Revista Educação e Sociedade

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649 Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112, p. 649-653, jul.-set. 2010 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> EDITORIAL ste número temático da revista Educação & Sociedade foi conce- bido pelo Comitê Editorial com o objetivo de trazer reflexões so- bre as questões mais importantes relativas ao Plano Nacional da Educação (PNE – 2011 a 2020), já identificadas na Conferência Nacio- nal da Educação (CONAE), que se propôs a discutir e indicar diretrizes e estratégias de ação para a construção de um novo PNE, de modo que este se configure como uma política de Estado. Numa análise inicial, podemos dizer que as medidas de maior impacto propostas pela CONAE encontram-se nos eixos que tratam da educação organizada em Sistema Nacional e do financiamento da edu- cação, com destaque para a ampliação dos gastos públicos com educa- ção para 7% do PIB, já em 2011 (meta do PNE (2001-2010), cujo veto do Governo FHC fora mantido durante o Governo Lula), devendo atin- gir 10% do PIB até 2014. Aprovou-se, também, a ampliação imediata da complementação da União para o FUNDEB, de forma a atingir 1% do PIB (hoje ela é de apenas 0,2%), como um primeiro passo para imple- mentar o custo aluno-qualidade (CAQ). Para viabilizar essa ampliação dos gastos, os recursos mínimos vinculados da União aumentariam de 18% para 25% da receita tributária total (e não apenas da receita de impos- tos, como o é hoje) e, no caso dos estados e municípios, de 25% para 30%. Também a metade dos royalties do petróleo e a mesma proporção dos recursos do Fundo Social a ser constituído com os recursos do Pré- Sal deveriam ser destinadas à manutenção e desenvolvimento do ensi- no. Decidiu-se ainda que, a partir de 2018, os recursos do FUNDEB não poderão mais financiar instituições privadas, como ocorre hoje com as creches sem fins lucrativos. Particularmente na polêmica questão do PROUNI, que implica a isenção de cobrança de tributos de instituições privadas de ensino superior em troca de vagas, a CONAE pouco avançou, aprovando-se apenas a necessidade de mais estudos sobre o tema. O cumprimento das determinações legais que garantem o direi- to à educação contaria com um dispositivo adicional, decorrente da instituição da Lei de Responsabilidade Educacional, com penalização criminal para os chefes de executivos que a desobedecessem. Estabeleceu-se, ainda, em complemento a medidas já tomadas pelo MEC, que, até 2014, o valor total aplicado pelas entidades do sistema “S”

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  • 649Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112, p. 649-653, jul.-set. 2010Disponvel em

    EDITORIAL

    ste nmero temtico da revista Educao & Sociedade foi conce-bido pelo Comit Editorial com o objetivo de trazer reflexes so-bre as questes mais importantes relativas ao Plano Nacional da

    Educao (PNE 2011 a 2020), j identificadas na Conferncia Nacio-nal da Educao (CONAE), que se props a discutir e indicar diretrizes eestratgias de ao para a construo de um novo PNE, de modo queeste se configure como uma poltica de Estado.

    Numa anlise inicial, podemos dizer que as medidas de maiorimpacto propostas pela CONAE encontram-se nos eixos que tratam daeducao organizada em Sistema Nacional e do financiamento da edu-cao, com destaque para a ampliao dos gastos pblicos com educa-o para 7% do PIB, j em 2011 (meta do PNE (2001-2010), cujo vetodo Governo FHC fora mantido durante o Governo Lula), devendo atin-gir 10% do PIB at 2014. Aprovou-se, tambm, a ampliao imediatada complementao da Unio para o FUNDEB, de forma a atingir 1% doPIB (hoje ela de apenas 0,2%), como um primeiro passo para imple-mentar o custo aluno-qualidade (CAQ). Para viabilizar essa ampliao dosgastos, os recursos mnimos vinculados da Unio aumentariam de 18%para 25% da receita tributria total (e no apenas da receita de impos-tos, como o hoje) e, no caso dos estados e municpios, de 25% para30%. Tambm a metade dos royalties do petrleo e a mesma proporodos recursos do Fundo Social a ser constitudo com os recursos do Pr-Sal deveriam ser destinadas manuteno e desenvolvimento do ensi-no. Decidiu-se ainda que, a partir de 2018, os recursos do FUNDEB nopodero mais financiar instituies privadas, como ocorre hoje com ascreches sem fins lucrativos. Particularmente na polmica questo doPROUNI, que implica a iseno de cobrana de tributos de instituiesprivadas de ensino superior em troca de vagas, a CONAE pouco avanou,aprovando-se apenas a necessidade de mais estudos sobre o tema.

    O cumprimento das determinaes legais que garantem o direi-to educao contaria com um dispositivo adicional, decorrente dainstituio da Lei de Responsabilidade Educacional, com penalizaocriminal para os chefes de executivos que a desobedecessem.

    Estabeleceu-se, ainda, em complemento a medidas j tomadas peloMEC, que, at 2014, o valor total aplicado pelas entidades do sistema S

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    em vagas gratuitas alcance R$ 4,8 bilhes. Hoje, o sistema S arreca-da mais de R$ 7 bilhes por ano, recurso pblico totalmente contro-lado pelas entidades patronais da indstria, comrcio e agricultura, asquais, muitas vezes, ainda cobram pelos cursos oferecidos. Nesse senti-do, a CONAE avanou muito pouco; seria fundamental que os recursosdo Sistema S passassem para controle pblico, integrando o oramen-to da formao profissional pblica da Unio, dos estados e municpios.

    Um forte avano na CONAE representado quando se define cla-ramente pela criao de um Sistema Nacional de Educao, entendidocomo mecanismo articulador do regime de colaborao no pacto fe-derativo, que preconiza a unidade nacional, respeitando a autonomiados entes federados, como o caracteriza o Documento Final da Confe-rncia (2010, p. 15). A aprovao da expresso Sistema Nacional deEducao no texto constitucional pela EC n. 59/2009, na parte que al-tera o artigo 214, passa a estabelecer

    (...) o Plano Nacional de Educao, de durao decenal, com o objetivode articular o Sistema Nacional de Educao em regime de colaboraoe definir diretrizes, objetivos, metas e estratgias de implementao paraassegurar a manuteno e desenvolvimento do ensino em seus diversosnveis, etapas e modalidades, por meio de aes integradas dos poderespblicos, das diferentes esferas federativas (...).

    A construo da organizao nacional da educao em um Siste-ma Nacional de Educao, luta histrica dos movimentos da rea, pro-posto no projeto da LDB, substitudo em 1995 pelo projeto do ento go-verno recm-empossado, foi retomado pela CONAE, garantindo diretrizeseducacionais comuns a serem implantadas em todo o territrio nacio-nal, estruturando-se, como poltica de Estado, na criao do Frum Na-cional da Educao e do Conselho Nacional da Educao, dispondo deautonomia administrativa e financeira, com novas funes.

    A funo de estabelecimento de uma poltica de Estado atribu-da ao PNE torna-o uma grande prioridade do Estado e da sociedade bra-sileira. Nesse sentido, o Centro de Estudos Educao e Sociedade (CE-DES) est organizando um III Seminrio da Educao Brasileira: PlanoNacional da Educao: questes desafiadoras e embates emblemticos,a realizar-se nos primeiros meses de 2011, tendo como referncia opresente nmero de Educao & Sociedade.

    A concepo da qualidade da educao como direito social, con-cebida na defesa da escola pblica, gratuita, laica, democrtica, inclu-siva e de qualidade social para todos, desdobra-se na universalizao do

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    acesso, ampliao da jornada escolar e garantia da permanncia em to-das as etapas e modalidades da educao escolar. Como tal, este direitosocial, assim concebido, visa perseguio da superao das desigual-dades e do reconhecimento das diversidades, contedos das medidasaprovadas pela CONAE.

    Nesse sentido, foi aprovado um piso salarial docente de R$ 1.800/ms para uma jornada de 30 horas, com um tero dedicado a atividadesextraclasse. Embora seja um valor superior ao atual piso, cabe comentarque esse modelo de jornada, ao permitir aos docentes sua duplicao,configura-se como uma alternativa que pode comprometer as condiesde trabalho, afetar negativamente a qualidade do ensino e permitir o re-baixamento do salrio/hora. Quanto formao docente, a CONAE defi-niu como presencial a formao inicial, admitindo-se, de forma excep-cional, a educao a distncia para os profissionais da educao emexerccio, onde e quando no existam cursos presenciais.

    No que se refere gesto, resgatou-se a proposta de criao doFrum Nacional de Educao com poderes mais amplos que aquelesdo atual Conselho Nacional de Educao, assegurando-se formas maisdemocrticas de escolha dos membros dos conselhos de Educao, emseus trs nveis. Definiu-se tambm a extenso do princpio da gestodemocrtica para o ensino privado, medida que demanda, como ou-tras, mudana na Constituio. No mesmo sentido, o documento seposiciona sobre a necessidade de lei que garanta eleio direta para aescolha de diretores das escolas da educao bsica.

    A CONAE aprovou ainda um largo espectro de medidas, com vis-tas educao mais inclusiva pautada na concepo de justia social,respeito s diferenas e compreenso do mundo do trabalho e que bus-quem inibir qualquer tipo de racismo, preconceito, discriminao e in-tolerncia, com especial ateno para as seguintes reas: educao ind-gena, educao e relaes tnico-raciais e de gnero, educao do campo,educao das pessoas privadas de liberdade, educao de jovens e adul-tos, educao quilombola, de pessoas com deficincia, ou com altas ha-bilidades.

    Como se constata nessa apresentao panormica, as deliberaesda CONAE compem um conjunto amplo de recomendaes, que refle-te o consenso possvel dos delegados presentes ao encontro (um nme-ro muito pequeno de emendas no foi aprovado) e que serve como umbom norte para definio dos rumos da educao brasileira. No entan-to, lembremos que sua efetivao depende ainda de futuras decises nombito do Executivo e do Legislativo.

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    O documento aprovado expressa a capacidade de articulao desegmentos da sociedade, cujo consenso pautou-se pela construo de umprojeto de escola pblica de qualidade, a partir de expectativas e proje-tos por vezes muitos diferenciados. O resultado, por conseguinte, carre-ga eventuais ambiguidades derivadas de concesses decorrentes de esfor-os desta natureza. Ainda assim, e talvez por esta razo, afirma-se comopauta mnima de ao e nisto reside sua fora.

    No entanto, para que esta pauta traduza-se efetivamente em pol-tica educacional, fundamental que o Presidente da Repblica encami-nhe ao Parlamento, em breve tempo, uma proposta de PNE para a dcadade 2010-2020, coerente com as diretrizes apontadas pela CONAE e que amesma seja discutida e votada nesta legislatura, uma vez que estamos noltimo ano do PNE 2001-2010, o que no fcil, considerando-se queestamos em ano de eleies majoritrias. Eis aqui sua fraqueza.

    Portanto, o maior trabalho ainda est por vir, na dura negociaodaqueles segmentos da sociedade civil envolvidos na realizao da CONAE,inicialmente com o Executivo e, posteriormente, com o Legislativo, deconstruo de um documento legal que consiga orientar a ao do Esta-do, no sentido de responder s demandas histricas de uma escola p-blica de qualidade para todos e, mais do que isso, assegurar instrumen-tos concretos que permitam o acompanhamento e avaliao sistemticado cumprimento de suas metas, diferentemente do que ocorreu com oPNE 2001-2010. Esta a tarefa que se coloca no horizonte imediato dasforas polticas e sociais compromissadas com a real democratizao daeducao no pas. Os artigos publicados neste nmero, ao fazerem umbalano do que foi a experincia prvia que resultou no PNE 2001-2010e ao analisarem os elementos de avanos, assim como as contradies eambiguidades do documento final da CONAE, podem ser um importanteinstrumento de reflexo nesse processo de fortalecimento dos segmentosda sociedade civil.

    O artigo de Jean-Louis Derouet, ao analisar dificuldades das ten-tativas de democratizao da educao conduzidas pelas organizaes in-ternacionais, debrua-se sobre uma recomposio paralela das formas dejustia e Estado que tm referenciado as reformas da educao. O autor,ao levantar os desafios contemporneos da democratizao da educaona Frana, em um contexto do Estado gerencial, traz um rico contributo reflexo sobre a educao no contexto brasileiro. Aqui tambm estopresentes os elementos do Estado gerencial, da cobrana de resultados,dos testes de desempenho, dos recursos x resultados mensurveis, emespecial para os mais pobres.

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    Entre ns, os avanos expressos no texto da CONAE e as perspecti-vas assinaladas por muitas entidades acadmicas, cientficas, estudantis,sindicais e por vrios segmentos dos movimentos socias parecem tornar-se invivies em um formato de Estado gerencial, embora se deva consi-derar suas contradies. No , pois, irrelevante identificar e questionara presena, paulatinamente naturalizada, de elementos desse formato deinterveno estatal, cuja justificativa assenta-se em um pragmatismo, decrivo ecnomico.

    O que dizer de um pas cujo PIB encontra-se entre os dez maioresdo mundo, mas com IDH prximo da 75 posio, e que um dos cam-pees mundiais de desigualdade? Pas que sequer chegou a experimentarum Estado de bem-estar social e j convive com os apelos dos lobbies pelareduo do chamado custo Brasil? Um exemplo concreto disso foi aproposta de fim do salrio-educao no projeto de reforma tributriaaprovado em comisso especial da Cmara dos Deputados.

    Nesse sentido, talvez valha a pena concluir este Editorial com aspalavras de Jean-Louis Derouet:

    possvel que aps meio sculo de afirmao positiva, as polticas de de-mocratizao entrem numa fase negativa. significativo que os movimen-tos que se erigem contra a nova ordem mundial se definam em relao aela: esquerda antiliberal, anticapitalista, etc. Sabem contra o qu lutam,mas sentem dificuldades em formular um projeto novo. (...) Talvez a es-querda pedaggica deva se preparar para longos anos em que o novo es-prito do capitalismo ser hegemnico no apenas na esfera econmica,como tambm no debate de ideias. Essa constatao um pouco desencan-tada no deve impedir de relanar a reflexo sobre a construo de umnovo modelo de democratizao da escola e da sociedade. Num pensa-mento dialtico, o momento negativo desempenha um papel to impor-tante quanto o positivo. O procedimento deve, ao mesmo tempo, inscre-ver-se no mbito novo, acompanhar a implementao de suas promessase prestar ateno a certo nmero de fenmenos que esto em ruptura. Es-tes talvez esbocem as linhas de fora de um novo modelo.

    COMIT EDITORIAL