiente para expungir a criminalidade de eventuais ofensas à honra alheia perpetradas por membros do Congresso Nacional, quando nem estejam no exercício do mandato nem haja conexão entre o discurso e a função parlamentar.

Se não se quiser confundir a imunidade material com o privilégio de irresponsabilidade pessoal, é preciso o cuidado de distinguir entre a ação do congressista e a ação do político.

A pregação de ideias, o apoio e a crítica a atos dos governos, a qualificação positiva ou negativa de homens públicos são a matéria prima do aliciamento e da mobilização de opiniões que constituem o empenho cotidiano dos políticos, sejam eles mandatários ou não: estender a inviolabilidade ao que, nesse trabalho essencialmente competitivo, diga o político, que seja parlamentar, fora do exercício do mandato e sem conexão com ele, é dar-lhe uma situação privilegiada em relação aos concorrentes, que briga com princípios fundamentais da Constituição".

A partir dessas premissas, naquele caso, distinguiram-se duas partes no texto da matéria atribuída a uma Deputada Federal e dada por ofensiva ao Governador do seu Estado.

Reputou-se sem conexão com o exercício do mandato da indiciada ou com a sua condição parlamentar federal a pendenga em torno da alegada demissão em massa de servidores estaduais, cuja atribuição critica ao Governador, pelo Estado, era a "manifestação de uma militante política sobre fato de administração local, que nada indica sequer tivesse sido objeto de pronunciamento seu na Câmara dos Deputados".

Já no segundo tema das diatribes – o comportamento do Governador do Estado junto ao Executivo da União a propósito da nomeação de reitor pro tempore da Universidade Federal no Estado – se identificaram circunstâncias aparentes – quais, o caráter federal do affaire, a alusão a um discurso na Câmara e a contactos da indiciada com Ministros de Estado que, confirmadas, permitiriam identificar o reclamado "nexo de implicação

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recíproca entre a manifestação de pensamento do congressista, ainda que fora do exercício do mandato, e a condição de deputado ou senador".

Sigo convencido da correção dessa linha intermédia que, a partir da inovação do teor constitucional, nossa jurisprudência vem trilhando.

Por ela, o tribunal se recusa, de um lado a fazer da imunidade um privilégio pessoal do político que detenha um mandato, mas de outro atende às justas ponderações daqueles que, já sob os regimes anteriores, realçavam como a restrição da inviolabilidade aos atos de estrito e formal exercício do mandato deixava ao desabrigo da garantia manifestações que o contexto do século dominado pela comunicação de massas tornou um prolongamento necessário da atividade parlamentar.

Serve de exemplo voto vencedor de Raul Pina, em 1954, na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, citado por Pedro Aleixo (Imunidades Parlamentares, ed. Rev. Br. Est. Políticos, B. Horizonte, 1961, p. 71).

"As condições da vida moderna", acentuou o pranteado homem público gaúcho - "com os seus poderosos meios de difusão, como a imprensa, servida pela composição mecânica e por eficientes rotativas, o rádio, a televisão, não permitem se restrinja ao âmbito das Câmaras e das suas Comissões, internas ou externas, o exercício da função de representante da Nação. Deixou de ser um ambiente materialmente limitado pelas paredes de um edifício aquele em que se exerce a função parlamentar. Apresentado um projeto de interesse geral, proposta uma reforma importante, denunciado um abuso clamoroso, vê-se o representante desde logo assediado pela imprensa e pelo rádio, desejosos de melhor esclarecer o público. Forçoso se lhe torna, assim, ampliar o debate, com vantagem, aliás, do funcionamento do regime democrático. As casas do Parlamento" enfatizava "são hoje, apenas, o centro donde se irradia ação parlamentar e não mais em si a podem confinar".

"E não é somente isto", prosseguia Pilla. "Divulgadas pela imprensa e pelo rádio as acusações de um representante, os acusados vêm frequentemente a público para as rebater e revidar, sem esperar a ação dos órgãos de investigação parlamentar, necessariamente mais lenta. O representante vê-se, destarte, obrigado pelos próprios acontecimentos a transferir para cenário mais amplo a sua atuação parlamentar".

A esse reclamo de expansão da esfera de garantia para aos cenários mais amplos da atuação parlamentar contemporânea parece corresponder

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adequadamente o critério firmado nos precedentes de levar o alcance da imunidade até onde se possa identificar um laço de implicação recíproca entre a manifestação incriminada, ainda que fora do estrito exercício do mandato, e a qualidade de mandatário político do agente.

Esse liame parece inquestionável na espécie.

O fato noticiado - o encaminhamento ao Ministério Público de notitia criminis contra autoridades administrativas e judiciais veiculando suspeitas de práticas ilícitas em prejuízo de uma autarquia federal - posto não constitua exercício do mandato parlamentar stricto sensu, uma vez facultado a qualquer cidadão - quando feito por uma Deputada, notoriamente empenhada no assunto, guarda inequívoca relação de pertinência com o poder de controle do Parlamento sobre a administração da União.

Certo, a causa de pedir da ação reparatória de danos morais não é a formulação da notitia criminis mas a divulgação pela imprensa do seu encaminhamento pela Deputada ao Ministério Público.

Mas afora a evidência de a própria repercussão jornalística do fato ser indissociável da posição e da atividade parlamentar da subscritora das suspeitas, de qualquer modo, em tema de imunidade parlamentar, é assente que não ilide a incidência da franquia a publicação pela imprensa, por iniciativa do congressista ou até de terceiros, do fato coberto pela inviolabilidade.

O ponto está de há muito sedimentado na jurisprudência, desde, pelo menos, o julgamento, em 1914, do HC 3.635, relator Oliveira Ribeiro, requerido por Rui em favor dos diretores de O Imparcial para assegurar-lhes a publicação de discursos parlamentares (Edgard Costa, Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, 1964, 1/190; Leda Boechat Rodrigues, História do Supremo Tribunal Federal, 1991, 111/169).

Já então se rendia o Tribunal à evidência de que a publicidade dos debates parlamentares, fora dos limites e controles da imprensa oficial, era da essência do regime político (Edgard Costa, ob. locs. cits, p. 197).

Sabidamente, porém, o império das comunicações de massa no mundo contemporâneo tornou insuficiente para assegurar o acesso da atividade parlamentar à opinião pública a veiculação pela imprensa do próprio texto dos discursos: essa realidade acentuada por vozes de peso (v.g., Raul Pilla,

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DON, 9.6.54, apud Fernanda M. de Almeida, Imunidades Parlamentares, Câmara dos Deputados, 1982, p. 97; Raul Machado Horta, Imunidades Parlamentares, RDP 3/31 e Estudos Dir. Constitucional, 1995, p. 591, 598) – esteve certamente à base da opção do art. 53 da Constituição de 1988 de ampliar a esfera da inviolabilidade.

Nesse quadro é indiscutível que a compreensão da publicidade no âmbito da imunidade real há de acompanhar o alargamento do domínio da inviolabilidade, de modo a proteger não apenas a divulgação de atos do estrito exercício do mandato, quais os discursos parlamentares, mas também aos atos que o excedam, mas que se tenham como relacionados à atividade ou à condição de congressista do agente e, por isso, também cobertos pela franquia constitucional.

Esse entendimento parece estar subjacente tanto à decisão plenária do Aglnq. 874, de 26.5.95, da lavra do em. Ministro Velloso, quanto na já referida decisão individual do em. Ministro Jobim, no Inq. 1296: em ambos os casos, declarou-se tuteladas pela imunidade material - com invocação dos limites mais flexíveis do art. 53 CF - não a publicidade da manifestação dos Senadores envolvidos na reunião das comissões parlamentares de inquérito que integravam, mas as entrevistas por eles concedidas a respeito de investigações que nelas tinham curso.

Resta a segunda questão, a de saber se a imunidade material do parlamentar com relação ao fato elide também a sua responsabilidade civil pelos danos morais consequentes.

Impressiona aqui o silêncio da jurisprudência, onde não logrei encontrar precedentes, assim como a omissão de boa parte da doutrina brasileira (v.g., Barbalho, Constituição Federal Brasileira, 1902, p. 64; Herculano de Freitas, Direito Constitucional, 1923, p. 207; Aurelio Leal, Constituição Federal Brasileira, 1925, p. 285; Pedro Aleixo, Imunidades Parlamentares, cit., Barbosa Lima Sobrinho, As Imunidades dos Deputados Estaduais, 1966; J. Celso de Mello Filho, Constituição Federal, anotada, 1986, p. 156; Pinto Ferreira, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1990, p. 2/622; José Afonso da Silva, Curso de Dir. Constitucional Positivo, 15a ed, 1998, p. 532; Michel Temer, Elementos Dir. Constitucional, 14a ed, 1998, p. 129; Celso Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 4° v., 1/186.

O vácuo, entretanto, menos parece de atribuir a dúvidas não resolvidas a propósito do que à relativa novidade da generalizada aceitação de reparabilidade patrimonial dos danos morais à tendência de

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deslocar a reação dos ofendidos, do campo da repressão penal, para o da responsabilidade civil, que tem a ver também com o movimento contemporâneo pela depenalização.

Tanto assim que, dos mais antigos até os de hoje, quantos se ocuparam do problema são acordes no sentido de os efeitos da inviolabilidade parlamentar alcançarem a responsabilidade civil.

A sentença proferida neste processo refere - a partir da citação de João de Oliveira Filho (Legislativo - Poder Autêntico, Forense, 1974), filiado à tese - as opiniões, no estrangeiro, de Laband (Le Dr. Public de 1'Empire Allemand, 1°/531) e de Pierre (Tr. Dr. Politique, p. 1095) e, no Brasil, de Paulo Lacerda (Dr. Constitucional Brasileiro, 11/173) e de Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição Brasileira, 4a ed. 1948, 11/49).

"Não se admite o processo" escreveu, depois, peremptório, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, 1953, 11/243) - "porque não há crime; nem cabe a responsabilidade por perdas e danos, porque a irresponsabilidade do art. 44 é geral, de direito constitucional material e, pois, compreensiva da irresponsabilidade penal e da irresponsabilidade civil".

Nessa mesma trilha, sem maiores comentários, sao numerosas e consensuais as opiniões na doutrina brasileira (v.g., Raul Machado Horta, Imunidades Parlamentares, cit., 1968, RDP 3/36; Estudos, p. 597); Manoel G. Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, 1972, 1°/214; Marcelo Caetano, Direito Constitucional, 1978, 11/183; Rosah Russomano, Imunidades Parlamentares, Rev. Inf. Legislativa, 1984, n. 81/245 e Curso Dir. Constitucional, 5a ed, 1997, p. 157; Alexandre de Moraes, Imunidades Parlamentares, Rev. Br. C.Crim., 21/50 e Direito Constitucional, 3ª ed. 1998, p. 329).

No direito comparado, a pesquisa, posto sem pretensões exaustivas, desvela a mesma tranquila extensão à responsabilidade civil dos efeitos da inviolabilidade parlamentar (cf., v.g., para o direito anglo-americano, E. May, A Treatise on the Law, Privileges, Proceedings and Usage of Parliament, 1946, p. 51; B. Schwartz, American Constitutional Law, 1955, p. 57; Corwin, The Constitution and What it means today, 40ª ed., 1978, p. 25; na França: Duguit,Tr. Droit Constitutionnel, 1911, T. IIª, § 134, p. 282; G. Vedei, Droit Constitutionnel, 1949, p. 402; M. Duverger, Droit Constitutionnel et Insts Politiques, 1956, p. 484; Ch. Debbasch et alii, Droit Constitutionnel e Insts Politiques, 1990, p. 824; na Itália: Ceretti, Diritto Costituzionale Itália, 5ª,

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1957, p. 331; Biscaretti di Ruffia, Derecho Constitucional, trad., Madri, 1965, p. 381; C. Mortati, Istituzioni di Diritto Pubblico, 8ª, 1969, 1/470; S. Traversa, Immunità Parlamentare, na Enciclopedia del Diritto, 1970, XX/178, 192; Santi Romano, Principios de Dr. Constitucional Geral, trad., S.Paulo, 1977, p. 297; Crisafulli Paladin, Commentario Breve alia Costituzione, 1990, art. 68, n. 3, p. 410; em Portugal: Canotilho - Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2', 1985, art. 160°, nota II, p. 171; na Argentina: Bidart Campos, Derecho Constitucional del Poder, 1967, 1/276; Quiroga Lavié, Derecho Constitucional, 3°, 1993, p. 767).

Note-se que também civilistas de autoridade sói referirem-se à imunidade parlamentar do agente como causa excludente da responsabilidade civil (v.g., H.L. Mazeaud e Tune, Traité (...) de la Responsabilité Civile, 5a, 1957, 1/595; Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 3a, 1954, 11/6391.

Tanto quanto o consenso, chama a atenção na pesquisa doutrinária que a compreensão da irresponsabilidade civil no círculo de eficácia da imunidade material seja, em praticamente todos os autores, objeto de uma afirmação apodítica, indiscutível e evidente por si mesma (só Ridart Campos anota, na Argentina, a dissenção de Lozada, fundada, porém, em peculiariedade da redação do art. 61 da Constituição).

Daí talvez que, dos textos consultados, só a atual Constituição portuguesa haja pormenorizado, no art. 160°, 1, dedicado à imunidade real, que "os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções" (a explicação da minúcia provavelmente estará no intuito de marcar a frontal contraposição histórica com o art. 89, § 1º da Carta salazarista).

A Constituinte italiana, por proposta de Mortati, cogitou de explicitação semelhante, afinal rejeitada, sem prejuízo, segundo a doutrina, pois "não há dúvida razoável alguma" - asseveram Crisafulli e Paladir (ob. loc. cits) - "sobre o âmbito de aplicação da prerrogativa, sendo unânime o reconhecimento de que ela opera tanto na área penal, quanto na civil e na administrativa", só remanescendo alguma incerteza sobre a possibilidade de cominar sanções de caráter disciplinar para o deputado ou senador que recorresse a expressões "não parlamentares".

"A regra da inviolabilidade não é temperada pela existência da responsabilidade penal por falta grave" - atesta, na mesma linha, o douto Raul Machado Horta (ob. locs. cits.), como dado comum das constitucionais democráticas: "O Deputado na tribuna" - e hoje, em termos, mesmo fora

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dela - "pode injuriar; caluniar; atingir levianamente pessoas estranhas ao Poder Legislativo". Só estará sujeito, para correção dos excessos ou dos abusos, ao poder disciplinar previsto nos Regimentos Internos. A fórmula clássica de Royer Collard - "La tribune ri'est responsable que de la Chambre" - ainda é princípio fundamental no governo representativo.

De minha parte, não vejo como nem porque romper com esse princípio fundamental.

Não convence, data venia, o argumento com o qual o acórdão recorrido desafiou no ponto o consenso doutrinário, ao final das contas reduzido à assertiva de que, no art. 53 da Constituição, "a inviolabilidade diz respeito apenas ao cometimento de crimes" porque "os parágrafos do artigo ora analisado não fazem qualquer referência à prática de ilícito civil".

Sucede que só o caput do art. 53 tem a ver com a imunidade material, o que torna impertinente argumentar com os parágrafos, relativos a franquias parlamentares de natureza inteiramente diversa.

Por outro lado, a premissa do acórdão não é correta, pois nem tudo, nos parágrafos do art. 53 CF tem em vista unicamente o processo penal: ao contrário, a mais vetusta e conspícua das garantias neles tratada, a imunidade contra a prisão – freedom from arrest – na sua fonte histórica, o direito anglo-americano, só protege o parlamentar contra a prisão civil, não, contra a decretada em processo criminal (B. Schwartz, op. loc. cit.; Corwin, ob. loc. cit.; Black's Law Dictionary, vb. Legislativa Immunity); estendida a imunidade à prisão, na maioria dos países, a partir da França, também àquela decorrente da persecução penal, a ninguém jamais ocorreu negar-lhe a incidência nas modalidades residuais de prisão civil.

Afastados os equívocos do aresto recorrido, o mais importante a repisar é que a ausência da menção específica à isenção também da responsabilidade civil nas normas de imunidade material, jamais, se entendeu induzir à sua exclusão dos efeitos da garantia, da qual, ao contrário, se tem reputado corolário essencial.

Certo, sob uma perspectiva puramente dogmática, nada impediria a Constituição de excluir a responsabilidade civil da tutela da imunidade material, reduzindo-a a uma excludente da criminalidade sem exclusão da ilicitude do fato.

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Mas, além de seguramente inexistente no direito pátrio, como em qualquer Constituição democrática e norma que assim dispusesse contrariaria gravemente as inspirações teleológicas do instituto da inviolabilidade como garantia da liberdade do exercício da missão do parlamentar: é manifesto que, conforme as circunstâncias, a imputação da responsabilidade civil pode ser tão ou mais inibitória da ação do mandatário político que a incriminação da conduta.

Não se desconhece que a afirmação da inviolabilidade parlamentar, ampliada às dimensões exigidas pela sociedade de massas pode acarretar injustiças às vitimas da leviandade por ela eventualmente acobertada; mas as instituições democráticas tem o seu custo, às vezes, cruel.

Esse o quadro, conheço do recurso para dar-lhe provimento.

Sob a minha perspectiva, a questão é de mérito: a afirmação da incidência de regra constitucional de imunidade vale pelo reconhecimento de causa excludente da ilicitude do fato, e pois, de responsabilidade, não apenas penal, mas também civil, do agente parlamentar. Isso levaria à improcedência da ação.

Limitou-se, porém, o RE a pleitear o restabelecimento da sentença de primeiro grau, que extinguiu o processo sem julgamento de mérito: adstrito aos limites da pretensão objeto do recurso, cinjo-me a acolhê-la e restaurar a decisão de primeira instância: é o meu voto.

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VOTOS

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APOSENTADORIA E FIXAçÃO DE PROVENTOS

Trata o presente Processo TCE-RJ 110.405-5/08 de concessão de Aposentadoria Especial e Fixação de Proventos, em nome de VALERIA FADUL, no cargo de Professor, matrícula nº 163.316-3, com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03, combinado com o §5º do art. 40 da CR.

Em Sessão realizada em 03/09/2009, o Plenário desta Corte decidiu por Comunicação ao jurisdicionado para dar ciência à interessada, bem como questionar a incorporação da parcela denomina Gratificação de Encargos Especiais aos seus proventos.

A interessada manifestou-se nos autos, juntando o documento de fls. 63/71.Em síntese, a interessada alega os seguintes argumentos:

- Após 08 anos de recebimento ininterrupto da gratificação de encargos especiais, teve seu valor reduzido de R$ 1.470,34 para R$ 564,46 no mês de maio de 2005;

- Como houve tal redução, o cálculo da gratificação para fins de proventos, conforme média aritmética dos últimos 12 (doze) meses da validade da aposentadoria resultou no valor de R$ 790,93;

- Como já tinha preenchido os requisitos para se aposentar, solicitou ao jurisdicionado que seu tempo de contribuição fosse computado até 31/05/2005, data na qual houve a redução do valor da gratificação de encargos especiais, com o objetivo de receber nos seus proventos o valor de R$ 1.470,34;

- Sustenta seu pedido com fundamento no direito adquirido ao cálculo dos proventos de acordo com a legislação vigente à época do preenchimento dos requisitos legais para a aposentação.

O Corpo Instrutivo, após análise de fls. 73/73-verso, observou que a servidora cumpriu o requisito temporal estabelecido pelo então vigente art. 220 do Decreto n.º 2.479/79 e, por essa razão, a incorporação da gratificação de encargos especiais foi regular. Em vista disso, sugeriu o Registro dos atos em exame sem, no entanto, examinar os argumentos da interessada em relação aos valores a que faria jus, anteriores à redução, quando já poderia ter se aposentado.

*Voto aprovado por unanimidade.

Não pode o servidor, após ter cumprido os requisitos para aposentação, ser prejudicado em decorrência da opção voluntária por permanecer em atividade.

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O Ministério Público junto ao TCE, às fls. 73-verso, manifesta idêntica posição.

É o Relatório.

Após a análise do processo, verifico que a interessada, pertencente aos quadros da Secretaria de Estado de Educação (SEE), esteve à disposição da Fundação de Apoio à Escola Técnica, e diante dessa condição de anormalidade de exercício de suas atribuições, percebeu Gratificação de Encargos Especiais de outubro de 1999 até fevereiro de 2006, conforme documento acostado às fls. 28/30.

Ao fixar o valor da Gratificação de Encargos Especiais para fins de proventos, o jurisdicionado aplicou a média aritmética dos valores recebidos nos últimos 12 (doze) meses que antecederam à data do requerimento da aposentadoria (31 de março de 2006 conforme solicitação às fls. 02).

A interessada recebeu a Gratificação de Encargos Especiais no valor de R$ 1.474,34 desde abril de 2002 e, no mês de maio de 2005, houve redução para R$ 564,46. Dessa forma, considerando que nos 12 meses anteriores a 31/03/2006 houve variação do valor recebido, o resultado final da média aritmética foi de R$ 790,93.

Ocorre que, como o valor da média encontrado nos últimos doze meses anteriores a 31/03/2006, data do protocolo do pedido, foi inferior ao valor de R$ 1.474,34, a interessada solicitou ao jurisdicionado que seu tempo de contribuição fosse computado até 31/05/2005, data em que houve a redução do valor da Gratificação de Encargos Especiais, a fim de receber nos seus proventos o valor de R$ 1.470,34, pois este vigorava desde abril de 2002.

Passo a analisar o caso.

Verifico que, em 31/05/2005, a interessada já havia cumprido os requisitos para se aposentar com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03 combinado com o §5º do art. 40 da CR. Mas, como a aposentadoria compulsória se dá aos 70 anos, a interessada continuou exercendo suas funções.

O jurisdicionado defende que a legislação incidente para fins de proventos deve ser aquela vigente no momento em que o servidor protocola seu pedido de aposentadoria.

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Com a devida vênia, tal posição não reflete a melhor interpretação a ser adotada ao caso, diante do princípio da segurança jurídica, traduzido no fato de que a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CR).

Conforme jurisprudência dos Tribunais do país, há direito adquirido ao cálculo dos proventos de acordo com a legislação vigente à época do preenchimento dos requisitos legais para a aposentação, ainda quando só requerida na vigência da lei posterior menos favorável.

Registre-se ainda que a legislação vigente se refere tanto à Constituição da República – que prevê regras para aposentação e forma de cálculo dos proventos - quanto às leis esparsas do ente federativo que determinam as parcelas permanentes da remuneração do cargo efetivo do servidor, bem como regras de incorporação de vantagens transitórias (plano de cargos e salários, estatuto do servidor, etc.). Trata-se de toda a legislação que influa no cálculo de proventos.

É esse o norte trilhado pela jurisprudência pátria consoante se percebe dos julgados que se seguem:

PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE RMI. ABONO DE PERMANÊNCIA EM SERVIçO. DIREITO ADQUIRIDO AO CÁLCULO DOS PROVENTOS DE ACORDO COM A LEGISLAçÃO VIGENTE À ÉPOCA DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS PARA A APOSENTAçÃO. INAPLICABILIDADE DA LEI 11.960/2009 AOS PROCESSOS INICIADOS ANTES DE SUA ENTRADA EM VIGOR. I – De acordo com o entendimento já consolidado na jurisprudência pátria, uma vez preenchidos os requisitos legais para a obtenção da aposentadoria, possui o beneficiário direito adquirido de ver seus proventos calculados de acordo com as normas legais então vigentes. Precedentes. II – Entre a concessão do abono de permanência e a aposentadoria da parte autora sobrevieram inovações legislativas que acarretaram significativa mudança de critério no cálculo da RMI da aposentadoria do Autor, que já possuía direito adquirido de ter seu benefício calculado de acordo com a legislação vigente ao tempo em que preencheu os requisitos exigidos para a aposentação, não podendo, portanto, ser prejudicado em decorrência da opção voluntária por permanecer em atividade. III – No que toca ao advento da Lei 11.960, de 29 de junho de 2009, que deu nova redação ao art. 1º-F, da Lei 9.494/97, a inovação legislativa não se aplica à hipótese vertente, somente podendo atingir as relações jurídicas constituídas a partir de sua vigência, tendo em vista tratar-se de norma de natureza instrumental material, conforme

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restou decidido recentemente pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça (EDcl no REsp nº 1.057.014/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 20/11/2009), razão pela qual não incide sobre os processos em andamento. IV – Agravo interno do INSS parcialmente provido, tão somente para reconhecer a prescrição quinquenal, nos termos da Súmula 85 do STJ.

Acórdão

Origem: TRF-2

Classe: APELREEX - APELAçÃO/REEXAME NECESSÁRIO - 481908 Processo: 2003.51.01.533924-4 UF : RJ Orgão Julgador: PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA Data Decisão: 25/01/2011 Documento: TRF-200246899

Fonte E-DJF2R - Data::01/02/2011 - Página::23

Relator Juiz Federal Convocado ALUISIO GONCALVES DE CASTRO MENDES "AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO CONCEDIDA NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 8.213/1991. TETO-LIMITE. VINTE SALÁRIOS-MÍNIMOS. LEIS Nos 5.890/1973 E 6.950/1981. REQUISITOS PREENCHIDOS ANTES DO ADVENTO DA LEI Nº 7.787/1989. SÚMULA Nº 7/STJ.1. Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir os fundamentos da decisão atacada.

2. É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de que, preenchidos os requisitos para a aposentadoria antes do advento da Lei nº 7.787/1989, deve prevalecer no seu cálculo o teto de 20 (vinte) salários-mínimos previsto na Lei nº 6.950/1981, ainda que concedida na vigência da Lei nº 8.213/91.

3. A inversão do decidido quanto à alegação do preenchimento dos requisitos para a concessão da aposentadoria antes da Lei nº 7.787/1989, como propugnado, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, providência sabidamente incompatível com a via estreita do recurso especial (enunciado nº 7/STJ).

4. Agravo regimental a que se nega provimento."

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(AgRg no REsp 966.738/SC, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJE 6/10/2008, negrito nosso).

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIçO. VIGÊNCIA DA LEI Nº 8.213/91. REQUISITOS PREENCHIDOS ANTES DO ADVENTO DA LEI Nº 7.787/89. TETO. VINTE SALÁRIOS-MÍNIMOS.

'É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de que, preenchidos os requisitos para a aposentadoria antes do advento da Lei nº 7.787/89, deve prevalecer no seu cálculo o teto de 20 (vinte) salários-mínimos previsto na Lei nº 6.950/81, ainda que concedida na vigência da Lei nº 8.213/91.'(Precedentes). Agravo regimental provido."(AgRg no REsp 751.454/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo Esteves, DJ 12/9/2005, negrito nosso).

EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Decisão que nega provimento ao agravo, por estar a decisão atacada em conformidade com o verbete da Súmula nº 359 desta Suprema Corte. 1. A rejeição ao agravo de instrumento ocorreu porque tal recurso se voltava a atacar acórdão proferido em conformidade com matéria já sumulada no Supremo Tribunal Federal. 2. É pacífica a jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de que os proventos da inatividade se regulam pela lei vigente ao tempo em que reunidos os requisitos para sua concessão. 3. Agravo regimental não providoEMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA REGULADA PELA EC 41/03. SÚMULA 359 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - Os proventos regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o servidor reuniu os requisitos da inatividade, ainda quando só requerida na vigência da lei posterior menos favorável. Súmula 359 do STF. II - Agravo regimental improvido.Este é o teor da Súmula 359 do Egrégio Supremo Tribunal Federal: RESSALVADA A REVISÃO PREVISTA EM LEI, OS PROVENTOS DA INATIVIDADE REGULAM-SE PELA LEI VIGENTE AO TEMPO EM QUE O MILITAR, OU O SERVIDOR CIVIL, REUNIU OS REQUISITOS NECESSÁRIOS.

Lembro ainda que, nas duas reformas da previdência ocorridas em 1998 e 2003, as Emendas Constitucionais 20/98 e 41/03, para que não pairassem dúvidas, protegeram os servidores que já haviam adquirido o direito de se aposentar pelas regras anteriores às reformas, como não poderia deixar

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de ser em virtude da segurança jurídica. Aliás, as emendas poderiam ser silentes nesse assunto, já que os servidores estariam respaldados pelo direito fundamental assentado no art. 5º, XXXVI, da CR.

Quando o servidor cumpre os requisitos para aposentação, desde que não tenha 70 anos (compulsória), pode continuar na ativa exercendo suas funções normalmente, principalmente para adquirir mais vantagens financeiras, como, por exemplo, aumento de percentual para fins de adicional por tempo de serviço, certo de que tem o direito adquirido para se aposentar a qualquer momento com base nas regras que lhe forem mais benéficas. Não pode o servidor, após ter cumprido os requisitos para aposentação, ser prejudicado em decorrência da opção voluntária por permanecer em atividade.

Seria totalmente incoerente o servidor continuar laborando, após adquirir o direito de se aposentar, para se submeter a riscos decorrentes de mudanças legislativas que viessem para prejudicá-lo. É justamente isso que o art. 5º, XXXVI, da CR protege. Os regimes jurídicos podem ser alterados, mas os direitos adquiridos com base na legislação alterada ou revogada não podem ser destruídos sob pena de se instaurar insegurança jurídica nas relações entre o indivíduo e o Estado.

No caso em exame, a interessada já havia preenchido os requisitos para aposentação em 31/05/2005 e, naquela data, nos últimos doze meses anteriores, o valor que recebia de Gratificação de Encargos Especiais era de R$ 1.470,34. Assim, a média resultaria nesse valor.

Mas deixo claro que, nessa hipótese, não é lícito utilizar o tempo de contribuição/serviço após a data de 31/05/2005, visto que os regimes jurídicos não podem se misturar, sob pena de ser criado regime híbrido, incompatível com a vontade da lei. Cito trecho da decisão desta Corte de Contas aprovada pelo Plenário nos autos do processo TCE-RJ n.º 105.558-7/06:

(..) Os excertos são claros e não deixam margens a dúvidas. O regramento constitucional convencionou um direito optativo para os servidores; assim como certificou o direito à obtenção do benefício pelas regras anteriores, também lhe concedeu a possibilidade para que, conforme seus interesses e ao seu livre-arbítrio, optar pela eventualidade que lhe fosse mais conveniente.

No entanto, não é possível compreender, com efeito, a possibilidade de

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se deferir aposentadoria com esteio na legislação vigente em 30.12.03, haja vista a satisfação, naquela data, dos requisitos prementes exigidos, e, simultaneamente, quando do requerimento do benefício, conceder-se vantagens provenientes do período laborado posteriormente a 30.12.03, por aplicação da lei que permaneceu em vigor. In casu, para o servidor usufruir-se das vantagens adquiridas no lapso temporal entre a entrada em vigor da precitada Emenda e o período trabalhado até a data da validade de sua aposentadoria (07.11.05), ter-se-ia de aplicar, necessariamente, o regime instituído pela Emenda Constitucional nº 41/03.

A ser considerado incorreto este entendimento, não haveria a confrontação apenas entre o direito adquirido e assegurado na data em que o servidor reuniu condições para aposentar-se e tudo a que faria jus na data de validade de sua aposentadoria. Ao longo do tempo decorrido entre esses dois momentos deveria ser verificado se em algum instante os valores são maiores e então considerar esse cálculo para fins de definir o direito adquirido. Este estaria, dessa forma, em permanente mutação, aguardando o seu ponto ótimo. (...)

O fundamento para impossibilidade é maior do que apenas o princípio da legalidade, remontando ao fato de que tal implicaria promover a mistura de regras, acumulando-as com o fito de auferir vantagens, isto é, o que se está fazendo é buscar elementos em um regime para garantir benefícios em outro, implicando, consequentemente, em violar premissas básicas, gerando uma terceira relação híbrida e fictícia, ou seja, aplicando-se simultaneamente duas legislações distintas a concessões que teriam de serem regidas por uma ou por outra.

Assim, proponho diligência externa para que órgão de origem avalie a utilização do tempo de contribuição/serviço até 31/05/2005 para esta aposentadoria, desprezando o tempo posterior para fins de aquisição de quaisquer vantagens financeiras, tendo em vista que naquela data a servidora já havia preenchido os requisitos da aposentação.

Assim, em desacordo com o Corpo Instrutivo e com o douto Ministério Público Especial,

V O T O:

I – Por DILIGÊNCIA EXTERNA para que, no prazo de 30 (trinta) dias, o órgão de origem avalie a recomendação desta Corte de Contas para que:

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a) Utilize para esta aposentadoria o tempo de contribuição/serviço até 31/05/2005;

b) Calcule os proventos, de acordo com a legislação vigente na data de 31/05/2005, na qual a interessada já havia preenchido os requisitos para se aposentar com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03, combinado com o §5º do art. 40 da CR;

c) Despreze o tempo posterior a 31/05/2005 para fins de aquisição de quaisquer vantagens financeiras.

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*Voto aprovado por unanimidade.

ATO DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAçÃO

Trata o presente Processo 113.006-5/10 do Ato de Inexigibilidade de Licitação, com fundamento no inciso I do art. 25 da Lei Federal nº 8.666/93, formalizado pela Secretaria de Estado de Segurança, em favor das empresas Bell Helicopter Textron Inc., no valor de R$ 11.386.167,00 (onze milhões, trezentos e oitenta e seis mil, cento e sessenta e sete reais) e TAM Aviação Executiva e Taxi Áereo S.A., no valor de R$ 934.918,00 (novecentos e trinta e quatro mil, novecentos e dezoito reais).

O valor total da despesa decorrente deste Ato é de R$ 12.321.085,00 (doze milhões, trezentos e vinte e um mil e oitenta e cinco reais) e tem como objeto a aquisição de helicóptero, semi novo, com equipamentos e acessórios, bem como os serviços de treinamento, translado e documentação.

Na Sessão Plenária de 12/07/11, este Tribunal decidiu:

I. Pela COMUNICAÇÃO atual Secretário de Estado de Segurança, na forma prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro em vigor, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da ciência da decisão desta Corte, adote as providências necessárias ao cumprimento da DILIGÊNCIA EXTERNA, em atendimento ao item proposto pela Instrução e transcrito em meu Relatório, alertando-o para as sanções previstas no artigo 63 da Lei Complementar Estadual nº 63/90;

II. Por DETERMINAÇÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra, encaminhe cópia integral da informação do Corpo Instrutivo, de fls. 274/282.

A resposta à Comunicação, decidida na Sessão de 12/07/11, encontra-se no Doc. TCE-RJ nº 24.312-8/11, às fls. 290/373.

O Corpo Instrutivo, após a devida análise, às fls. 375/377, sugere o Conhecimento deste Ato de Inexigibilidade de Licitação e o posterior Arquivamento do processo, conforme análise abaixo transcrita:

Trata o presente de cópia do Ato de Inexigibilidade de Licitação, celebrado pela Secretaria de Estado de Segurança.

Pelo Princípio da Conexão Processual consagrado no artigo 103 do Código de Processo Civil, aplicável conforme disposto no artigo 180 do Regimento

Deverá, em casos futuros, o juridicionado anexar aos autos cotação de preços a fim de subsidiar a análise do ato de inexigibilidade de licitação.

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Interno desta Corte de Contas, procedemos à informação conjunta dos processos a seguir relacionados, tendo em vista a correlação da matéria.

PROCESSO TCE-RJ NATUREZA *113.006-3/10 Ato de Inexigibilidade de Licitação 115.996-6/10 Contrato

DECISÃO PLENÁRIA

Esta Corte, em Sessão de 12.07.11, mediante voto do Conselheiro – Relator, José Gomes Graciosa, fls.284/285, decidiu pela comunicação na forma abaixo, com base na instrução do Corpo Instrutivo:

“VOTO:

I. Pela COMUNICAÇÃO atual Secretário de Estado de Segurança, na forma prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro em vigor, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da ciência da decisão desta Corte, adote as providências necessárias ao cumprimento da DILIGÊNCIA EXTERNA, em atendimento ao item proposto pela Instrução e transcrito em meu Relatório, alertando-o para as sanções previstas no artigo 63 da Lei Complementar Estadual nº 63/90;

II. Por DETERMINAÇÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra, encaminhe cópia integral da informação do Corpo Instrutivo, de fls. 274/282. “

O Corpo Instrutivo, às fls.277/282, sugeriu:

“1 – Diligência Externa, com Comunicação ao responsável pela Secretaria de Estado de Segurança – SESEG, para que envie as justificativas de preço, considerando o disposto no art. 26, inciso III da Lei Federal 8.666/93, acompanhada da documentação suporte que esclareça quais as características da presente contratação que podem esclarecer a diferença de preço verificada entre a aquisição presente (U$ 6.965.000,00) e a do Contrato entre a Polícia Civil e a TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S/A, em exercício anterior (U$ 4.281.300,00).

2 – Determinação para que os dados referentes ao Ato de Inexigibilidade e do Contrato sejam incluídos no SIGFIS, o que será objeto de verificação futura.”

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Em cumprimento à decisão plenária foi expedido o Ofício PRS/SSE/CSO 24478/2011, de 12.07.11, fls.287, destinado ao Sr. José Mariano Benincá Beltrame, Secretário de Estado de Segurança.

Em resposta, foram encaminhados elementos que deram origem ao Documento TCE n.º 24.312-8/11, fls. 290/373.

ANÁLISE DO DOCUMENTO TCE N.º 24.312-8/11O Subsecretário de Gestão Estratégica da SESEG, Sr. Hélio Pacheco Leão, fls.292, informou o seguinte:

Quanto à justificativa da diferença de preço entre as duas aeronaves, temos que a primeira aeronave foi contratada em 11/12/2007 e a segunda em 23/07/2010, mais de dois anos e meio após, sendo o lapso temporal um dos diferenciadores do preço.

A primeira aeronave foi adquirida a preço promocional, abaixo da tabela, por ser a primeira vendida ao Brasil, havendo interesse do fabricante no mercado brasileiro.

Porém, os acessórios são o principal ponto de distinção e nas propostas que acompanham o presente e na planilha anexa resta demonstrado que as contratações não são idênticas, sendo a segunda mais equipada. A aquisição da primeira praticamente só envolveu a aeronave propriamente dita.

Às fls. 294 encontra-se a mencionada planilha anexa, que relaciona acessórios e equipamentos extras do helicóptero adquirido em 2010.

Às fls. 295/300 consta cópia de correspondência expedida em 12/07/10 pela TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S.A., na qual foi informado, entre outros itens, que naquele exercício o Bell Huey II teria passado a custar US$ 5.140.000,00, que os acessórios e equipamentos da aeronave montariam US$ 1.465.000,00 e que os treinamentos e serviços fornecidos totalizariam US$ 470.000,00.

OBSERVAçÕES

Nesse passo, entendemos que o presente processo reúne condições para prosseguir, considerando que foram apresentados esclarecimentos ao questionamento efetuado por esta Corte.

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CONCLUSÃO

Cumpre registrar que o exame destes autos contemplou requisitos da Lei Federal 8.666/93, da Deliberação TCE-RJ 244/07 e de outras normas aplicáveis à análise da formalização dos atos em questão, sendo certo que outros aspectos, inclusive quanto à legalidade, à economicidade e à execução, poderão ser abordados por ocasião de auditorias que se realizem no órgão/entidade de origem, entre outros atos inerentes à fiscalização que compete a este Tribunal.

Ante o exposto, sugerimos o conhecimento do presente Ato de Inexigibilidade de Licitação e do respectivo Contrato, e o posterior arquivamento dos processos

O Douto Ministério Público Especial, representado pelo Procurador Marcelo Martins Evaristo da Silva, manifesta-se no mesmo sentido (fl. 378).

É o Relatório.

Tramita, apenso ao presente, o Processo TCE-RJ nº 115.996-6/10, que trata do Contrato decorrente deste Ato de Inexigibilidade de Licitação e, ainda, o Processo TCE-RJ nº 117.753-6/10, anexo ao presente, que também se refere ao Contrato, encontrando-se em duplicidade com o Processo TCE-RJ nº 115.996-6/10.

A duplicidade de processos referentes ao mesmo Contrato decorre de que um Contrato foi extraído do presente Ato, enquanto o outro foi originado do Convênio do Estado do Rio de Janeiro com a Secretaria Nacional de Segurança.

Quanto ao questionamento feito à Secretaria de Estado de Segurança, entendo que as informações trazidas aos autos, pelo jurisdicionado, esclarecem, qualitativamente, em relação à diferença de preços verificada entre a aquisição presente (US$ 6.965.000,00) e a do Contrato anterior entre a Polícia Civil e a TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S/A (US$ 4.281.300,00, acrescidos de US$ 244.108,00 pelo 1º Termo Aditivo, celebrado em 10.03.2008), porém, o valor exato dessa diferença ainda demanda esclarecimentos pelos motivos que passo a expor:

Às fls.217 e 297, constam informações quanto aos dois fornecimentos em épocas distintas, a saber:

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j. A aeronave, acrescida de alguns equipamentos de apoio, tais como quatro capacetes e macacões de vôo, além de treinamento de adaptação ao modelo para somente dois pilotos, ministrado nas instalações da Bell Academy nos EUA, foi fornecida, à época, pelo valor de US$ 4.281.300,00 (quatro milhões duzentos e oitenta e um mil e trezentos dólares norte-americanos);

k. O Bell Huey II, além de outros modelos fornecidos pela Bell, desde aquela época teve o valor de venda de sua versão standard reajustado, passando a custar US$ 5.140.000,00 (cinco milhões cento e quarenta mil dólares norte-americanos), em valores para entrega no corrente exercício;

Às fls. 218 e 298, encontra-se, ainda, a seguinte informação:

A aeronave ofertada, diferentemente daquela adquirida em 2007, possui o conceito de aviônicos glass cockpit, absolutamente moderno e de confiabilidade inquestionável. A aeronave virá com duas telas Multi Function Display – MFD, uma para o piloto e outra para o co-piloto, com várias funcionalidades embutidas. Seu motor, diferentemente daquele fornecido com a primeira aeronave, possui um kit especial que aumentou o Time Between Overhaul – TBO de 3.500 horas para 5.000 horas, o que, de forma indireta, diminui sobremaneira o custo operacional da aeronave.

Consta, ainda, às fls. 217/218 e 297/298, um rol de itens, no montante de US$ 1.465.000,00, além daqueles fornecidos na aquisição de aeronave entregue em setembro/2007 à CORE, quais sejam:

• Esqui alto com degrau corrido;• Guincho externo BF Goodrich 600Ibs External Hoist - Equipamento & Provisões;• Kit com 3 macas;• GPS stand alone GNS-500;• LifePort Blindagem complementar no nariz da aeronave;• Horímetro;• Fluxômetro;• Tetra Radio (Teltronic MDT-400);• Mais 5 fones de ouvido David Clark Headset H10-13H;• Equipamento de combate a incêndio Bambi Bucket 545L e provisões;;• Capas do pára-brisas; • Dois conjuntos duplos de assentos laterais;• Kit Rappel para ambos os lados da aeronave;

MFD – pequena tela em uma aeronave com vários botões que pode ser usada para mostrar informação ao piloto de várias formas configuráveis. (Wikipédia)

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• Sistema de Comunicação Interna com 11 pontos e 9 extensões independentes; • Pintura com esquema especial de camuflagem, no estilo digital; e• Rede de carga com capacidade para 2000 kg.

O jurisdicionado agregou, ainda, a seguinte informação (fl. 218 e 298):

No valor proposto também estão incluídos os custos relativos às despesas do traslado dos EUA para o Brasil (piloto, combustível, taxas aeroportuárias, seguros, etc.), custos aduaneiros e emolumentos para a importação e nacionalização da aeronave. O valor dos treinamentos e dos serviços relacionados ao traslado, importação e nacionalização da aeronave é da ordem de US$ 470.000,00 (quatrocentos e setenta mil dólares norte-americanos);

Por fim, à fl. 294, conforme pontuado pela Instrução, consta a seguinte planilha, que relaciona os extras do presente fornecimento, em relação ao fornecimento de 2007:

ACESSÓRIOS E EQUIPAMENTOS EXTRAS DO HELICÓPTERO BELL HUEY ll ADQUIRIDO EM 2010

Além da configuração padrão standard com seus equipamentos e acessórios, praticamente todos comuns a ambas as aeronaves (2007 e 2010), o helicóptero adquirido em 2010 possui os seguintes extras:

DESCRIçÃO QUANTIDADE

Provisões para operação do Bambi Bucket 01

Equipamento de combate a incêndio Bambi Bucket de 545 Litros 01

Gancho de Carga - Equipamento 01

Espelhos de Carga Duplo 01

Sistema de Desembarque Fast Rope 01

Blindagem Lateral da Cabine de Passageiros 01

Blindagem de Piso, Cabine e Cockpit 01

Blindagem da Area do Motor 01

Fones de Ouvido, David Clark H10-13H (cinco a mais que em 2007) 13

Kit com 3 Macas, Provisões e Equipamento 01

Seção do Nariz (Bell 212) 01

Kit Rappel em ambos os lados 01

Guincho Externo BF Goodrich 600L, equipamento & provisões 01

Bambi Bucket – recipiente cilíndrico com água suspenso em um cabo levado por um helicóptero para combate aéreo de incêndios.

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Rede de Carga com capacidade de 2000Kg 01

Esqui alto com degraus corridos 01

Freio do rotor principal 01

Capa protetora dos pára-brisas 01

ICS com 11 pontos e 9 extensões de fones 01

Kit de dois assentos duplos em tubos de lona, tipo utilitário 01

Blindagem extra no nariz da aeronave 01

Horímetro 01

Fluxõmetro 01

GPS Garmin GNS-500 01

Tetra Radio (Teltronic MDT - 400) 01

VHF/UHF Nav/Com - Cobham/Wulfsberg RT5000 02

Multi Function Color Display -MFCD, compatíveis para utilização de Night Vision Goggles - NVG, GPS com moving map (além do GNS 500), atualização disponível de seu database, indicações do HSI, de atitude (ADI) velocidade, altitude, entre outros , dentro do conceito “Glass Cockpit”. 01

Kit para turbina Honeywell T53-L-703 que efetiva revisão geral após 5.000 horas de funcionamento (TBO de 5.000h), desonerando o custo operacional. 01

Curso de Adaptação e Treinamento para 04 (quatro) pilotos e 03 (três) mecânicos, nas instalações da Contratada, nos EUA, e treinamentos teóricos, no Brasil, para 15 (quinze) pilotos e 10 (dez) mecânicos, nas instalações do Grupamento Aéreo e Marítimo (GAM) da PMERJ

Obs.: Os itens com fundo cinza totalizam US$ 1.465.000,00 (fls. 217/218 )

Estou convencido, portanto, pelos elementos constantes dos autos e da análise realizada pelo Corpo Instrutivo, que a diferença entre as duas aquisições não decorre, simplesmente, de reajuste de preços - o que poderia sugerir um valor excessivo - mas de elementos acrescidos à presente contratação.

Consta, às fls. 344/350, cópia do 1º Aditamento ao Contrato nº 36/SESEG/2007, que acrescentou US$ 244.108,00 ao Contrato original (US$ 4.281.300,00), totalizando US$ 4.525.408,00. O valor acrescido refere-se aos itens de blindagem do helicóptero, incluindo coletes balísticos.

Entretanto, não há elementos nos autos suficientes para consolidar o valor de US$ 2.439.592,00 entre os Contratos nos 036/SESEG/2007 (US$ 4.525.408,00) e 033/SESEG/2010 (US$ 6.965.000,00), uma vez que a tabela acima, transcrita do Doc. TCE-RJ nº 24.312-8/11, não apresenta coluna com os respectivos valores.

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Pode-se concluir, da análise da tabela anterior (fl.294) combinado com as informações trazidas originalmente pelo jurisdicionado aos autos (fls. 217/218) e às fls. 297/298, que parte dos itens constantes da planilha totalizam US$ 1.465.000,00.

Se for considerado, apenas a título de exercício, para obtenção da diferença encontrada entre os dois Contratos, o somatório dos três itens referentes à blindagem como sendo o mesmo valor aditado ao Contrato nº 36/SESEG/2007 (US$ 244.108,00), obtem-se US$ 1.709.108,00.

Conforme o item k (fl.217 e 297) o modelo Bell Huey II teve o valor de venda de sua versão standard reajustado, passando a custar US$ 5.140.000,00 (cinco milhões cento e quarenta mil dólares norte-americanos).

Somados, portanto, o valor do helicóptero reajustado (US$ 5.140.000,00); a blindagem, tomando por base o Contrato anterior (US$ 244.108,00) e os equipamentos listados pelo jurisdicionado como totalizando US$ 1.465.000,00, obtem-se o valor total de US$ 6.849.108,00.

O valor do Contrato em tela é de US$ 6.965.000,00, ou seja, US$ 115.892,00 acima do valor obtido a partir das considerações acima.

Registre-se que constam, da planilha incorporada a essa fundamentação itens que não estão listados pelo jurisdicionado, ao menos explicitamente, no rol de equipamentos que totalizam US$ 1.465.000,00 e que, portanto, podem justificar essa diferença, mas não cabe a este Relator fundamentar seu Voto nessa suposição.

É oportuno tecer considerações, ainda, quanto à especificação da aeronave, em face de haver, no mercado internacional, diversos helicópteros disponíveis para comercialização, os quais são classificados em função de diversas características.

Importante registrar que o Sr. Adonis Lopes Oliveira, Chefe do Serviço Aeropolicial, informa, às fls. 59/63, que, à época da aquisição da aeronave BELL HUEY II, pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, foi demonstrada a necessidade de adequação dos recursos materiais necessários à consecução da atividade aeropolicial no Estado do Rio de Janeiro. (grifo meu)

A aeronave em tela atende, portanto, à Secretaria de Estado de Segurança

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do Rio de Janeiro, sobretudo se for levado em consideração que já existe, no Estado, aeronave semelhante, o que pode diluir custos com manuais e kit de ferramentas necessárias à manutenção e operação das aeronaves.

Entretanto, considerando-se que a aeronave com duas turbinas é mais segura do que uma aeronave monoturbina, além de apresentar melhor desempenho, entendo pertinente recomendar à Secretaria de Estado de Segurança que faça constar dos autos, em casos futuros, cotação de aeronave com duas turbinas, cuja especificação viabilizaria o torneio, mediante o necessário procedimento licitatório.

Ademais, ainda que o valor cotado para aeronave com duas turbinas exceda os recursos disponíveis, deverá constar dos autos as cotações obtidas, a fim de afastar qualquer dúvida quanto aos motivos que levaram a Secretaria de Estado Segurança a optar por um modelo monomotor, de fabricante único e fornecedor exclusivo.

Pelo exposto e examinado, considero que ainda são necessárias informações indispensáveis à decisão adequada no presente processo, manifestando-me, desse modo, em desacordo com o Corpo Instrutivo e o Douto Ministério Público Especial, devendo o jurisdicionado comparecer aos autos com planilha que demonstre, analiticamente, a diferença entre os Contratos nos 036/SESEG/2007 e 033/SESEG/2010, além da Recomendação para que, em casos futuros, o jurisdicionado anexe aos autos cotação de aeronave com duas turbinas, a fim de subsidiar a análise quanto aos motivos que levaram a Secretaria de Estado Segurança a optar por um modelo monomotor, de fornecedor exclusivo.

VOTO:

I. Pela COMUNICAçÃO ao atual Secretário de Estado de Segurança, na forma prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro em vigor, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência da decisão desta Corte, adote as medidas necessárias ao cumprimento de DILIGÊNCIA EXTERNA, para o cumprimento da Determinação constante da fundamentação do meu voto, bem como para que tome ciência da Recomendação ali contida; II. Por DETERMINAçÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra, encaminhe cópia integral do presente Voto, da Instrução e do parecer do Ministério Público Especial.

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*Voto aprovado com o impedimento do Cons. Aluisio Gama de Souza e suspeição do Cons. José Gomes Graciosa, consoante parágrafo único do art. 135 do CPC.

ATO DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAçÃO

VOTO-REVISOR

Trata o presente de ato de inexigibilidade de licitação fundamentado no caput do artigo 25 da Lei Federal nº 8.666/93, formalizado entre a Prefeitura de Nova Iguaçu e o Nova Iguaçu Futebol Clube, objetivando a aquisição de espaço publicitário para a veiculação de publicidade institucional em favor do município, no valor de R$600.000,00, pelo prazo de aproximadamente um ano (de 13.01.2006 a 31.12.2006).

Em razão da correlação da matéria, será proferido um único voto nestes autos e no Processo TCE/RJ nº 203.746-5/06, em apenso, que cuida do respectivo contrato, de nº 004/2006, assinado em 13/01/2006.

Em Sessão de 31/05/2011, o Plenário aprovou o seguinte voto (fls. 188/189):

Pela COMUNICAçÃO ao atual então Prefeito Municipal de Nova Iguaçu, nos termos da Lei Complementar nº 63/90, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, encaminhe estudo que permita a correta avaliação do retorno que o serviço traria ao Município e a sua população, acompanhado do detalhamento dos custos envolvidos no objeto do presente, sendo especificado o número, tamanho, localização e especificações das placas estáticas utilizadas, o custo da veiculação publicitária nas referidas placas, o número de uniformes usados, os custos de sua estampa com a publicidade almejada, e todos os demais custos necessários para a veiculação da publicidade institucional objetivada.

Em atendimento, encaminhou o jurisdicionado o Documento TCE/RJ nº 26.727-1/11.

Após o reexame do processo, o Corpo Instrutivo assim se manifesta (fls. 203/204):

I – Pela ilegalidade do presente ato de inexigibilidade de licitação, bem como do contrato decorrente, tendo em vista ausência de atendimento ao interesse público;

II – Pela aplicação de multa ao Prefeito de Nova Iguaçu, à época, Sr. Lindbergh Farias Filho, com fulcro no art. 63, inciso III, da Lei Complementar

O administrador público pode utilizar todos os meios de comunicação e de divulgação para veiculação dos atos governamentais, pois a Lei Maior não veda o uso de nenhum instrumento publicitário.

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nº 63/90, em razão da formalização de ato não atendendo ao interesse público.

O Ministério Público Especial, representado pelo Procurador Leonardo Marins, corrobora a instrução técnica (fls. 206).

Concordando parcialmente com o CI e com o MPJTC, o preclaro Conselheiro-Relator ofertou o seguinte voto, na Sessão Ordinária de 08/05/2012 (fls. 207/214):

I – Pela ILEGALIDADE do presente ato de inexigibilidade de licitação, bem como do Contrato decorrente (TCE nº 203.746-5/06), tendo em vista ausência de atendimento ao interesse público;

II – Pela APLICAçÃO DE MULTA, mediante Acórdão, no valor de R$ 5.688,00 equivalentes, nesta data, a 2.500,00 UFIR-RJ, ao Sr. Luiz Lindbergh Farias Filho, Prefeito de Nova Iguaçu à época, com base no inciso III do artigo 63 da Lei Complementar 63/1990, em razão da homologação e formalização do presente ato, referente à aquisição de espaço publicitário junto ao Nova Iguaçu Futebol Clube, sem observância dos princípios da moralidade e da economicidade, por não atender ao interesse público;

III - Pela COMUNICAçÃO ao atual Prefeito Municipal de Nova Iguaçu, para que, com fulcro no artigo 10 da Lei Complementar Estadual nº 63/90, determine, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, através do respectivo órgão de controle interno – ou equivalente, sob pena de responsabilidade solidária, instaure TOMADA DE CONTAS ESPECIAL e remeta a este Tribunal de Contas, a fim de verificar se o valor transferido ao particular reverteu, concretamente, em favor do interesse público, bem assim se não houve enriquecimento sem causa e eventual dano ao erário, tendo em conta os custos inerentes à prestação objeto do ajuste;

A seguir, solicitei e obtive vista dos autos.

É o relatório.

Inicialmente, após solicitar vista do presente feito, pesquisei a existência de precedentes desta Corte de Controle nos quais houvesse sido avaliado o tema central posto neste administrativo, qual seja o patrocínio de times de futebol por prefeituras municipais, pois a meu sentir, em cognição sumária, não teria havido a ilegalidade proclamada pelo CI, MPJTC e o Conselheiro-Relator.

vista – na terminologia do Direito Processual. vista entende–se, propriamente, por exame, ou ação de ver para examinar, ou ter ciência. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

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Por lealdade processual, devo consignar que identifiquei duas decisões contrárias a este meu entendimento preliminar, nas quais o Plenário efetivamente declarou como irregulares as concessões de verbas pelas municipalidades de Resende e Quissamã ao Resende Futebol Clube e ao Quissamã Futebol Clube (processos TCE/RJ nºs 206.781-2/09 e 282.123-2/04).

Nada obstante, após compulsar detidamente estes autos, penso que é chegado o momento de oferecer uma nova visão sobre esta controversa matéria ao Corpo Deliberativo.

Senão vejamos.

Na presente inexigibilidade de licitação, a Prefeitura de Nova Iguaçu pagou seiscentos mil reais ao Nova Iguaçu Futebol Clube, então participante da primeira divisão do Campeonato Carioca de Futebol (exercício de 2006), para ter o direito de explorar espaço publicitário através da veiculação de publicidade institucional, em especial na frente e verso dos uniformes de todos os jogadores utilizados nos jogos oficiais, e ainda nas placas estáticas situadas à beira do gramado em partidas nas quais a agremiação tivesse a titularidade do mando de campo.

Não existem dúvidas de que a avença foi cumprida à risca pelas partes, não há objeções à escolha da modalidade de inexigibilidade de licitação e não se questiona a economicidade em si do montante pago (vide informação da Coordenadoria de Estudos e Análises Técnicas – CEA, encartado à lauda 93, informando acerca da inexistência de parâmetros de mercado para subsidiar parecer conclusivo).

Na verdade, a única erronia apontada no ajuste, segundo o Corpo Instrutivo, o parquet e o culto Conselheiro-Relator, teria sido a inexistência de interesse público na presente contratação, eis que teria havido apenas o interesse particular do clube de futebol, disto resultando dano ao erário.

Discordo desta conclusão.

Veja-se, em primeiro lugar, que estava em pleno vigor, no município, quando da efetivação do ato de inexigibilidade de licitação, a Lei n.º 3.748/05, que expressamente autorizava a prefeitura a investir no tipo de publicidade aqui contratado.

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Afira-se:

Art. 1º - Fica o poder executivo autorizado a incluir na verba de publicidade institucional da prefeitura a aquisição de espaço publicitário:

I – em eventos desportivos

II – no uniforme de times ou atletas de futebol e de outros esportes.

Art. 2º - A publicidade de que trata o artigo 1º deverá, preferencialmente, incluir times e atletas com sede, residentes ou nascidos no município de Nova Iguaçu, cuja posição de destaque nos respectivos esportes permita ampliar o impacto da publicidade, observado o princípio da eficiência e da isonomia.

Desta sorte, havia inequívoco respaldo normativo, no âmbito local, para o investimento.

Ademais, julgo que a conduta sob comento não se subsume à dicção do parágrafo 1º do artigo 37 da Carta Magna, uma vez que o patrocínio em questão não é sinônimo de publicidade institucional em si, na medida em que se ajusta a conceito distinto, qual seja, a promoção mercadológica da municipalidade.

Na verdade, mesmo a Lei Municipal padece de certa imprecisão técnica conceitual ao tratar da matéria, justificável pela complexidade do assunto, mas que é cristalinamente esclarecida através da leitura informativa de norma federal que equaciona o tema.

Esta é a inteligência extraída da leitura do artigo 2º do Decreto n.º 4.799/03, que “Dispõe sobre a comunicação de governo do Poder Executivo Federal e dá outras providências”, aplicável ao caso concreto por simetria e vigente na época da formalização do presente ato.

Confirme-se:

Art. 2º - As ações de comunicação de governo compreendem as áreas de:

I - imprensa;

II - relações públicas;

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III - publicidade, que abrange:

a) a publicidade de utilidade pública, a publicidade institucional, a publicidade mercadológica e a publicidade legal;

b) a promoção institucional e mercadológica, incluídos os patrocínios.

Precisamente por tais razões, a doutrina comumente enquadra o patrocínio na categoria de publicidade meramente "alternativa" ou "indireta", conforme ilustra Guilherme Porto, ao defini-lo como:

"um contrato de publicidade indireta, pois através do patrocinado, e não pela própria empresa, que se irá ter conhecimento do produto ou da própria companhia; ele é que irá repassar ao consumidor a imagem de que determinada empresa está tornando possível a realização de determinado evento"(Contrato atípico de patrocínio: princípios e possibilidades negociais. Revista Jurídica Empresarial, v. 11, p. 154, nov./dez. 2009)

Tal exegese, somada ao fato de que o administrador público pode utilizar todos os meios de comunicação e de divulgação para veiculação dos atos governamentais, pois a Lei Maior não veda o uso de nenhum instrumento publicitário, afasta a aplicabilidade, ao patrocínio aqui avaliado, da restrição feita à publicidade tipicamente institucional, por parte do mencionado artigo 37, parágrafo 1º (sendo certa, obviamente, a completa inexistência de qualquer resquício de conexão pessoal com os gestores municipais no acordo).

Isto posto, e sob o risco de digressionar, penso que talvez a dificuldade desta Corte de Contas, inclusive deste Revisor, na chancela de ajustes análogos, em Sessões pretéritas, guarde relação com o fato de estarmos todos condicionados, por ofício, a checar números, a medir grandezas, a contabilizar balanços.

Não é habitual que sejamos levados a avaliar a pertinência de uma estratégia publicitária (até mesmo por força da discricionaridade que permeia a atuação do agente público).

Nesse diapasão, diante da dificuldade inerente à quantificação do sucesso ou insucesso da aposição do nome da municipalidade numa camisa, dado seu altíssimo grau de subjetividade, tendemos a supervalorizar a frieza da

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Lei de Licitações, em detrimento do viés mais ampla consubstanciado na repercussão, muitas vezes imensurável, de uma campanha centrada no esporte.

Ora, por qual outra razão seria o município de Osasco, em São Paulo, exposto seguidamente na mídia nacional, além da constante conquista de títulos, inclusive da Superliga, pela equipe feminina de voleibol de mesmo nome, tudo naturalmente sob o patrocínio da prefeitura municipal (conforme www.voleibrasil.org.br)?

Quantas pessoas saberiam da existência da pequena cidade de Carlos Barbosa, no Rio Grande do Sul, não fosse a excelência do seu time de futebol de salão, de mesmo nome, campeão mundial de clubes, devidamente patrocinado pela prefeitura municipal (leia-se, a respeito, www.acbf.com.br)?

Qual motivo adicional levaria a cidade de Franca, no estado de São Paulo, a ser conhecida nacionalmente e internacionalmente, além da excelência do seu time de basquete, de mesmo nome, fundado em 1953 e detentor de todos os maiores títulos no continente, ainda uma vez com patrocínio da prefeitura municipal (vide www.francabasquete.com.br)?

Veja-se que propositadamente não darei exemplos, aqui, de times de futebol de campo, pois a lista de patrocínios por prefeituras, num país que conta com mais de 5.000 (cinco mil municípios), ocuparia páginas e mais páginas deste voto.

Aliás e a propósito, com o perdão do uso dos clichês, futebol em nosso país é religião, é paixão, como sabem, melhor do que ninguém, os membros deste colegiado.

Daí porque, notoriamente, qualquer exposição ligada ao futebol, em especial nos uniformes dos times e nos cartazes do campo, atinge todos os brasileiros, independentemente de renda, nível educacional, idade e classe social, razão pela qual, inclusive, ocorrem intensas disputas entre empresas visando associar suas marcas aos clubes.

Coincidentemente, na data em que elaboro este voto, os jornais do dia noticiam que grande equipe carioca recebeu setecentos mil reais para ostentar, nas mangas(!) dos uniformes de seus jogadores, em dois(!!) jogos, os nomes de uma dupla de cantores sertanejos(!!!).

Quero dizer, com esta constatação e com este exemplo, que investimento

Lei 8666/1993 – Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.

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em camisas de jogadores profissionais e em placas nos gramados, no Brasil, sempre reverterá em prol do anunciante, seja ente público ou privado, de alguma forma, tangível ou intangível, em algum momento, presente ou futuro.

E isso não é menos verdadeiro quando o time é patrocinado pela prefeitura.

Logo, mais importante do que descobrir o número de uniformes usados ou calcular os custos de estampa, é ter a certeza de que este ato de inexigibilidade proporcionou a visibilidade do município em incontáveis sites na internet, programas de canais esportivos, noticiários locais, jornais e toda espécie de meios de comunicação.

Desta forma, atinjo o cerne deste voto: no caso concreto, ao revés do que foi afirmado pelo CI, pelo MPJTC e pelo nobre Conselheiro Relator, tenho convicção, por tudo quanto exposto, que o patrocínio feito ao Nova Iguaçu Futebol Clube pela Prefeitura de Nova Iguaçu atendeu sim ao interesse público, respeitando os princípios da moralidade e economicidade.

Insisto, propositadamente, que o investimento promocional gerou divisas para a municipalidade, ainda que sua quantificação seja difícil ou mesmo impossível, pois é induvidoso que a divulgação do nome “Nova Iguaçu” promoveu a cidade, proporcionou mídia espontânea e estimulou o orgulho dos seus habitantes.

Forte nestes fundamentos, sou pela legalidade da ação empreendida pela prefeitura, neste caso específico.

Um arremate, por fim.

Não fossem suficientes todos os motivos antes elencados, verifico que a verba aportada pela prefeitura permitiu que o clube desenvolvesse o projeto denominado “Crianças da Baixada”, no bojo do qual foram empreendidas as seguintes ações, dentre outras (fls. 196/200):

- almoços diários para crianças carentes no refeitório do centro de treinamento, com capacidade para quarenta lugares;

- assistência médica diária em clínica geral e ortopedia;

- exames periódicos de sangue, esforço, tórax e coração;

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- acompanhamento nutricional.

Destarte, também sob este aspecto, me parece cristalino que o termo cumpriu o fim ao qual se destinava.

Em suma, o ato de inexigibilidade de licitação e o contrato respectivo, em minha ótica, devem ser conhecidos, e posteriormente arquivados.

À luz dos fatos e fundamentos apontados, e por estar em desacordo com o Corpo Instrutivo, com o Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas e com o Conselheiro-Relator,

VOTO:

1) Pelo CONHECIMENTO do presente ato de inexigibilidade de licitação e do contrato dele decorrente.

2) Pelo posterior ARQUIVAMENTO dos autos.

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*Voto aprovado por unanimidade.

REPRESENTAçÃO

Trata o presente Processo 201.681-0/12 de Representação, interposta pelo Sr. Samuel de Souza Marques, em face de supostas irregularidades contidas no Edital de Concorrência Pública nº 04/2011, oriundo da Prefeitura Municipal de Mesquita, cujo objeto é a cessão de uso de 04 (quatro) quiosques para a exploração de atividade comercial (venda de lanches, plantas, revistas e jornais), pelo prazo de 05 (cinco) anos.

Na sessão de 08/03/12, o Plenário deste Tribunal de Contas, acolhendo voto de minha lavra, decidiu nos termos que seguem:

“VOTO:

I- Pelo ACOLHIMENTO da presente Representação, dado o preenchimento dos requisitos previstos no Regimento Interno;

II- Pelo PROVIMENTO da Representação, em razão dos suficientes indícios de ilegalidade do Edital da Concorrência pública nº 04/2011, editado pelo Município de Mesquita, dada a previsão de regras sem amparo na LF nº 8.666/93;

III- Pela NOTIFICAçÃO, prevista no §2º do art. 6º da Deliberação TCE-RJ nº 204/96, do Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de Mesquita, para que apresente razões de defesa pela previsão referente à qualificação técnica constante do Edital de Concorrência nº 04/2011 em dissonância com a LF nº 8.666/93, nos termos constantes de minha fundamentação.

IV- Pela EXPEDIçÃO DE OFÍCIO ao autor da presente Representação para que tenha ciência da decisão desta Corte.” (Grifei)

Em atendimento, o Titular do Poder Executivo do Município encaminha as peças que formalizaram o Doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12, de fls. 144/162, donde se colhem as seguintes razões, reproduzidas em apertada síntese:

(i) que não obstante a exigência formulada não devesse constar do rol de documentos relativos à qualificação técnica, a mesma não se fez desprovida de amparo legal, tampouco houve restrição ao caráter competitivo da concorrência;

Representação – vocábulo usado, na terminologia jurídica, no sentido de petição ou de reclamação escrita. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

Deve o órgão licitante se certificar da idoneidade do licitante mediante consulta em seus próprios acervos ou por autodeclaração, no sentido de que não se encontra punido pelo poder público, entretanto, não poderá fazer por intermédio do arrolamento conjunto com as que são próprias à aferição da qualificação técnica.

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(ii) que a CPL deve levar em conta os critérios previamente definidos em edital;

(iii) que a Administração pode exigir garantias ao contrato, ainda não se configure como habilitação jurídica, fiscal ou econômico-financeira;

(iv) que a intenção legítima da exigência restou demonstrada da decisão desta Corte: apurar a idoneidade do licitante;

(v) que a exigência fora legítima e devidamente prevista no edital, sendo cumprido o princípio da vinculação ao instrumento convocatório.

Por fim, dita autoridade municipal roga seja indeferida, no mérito, a presente Representação.

Após nova análise, o Corpo Instrutivo, representado pela Coordenadoria de Exame de Editais (CEE) e pela Secretaria-Geral de Controle Externo (SGE), se manifesta nos termos seguintes (fls. 154/157):

“Em atendimento à notificação, o Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita encaminhou sua defesa, por meio do Ofício GP nº 110/2012, cadastrada sob o doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12, acostado às fls. 144/151.

Na sequência, passamos a verificar as razões de defesa apresentadas pelo Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, em face da notificação constante do item III.

III - Pela NOTIFICAçÃO, prevista no §2º do art. 6º da Deliberação TCE-RJ nº 204/96, do Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de Mesquita, para que apresente razões de defesa pela previsão referente à qualificação técnica constante do Edital de Concorrência nº 04/2011 em dissonância com a LF nº 8.666/93, nos termos constantes de minha fundamentação.

Inicialmente vamos recordar a fundamentação utilizada no voto:

A exigência estabelecida no subitem 4.6.3, I, “b” não encontra amparo legal, eis que tal regra teria o desiderato de apurar a idoneidade do licitante, sendo que para esta finalidade, não importaria o ramo de comércio do declarante, autor da carta de referência a ser apresentada.

CPL – Comissão Permanente de Licitação

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A declaração de idoneidade para licitar com a Administração deve ser exigida em campo outro que não o da aferição técnica.

As exigências relativas à qualificação técnica devem ser somente as indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, conforme previsto no inc. XXI do art. 37 da Constituição Federal.

Nos termos do artigo 30 da Lei 8.666/93, a documentação relativa à qualificação técnica é limitada àquelas insertas em seus incisos, inexistindo nestas, a previsão de se apurar eventual idoneidade do licitante.

Pelos motivos expostos, a previsão editalícia empregada na inabilitação do representante-licitante, padece de vícios insanáveis.

Com relação à inabilitação do representante-licitante, os motivos invocados pela CPL, quando de sua análise em sede de recurso administrativo interposto pelo licitante (aqui representante), não guardam cabimento, uma vez que a regra editalícia invocada não exigia relação de pertinência entre a idoneidade e o ramo comercial a ser explorado pelo pretenso cessionário do espaço público.

Tais considerações levaram ao provimento da presente representação quanto ao seu mérito.

Das razões de defesa (doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12 - fls. 145/148)

Inicia informando às fls. 145 que o Sr. Samuel de Souza Marques compareceu na sessão de julgamento da Concorrência nº 04/2011 e foi inabilitado uma vez que não apresentou uma ‘carta de referência expedida por empresário do ramo comércio’ exigida pelo edital regulador do certame.

Em sua defesa expõe que a exigência de apresentação de carta de referência foi incluída incorretamente no rol das exigências de qualificação técnica, mas que tal exigência encontra amparo legal e também não restringe o caráter competitivo da licitação.

Prossegue afirmando que o art. 44 da Lei 8.666/93 prevê que a comissão de licitação no julgamento das propostas deve levar em consideração os critérios previamente definidos no edital regulador.

Desta forma, a comissão julgadora exigiu uma carta de referência expedida

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por empresário do ramo do comércio, independente de esta exigência estar relacionada como critério de habilitação técnica, quando o correto seria qualificá-la como um critério de aceite para classificação da proposta e que esta regra intencionava apurar a idoneidade do licitante.

Por este motivo a exigência de apresentação da carta de referência não pode ser considerada eivada de vício por ausência de embasamento legal.

Torna a afirmar que: ‘não é a classificação da exigência no edital que a torna indevida e contamina todo o procedimento de vício insanável como defende o voto.’

Da análise da defesa:

A defesa apresentada não expõe motivos capazes de justificar a exigência do subitem 4.6.3, I, ‘b’, do Edital de Concorrência nº 04/2011, inserta no rol das qualificações técnicas, ao arrepio da Lei Federal nº 8.666/93.

O jurisdicionado afirma que a exigência é legal e sustenta sua defesa em diferentes redações invocando o mesmo argumento, de que a exigência foi elencada no rol da qualificação técnica quando o correto seria qualificá-la como um critério de aceite para classificação da proposta.

Contudo, a questão que se apresenta não é a discussão acerca da legalidade de se exigir a comprovação do licitante de sua idoneidade, que deve sim ser exigida para fins de resguardar o sucesso da futura contratação, mas tão somente que esta declaração só possa ser elaborada por empresa do ramo do comércio (implicitamente ao ramo de atividade do lote à que o licitante deseja concorrer), conforme posição consolidada com a desclassificação do representante, em conformidade à regra estabelecida no subitem 4.6.3, I, ‘b’:

4.6.3 - Documentação relativa à QUALIFICAçÃO TÉCNICA, a saber:

I – Comprovação do licitante, pessoa física, por meio de atestados e/ou certidão (ões), de idoneidade, por meio de um dos seguintes documentos:

a) Contrato de Trabalho em CTPS – (Carteira de Trabalho e Previdência Social);

b) Carta de referência emitida por um empresário do ramo do comércio.

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O autor da declaração não é relevante para se aferir a idoneidade do licitante. Neste sentido, exigindo-se que a prova de idoneidade só possa ser produzida por empresário do ramo do comércio, a cláusula torna-se restritiva, pois restringiu que o documento a ser apresentado só possa ser confeccionado por empresas de determinado ramo de comércio.

Somente o fato de se exigir a comprovação da idoneidade do licitante inserta no rol das exigências relativas à qualificação técnica configuraria uma impropriedade de caráter formal, de forma.

No caso em apreço, o vício está configurado pela redação inserta na alínea ‘b’ do inc. I do subitem 4.6.3, que determina que a comprovação do licitante se dê mediante a apresentação de carta de referência emitida por um empresário do ramo do comércio.

Desta forma, o Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, não foi capaz de justificar o estabelecimento da regra restritiva à licitação quando da elaboração do Edital de Concorrência nº 04/2011, caracterizando-se por vício insanável.

CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, sugerimos:

I – pela rejeição das razões de defesa apresentadas pelo Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, por meio do doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12 (fls. 144/151), pelos motivos elencados na presente análise;

II - pela ilegalidade do Edital de Licitação por Concorrência Pública nº 04/2011 da Prefeitura Municipal de Mesquita, e consequentemente, a nulidade de todos os atos dele decorrentes, nos termos do art. 48 da Lei Complementar n.º 63/90, tendo em vista a imposição de regra restritiva à ampla competitividade referente à qualificação técnica, em dissonância com a Lei Federal nº 8.666/93;

III – pela aplicação de multa ao Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, com fulcro no artigo 63, inciso III, da Lei Complementar n º 63/90, em face da irregularidade apontada, qual seja, a imposição de regra restritiva contida no subitem 4.6.3, I, ‘b’;

IV – pela comunicação, nos termos do art. 6º, § 1º da Deliberação TCE-

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RJ nº 204/96, ao Prefeito de Mesquita, para que adote as providências necessárias visando:

IV.1 - a anulação do Edital de Concorrência nº 004/2011 e de todos os atos dele decorrentes, observando o disposto no art. 49 da Lei Federal nº 8.666/93, encaminhado a este Tribunal a cópia do ato de anulação bem como sua publicação no Diário Oficial, alertando que o não atendimento desta determinação o sujeitará às sanções previstas no art. 63 da Lei Complementar nº 63/90.”

O Ministério Público Especial, representado por seu Procurador-Geral, Dr. Horacio Machado Medeiros, manifesta-se favoravelmente às medidas preconizadas pelo Corpo Técnico (fls. 158).

É o Relatório.

Estes autos foram formalizados mediante o manejo do instrumento de Representação1 pelo Sr. Samuel de Souza Marques, que se fez devidamente qualificado em razão de sua participação, como licitante, em certame promovido pelo Município de Mesquita.

Dita competição licitatória tinha por objeto a cessão de uso de 04 quiosques, localizados em diferentes pontos do Município, de acordo com as especificações constantes do Anexo I (fls. 19/20).

O ponto nevrálgico da inconformidade do signatário da peça vestibular fora sua inabilitação na competição em razão de ter sido exigida, como condição de qualificação técnica, declaração de idoneidade exarada por empresário do ramo do comércio.

Mesmo apresentando tal documentação, a CPL deu por descumprida citada exigência editalícia, por não ter sido expedido o dito documento por empresário do ramo correspondente às explorações comerciais a que se destinariam os quiosques objeto da cessão de uso.

Interpostos recursos administrativos, foram os mesmos desprovidos pela municipalidade.

Em sede de decisão preliminar, esta Corte de Contas, acolhendo fundamentação de minha pena, assentou que a previsão editalícia empregada na inabilitação do representante-licitante, padecia de vícios

Recurso administrativo – petição ou apelo dirigido à autoridade pública, para que se desfaçam as consequências ou efeitos das medidas desfavoráveis ao recorrente. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

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insanáveis, de modo que descaberia sua inabilitação pelos motivos invocados pela CPL.

Nessa linha de ideias, realcei, ainda, que o edital, em sua previsão, não exigia relação de pertinência entre o ramo de comércio explorado pelo emitente da declaração de idoneidade e o ramo comercial a ser explorado pelo pretenso cessionário do espaço público. Portanto, a par da inadequada formulação editalícia, a interpretação adotada pela CPL a respeito das regras constantes do edital teria sido restritiva à ampla participação no certame e destoante dos termos do próprio edital.

Nesse passo, vem o Chefe do Poder Executivo local reconhecer o descabimento da exigência formulada como condição de habilitação técnica, sem, contudo, descartar a viabilidade jurídica de a mesma ser aferida no certame, como garantia da boa execução contratual.

Como pude asseverar em oportunidade passada, a qualificação técnica tem o propósito de aferir a aptidão, profissional e operacional, do licitante à plena execução das obrigações contratuais futuras, de interesse da Administração. Desse modo, não se pode ter a pretensão de, por intermédio dela, avaliar eventual idoneidade dos interessados.

Por outro lado, devo consignar que a pessoa física ou jurídica declarada inidônea pela Administração Pública, nos termos do inc. IV do art. 87 da LF nº 8.666/93, fica impedida de com ela licitar e contratar enquanto perdurarem os motivos determinantes da sanção e até que seja promovida sua reabilitação.

Nesse condão, não se obsta, por óbvio, que a Administração certifique-se da idoneidade do licitante mediante exigências formuladas no ato convocatório. Entretanto, não as poderá fazer por intermédio do arrolamento conjunto com as que são próprias a aferição da qualificação técnica.

A questão que deve ser posta é a dos meios que devam ser empregados para que a Administração promova tal verificação de idoneidade.

Nesse caso, e sem ter a pretensão de aqui discutir os efeitos e a extensão da sanção declaratória de inidoneidade, matéria que suscita divergência entre os especialistas, entendo que restam à Administração duas alternativas razoavelmente viáveis:

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(i) ter registro dos licitantes que se encontram punidos com a pena de inidoneidade;

(ii) exigir dos licitantes autodeclaração de que os mesmos não se encontram punidos pelo poder público, estando os mesmos passíveis de responsabilização diante de eventual declaração falsa ou incongruente com a verdade dos fatos.

Nesse caso, descabe previsão editalícia que exija dos licitantes a apresentação de declaração de idoneidade formulada por terceiros, uma vez que a estes não é dado certificar se determinada pessoa física ou jurídica é idônea ou não para firmar contratos com a Administração, já que está em pauta uma espécie de sanção aplicada pelo poder público.

No caso concreto, a autoridade municipal parece associar idoneidade com bons antecedentes, que seriam passíveis de atestação por terceiros, nos mesmos moldes daqueles emitidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado para confirmar a aptidão técnica do licitante para o desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, nos termos do art. 30, II e §1º, da LF nº 8.666/93.

É imperioso consignar que idoneidade não se confunde com bons antecedentes, tampouco se demonstra por atestados técnicos lavrados por terceiros.

A regra geral é a da presunção juris tantum de idoneidade dos licitantes; a inidoneidade é uma condição excepcional, que tem natureza jurídica de penalidade administrativa.

Portanto, o órgão licitante deve se certificar da idoneidade do licitante mediante consulta em seus próprios acervos ou por autodeclaração do licitante, no sentido de que não se encontra punido pelo poder público.

Diante desse contexto, entendo que não só foi imprópria a alocação da exigência no campo da qualificação técnica, bem como a formulação de se exigir declaração de terceiros, conduta que viola o §1º do art. 3º da LF nº 8.666/93, que veda ao administrador público prever cláusulas ou condições, nos atos convocatórios, que restrinjam ou frustem o caráter competitivo do certame.

Lei 8666/1993:

Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á à:[...]

II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;[...]

§ 1º A comprovação de aptidão referida no inciso II do "caput" deste artigo, no caso das licitações pertinentes a obras e serviços, será feita por atestados fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado, devidamente registrados nas entidades profissionais competentes, limitadas as exigências à: I - capacitação técnico-profissional: comprovação do licitante de possuir em seu quadro permanente, na data prevista para entrega da proposta, profissional de nível superior ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, limitadas estas exclusivamente às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos.

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Por fim, deixo de acompanhar a sugestão do Corpo Técnico e do MPE no sentido de promover a aplicação de pena ao Chefe do Poder Executivo local por entender que se trata de erro formal e pontual na elaboração técnica do edital e, por via de consequência, do desenvolvimento dos procedimentos dele decorrentes, corrigível pela própria Administração, não havendo indícios suficientes da ocorrência de má-fé por parte do administrador público local.

A isso se some que o objeto licitado não redundou em dispêndio aos cofres da municipalidade, ao contrário, gerou receitas ao erário, que se diga, de pequena monta, sendo daí, ao meu sentir, desproporcional a aplicação de medida punitiva no patamar mínimo atualmente adotado por esta Corte.

Diante, portanto, dos fundamentos aqui empregados, reputo ilegal o ato convocatório, por afronta ao §1º do art. 3º da LF nº 8.666/93, sendo de igual modo ilegais os atos dele decorrentes, cabendo ao Titular do Poder Executivo local promover a anulação dos atos praticados de modo a compatibilizar o procedimento administrativo ao exato cumprimento da lei.

Pelo exposto e examinado, posiciono-me parcialmente de acordo com o Corpo Instrutivo e com o Ministério Público Especial e

VOTO: I- Pela REJEIçÃO das razões de defesa apresentadas pelo Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de Mesquita;II- Pela ILEGALIDADE do Edital da Concorrência Pública nº 04/2011, oriundo do Município de Mesquita, em razão de previsão de cláusula incompatível com o caráter competitivo do certame, em clara afronta ao §1º do art. 3º da LF nº 8.666/93;

III- Pela COMUNICAçÃO, prevista no §1º do art. 6º da Deliberação TCE-RJ nº 204/96, ao Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de Mesquita, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, adote as medidas administrativas necessárias à anulação do edital e dos atos dele decorrentes, compatibilizando o procedimento licitatório aos exatos mandamentos da LF nº 8.666/93;

IV- Pela EXPEDIçÃO DE OFÍCIO ao signatário da presente Representação para que tenha ciência desta decisão.

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*Voto aprovado por unanimidade.

APOSENTADORIA E FIXAçÃO DE PROVENTOS

Trata o presente do ato concessório de aposentadoria e respectiva fixação de proventos integrais em nome de EDILA HERMIDA DOS SANTOS, no cargo de Professor, ato exarado a contar de 19.02.2008.

O Pleno deste Tribunal, em Sessão de 25.11.2010, assim deliberou:

“VOTO:

Pela COMUNICAçÃO, nos termos da Lei Complementar n.º 63/90, ao responsável pelo Departamento de Pessoal da Secretaria de Estado de Educação, para que, no prazo de 30 (trinta) dias:

1 - Comprove o período em que a servidora percebeu a Gratificação de Encargos Educacionais, informando, ainda, o dispositivo que tenha autorizado o seu pagamento;

2 - Cientifique de forma inequívoca a servidora da situação de seu processo de aposentadoria, assim como franqueie à mesma manifestar-se nos autos, para que esta possa, se lhe aprouver, de modo autônomo, oferecer esclarecimentos e razões para os pontos suscitados e reputados irregulares, garantindo-se assim o exercício do direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa.”

Retornaram os autos da COMUNICAçÃO, visto que o Jurisdicionado cumpriu a exigência, acostando no presente processo documentos de fls. 39 a 49.

Ademais, a Superintendência de Gestão de Pessoas da Secretaria de Estado de Educação solicita nova análise do presente tendo em vista o Parecer RIOPREVIDÊNCIA n.º 03/2009 – FDCB –, do Diretor Jurídico da citada autarquia com a aprovação da Procuradoria-Geral do Estado.

Seguindo a regular tramitação, a Instrução conclui por sugerir o REGISTRO dos atos em apreço.

O Ministério Público Especial, este representado pela Procuradora Marianna Montebello Willeman, manifesta-se em igual sentido.

É o Relatório.

As parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho possuem um caráter condicional, o seu pagamento somente é garantido ao servidor enquanto permanecer exercendo as atividades naquele local. As vantagens, que podem ser retiradas a qualquer momento da remuneração do servidor, não podem adquirir caráter permanente, com a concessão da aposentadoria.

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Assiste razão à Instância Instrutiva. O presente processo merece ser CHANCELADO por este Órgão Controlador de Contas.

No que tange ao Parecer RIOPREVIDÊNCIA n.º 03/2009 – FDCB –, tecerei alguns comentários.

Em síntese, sustenta o ilustre Procurador que, quando da edição da Lei estadual n.º 5.260/08, o legislador optou pela proteção das expectativas legítimas dos servidores públicos, ao manter, na regra transitória do art. 35, a possibilidade de cômputo de Gratificações de Encargos Especiais nos proventos de inatividade para aposentadorias voluntárias, ainda que restringindo o universo de beneficiários mediante o enrijecimento dos requisitos.

Assevera, também, que o art. 1º, in fine, da Lei estadual n.º 5.352/08, especificamente na parte em que modifica a redação do art. 35 da Lei estadual n.º 5.260/08, é materialmente inconstitucional, por ferir os princípios do direito adquirido e da segurança jurídica, uma vez que suprime, pura e simplesmente, a regra de transição entre o regime do Decreto n.º 2.479/79 e aquele previsto na legislação previdenciária ora em vigor, ou seja, o art. 35, em seu formato original, ainda está vigente.

Data maxima venia, discordo da posição do Diretor Jurídico do RIOPREVIDÊNCIA. Senão vejamos.

Preliminarmente, quero deixar consignado que os Tribunais de Contas, no cumprimento de suas funções constitucionais e, mais especificamente, no exercício do controle da legalidade das aposentadorias, que é atribuição conferida pela Constituição Federal, também, exercem, incidenter tantum, de maneira difusa, controle in concreto de constitucionalidade de leis, visto que se é certo que as Cortes de Contas não podem “declarar” um ato normativo inconstitucional, é cediço que podem no exercício de suas funções, centralmente constitucionais, deixar de aplicar aqueles que, no seu entender, ofendam o Texto Constitucional, conforme lhes permite a Súmula n.º 347 do Supremo Tribunal Federal.

Todavia, não me manifestarei quanto à aplicabilidade ou não da referida Súmula n.º 347/STF no art. 35, em seu formato original, da Lei estadual n.º 5.260/08, haja vista que já me pronunciei a respeito desta questão nos autos do Processo TCE n.º 102.193-8/09.

Considerando a uniformidade das decisões deste Órgão Controlador de

Decreto 2479/79 – Aprova o Regulamento do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro.

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Contas, posso até considerar a vigência do citado dispositivo legal. No entanto, tão somente, no período de 12.06.2008 (data da promulgação) a 19.12.2008 (data da revogação).

O que defenderei neste voto, é a inequívoca e acertada modificação do susomencionado art. 35, em sua forma original, da Lei estadual n.º 5.260/08. O que farei a seguir.

Em primeiro lugar, vejamos o que estabelecia o artigo 35 da Lei 5.260, de 11 de junho de 2008, cujo texto original trazia a seguinte redação, verbis:

“Art. 35 - Integrarão os proventos dos segurados as vantagens pecuniárias percebidas ininterruptamente, na data de publicação desta Lei, há pelo menos 3 (três) anos, desde que o segurado permaneça no gozo da mesma por período de tempo ininterrupto, a contar da data de publicação desta Lei, e que, findo este período, totalize, pelo menos, 5 (cinco) anos de percepção, ingresse na inatividade, hipótese em que se manterá a incidência da contribuição previdenciária sobre a mencionada vantagem.”

Contudo, é de fácil verificação que o dispositivo ora transcrito padecia de vício de inconstitucionalidade, por acolher a integração de quaisquer vantagens aos proventos dos servidores, mediante o cumprimento das circunstâncias ali lavradas. Tanto que, em 19.12.2008, apenas 06 meses após a sua edição, o texto em destaque foi revogado pela Lei estadual n.º 5.352/08, que trouxe a seguinte redação:

“Art. 35 - Não integrarão os proventos dos segurados as parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho, de função de confiança ou de cargo em comissão, exceto quando tais parcelas integrarem a remuneração de contribuição do servidor que se aposentar com fundamento no artigo 40 da Constituição da República, respeitado, em qualquer hipótese, o limite do § 2º do citado artigo”.

O Professor Hely Lopes Meirelles assim define “vantagens pecuniárias”1:

“Vantagens pecuniárias são acréscimos de estipêndio do servidor, concedidas a título definitivo ou transitório, pela decorrência do tempo de serviço (ex facto temporis), ou pelo desempenho de funções especiais (ex facto officii), ou em razão das condições anormais em que se realiza o serviço (propter laborem) ou, finalmente, em razão de condições pessoais do servidor (propter personam). As duas primeiras espécies constituem

1 - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo Brasileiro. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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os adicionais (adicionais de vencimento e adicionais de função), as duas últimas formam a categoria das gratificações (gratificações de serviço e gratificações pessoais). Todas elas são espécies do gênero retribuição pecuniária, mas se apresentam com características próprias e efeitos peculiares em relação ao benefício e à Administração.”

Portanto, o dispositivo citado alhures vai de encontro à norma inserta no § 2º do art. 40 da Constituição Federal, com a redação trazida pela Emenda Constitucional n.º 20, de 16.12.1998:

“§ 2º - Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão.”

Conforme fartamente exposto por mim no voto que prolatei no Processo TCE n.º 231.958-2/06 (aprovado em Sessão de 25.06.09), e o que a doutrina e a jurisprudência abalizam, remuneração do cargo efetivo é o valor constituído pelo vencimento e vantagens pecuniárias permanentes desse cargo, estabelecido em lei, acrescidos dos adicionais de caráter individual e das vantagens pessoais permanentes, em harmonia também com o Art. 2º da Orientação Normativa MPS/SPS N.º 02, de 31.03.2009, verbis:

“IX - remuneração do cargo efetivo: o valor constituído pelos vencimentos e pelas vantagens pecuniárias permanentes do respectivo cargo, estabelecidas em lei de cada ente, acrescido dos adicionais de caráter individual e das vantagens pessoais permanentes;”

Proficiências transitórias, percebidas em razão do local de trabalho, bem como cargos comissionados e funções gratificadas não integrariam os proventos do servidor, conforme a Orientação Normativa acima citada – art. 43, caput e seu parágrafo primeiro:

“Art. 43. É vedada a inclusão nos benefícios de aposentadoria e pensão, para efeito de percepção destes, de parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho, de função de confiança, de cargo em comissão, de outras parcelas temporárias de remuneração, ou do abono de permanência de que trata o art. 86.”

“1º Compreende-se na vedação do caput a previsão de incorporação das parcelas temporárias diretamente nos benefícios ou na remuneração,

Emenda Constitucional 20/98 – Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências.

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apenas para efeito de concessão de benefícios, ainda que mediante regras específicas, independentemente de ter havido incidência de contribuição sobre tais parcelas.”

Por isso, quaisquer parcelas de natureza precária, dissociadas do cargo efetivo, a exemplo das gratificações de horas extras, serviços extraordinários, cargos em comissão ou funções gratificadas, após 16.12.98, data de publicação da Emenda Constitucional n.º 20/98, não mais poderão ser incorporados aos proventos.

Como consequência, após 16.12.98, qualquer norma existente, seja ela constitucional ou infraconstitucional, que assegure ao servidor o direito de incorporar, quando da passagem para a inatividade, gratificações ou adicionais, encontram-se revogadas pela Emenda Constitucional n.º 20/98, porquanto tais verbas não são e nunca foram parcelas inerentes à remuneração de servidor titular de cargo efetivo.

Portanto, depreende-se que as parcelas de natureza precária, que estão atreladas ao desempenho do cargo ou às condições e locais onde tal cargo é exercido, a partir de 16.12.98, data da publicação da Emenda Constitucional n.º 20/98, somente poderão ser incorporadas na forma expressa por lei, e frise-se: em atividade. Dito por outras palavras, é necessário que a vantagem integre os proventos de aposentadoria, e não se subordine quando da passagem à inatividade para ser inclusa nos proventos.

Repiso: as parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho possuem um caráter condicional, o seu pagamento somente é garantido ao servidor, enquanto permanecer exercendo suas funções naquele local. Desta maneira, as vantagens que podem ser retiradas a qualquer momento da remuneração do servidor, não podem, a meu ver, adquirir caráter permanente, com a concessão da aposentadoria, por colidir com a regra estatuída pela Emenda Constitucional n.º 20/98.

Assim, o parágrafo 2º do art. 40 da CF combate a edição de lei que preveja a incorporação de vantagens excedentes das próprias do cargo efetivo, quando da aposentadoria. Os proventos hão de abarcar, apenas, a remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, colhendo tão somente as vantagens percebidas em função da titularização desse cargo, salvo, como já exposto, para aquelas vantagens que ocorram ainda em atividade, que passam a compor a remuneração do servidor,

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constituindo direito pessoal, e, portanto, a inclusão das mesmas nos cálculos dos proventos não fere as disposições contidas na Emenda Constitucional n.º 20/98, no entanto, não é compatível o mesmo raciocínio em relação às parcelas transitórias, que dependem da concessão da aposentadoria para serem incorporadas aos proventos.

Sustenta-se, pois, que ao estabelecer o Texto Constitucional que os proventos não podem ter valor superior à remuneração do cargo efetivo (conceba-se, procedente do cargo efetivo) dissipou-se a possibilidade de outros valores ou vantagens integrarem a composição dos proventos, exceto aquelas gratificações próprias da retribuição ou inerentes ao exercício do cargo em que se deu a aposentadoria. Segundo tais dispositivos legais, está proibida pela Constituição Federal, com as disposições trazidas pela Emenda Constitucional n.º 20/98, a incorporação aos proventos, a guisa de estabilidade financeira ou incorporação ordinária - institutos de certa similitude nos efeitos pecuniários, mas de teleologia e regimes jurídicos bastante distintos -, outrora existentes no âmbito de nosso Estado e em muitos dos seus Municípios (bem assim em outros Estados e Municípios da Federação), de quaisquer vantagens que não tenham direta conexão derivativa do exercício do cargo efetivo, também compondo sua remuneração. Consequentemente, cabe a assertiva de que as leis que preveem essa espécie de benefício foram revogadas pela referida Emenda.

Corroborando com todo o exposto, vale destacar que o Superior Tribunal de Justiça – STJ – já decidiu em reiterados julgados2 que as parcelas concedidas em decorrência da anormalidade do serviço (propter laborem), isto é, por exemplo, gratificação de assiduidade, de adicional noturno, de serviços extraordinários, de desempenho e parcelas temporárias de remuneração são gratificações de serviço, que não se incorporam automaticamente ao vencimento, nem são auferidas na aposentadoria.

Decisões judiciais de diversos tribunais do país enveredam no mesmo raciocínio, conforme podemos verificar nos arestos abaixo:

TJRJ – Apelação Cível n.º 30.572/2006 – Relator: Des. Fernando Cabral.Administrativo e constitucional. Servidor Público. Gratificação de função de caráter transitório. Inadmissibilidade de sua incorporação aos vencimentos ou proventos do servidor. Pode a Administração, dentro de seu poder discricionário, a qualquer tempo, extinguir gratificação de caráter precário e transitório, sem que isto represente qualquer violação ao direito do servidor. O servidor público não tem direito adquirido a um

Apelação – termo originado do latim appellattio, que é utilizado no mesmo sentido originário: recurso interposto de juiz inferior para superior.

Apelação cível – assim se diz da apelação interposta em ação cível ou comercial. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

2 - RMS 22.239/PR – Paraná. Relator: Felix Fischer. Julgamento em 05.09.2007.

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determinado regime jurídico, nem a critérios estabelecidos anteriormente para a formação de sua remuneração global. Se a extinção se deu por simples discrição do Poder Público, que considerou desnecessário o pagamento da referida verba, deixando de estendê-la aos servidores do Poder Judiciário, a partir de então, dispensável a instauração de procedimento administrativo específico para a extinção do pagamento àquele determinado servidor. Norma de caráter geral por não se tratar de imputação de irregularidade ou ilegalidade no pagamento da referida verba, mas de juízo de conveniência e oportunidade da Administração. O regime previdenciário dos servidores públicos, a partir da EC 20/98, passou a ter, induvidosamente, caráter contributivo, não podendo o desconto de contribuição previdenciária incidir sobre vantagens não integrantes dos vencimentos do cargo efetivo para fins de aposentadoria, diante do princípio da não confiscatoriedade e da proporcionalidade dos tributos. Recurso parcialmente provido, para acolher o pedido alternativo dos autores, condenando o Estado a restituir-lhes os valores indevidamente descontados.

TJSC – Apelação cível n.º 2006.001891-9, da CapitalDes. Relator: Volnei Carlin - Data da Decisão: 30/03/2006 APELAçÃO CÍVEL - REVISÃO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ - SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - REQUERIMENTO DE INCLUSÃO DAS GRATIFICAçÕES DE FUNçÃO E DESEMPENHO DE ATIVIDADE ESPECIAL E DO AUXÍLIO-ALIMENTAçÃO AOS PROVENTOS PREVIDENCIÁRIOS - VANTAGENS PROPTER LABOREM - IMPOSSIBILIDADE.As gratificações de função e desempenho de atividade especial, bem como o auxílo-alimentação, consubstanciam-se como verbas propter laborem, sendo necessário o efetivo exercício do cargo para o recebimento da respectiva vantagem remuneratória, não podendo, portanto, compor os proventos de aposentadoria .

TJMG – Número do processo: 1.0106.06.021959-4/002(1) Relator: ALVIM SOARES Data do Julgamento: 12/02/2008 EMENTA: CONTRIBUIçÃO PREVIDENCIÁRIA - BASE DE CÁLCULO - VERBA DE NATUREZA TRANSITÓRIA - NÃO INCORPORAçÃO AO VENCIMENTO DO SERVIDOR - REPETIçÃO DE INDÉBITO - POSSIBILIDADE. A verba de natureza transitória não se incorpora ao vencimento do servidor. Logo, não pode integrar a base de cálculo para efeito da incidência da contribuição previdenciária. Pedido julgado improcedente. Reforma da sentença.

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Em reforço à minha argumentação, trago as palavras de Hely Lopes Meirelles, em obra já citada:

“Gratificação de serviço (propter laborem) é aquela que a Administração institui para recompensar riscos ou ônus decorrentes de trabalhos normais executados em condições anormais de perito ou de encargos para o servidor, tais como os serviços realizados com risco de vida e saúde ou prestados fora do expediente, da sede ou das atribuições ordinárias do cargo. O que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço, mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor. Nessa categoria de gratificações entram, dentre outras, as que a Administração paga pelos trabalhões realizados com risco de vida e saúde; pelos serviços extraordinários; pelo exercício do Magistério; pela representação de gabinete; pelo exercício em determinadas zonas ou locais; pela execução de trabalho técnico ou científico não decorrente do cargo; pela participação em banca examinadora ou comissão de estudo ou de concurso; pela transferência de sede (ajuda de custo); pela prestação de serviço fora da sede (diárias).”

“Essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias “pro labore faciendo” e “propter laborem”. Cessando o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento.”

Não se olvidando que aqueles servidores que reuniram os requisitos para se aposentarem, e, também, os pressupostos básicos consubstanciados no citado art. 35, poderiam incorporar aos proventos quaisquer vantagens, inclusive, cargos em comissão, funções gratificadas, gratificação de horas extras, gratificação de desempenho funcional, gratificação de produtividade, gratificação de representação de gabinete, gratificação pela participação em órgão de deliberação coletiva, gratificação pelo exercício temporário de magistério, uma vez que todas são consideradas “vantagens pecuniárias”. Todavia, não podemos confundir vantagem pecuniária permanente com vantagem pecuniária transitória.

Sem mencionar o importante fato de que tal norma legal trouxe, de forma indireta, a volta do instituto da incorporação de cargos comissionados e funções gratificadas, que, há muito, não mais existe no sistema jurídico administrativo do Estado, desde a edição da Lei estadual n.º 2.565, de junho de 1996.

Norma legal – em sentido genérico, é toda norma jurídica, ou toda regra, todo preceito emanado do poder competente e fixado na lei. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

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De certo, houve uma grande alteração em todo o quadro normativo, que determinou mudanças em conceitos jurídicos tais como “tempo de contribuição”, bem como na própria metodologia de cálculo.

A alteração do cálculo do beneficio do servidor após as Emendas Constitucionais n.ºs 20 e 41, fez com que a incidência de contribuição previdenciária sobre certas verbas fosse considerada indevida, como no caso da tributação previdenciária sobre os montantes percebidos a título de cargo em comissão, a título do exercício de função gratificada e parcelas que tenham como fundamento o local de trabalho do servidor, sem mencionar a incidência sobre verbas de natureza indenizatória.

Hoje em dia é praticamente pacífico que tais verbas, como não irão se refletir nos proventos do aposentado, não poderão ser tributadas quando percebidas em atividade, mas tal entendimento foi construído recentemente após estudos decorrentes das reformas previdenciárias e após várias decisões judiciais neste sentido.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu3 - inspirado em julgados do Supremo Tribunal Federal - que a incidência de contribuição previdenciária sobre parcelas remuneratórias que não integrem à remuneração do cargo efetivo do servidor, à míngua de dispositivo legal que defina como base de cálculo, constitui violação aos princípios da legalidade, da vedação de confisco e da capacidade econômica (contributiva), insculpidos nos incisos I e IV do art. 150 e § 1º do art. 145 da Constituição Federal, bem como o princípio da proporcionalidade entre o valor da remuneração-de-contribuição e o que se reverte em benefícios, posto que, na aposentadoria, o servidor receberá tão somente a totalidade da remuneração do cargo efetivo e não o quantum proporcional àquele sobre o qual contribuiu.

Forço concluir, então, que, em qualquer caso, os servidores deveriam manifestar o seu assentimento quanto ao desconto, sendo irregular qualquer incidência tributária caso não haja a manifestação positiva do servidor nesse sentido, inexistindo o entendimento de que o silêncio valeria como uma opção pelo desconto nesse caso, a não ser que a verba fosse incorporável.

Inexistindo o direito à incorporação, a verba não pode ser tributada pela contribuição previdenciária, a menos que o servidor manifeste expressamente seu desejo de que isso ocorra, pois nesse caso, no futuro, esses valores de contribuição irão aumentar o seu benefício, caso este seja

3 - RMS 21.559/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgamento em 02.10.2008.

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calculado com base nas novas regras. Entretanto, o desconto é por conta e risco do servidor.

A Constituição Federal, em seu art. 24, estabelece que a União Federal tem competência para editar normas gerais sobre direito previdenciário, e as Leis federais n.° 9.717/98 e n.° 10.887/2004 são consideradas regras gerais, e, em virtude disso, são de aplicação cogente e inafastável a todos os entes federativos.

Insta destacar que a Lei n.° 10.887/2004, no § 2º do seu artigo 4°, trazia essa previsão da opção pelo desconto somente em relação aos servidores federais, sendo um dispositivo constante desta lei que não possuía caráter nacional, e, sendo assim, a opção nos estados-membros somente poderia ser feita quando houvesse legislação apta a ensejá-la.

E assim o fez o nosso Estado com a promulgação da Lei estadual n.º 5.260, de 11.06.2008, onde foi disponibilizada aos servidores do Estado do Rio de Janeiro a opção pelo desconto nessas verbas que, em princípio, seriam isentas.

Logo, repiso: estou convencido de que a revogação do artigo 35 da Lei n.º 5.260, em seu texto original, de 11 de junho de 2008, foi apropriada.

Em segundo lugar, é pacífica a jurisprudência dos tribunais superiores quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico por parte dos servidores públicos ocupante de cargo público. Diz-se, nestes casos, que a relação jurídica que o servidor mantém com o Estado é legal ou estatutária, ou seja, objetiva, impessoal e unilateralmente alterável pelo Poder Público. A disciplina geral da função pública é considerada inapropriável pelo servidor público e, portanto, tida como sujeita à modificação com eficácia imediata tanto no plano constitucional quanto infraconstitucional.

O tema é complexo e obriga a recordar noções fundamentais sobre a função pública. Na doutrina, por todos, confira-se a lição sintética e precisa de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO sobre o tema:

"Em tempos, pretendeu-se que o vínculo jurídico entre o Estado e o funcionário fosse de natureza contratual. De início, entendido como contrato de direito público, afinal, prevaleceu o entendimento correto, que nega caráter contratual à relação e afirma-lhe natureza institucional.

Jurisprudência – derivado do latim jurisprudentia, de jus (Direito, Ciência do Direito) e prudentia (sabedoria), entende–se literalmente que é a ciência do Direito vista com sabedoria. [...] Assim é que se entende a jurisprudência como sábia interpretação e aplicação das leis a todos os casos concretos que se submetam a julgamento da Justiça. Ou seja, o hábito de interpretar e aplicar as leis aos fatos concretos, para que, assim, se decidam as causas. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

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Isto significa que o funcionário se encontra debaixo de uma situação legal, estatutária, que não é produzida mediante um acordo de vontades, mas imposta unilateralmente pelo Estado e, por isso mesmo, suscetível de ser, a qualquer tempo, alterada por ele sem que o funcionário possa se opor à mudança das condições de prestação de serviço, de sistema de retribuição, de direitos e vantagens, de deveres e limitações, em uma palavra de regime jurídico." (Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, 2ª ed., revista, atual., São Paulo, Ed. RT, 1991, p. 19).

Na jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é abundante a coleção de acórdãos que adotam a mesma orientação de recusar a existência de direito adquirido a regime jurídico pelos servidores públicos estatutários. Podem ser referidos alguns julgados:

"Constitucional Funcionário Público. Regime de tempo integral. Pela natureza estatutária das relações do funcionário público com a Administração, pode tal regime ser modificado por lei, sem que isto ofenda o principio constitucional da garantia ao direito adquirido" (STF, RE 99.592, Rel. Min. DÉCIO MIRANDA, RTJ 108/382, j. em 7/10/1983).

"A garantia constitucional do direito adquirido não faz intangível o regime jurídico de um servidor do Estado, sujeito ao estatuto especial ante a edição da lei complementar que o modifica" (STF, RE 99.594, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, RTJ 108/785)

"Funcionalismo. Proventos de aposentadoria. Se a lei extingue vantagem ou gratificação que serviu de base ao cálculo de proventos do funcionário aposentado, sem redução dos mesmos, não há ofensa a direito adquirido, uma vez que a garantia constitucional não abrange o regime jurídico" (STF, RE 99.955, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, RTJ 116.1065).

"Lei nova, ao criar direito novo para o servidor público, pode estabelecer, para o cômputo do tempo de serviço, critério diferente daquele determinado no regime jurídico anterior. Não há direito adquirido a regime jurídico" (S.T.F, R.E n. 99.522, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 153/110-113, j. em 1/03/1983).

"O funcionário tem direito adquirido a, quando se aposentar, ter seus proventos calculados em conformidade com a lei vigente ao tempo em que preencheu os requisitos para a aposentadoria. Não possui, contudo, direito adquirido ao regime jurídico relativo ao cargo, o qual pode ser

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modificado por lei posterior.(...) (S.T.F, R.E. n. 92.638, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 145/56-61, j. em 6/06/1980).

"Vencimentos: reajuste: direito adquirido Inexistência. Segundo a jurisprudência do STF- que reduz a questão à inexistência de direito adquirido a regime jurídico -, as leis ainda quando posteriores à norma constitucional de sua irredutibilidade - que modificam sistemática de reajuste de vencimentos ou proventos são aplicáveis desde o início de sua vigência. Ressalva do entendimento do relator, expresso no julgamento do MS 21.216.(Gallotti, RTJ 134/1.112)" (STF, R.E. n. 185.966-1, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU de 22.09.1995, Seção I., p.30632).

"Decreto-Lei nº 2.335/87. Plano Verão. Reajuste de 26, 05%. Direito adquirido. Inconstitucionalidade. 1- O Plenário da Corte reiterou o entendimento de que não há direito adquirido a vencimentos de funcionários públicos, nem direito adquirido a regime jurídico instituído por lei. Em se tratando de norma de aplicação imediata, esta não alcança vencimentos já pagos, ou devidos "pro labore facto"(...)" (STF, RE-199753-MG, Rel. Min. MAURÍCIO CORREIA, DJU de 07-06-1996, pp. 19843, j. em 30/04/1996).

“Ementa: CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. ART. 2º E EXPRESSÃO 8ª DO ART. 10, AMBOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41/2003. APOSENTADORIA. TEMPUS REGIT ACTUM. REGIME JURÍDICO. DIREITO ADQUIRIDO: NÃO-OCORRÊNCIA.1. A aposentadoria é direito constitucional que se adquire e se introduz no patrimônio jurídico do interessado no momento de sua formalização pela entidade competente.2. Em questões previdenciárias, aplicam-se as normas vigentes ao tempo da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade.3. Somente os servidores públicos que preenchiam os requisitos estabelecidos na Emenda Constitucional 20/1998, durante a vigência das normas por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela contida, com fundamento no art. 3º da Emenda Constitucional 41/2003.4. Os servidores públicos, que não tinham completado os requisitos para a aposentadoria quando do advento das novas normas constitucionais, passaram a ser regidos pelo regime previdenciário estatuído na Emenda Constitucional n. 41/2003, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional n. 47/2005.5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.”(STF, ADI n.º 3104/DF, Rel. Ministra Cármen Lúcia)“EMENTA: Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Desacerto

Emenda – no sentido legislativo, a emenda possui significado de substitutivo, ou seja, a proposta para alterar ou modificar parte ou todo o teor de um projeto de lei. (Vocabulário Jurídico – De Plácido e Silva)

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da decisão não demonstrado. 3. Direito adquirido a regime jurídico. Inexistência. Irredutibilidade de vencimentos. Não–ocorrência. Precedentes. 4. Reenquadramento de servidores ativos em nova carreira. Princípio da isonomia. Súmula 339 do STF. Extensão à pensionista. Impossibilidade. Precedentes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.”(STF, Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.º 423.652/RS, Rel. Ministro Gilmar Mendes)

No SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIçA, de outra parte, orientação idêntica é adotada nos seguintes acórdãos:

"(...) O regime público estatutário, que disciplina o vínculo entre o servidor público e a Administração, não tem natureza contratual, em razão do que inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório, sendo passível de modificação quando em desacordo com a ordem constitucional. (...).(STJ, ROMS 6756-PB, Sexta Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 18/11/1996, p. 44928, j. em 15/10/1996).

"(...) O regime jurídico estatutário, que disciplina o vinculo entre o servidor público, ativo e inativo, e a Administração, não tem natureza contratual, em razão do que inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório, sendo passível de modificação quando em desacordo com o teto limite constitucional. Esta colenda Corte consagrou o entendimento de que a pensão especial submete-se a incidência da legislação que determina novos critérios de fixação de seu percentual, não se encontrando imune a incidência do redutor, que deve ser calculado tomando-se como valor limite a remuneração referência do Poder a que esta vinculado o benefício. Recurso Especial conhecido e provido". (STJ, RESP 113698-SC, Sexta Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 01/09/1997, j. em 24/06/1997).

"(...) Militares da reserva - Pretensão de serem promovidos ao posto imediatamente superior - Tese sustentada no fato de terem ingressado no serviço público quando vigia norma que assim permitia, embora outra, existente por ocasião da passagem da inatividade, vedasse tal benefício. - Inexistência de direito adquirido. (....) Militar que entra em serviço ativo, dentro de determinada norma, não tem direito adquirido ao mesmo regime jurídico se outra passa a vigorar no decorrer de sua atividade. (....)" (STJ, RMS 4261-DF, Terceira Seção, Rel. ANSELMO SANTIAGO, DJ 08/09/1997, j. em 13/08/1997).

Como se vê, desde que sob o regime estatutário o Estado não firma

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contrato com seus servidores, mas para eles estabelece unilateralmente regime de trabalho e de retribuição por via estatutária, lícito lhe é, a todo tempo, alterar esse regime jurídico e, assim, as condições de serviço e de pagamento, desde que o faça por lei, sem discriminações pessoais, visando às conveniências da Administração. Contudo, da alteração do regime jurídico não pode advir redução da remuneração, pois a garantia da irredutibilidade protege o montante dos ganhos4.

Convém lembrar que o regime previdenciário hoje consagrado na Constituição, especialmente após a Emenda Constitucional n.º 41/2003, que alterou o art. 40, § 3º, da CF, tem caráter contributivo, mas traz incorporado um princípio antes previsto apenas para o regime geral da previdência: o princípio da solidariedade. É o que está expressamente previsto no art. 40 da CF:

"Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

§ 3º Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei".

Por força do princípio da solidariedade, o financiamento da previdência não tem como contrapartida necessária a previsão de prestações específicas ou proporcionais em favor do contribuinte. A manifestação mais evidente desse princípio é a sujeição à contribuição dos próprios inativos e pensionistas, em que a Magna Corte afastou qualquer modalidade de inconstitucionalidade dessa cobrança, apesar de ter sido levantado o argumento do direito adquirido a não tributação desses servidores.

Assim, essa orientação doutrinária e jurisprudencial, específica quanto ao tema da revisão do regime jurídico do servidor público, não impede a consolidação de vantagens ou a formação de direitos adquiridos frente à inovação legislativa na relação do servidor com o Estado.

Não se admite, porém, direito adquirido à mera sobrevivência no tempo do 4 - STF, RTJ 138/324; RE 183.700, DJU 17.6.96; RE 205.481, DJU 13.4.99.

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regime jurídico regulador da função pública, em benefício de indivíduos determinados, pois foi vencida no plano das ideias e na história a concepção patrimonial da função pública (quando os cargos públicos eram bens negociados, comprados ou doados, e integravam o patrimônio pessoal do seu titular). Atualmente, os cargos adotam o regime legal da função pública, estando à disposição do legislador, nos limites da Constituição, repelindo-se a ideia de que o regime jurídico regulador do exercício da função, em si mesmo considerado, possa ser incorporado ao patrimônio jurídico dos servidores ou da Administração.

Portanto, não se olvide afirmar que direito adquirido é todo aquele que preenche os requisitos legais ao seu tempo, postergando-se o seu exercício. Melhor expõe o mestre Rubens Limongi França (A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 5.ed: Ed. Saraiva, 1998), quando traduz os ensinamentos de Carlos Francesco Gabba:

“É adquirido todo direito que:

a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo;

b) nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”.

Vê-se, nitidamente, que há dúplice condição para que se tenha por adquirido o direito: o adimplemento das condições previstas na lei (fatto cumpiuto) enquanto ainda vigente, mesmo que seu gozo venha a ser diferido no tempo. Logo, volto a dizer: não há que se falar em direito adquirido a regime jurídico, sendo o direito adquirido uma situação fático-jurídica, e não uma posição de vantagem jurídica inadvertida no tempo. Utiliza-se a voz do Min. Sepúlveda Pertence (ADI n.º 2.087-1/AM) para melhor dizer o que se pretende:

“O direito adquirido, quando seja o caso, pode ser oposto com êxito à incidência e à aplicação de norma superveniente às situações subjetivas já constituídas, mas nunca à alteração em abstrato do próprio regime anterior”.

Um bom exemplo ocorreu no curso de tramitação da reforma administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/1998). Diversas emendas

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foram apresentadas visando declarar, mediante enunciado expresso, a ideia da validade de direitos adquiridos face às novas alterações constitucionais.

Nenhuma das propostas foi admitida. Na verdade importavam uma contradição lógica e uma contradição jurídica.

Contradição lógica, em primeiro lugar, pois as emendas enunciavam expressamente, geralmente para uma ou duas matérias, o que se admitia como regra geral. De um lado, se as emendas eram consideradas necessárias para garantia do direito adquirido, obviamente nenhuma garantia prévia era considerada suficiente, bastante por si para a tutela destes direitos, com o que indiretamente se negava a eficácia do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal face ao poder de reforma constitucional. De outro, ao enunciarem a garantia para uma ou duas matérias, "a contrario sensu", as emendas terminavam por excluir da garantia que enunciavam diversas outras matérias também objeto de alteração específica. Nenhum desses efeitos parece congruente com as intenções dos autores das emendas ou com a justificativa que apresentavam segundo a qual "existe direito adquirido contra a reforma da Constituição".

Contradição jurídica, porque as emendas enunciavam a inaplicabilidade a todos os atuais servidores das alterações operadas no regime jurídico de institutos jurídicos inteiros, como a estabilidade, quando se sabe que direito adquirido atina com situações jurídicas individuais e vantagens incorporadas no patrimônio individual. Parece evidente que a persistência no tempo do sistema de desligamento existente no regime jurídico anterior à reforma não conforma autêntica vantagem individual incorporável ao patrimônio jurídico de servidores públicos. É estranho ao conceito jurídico de direito adquirido a ideia de imunidade a alterações normativas abstratas, pois essa garantia não impede a modificação abstrata de institutos jurídicos, não visa bloquear a reforma legislativa. De frisar, por fim, que o regime da estabilidade, antes como depois da reforma, não constitui disciplina imutável ou absoluta, mas deixa margem à inovação do próprio legislador infraconstitucional em matéria de definição de novas faltas graves como hipóteses de perda de cargo.

As emendas dos parlamentares sobre o tema dos direitos adquiridos, no entanto, inegavelmente tiveram o mérito de abrir na sociedade o debate sobre os limites ou o alcance da garantia dos direitos adquiridos. De certo modo, alargaram o próprio debate parlamentar, tornando mais conhecido um problema técnico árduo, considerado por todos um dos problemas

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mais complexos da ciência do direito. A questão dos direitos adquiridos, no entanto, sempre aberta a novas abordagens e concretizações, parece encontrar solução adequada apenas quando é considerada caso a caso pelo Magistrado, a quem cabe em última instância precisar o limite de aplicação de todo direito novo.

Assim, algumas situações, se analisarmos sob um prisma crítico, podem parecer-nos injustas, mas foram obras do legislador, que está acima dessas questões, e que tem atributos para alterar o ordenamento jurídico, caso obtido o consenso necessário no Congresso Nacional e/ou na Assembleia Legislativa para a promulgação das emendas constitucionais e leis ordinárias.

Há de se ressaltar que a Lei estadual n.º 5.352/2008 teve origem em Projeto de Lei enviado à Assembleia Legislativa pelo Executivo, que, após aprovado pelo Poder Legislativo, retornou ao Chefe do Executivo que o sancionou, obedecendo, assim, ao processo legislativo ditado pela Constituição Estadual.

Ademais, a Lei supracitada foi objeto de controle de constitucionalidade preventivo, realizado pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa, “cuja função precípua é analisar a compatibilidade do projeto de lei ou proposta de emenda constitucional apresentados com o texto da Constituição Federal”5.

Lembremos que em diversos casos os servidores possuíam uma situação jurídica que foi alterada em decorrência de novas emendas constitucionais ou leis ordinárias, que modificaram o ordenamento jurídico vigente. Quantos servidores inativos consideram injusto recolher contribuição previdenciária após a inatividade? Quantos servidores consideraram injusta a criação de “pedágio" para lograr uma aposentadoria?

Imaginemos a situação de servidores que, à beira da publicação da Emenda de Constitucional n.° 20/98, estavam prestes a aposentar-se e tiveram que trabalhar mais anos para preencher os novos requisitos. E os servidores que percebiam remuneração superior ao teto previsto na Emenda Constitucional n.° 41/2003 e tiveram redução remuneratória, adequando os seus vencimentos a essa nova regra!

Idealizemos, também, quantos servidores entendem que tiveram suas expectativas frustradas com a promulgação da Lei estadual n.º 2.565/96,

Lei Estadual 2565/1996 – Revoga a Lei de Incorporações de Funções de Confiança e dá outras providências.

5 - Alexandre de Moraes, Direito Constitucional21ª Ed., p. 681.

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que extinguiu o instituto da incorporação de cargos em comissão e/ou funções gratificadas no sistema jurídico administrativo do Estado.

Ante todas as exposições teóricas e fáticas constantes deste voto, as conclusões são as seguintes:

1. – O art. 35, em seu texto original, da Lei estadual n.º 5.260/08, não existe mais no mundo jurídico desde 19.12.2008, uma vez que foi textualmente alterado pelo art. 1º da Lei estadual n.º 5.352/08;

2. – O art. 1º da Lei estadual n.º 5.352/08, bem como o novel art. 35 da Lei n.º 5.260/08, estão em plena vigência;

3. – No que tange apenas aos casos de aposentadorias cujos requisitos já se concluíram antes da inovação legal ora em exame, nada mudou quanto ao seu tratamento legal, visto que afetas à outra metodologia;

4. – Para aquelas concessões cujos requisitos foram (e serão) concluídos após 19.12.2008, data da publicação da Lei estadual n.º 5.352/08, aplica-se o novo art. 35 da Lei n.º 5.260/08, lembrando que tal dispositivo trata do cálculo de proventos referentes à regra atual (média prevista no art. 1º da Lei federal n.º 10.887/04);

5. – Nas concessões com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03 e no art. 3º da EC n.º 47/05, os proventos devem ser calculados com base na remuneração do cargo efetivo. Portanto, para estas modalidades de aposentadoria, com o fito de fundamentar as parcelas que compõem a fixação de proventos, deve ser utilizado o inciso IV, do art. 11 da Lei estadual n.º 5.260/08 – desde que, obviamente, o dispositivo legal que trata do Plano de Carreiras do respectivo órgão não discipline a respeito da matéria –, combinado, evidentemente, com os dispositivos legais que as criaram e estabeleceram suas formas de concessão e cálculo.

E, consequentemente, sendo o voto acatado pelo Pleno, este será o posicionamento deste Tribunal de Contas.

Por fim, não podemos olvidar que tanto a CONCESSÃO quanto a DENEGAçÃO DO REGISTRO dos atos de aposentadoria pelo TCE/RJ são deliberações INTANGÍVEIS ou INDISPONÍVEIS para a Administração.

Logo, nunca é tautológico lembrar: o controle da legalidade das

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aposentadorias jamais é subtraído dos Tribunais de Contas, pouco importando o que entenda o jurisdicionado. Dizendo em outros termos, no âmbito administrativo a última palavra sobre a eficácia do ato de inativação é, irrefragavelmente, do Tribunal de Contas.

Dessarte, ante todo o até aqui exposto e o que dos autos consta, posiciono-me parcialmente de acordo com a sugestão do Corpo Instrutivo e com o parecer do Ministério Público Especial

VOTO:

I – Pelo REGISTRO dos atos em exame.

II – Pela COMUNICAçÃO, nos termos da Lei Complementar n.º 63/90, ao responsável pela Diretoria de Direitos e Vantagens da Secretaria Estadual de Educação, para que tome ciência do inteiro teor deste voto.

III – Pela EXPEDIçÃO DE OFÍCIO, com destino ao RIOPREVIDÊNCIA, na pessoa de seu respectivo titular, CIENTIFICANDO-LHE desta Decisão.

IV – Pela CIÊNCIA deste voto à SUP.

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*Voto aprovado com declaração de voto do Cons. Aluisio Gama de Souza

CONVÊNIO

Trata o presente Processo 112.212-7/10 de Convênio nº 016/10 celebrado entre a Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer e o Instituto Superar, tendo como objeto a viabilização do evento “Athina Onassis International Horse Show – 7ª Etapa do Global Champions Tour”, no valor de R$ 2.000.000,00.

Na sessão de 31/05/111 , este E. Plenário decidiu, nos termos do voto por mim prolatado, pela comunicação à Secretária de Estado de Turismo, Esporte e Lazer, para que remetesse a esta Corte de Contas os elementos apontados na instrução do Corpo Instrutivo2.

Em razão da mencionada decisão, a Jurisdicionada encaminhou a esta Corte de Contas documentos que consubstanciaram o Doc. TCE nº 022.764-1/113 .

O Corpo Instrutivo, após análise, sugere notificação da responsável, nos termos abaixo transcritos4:

1. NOTIFICAçÃO pessoal, com base no disposto no art. 6º, § 2º da Deliberação TCE – RJ nº 204/96, à Senhora Márcia Beatriz Lins Izidoro, Secretária de Estado de Esporte e Lazer, para que apresente razões de defesa para o seguinte:

1.1. escolha do Instituto Superar para realização de atividades para as quais não possuía habilitação, em afronta ao artigo 30 da Lei 8.666/93;1.2. contratação de prestadora de serviços – LUFTHANSA CARGO – através de interposta pessoa – Instituto Superar – com burla ao princípio da obrigatoriedade de habilitação, em desacordo com o artigo 37 da Constituição Federal;1.3. celebração do presente convênio sem autorização do Governo do Estado, conforme determinado pelo art. 1º do Decreto Estadual nº 41.528/08 e por esta Corte no processo TCE/RJ nº 112.266-3/09;1.4. pagamento de “honorários assessoria” no valor de R$260.235,00, em desacordo com a natureza jurídica do Convênio, além de vedado pelo Decreto nº 41.528/08, artigo 8º, II;1.5. realização, por meio deste Convênio, de despesa com desvio de finalidade, conforme vedação do Decreto nº 41.528/08, artigo 8º, IV.

2. DETERMINAçÃO para que a Secretaria de Estado de Esporte e Lazer encaminhe a prestação de contas do Convênio nº 016/2010 a esta Corte.

O Ministério Público Especial5 concorda com a instrução.

É o relatório.

1 - Fls. 74/77.2 - Fls. 55/61-verso.3 - Fls. 83/154.4 - Fls. 159/163.5 - Fls. 73.

A análise da economicidade, no caso, deve ser realizada com um olhar prospectivo, deve ser diferida no tempo, vez que não é aconselhável que seja feita isoladamente tomando como parâmetro apenas o custo do evento em si, mas, sobretudo, a partir de uma avaliação qualitativa que considere os resultados alcançados.

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Antes de qualquer análise acerca do mérito do presente processo, é importante discorrer, ainda que em poucas linhas, sobre a importância de se prestigiar e extrair dos argumentos carreados aos autos pelos jurisdicionados, em suas peças de defesas, toda e qualquer informação que possa contribuir na busca da verdade real, pois a esta Corte de Contas compete, na realização de sua missão, verificar a regularidade dos procedimentos e com um olhar equidistante, das partes envolvidas, perquirir a justiça quanto aos atos praticados por seus jurisdicionados.

Neste contexto, insta assinalar que a responsável, devidamente comunicada nos autos, não se quedou inerte, ao contrário, prestou os esclarecimentos requeridos, trazendo ao feito elementos que, no entender deste julgador, são capazes de instrumentalizar um juízo de certeza acerca de seu mérito, tornando despicienda a notificação sugerida. Vejamos.

Preliminarmente, cumpre-me registrar que, cotejando as informações contidas no artigo 4º do Estatuto do Instituto Superar com as demais peças contidas nos autos, em especial aquela presente à fl. 876, afasto a argumentação de que a escolha do citado Instituto tenha, de algum modo, afrontado o artigo 30 da Lei de Licitações.

Isso porque, resta cristalino nos autos que o objeto do mencionado Instituto se coaduna com o papel por ele desempenhado na 7ª Etapa do Global Champions Tour, edição de 2010, bem assim que o citado Instituto, em conjunto, com a Aktuell e Atto Sports são coorganizadores do Athina Onassis International Horse Show.

Acerca da contratação da LUFTHANSA CARGO, entendo que não houve burla ao princípio da obrigatoriedade de licitação pelo fato da mencionada prestadora de serviços ter sido contratada pelo Instituto Superar. Mais uma vez me valho das informações trazidas aos autos para firmar meu entendimento. A este respeito merece transcrição a justificativa de fls. 88/89, senão vejamos:

“Em que pese não possuir, a Lufthansa, o atestado previsto no inciso I do artigo 25 da Lei nº 8.666/93, esta empresa é a única que possui um Animal Lounge com capacidade para 42 cavalos no aeroporto de Frankfurt (...). Além disso, a empresa tem 8 voos semanais regulares para o Brasil, possibilitando a utilização de voos regulares pagando apenas o desvio dos voos que normalmente pousam em São Paulo para o Rio de Janeiro. Com esta capacidade e quantidade de voos por semana tornou-se possível fazer o transporte com um risco infinitamente menor de acidentes e com um custo muito mais baixo do que utilizar voos charter7”.

Como se depreende da simples leitura do texto acima transcrito, a Jurisdicionada reconhece que a Lufthansa não era detentora da

6 - Item 6 das informações prestadas pela Jurisdicionada que esclarece acerca do papel desempenhado pelo Instituto Superar na organização do Athina Onassis International Horse Show – 7ª Etapa do Global Champions Tour, edição de 2010. 7 - Grifos como no original.

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exclusividade pretendida pela norma, contudo assegura que a prestadora de serviços é a única que possui a logística necessária para a realização do fim pretendido. A este respeito, merecem destaque os seguintes esclarecimentos apresentados8:

“Além da regularidade dos voos permitir transportar mais de 70 cavalos em vários voos numa mesma semana, sem o acúmulo de animais num mesmo voo, a experiência da Lufthansa e a adequação de suas aeronaves e principalmente a qualidade de suas baias de transportes de cavalos dão a certeza de que nenhuma outra companhia aérea tem a mesma capacidade para prestar este serviço9”.

Some-se a isso a declaração prestada pelo Gerente Executivo de Convênios da Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer, in verbis10:

“Declaro, outrossim, em relação aos valores destinados à empresa Lufthansa Cargo, não ter sido possível a pesquisa de mercado, tendo em vista que a mesma é a única com expertise no Brasil para transporte de animais de grande porte11”.

Dessa forma, a exigência contida na norma, qual seja, no art. 25, I da Lei nº 8.666/93, não deve ser afastada, porém, in casu, apenas mitigada a ponto de se aceitar às justificativas trazidas aos autos.

Analisando a economicidade da avença, é incontroverso, nos autos, que se houvesse a necessidade da contratação de um voo charter – diante da contratação de outro serviço que não dispusesse da mesma logística da LUFTHANSA-, haveria um incremento nos custos.

Ainda sobre esta questão, considero importante trazer à baila o pronunciamento da Coordenadoria de Estudos e Análises Técnicas – CEA que, instada a se manifestar, assim se pronunciou12:

“A concessão em tela visa, precipuamente, alavancar setores da economia turística e afins, e, ainda, projetar a imagem do Estado, bem como do Brasil ao resto do país e do exterior, concernente a negócios, turismo, cultura etc, como podemos constatar nas justificativas da proposição à fl. 18. Neste contexto, ainda que o orçamento estimado a ser suportado pela Administração vinculado ao Plano de Trabalho anexado ao Convênio, tenha base em pesquisa de mercado fidedigna, a concepção de economicidade para convênios desse tipo (de patrocínio) não deve ser vista estritamente mediante a análise das despesas realizadas para a consecução do evento imediato, mas sim uma série de acontecimentos futuros, mediatos, estes sim, que representam o objeto precípuo do pacto. A economia, então,abarca a avaliação do custo-benefício maior, de efetividade econômica, que somente será cabível a médio e longo prazo.

8 - Fl.89.9 - Sem grifos no original. 10 - Fl. 19.11 - Sem grifos no original. 12 - Fls. 157/158-verso.

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Além do mais, não se pode esquecer que a parte cabível ao ente privado também deve ser considerada, ou seja, a relação custo benefício ao Estado se modificaria sobremaneira caso o ente público realizasse o evento direto e integralmente”.

Como bem salientado pela CEA, a análise da economicidade neste tipo de Convênio deve ser realizada com um olhar prospectivo, deve ser diferida no tempo, vez que não é aconselhável que seja feita isoladamente tomando como parâmetro apenas o custo do evento em si, mas, sobretudo a partir de uma avaliação qualitativa que considere os resultados alcançados.

Neste diapasão, a própria justificativa técnica, da lavra da titular da pasta à época dos fatos, acostada aos autos13, apontam os benefícios que o dito evento trouxe para a cidade do Rio de Janeiro e, consequentemente, para o Estado como um todo, assim vejamos:

“Pelo segundo ano consecutivo, será realizado, no próximo mês de agosto, na Sociedade Hípica, o evento ‘Athina Onassis Internacional Horse Show, trazendo para o Rio de Janeiro, as principais estrelas do hipismo mundial. Ressalte-se que a primeira edição do evento foi transmitida, ao vivo, para todo o território brasileiro, para 59 países do continente europeu e para os Estados Unidos. Desta forma, além de inúmeras pessoas nacionais e estrangeiras, aficcionadas pelo hipismo, que tiveram oportunidade de conhecer as potencialidades de uma das mais lindas cidades do mundo, a mídia espontânea e as transmissões ao vivo certamente foram importante fator de atração de novos turistas. (...) Em face dos reflexos positivos que poderão advir da realização do evento para o Estado do Rio de Janeiro, não poderia a Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer deixar de prestar seu apoio à iniciativa”.

Acerca da alegação de que o Convênio, ora em análise, teria sido celebrado sem a competente autorização governamental, insta apontar o teor do documento de fl. 151, vide:

“AUTORIZO, por competência estabelecida no artigo 1º, § 1º do Decreto nº 41.528/2008, de acordo com o que consta no processo administrativo nº E-30/661/2010, louvado nas razões expostas pela Secretaria de Estado de Esporte, Turismo e Lazer, e desde que atendidas as recomendações formuladas pela Secretaria Jurídica desta Casa Civil, a celebração de convênio entre o Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Secretaria de Estado Turismo e Lazer, e o Instituto Superar”.

Destarte, fica a todo modo evidente que houve a autorização governamental para a celebração do Convênio, que ora se avalia.

Prosseguindo na análise do presente processo, estou convencido que 13 - Fl. 18.

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o pagamento realizado a título de “honorários assessoria”, em favor da sociedade empresária Feat – Transportes Internacionais, não afrontou a natureza jurídica do Convênio. Tal pagamento foi realizado em decorrência da prestação de serviços para assessoria aduaneira, tanto na chegada, quanto na saída do evento.

Os serviços visaram à emissão de Certificado Internacional para cumprimento às exigências sanitárias brasileiras, assessoria junto ao Ministério da Agricultura para emissão da Autorização de Importação, plantão 24 h no embarque/desembarque, liberação documental e física dos animais e assessoria junto a INFRAERO, Receita Fazendária do Estado do Rio de Janeiro e Receita Federal no Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim.

Importante destacar que a previsão para tal contratação já constava do Plano de Trabalho14 que, durante a marcha processual, foi detidamente analisado pela Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Esporte e Lazer, pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos - EGP-Rio e pela Assessoria Jurídica da Casa Civil. Vejamos o que nos diz esta última acerca do Plano de Trabalho15:

“É de conhecimento comum, e até mesmo intuitivo que a análise do plano de trabalho é matéria de ordem técnica. No presente caso, sua apreciação é incumbência dos órgãos técnicos competentes da pasta de origem e do EGP-Rio. Neste sentido, as únicas ressaltas tecidas no Plano de Trabalho dizem respeito à ausência de aprovação pelo concedente, o que deverá ocorrer antes da assinatura do termo do convênio e ao cronograma de desembolso, que deverá ser ajustado, haja vista a impossibilidade de despesa pretérita à celebração do convênio”.

Ademais, a Cláusula Sétima do Instrumento de Convênio já previa a possibilidade da contratação de terceiros pelo beneficiário, vejamos16:

“A celebração de contrato entre o BENEFICIÁRIO e terceiros, para a execução de serviços vinculados ao objeto deste Convênio, não acarretará a solidariedade direta, solidária ou subsidiária do CONCEDENTE, bem como não constituirá vínculo funcional ou empregatício, ou a responsabilidade pelo pagamento de encargos civis, trabalhistas, previdenciários, sociais, fiscais, comerciais, assistenciais ou outro de qualquer natureza”.

A corroborar o entendimento acima, é preciso esclarecer que a hipótese em comento – contratação de assessoria –, não encontra vedação no Decreto Estadual17 citado pelo Corpo Instrutivo que veda, apenas, a contratação de consultoria.

A princípio, numa análise rasa, os termos podem suscitar dúvidas, contudo

14 - Fls. 106/107.15 - Fls. 34 do documento de fls. 26/40.16 - Fls. 04/16.17 - “Art. 8º - Será vedada a inclusão, tolerância ou admissão, nos convênios, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade do agente, de cláusulas ou condições que prevejam ou permitam:I - realização de despesas a título de taxa ou comissão de administração, de gerência ou similar; II - pagamento de gratificação, consultoria, assistência técnica ou qualquer espécie de remuneração adicional a servidor que pertença aos quadros de órgãos ou de entidades das Administrações Públicas Federal, Estaduais, Municipais ou do Distrito Federal; III - aditamento prevendo alteração do objeto; IV - utilização dos recursos em finalidade diversa da estabelecida no respectivo instrumento, ainda que em caráter de emergência; V - realização de despesas em data anterior ou posterior à sua vigência; VI - atribuição de vigência ou de efeitos financeiros retroativos. (...)”.

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é preciso estabelecer suas diferenças. Na consultoria o foco do serviço é definir a melhor alternativa e apoiar na tomada de decisão estratégica. Na assessoria o foco do serviço é ajudar a fazer determinada tarefa. Então na consultoria o trabalho é de orientação e na assessoria o trabalho é de ajudar (auxiliar) na execução. Neste sentido, o trabalho contratado além de encontrar amparo no instrumento celebrado, não encontra vedação no Decreto Estadual nº 41.528/08, mais especificamente em seu art, 8º, inciso IV como apontado pelo Corpo Instrutivo.

Filio-me, contudo, a sugestão de remessa da prestação de contas do aludido convênio, pois entendo que esta Corte de Contas pode requisitar este tipo de documento a qualquer momento, para verificar a adequada aplicação dos recursos públicos.

Assim, considerando o criterioso exame dos autos, parcialmente com o Corpo Instrutivo e com o parecer do Ministério Público Especial;

VOTO:

I - Pelo CONHECIMENTO do presente Convênio.

II - Pela COMUNICAçÃO à atual Secretária de Estado de Esporte e Lazer, nos termos da Lei Complementar nº 63/90, para que, no prazo legal, remeta a esta Corte de Contas a documentação constante do item 2 da instrução de fls. 159/163, transcrita no relatório deste Voto, a saber:

- A prestação de contas do Convênio nº 016/10.

III – Pelo posterior ARQUIVAMENTO do processo.

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PARECERES

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TERMO ADITIVOBARCAS S. A. - TRANSPORTES MARÍTIMOS

PA R E C E R

Terceiro Termo Aditivo a Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário. Supressão do fornecimento do serviço no período da madrugada. Déficit informacional. Ausência de elementos imprescindíveis à adequada apreciação da legalidade, legitimidade, e economicidade do aditivo. Ne-cessidade de apresentação de documentos e remessa de esclarecimentos por parte da Secretaria de Transportes Públicos e da AGETRANSP.Aparente inobservância de decisões proferidas no âmbito da Ação Civil Pú-blica nº 2008.001.391010-8. Ordem de restabelecimento do serviço público no período mencionado.Necessidade de sustação cautelar dos efeitos do termo aditivo em exame, para restabelecer o serviço noturno de barcas. Art. 71, IX, CRFB, art. 124, VIII, CERJ, arts. 3º, XXIII, e 42, Lei Complementar Estadual nº 63/90, e arts. 4º, XXIII, e 512, RI-TCE/RJ.Pela COMUNICAçÃO, EXPEDIçÃO DE OFÍCIOS, DETERMINAçÃO e CHAMA-MENTO AO PROCESSO. Egrégio Tribunal: Versam os autos sobre o terceiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário, celebrado entre o Estado do Rio de Janeiro na qualidade de poder concedente, com a Barcas S. A. - Transportes Marítimos, na qualidade de concessionária.

O aditivo em exame, celebrado em 17.03.2011, teve por objeto a alteração das normas de operação de transporte aquaviário, suprimindo a obrigação da concessionária de prestar os serviços entre as 24 (vinte e quatro) horas e as 5 (cinco) horas, período no qual a paralisação serviria, entre outros, para manutenção e limpeza das embarcações.

O Corpo Instrutivo desta Corte sugere o conhecimento e arquivamento do termo aditivo, conforme instrução de fls. 27 / 28.

Sendo este o breve RELATÓRIO, passamos ao exame da matéria, salientando desde já discordância com a conclusão alcançada pelo corpo técnico, pelas razões que passamos a aduzir.

ALINE PIRES CARVALHO ASSUFProcuradora do MinistérioPúblico Especial junto aoTribunal de Contas

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I – Supressão do serviço de transporte aquaviário no período da madrugada: Histórico

Como se disse, trata-se de termo aditivo celebrado a contrato de concessão de serviço público de transporte aquaviário, celebrado com a finalidade de suprimir a obrigação da concessionária de fornecer o serviço público concedido no período da madrugada, entre meia-noite e cinco horas da manhã. O aditivo foi pactuado diretamente entre ESTADO e CONCESSIONÁRIA, sem interveniência da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transporte Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP.

Apesar os autos estarem instruídos com poucos documentos (em suma, constam deste processo o próprio Termo Aditivo e o Anexo V – fls. 03 / 08-, a publicação do extrato do mesmo – fls. 09 – e o parecer da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes, de lavra do Procurador de Estado RENAN MIGUEL SAAD – fls. 16 / 24), trata-se de questão de elevada complexidade e de relevantíssimo interesse público, eis que o aditivo promoveu modificação significativa no contrato de concessão de serviço público de transporte aquaviário celebrado com a BARCAS S. A., com impacto direto tanto na equação econômico-financeira inicial do pacto concessório, quanto no interesse público primário, eis que a supressão do serviço durante a madrugada reduz significativamente as opções de transporte da população entre os Municípios de Rio de Janeiro e Niterói em tal momento do dia.

Vê-se, igualmente, que discussão relativa à possibilidade, ou não, de supressão do serviço no período da madrugada pelo Terceiro Termo Aditivo ora em exame não foi, absolutamente, inaugurada com este instrumento: muito ao revés, foi precedida de longo histórico que data do ano de 2008, que buscaremos aqui retratar1, com base no relato contido nos poucos documentos a que este órgão ministerial teve acesso.

Extrai-se do parecer da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes que, pelos atos de fls. 177 / 178 e 191 do Processo Administrativo E-10/387/2008, o Senhor Secretário Estadual de Transportes, em ato administrativo, de caráter precário e provisório, autorizou a suspensão dos horários da madrugada da Linha Praça XV – Niterói pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, determinando inicialmente à concessionária BARCAS S. A. que disponibilizasse ônibus com ar condicionado para atender eventuais

1 - Considerando que o parecer da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes do Rio de Janeiro refere-se a pronunciamentos sobre o tema oriundos da douta Procuradoria-Geral do Estado que examinaram a questão de fundo nestes autos – a possibilidade de suspensão/supressão da operação dos serviços de transporte aquaviário entre Rio de Janeiro-Niterói no período da madrugada – , diligenciamos junto a este último órgão para obtenção dos pareceres exarados sobre a matéria, os quais anexamos a esta manifestação, por entendê-los indispensáveis para a formação do entendimento desta Corte de Contas na apreciação do termo aditivo em exame.

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usuários no período durante o horário de suspensão do serviço; retificando o despacho em ato posterior, para obrigar outra concessionária, a VIAçÃO MAUÁ S. A., à manutenção da referida alternativa de transporte.

Estes atos foram objeto do Parecer ASA/PSP nº 12/09, exarado pela PGE-RJ nos autos do Processo Administrativo E-10/387/2008, de lavra do ilustre Procurador de Estado ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO, o qual ora anexamos aos autos. O pronunciamento (aprovado in totum tanto pelo Procurador-Chefe da Procuradoria de Serviços Públicos FLÁVIO DE ARAÚJO WILLEMAN, quanto pela Procuradora-Geral de Estado, LUCIA LÉA GUIMARÃES TAVARES) concluiu, in verbis de seu último visto:

“Pela remessa dos autos ao Exmo. Sr. Governador do Estado, para que, no exercício da direção superior da Administração, decidir acerca da adoção das seguintes medidas:(i) Declaração de nulidade dos atos administrativos de fls. 177 / 178 e 191, que suspenderam o transporte aquaviário noturno, tal como previsto originariamente no contrato de concessão, bem assim, permitiram que os passageiros fossem transportados por empresa de ônibus;(ii) Determinação à AGETRANSP que promova o cálculo do valor total com o qual, financeiramente, a concessionária BARCAS S/A foi desonerada durante o período no qual os atos administrativos nulos, acima referidos, produziram efeitos;(iii) Quanto à posição do Estado na Ação civil pública que tem por objeto a anulação dos atos que autorizaram a interrupção do serviço noturno, deve se aguardar a decisão do Exmo. Sr. Governador de Estado sobre os pontos acima.” (grifos nossos – Parecer em anexo)

Os atos em comento também foram objeto da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-82, em trâmite perante a 8ª Vara de Fazenda Pública, ajuizada pela Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ, tendo por réus a BARCAS S. A. e a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transporte Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP.

Cumpre destacar a concessão liminar naquele feito, determinando à Concessionária o restabelecimento do serviço no período em questão, a qual transcreveremos na íntegra:

“Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta pela Comissão de Defesa

2 - Andamentos atualizados e íntegra das decisões transcritas neste Parecer são obteníveis através do sítio de internet do TJ-RJ (http://www.tj.rj.gov.br).

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do Consumidor da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em face da Agência Reguladora de Serviços Públicos concedidos e de Barcas S/A ao argumento de que a segunda ré suspendeu unilateralmente, desde o dia 13 de novembro de 2008, o serviço aquaviário do Rio à Niterói, e no sentido contrário, entre 0h e 5h, substituído temporariamente por ônibus que, de toda sorte, deixarão de circular em breve. Sustenta que a suspensão está em confronto com diversos dispositivos do Código do Consumidor e da Lei Geral de Serviços Públicos Concedidos, razão pela qual requer-se a antecipação de tutela para determinar à ré que restabeleça o transporte suspenso. É o relatório. A prova da suspensão está no documento de fls. 26, que se supõe verdadeiro. Quanto à questão de direito, todavia, não penso que haja nada no ordenamento jurídico que defina, a priori, a frequência de determinado serviço público ou impeça a suspensão durante determinadas horas do dia. É o que acontece com o Metrô do Rio de Janeiro e de quase toda cidade do mundo, que não funciona após determinado limite, quando o fluxo de passageiros não é suficiente para o custeio do aparato necessário à prestação do serviço. Por isto, deve ser a frequência fixada caso a caso, pelos termos da concessão, que por sua vez levará em conta estudos de viabilidade aos quais terão os concorrentes na licitação acesso no momento de oferecer sua proposta. No que toca ao transporte de passageiros do Rio a Niterói, este detalhe foi disciplinado, aparentemente, no anexo V do contrato, constante de fls. 82, segundo o qual, entre 0h e 6h deve haver balsas com intervalo mínimo de 60min, com oferta de lugares mínima de 100 passageiros entre 0h e 4h, e de 300 passageiros, das 4h às 6h. Nota-se, destarte, evidente sinal de descumprimento dos termos da concessão, em prejuízo dos cidadãos de Niterói e de São Gonçalo, que não encontram sucedâneo equivalente no transporte de ônibus, motivo pelo qual concedo a liminar para que o serviço seja restabelecido no prazo de dez dias, a contar da intimação, pena de multa diária de R$ 30.000,00. Neste mesmo prazo poderá a ré justificar a suspensão e apresentar seus argumentos, comprovando, eventualmente, a existência de permissão da Agência Reguladora Estadual, ainda que esta não se mostre definitiva ante os termos do contrato. Rio de Janeiro, 25 de março de 2009.” (grifos nossos).

A decisão acima transcrita foi mantida quando do exame pelo juízo de pedido de reconsideração, in verbis:

“Tendo em vista as peças trazidas pela ré com pedido de reconsideração da liminar deferida às fls.103/104, passo à análise dos argumentos expostos como fundamento da suspensão do transporte de passageiros pela Baía

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de Guanabara durante o período da madrugada, em contravenção ao texto do contrato firmado entre o Estado do Rio de Janeiro e a empresa concessionária. Segundo a ré, sua decisão foi amparada por prévio ato da Agência Reguladora de Serviços Públicos de Transportes Aquaviários, que por sua vez tomou por razão de decidir estudos vários comprovando o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, que chegou a uma taxa interna de retorno negativa de -4,7%, conforme fls.136. Como causa da frustração das expectativas de retorno, alude-se, às fls. 199, sobretudo, ao impacto das gratuidades concedidas aos estudantes e ao super dimensionamento das expectativas de demanda apresentadas no edital, para o que são propostas diversas soluções, a saber: a) ressarcimento da gratuidade de estudantes; b) reajuste das tarifas; c) isenção de ICMS sobre as tarifas e combustíveis; d) otimização dos horários e adoção de trajeto triangular para servir simultaneamente as linhas de Rio-Paquetá e Rio-Ribeira; e) eliminação do horário da madrugada e aumento para 60min do intervalo máximo nos fins de semana na linha Rio-Niterói. Quanto à possibilidade de alteração bilateral das obrigações assumidas nos contratos administrativos, não parece haver dúvidas doutrinárias. É o que diz Marcos Juruena Vilela Souto (Direito Administrativo das Concessões, pág. 230): ´Atendido o interesse público e mediante prévia aprovação do poder concedente, poderá ser determinada a alteração da designação, do número, do itinerário e dos pontos terminais de qualquer linha ou tráfego de transporte coletivo, comum ou especial, respeitado o princípio de ser mantida a estabilidade financeira da prestação de serviço.´ No mesmo sentido explica Celso Antonio Bandeira de Melo (Curso de Direito Administrativo, 15ª ed, pág. 576): ´Cogita de modificação do regime de execução ou modo de fornecimento para melhor adequação técnica, modificação de forma de pagamento, por imposições de circunstâncias supervenientes, mantido o valor inicial, para substituir a garantia de execução ou para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial afetado por fatos imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis...´ Pois a razão pela qual se optou pela suspensão do período noturno está no fato, exposto às fls. 137, de ser esta parte do dia responsável por 12% das viagens realizadas, que por sua vez beneficiavam apenas 2% dos passageiros transportados. Embora seja incontestável o poder da Administração Pública de rever os termos da concessão, poder este que configura verdadeiro dever de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, estou convencido de que as alternativas postas à disposição do poder concedente não são ilimitadas ou arbitrárias, porquanto condicionadas pelo Princípio da Razoabilidade e pelo dever de tutela do consumidor, qual disposto expressamente pela Carta de 1988 em

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seu art. 5º, XXXII, que eleva a proteção do destinatário dos serviços a direito fundamental do cidadão. Com efeito, no caso concreto, é justo dispor para o horário da madrugada, em virtude do fluxo de passageiros, freqüência de barcas inferior àquela empregada ao longo do dia. Mais do que ser justo, aliás, trata-se de regra evidente, utilizada em toda e cada área do serviço público, em obséquio aos recursos sempre limitados da Administração. Mas esta modulação não pode chegar ao ponto de suprimir o serviço quando, pelas características de fato envolvidas no problema, assuma ele foros de essencialidade. À guisa de exemplo, ninguém cogitará de fechar as emergências dos hospitais à noite ao argumento único de que neste período é menor a procura por atendimento médico, se comparado ao horário da tarde. Porque mesmo que funcionando deficitariamente, o que no caso os hospitais não se aplica pela natureza gratuita do serviço, é indubitável o imperativo de abertura no período noturno como única solução para aqueles que dele necessitam nesta parte do dia. É o que ocorre em relação ao serviço de barca. Embora óbvio que o número de passageiros após às 24h seja menor do que a freqüência diurna, interromper por completo o serviço implicaria em isolar as duas cidades, ou transferir os passageiros para meios não equivalentes, em detrimento da interpenetração que existe entre os dois centros urbanos e aquele de São Gonçalo, especificamente. Há enorme contingente de pessoas, ainda que menor do que aquele existente durante o dia, que transita de um centro a outro por razões de trabalho, estudo e lazer, de modo que por esta peculiaridade dos vínculos entre os dois pólos populacionais não é dado ao Poder Público chegar ao extremo, dentre as alternativas para reequilíbrio da equação financeira, de simplesmente interromper o serviço, a menos que ficasse demonstrado, e isto não está claro da impugnação ou dos documentos que pude ler, que o ínfimo número de pessoas transportadas no horário em questão não justifica a prestação de serviço em termos absolutos, e não em termos relativos, como se faz pela comparação entre os diversos horários do dia. Por tais razões mantenho a liminar concedida. Rio de Janeiro, 14 de abril de 2009.” (grifos nossos)

Necessário destacar que a decisão foi alvejada por recurso de Agravo de Instrumento (Proc. 2009.002.14684), a que inicialmente foi concedido efeito suspensivo por decisão publicada em 28.04.2009, com posterior restabelecimento da decisão impugnada, em razão do desprovimento do recurso em 28.04.2010, publicada em 24.05.2010. Ante esta decisão, foram opostos dois Embargos de Declaração (o segundo dos quais foi considerado meramente procrastinatório, inclusive com aplicação de sanção ao embargante), Recurso Especial, que restou inadmitido (Proc.

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nº 0024723-69.2009.8.19.0000), e Agravo de Instrumento em REsp ao STJ (Proc. nº 0024723-69.2009.8.19.0000), além de Suspensão de Liminar e Sentença no âmbito do STJ (Proc. nº 1297-RJ).

A despeito de todos estes incidentes processuais, a antecipação de tutela concedida não foi revertida até a presente data, ao menos do que se pode extrair dos andamentos e decisões disponíveis nos sítios de internet do TJ-RJ e do STJ.

Nova decisão sobre o assunto foi prolatada posteriormente, em 30.08.2010, ante a aparente recusa da ré em cumprir a determinação judicial. Veja-se:

“A contumácia da parte ré em cumprir a determinação judicial não só demonstra a sua desorganização administrativa como impõe injustificado prejuízo à população do estado do Rio de Janeiro, que se encontra desprovida do fornecimento de serviço essencial de acordo com o estipulado no contrato de concessão e a determinação da Agência Reguladora competente. Dispõe o artigo 14, V do CPC que são deveres das partes cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Com efeito, o ordenamento jurídico elevou à condição de ato atentatório ao exercício da jurisdição todo e qualquer embaraço criado pela parte à efetivação das decisões judiciais, podendo o Juízo, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade de sua conduta (artigo 14, parágrafo único, CPC). Consoante sedimentado entendimento doutrinário, o dispositivo legal em questão consagrou na ordem positiva o instituto do contempt of court, oriundo do direito anglo-saxão, podendo-se defini-lo como sendo ‘a prática de qualquer ato que tenda a ofender um juiz ou tribunal na administração da justiça, ou a diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem’ (in Grinover, Abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court´, apud ´Código de Processo Civil Comentado´, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Ed. Revista dos Tribunais, pg. 179). Assim é que entendo que o caso dos autos revela a resistência injustificada ao cumprimento de uma ordem judicial, sendo imperiosa a incidência do disposto no artigo 14, parágrafo único do CPC, sem prejuízo da apuração das infrações criminais praticadas pela parte ou seu representante legal. Firme nessas razões, determino seja renovada a diligência de intimação pessoal da parte BARCAS S/A para que seja restabelecido o serviço de acordo com o Anexo V do contrato de concessão, qual seja, transporte de

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barcas no horário compreendido entre 0h e 06h, com intervalo mínimo de 60 minutos e oferta de lugares mínima de 100 passageiros entre 0h e 04h, e de 300 passageiros, das 04h às 06h, no prazo de 72h, sob pena de MULTA PESSOAL DO SEU REPRESENTANTE LEGAL, no valor diário que ora fixo em R$10.000,00, o que faço com arrimo no artigo 14, parágrafo único do Código de Processo Civil. Destaco desde já que a penalidade acima referida decorre da caracterização do ato atentatório ao exercício da jurisdição, sendo totalmente independente da astreinte fixada às fls. 104 por dia de descumprimento, bem como da responsabilidade criminal do representante legal da parte ré. Assim, decorrido o prazo ora fixado, sem restabelecimento do serviço, expeça-se novo mandado, agora de prisão, em desfavor do presidente da BARCAS S/A, devendo o SR. OJA conduzir o representante legal da empresa à autoridade policial para lavratura de termo circunstanciado, diante da caracterização do crime de desobediência. Intimem-se e cumpra-se, com urgência. Tudo cumprido, ao MP.” (grifos nossos. Destaque-se que a decisão, no ponto relativo à expedição de ordem de prisão ao presidente das BARCAS S. A., foi objeto de dois Habeas Corpus, Procs. nº 0044080-98-2010-8-19-0000 e 0044560-76.2010.8.19.0000, com concessão da ordem neste último feito para cassar a ordem de prisão em desfavor dos pacientes, conforme informação obtida via andamento processual na internet).

Permanece, portanto, em pleno vigor a decisão determinando à concessionária BARCAS S. A. que restabeleça de imediato a prestação de serviço de transporte aquaviário durante a madrugada.

Neste contexto, insere-se ainda o Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, exarado pela PGE-RJ nos autos do Processo Administrativo nº E-10/152/2010, de lavra da ilustre Procuradora de Estado PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO, e aprovado in totum pelas instâncias revisoras. Naquele pronunciamento, examinou-se consulta sobre a possibilidade de supressão do serviço de transporte aquaviário em horário noturno, concluindo a PGE-RJ como abaixo se transcreve:

“Como bem ressaltado no parecer ora aprovado, a supressão do serviço de transporte aquaviário no horário noturno depende de juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público, à luz do interesse público e considerando as necessidades reais da população.Entretanto, são condições para a decisão a ser adotada pelo Poder Público acerca da supressão do serviço noturno do transporte aquaviário, mediante celebração de termo aditivo ao contrato de concessão:

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a) a realização de estudo específico sobre as consequências da não prestação do serviço noturno e de sua substituição por serviço de transporte rodoviário, inclusive no que respeita ao adequado atendimento aos usuários, como recomendado pela AGETRANSP;b) a definição de contrapartida contratual da concessionária em favor do Estado, equivalente à redução de encargos da concessionária, ou redução proporcional do valor da tarifa, para evitar o desequilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão em favor da concessionária;c) a consideração das decisões proferidas nos autos da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, proposta pela Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa em face da AGETRANSP e da concessionária, especialmente a decisão no Agravo de Instrumento nº 2009.002.14684, que manteve a liminar que determinava o restabelecimento do serviço noturno pela concessionária.” (os grifos pertencem ao original – parecer em anexo).

Em exame às condições acima transcritas, a Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes considerou-as todas atendidas (juízo formado com base nos elementos acostados aos Processos Administrativos E-10/387/2008 e seus apensos E-10/469/2006, E-04/079.231, E-10/132.610/2002, E-10/729/2009 e E-10/152/2010, nenhum dos quais encontra-se acostado aos presentes autos) e teve por possível a supressão do serviço noturno de transporte aquaviário através da celebração do aditivo ora em exame.

Este o contexto em que se inseriu a celebração do aditivo ora em exame, em muito apertada síntese do que se encontra delineado nos poucos documentos a que este órgão ministerial teve acesso.

II – Impossibilidade de exame de legalidade do aditivo com base nos elementos acostados a estes autos: necessidade de juntada de novos documentos

Como resta evidente do item I deste Parecer, os 03 (três) Pareceres dos órgãos de consultoria jurídica que se pronunciaram a respeito da matéria ventilada nestes autos (os dois oriundos da PGE-RJ, e aquele elaborado pela Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes) delineiam diversos requisitos a condicionar a legalidade do termo aditivo em exame.

Todavia, a escassez de elementos que acomete os presentes autos impede a aferição do preenchimento de tais requisitos – obstaculizando sobremaneira o encargo de exame de legalidade, legitimidade e economicidade do termo aditivo em exame por parte desta Corte.

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Com efeito, revela-se de caráter imprescindível, a nosso sentir, não apenas a juntada de elementos que evidenciem inequivocamente o atendimento integral das condições declinadas no visto da Procuradora-Geral de Estado ao Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP. É de idêntica imperatividade que sejam acostadas aos autos cópia integral dos Processos Administrativos E-10/387/2008 e seus apensos E-10/469/2006, E-04/079.231, E-10/132.610/2002, E-10/729/2009 e E-10/152/2010, bem como de outros eventuais processos e documentos que versem sobre a matéria ora ventilada, tudo de maneira a que esta Corte possa averiguar com plena segurança a adequação do termo em exame à ordem jurídica.

Apenas isto possibilitará a verificação inquestionável não apenas das condições designadas pela PGE-RJ, como também acerca da pertinência de cada um dos motivos listados pelo jurisdicionado para a alteração realizada no pacto concessório (listadas nos extensos “considerandos” do termo aditivo3, e ligadas, em apertada síntese, ao alto custo de operação do serviço no período noturno aliada à pouca demanda, o atendimento da população através do modal rodoviário, o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato e necessidade de desoneração da concessionária com fito de permitir o respeito à modicidade das tarifas) – cuja verificação de efetiva ocorrência, pela tradicional teoria dos motivos determinantes4, vincula a legalidade do ato administrativo bilateral que ora se sindica.

Adicionalmente, cumpre indagar ao jurisdicionado as razões determinantes da ausência da AGETRANSP na condição de interveniente quando da celebração do aditivo ora em exame. Considerando que uma das condições designadas pela PGE-RJ foi oriunda de recomendação daquela agência, e que cabe à mesma, salvo engano e dentre outras importantes atribuições, examinar tecnicamente, entre outros aspectos da concessão, a importante questão do equilíbrio econômico-financeiro do pacto5 (aduzido como razão principal para a supressão do serviço noturno), afigurar-se-ia natural que a entidade participasse das negociações e efetiva implementação de alteração no pacto concessório promovida por este aditivo.

A AGETRANSP, aliás e como já mencionado, figura como Ré no âmbito da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, aparentemente de maneira incorreta, eis que o ato impugnado pelo Autor não é de lavra daquela entidade, mas sim do Sr. Secretário de Estado de Transportes. Do que se extrai da leitura do Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, a AGETRANSP inclusive apresentou oposição à suspensão temporária do serviço noturno, tornando sobremaneira relevante conhecer as razões da entidade para

3 - In verbis dos “considerandos” do aditivo a fls. 03 / 05, cumpre destacar a “existência de uma demanda reprimida exclusivamente de passageiros apenas entre 5 (cinco) horas da manhã e a 22 (vinte e duas) horas”, os “autos (sic) custos de operação do transporte aquaviário entre as 23 (vinte e três) horas e as 5 (cinco) horas, para uma pública e notória ociosidade das embarcações”, o “dever do ESTADO (de) primar pela eficiência do serviço público, com vista à desoneração dos custos da CONCESSIONÁRIA, de forma a permitir o princípio da modicidade tarifária”, que “os usuários do serviço de transporte de passageiros entre Rio de Janeiro e Niterói, no horário noturno, já vêm sendo atendidos adequadamente pelo modal rodoviário”, o “processo regulatório, que se encontra em tramitação perante à (sic) AGETRANSP, com vista à (sic) se apurar o desequilíbrio econômico-financeiro entre 2003 e 2008, e, por via de consequência, a nova tarifa de equilíbrio”, que “os estudos regulatórios irão considerar os custos da operação associado ao retorno dos investimentos para se alcançar a tarifa de equilíbrio”, e que “a exclusão dos custos da operação do horário noturno irá aproximar a tarifa atualmente praticada com a tarifa de equilíbrio, em benefício dos usuários e do ESTADO”.

4 - Conforme ensinamento do mestre DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, “motivo é o pressuposto de fato e de direito que determina ou possibilita a edição do ato administrativo”. Destaca o ilustre professor que a teoria dos motivos determinantes “reconhece a automática vinculação do ato aos motivos, mesmo discricionários, sempre que hajam sido declinados pelo agente”. Nesta toada, “a motivação, possibilitando a visibilidade intencional do ato e facilitando sua plena sindicabilidade, é, sobretudo, pedagógica, pois põe em evidência que a sede do poder não reside na autoridade do agente, mas na da lei”

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assim se manifestar, promovendo-se, para tanto, juntada do Processo Administrativo E-14/024295/2009, mencionado no Parecer citado como fonte desta informação, e de quaisquer outros feitos que tenham tramitado na AGETRANSP acerca do tema.

Ante o exposto, este órgão ministerial solicitará, quando da conclusão deste pronunciamento, a COMUNICAçÃO à Secretaria de Estado de Transportes e à AGETRANSP, para que as mesmas providenciem a remessa a esta Corte de elementos aptos a adequadamente instruir o feito.

III – Da aparente inobservância das decisões proferidas no âmbito da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8

Em que pese o déficit informacional mencionado, os elementos a que este órgão ministerial teve acesso levam a crer que, ao contrário do que se supõe no Parecer da douta Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transporte, especificamente a fls. 23 / 24 destes autos, a supressão do serviço noturno de barcas, ainda que através da celebração de termo aditivo, importa, sim, em descumprimento das decisões até o momento prolatadas no âmbito da citada Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, as quais se encontram transcritas no item I deste Parecer.

Com efeito, o MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública concedeu a liminar pleiteada naquele feito para que seja restabelecida a operação do serviço no prazo que menciona. A ordem foi dirigida à Concessionária BARCAS S. A., foi mantida quando da apreciação de pedido de reconsideração, e, a despeito de suspensa durante o período em que se aguardava o julgamento do Agravo de Instrumento oposto contra o decisum, foi plenamente restabelecida com o desprovimento deste recurso (ao que seguiu a interposição de dois Embargos de Declaração, o último dos quais foi tido como manifestamente protelatório com aplicação de sanção). Com isto, não resta qualquer dúvida sobre o vigor e aplicabilidade da decisão citada.

Em que pese o feito impugnar especificamente ato administrativo unilateral de lavra do Sr. Secretário de Estado de Transportes que promoveu a supressão do serviço de transporte aquaviário noturno6 – e não questionar o posterior ato bilateral entre o Poder Concedente e a Concessionária pactuando idêntica supressão -, este parquet destaca que o conteúdo da ordem contida na decisão antecipatória de tutela determina a BARCAS S.A. o imediato restabelecimento do serviço noturno.

(MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14ª Edição. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2006. Página 140).

5 - Nos termos da Lei Estadual nº 4.555, de 06.06.2005, a AGETRANSP é “autarquia especial, com plena autonomia administrativa, técnica e financeira” (art. 1º), tendo por finalidade “exercer o poder regulatório, acompanhando, controlando e fiscalizando as concessões e permissões de serviços públicos concedidos de transporte aquaviário, ferroviário e metroviário e de rodovias nos quais o Estado figure, por disposição legal ou pactual, como o Poder Concedente ou Permitente” (art. 2º) e competindo-lhe “I - zelar pelo fiel cumprimento da legislação e dos contratos de concessão ou permissão de serviços públicos relativos à esfera de suas atribuições”; II - dirimir, como instância administrativa definitiva, conflitos envolvendo o Poder Concedente ou Permitente, os concessionários ou permissionários de serviços públicos concedidos de transporte aquaviário, ferroviário e metroviário e de rodovias e respectivos usuários; III - decidir, como instância administrativa definitiva, em tempo hábil, em obediência aos contratos, os pedidos de revisão de tarifas de serviços públicos concedidos ou permitidos; IV - fiscalizar, diretamente ou mediante delegação, os aspectos técnico, econômico, contábil e financeiro, sempre nos limites estabelecidos em normas legais, regulamentares ou pactuais, os contratos de concessão ou permissão de serviços públicos, aplicando diretamente as sanções cabíveis; V - expedir deliberações e instruções tendo por objeto os contratos submetidos a sua competência, inclusive fixando prazos para cumprimento de obrigações por parte das concessionárias e permissionárias, voluntariamente ou quando instada por conflito de interesses; VI - determinar diligências junto ao Poder

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Igualmente, a se apontar que o Estado do Rio de Janeiro, Poder Concedente, não figura nos autos da Ação Civil Pública citada, e que por isto não está vinculado ao que resta ali decidido, há que se responder que é insuscetível de dúvida que a BARCAS S. A., Concessionária, responde ao Processo na condição de ré, e deve obediência às determinações ali exaradas.

A incidência impeditiva do decidido nos autos da Ação Civil Pública não escapou à astúcia da PGE-RJ quando da lavratura do Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP. Com efeito, salientou a ilustre Procuradora de Estado PATRICIA PERRONE CAMPOS MELLO:

“Por fim, eventual decisão pela supressão do serviço deverá considerar as decisões vigentes, proferidas no bojo da ação civil pública nº 2008.001.391010-8 e o estado do processo na ocasião. Como já esclarecido, o objetivo desta ação é, justamente, impedir a extinção do serviço noturno, e foi deferida liminar em seu bojo, mantida, até o momento, em segundo grau (pendente de julgamento de embargos de declaração em agravo de instrumento)7.O Estado não integra a relação processual, ainda, e em razão de erro da Autora quanto à autoridade que deferiu a autorização para a interrupção do serviço. No entanto, os fatos e as considerações de direito já tecidas pelos magistrados não mudam em razão do autor do ato e revelam o entendimento do Judiciário sobre o tema. Além disso, a solução aventada neste processo para a alegada recomposição do equilíbrio econômico-financeiro é consensual, dependendo de aditivo contratual, com a concordância de Barcas S/A, que é parte no feito e que indubitavelmente de (sic) sujeita às decisões nele proferidas. Ainda que se viesse a cogitar de alteração unilateral do Estado, a existência de tal ação e as decisões em vigor constituem risco substancial de se gerar contencioso em desfavor do ente público.”

O entendimento foi reforçado no visto de lavra do douto Procurador de Estado Chefe da Procuradoria de Serviços Públicos, FLÁVIO DE ARAÚJO WILLEMAN:

“No caso em análise, chamo a atenção para um fato que reputo importante para embasar a decisão administrativa que responderá ao pleito de Barcas S/A. Conforme bem destacou a Dra. Patrícia Perrone, há decisão judicial proferida em ação civil pública (...), em que se decidiu não ser a supressão do serviço noturno de Barcas a melhor forma (à luz do princípio da razoabilidade) de se reequilibrar o contrato de concessão, na eventualidade

Concedente, concessionários, permissionários e usuários dos serviços, podendo para tanto ter amplo acesso aos dados e informações relativos aos contratos de sua competência; VII - promover estudos sobre a qualidade dos serviços públicos concedidos e permitidos com vista à sua maior eficiência; VIII - contratar serviços técnicos, vistorias, estudos, auditorias ou exames necessários ao exercício das atividades de sua competência com entes públicos ou privados; IX - dar publicidade às suas decisões; X - aprovar seu regimento interno, bem assim a proposta de seu orçamento, a ser incluída no Orçamento Geral do Poder Executivo; XI - receber, por intermédio da Ouvidoria, sugestões e reclamações de usuários de serviços públicos concedidos ou permitidos sob seu controle, para submissão à apreciação do Conselho-Diretor, com vista à adoção e julgamento das medidas que entender cabíveis; XII – respeitar integralmente os prazos legais quanto à apreciação dos pedidos das concessionárias de retomada de equilíbrio físico-financeiro, reajuste tarifário e revisão contratual; XIII – interagir com as autoridades federais, estaduais e municipais responsáveis pela regulamentação e fiscalização dos serviços públicos de transporte, bem como por outras atividades que afetem esses serviços; XIV – deliberar, na esfera administrativa, quanto à interpretação das normas legais e contratuais, no que se refere a serviços públicos de transporte, fixando a orientação a ser adotada nos casos omissos; XV – estabelecer padrões de serviço adequado, garantindo ao usuário regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas; XVI – exigir, conforme previsto nos contratos de concessão ou permissão, a expansão e a modernização dos serviços delegados, de modo a buscar a sua universalização e melhoria dos padrões de qualidade,

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de se comprovar o desequilíbrio econômico e financeiro. (...)Percebe-se, assim, que há decisão judicial entendendo que o contrato de concessão de Barcas não pode ser objeto de revisão para fins de reequilíbrio econômico e financeiro com a supressão do serviço noturno, sob pena de violação do princípio constitucional da razoabilidade.” (grifos nossos)

Outra não foi a razão pela qual a conclusão do mencionado Parecer, concretizada no visto da ilustre Procuradora-Geral de Estado LUCIA LÉA GUIMARÃES TAVARES, condicionava a celebração de um eventual aditivo à consideração das decisões proferidas nos autos daquele feito, em especial à decisão proferida no âmbito do Agravo de Instrumento, que manteve a decisão a determinar o restabelecimento do serviço (como transcrito no item I do presente pronunciamento).

Nesta toada, e com a devida vênia, parece temerário que o Estado (cuja ignorância acerca do conteúdo da decisão liminar exarada na Ação Civil Pública não se pode alegar, eis que a mesma é mencionada e minudenciada em todos os três pareceres jurídicos ora citados) autorize – sob qualquer roupagem jurídica – a cessação de um serviço que o MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública determinou peremptória e insistentemente que fosse restabelecido.

A justificar a autorização, aponta-se no Parecer da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes trecho de decisão que apreciou e negou provimento aos primeiros Embargos de Declaração opostos pela BARCAS S. A., em que asseverou o Exmo. Desembargador FRANCISCO DE ASSIS PESSANHA que “se a embargante, em tese, tem direito à aplicabilidade de cláusula contratual relativa a equilíbrio econômico-financeiro, assim como qualquer outro eventual direito, as alegações em referência devem ser restabelecidas e buscadas através de aditivo ao respectivo contrato de concessão” – trecho de acórdão transcrito pelo parecerista como se o julgado houvesse de fato reformado a decisão liminar impugnada pelo agravo.

Ante a interpretação conferida, há que destacar seu flagrante equívoco, ante a constatação óbvia de que os recursos que impugnaram a decisão de antecipação de tutela tiveram todos provimento integralmente negado. Isso significa que a decisão do juízo de primeiro grau está mantida.

Em se entender que a decisão antecipatória da tutela jurisdicional estaria sendo modificada pelo acórdão, para estabelecer que a supressão do

ressalvada a competência do Estado quanto à definição das políticas setoriais e seu caráter de intermodalidade; XVII – firmar convênios com agências correlatas de âmbito federal para exercer fiscalização de atividades no território do Estado do Rio de Janeiro; XVIII – resguardar os direitos garantidos pela Lei nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor” (art. 4º).

6 - Circunstância cuja verdade não tivemos oportunidade de aferir, posto que não houve acesso à cópia da petição inicial do feito, nem tampouco a suas principais peças.

7 - À época da confecção do Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, os Embargos de Declaração ainda pendiam de julgamento, situação atualmente superada conforme andamento processual obtenível através de consulta ao andamento processual do Agravo de Instrumento no sítio de internet do TJ-RJ.

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serviço deveria ser revertida, a não ser que fosse pactuada através de termo aditivo ao contrato de concessão, então teria sido o caso de provimento parcial tanto do Agravo de Instrumento quanto dos Embargos Declaratórios para conferir à antecipação de tutela este desenho, constando este novo contorno da parte dispositiva do suposto julgado reformador. Muito ao contrário, em se havendo negado provimento a ambos os recursos, o decisum oriundo do MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública mantém-se com seu delineamento original e de maneira integral – impedindo, outrossim, a interrupção de prestação do serviço de transporte aquaviário noturno por parte das BARCAS S. A.

Ademais, como já se afirmou, sequer a circunstância descrita pelo Exmo. Desembargador Relator dos Embargos (e que o mesmo, diga-se, por pertinente, apenas cogitou em tese com base nas alegações da embargante para rejeitar seu pedido recursal, jamais atestando-a, até porque não este assunto não poderia ser o escopo dos recursos sob sua apreciação) resta comprovada aqui – ou seja, que a Concessionária embargante tem direito à cláusula contratual relativa a equilíbrio econômico-financeiro ou qualquer outro eventual direito.

Necessário, em tal diapasão, que se oficie o MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública, de maneira a informá-la acerca da celebração do aditivo em exame, com todos os elementos acostados a estes autos. Além disto, cumpre solicitar àquele MM. Juízo o obséquio de fornecer, para instruir a formação de vontade desta Corte de Contas acerca da legalidade, legitimidade e economicidade do aditivo ora em exame, cópias das principais peças da causa posta em juízo, em especial, a petição inicial, as principais decisões proferidas em relação ao mérito e o estado em que se encontra o feito.

Igualmente, em se tratando de descumprimento de determinação judicial, com risco de contencioso para o ente federativo ora jurisdicionado – como bem apontado no citado pronunciamento da ilustre Procuradora de Estado PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO – , e do decorrente dano ao erário cuja prevenção revela dever constitucional desta Corte, bem assim considerando envolver a supressão do serviço de transporte aquaviário noturno relevante interesse público, com impacto significativo e direto sobre a vida rotineira de inúmeras pessoas que dependem das barcas para se locomover entre as cidades de Rio de Janeiro e Niterói, revela-se necessário adotar de imediato providências de caráter cautelar8 para restabelecer a prestação do serviço, na forma tantas vezes determinada, sem sucesso, pelo MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública.

8 - Sobre o tema do poder cautelar de que dispõem as Cortes de Contas, trazemos à baila lição da ilustre Procuradora MARIANNA MONTEBELLO WILLEMAN, em que opina que “o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com base na teoria dos poderes implícitos, o exercício do poder geral de cautela por parte dos Tribunais de Contas, permitindo a expedição de medidas cautelares visando a garantir a eficácia de suas decisões finais e prevenir lesão ao patrimônio público”. Nesta toada, veja-se a decisão prolatada no MS 24.210-DF, oriundo do Excelso Pretório.

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Para tanto, cumpre determinar ao ESTADO DO RIO DE JANEIRO, na qualidade de Poder Concedente, a adoção de providências necessárias à sustação de efeitos do Terceiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário, restabelecendo-se imediatamente a operação do serviço no período noturno, em respeito à decisão oriunda do MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública, tudo com fundamento no art. 71, IX, da Constituição da República, do art. 124, VIII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, dos arts. 3º, inciso XXIII, e 42 da Lei Complementar Estadual nº 63/90, e arts. 4º, XXIII, e 512, do Regimento Interno desta Corte, no prazo a ser delineado por esta Corte de Contas na forma dos dispositivos citados.

Ainda, em se tratando de ato bilateral a afetar a espera jurídica da Concessionária BARCAS S. A., necessário que seja implementado o seu CHAMAMENTO AO PROCESSO, para que, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório, seja-lhe oportunizada a defesa de seus interesses no presente feito.

IV – Da Conclusão

Ante os motivos aduzidos, o MINISTÉRIO PÚBLICO junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro opina:

(1) pela COMUNICAçÃO à Secretaria de Estado de Transportes, para que remeta a esta Corte:

a) cópia integral de documentos comprobatórios evidenciando de forma inequívoca o atendimento às circunstâncias condicionantes descritas pela PGE-RJ no Parecer 04/2010-PPCM-PSP;

b) cópia integral dos Processos Administrativos nº E-10/387/2008 e seus apensos E-10/469/2006, E-04/079.231, E-10/132.610/2002, E-10/729/2009 e E-10/152/2010;

c) cópia de todos os demais Processos Administrativos ou documentos que versem acerca do tema tratado no Termo Aditivo, eventualmente pertinentes para a apreciação do mesmo no âmbito desta Corte;

d) justificativa para a pactuação do aditivo em exame a despeito da oposição da AGETRANSP, noticiada no Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, esclarecendo, inclusive, as razões pelas quais a entidade não figurou como interveniente

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quando da celebração do Termo Aditivo, haja vista as competências por ela titularizadas em relação à concessão do serviço de transporte aquaviário e sua interpenetração em relação aos motivos e teor veiculados no aditivo;

(2) pela COMUNICAçÃO à Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP, para que remeta a esta Corte:

a) cópia integral do Processo Administrativo E-14/024295/2009, e de quaisquer outros processos, estudos, ou documentos que versem ou esclareçam a respeito do tema relativo à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão aqui tratado, bem como da supressão da operação noturna do serviço;

b) esclareça as razões de não haver a AGETRANSP figurado como interveniente quando da celebração do Termo Aditivo ora em exame;

c) esclareça sua posição nos autos da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, juntando as razões de defesa eventualmente apresentadas e demais petições pertinentes à apreciação do presente termo aditivo;

(3) pela EXPEDIçÃO DE OFÍCIO ao MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública, para:

a) fornecer cópia integral dos presentes autos, informando aquele MM. Juízo acerca da celebração do aditivo ora em exame, bem como dos questionamentos realizados por esta Corte de Contas;

b) solicitar ao MM. Juízo o obséquio de fornecer, para instruir a formação de vontade desta Corte de Contas acerca da legalidade, legitimidade e economicidade do aditivo ora em exame, cópias das principais peças da causa posta em juízo, em especial, a petição inicial, as principais decisões proferidas em relação ao mérito e o estado em que se encontra o feito;

(4) pela EXPEDIçÃO DE OFÍCIO à Procuradora-Geral de Estado, com cópia integral do feito em exame, para solicitar o envio a esta Corte de quaisquer pareceres, processos ou documentos que tramitem ou hajam tramitado no órgão acerca do tema ora ventilado, bem como para adote as eventuais providências de sua competência, especialmente considerando a verificação acerca da observância das condicionantes de legalidade descritas no Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP;

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(5) pela DETERMINAçÃO ao ESTADO DO RIO DE JANEIRO, para que providencie, na qualidade de Poder Concedente, a adoção de providências necessárias à sustação cautelar de efeitos do Terceiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário, restabelecendo-se imediatamente a operação do serviço no período noturno, em respeito à decisão oriunda do MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública, pelas razões acima aduzidas, tudo com fundamento no art. 71, IX, da Constituição da República, do art. 124, VIII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, dos arts. 3º, inciso XXIII, e 42 da Lei Complementar Estadual nº 63/90, e arts. 4º, XXIII, e 512, do Regimento Interno desta Corte, no prazo a ser delineado por esta Corte de Contas na forma dos dispositivos citados;

(6) CHAMAMENTO AO PROCESSO da Concessionária BARCAS S.A. – TRANSPORTES MARÍTIMOS, para que, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório, seja-lhe oportunizada a defesa de seus interesses no presente feito.

Rio de Janeiro, 04 de abril de 2012.

Decreto 41528/08 – Estabelece os procedimentos a serem adotados na celebração e execução de convênios que impliquem dispêndio financeiro por órgãos e entidades da Administração Pública do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências.

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INSPEçÃO ORDINÁRIA

Relatório de Inspeção Ordinária. Agência Reguladora. Aplicação de multa a integrantes do Conselho Diretor da Agência Reguladora em razão da obstrução ao livre exercício de Inspeção Ordinária determinada pelo Tribunal. Conduta dos membros da Diretoria supostamente arrimada em precedente da Procuradoria-Geral do Estado, reafirmado no âmbito da própria Agência Reguladora. Conduta que caracteriza o denominado contempt of court no âmbito do controle externo. Fase recursal. Recurso de Reconsideração e embargos declaratórios. Conhecimento e desprovimento. Considerações adicionais a respeito da matéria de fundo versada nestes autos. Possibilidade de exercício de controle externo, pelos Tribunais de Contas, no âmbito de atividade finalísticas das agências reguladoras. Doutrina e jurisprudência a respeito da matéria. Expedição de ofício à AGETRANSP e à PGE/RJ, para ciência a respeito do posicionamento assumido pelo TCE/RJ sobre o tema.

Egrégio Tribunal:

“But what is government itself, but the greatest of all reflections on human nature? If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary. In framing a government which is to be administered by men over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government to control the governed; and in the next place oblige it to control itself. A dependence on the people is, no doubt, the primary control on the government; but experience has taught mankind the necessity of auxiliary precautions.”1

Versa o presente administrativo sobre Relatório de Inspeção Ordinária realizada no âmbito da AGETRANSP, encontrando-se o processo, atualmente, em fase de apreciação dos recursos de reconsideração e de embargos declaratórios manejados contra a decisão desse Egrégio Plenário, datada de 24 de junho de 2011, por meio da qual foi aplicada multa sancionatória aos recorrentes e a outros membros integrantes do Conselho-Diretor da referida agência reguladora, em razão da obstrução ao livre exercício da atividade de controle externo por esse Tribunal de Contas.

Trata-se, com efeito, de postura do Conselho-Diretor da referida agência reguladora que se aproxima do denominado contemp of court2 no exercício da função jurisdicional, configurando ato atentatório ao exercício de

MARIANNA MONTEBELLO WILLEMANProcuradora do MinistérioPúblico Especial junto aoTribunal de Contas

1 - HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. The Federalist Papers, n. 51. 1788. Disponível em: <http://www2.hn.psu.edu/faculty/jmanis/poldocs/fed-papers.pdf>. Acesso em 20 de março de 2012. Ressalva-se que inexiste informação segura quanto à autoria do artigo federalista n. 51, se atribuída a James Madison ou a Alexander Hamilton.

2 - Como se sabe, o contempt of court caracteriza a ofensa ao órgão judiciário ou à pessoa do magistrado, mediante o comportamento da parte processual de acordo com suas próprias conveniências, sem respeitar a ordem emanada da autoridade judicial. (ASSIS, Araken de. O Contempt of court no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Araken%20de%20Assis(4)%20-%20formatado.pdf>. Acesso em 1º de junho de 2012). Transpondo a noção para os processos de controle, tem-se que o contempt of court caracteriza-se pela ofensa à dignidade e autoridade do Tribunal de Contas ou de seus servidores, gerando obstáculo ou obstrução à sua atividade.

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competência constitucionalmente estabelecida, razão por que foi imposta a multa sancionatória aos integrantes do Conselho, os quais se negaram a providenciar o acesso dos técnicos dessa Corte a documentos e processos necessários à realização do escopo da Inspeção.

Sendo esse o breve relatório do feito, passo ao exame da matéria.

Preliminarmente, em relação à análise do recurso de reconsideração e dos embargos declaratórios – objeto de apreciação na atual fase processual –, o Ministério Público reporta-se integralmente à manifestação das instâncias instrutivas no que tange ao atendimento dos seus requisitos de admissibilidade. Por tal razão, opina o Parquet pelo conhecimento dos recursos, uma vez que atendidos os requisitos de admissibilidade.

De outro lado, no que diz respeito ao mérito recursal, melhor sorte não assiste aos recorrentes.

De início, a partir da leitura atenta dos elementos constantes dos autos administrativos, verifica-se que a base da linha de argumentação desenvolvida pelos recorrentes em justificativa à conduta que obstruiu o exercício do controle externo fundamenta-se em posição jurídica da douta Procuradoria-Geral do Estado, datada de 1998, a qual se afigura extremamente restritiva das competências dessa Corte de Contas.

Segundo o entendimento daquele Órgão Central do Sistema Jurídico do Estado, os Tribunais de Contas seriam órgãos auxiliares do Poder Legislativo, que não poderiam exercer, no tocante às agências reguladoras, qualquer fiscalização que exorbitasse a apreciação de natureza contábil, financeira ou orçamentária, envolvendo recursos públicos. Além disso, ainda segundo o entendimento firmado ao final da década de 1990 no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado, os Tribunais de Contas não poderiam invadir a esfera de reserva administrativa de agência reguladora de serviços públicos para perquirir o mérito de suas decisões político-administrativas, interferindo com sua atividade finalística.

Com a devida vênia, trata-se de linha de pensamento que não tem como prosperar à luz de uma interpretação republicana e democrática do sistema de controle externo estabelecido na Constituição de 1988 para os Tribunais de Contas. Além disso, tal posicionamento negligencia por completo a competência para o controle operacional atribuído às Cortes de Contas pela Carta da República.

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Como se passa a demonstrar, não assiste razão e, portanto, não pode ser invocado como justificativa para a obstrução ao exercício do controle externo parecer exarado no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado que simplesmente “esvazia” as competências constitucionais das Cortes de Contas, indo de encontro à sua vocação republicana de tutela da gestão eficiente, eficaz e econômica dos recursos públicos.

Pois bem. O artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – verdadeiro marco simbólico da queda do absolutismo e do ideal do poder estatal limitado – dispõe que a sociedade tem o direito de pedir conta a todo agente público quanto à sua administração. Trata-se, como de conhecimento convencional, do dever primário de prestação de contas inerente à atuação de todo e qualquer agente público e de observância inafastável em um regime republicano3.

O Tribunal de Contas situa-se no ordenamento jurídico-constitucional como órgão público especializado e independente que colabora com o Poder Legislativo no exercício do controle da atividade financeira pública, prestando-lhe auxílio técnico4. Cuida-se do denominado controle externo que, à luz do artigo 70 da Constituição da República de 1988, visa a resguardar a probidade da Administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores e dinheiros públicos, assim como a fidelidade na execução do orçamento.

O perfil constitucional dos Tribunais de Contas encontra-se delineado, essencialmente, no capítulo destinado à fiscalização contábil, financeira e orçamentária – artigos 70 e seguintes da Constituição da República. Através de tais dispositivos, as atribuições e competências do Tribunal de Contas da União foram substancialmente dilatadas, atingindo, por simetria, também os Tribunais de Contas dos Estados, Municípios e Distrito Federal. De fato, nunca haviam as Cortes de Contas concentrado em suas mãos leque tão abrangente de competências, sendo a atual Carta Constitucional responsável por operar uma evolução de cento e oitenta graus na sistemática do controle externo a cargo de tais colegiados.

A perspectiva inaugurada com a Constituição da República de 1988 acerca das atribuições das Cortes de Contas vai ao encontro do caráter democrático e moralizador do novo Texto Constitucional, em franca ruptura com o modelo autoritário. Priorizam-se os deveres do administrador de transparência e retidão no trato da coisa pública. Qualificam-se as Cortes de Contas, nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho, como instâncias dinamizadoras do princípio republicano5.

3 - O dever de prestação de contas é considerado princípio constitucional sensível cuja inobservância legitima a intervenção federal, nos termos do artigo 34, inciso VII, alínea “d” da Constituição da República.

4 - Os Tribunais de Contas não são, absolutamente, órgãos auxiliares do Poder Legislativo. Ao contrário, a partir da interpretação sistemática dos dispositivos que disciplinam tais instituições, percebe-se facilmente que a Constituição de 1988 inaugurou um verdadeiro mecanismo de colaboração e cooperação mútua e integrada no que diz respeito ao controle externo da atividade financeira estatal. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece, sem qualquer dificuldade, que os Tribunais de Contas são órgãos de extração constitucional dotados de autonomia e independência em relação aos demais Poderes da República. Sobre o tema, é bastante elucidativa a decisão adotada pelo Plenário do STF nos autos da ADI 4.190/DF (STF, ADI 4.190/DF, Pleno, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 10.03.2010).

5 - CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tribunal de Contas como instância dinamizadora do princípio republicano. Revista do Tribunal de Contas de Portugal. Lisboa, n.49, p.23-39, jan./jun. 2008.

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Conjugando-se os artigos 70 e 71 da Carta Política de 1988, resulta que o Congresso Nacional, com o auxílio dos Tribunais de Contas, exerce a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, mediante controle externo. Seguindo as lições do Professor DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO6, o controle financeiro é o gênero, destinando-se à fiscalização da disposição administrativa dos recursos públicos, envolvendo o controle contábil, em seus termos técnicos. O controle orçamentário, por seu turno, importa em assegurar a observância das leis orçamentárias (artigo 165 da CRFB) quando da disposição das verbas públicas. Quanto ao controle operacional, destina-se à supervisão das atividades administrativas em cotejo com os resultados por elas alcançados (busca da eficiência administrativa em prol do bem-estar social). Finalmente, o controle patrimonial objetiva à fiel observância das normas reguladoras da disposição jurídica do patrimônio mobiliário e imobiliário do Estado.

O caput do artigo 70 da Constituição da República deixa claro, outrossim, que a controlabilidade ali prevista transcende a apreciação da legalidade formal da gestão dos valores públicos, estendendo-se, necessariamente, aos aspectos de legitimidade e economicidade.

Ora, percebe-se, sem maiores esforços, que limitar a atuação dos Tribunais de Contas em relação ao controle das atividades finalísticas das agências reguladoras é simplesmente desconsiderar, por completo, que a atividade de controle atribuída a tais Cortes não se exaure na mera apreciação formal de regularidade financeira, contábil e orçamentária da atuação do Estado-Administração.

A fiscalização a cargo das Cortes de Contas no Brasil vai muito além do confronto ou da análise de conformidade de atos de execução orçamentária. Ao estabelecer como parâmetros de controle a legalidade, a legitimidade e a economicidade, a própria Carta Constitucional aponta decisivamente para novos padrões de controle e supervisão. Além disso, também de maneira inovadora, a Constituição de 1988 amplia o objeto de controle dos Tribunais de Contas, cuja atividade fiscalizadora incide não apenas sobre a gestão financeira, contábil, patrimonial e orçamentária, mas abrange, igualmente, a gestão operacional do Estado.

De fato, é precisamente a previsão de controle da gestão operacional do Estado pelos Tribunais de Contas o intransponível fundamento constitucional que legitima o exercício do controle externo sobre a atuação

6 - Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 11ª edição, 1997, p. 440

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finalística das agências reguladoras. Trata-se, precisamente, do vetor constitucional de controle dos resultados e da performance da atividade auditada. A definição de FERNANDO MOUTINHO RAMALHO BITTENCOURT é precisa sobre o tema:

Assim, a auditoria operacional pode ser definida como a modalidade de auditoria que tem por objetivo examinar a ação da entidade ou atividade auditada quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia, examinando para tanto: (a) como a entidade adquire, protege e utiliza seus recursos; (b) as causas práticas e antieconômicas; (c) o cumprimento das metas previstas; (d) a obediência aos dispositivos legais aplicáveis aos aspectos da economicidade, eficiência e eficácia da gestão7.

Nesse mesmo sentido, BENJAMIN ZYMLER extrai da competência constitucional de avaliação da gestão operacional pelos Tribunais de Contas o fundamento para o exercício do controle externo sobre a ação finalística de tais entes regulatórios8. Em suas palavras:

A auditoria de natureza operacional, portanto, não deve verificar a regularidade de atos orçamentários, a correção da gestão financeira, orçamentária ou patrimonial dos órgãos/entidades federais. Para isso a Carta Política previu modalidades específicas de auditoria. Quando o Tribunal, no exercício de sua competência constitucional, realiza auditoria operacional, intenta verificar se os resultados obtidos estão de acordo com os objetivos do órgão ou entidade, consoante estabelecidos em lei. Tem por fim examinar a ação governamental quanto aos aspectos da economicidade, eficiência e eficácia. Especificamente em relação às agências, busca o Tribunal, ao realizar auditoria operacional, verificar se estão sendo atingidas as finalidades decorrentes de sua criação. Se os resultados esperados estão sendo atingidos. Isso abrange a avaliação do cumprimento de sua missão reguladora e fiscalizadora.(...). Aliás, não se está a tratar de poder do Tribunal, mas de verdadeiro dever constitucional que consiste na fiscalização da execução dos contratos de concessão. Evidente que tal controle não deve importar sobreposição de atribuições. Nesse sentido, uma análise superficial identificaria redundância das esferas de controle, uma vez que uma das atribuições das agências é exatamente fiscalizar os contratos de concessão e de permissão e os atos de autorização de serviços públicos. Entretanto, fica claro que o TCU exerce uma atividade fiscalizatória de

7 - Os critérios de auditoria e auditoria operacional. Revista do Tribunal de Contas da União. Brasília: v. 31, n. 83, jan/mar 2000, p. 13.

8 - Confira-se, a respeito da jurisprudência do Tribunal de Contas da União em matéria de auditorias operacionais realizadas em agências reguladoras federais, o Acórdão Plenário n. 344/2003, de relatoria do Ministro Ubiratan Aguiar, no qual o TCU questiona o enquadramento realizado pela autarquia para os consumidores de baixa renda (típica atividade regulatória) e o Acórdão Plenário n. 1.778/2004, a respeito da universalização dos serviços de telecomunicações. A análise pormenorizada de tais decisões foi objeto de estudo por DANIEL VIÉGAS, em monografia intitulada “O controle das atividades finalísticas das agências reguladoras pelos Tribunais de Contas”, sob a orientação desta Procuradora, no âmbito da conclusão do curso de Graduação em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, monografia defendida em junho de 2011.

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segundo grau, que busca identificar se as agências estão bem e fielmente cumprindo seus objetivos institucionais, dentre os quais o de fiscalizar a prestação de serviços públicos. Deve a Corte de Contas, no desempenho de sua competência constitucional, atestar a correção da execução destes contratos. Ressalte-se, todavia, que esta ação não visa a controlar a empresa concessionária em si, mas apenas examinar se as agências estão fiscalizando de forma adequada os contratos por elas firmados.– Os grifos não são do original –

Vê-se, portanto, que os Tribunais de Contas no Brasil ostentam um perfil normativo que efetivamente os eleva à categoria de Instituições Superiores de Controle9 aptas à instrumentalização de uma accountability horizontal10 de reforço do direito fundamental à boa administração pública, especificamente na vertente do direito à gestão eficaz, eficiente, econômica e legítima dos recursos públicos.

E, notadamente no que tange ao controle das atividades finalísticas das agências reguladoras, se é verdade que os Tribunais de Contas não podem se substituir, pura e simplesmente, à autarquia especial (autarquia dotada de autonomia reforçada) no que diz respeito a uma série de decisões que, por sua essência, são regulatórias de determinados segmentos de prestação de serviço público ou de exploração de atividade econômica, é igualmente certo que em inúmeras outras hipóteses, em estando em jogo a própria gestão eficiente, eficaz e econômica dos recursos públicos, os Tribunais de Contas não só podem, mas têm, em verdade, a missão constitucional de controlá-los.

Essa mesma linha de pensamento é compartilhada por ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, que assim se pronuncia sobre o tema:

Ao nosso ver, o Tribunal de Contas pode realmente controlar tais atos de regulação, uma vez que, imediata ou mediatamente, os atos de regulação e de fiscalização sobre os concessionários de serviços públicos se refletem sobre o erário. Por exemplo, uma fiscalização equivocada pode levar a não aplicação de uma multa; a autorização indevida de um aumento de tarifa leva ao desequilíbrio econômico-financeiro favorável à empresa, o que entre outras alternativas, deveria acarretar na sua recomposição pela majoração do valor da outorga devida ao Poder Público etc11.

No mesmo sentido, GUSTAVO BINEMBOJM, preconizando a teoria do diálogo institucional entre Tribunais de Contas e Agências Reguladoras,

9 - SPECK, Bruno Wilhelm. A fiscalização dos recursos públicos pelos Tribunais de Contas. In: SPECK, Bruno Wilhelm (Coord.). Caminhos da transparência: análise dos componentes de um sistema nacional de integridade. São Paulo: Editora da UNICAMP, p. 227-257, 2002.

10 - Guillermo O’Donnell identifica a accountability horizontal como a “existência de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas”. Ainda segundo o próprio autor, os mecanismos de accountability horizontal incluem as instituições clássicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, “mas nas poliarquias contemporâneas, também se estende por várias agências de supervisão, como os ombudsmen e as instâncias responsáveis pela fiscalização das prestações de contas.” (O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Revista Lua Nova. São Paulo: CEDEC, n. 44, p. 27-54,1998).

11 - Agências Reguladoras e a Evolução do direito administrativo econômico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 340/341.

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vislumbra perfeitamente possível e salutar o controle finalístico das atividades regulatórias pelas Cortes de Contas, desde que, por óbvio, o Tribunal não pretende se substituir ao ente regulador na formulação das políticas aplicáveis a determinado segmento. Em suas próprias palavras:

De um lado, o TCU deve reconhecer, prudencialmente, que não lhe cabe formular escolhas regulatórias em lugar das agências, especialmente no que toca a aspectos técnicos inerentes ao mercado regulado. Sendo a agência a entidade erigida pela lei, por sua expertise e experiência, para realizar opções técnicas dentre as alternativas juridicamente possíveis, não terá a Corte de Contas legitimidade para julgar tais escolhas, desde que suficientemente fundamentadas.De outro lado, as agências não podem pretender invocar uma suposta imunidade ao controle e à fiscalização exercidos pelo TCU. A uma, porque as competências da Corte de Contas decorrem diretamente da Constituição, não havendo exceção constitucional que imunize as agências. A duas, porque o TCU atua sob rigorosos parâmetros jurídicos e econômicos, construídos pela sua jurisprudência e por seu valoroso corpo técnico, que permitem o exercício de suas competências de maneira previsível, transparente e segura. A três, porque em um Estado democrático de direito, a nenhuma instituição é dado subtrair-se ao controle informado por padrões externos de juridicidade. Em uma palavra: as agências não são entidades soberanas.Um bom exemplo de interação institucional, nos moldes ora propostos, ocorreu entre o TCU e a Anatel, no que se refere ao mercado de TV a cabo. Provocado pelo Ministério Público, o tribunal, por intermédio do ministro José Jorge, apontou vícios jurídicos em proposta de regulação que está sendo gestada no âmbito da Anatel para o setor. Com efeito, o TCU condenou a pretensão da Anatel de afastar o dever legal de realizar licitações para a seleção de novos operadores, a inobservância de critérios econômicos para a definição de preços de outorga do serviço e a abertura incondicionada do mercado às concessionárias de telecomunicações, em claro descompasso com a vedação constante da Lei do Cabo (Lei nº 8.977, de 1995).Ademais, registrou o relator a existência de projeto de lei em avançada tramitação no Senado (PLC 116), o qual traria substanciais alterações para a disciplina da TV a cabo no País. Daí mais uma razão a recomendar que a Anatel não pretendesse se antecipar à discussão travada no Congresso Nacional. (...)12. – Os grifos não são do original –

12 - Disponível em: < http://www.senado.gov.br/noticias/senadoNaMidia/noticia.asp?n=560032&t=1>. Acesso em 1º de junho de 2012.

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Com efeito, não parece possível definir-se, de maneira apriorística e estanque, todas as hipóteses em que cabível o controle externo dos Tribunais de Contas sobre atividades finalísticas regulatórias. Igualmente, não se revela possível elencar todas as hipóteses em que, ao contrário, tal controle implicaria uma invasão indevida de competência regulatória. Mas o que absolutamente não se compatibiliza com o princípio republicano e, mais ainda, com a lógica de uma Administração Pública pautada pela busca de resultados eficientes, é pura e simplesmente inviabilizar, de pronto, o controle externo sobre tal atividade finalística que, não raro, repercute diretamente sobre a gestão de recursos públicos.

Alguns exemplos importantes podem ser extraídos de processos que já tramitaram perante este próprio Ministério Público Especial. Assim, a título ilustrativo, nos autos TCE 106.743-2/2010, o Tribunal de Contas do Estado foi provocado pela ALERJ a se pronunciar a respeito de decisão proferida pela própria AGETRANSP, em processo de natureza eminentemente regulatória – mais precisamente, exercício de resolução de conflitos instaurados entre Poder Concedente e Concessionária –, em que a agência reguladora reconheceu o direito, por parte de concessionária ROTA 116 (Concessionária da RJ 116), de receber indenização de aproximadamente oito milhões de reais do Poder Concedente, in casu, do Estado do Rio de Janeiro.

Com a devida vênia, é fora de dúvida que se trata de decisão regulatória que envolve a gestão de recursos públicos no âmbito da apreciação da equação econômico-financeira de um contrato de concessão. Sustentar-se que o Tribunal de Contas, ao apreciar a legalidade, a legitimidade e a economicidade de tal atuação da AGETRANSP estaria a exorbitar suas competências constitucionais significa interpretá-las de molde a esvaziar a dimensão republicana do controle externo.

Igualmente, no âmbito do presente processo de Inspeção Ordinária, buscou-se exercer o controle externo sobre a atuação da AGETRANSP em relação à concessão do serviço de transporte público metroviário, com inúmeras questões regulatórias pendentes de apreciação por parte dessa Corte de Contas, relacionadas à revisão quinquenal do contrato de concessão, aos valores da outorga devida pela concessionária ao Poder Concedente, ao inventário dos bens reversíveis etc. Todas essas questões, nada obstante essencialmente regulatórias, dizem respeito diretamente à eficiência na prestação do serviço público concedido e à gestão de recursos do erário e, portanto, são plenamente sindicáveis pelos Tribunais

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de Contas. Trata-se, a toda evidência, da valorização do resultado como paradigma fundamental da atividade do Estado-Administração, plenamente controlável pelos Tribunais de Contas.

A esse respeito, é precisa a lição de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO:

Em suma, está no resultado quiçá o paradigma contemporâneo mais significativo, pois, na prática, é através dele que se pode lograr uma efetiva atuação do amplo sistema de controle posto constitucionalmente à disposição da cidadania: o controle administrativo, o controle de contas, o controle político, o controle social, o controle pela imprensa e, na cúpula, o controle jurisdicional13.

Como se percebe, não se justifica, à luz das competências constitucionais outorgadas aos Tribunais de Contas, qualquer posição jurídica que, de maneira apriorística, inviabilize o controle, por tais órgãos, das atividades finalísticas regulatórias exercidas pelas Agências Independentes.

Nesse sentido, não merece prosperar, sob qualquer prisma que se pretenda analisar a matéria versada nestes autos, a pretensão dos recorrentes de justificar a sua conduta – repita-se, conduta essa que caracteriza, de forma inequívoca, o contempt of court no âmbito do exercício do controle externo – à luz do posicionamento assumido, na década de 1990, pela Procuradoria-Geral do Estado, que simplesmente eleva as agências reguladoras – autarquias especiais integrantes da Administração Indireta do Estado – a entidades infensas ao controle externo de índole constitucional.

Em conclusão, portanto, o Ministério Público corrobora a análise realizada pelas instâncias instrutivas no que tange ao recurso de reconsideração e aos embargos declaratórios, pugnando por seu CONHECIMENTO e, no mérito, por seu DESPROVIMENTO, mantendo-se íntegra a decisão de 14 de junho de 2011, que aplicou multa sancionatória por obstrução ao controle externo aos membros integrantes do Conselho Diretor da AGETRANSP (nomeados às fls. 719 destes autos).

Em acréscimo, tendo em vista a relevância do tema de fundo versado nestes autos, bem como a existência de parecer jurídico exarado no âmbito do Órgão Central do Sistema Jurídico Estadual (PGE/RJ) no sentido do esvaziamento das competências dessa Corte de Contas, pugna o Ministério Público pela expedição de ofício ao Excelentíssimo

13 - MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro Paradigmas do Direito Administrativo Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2008

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Senhor Presidente da AGETRANSP e das demais agências reguladoras deste Estado, bem assim ao Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral do Estado, visando a dar-lhes ciência da competência constitucional desse Tribunal para exercer, no que couber, especialmente no âmbito da realização de auditorias operacionais, controle finalístico das atividades exercidas pelas agências reguladoras sempre que sua atividade regulatória produzir, mediata ou imediatamente, reflexos na gestão eficiente, eficaz e econômica de recursos públicos.

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