Revista Estética

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 , > .  . . < . A N O  l Vol  I ^ ^ setembro - 1 9 2 4 ESTÉTIC REVISTA TRIMENSAL Direcção e Administração — DE — Prudente de Moraes, neto e Sérgio Buarque de Hollanla Redacção LIVRARIA ODEON -AVENIDA RIO BRANCO, 157 Rio de Janeiro

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Transcript of Revista Estética

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    ANO l -Vol I ^ ^ setembro -1924

    ESTTICA REVISTA TRIMENSAL

    Direco e Administrao DE

    P r u d e n t e d e Moraes , ne to e Srgio B u a r q u e de H o l l a n l a

    Redaco LIVRARIA ODEON -AVENIDA RIO BRANCO, 157

    Rio de Janeiro

  • A

    m i i " f i

    SUMARIO

    Graa Aranha Mario de Andrade Renato Almeida Srgio Buarque de Hollanda Guilherme de Almeida Rodrigo M. F . de Andrade . . Couto de Barros Affonso Arinos Sobrinho . . Prudente de Moraes, neto Teixeira Soares

    Mocidade e esthetica Dansas O objectivismo em arte Um homem essencial Poemas Ode pessimista Srgio Milliet Paisagem de brinquedo As mortes de Nro Vida em espiral (I)

    Crnicas e Notas por Prudente de Moraes, neto, Teixeira Soares, Srgio Buarque de Hollanda e Amrico Fac.

    Joseph Conrad

    Literatura brasileira "A Cidade do vicio e da Graa", de Ribeiro Couto "A frauta que eu perdi", de Gui-lherme de Almeida.

    Literaturas anglo-saxonias "The Ilbver", de Joseph Con-sad "Bngland, my England" e "Kangaroo", de D. H. Lawrence.

    Literatura francesa "Kodak", de Blaise Cendrars "M. Paul Valery et Ia Tradition potique franaise", de Al-fred Droin "La vie et Ia mort d'un poete", de Fran-ois Mauriac "Mes routes", de Pierre Lasserre.

    Revistas e Jornaes Romantismo e tradio Sobre o ponto de vista nas artes A msica popular espanhola Sobre uma esthetica dinamista.

  • l E S T - E T I C - A . R E V I S T A T R I M E N S A L

    M O C I D A D E E E S T H E T I C A Longo tempo faltou ao Brasil o espirito de

    mocidade. "Nascem velhos os moos de hoje" ex-clamou-se em 1914, deante do espectaculo de uma juventude destituda de qualquer ideal, mesmo do que vem da conscincia da energia, do vigor phy-sico, do athletsimo. Os jovens daquella poca, vi-dos de um emprego publico, que fosse um oeio, formavam na clientela dos politicos. No emtanto o espirito de mocidade j havia soprado, ardente e soffrego, por todo o paiz. Na aurora da nacionali-dade, a Independncia, o sete de abril foram mo-vimentos da gente moa embora alguns chefes fos-sem homens velhos. As duas grandes revolues soeiaes, a abolio e a republica, foram principal-mente actos da mocidade. No se poderiam reali-sar sem o enthusiasmo juvenil, sem o desinteresse, sem a belleza do sacrifcio, de que s os moos so prdigos. Ells no hesitaram entre o sentimento e a razo. Filhos de senhores de escravos, destru-ram abnegados o patrimnio familiar, que lhes seria a fortuna. Hfcrdeiros de chefes politicos des-denharam as perspectivas da fcil participao no governo do paiz para derrocarem a monarchia.

    Foi a mocidade militar que determinou a aco dos chefes Deodoro e Benjamin Constant. Sacrifi-

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    cando-se, os jovens abolicionistas e republicanos acertaram em bem da ptria. O sentimento, que se afigurava loucura, era presciente, antecipava a evoluo fatal, tornava benigna a transformao. O interesse, que mantinha a escravido e a monar-chia, era retrogrado e nefasto ao paiz. O espirito de mocidade, inspirado do puro sentimento, ven-ceu o interesse e teve razo contra a razo.

    A aco da mocidade na ordem poltica foi precedida de uma transfigurao intellectual cara-cterizada na arregimentao positivista do Rio de Janeiro e na escola do Recife. O espirito joven li-bertou-se do que a tradio escolastica lhe offere-cera na philosophia, na sciencia, no direito, e clere metamorphoseou-se no positivismo e no monismo. Ainda que mal preparados scientificamente, os jo-vens adoptaram estas duas formulas como disci-plinas integraes do pensamento. Os positivistas buscaram subordinar os phenomenos sociaes ao rigor mathemamatico e solidariedade religiosa. Os monistas interpretaram o universo, a sociedade, pelo simile da evoluo biolgica. O que inspirava e unificava ambas as correntes era o mesmo impul-so de revolta e de libertao. A revoluo social foi a fatalidade desse novo espirito brasileiro. Quasi todos os abolicionistas e todos os republica-nos eram emancipados intelectualmente.

    Transbordando nas duas libertaes sociaes, aquelle sublime espirito de mocidade submergiu na inconsciencia nacional e desappareceu do Bra-sil. O que o substituiu foi o instincto rude e cupido. A abolio e a republica dividiram a nao em duas pocas diversas e antagnicas. Os titans da destrui-o do antigo regimen sentiram-se logo em desequi-lbrio com o resultado tumultuario da transforma-o social. Todos os instinctos mais primitivos, todas as aspiraes mais grosseiras desencadearam-

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    se sobre a terra brasileira. Ao passo que se foram apagando, evaporando, as tradies, surgiu o "ho-mem novo". E ' o rebento da mestiagem, a flor da plebe. Com animo de depredar, dominar, gosar, in-vade a sociedade, de que os seus incertos antepas-sados eram excludos. E ' vingativo como filho de escravo, que se liberta, rancoroso como um pria, que rumina longamente a sua desforra. E ' bestial e ladro. A sua audcia o leva a dominar pelo terror. A sua astucia o torna bonzo da velhacaria. Ascende s alturas, mas o trao fundamental no se lhe ex-tingue no successo. Ostenta sempre o mesmo com-plexo de malvadez, de ganncia, de audcia. Vem geralmente de uma raa de salteadores sanguin-rios e a nao para elle o campo da rapina. Infil-tra-se por toda a parte, onde ha o que comer e o que roubar. Sonha eternamente com a bombana. Si a poltica que d o regabofe, apodera-se delia, si a imprensa, torna-se jornalista ameaador, te-mido de todos, si o dinheiro, esfora-se por adqui-ril-o e com elle tudo corrompe. Escrpulos? Onde buscal-os ? Na raa ? Mas esta equivoca. E ' a dos mestios, dos ciganos, e fructificou na torpe pro-miscuidade. Na educao? S efficiente quando tradicional, secular. O "homem novo" livre, mas a liberdade que despende, no a independncia do espirito, a soberania do pensamento, no a af-firmao da conscincia juridica. A sua liberdade a dos instinctos, a da perverso, a do "avana" aos bens materiaes. No pensa, no tem idas, foge de tudo o que lhe elevaria a nsia de desforra, do prprio anarchismo, do bolchevismo, que ainda so expresses de idealismo. Todo o toque de ideal lhe repugna. Tem pansa e rgos inferiores. E ' o tene-broso demnio da concupiscencia, do dio o da ra-pina. Se alguns se servem de idas para melhor illudir e satisfazer astutamente os fp] ictit-.-s da

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    fome e da luxuria. No fundo da rhetorica, que, vai-dosos, espadanejam, vibra forte, dominador o ins-tincto voraz e irreprimvel. Esses falsos intelle-ctuaes no sobem s espheras da poesia ou da su-prema religiosidade. O espirito lhes infernal, infernal. Agitam-se nos crculos inferiores da pol-tica, da imprensa e da rabulice. Esta petulante le-gio de "homens novos", desarraigados, que tudo devasta, absorve e macula, a praga, o flagello, a vergonha da sociedade brasileira. Deante da sua in-vaso, o espirito desinteressado da mocidade idea--lista se eelypsa. Privado desta fora vital o Brasil envelhece, soffre de uma crise de decrepitude pre-coce. Tudo definha na preguiosa languidez tropi-cal. As energias solares no exaltam os homens e no lhes do o impulso creador. Exgotam-lhes o animo, entorpecem-n'os, crestam-n'os. Os estran-geiros apoderam-se do paiz e o brasileiro assiste indifferente conquista tenaz e cobiosa. Apenas eutreteem-se nos jogos medocres da politicagem, na illuso de governar o que na realidade tem ou-tros donos. Numa dolorosa mistura de decrepitude e infantilidade a intelligencia dbil. No tem ex-presso prpria, compraz-se na imitao. As idas recebidas e gastas perduram nesse terreno molle, o passado prolonga-se indefinidamente. Borbulha uma gerao de grammaticos, de poetas mrbidos, eiLxames de escrevinhadores, germinados na vasa ptrida da intelligencia estagnada. A mocidade, mofma e parasitaria, apega-se ao organismo decr-pito da nao. Mas veiu a grande guerra. Foi a iiipommensuravel ferida humana e a dor universal despertou por toda a parte a conscincia dos povos

    O Brasil recebeu a onda da resurreio e co-meou a rejuvenescer pelo sentimento nacional des-pertado. Teve a prodigiosa revelao de que uma i:--an .ioven, que o espirito de mocidade viera de

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    novo possuir e fecundar. Desde ento se lhe apo-dera uma nsia de vida ideal. Se aquelle "homem novo" audaz e cynico, desarraigado e cupido, torpe e venal, ainda persiste nas posies conquistadas durante este longo periodo de torpor, a elle se oppe o joven moderno, desassombrado e puro. Este vivi-ficador traz o olhar agudo, que penetra e dissolve todas as mystificaes. Nada resiste sua fora de destruio e ao seu empenho de reconstruco. Elle hoje o personagem mais interessante e mais ten-tador do drama brasileiro. Onde nos conduzir esse espirito de mocidade'? E ' a magia da incgnita, que fascina a nossa ardente curiosidade. E ' prprio da juventude a imitao; comea-se quasi sempre se-guindo algum, repetindo alguma cousa. Mas quan-do os jovens saem das fileiras processionaes e bus-cam criar uma nova ordem, que maravilha! Imagi-nemos que no Brasil haja desses jovens iniciadores, e sem muito indagar o que elles querem, contemple-mos o que elles fazem.

    No ser aventuroso affirmar que a aco des-ses jovens ser a de modernisar, nacionalisar e uni-versalisar o Brasil. So trabalhos formidveis a que se arriscam. Para executal-os, possuem a gym-nastica intellectual que os torna geis, decididos, claros e enrgicos. Pertencem a uma gerao spor-tiva, de cuja rudeza athletica livraram o espirito, que plana e ataca. So livres de movimentos, a viso nitida dissipa as miragens que embaciaram a in-telligencia paradoxal dos velhos brasileiros. Ao ro-mantismo, que allucina e enlouquece, oppem o senso profundo da realidade e a aco dynamica do obje-ctivismo, inseparvel da matria e expresso da dominante energia espiritual. O accesso febril de literatura, que viciou o ambiente brasileiro, ser absorvido pelo excesso de vida do organismo na-cional. No ha mais logar para a arte de fadiga,

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    aquella arte de sanatrio que j repugnava ao sau-dvel Gcethe. A arte uma actividade sadia do es-pirito humano na sua dominao da matria. E* uma libertao. E ahi est o senso occulto do mo-dernismo, porque o resto, o comprehensivel, a actualidade da arte, a sua manumisso do passado, so conseqncias previstas da prpria gymnastica intellectual do artista moderno.

    O estdio, onde luta, evolve, corre o joven in-tellectual brasileiro o seu paiz e o Universo. E r preciso conhecel-os, interpretal-os sabiamente como o athleta conhece a arena. Por isso a mocidade que surge poderosamente analysta. Analysar a Terra, examinar todas as possibilidades do paiz, sondar os seus abysmos physicos e moraes, a lio sportiva que retempera a armadura do joven moderno. Por esse supremo methodo, o conhecimento no se li-mita analyse das foras actuaes e perennes, es-tende-se ao passado para saber as origens, e situar os factos nas suas pocas com. limpidez e deciso, sem recorrer ao engodo da perspectiva conven-cional.

    A aco do joven moderno ser eminentemente social. A esthetica que o inspira lhe patentear pela analyse o que o Brasil e quaes os trabalhos extre-mos a que se deve consagrar. Na incorporao ao paiz que est a poltica dos jovens esthetas. Como as antigas mocidades elles sero actores nos acon-tecimentos nacionaes. Comprehendero que o facto capital da sociabilidade de uma nao o equil-brio das classes, fundadas em interesses orgnicos. Sem esse equilbrio haver despotismo e escravido. O direito uma ida de relao entre os indivduos, como o espao a relao entre os corpos. O direito publico a frma do equilbrio das classes, como o direito privado o equilbrio das famlias e o di-reito internacional o dos Estados. No Brasil s ha

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    uma classes organizada, a classe militar. S ella tem as condies de vibratilidade, expanso, cons-cincia collectiva que a tornam um verdadeiro or-ganismo. E ' preciso que as outras classes se orga-nisem para que se realize o equilbrio nacional e se pratique de verdade o direito publico.

    Tal o grande trabalho poltico a que cha-mada a intelligencia brasileira. E ' uma obra de construco que se serve de elementos materiaes, interesses econmicos, riquezas, cooperao de bens, socialisao da terra para equilibrar as clas-ses e visa como synthese a cultura espiritual da nao. Certamente no ha cultura collectiva no Brasil. As populaes jazem afundadas na igno-rncia selvagem, de que o animismo fetchista a expresso viva, a feio pitoresca que o diletantis-mo literrio explora e no quer ver substituda pela civilisao. Dessa matriz do primitivismo pde sahir ingenuamente muita belleza e muita emoo. Mas ser a resultante natural e espontnea da gente singella. Aquelles que receberam o fluido da cultura, e cujos olhos se desvendaram, no podem voltar innocencia perdida. Em vez deste artificio, deste recurso desesperado ou fallacios ao dilvio da ignorncia para que appellam os povos fatiga-dos, o que nos compete fazer extremar a cultura, manejal-a como alavanca que revolva e prepare o terreno para a construco que desafie a natureza, liberte-se delia, seja obra pura do espirito livre, creao humana independente, sem a imitao das formas inumerveis, que para a obra de imitao nos offerece insidiosamente a natureza.

    A mxima cultura no s vence a matria uni-versal e cria verdadeiramente o homem, como o li-berta da deformao sentimental, da inverso dos valores que a pssima e deficiente cultura espalha. Toda a praga literria extirpada. O romantismo,

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    que frma a literatura dos possessos, dos melanc-licos, dominado pelo espirito moderno objectivo e dynamico. Se este realismo nos leva ao classicismo, seremos clssicos, no sentido de simples, directos, ntimos das cousas, indifferentes literatura e s suas pompas. E esse classicismo profundo, porque o pensamento e a linguagem de uma "classe" e essa classe a dos espritos cultos, separa-nos de todo aquelle classicismo verbal, de palavras mortas, de phrases antiguadas exclusivamente literrio e artificial, que a nossa impreciso technica consi-dera modelar por ser o estylo e a lngua dos velhos escriptores. O joven moderno possue a technica, que lhe d a segurana, oriunda do conhecimento. O seu processo mental, rpido e desassombrado, sabe clas-sificar e eliminar para melhor agir. Sobretudo criador de personagens, de idas, de imagens, de expresses que so disciplinadas sensibilidade do nosso tempo. Se alguns ainda no disassociaram a matria e as sensaes e prolongam a confuso, pouco a pouco se vae realizando esse trabalho in-timo de discriminao. No tardar muito que os homens modernos deixem de repetir o grego, o go-thico, a renascena pelo ferro e pelo cimento. A estes matria es modernos devem correspon-der criaes independentes e actuaes, que satisfa-am logicamente s sensaes de mobilidade e fir-meza que elles suggerem. Assim ser nas outras artes, na poesia e no romance, uma naturalidade suprema, que o segredo da harmonia transcen-dente dos elementos da construco espiritual.

    Essa esthetica a expresso de toda a energia moderna. Se o Universo s pde ser entendido es-theticamente, na impossibilidade de uma explica-o rigorosamente scientifica, afastadas as hypothe-ses religiosas, o conceito esthetico alarga-se e vale pela philosophia que elle absorve integralmente,

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    porque para o espirito humano tudo forma, tudo imagem, tudo arte. A psychanalyse engana-se quando, numa preteno philosophica, reduz o con-ceito da vida humana ao paradoxal pansexualismo. Ha muita cousa no homem e na vida humana extra-nha subconsciente f.uria sexual. Nada ha, porm, extranho intelligencia e esta soberanamente es-thetica. O "pan-esthetismo" o reducto do espirito humano e delle no ha fora philosophica, religio-sa ou scientifica que o desaloje. O espirito tudo transmuda em funco esthetica, seja a religio pela criao das formas, pelo movimento ascensio-nal do homem divindade, seja a sciencia na ana-lyse, na synthese, na transformao da matria, seja a arte pela naturalidade realisador dos valo-res essenciaes e pela fuso do ser humano no Uni-verso, seja a politica no equilibrio das classesr na geometria da construco nacional, na trajectoria do destino do paiz, seja a simples vida que a busca da harmonia entre os seres e destes com o Universo, de que so fragmentos, em tudo a esthe-tica como a sublime luz, que dada aos ephemeros para perceber nas miragens da conscincia o in-exorvel e infindo mysterio do Inconsciente.

    Armados desta fora espiritual, os "chefes" desta revista, jovens de vinte annos, colloearam-se estheticamente para impvidos modernisar, nacio-nalisar, universalisar o espirito brasileiro. A Es-thetica uma philosophia de mocidade, porque s a mocidade sabe e pde vencer o Terror e transfor-mar tudo em alegria.

    Graa Aranha.

  • D A d S A S A Dona Bby Guilherme de Almeida.

    I

    Quem dir que eu no vivo satisfeito 1 Eu danso! Dansa a poeira no vendava!. Raios solares balanam na poeira. Calor saltita pela praa

    Pressa Apertos Automveis

    Bamboleios Pinchos ariscos de gritos

    Bondes sapateando nos trilhos.

    A moral no roupa diria!

    Sou bom s nos domingos e dias-santol! > - ? . . -

    ' '*

    S nas meias o dia-santo quotidiano! Vida Arame Crimes Quidam

    Cama e Pansa !

  • ESTTICA 13

    Viva a dansa ! Dansa viva!

    Vivedoiro da alegria! Eu danso! Mos E ps, Msculos, Crebro.

    Muito de industria eu me fiz careca, Dei um salo aos meus pensamentos!

    Tudo gira, Tudo vira, Tudo salta,

    Samba, Valsa, Canta,

    Ri !

    Quem disse que eu no vivo satisfeito ? EU DANSO!

    I I

    Meu cigarro est aceso. O fumo esguicha, O fumo sobe,

    O fumo sabe ao bem e ao mal. O bem e o mal, que coisas srias!

    Riqueza bem. Tristeza mal.

    Desastres Sangue Tiros Doena

    Dansa!.

    O elevador subiu aos cus, ao nono andar, O elevador desce ao sub-slo.

  • 14 ESTTICA

    Termmetro das ambies. O acar sobe.

    O caf sobe.

    Os fazendeiros vm do lar. Eu danso!

    Tudo subir. Tudo descer.

    Tudo dansar! O "Esplanada" grugrulha.

    Todos os homens vo ao cinema. Lindas mulheres nos camarotes.

    Leves mulheres a passar

    No freqento cafs-concertos, Mas tenho as minhas aventuras.

    Desventurados os cois! A vida farta.

    O mundo grande. Ha muito canto onde esconder.

    Subrbios Casas Penses Taxis.

    Vejo sonambulos ao luar Beijando moas estioladas.

    Tolos! A poeira sobe no ar. O fumo sobe e morre no ar

    Eu vivo no ar ! Dansarinar!.

    I I I Filha, tu sabes. que hei-de fazer! Ns todos somos assim. Eu sou assim.

  • ESTTICA 15

    Tu s assim. Dansam os pronomes pessoais

    Nunca em minuetes! Nunca em f urlanas!

    EU LE

    ELES VS

    TU NS

    No paro. No paras

    Sucedem quadrilhas. Gatunos!

    Assassinos! Ciganos!

    Judeus! Quebras formidveis.

    Riquezas fetos de 5 meses J velhas como Matusalem. Baixistas calvos, rotundos, glabros; Trusts de cana, Trusts de arroz; Aambarcadores de feijo-virado.

    A Bolsa revira. Reviram-se as bolsas.

    As letram entram, Os oiros saem.

    Corrida Tombos

    Vitrias Delrios

    Banquetes Orquestras

    Os homens dansam. Danso tambm.

  • 16 ESTTICA

    Nunca minuetes nem bacanais! Somos farndulas Somos lanceiros f Somos quadrilhas ? .

    Que somos ns ! Pronomes pessoais.

    IV

    14 horas. Filha, tu vais dormir.

    Eu te contemplo, aborrecido. Que fazes, estreita, na cama to larga ! Porqu te encolhes assim !

    Teus cabelos suados se esperdiam. Tuas mos asiagas tamborilam. Teu corpo estreito treme, vibra.

    Mario, deixa-me dormir !

    Eu te contemplo, aborrecido.

    Devo esconder-te o me sorriso ?. J sei porqu o sono no chega, Filha, comeas a dansar.

    Teu corpo todo se enrodilha Estremece. Sacode

    Bate Lata Seco

    ..heque! heque!. Quebra Queima

  • ESTTICA 17

    Reina Dansa!

    Sangue Gosma

    Teus lbios dansam: Por piedade !

    No domingo nem dia-santo! Filha tu dansas para dormir. Tosses at no poderes mais.

    Devo esconder-te o meu sorriso?.

    Aquelle quarto me sufoca! Prefiro ar livre! No voltarei.

    Ar livre, ar leve que dansa, dansa! Dansam as rosas nos rosais!

    So flores vermelhas So botes perfeitos So rosas abertas, gritos de prazer.

    So Paulo um rosai ! So Paulo um jardim! Morena, tem pena, Tem pena de mim!

    A rosa-riso dansa nos teus lbios Vermelhos Mordidos.

    Volupias alegres. O mundo no v ?

    Ns nos separamos,

  • l g ESTTICA

    Ns nos ajuntamos. O bonde passou, O amigo passou.

    O mundo no v! A vida to curta! Quem tem certeza do amanh ?

    Loureno de Medicis?. Florena delira,

    Paris queima, Viena dansa,

    Berlim r i .

    E New York abenoa o jazz universal. Negros de cartola Turcos de casaca..,.,

    Montecarlo e Caldas e Copacabana, Tudo um caxamb!

    Eu danso!

    Dansa do amor sem sentimento? Dansa das rosas nos rosais!.

    VI

    Parceiro, tu sabes a dansa do ventre, Mas eu vou te ensinar dansa milhor. Olha: a Terra uma bola.

    A bola gira. Gira o universo.

    Os homens giram tambm.

    Tudo girar, tudo rodar.

    Sofres acaso de amor sem volta ? Porqu paraste no teu amor!

    Choras que os outros no te comprendem' Fala francs, e te entendero!

    Morres ? Duvidas ? Pensas ?

  • ESTTICA 19

    Parceiro, Tu s conheces a dansa do ventre. A dansa do ombro muito milhor!

    V I I

    "Oh! como passas?. " "Bravo! emfim voltas..."

    So inimigos, So morfinmanos, Virgens e honestos, Crpulas vis.

    Sado a todos. Ningum me estima. Dansam meus ombros. Eu sou feliz.

    Eu sou feliz porqu a Terra uma bola. A bola gira, Gira o universo. Giro tambm.

    Sou Gira Sou Louco. Sou Oco.

    Sou homem. Sou tudo o que vocs quiserem.

    Mas que sou eu ?

    Meu alfaiate tem mais fregueses. No ha canalha sem virtude. No ha virtuosos sem desonra. Entro nos teatros lendo jornais. Converso pouco e escuto muito. Falo francs. Leio em vernculo Tristram Shandy;

  • 20 ESTTICA

    Conheo Freud e Dostoievsky. Compro a Revista do Brasil; E Principalmente

    Sei enramar meu ditirambo, Sei cuspir um madrigal.

    Depois dou de ombros. .. Meus ombros dansam.

    Sou partidrio da desombra universal.

    V I I I

    Ha terras incultas alm, para longe. . Ha feras terrveis nas terras incultas. Ha pssaros lindos nos jequitibs. . O dia ora claro,

    Ora escuro. Zumbidos de abelhas fabricando mel. O mel nacional perfume e alimenta. Ora as feras urram, Ora as aves cantam, Ora a flor que abrolha, Ora a arvore cai. O cu se escurece.

    E ' a tormenta. Dansam coriscos no cu.

    Relmpagos Troves

    Um samba hediondo Um cadombl.

    Os caaporas galopam nas ancas das antas. Aranhas, Formigas, Sacis e Jaci. O Rio da Dvida passa a dansar.

  • ESTTICA 2 1

    A Victoria Regia oscila balouante nas vagas in-[decisas...w

    Ha terras incultas alm.

    Infelizmente ha tambm os tratados polticos. O Brasil se obstina em cumpri-los. Pas idealista ! Rondon passou rasgando a terra virgem. O tel-grafo corta agora as paisagens incultas, trazendo noticias europaicas: "Inventa-se o Dadaismo"; "Aragon escreve Anicet"; "Der Sturm inebria a Alemanha"; "Em Moscovia o teatro popular cubista"; "Ultraismo em Madrid" Chass! En avant! En arrire! Balance! TourL. Ejm S. Paulo sabe-se vagamente que ha terras incultas ao longe. Mas quem as visitou? Ningum. A confuso enorme.

    Filha, tu sabes. que hei de fazer! Recomea a quadrilha. .

    Ponho-me a dansar.

    IX

    EU DANSO!

    Eu danso manso, muito manso, No canso e danso, Danso e veno,

    Manipano S no penso.

    Quando nasci eu no pensava e era feliz. Quando nasci eu j dansava. Dansava a dansa da criana.

    Surupango da vingana. Dansa do bero:

  • 22 ESTTICA

    Sim e No, Dansa do bero:

    No e Sim.

    A vida assim. Eu sou assim

    Lembras o annuncio do "EU ERA ASSIM"?

    Ela dansava porque tossia, Outros dansam de soluar . Eu danso manso a dansa do ombro... Eu danso... Eu no sei mais chorar!

    Mario de Andrade.

  • O OBJ E C T I V I S M 0 EM ARTE A arte uma funco de relao, exigindo de

    um lado o individuo e do outro a coisa material que lhe impressione os sentidos e o emocione por fim. Esse o aspecto simples do phenomeno artstico, inteiramente psychologico. Dentro desse schema, a criao ou contemplao se explicam perfeitamente, porque em ambas essas manifestaes ou o ho-mem trabalhando sobre a matria para realizar a obra de arte, ou extasiando-se diante da criao alheia permanecem os dois elementos essenciaes. Em qualquer conceito esthetico preciso no aban-donar nunca esse ponto de partida, sem o qual tudo se perturbar numa invencvel confuso.

    A frmula do objectivismo dynamico, com que Graa Aranha explicou, na sua memorvel confe-rncia sobre O Espirito Moderno, a tendncia ar-tstica contempornea, representa uma das directi-vas com que os homens buscam reagir contra o indi-vidualismo romntico, no s na arte, como na so-ciedade, na poltica, na economia, enfim em todas as suas manifestaes vitaes. E ' a cura do mal ro-mntico, que se impe, depois de um sculo de des-regramentos guiados pela loucura do eu. O indivi-dualismo, pretendendo elevar o homem a centro do universo, sentiu o desequlibrio immenso entre a sua mesquinhez e a grandeza circunstante e a impossi-

  • 24 ESTTICA

    bilidade de dominar as coisas. E a decepo trans-bordou numa onda de melancolia, terminando no mysticismo, na volpia do vago, no abandono espi-ritual, ainda boje persistentes, ameaados embora pela grande reaco que se desenvolve victoriosa. Na poltica, a utopia da liberdade teve de ceder ter-reno aos direitos da communho, pelo poder cres-cente do estado; na economia, ao capitalismo bur-gus se oppe a tendncia de socialisaao directa ou indirecta, pela participao dos operrios nos lu-cros sociaes; na arte, enfim, de um subjectivismo extremado, em que as coisas eram apenas simples referencias para a suggesto decorrente do eu do artista, se passa a esse objectivismo, em que o cria-dor no mais abandona a realidade, antes se com-praz em sentil-a livremente, como se lhe afigura, sem deformal-a na sua categoria pessoal. Enquanto o romntico, diante de um crepsculo, via na natu-reza um motivo apenas de melancolia, atravs do que exaltava a sua tristeza, o artista moderno v nessas horas de fim do dia um jogo de luz e de som-bras, capaz de todas as suggestes. No ha um pre-conceito de sentimento, ha uma liberdade de repre-sentao. Enquanto o som se perdia na harmonia, o volume e a cor na confuso da luz, as imagens no conceito pessoal, e tudo se deformava no ndice do artista, o que se pretende que o som possa valer pelo som, a cor pela cor, a frma pela frma.

    No eqivale isso a abstrair, at o anniquila-mento, a funco subjectiva da arte, caindo no arti-ficialismo de combinaes engenhosas e subtis, em que o artista se torna artfice. J escrevi e vale re-petir aqui:

    "No se pde afastar o espirito da obra de arte, tornando-a uma sensao pura. A arte grega ou egypcia, reproduzindo a natureza, no eram sen-sveis apenas, antes exaltam pela revelao sur-

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    preendente e maravilhosa. Representando a reali-dade apparente, tornam a vida mais intensa, logo nos levam a um estado superior de conscincia, em que a emoo se integra e deslumbra. O subjecti-vismo da essncia da arte, posto a arte no neces-site da sua accentuao precisa, que foi o precon-ceito do movimento romntico.

    Foi isso que Graa Aranha disse admiravel-mente na sua conferncia, na "Semana d Arte Moderna" em So Paulo "este subjectivismo to livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objectivismo em que desapparece a determinao psychologica". E ' perfeita a explicao: no o subjectivismo que se anulla, pois isso eqivaleria a negar a essncia da arte, como ida de relao, em que um dos elemen-tos o nosso espirito, mas a sua determinao, de cujo jugo o artista se liberta pelo seu tempera-mento e objectiva. Mas nessa objectivao o ca-racter psychologico no desapparece, antes livre e mltiplo, como uma fora que se desenvolve infi-nitamente.

    Portanto no se pde concluir, sem ligeireza, que a sensiblidade desapparece na arte moderna, em que s o processo fascina e justifica. Quando, em musica, se reclama o valor do som, inteira-mente liberto, em todas as suas variaes conso-nantes ou dissonantes, no se quer apenas a delicia da sonoridade, que agrade os sentidos, mas um meio muito mais amplo de procurar, atravs da sua suggesto, a plenitude espiritual, que a arte consente. O som pelo som, ou a cr pela cr, seria, sem duvida, uma estril actividade de artfice, mas o que se aspira o som por tudo que o som des-perta, qufcndo transfigurado pela emoo criadora, que delle faz surgir um mundo de imagens e repre-sentaes, multiplicando indefinidamente a nossa

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    percepo do universo. Essa a funco essencial da arte, que talvez seja illusoria, mas por certo consoladora."

    A aspirao moderna consiste em deslocar o motivo da arte de cada indivduo, ou mesmo trans-mudal-o de funco humna, para o universo, onde todas as coisas vivem independente de ns. Mas, respondem, somos ns que as percebemos, sentimos e recriamos, pela emoo do nosso espirito. Essa objeco, disse Graa Aranha, que "est prevista e repellida na synthese, que leva o espirito hu-mano, a sentir-se um com todas as coisas, a abolir o prprio eu para exprimir a vida, a aco dos obje-ctos movidos pelas suas prprias foras e nesse dy-namismo realizar a emoo esthetica, que nos funde no Universo."

    Mas, para os que no acceitam essa synthese monista e pantheista e esto, como eu, irremedia-velmente afastados de suas concluses, para estes a objeco se resolve dentro do prprio conceito da arte. Se a arte uma relao, no se quer, nem se poderia pretender, que ella deixasse de ter um ca-racter subjectivo, que se isolasse do homem, que no emanasse da harmonia do seu sr profundo com a percepo das coisas. O que se aspira afas-tar da arte essa intromisso exagerada do indiv-duo, de sorte que toda obra seja o reflexo de um modo exclusivo de perceber as coisas. Por esse lado, o espirito moderno volve ao clssico e um exemplo clarear o conceito. Em Bach a musica indepen-dente e livre do criador, em Schumann vive com o artista. Naquella a essncia est na prpria obra cie arte, nesta est no musico.

    O objectivismo busca exactamente libertar a arte_ dessa tyrannia individualista. No a disso-ciao absurda e inconcebvel do subjectivismo para realisar e sentir a arte, mas a viso do facto

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    artstico, na sua essncia, sem a deformao do eu. Em summa a reaco contra o excesso individua-lista. O phenomeno psychologico no varia, perdu-ra a relatividade do homem e das coisas, mas que-bra-se a sujeio destas, que passam a viver livre-mente, sem ser mais um simples reflexo humano. A illuso egocntrica que trouxe esse extranho pre-conceito, mas desde que o homem se liberta dessa utopia e deixa de ver o universo como um desdobra-mento da sua pessoa, readquire a posse plena do seu espirito para criar e sentir todas as coisas, como ellas so, e no mais submissas sua indivi-dualidade. O subjectivismo no exige esse dominio do eu que o romantismo lhe impoz, porque por elle que tudo se transforma, na magia da arte, que permitte a emoo, ou seja a vida integral do es-pirito.

    O objectivismo moderno mesmo sem a fuso prevista pela philosophia da unidade no afasta a arte do indivduo, porque afinal ella um acto essencialmente psychologico e no sensorial ape-nas, mas quer libertar esse acto da tyrannia do eu, que o deforma dentro de um preconceito anterior, de rnna categoria formalistica. "Para o objectivis-mo dynamico palavras de Graa Aranha a arte exprime o movimento das coisas, que agem pelas suas prprias foras independentes do eu. E ' um estado esthetico posterior ao expressionis-mo, em que toda a arte era subjectiva e emotiva. Pde-.se dizer que elle caracteriza a arte moderna nas suas derradeiras aspiraes."

    O dynamismo que Graa Aranha juntou ao objectivismo est em funco da philosophia da unidade e no da essncia da arte. E ' certo que na por-a moderna, na fremente e vertiginosa civi-lisao em que vivemos, a arte esttica no estar de accrdo com o nosso estado de espirito. Foi o

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    que tornou o cubismo uma arte cerebral, em que a ordem plstica domina a sentimental, e nelle as coisas vivem pelos seus elementos, em absoluta m-mobilidade. Ao revs, aspiramos aco, ao movi-mento, em que se sente a imagem do perpetuo fieri universal, no qual, do mundo sideral ao mundo at-mico, tudo existe pelo movimento, pela fora e pela energia. A intelligencia precisa immobilizar as coi-sas para a analyse e a compreenso, mas a arte no necessita, para a emoo, de fragmentar a nature-za, busca possuil-a na sua fuga interminvel e allu-cinante.

    Renato Almeida.

  • UM H O M E M E S S E N C I A L E ' inesquecvel"a pagina de Peguy sobre Mi-

    chelet em que o autor de Eve nos fala com tamanho poder de seduco sobre os homens essenciaes, aquelles que prescindem do "ponto de discerni-mento" ou de "ruptura humana" imaginado entre a philosophia e as artes. Graa Aranha poderia re-clamar o logar que lhe cabe entre essa cathegoria de espritos, e se eu dissesse que o artista nelle li-mita o pensador, cometteria um erro to grave como se dissesse o contrario. Essa unidade bsica, essa compenetrao do homem que pensa com o homem que sente foi em grande parte o segredo de gnios como Pascal e como Gcethe. Dahi a impor-tncia enorme do instrumento de que Graa Ara-nha dispe para realisar seus ideaes de Belleza e de Pensamento. Porque seria absurdo tentar se-parar o homem que escreveu Malazarte do que es-creveu A Esthetica da Vida. Em uma e em outra dessas duas obras vamos encontrar em coinci-dncia intima as duas individualidades que se po-deria considerar, j no direi irreconciliaveis entre si, mas quando muito indifferentes.

    A regra quasi geral encontra aqui uma ex-cepo de relevo. Chanaan o romance admirvel, que presente se no adivinha aquelle drama e aquel-la obra de pensmento (os seus dois livros mais re-

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    presentativos), no desabona esse conceito que so hoje possvel emittir com a segurana a que nos autorisam os seus livros posteriores.

    O livro que publicou ultimamente e ao qual chamou simplesmente Notas e Commentarios correspondncia entre Machado de Assis e Joa-quim Nabuco, ainda mais nos assegura nessa opi-nio.

    O Sr. Ronald de Carvalho referindo-se ainda recentemente a esse livro, frisava bem o que elle chama o gnio poltico de Graa Aranha (E ' pre-ciso no esquecer a larga significao que esse termo pde encerrar. Spinoza chamou s Metamor-phoses um poema poltico). Se eu interpreto cla-ramente a definio expressa nessas duas palavras, deve-se entender que quando applicadas a Graa Aranha esto ellas muito longe de significar a mesma coisa que quando applicadas, como elle o faz neste prefacio, a Joaquim Nabuco. Este sobrepu-nha "a imaginao histrica", imaginao esthe-tica" a ponto de preferir s florestas amaznicas, um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi e um pedao do ces do Sena sombra do velho Louvre, a toda a magia do Rio de Janeiro. Gobineau, que era um gnio fundamental-mente poltico, confessa em uma das suas delicio-sas novellas (La Vie de Voyage), que no sentiu emoo alguma ao ver esse quadro resplandescente, deante do qual, "s os olhos ficam fascinados, se-duzidos..." Para o grande precursor do imperia-lismo allemo, "quando a natureza physica no impregnada pela natureza moral, produz poucas emoes na alma e por esse motivo que as scenas mais deslumbrantes do Novo Mundo, nunca igua-lariam os menores aspectos do antigo.

    Em Gobineau, como em Nabuco, dois estados de alma idnticos reflectiam a imaginao essen-

  • ESTTICA 3 1

    cialmente politica de ambos. Como differente a imaginao creadora de Graa Aranha:. "Paisa-gem sem historia, afortunado privilegio! e ahi o espirito do homem pela pura emoo esthetica se torna infinito!" Para elle o sentimento indiffe-rente historia "e os que no encontram interesse na paisagem brasileira tm imaginao politica, mas so destitudos de sentimento esthetico" No pensador que escreveu aquellas admirveis paginas sobre a Metaphisica Brasileira e sobre Cultura e Civisao na Esthetica da Vida, paginas to pe-netradas de espirito politico, no se pde entre-tanto negar a presena dessa frma de imaginao que caracterisa Nabuco. Mas nelle a imaginao politica no uma diminuio, por isso que no ex-clue a imaginao esthetica, antes uma das suas modalidades.

    A explicao desse phenomeno que em Graa Aranha o pensamento politico no se sobrepe ao pensamento esthetico antes continua e completa e se submette a elle. Por isso no se d no autor de Chanaan, como no autor de Minha Formao, o facto da primeira frma de imaginao supprimir a segunda e occupar o logar que esta podia pre-encher. Nelle o gnio politico chega a uma soluo opposta do problema, quando diz que a imaginao histrica deprime o homem completo que para elle o artista (est claro que o autor se refere America, onde a historia no chega a crear uma tradio viva como no Velho Mundo). "Que im-porta ao artista, ao homem completo", pergunta, "que o Rio de Janeiro tenha ou no tenha um pas-sado histrico ?" O que o interessa, diz elle, aquel-la mgica combinao de luz e de frmas, o que o exalta "a terra que se eleva e se fracciona em montanhas, a vegetao indomvel que tudo in-vade e se ostenta em maravilhosas expresses, a

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    agua alegre e multicor, o sol que paralysa nos seus ardores o mundo esttico." A' falta de tradies que o homem novo creado na America pelo contacto de civilisaes millenares com uma natureza estra-nha, no pde ou no deve acceitar, resta ao homem americano, e ao brasileiro em particular, a imagi-nao esthetica creada no "inconsciente mythico" onde ainda no foi de todo eliminado o "terror cs-mico" E ' incontestvel pois o movei politico que dirige o espirito de Graa Aranha em todas as suas creaes. Desde Chanaan todas as suas obras so invariavelmente syntheses sociaes, que revelam uma constante preoccupao de ordem politica. Milkau e Lenz, Malazarte e Dyonisia o so e clara-mente. Rousseau, parece-lhe encarnar o surto de "dois persongens (essa expresso aqui significa-tiva) novos no mundo: a natureza e o homem livre na sociedade livre. O nosso Alencar representa a affirmao da "independncia intellectual do Bra-sil. Debussy exprimiu a extrema sensibilidade mo-derna por uma musicalidade aguda, pelo requinte nervoso de uma musica cerebral, profundamente sensual." Flaubert "exprime a virtude franceza, a razo econmica que mede o esforo, reflecte apro-veita e arranja com os seus meios o que til e bello." Rabelais no s representa como traz em si um "mundo novo": interpreta o movimento poli-tico da Renascena e o advento do individuo (" o homem novo, sem raizes, sem tradio e dessa ca-nalha" rbelaisiana se far mais tarde a magnifica elite que assombrar o mundo no pensamento, na poesia, na arte e na politica"). Ibsen o "grande interprete do mundo moderno, o gnio que expri-miu antecipadamente o pensamento victorioso na guerra"

    E ' assim que cada personagem encarna, ex-prime, representa e no s representa como traz

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    em si todo um systema, toda uma sensibilidade ou todo um mundo. Esse processo parallelo ao da biologia moderna, representada por Von Uexkull e outros, segundo os quaes o indivduo inseparvel da sua paisagem. E ' impossvel a um artista repro-duzir em um quadro uma arvore deixando de con-siderar o fundo da tela e s se pde representar a unidade do quadro com esse conjunto.

    Assim Graa Aranha systematisa um methodo novo de critica, o nico que se concilia com o seu temperamento pouco analytico. Tratando de um determinado autor ou creando um personagem de fico, seu espirito deve se interessar menos na psychologia em si do personagem ou do criticado, que na synthese social que um e outro representam. A psychologia vir naturalmente, mas em funco dessa synthese.

    A analyse pela analyse interessa mediocre-mente ao autor da Esthetica da Vida. Direi me-lhor: a analyse s lhe interessa na medida em que lhe possa servir para uma synthese de ordem geral. Reunindo assim os fragmentos dispersos de uma personalidade imaginaria ou real, para recons-truil-a no seu todo, sem despresar as partculas por assim dizer metaphysicas, quer dizer aquellas que s podem servir para essa reconstruco global de cada individualidade, ento possvel a Graa Aranha supprir admiravelmente a sua defficiencia de poder analytico que para a sua weltanschaung no chega a constituir uma deficincia. A analyse absolutamente dispensvel para a sua concepo do mundo.

    Falando, por exemplo em Machado de Assis, elle insiste no seu riso f atigado, na meiguice, na vo-lpia, no pudor, no enjo dos humanos, caracters-ticas que todos os crticos, ainda os mais superfi-ciaes, haviam encontrado no romancista do Braz

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    Cubas. Mas essa constatao, no lhe basta para definir o homem. Elle sabe que Machado no cabe apenas nesses traos psychologicos individuaes, que no satisfazem, por outro lado, a necessidade de construco, de que faz um systema. "Essas qua-lidades e esses defeitos esto no sangue", diz elle, "no so adquiridos pela cultura individual". Essa cultura individual que bastaria para interessar aos espritos puramente analyticos, elle incorpora he-rana racial e historia de famlia, que Machado no tem. Em certo logar elle nos fala nas leituras predilectas de Machado de Assis, nos seus "forma-dores intellectuaes", mas s para constatar que o seu desencanto innato, se affinava melancolia desses formadores intellectues." E ' natural que um temperamento como o de Machado no possa exer-cer grande seduco sobre o seu espirito e muito menos ser objecto de uma grande admirao, como no foi para Joaquim Nabuco. Descobre mesmo e friza a "incompatibilidade com o meio csmico bra-sileiro que foi a singular caracterstica de Machado de Assis." A verdade que em Alencar e nos pri-meiros indianistas, que lhe apparecem como os ma-ravilhosos interpretes da immorredoura idealidade nacional, essa incompatibilidade apenas menos evidente. A nossa natureza tropical s lhes inte-ressava como uma possibilidade extica, vista atra-vez dos culos azues roubados imaginao euro-pa do francez Chateaubriand e do americano Co-oper. O autor de Iracema era sem duvida um gran-de lyrico e se no representou nas nossas letras o papel que Graa Aranha lhe atribue, sua obra va-leria falta de outras qualidades, pela magnfica inteo que resume.

    Se em Nabuco aquella incompatibilidade no lhe parece to lamentvel, a razo est no facto de ambos terem de commum o gnio politico embora

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    differentemente expresso. Falando na vontade ex-pressa pelo autor de Massangana de limitar as suas relaes espirituaes, exclama: "Esse propsito de limitao ainda um trao politico. E ' o instincto da ordem que tem horror ao absoluto e no se perde no desvario. A limitao uma frma de disciplina. A disciplina no nosso tumulto uma expresso de herosmo."

    Em Graa Aranha o trao politico no inclue essa limitao. Se a sua imaginao no acha inte-resse theorico directo em doutrinas psychologicas modernas, nem por isso ellas deixam de nutrir a sua curiosidade.

    Nas paginas mais coloridas desse "prefacio" o brilho do estylo no esconde o pensador a ida e a expresso no se excluem e ainda menos se suc-cedem. No ha limite preciso e notvel entre uma e outra. Quando descreve um incidente entre os filhos do marquez de Salisbury e os cafres que foram a Londres assistir a imponncia da eoroao do rei Eduardo e esta uma das suas paginas mais impressionantes a cara-cterstica essencial do seu pensamento que reduz todas as coisas ao seu mnimo mltiplo commum, transparece clara e evidente: "O folguedo com as creanas despertou nos negros os seus ascentraes appetites canibalescos. Os dentes ficaram-lhes mais brancos de desejos estranhos. Os dourados cherubins sentiram a gula preta e aconchegaram-se ao av. O olhar do urso inglez deante do ataque, relampejou. As duas selvagerias, a da terra branca dos gelos e a da terra rubra do sol, enfrentaram-se. O olhar inglez enfureceu-se. Os negros recuaram e recolheram o riso. O velho marquez de Salisbury sorri nos seus dentes postios As subjugadas gentes continuaram a adormecer na incommensuravel bea-titude britannica."

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    E ' impossvel no observar que o- "velho cas-tello de Hatfield" no est aqui apenas como sim-ples personagem desse episdio; elle representa e principalmente traz em si a grandeza do poderio inglez: "a incommensuravel beatitude britannica."

    No sei se terei insistido sufficientemente na importncia da contribuio de Graa Aranha para essa maior affirmao da nossa individualidade nacional, de uma maior intimidade que o "espirito moderno" j tenta effectuar entre a nossa raa e o nosso meio csmico. Estou certo de que os resul-tados que dessa contribuio possam provir, nunca a desmerecero. Ns sabemos que "arvores impe-dem que se veja a floresta" mas no podemos nos esquecer que a obra de Graa Aranha abre uma cla-reira, o que de qualquer modo constitue uma precio-sa indicao. O "espirito moderno" nos proporciona neste momento uma affirmao inesquecvel .j Se essa affirmao no se revelou ainda por obras de mrito excepcional, como querem alguns ella valer pelo menos como uma negao das negaes, que so os obstculos a uma affirmao maior.

    Srgio Buarque de Hollanda.

  • P O E M A S A FLOR DE CINZA

    (THEORIA DO AMOR)

    "Filie du Boi, jetez-moi votre rose V

    I

    "Filha do Rei, atira-me essa rosa!"

    E o cavalleiro Parlapato! parlapato! de esporas de prata, de plumas de neve,

    voava ligeiro Parlapato ! como uma flecha venenosa,

    sob o brao da princeza, que era um arco curvo e leve-leve e curvo, de marfim.

    "Filha do Rei, atira-me essa rosa!"

    E a rosa no ar. Par-E o guante de prata,

    -la-Um salto.

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    -pa-E assim,

    -to! l vae o cavallo

    Parla-e o seu cavalleiro....

    -pato! L vo quatro nuvens baixinhas no cho. L vae uma rosa vermelha na mo. Parla-pato!

    Par-la-pa-tp!

    I I

    Mas a rosa era de fogo, mas a rosa era de braza, e o cavalheiro voava,

    Parlapato ! o cavalleiro era uma aza,

    e teve medo (que medo!) que se apagasse a tal flor. (Era to linda a sua cr! Era to bom o seu calor!) E comeou a soprar sobre a rosa, noite e dia, cada noite, cada dia, sempre mais, cada vez mais. Soprou muito, soprou tanto! Muito, tanto, at

    [demais. I I I

    .Porque a flor de braza, agora, uma flor de [cinza fria:

    ella o espectro de uma flor. E o cavalleiro que voava, que era uma flecha e era

    [uma aza, e soprara como o vento sobre a flor de fogo que era todo o seu amor ; o cavalleiro fechou-se num torreo da sua casa, e nem fala, e nem respira, e nem se mOve porque, porque a flor de cinza, s

  • ESTTICA 39

    de sentil-o, s de tel-o perto, pde muito bem, muito bem se desmanchar em p pelo ar

    VELOCIDADE

    (96 kilometros por hora) No se lembram do gigante das botas sete legoas ? L vae elle: vae varando, no seu vo de azas cegas, as distancias.

    E dispara, nunca pra,

    nem repara para os lados,

    para frente, para traz...

    Vae como um pria... E vae levando um novello embaraado de fitas: fitas

    azues, brancas,

    verdes, amarellas.

    imprevistas. Va.e varando o vento: e o vento, ventando cada

    [vez mais, desembaraa o novello, penteando com dedos de ar o feixe fino de riscas,

    tiras, fitas,

    faixas, listas.

  • 4 0 ESTTICA

    E estira-as, puxa-as,

    estica-as, espicha-as bem para traz:

    E as cores retezas, sobem, descem DE-VA-GAR, parallelamente,

    parallelamente, horizontaes,

    sobre a cabea espantada do Pequeno Pollegar

    Guilherme Almeida.

  • O D E P E S S I M I S T A

    Na luz violenta da manh, saio, entre os geni-papeiros, com o desejo emphatico de sentir a ple-nitude da Vida e a perpetua alegria derramada pela Terra.

    Meu ser uma paizagem fatigante. Morro de vl-a, obstinada, sempre egual. Em vo sophismo com blandicias, querendo-a enriquecida fora de cultura, varia, imprevista e opulenta. Quando mui-to ser paizagem de pedante. E indecorosa.

    Mas, entre os genipapeiros, na luz violenta da manh, vim arej ar a priso obscura em que me confino.

    Bem sei que o mundo minha representao e que todo o Universo, todo o immenso Universo, uma simples creao de meus pobres sentidos.

    Comtudo, aqui, no quadro tropical, no ha logar commum de philosophia natural que possa resistir luz violenta da manh.

    Meu ser montono e insistente perdeu-se no esplendor estridente do dia sertanejo.

  • 42 ESTTICA

    A vida, a vida numerosa e unanime, affirma-se jovialmente, sem argumentos metaphysicos. Ha uma incontinencia geral e perturbadora e uma ale-gria vasta e impudente de existir.

    E ' um concerto egualitario :nenhuma voz se impe ou impera s. A' eloqncia dogmtica da cachoeira distante une-se o chiado de milhes de cigarras trefegas. O trilo melifluo das aves soffre a pateada dos galhos irreverentes. E, invisivel, de-sapiedadamente, um carro de bois, na encosta, avo-luma a zoada delirante.

    Deixei a. sombra tremula dos genipapeiros. E, de o ter julgado illusorio, o sol castiga-me cruel-mente. Pisando o dorso magro da terra abrazada, hesito e titubeio claridade excessiva.

    Vejo no ar denso e cantante ondulaes multi-coloridas. O azul do cu parece escorrer do alto, esbanj ando-se sobre a matta, em que me embrenho, emfim, tonto e exhaurido.

    E eu, que queria commungar com o Todo In-finito .

    Aqui ha um derrame desmedido de verde. Verde profundo de frondes, verde frivolo de para-sitas, verde jovial de folha tenra, verde pisado de folha secca, verde franco de jatobs e de perobas, verde dbio de timbabas, verde atrevido de cips, verde montono, verde redundante.

    Na mattaria, assim, indefinidamente verde, verde, repousam minhas pupillas offuscadas, at que, de entre o verde de um cerrado, tm a sur-preza deliciosa de uma nota de nankim.

  • JBSTTICA 43

    E' um mutum, parado, pensativo, soberbo como uma ave herldica, de um preto de nankim.

    Ave fatua, pensei, fugida de um brazo ger-mnico para a floresta tropical. ^

    Mas, logo, como a me responder, pia o mutum tristemente, humildemente, desconsoladmente.

    Se-lhe do bico escarlate, em vez do canto marcial, que eu esperava ouvir, impaciente, uma queixa confusa, um gemido de dr obscura, a tre-mer na mattaria sonora:

    "Mundo verde e immenso, em que erro ssinho, como eu poderia confundir-me em ti ? Ambicioso e ardente, vivo pri-sioneiro da alma exigua e pobre que a sorte me deu.

    "Certo, eu bem quizera, Mundo mys-terioso, no teu ser profundo transfundir meu ser. Mas, do claustro escuro a que fui fadado, nem meu sonho inquieto pde te alcanar.

    "Sei que existes, Mundo; sei que s tudo aquillo que se agita ou pra fora do meu ser. Sei que s flor e fructo; sei que s rio e serra; sei que s tudo aquillo que eu quizera ser.

    "Sinto obscuramente, Mundo nume-roso, que da mesma essncia procedemos. E esse sentimento que m faz mais tris-te, esse sentimento que me faz mais s.

  • 4 4 ESTTICA

    "Entretanto, Mundo que eu cobio e chamo, quem sabe si soffres de meu mal tambm ? Quem sabe si encerras, no teu ser enorme, tantos seres vivos quantas so-lides ?,.. "

    Rodrigo M. F. de Andrade.

  • S R G I O M I L L I E T (A propsito do livro OEIL DE BOEUF)

    No primeiro livro de Serge Milliet, "Par le sentier", publicado em Genve, em 1917, havia um verso assim:

    Vers Vazur lumineux je marche pas trs srs. Este verso muito banal e muito fcil, no

    havendo poeta que no tenha dito, pelo menos uma vez na vida, que elle vae subindo, lentamente, os degros da escada do ideal, com i grande. Mas eu fiz a citao do verso, justamente no propsito de tomal-o noutro sentido, num sentido que, sem duvida, no era o que o poeta lhe dava, quando o escreveu. O azur lumineux um symbolo e nin-gum me nega o direito de dar-lhe um contedo ar-bitrrio. Portanto, eu quero entender o azur lumi-neux como sendo a gloria e, por conseguinte, o verso citado resume-se na affirmao de que o poeta caminha, muito certo de si, para a gloria., Quando uma pessoa sente dentro do seu corao uma pujana de vida interior que, apezar de con-tida e recalcada, no deixa de transbordar um pouco da sua vitalidade, no de admirar que fique convencida de que, um dia ha de receber o applauso universal. Porque o applauso universal

  • 4 6 ESTTICA

    no falha para aquelles homens que sabem, de uma maneira harmoniosa, transbordar idas e emoes, que, quasi sempre, so as idas e emoes de todo o mundo. Quando o publico chega a applaudir que elle v no artista a sua prpria imagem engrande-cida e aperfeioada. E uma verdade psychologica, de verificao diria, que ns s amamos e admira-mos aquelles que fazem de ns qualquer coisa de melhor ou de mais perfeito, ou, quando menos, que nos proporcionam a illuso disso.

    Muitas vezes, porm, o azur lumineux no passa de uma tribuna, cinco metros acima do nivel commum, onde o artista, como um camelot, distri-bue reclames impressos. Mas o caso de Serge Mil-liet differente. Elle subiu muito e progrediu de tal frma, que hoje o seu nome recebido com muita sympathia nos meios literrios, em que se fala ou se entende a lingua franceza.

    Pde-se dizer, pois, sem pressa, que elle adqui-riu uma "reputao solida", conseguindo formar um interesse sincero em torno do seu nome. E ' fcil seguir sua evoluo literria, lendo o "Par-le-sen-tier", "Le-dpart-sous-la-pluie" e " Oeil-de-Boeuf", seu ultimo livro. Por elles, tornam-se visiveis as diversas phases que atravessou: romantismo, sym-bolismo, "symbolismo parnasiano", etc. Ha pessoas que, como os batrachios, passam por varias meta-morphoses, antes de attingirem o seu feitio certo e definitivo. Outros, no. Soffrem apenas uma li-geira muda e installam-se com as cores da sua plu-magem no galho da arvore das letras. Isso no quer dizer que uns sejam superiores aos outros. A arara tem sempre as suas pennas escandalosas, desde que nasce, e todos ns sabemos o que uma arara.

    Em "Oeil-de-Boeuf", Serge Milliet no se li-bertou inteiramente de certos preconceitos e da moda literria que predominava, no momento em

  • ESTTICA 47

    que escreveu as suas poesias. E ' um livro desigual. Em certos poemas, adoptou, de caso pensado, a mania da associao de idas. Foi uma tentativa par mostrar de quanto elle era capaz. Vejamos como elle termina o penltimo poema do livro:

    On avale des kilomtres et des paysages aisment on avale tout de Ia blague du poison et des bailes de revolver un jeune homme trs romantique mille toiles dans le ciei

    "par dessus le toit" Klaxons rauques yeux lubriques viaducs aquducs grands ducs et chouettes associations rvolutions republique sovitique guillotine Oeil-de-Boeuf.

    Deu-se com Serge Milliet um phenomeno psy-chologico que muito commum nos rapazes que esto treinando para adquirir o titulo de athleta completo: desejam fazer todos os sports, mesmo aquelles que no os atrahem e que refogem ao que se poder chamar o seu "temperamento sportivo" Si apparece uma pirueta nova, um "tour-de-force" complicado, l esto elles esforando-se para repe-tir a faanha e accrescentar mais uma cambalhota ao seu patrimnio athletico. Elles querem estar ao par. Eis tudo

  • 48 ESTTICA

    Fao estas observaes no para deprimir esse poeta, que um dos meus melhores amigos, mas para fazer-lhe ver que no tem necessidade de catar as missangas e os vidrilhos de uso corrente para enriquecer o seu manto de artista. Ha certas coisas em arte que so suprfluas e incuas, como os passes e tregeitos de um hypnotisador bisonho...

    Si certo que a maneira por que cada um as-socia idas est condicionada ao seu temperamento, sua cultura e sua experincia, e que, portanto, a associao de idas, posto que arbitraria, man-tm sempre, na medida do possivel, o vinco da per-sonalidade deste ou daquell,no menos certo que, em poesia, quando a associao de idas, por contiguidade ou semelhana, sahe dos dominios do natural para o do rebuscado e do artificial, dege-nera logo em processo fcil e cansativo, tornando-se um empecilho para a emoo esthetica. No fim de duas ou trs poesias o truc enfada.

    Quando o processo natural, o poema ganha em encanto. Neste caso, Misre, pequena pea autobiographica, admiravelmente bem feita:

    Saluons l'picier du coin car toutes les platitudes sont legres sont legres Des amis m'offrent l'apero IRONIE Inconscience des bourses pleines que croient qu'on dine tous les jours Mais je danse le soir au bar et je tends Ia main au patron et je m'interesse Ia politique internationale et le Ministre du Japon me prend souvent pour le danseur de Ia maison

  • ESTTICA 49

    Je remonte le fleuve intrieur l'eau sale se purifie Trop encaiss redescendons AVANT APRS

    Muitos ho de negar o que elles to obstina-damente chamam "belleza" a esse poema, de que eu apenas citei um trecho. E em parte elles tm razo. Elles tm razo, si considerarem como pas-sveis de receber a etiqueta "bello" apenas certos assumptos convencionaes, cousas ou phenomenos, que, excitando centros nervosos complicados, so capazes de provocar um gozo desinteressado. Por esse modo de encarar as coisas, a funco da arte consistir apenas na reproduco desses assumptos "bellos", cujo numero foi priori restringido e li-mitado.

    O artista torna-se, pois, um assobiador de ve-lhas rias sentimentaes, que o leitor j ouviu toca-das por uma orchestra inteira.

    Ora, toda a verdadeira poesia e, principal-mente a poesia moderna, exige do leitor uma par-ticipao intima, uma affinidade de sentimentos e attitudes muito pronunciada. O que se pde censu-rar nella , muitas vezes, uma sorte de hermetismo subjectivo, que a torna anti-social e incomprehen-sivel. Mas no se deve condemnal-a, s porque ella apresenta algumas vezes essa tendncia extremada.

    Quando o selvagem diz, repetidas vezes, como um estribilho musical:

    A lua est branca. A lua est branca.

    elle est fazendo poesia pura, porque est exterio-risando, de um modo harmonioso e directo, uma

  • 50 ESTTICA

    emoo que de tal frma o empolgou, que baniu do seu espirito todas as outras representaes men-taes, que lhe so familiares. Deu-se com o selvagem o mesmo que se d commumente com qualquer pes-soa, vista de uma paysagem empolgante: a pes-soa no sabe diz'er outra cousa sino isso: "Que lindo ! Que lindo". Isto j um comeo de poesia exteriorisada, porque a pessoa est evidentemente em estado de gra.

    Vejamos Gonalves Dias, na sua cano mais celebre:

    Minha terra tem palmeiras onde canta o sabi as aves que aqui gorgeiam no gorgeiam como l.

    Isto poesia pura. Banalizou-se, verdade, fora de repetio. Mas um grito lirico, em que no se observa uma imagem ou metaphora e na qual o que importa e avulta o colorido emocional da. poesia. As canes de Goethe ou Heine so do mesmo modo ingnuas e puras. Exigem do leitor uma collaborao constante. Exigem que a sua sen-sibilidade esteja carregada, como uma pilha electri-ca. Na poesia que eu citei, de Serge Milliet, em que o poeta transpe, em linguagem rythmada, certos trechos da sua vida de outrra, quasi sem commen-tal-a, quem no se puzer ao nivel da sensibilidade do poeta, transpondo em si mesmo a tonalidade af-fectiva que aquelles acontecimentos ineluctavel-mente acarretam, no pde comprehendel-a e vae achar o que o poeta disse qualquer cousa sensabo-rona e indifferente. Acontece isso mesmo para quem no se puzer na situao ou, melhor, no nivel sentimental de Gonalves Dias, quando escreveu a cano do exilio. Esse algum vae achar os primei-ros versos da

  • ESTTICA 5 1

    Minha terra tem palmeiras onde canta o sabi,

    como um relatrio secco e sem significao, como si tivesse lendo uma estatstica de um ministrio publico.

    Entretanto, as pessoas que lem poesias so, na sua generalidade, pilhas descarregadas. O que procuram na poesia, quando no um certo tom meloso, de lastima, o torneio difficil da frase, a rima rica, o rythmo de realejo, a imagem banali-sada e corrente, como uma moeda. No se deve tocar aqui na procura das "chaves de ouro", um vicio feio como outro qualquer. No parnasianismo, sobretudo, o sentimento que predominava nos poe-tas era o da difficuldade vencida, o da victoria sobre as palavras tumultuarias, indisciplinadas e dispares, que elles conseguiam subjugar e relacio-nar, por meio de uma gymnastica adequada, que logo se tornou um segredo facilmente assimilvel e bobo. Nos leitores, ento, era o sentimento de pasmo, equivalente ao que manifestamos deante de um equilibrista japonez, de arame e trapezio.

    No cabe aqui um exame critico da arte mo-derna, que multiface e no segue um principio director, um dogma preestabelecido. O que se pu-blica em Frana differe do que se publica ou se realiza em Inglaterra, na Allemanha ou na Itlia... Mas o que se nota em toda a parte um cansao natural para as velhas frmulas de arte, que deram o que tinham que dar. Procura-se e muitos teem chado "alvo nuevo" e a maneira mais adequada de exprimir certas cambiantes de sentimento que o tempo, a cultura e a civilizao imprimiram ao es-pirito do homem.

    As imagens-motoras que, no dizer do psycho-logo e poeta Charles Baudouin, constituem "une des choses les plus fcondes parmi les trouvailles

  • 52 ESTTICA

    des vingt dernires annes", encontram-se freqen-temente no livro de Serge Milliet:

    Parf ums. violents dans les narines comme des coups de poing.

    Lame qui penetre doucement Ia poignante mlancolie des crepuscules.

    O artista moderno ser sempre alegre ? No o creio. A alegria presuppe um estado de sere-nidade, de indiferena interior deante de certos problemas que preoccupam, desde ha millenios, o espirito humano. A alegria uma auto-libertao. E o poeta moderno , mais do que qualquer outro, um escravo de si mesmo. Entretanto, a arte mo-derna, em muitas das suas manifestaes, vive na inquietao. Agitada e confusa, algumas vezes, o que ella tem de extranho e original , alm da rea-lizao da totalidade da vida e do homem, numa formula syhthetica e precisa, a constante "repres-so", por assim dizer, de sentimentos angustiosos, de tendncias dolorosas. Dahi o seu lado irnico, humorstico e desequilibrado. E ' verdade que nem sempre isso acontece. Mas esse recalcamento evi-dente e incontestvel em innumeros casos.

    Vejamos, por exemplo, uma poesia de Serge Milliet, "qui se pique d'tre moderniste":

    Lame qui penetre doucement Ia poignante mlancolie des crepuscules Et prs de Ia fentre sur Ia cour rever invinciblement O mille et une nuits blouissantes de mes rves et au rveil Ia nudit des murs

  • ESTTICA 53

    1'obscurit maladive de Ia chambre et malgr tout

    Ce cceur a tant souf f ert ce cceur a tant d'espoir-cette hantise du bonheur comme le bruit des vagues et ce regard vers Dieu

    me GONFLE DE SOLITUDE et ptrie de si 1 ene e......

    Para terminar vou transcrever duas poesias, sem fazer commentario. O leitor que julgue por si mesmo.

    Paysage

    Un jeune soleil sur Ia plaine baigne les champs rctangulaires Un merle siffle un air bizarre Comme une haleine

    Ia brise souffle et legre Ia rivire joue saute-mouton avec des cailloux ronds.

    Les branches des sapins semblent avoir trop chaud et s'ventent tour de role Et l-bas aux franes du coteau les cerisiers ont 1'air de bouquets parfums dans des vases de grs.

    Shimmy

    Ciei paisible d't aux mille toiles et sur Ia terre les f emmes en toilette

  • 54 ESTTICA

    Excs de verve confiserie dlicate bonbons

    Que d'esprit gaspill chre me pour un sicle qui en a si peu !

    D. en est qui contemplent encore les clairs de lune mais Elle voudrait uniquement savoir danser de shimmy Cest complique comme une toile dadaiste Et pourtant ce n'est peut-tre

    qu'un retour au classicisme Harmonieuses silhouettes des arbres de 1'alle pulsations irrgulires de ma pense et ses yeux comme un double miroir.

    Couto de Barros.

  • P A I S A G E M DE B R I N Q U E D O

    Acolcha a suave colina uma herva tenra como l de novello. Por perto no chora nenhuma fonte crystallina

    As arvores magras, pintadas de verde afunilam-se na beira da estrada perfiladas como soldados em parada. No canta nos ramos nenhum passarinho.

    Estendido por sobre a relva lusidia, muito limpo e muito branco, o caminho se espreguia at a porta da igreja Nenhum sino toca a Ave-Maria.

    Nenhuma folha tomba, nenhuma asa adeja na paisagem de brinquedo.

    Lentamente, quasi a medo, com seu vu roseo que flucta a tarde veste a terra na.

    Envolve as arvores perfiladas fazendo-as mais afuniladas, e cobre a herva de l e estende o caminho de modo tal que elle fica esticado como um risco de cal.

  • 56 ESTTICA

    Depois morre a tarde violeta.

    E prfida, e amvel a noite desce como uma capa preta sobre os hombros da colina suave.

    A noite desce e s deixa visivel a igreja plida e inaccessivel. Ento por traz da torre nova da igreja plida puxada do alto por algum fio sobe aos arrancos uma lua enorme fosca e metlica.

    Sobe.

    E fica oscillando no cu macio.

    Affonso Arinos Sobrinho.

  • OS M O R T A E S DE N E R D ou

    O PERIGO DAS DEDUES

    Pedro de Souza Rpido nasceu simplesmente Souza. Com no e meio ainda no tinha nome de batismo. O pai, imbudo de idas revolucionrias, era partidrio da independncia da ndia e queria que le Se chamasse Mahatma.

    No se chamou. Um dia, a mi o batisou em se-gredo. E o pequeno Souza ficou sendo Pedro.

    Ao terminar os preparatrios, numa noite de insnia e dores de cabea em que j tinha pensado, inutilmente em Spinoza, nos seus projectos de fu-turo e no logaritmo de pi, formulou a seguinte m-xima:

    "O tempo no existe em abstracto. E ' um re-sultado do movimento. A gente vive* mais vivendo mais depressa".

    Feito isso, sorriu e adormeceu. No outro dia escolheu o ltimo nome e decidiu

    sua carreira. Ensaiou modificaes na assignatura. Quando se reconheceu sob a nova firma, requereu matrcula na Politcnica. Pedro de Souza Rpido.

    Passou a viver acelerado. Corria de um lado para outro. Lia cinco ou seis livros por dia. E con-tentava-se com 1 hora de sono, porque dormia a toda pressa.

  • 5 8 ESTTICA

    Uma tarde, um desconhecido o forou a pa-rar e murmurou-lhe ao ouvido: "O cavalheiro quer fazer fortuna? No custa esperimentar." Fez um gesto suspeito de "pick-pocket" e perdeu-se na multido como um lugar. Rpido achou no bolso este carto:

    P R O F E S S O R

    I W E X MERKG-HAN Mestre das Sciencias da

    Pt irenologla , C h l r o m a n o l a e H y p n o m a n c i a D*curso, chamados em residncias

    R e c e b e s e u s a l u m n o s o a m a d o r e s e m s e u gabinete , s q u i n t a s , s e x t a s - f e i r a s e s a b b a d o s .

    DAS 3 S 6

    Rua Marquez de Abrantes, 96 Phone B. M. Rio de Janeiro

    Eram 4 e 10. le resolveu ir casa do pro-fessor.

    O senhor rabe % No senhor. Sou persa. Ah! tive um tapete que tambm era persa.

    O senhor pde lr minha mo ? Tenha a bondade sentar-se. "O senhor solteiro. Chama-se Pedro. No

    tem sorte na loteria. Vejo na sua vida um grande desgosto. uma casa particular e. dois charu-tos. Far uma viagem por mar, no desejar a mu-lher do prximo e ir ao cinema hoje s 5 horas.: Mas si quer ser feliz, oua o meu conselho: nunca pense em mquinas."

    "Ir ao cinema hoje s 5 horas." Tomou um taxi. "Ba mquina. Oh! diabo! eu no devo... Ba

  • ESTTICA 5 9

    profisso, a de dactilgrafo. Olha o Orestes, por exemplo. Mquina. Ora essa! Que mal fiz eu s ma-quinas % Afinal que vem a ser mquina % "Mquina tudo que pde produzir trabalho. As mquinas podem ser simples ou compostas. Mquinas sim-ples: a alavanca, a roldana, o plano inclinado." O professor Onnex no disse a que cinema eu tenho de ir

    HOJE!

    SUCCESSO SEM PRECEDENTES / / /

    TODOS AO AVENIDA ! ! ! ! !

    Todos; logo, eu tambm. Mas no pensar em mquinas.

    Ol, Rpido! Cada vez mais sempre o mes-mo, hein !

    . Ento, at logo. Deixa que eu te apresente aqui poetisa

    Astarta Rodrigues. Minha senhora. J o conhecia muito de nome, o senhor tem

    fama de matemtico. Bondade de V Ex. Absolutamente. Meu irmo me diz sempre

    que o senhor uma verdadeira mquina de calcular. No, minha senhora. No sou mquina.

    Nunca fui mquina de nada. Nem penso em m-quinas, ouviu ? NEM PENSO EM MAQUINAS.

    Saiu. Homens de ao brunido passavam, como Lot, sem olhar para trs, no mesmo passo desagei-tado de manequins, sacudindo os braos em gestos de mola. Bonecas mecnicas piscavam olhos de por-

  • 60 ESTTICA

    celana e diziam "pap" Casas elsticas cresciam e baixavam aos andares. Morros recem-forjados ti-nham reflexos de cartola. O mar: linotipo impri-mindo edies de luxo em papel Whatman. O sol: libra esterlina cunhada e gasta cada dia.

    Rpido teve sensaes estranhas. Seus mem-bros se inteiriaram. Sentiu metalizaes. Seus pensamentos se engrenaram em silogismos. Sua vontade se anulou. Um mpeto irresistvel o obri-gou a marchar como os outros. Partiu no compasso umdois, umdois com destino ignorado. E integrou-se no mecanismo universal.

    Pedro de Souza Rpido, com a pressa habi-tual, convenceu-se de que s um apparelho lhe per-mitiria viver como desejava. Desenhou-o, cons-truiu-o e chamou-lhe mquina da longa vida. Obte-ve auxilio do Ministrio de Proteo dos Inventos e Descobertas Nacionaes e preparou a esperiencia: uma corrida com a luz, "coroada do mais brilhante e absoluto xito", como disse o "Mercrio", noti-ciando a victoria do inventor.

    Para maior garantia, introduziu no motor v-rias modificaes mais fceis de fazer que de espli-car, comprou "O ingls sem mestre" e partiu. A certa altura, quando o aparelho adquiriu veloci-dade infinita, ftpido se desinteressou do itiner-rio. Comeou a lr. Passado algum tempo, quis fumar. No tinha fogo. Desceu numa estrada que se lembrava de j ter visto em dia de chuva. Pen-sou: "Todo caminho vai a Roma"

    A estrada cortava um prado onde no havia clchico nem vacas. E era no outono. Um senhor de atitude respeitvel caminhava a certa distancia. Rpido estranhou que le estivesse de camisolo e chinelos.

  • ESTTICA 6 1

    Pst! Pst! O senhor tem fsforos ? Salve! Salve ! Faa o favor de me ceder o fogo,

    sim ? No fuma ? Debemus corpore tantum indulgere quan-

    tum bone valetudini satis est. Rpido observou que o camisolo do seu "inter-

    locutor era uma toga. Lembrou-se dos nomes mas-culinos da Ia declinao.

    Voc romano ? (1) Sou romano e amigo de Nro. Posso talvez

    prestar algum servicinho a voc. Hoje sa cedinho para acabar um capitulo do meu livro. Escrevo para matar o tempo. Olhe aqui o comeo.

    Ah! o "De clementia" ? Tenho isso em casa, em traduco francesa, mas francamente, no li no. Com que ento voc o Sneca?

    Lcio Aneu Sneca, seu criado. Si voc no me encontrasse, perdia-se aqui na via Apia, sem desconfiar onde estava.

    Ora, quem tem boca vai a Roma. Voc sabe, eu estou escrevendo agora. Como tinha chegado l? Ora essa! Que estava

    em Roma, era incontestvel. Entre outras provas, ali a besta do Sneca dizia cousas intermin-veis. E o aparelho ? O aparelho estava satis-feito como uma nuvem depois da chuva. S si le correu demais. A velocidade sendo mais que in-finita (V> oo) o tempo negativo. Que massada! Emfim.

    .que eu procurei mostrar nas ltimas p-ginas .

    Amanhecia. A cidade avanava para eles. As casas, sobre fundo esverdeado, pareciam roupas

    (1) Para comodidade prpria e do leitores, o autor achou prefervel no estudar latim.

  • 62 KSTTICA

    num coradouro. Uma a uma, foram acordando. Es-preguiaram-se como gatas, brincaram com uns raios de luz e levantaram-se para o servio dirio. Quando a cidade alcanou Rpido e Sneca, esta-vam todas nos seus postos, com um ar grave e invio-lvel de tribunos. Tudo era novo sob o sol.

    Que trabalho a construco disso, hein % 1 observou Rpido olhando esquerda do edifcio que o filsopho lhe apontava.

    Ah! meu caro, a mo de obra est cara, os operrios so exigentes, ha certa falta de material. Roma no se fez num dia.

    Conduziram imediatamente o estrangeiro presena do imperador. A mquina, que o seguira como um cachorro foi posta no frum em exposi-o permanente. Quanto a le, depois de longo in-terrogatrio, foi declarado de utilidade pblica, convidado a fixar residncia na cidade e a desem-penhar as funces de Conselheiro do Imprio. Nesse mesmo dia, tomou posse do cargo. Quando lhe perguntaram si tinha alguma cousa urgente a aconselhar, concentrou-se, meditou e olhando hori-zontalmente, proferiu por tempos:

    Cuidado com as legies de Espanha. Receio que tenhamos vento sul.

    Passaram-se meses suportaveis de dissipa-o e orgias. Rpido apaixonou-se por uma dansa-rina etrusca. Deram escndalos em palcio. As ma-tronas virtuosas da cidade cochichavam muito a respeito. Dizia-se que a prpria imperatriz cor-respondia ao seu "flirt" Falava-se at de certo passeio fora de portas, alm do Tibre, l para as bandas dos jardins de Csar.

    Num banquete dado em sua honra, houve dis-cursos cheios de ironia e subentendidos. le preci-sou de toda sua habilidade para desfazer a impres-

  • ESTTICA 63

    so de "sim senhores!" em que todos estavam. Num brinde final ao Imperador, exaltou "a obra fe-cunda dos inegualveis estadistas do Imprio, entre os quais cumpre salientar, pelo perodo de prospe-ridade que trouxe para as finanas pblicas, a ad-ministrao, o direito, a liberdade individual e as artes, o espirito esclarecido %e genial do eminente filho de Agripina, que rene s qualidades exce-pcionais de conductor de povos, o completo conhe-cimento da filosofia e a arte excelsa de um alts-simo poeta."

    Depois, para distrair a ateno dos convivas, citando Bilac, Pateck Philippe, Lus de Rezende e outros ourives, conseguiu provar que era falsa a esmeralda do Imperador. Quando sentiu que no estava na posio sempre incomoda de alvo, que se deslocara de sua pessoa para suas palavras, entrou na perorao. A sala delirou quando le ergueu a taa e disse: "Nro, artista divino, atleta do pensa-mento e pensador da arenaeu te sado!"

    No obstante o triunfo, no dia seguinte sentiu-se mal vontade. No dava grande cousa pela sua vida. Por essa ocasio, Sneca tinha sido convidado a cortar as veias. Nas ruas olhavam-no tanto que le parecia um ponto de admirao. Aquilo j es-tava cacete. "As mulheres tm certo encanto, sem dvida. A Fulvia, danarina. Mas nada como as cariocas. Avenida. Passeios. Cinemas. Amigos. Caf. E ha esperana. Bolas! Isto tudo droga. No quero saber de nada. Volto hoje mesmo."

    No Formn, esbarrou ao mesmo tempo num pensamento e na mquina. Impossvel voltar. Com a velocidade em que tinha vindo, iria acabar onde comea a Biblia. Com a que tinha imaginado, fica-ria sempre no mesmo instante. Si diminusse, no poderia sair daquela poca.

  • 64 ESTTICA

    Voltou para o quarto, onde um corvo lhe disse 25 vezes "nunca mais" Viveu recluso alguns dias. No falava a ningum. Sua tristeza crescia como sua barba. Grandes olheiras roxas no de-nunciavam cousa alguma. Pensou num soneto, mas abandonou logo a ida pouco honesta.

    Um dia, teve a impresso de estar lendo uma pagina em branco. E foi apresentado ao Des-conhecido.

    No seu triclinio encontrou-se uma taboa de cera com a seguinte inscripo: "Vim a Roma e no vi o Papa. Cuidado com as legies de Espanha. Receio que tenhamos vento sul."

    Os despojos de Rpido foram distribudos pelos ulicos. O Imperador reservou para si um re-volver Colt.

    Desse dia em diante, Nro passou a suicidar-se com esse revolver. At esgotar a munio, etc.

    Prudente de Moraes, neto.

  • V I D A E M E S P I R A L I N C O N G R I T E N T E

    (Primeira parte)

    Eu tambm tive uma infncia. E bem myste-riosa. Nella viveu a minha alegria de gestos e olhos redondos. Nella cresceram-me as pernas e os cabel-los. Morreu gente ao meu redor. Aconteceu o que costuma acontecer em alguns dias da semana, tera-feira 21 por exemplo, quando chove e quando se deve uma conta. Mas no vou contar. No quero encher papel com recordaes adjectivaveis. Amo a vida. As alegrias de hoje so differentes das mi-nhas alegrias infantis. Mas o leito do rio o mesmo para todas as guas.

    Estive, por volta dos seis annos, num exter-nato. Bom ollegio, ba professora, bons camara-das. Aos seis annos tudo bom, menos caf sem assucar. Queria ser rei no da minha casa, mas do mundo. O marido da professora era um capito da guarda-nacional. Um homem bigodoso e valente. Eu no pensava nelle desde que puzesse uns longos ou curtos olhos timidos em Aurora. Delongava o meu olhar sobre os seus cabells encacheados e loi-ros, como se delongasse a resposta de um bilhete amoroso de que eu secretamente aquinhoava um prazer sincero. Emprestava-me os seus livros que

  • 66 ESTTICA

    eu enchia de rabiscos. Lia-me atraz da orelha des-cripes de animaes ferozes. Bichos havia que ti-nham um olho s e sete patas. Amedrontava-me. Pondo os meus nos seus grandes olhos, eu tinha a impresso de estar encerrado num palcio encan-tado de crj-stal azul. Amedrontava-se com a sua imaginao. Beliscava-me. Beijava-me. Seus l-bios, doces. Eu gostava da humidez dos seus lbios que ella ensalivava antes.

    Um dia, sua me, uma senhora redonda e im-passvel como um novelo de l, veiu buscal-a. Ella chorou. Mordendo os lbios, chorei. Os companhei-ros deram-me cascudos alegres. Aurora era filha de um sapateiro. Filho de um carpinteiro, pensan-do nella, considerava-me um prncipe. Eu tinha trs idas: a dos broches, a de que as estrellas eram de panno, e a da utilidade dos guardanapos.

    Tempo do internato. O sport, as rivalidades, os estudos, a influencia dos bons e maus mestres, foram mos amoldadoras da argilla fresca. As mi-nhas idas cresciam como os tinhores de casa. Saber a esse tempo quaes eram muito difficil. Idas ou devaneios. Descobri as moas, ou ellas me descobriram. Comecei a olhal-as mais attenta-mente. Para as moas que respiravam uma graa descuidosa e espreguiada. Os beijos pareceram gluglus no bojo d'alma. Tiveram outro sabor mais artificial, mais complicado e mais musical. Foi esse o tempo das minhas maiores coragens e das minhas maiores covardias. Nasceram-me as primeiras idas literrias. Comecei a fraternizar em convices com certos amigos. Ser artista. Edi-es de luxo. Libertei-me do jugo archaico da fa-mlia. Dei-me a minha vida. Desenraizei-me do pas-sado. Escrevi alguma coisa. Se no me engano, che-guei a publicar um ou vrios livros. Ganhei o pre-

  • ESTTICA 67

    mio do peor livro do anno. Mas isto no tem impor-tncia nem para mim nem para ningum.

    Segunda parte

    Continuei a andar, durante todo o dia sete, pelas ruas procurando rythmar os passos, olhos fixos nas mulheres. Uma mania. Em vez de juntar pregos ou sellos, colieciono ruas, bocas e rostos. E ' verdade que j tentei colleccionar automveis alheios.

    Foi assim que, ao lado de um motor Westin-ghouse, numa fabrica, deparei com uma mulher Seus olhos silenciosos eram da cr do ch. De um ch que distilla quietude, medo e amor.

    Admirei-a. Tinha a belleza tranquilla das mu-lheres fortes que no temem o amor, ou que o trans-formam num jogo fcil. Envolvia-a um perfume imperativo. Segui-a. Ella percebeu. Seus gestos e o seu vestido ressuscitavam a belleza leprosa das ruas. Sorrindo, ella caminhava lentamente. Eu no a via sorrir, adivinhava-a. A minha mocidade um collar de adivinhaes. Adivinho tudo, at o que no quero. Rua do Senado. Itinerrio surdo. Igre-jas massias, burocracias mettidas em cubiculos, mulheres intencionaes roando-me, tudo passou pelos meus ps. Avenida. Leitores do Jornal do Commercio ondulando. Numa esquina, ella tomou um bonde. Eu tambm. Saltmos na rua do Senado. Eu fazia gestos mathematicos geometria no es-pao. Espreitei-lhe um sorriso sinuoso como o seu corpo esbelto. Quiz apalpar-lhe o sorriso, como quiz apalpar o cu que escorregava pelas paredes dos edifcios e innundava os gazometros. Entrou numa casa de um s andar. Janellas empoeiradasolhos

  • 68 ESTTICA

    burguezes com a teia mucosa do somno. Tomei o numero.

    Eu andara 3127,6 metros.

    Escrevi na parede ao lado do telephone servial meu corao um oramento deficitrio falta apenas TU.

    Pensei compor um poema, o Gladio das Lote-rias e dos advrbios.

    Psiu !! Continuei a andar. Psiu !! Eu pensava na desconhecida da rua do Se-

    nado. Como a um pecego, queria morder-lhe o rosto. Eu tambm pensava em sensualidades vadias.

    Psiu ! O' S! Era commigo. O franchinote monopolizou-me

    com as mos, os olhos, a saliva e o mu hlito vapor mephitico sahindo de um esgoto. Pisou-me os sapatos que eu acabara de mandar engraxar. Pisar os ps, o cumulo do mu gosto, assegurou-me outro dia um poeta, garantindo tambm que a sua phrase era um decassylabo a 100% Soltou trs palavres, fez gestos largos, esbarrou em senhoras que passavam, declarou que esta e aquella etc, etc, disse-me que eu era "culto e intelligente", e por fim elogiou um livro meu. Elogiou-mo to caloro-samente, com uns olhos quentes e licorosos de ebrio, citando romancistas como fagundes (o vareta), que me perturbei.

    Ento? , j na segunda. Qual, meu caro Leopoldino.

  • ESTTICA 69

    .De Leo-pol-dino. Voc faz questo do Be. Ainda na primei-

    ra, (eu olhava para as suas polainas encardidas ou para os seus olhos engelhados e remelentos).

    Claro. O meu romance, Os penduricalhos metaphysicos do xtase vere-negro, vae sahir. Thyrso velho, editor. O Thyrso um pirata, ahhh! mas no quer dizer nada. Commigo alli no duro. J tenho criticas engatilhadas nos jornaes, annun-cios, e tc! E por-no-gra-phi-co! Sabe voc que vender? E" preciso ser cabotino, ouviu? E ' preciso sel-o ! Sim, com sello de cabotinismo, 100% ! Em quinze dias, edio exgottada, banquete no Assyrio, farra e mulherio, dinheiro no bolso, malas para Paris! (eu olhava para o seu ar bao e desnutrido como sardinha de Nantes).

    Bem. Mas voc, quatrocentos pacotes, de-vendo novecentos, onde vae arranjar o dinheiro? pindahiba.

    O livro, os amigos, Georgette, etc. Cavar, ouviu ?

    De accrdo fiz um gesto imperativo e ir-refutvel de quem receia perder o term.

    Voc j est convidado para o banquete. O livro sahe daqui a trs mezes. O Muro Literrio j elogiou, a quota para o banquete sardanapalesco de cinqenta. A propsito, S, voc quer com-prar um corte de casemira que eu tenho na pen-so!. 80$000. Estupendo. (Seus olhos albumino-sos faiscavam).

    Negcios e occultismo eis o que fao. Estou sem um vintm. Vou agora ao Alvear. Pre-ciso fazer a chronica elegante. Conhece a baroneza de Semana ? Minha nova amante sou o gigolo. Ao menos, vinte.

  • 70 ESTTICA

    Perfumes anonymos roaram-me o n a r i z . Cuspiu-me no rosto. Dansando deante de mim como um pap deante do fogo, esfregou-me o leno. No me largaria.

    Prompto, dez e no me amolle. Tomei um bonde qualquer. Pelas alturas da

    Lapa, dei por falta do relgio. Joguei-me do bonde, rumo da Avenida.

    Quando voltei para casa, crepusculava. Jantei s carreiras. Elle morava na rua Cassiano, num casaro amarello atulhado de typos boaes e bigo-dosos. Lembrei-me de um facto orientador Esse edif icio tinha, nas cidades da minha memria, uma physionomia especial. Uma porta quadrangular cheia de sombra, uma escada enviezada amputada pela escurido, e um maneta lendo jornal como um veterano reformado

    No bond eu pensava em Horacio Homero Leopoldino da Silva. Vadiava no M. da Agricul-tura, solemne como um jamego de official de jus-tia, baixote, sempre de preto, com uma pasta cheia de jornaes velhos opposicionistas e de papel hygie-nico (atreito a diarrhas contumazes como um par-nasiano a seus sonetos, dizia elle), gingando.

    Entrei. Elle espichou os braos: Ol S ! O meu relgio !! Eu tinha de ir ao Alvear e precisava de um

    seus olhos lambiam o relgio. Onde est o tal corte ? Oh, que pena. Huum ? O Dantas comprou-o. Mil e uma preoccupa-

    es! No ha nada, S. Arranjar-lhe-ei um. Voc um gosado. Voc capaz de defrau-

    dar os bancos e as almas! Escrevendo o romance, p. 436, em papel almasso. Leia qualquer coisa.

  • ESTTICA 7 1

    Voc no vae gostar. Sou realista. Mas leia, homem. Vou ler uma poesia. Oua. O titulo Ave-

    nida s seis. D a ida de pombos TA-TA-LANdo no espao, no ? Suggestivo !

    Avenida s seis

    Quando passo s seis pela Avenida, no momento em [que

    negrejam os edifcios, vejo jias de carne, vejo galas de seda e pedras preciosas, ouo phrases. phrases diffusas e vermelhas como o fogo. phrases sensuaes ! Avenida ! Um brilho dif fuso invade as coisas pantheistica-

    mente! Evoh! quero tirar a sorte grande do Natal! detesto

    [os sujeitos pacatos que no valem patacos Eu, passando altivo, enristo o meu olhar com o das

    [mulheres, com o de certas mulheres, mulheres frutos de volpia! volpia! fonte perennal, eterna, perpetua, sem

    [fim da Arte! Omnes artes, qus& ad humanitatem pertinent, har-

    [bent quodam commune vinculum.. Arte! e essas mulheres, com recamos de ouro,

    [carne wivea, Cabellos fulvos como os lees da Oceania, no teem d, compaixo, commiserao da dor que me anavalha como um estylete tri-dimensional!

  • 72 ESTTICA

    Avenida! s pittoresca, aprazvel, deleituosa c de-li et uosa (O LEITOR BEVE BIB).

    Aaaahh! basta, Leopoldino. listo o que eu chamo, tirando esta ida

    da mecnica, o LIVRE CAMBISMO da poesia. Agora esta.

    J chega. Isto um ch na legao do Uruguay em

    1918. Sou da alta roda.

    O ch da legao

    Entrei. Falei com o Sr. Ministro Bernarez. Encontrei o almirante Caperton. Bansei. Todo o grande mundo dansava. O ch. o ch. da Prsia. E' leve.. Ba j. Ba j. J. .

    Orpheonico, no ? Leve como o TURTU-RINAR de rolas! que fulgurao micante! altiva-gas vises !

    Poema oriental. Radio-activo. Radio-activo o termo. Dispenso-me de

    procurar outro. Tenho cultura e talento. Quero dominar os gnios sujeitos a Salomo. Agora ando atraz de figuras finas e galgas. Um poeta que eu admiro Pipocas, o autor de Assombramentos do solsticio perpendicular.

    Mas os Assombramentos so prosa. Mas isso. o livre-cambismo. Voc

    pensa que eu sou desses cavalheiros recommenda-

  • ESTTICA 7 3

    veis pelo conhecimento da lingua, traas dos dic-cionarios, mas incapazes de escrever uma pagina clara ?

    Facadeado, deixei o covil do meu amigo. Na Gloria vi uma polemica literria entre uma mulher e um sujeito. O bonde atrazou-se um quarto de hora. O conductor veiu cobrar-me a passagem duas vezes. Encolhido a um canto, eu pensava em nada. Um cavalheiro embriagou o ar de politicagem. As estrellas estavam pregadas nas copas das arvores como botes de madreperola num velludo preto. O homem continuava. Os lampees espectros de attitudes angulosasdesmanchavam-se em gordas gargalhadas. O homem continuava. Affectei um olhar estagnante. O seu nariz avanava para mim como um punhal. Na Galeria Cruzeiro, o homem perguntou:

    Onde mora? Eu ? Sim. Fao questo. O senhor palestra bem.

    Diga, seno. . Moro na rua tal, 2137. Aaah. Irei visital-o. Seremos chefes de uma

    revoluo que depor o governo. Seus olhos, verrumantemente magnticos. Eu

    os via nos holpohotes dos automveis e nos globos dos lampes, como se tudo fosse esse homem mul-tiplicado por N vezes.

    Nesse sabbado, com um optimismo radio-acti-vo, abri o jornal:

    QUESTO DE MOMENTO A.. S . F*. d o s A n i m n e s e a P r e f e i t u r a

    G R A N D E E S O A I M D A L - O Faz muito t-mpo j que essa

    Benemrita sociedade que usa o

  • 7 4 ESTKTIC

    O artigo preenchia bem uma viagem de bonde. Dava-me a impresso de um annuncio num muro. Uma questo de bois. Antes foi uma longinqua complicao dos Balkans intestinos da Europa. O caso era o seguinte: o Conselho Municipal legis-lara sobre a conduco e proteco bovinas. Os bois da cidade deveriam ter a sua carteira de identidade escripta no chifre esquerdo, para que todos vissem, menos as pessoas do lado direito. Para protegel-os, cada boi deveria ter um homem vestido de verd