Revista Exceção - nº 10

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Revista-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul - ANO 10 - N 0 10

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Revista-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). A Exceção é produzida na disciplina de Jornalismo de Revista, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster. | Edição: Dezembro/2014 - ANO 10 - Nº 10 | Diagramação: Martina Wrasse Scherer e Viviane Scherer Fetzer.

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Revista-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul - ANO 10 - N010

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Ó, CAPA, POR QUE NOS TIRASTE O SONO?

TEXTO: Natany Borges | ILUSTRAÇÃO: Frederico Silva

Chegar a uma conclusão sobre o que pautaria a capa da Revista Exceção foi uma tarefa árdua. Muitas ideias circularam em sala de aula, no entanto, era difícil alcançar alguma decisão. De início, pensou-se que a seleção de uma das fotos do editorial de moda, elaborado pela colega Paola Severo, seria uma boa solução. Além de valorizar o trabalho feito pela própria disciplina, terí-amos uma produção pra lá de criativa sen-do inserida na página que se coloca como o primeiro contato com o leitor. A sugestão, porém, logo foi descartada, visto que em edições anteriores a plataforma impressa já teria usufruído deste recurso.

Após as revisões de todas as repor-tagens, a discussão ainda estava aber-ta para que todos os alunos pudessem contribuir com alguma ideia que fosse ao encontro do que se propõe a revista, ao mesmo tempo em que se tornasse objetiva para a finalização do produto. Eis que, depois de uma votação, a maoria dos acadêmicos optou pela concepção de utilizar o recurso de ilustração, a partir de inúmeros elementos encontrados nas matérias como discos, lobisomem, vídeo-game, avião, entre outros. O objetivo era dispor tais objetos “saindo” de uma cabe-ça a fim de brincar com o slogan da revista: Abra sua mente, abra uma Exceção. Conta-tou-se, então, o acadêmico do 6° semestre de Jornalismo, Frederico de Barros, para que pudesse dar uma mãozinha na hora de colocar a ideia em prática. O colega de Curso plenamente se disponibilizou a encarar o desafio, porém, em função do pouco tempo para executar a tarefa, não foi possível anexar o trabalho à capa. A ilustração estava descartada.

Novamente em sala de aula, quando o desespero já estava tomando conta, uma proposta: por que não utilizar de alguma

imagem produzida para as próprias re-portagens? Aos 46 minutos do segundo tempo, os colegas Guilherme Graeff e Andressa Bandeira escolheram as melho-res fotografias e montaram um modelo de capa para que a turma conseguisse captar o visual, bem como a mensagem que seria repassada aos demais leitores.YES! Ficou lindo. A imagem escolhida foi

produzida pelo autor da reportagem Vale a pena amar o teatro?, Mateus Souza.

E quanto à ilustração, Fred, obrigada de coração. Impossível deixar de divulgar o teu trabalho e agora ele está aqui, na pá-gina 2. Quanto à cor, um agradecimento especial à diagramadora da revista, Mar-tina Scherer. Boa leitura a todos que to-parem mergulhar no mundo da Exceção.

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Nada assusta mais um jornalista do que uma pági-na em branco. Quando se trata de futuros jornalistas então, é a hora que bate aquele desespero. Em agos-to deste ano, sentimos essa angústia no peito, nos braços, nas pernas e, até mesmo, nas unhas roídas. Fomos apresentados a uma revista que tinha nome e sobrenome, mas não tinha forma. Era recheada de páginas em branco. Muitas páginas.

Ao longo do semestre tentamos amenizar a falta de cor. Desenhamos, projetamos e criamos ideias e centenas de expectativas para dar um rosto à Ex-ceção. Dar o nosso rosto. Assim como todas as pri-meiras tentativas, algumas coisas não saíram como o planejado, o que por pouco não resultou em um preço alto demais a ser pago e a revista; boa demais para não sair do papel.

Colorimos as páginas sem cor, até o momento em que a brancura não assustava mais. Pintamos nossas personalidades nela e deixamos registradas histórias de vida, de jovens que vivem em outros tempos, de lo-bisomem. Contamos histórias de pessoas que deixa-ram sua pátria em busca de mais bondade e de gente que deseja ter asas e alçar voos inimagináveis. O que não difere em nenhum momento dos desejos de fu-turos jornalistas que, assim como nós, procuram ter asas e voar cada vez mais alto em busca de bons cau-sos. Em busca de colorir as páginas em branco.

SEM PÁGINASEM BRANCO

EDITORIAL

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ÍNDICE

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Terras de lobisomem

Você está pronto para fazer o bem?

A velha guarda dos gamersOs nove diamantes de Celita

Sonho na porta da escola

Para sempre colecionador

O fundo do poço

Vale a pena amar o teatro?

Profissão: maquiador de cadáver

Quando dezembro chegar

Haiti: entre idas e vindas

Tudo isso tem no Bom Jesus

O menino que queria voar

Da tesoura à maquina elétrica

Como Loló encontrou o Brasil

E MAIS: | 3 EDITORIAL | 76 ENSAIO | 83 EXPEDIENTE

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TERRAS DE LOBISOMEM

Histórias sinistras que as pessoas contam nos Vales do Taquari e Rio Pardo

TEXTO: CAROLINA SCHMIDT FOTOS: ALVARO PEGORARO E CAROLINA SCHMIDT

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Há sempre alguém com his-tórias assustadoras para contar. Mas, o que os o- lhos do agricultor Milton

Royer viram, dificilmente, outro vivente te-nha visto. Durante os seus 47 anos de vida, ele já presenciou tudo que é assombração. Os seus olhos e ouvidos já registraram lo-bisomens, luzes que acendem e apagam misteriosamente, gritos e vozes estranhas, passos sem procedência, portas que abrem e fecham sozinhas e barulhos de chuva sem mesmo estar chovendo. Ele viu até um ho-mem desafiar o diabo. E o final dessa histó-ria não acabou bem. Royer é natural de Ve-nâncio Aires e está há dois anos na fazenda do irmão, em General Câmara. Foi lá que presenciou a maioria desses fatos sinistros.

Para chegar até o lugar onde o con-tador de causos mora e conhecer suas histórias, foi preciso passar por rodovias, estradas de chão, trilhos de trem e por pessoas esquisitas. Até deu para se per-der no caminho, tanto na ida quanto na volta, naquela tarde de 20 de setembro. O dia em que o lobisomem e outros per-sonagens sobrenaturais saíram do ano-nimato para virarem tema principal da história de vida de Royer.

Não é de hoje que se ouve falar em lobi-somens. Principalmente na casa de Royer. Ele conta suas experiências sobrenaturais, sempre com muita simpatia e enquanto aprecia um bom chimarrão. A história dele com a tal da criatura se passou em Rio Par-do, há cerca de 12 anos. Naquela época, tra-balhava com perfuração de poço artesiano e, acompanhado de um amigo, foi executar um serviço em uma propriedade retirada. Depois de trabalharem um tempo, espera-ram anoitecer e foram pescar.

Quando estavam próximos a um dos rios, Royer ouviu gritos de seu amigo que estava mais a frente. Ao se aproximar, pôde ver um animal semelhante a um cachorro que olhava somente para baixo. No entanto, era esquisito e feio. “Ele mandou eu bater no bicho, mas não fiz. Depois ele mesmo pegou o caniço e dava golpes no animal, mas não acertava”, contou Royer ao descrever a cena como assustadora. “A impressão que eu ti-nha era que o caniço atravessava a criatura, parecia uma sombra”. Os dois correram. Mas, o animal estranho passou a andar na frente. Momentos depois não foi mais visto.

Dias mais tarde, os dois foram trabalhar em outra fazenda, cerca de 18 quilômetros da propriedade onde viram pela primeira

vez o tal do lobisomem. Quando chegaram para realizar o serviço, o capataz daquelas terras olhou em direção ao amigo de Royer e disse o seguinte: “Ô alemão, eu sei que tu bateu no lobisomem, pois ele vai arrancar o teu intestino e comer teu fígado”. Royer relembra que, depois de ouvir essas pala-vras, ficou bastante assustado. O homem era estranho e tinha dentes muito amarelos, semelhantes a cera.

Nas terças e quintas-feiras à noite, o ca-pataz costumava sair da fazenda com uma espingarda para procurar bandidos que furtavam gado. Toda vez que ele deixava a fazenda, Royer conta que se ouviam ba-rulhos de arranhões, gritos, correntes que pareciam ser arrastadas, uivos e passos na residência em que dormiam. Royer e seu amigo saíam para verificar o que era, mas não aparecia nada. O capataz, para colocar mais pânico nos trabalhadores, dizia que, caso alguém encontrasse um lo-bisomem, não era para agredí-lo de forma alguma. “Eu desconfiava que ele era um lo-bisomem. No entanto, passava ao mesmo tempo tranquilidade e sabedoria para as pessoas”, destacou Royer.

Mas, o pior estava por vir. Royer e seu amigo também foram pescar nessa proprie-

Mauro mostra a direção que fica a residência vizinha cercada por assombrações

(ao lado, à esquerda). Milton traz lendas de lobisomem, fantasmas e coisas não vistas por

pessoas ‘comuns’ (ao lado, à direita)

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dade, assim como da outra vez. Minutos depois de chegarem ao local, avistaram um bicho que tinha os olhos vermelhos e des-cia a estrada em direção aos dois. A criatura uivava alto. Era noite de lua cheia. Royer e seu amigo correram por meia hora até chegarem à fazenda. Sobretudo, antes de entrarem na casa, acharam a camisa do capataz que defendia o tal animal. “O estranho é que ele sempre dizia para a gente cuidar com o lobisomem. Falava como se fosse o próprio”. Em um do-mingo à noite, outra pessoa que estava na fazenda viu, pela janela, o mesmo bi-cho com os olhos de fogo. Depois saíram para a rua e viram o animal correndo. Até hoje, a história não foi esclarecida e não se soube mais nada.

Além de já ter avistado o tal de lobiso-mem, o contador de histórias presenciou outros acontecimentos estranhos na terra onde vive. Lá, há até indícios de ouro. Pa-nelas de barro do tempo dos jesuítas tam-bém já foram encontradas. Isso prova que o lugar é muito antigo e que, provavelmente, foi um dos primeiros habitados na região.

Um dos casos sobrenaturais aconte-ceu na própria casa de Royer. Lá, aparece uma luz, que desaparece quando alguém

se aproxima. Ouvem-se passos e vozes sem ter ninguém por perto. Outro episódio, ele conta junto com o vizinho, Mauro Gomes. Certo dia um rapaz foi até a propriedade para limpar um dos açudes. “Eu disse que a figueira lá perto era assombrada, que apa-recia um cavaleiro, mas ele não acreditou”, disse Mauro. O rapaz riu da tal história e foi fazer o seu trabalho. Mas, precisou dormir uma noite na fazenda e foi então que levou, talvez, o maior susto de sua vida.

Certo dia ouviram-se alguns barulhos. Royer foi ver se tinha algo, mas não encon-

Miton e Mauro próximos da figueira onde aparece o tão comentado

‘homem no cavalo branco’

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trou nada. O jovem, no entanto, pegou um facão, pois não acreditou que tudo estivesse calmo. De repente, veio correndo da figuei-ra apavorado, se trancou na casa e não saiu mais. O motivo do espanto era a assom-bração de um cavaleiro de capa preta.

A casa onde vive Royer traz algo dife-rente, de fato. A cozinha está adaptada em um galpão ao lado. O lugar é rústico, de madeira. De noite, é tudo escuro. Gomes e Royer são amigos e vizinhos há anos. Eles ainda trazem fatos que envolvem uma propriedade próxima. Em certa altura, os dois decidem mostrar as terras e os locais onde ocorreram as assombrações. Assim que caminhavam, lembravam de um fato novo. O lugar dessa lenda é conhecido pela vizinhança. Nem padre, nem pastor, nem benzedeira conseguem “dar jeito” naquele local. Eles nem mesmo conseguem ficar lá por muito tempo. Isso porque se a pessoa se aproxima do lugar com uma lanterna, os faróis apagam.

As portas abrem e fecham sozinhas, pessoas caminham no telhado, os lençóis são tirados da cama por um fantasma e há um vulto que anda no meio da casa e nas rodas de conversa. Gomes lembrou que lá foi um local onde viverem muitos escravos. “Também se ouvem gemidos de pessoas como se fossem espancadas”. De acordo com ele, muitos foram mortos naquele período. Mas, hoje, o dono da casa já se acostumou. Tanto que “avisa” as as-sombrações quando vai dormir e diz para o deixarem descansar. “Ele tem que deixar as portas abertas, porque se fecha, as al-mas abrem”, falou Gomes.

A fazenda onde mora Royer tem uma energia forte e dá a sensação de que tem sempre alguém andando atrás dos visitan-tes. Aqueles açudes, a terra e aquelas árvores guardam muita coisa. Uma pena que não podem falar. As outras histórias macabras presenciadas por Royer, ocorreram em Ve-nâncio Aires, na localidade de Centro Linha Brasil. Lá ele trabalhou na propriedade há 15 anos. “Aquela casa eu nunca vi igual. Dava barulho de chuva, a gente colocava a mão na goteira e não saia nada”. A casa, construída

por imigrantes alemães era antiga, feita de pedras. Aí já dá para imaginar a cena.

O “bicho pegou” já no primeiro dia, quando viu nos arbustos, movimentos es-tranhos. Em seguida, caiu um pé inteiro de mamão, quase em cima dele. “Depois que eu gritei se tinha alguém lá, a árvore veio abaixo”. No entanto, não é só isso. As por-tas da casa abriam e fechavam sozinhas e as louças caiam no chão sem ninguém me-xer. Até um homem enforcado foi visto por uma visitante. Dias depois, souberam que lá ocorreu, de fato, um suicídio e vários ho-micídios. Um homem até morreu por desa-fiar o sobrenatural. “Ele disse que se fosse o diabo podia aparecer que não tinha medo. Pois, horas depois essa pessoa morreu e não acharam a doença”. Depois disso, ninguém parou mais naquela casa. O último pro-prietário vendeu, e quem comprou passou adiante também. E assim, sucessivamente. Que tem alguma coisa, ah, isso tem!

Já a casa de Gomes, vizinho de Royer, é, também, um tanto sinistra. A residência fica próxima de matas, mui-tas matas. Gomes, com a sua simpatia e calma, deixa o lugar um pouco menos assustador. Com experiência de vida, pelos seus sentidos também já passaram muitas coisas e histórias.

O ENFORCADO E O ANIMAL SINISTRO

A casa de pedras de Centro Linha Brasil emprestou, inclusive, suas paisagens para a história de Luiz Carlos Landim. Há cerca de 15 anos, o pedreiro foi trabalhar na chácara de seu irmão, Pedro. No início tudo parecia tranquilo, mas a cena mudou. Um dia ele encontrou dentes de ouro em uma sacola e os comercializou. Desde aquele momento, sua paz estava ameaçada.

Em uma noite, Izi, como é conhecido, ouviu um barulho estranho, seguido por latidos de cães. Foi verificar e se deparou com uma figura nunca vista. “Era um ani-mal grande e escuro, semelhante a um cachorro. Mas era maior e assustador”. Pegou uma foice para que pudesse se de-

fender, porém os golpes não acertavam o bicho de forma alguma. Por tudo o que já havia ouvido sobre o assunto, teve certeza que aquilo era um lobisomem. Izi foi ferido na perna e carrega a cicatriz até hoje.

Após as tentativas de acertar o animal, ele saiu daquele lugar assustador ainda durante a madrugada. Como estava sem carro e sem moto, andou cerca de 18 qui-lômetros até chegar na sua residência. “Era tanto pavor que vim a pé”. No entanto, sabia que a criatura o seguia, pois em cada local que avistava um cachorro, o animal de estimação latia desesperadamente.

Ainda em Venâncio Aires, desta vez no centro, a existência do lobisomem também foi comentada, principalmente, no final dos anos 50. Edi* traz a história contada pelo pai, já falecido. Conforme ela, o chefe da família ouviu por dias, durante a madrugada, cachorros que passavam correndo e latindo ao lado do terreno, em direção aos fundos do pátio. Depois de um período, voltavam todos quietos. Intri-gado, saiu para conferir o que acontecia. “Neste momento, ele viu, mais adiante da porta da casa, um animal enorme. Ele disse que era um lobisomem.”

Na época, a família morava na Júlio de Castilhos. Antigamente, havia uma ponte que dava passagem para a rua Voluntários da Pátria onde morava a sua avó. Toda vez que se deslocavam para lá com o pai e a mãe, ela e os irmãos tinham medo de passar naquele lugar, porque diziam que ali aparecia um homem sem cabeça, que havia se enforcado anos antes. “Ele assas-sinou a mulher primeiro. Na casa onde morava, havia uma mancha de sangue que nunca desapareceu. Os galhos da árvore que ele se matou davam para a sanga onde passava a ponte. Quando ele morreu que-brou o galho e o corpo caiu na água.”

Afinal, quem somos nós para du-vidar. Como diz o ditado: “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!” (Eu não acredito em bruxas, mas que elas exis-tem, existem!).

*Edi é um nome fictício.

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gostei muito de trabalhar com o tema de histórias sobrenaturais nessa edição da Revista. O assunto me atrai desde a infância. A fazen-da que fui fazer as entrevistas em General Câmara é, realmente, muito bonita. Fui bem recebida pelo pes-soal de lá. A viagem foi longa, mas foi divertida também e até nos per-demos no caminho. Vi coisas que há tempo não via, como os trilhos de trem que até renderam fotografi as. Eu gosto muito de natureza e lá ela é perfeita, com muitas árvores, açu-des, animais de estimação e de cria-ção. Posso dizer que valeu a pena ter ido até lá, pois tem coisas que só o in loco proporciona. Aquele lugar guarda algo a mais. Foi uma terra de antigos, de escravos, de tempos de guerras. Impossível não sentir a energia espiritual que o cerca. Eu senti e percebi de forma intensa. Afi nal, a natureza e as águas guar-dam muito isso. Ainda mais quando você tem essa sensibilidade!

Lua cheia traz para a memória fi guras arrepiantes como o lobisomem

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VOCÊ ESTÁ PRONTO PARA

FAZER O BEM?Moradora de Santa Cruz do Sul realiza

festas anuais, de forma gratuita, para crianças e adolescentes do município e da região

TEXTO E FOTOS: LIESE BERWANGER

Dos seus três anos de idade, em dois, Lu-cas teve a oportunidade de se divertir em um pula-pula e comer cachorro quente e algodão doce sem que sua

mãe ,Andréia Pereira da Silva, 27 anos, de Santa Cruz do Sul, precisasse desembolsar nenhum centavo. Junto com Lucas, sua irmã, Larissa, de 10 anos, também pôde participar deste momento de diversão. “Quero participar todo ano. É muito divertido”, diz com um sorriso estonteante.

Lucas e Larissa, acompanhados da mãe, trouxe-ram pela primeira vez o irmão, Pedro, de 1 ano. “É mui-to gratificante poder participar. As crianças adoram. É uma oportunidade para eles se divertirem. E como eles se divertem. Não é em todo lugar que há um am-biente assim de forma gratuita. Enquanto puder vir e puder ajudar eu estarei aqui”, enalteceu Andréia.

A ocasião destacada por Lucas e Larissa não

ocorre em festas de aniversários realizadas por seus amigos. Ela é promovida pela sobradinhense Neiva Berenice da Silva, 53 anos, mas que reside há 33 em Santa Cruz do Sul. Desde 1996, a aposenta-da providencia algodão doce, cachorros quentes, brinquedos, palhaços, malabaristas, balões, enfim, tudo aquilo que é necessário para uma festa desti-nada ao estímulo do sorriso de uma criança. A partir de então, a aposentada deixa de lado o comodismo e vai à luta para conseguir realizar momentos ines-quecíveis em uma das fases iniciais da vida do ser humano para o desconhecido.

A ideia surgiu com o propósito de chamar a aten-ção das autoridades ao esquecimento da região onde morava em Santa Cruz, que ainda não contava com iluminação pública, roteiro de ônibus e havia proble-mas com saneamento. Neiva então, promoveu uma festa em sua residência. Cerca de 80 crianças, adoles-

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centes e adultos participaram. Entre eles, o prefeito do município na época. “Lembro que enfeitei minha casa com pisca-pisca com o objetivo de chamar a atenção para aquela região excluída por todos.”

Após a realização dessa festa, as de-ficiências da localidade de Neiva foram sanadas. Contudo, apesar de conseguir levar a sua localidade à lembrança dos políticos, Neiva não deixou a ideia de or-ganizar festas para crianças de lado. Três anos depois, ela realizou outro evento para os pequenos, que também contou com a participação dos idosos.

E de onde surgiu a vontade intensa de Neiva de fazer o bem ao desconhe-cido? Além de se espelhar no pai, que também fazia atividades recreativas para as crianças e adolescentes, ela aprendeu a dar mais valor ao próximo durante a luta contra o Lúpus. Ainda na década de 90,

Neiva descobriu que possuía a doença, que é autoimune e rara, mais frequente nas mulheres do que nos homens, pro-vocada por um desequilíbrio do sistema imunológico, exatamente aquele que de-veria defender o organismo das agressões externas causadas por vírus, bactérias ou outros agentes patológicos. Em função disso, teve que deixar a profissão de ca-beleireira, após 15 anos de trabalho.

Entretanto, Neiva não ficou inerte à situação e passou a enfrentar os desafios. “Precisava me habituar com a realidade. Aí passei a estudar relatos mentais e au-tomaticamente trabalhei com os meus traumas e lutei contra a minha dor. En-frentei a depressão e superei”. Utilizando tais ensinamentos, aliando as experiên-cias de vida, que, entre elas, somam-se momentos de pobreza, e a ideologia de propagar o bem, Neiva continuou a con-

cretizar sua ideia de 1996 a 1999. Levando em consideração as suas limitações em vista da doença, a aposentada voltou a oportunizar momentos de diversões às crianças e adolescentes em 2013 e em 2014. Mas, agora, com outra cara.

Em novo endereço, ela passou a uti-lizar a rede social Facebook para movi-mentar doações. De forma voluntária, trabalhadores de Santa Cruz do Sul se mobilizam em uma tarde dos 365 dias do ano para oferecer algodão doce, cachorro quente, refrigerantes, brincadeiras com palhaços, malabaristas, entre outros.

Além disso, há doação de brinquedos que são distribuídos aos pequenos no fim da festa. Tudo de forma gratuita. “É a energia do bem funcionando”. Todavia, a festa possui uma regra: a criança deve estar acompanhada dos pais ou respon-sável. Neiva salienta que “os integrantes da família estão se distanciando, por isso a exigência é que os pais participem com os filhos, pois a festa é um momento de troca de carinho. Um momento único.”

Entre os voluntários que ajudam Nei-va, está a sua amiga e enfermeira Tatiane Federizzi, 31 anos, de Santa Cruz do Sul. “A festa está cada vez melhor e conta-biliza um maior número de crianças e adolescentes”. Para ela, não há palavras que resumam a oportunidade de poder ajudar a organizar o evento. “É gratifican-te proporcionar um ambiente assim para crianças que não possuem condições fi-nanceiras”, disse, enaltecendo a parceria com Neiva desde 1996.

Para a edição deste ano, foram três me-ses de mobilizações em busca de doações.

Disposição de brinquedos (acima) ocorreu em frente à residência de Neiva, em Santa Cruz do Sul. No local (ao lado), ela também ofereceu, com ajuda voluntária de profissionais do município, brincadeiras e diversão com palhaços

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E valeu a pena. Ao todo, foram arrecadados mais de 80 brinquedos com uma empresa local e outras 35 pessoas contribuíram de alguma forma para que o sonho de Neiva fosse novamente realizado. A oportunidade de valorização ao próximo de 2014, confor-me Neiva denominou a promoção da festa às crianças e adolescentes, ocorreu em um sábado, dia 27 de setembro.

A tarde daquela data estava nublada, as nuvens não davam espaço ao sol. Entre-tanto, a condição do tempo não foi empe-cilho para que a residência de Neiva fosse palco de um momento de confraterniza-ção entre cerca de 200 crianças. A partir das 14h daquele dia até as 18h, crianças e adolescentes de Rio Pardo, Vera Cruz, Li-nha Santa Cruz, entre outras localidades, tiveram contato com a sensibilidade de

durante a elaboração dessa matéria cheguei à con-clusão que as pessoas são egoístas. Claro, não em sua totalidade, mas a maioria. Eu me incluo na maioria. O que me custaria mobilizar a população da minha cida-de para promover um dia de alegria a crianças caren-tes? Chega a embrulhar o estômago ao pensar que há tanta gente com condições financeiras tranquilas ou

que têm mais do que precisariam e que ficam aos pés de pessoas como Neiva. A produção do texto não foi muito fácil, pois quando se trabalha com emoções, as palavras parecem não ser suficientes para descrever o que é passado pela fonte. Espero que do mesmo modo que ocorreu comigo, a história dela possa despertar algo novo nos corações dos leitores.

Neiva de fazer o bem sem olhar a quem. Com as lágrimas tomando o branco dos olhos, a aposentada questiona, entre um serviço e outro durante a festa: “Tem coisa mais linda que isso?”.

Durante esses anos de luta pelo bem, Neiva acredita que já tenha feito com que aproximadamente 400 crianças tivessem a oportunidade de sorrir e revela que em al-guns momentos pensou em desistir. “O que ainda me dá forças para continuar é pensar na alegria das crianças. E se caso eu desis-tisse dessa ideia seria mais uma pessoa que não teria ajudado estes anjos, que nos dão alegrias e que dependem de nós para ter um futuro um pouco melhor”. Ela ainda não sabe até quando essa vontade poderá ser concretizada, mas entende que a sua pre-sença na humanidade não terá sido em vão.

Nos olhos e no sorriso de Lucas (ao centro) a felicidade de poder participar da festa

transparece, ainda mais na companhia da mãe, Andréia, a irmã, Larissa, e o irmão,

Pedro. Tal alegria também é percebida (aci-ma à direita) nas faces das demais crianças

que fazem a proposta de Neiva acontecer

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A VELHA GUARDA DOS

GAMERSJogadores defendem as clássicas franquias de jogos para videogame

TEXTO: WILIAM REIS | FOTOS: WILIAM REIS E ACERVOS PESSOAIS

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Gráficos avançados, pro-cessadores velozes, sen- sores de movimento e consoles cada vez mais

potentes marcam as evoluções tecnoló-gicas para dar suporte aos games mais recentes do mercado. Porém, nada disso parece atrativo para uma geração con-servadora de gamers. Sabe quando um familiar seu, geralmente alguém com mais idade, comenta algo como: “Hoje não se faz mais música como antiga-mente”, “músicas boas mesmo eram as dos anos 80”, “Não surge mais banda igual Rolling Stones”? Pois então, para esses jogadores, o Rolling Stones dos vi-deogames pode ser chamado de Super Mario Bross, Donkey Kong, Final Fan-tasy ou Castlevania.

Muitas destas franquias clássi-cas de jogos perduram até hoje com novas versões, reedi-ções ou lançamentos de novos modos de game-play, que até são legais quando

se trata dos seus jogos preferidos. No en-tanto, para eles, o interessante mesmo são os títulos mais antigos, aqueles em que o gráfico não surpreende, em que se nota até os pixels nos personagens. Mas por qual motivo esses gamers preferem tanto jogos antigos ao invés dos con-temporâneos? O acadêmico de Engenha-ria Civil, Jerônimo Lopes, de 23 anos, tem esse fascínio pelos clássicos desde quan-do jogava o seu Super Nintendo, primeiro console que ganhou. “Sempre preferi os primeiros jogos de franquias mais clás-sicas como Final Fantasy, Medal of Honor e Diablo. Acredito que, talvez pela falta de presença gráfica, os jogos antigos se pu-xavam muito mais em apresentar boas histórias aos jogadores.”

Um denominador comum entre os gamers defensores dos clássicos é que

o que faz um jogo ser realmente bom, marcante, que gera en-

gajamento do jogador, é a história. Para Jerônimo, os

bons gráficos são apenas bons gráficos. “A joga-bilidade também é im-

portante, mas o que realmente

fica é como um jogo te

marca com um universo e história

originais”, comenta. Quem partilha do mes-

mo sentimento é o acadêmico de Publicidade e Propaganda, Bruno Almeida, de 21 anos. Ele ainda argumenta sobre a duração e a dificuldade dos jogos, que são fatores que mudaram

radicalmente durante a evolução dos games. Para o estudante, os antigos são muito mais longos e difíceis, o que torna a aventura muito mais desafiadora para o jogador. As produtoras de games atuais visam lançar jogos “incompletos”, que seriam melhorados meses após seus lançamentos com expansões, as quais o jogador precisa também comprar, e assim, ter as melhorias.

Já para o acadêmico de Ciências da Computação, Bruno Franco, de 23 anos, os motivos que o levam a preferir os jo-gos antigos são outros. Ele explica que estes trazem uma sensação de nostalgia única, onde você pode viver novamente as sensações que teve quando criança. “Jogar o que tu jogava antigamente te faz sentir uma criança de novo. É lem-brar velhos e bons tempos que não voltam mais”, frisa.

Além do clássico console, hoje existem diversas maneiras para ter acesso aos jogos antigos. Com o de-senvolvimento dos processadores e dos computadores, eles se tornaram capazes de reproduzir esses games com facilidade através de emulado-res, que simulam os jogos de um de-terminado console. Assim, você pode baixar seus antigos favoritos e jogar no próprio computador ou note-book. A Playstation Store, loja de jogos e mídias para os console Playstation modelos 3 e 4, tem disponibilizado alguns games clássicos de seus apare-lhos para os jogadores por um preço bem camarada. É possível encontrar versões antigas de Final Fantasy, GTA, Resident Evil, Devil May Cry, entre ou-tros, com preços de 15 a 30 reais.

Bombermann: O herói Shirobon da franquia explosiva Bomberman, lançada em 1983, e que já produziu mais de 70 jogos para diferentes plataformas, sem sair de moda

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Jerônimo Lopes: O primeiro jogo da série Diablo é sem dúvida um dos jogos que mais me desafiou. Hoje já existe até o Diablo 3, mas o primeiro lança-mento, com sua simplicidade, foi o mais difícil e sombrio de todos. Jogar Diablo 1 à noite em um dia de chuva é algo aterrorizante, uma singularidade que foi se perdendo nas edições 2 e 3.

Bruno Almeida: Se você procura uma história mara-vilhosa, constante inovação e uma grande gama de personagens com características psicológicas, Final Fantasy é o seu jogo. Apesar de ser lançado há bastante tempo, o RPG continua se atualizando. Além disso, todos os jogos da série conseguem prender e fazer você realmente se sentir na trama e nas batalhas.

Bruno Franco: O primeiro Mortal Kombat, lança-do em 1992, foi um dos precurso-res dos jogos de luta que tem até hoje sua jogabiliadade como base da maioria dos jogos do estilo. A jogabilidade é bastante simples, possuindo golpes e combos fáceis de ser executados por qualquer um. Mesmo sendo um jogo simples e an-tigo, ele até hoje é um desafio.

uma das vantagens de ser repórter da Exceção é que existe uma grande liberdade na questão da escolha do tema para a reportagem. Foi então que escolhi um dos temas que mais me despertam curiosidade: o mundo dos games. Há pessoas que gostam de viajar, o que pode ser feito de diversas manei-ras: de carro, de avião, pelo pensamento, lendo um livro e... jogando videogame! Em especial, os três entrevistados para

essa reportagem, conseguem viajar ao jogar games antigos. Um fato que vai contra a maré das novas tecnologias que dão suporte para, cada vez mais, os games estarem mais realísti-cos e detalhados graficamente. Fazer essa reportagem me fez entender o quão relevante é uma boa história, e que mesmo com a evolução da tecnologia, o ato de se fazer boas histórias continua tão desafiador quanto nas últimas décadas.

OS GAMERS RECOMENDAM

A série de games The Legend of Zelda se consagrou com o personagem

principal Link no gênero aventura/RPG

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OS NOVE DIAMANTES DE CELITA

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Com um sorriso no rosto e bom humor, a menina que brincava de boneca conseguiu criar os filhos

vendendo lanches nas ruas

TEXTO: EDUARDA PAVANATTO | FOTOS: FÁBIO GOULART

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Já passaram tantas coisas pelos olhos dela. Tantas histórias, tan-tos momentos. Já caíram lágrimas. Muitas delas. Lágrimas que lavaram

a alma e expulsaram pelos olhos azuis todas as impurezas, a tristeza e toda a dor. Hoje, Celita não chora mais, apenas sorri. E como sorri. Uma e outra e ela abre aquele sorriso, aquele que de tão sincero chega a sair pelos olhos. Pelos olhos azuis de Celita. Quando criança, amava suas bonecas. “Aquelas de pano, sabe?”. Tinha tantas quanto a sua vontade de ter filhos. Não podia ver uma criança menor que ela logo queria pegar, abraçar e não soltar nunca mais. Assim era a menina. Nada diferente da mulher que é hoje.

No último dia 20 de setembro era ani-versário dela. Assim como conta a história gaúcha, Celita também peleou, sofreu. Mas, diferente das tropas farroupilhas, ela saiu vencedora do confronto com a vida. O sonho da menina agora é real. As bone-cas de pano viraram crianças de verdade, quem diria. O primeiro presente veio logo depois de casada, aos 23 anos. Íria, ainda muito pequena mal conseguia falar direi-to, mas já sabia dizer que queria só a ma-dinha. No dia do casamento de Celita, foi ela quem carregou a cesta com as alianças. “E quem disse que queria entregar para o pastor?”, conta em meio a gargalhadas.

Com a mãe doente e um pai violento demais para qualquer criança, Íria conse-guiu o que queria, ficou com a madinha. E Celita ganhou sua primeira filha. Pou-

co tempo depois veio a surpresa: em sua barriga, crescia uma menina. Logo mais de um ano depois, outra. Agora eram três bonecas, três princesas. Íria, Silvana e Flaviana. A irmã mais velha ajudava a cui-dar das recém-chegadas. Principalmente quando Celita enfrentou a primeira bri-ga. Um tumor no ovário levou grande parte das chances de uma nova criança.

Na época o médico explicou que, em-bora rara, a possibilidade de gravidez não se extinguia totalmente. Mas, as expectativas do doutor não se confirmaram. “Alguns meses eu tinha certeza que estava grávida e não estava. Então eu ia ao banheiro, fechava a porta e chorava. Chorava muito e batia na parede para disfarçar e para que ninguém ouvisse meu choro”. A batalha contra o cân-cer lhe tirou a capacidade de gerar filhos de sangue, mas não os de coração.

Algum tempo depois, a moça de olhos azuis visitou o hospital da cidade a fim de doar sangue. Lá conheceu uma assistente social, de quem ficou amiga e logo falou de suas intenções. “Eu disse para ela: me arru-ma um gurizinho?”. Branco, amarelo, preto, não importa a cor, Celita queria um menino. Saíram de lá e foram direto fazer os papeis para que ela pudesse entrar na fila de ado-ção. Mas, quis o destino que outra criança precisasse dela, bem antes. Foi através de um sonho que Celita viu seu novo filho.

Certa vez, sonhou que uma amiga es-perava uma criança. Acordou no outro dia com a visão na cabeça e foi trabalhar. Encontrou, por acaso, a moça com quem

sonhara e contou-lhe sobre o que vira. “Ela me perguntou se eu estava ficando louca. Ora grávida, já chega uma amiga que está passando por isso e não sabe o que fazer”, relembra as palavras da amiga. A tal moça grávida não queria o filho e, sem esperar ne-nhum segundo, Celita se ofereceu para ficar com a criança, independente do sexo que viesse a ter. A tal moça grávida não era ami-ga, mas sim a irmã da conhecida de Celita.

Ela não esquece o dia em que conhe-ceu essa mulher. Não esquece as palavras que foram ditas ali, os gestos e o lugar em que tudo aconteceu. Ao entrar no quarto, a moça estava sentada em uma cadeira, acompanhada por uma garrafa de uísque aberta em cima da estante. Irritada, batia incansavelmente na barriga e amaldiçoa-va a criança que veio lhe atrapalhar a vida. Celita sem qualquer dúvida queria a crian-ça e a mulher grávida, também sem qual-quer dúvida, queria dar a criança que viria.

Foi num domingo de muita chuva que Emanuela nasceu. Foi, também, num dia de muita chuva que ela conheceu sua nova casa, deitou em seu novo berço e recebeu o carinho de sua nova mãe. “Não me esqueço do dia em que cheguei em casa com ela. A primeira coisa que eu disse foi: enfim sós”, conta. Íria sempre ajudou a cuidar das irmãs, enquanto a mãe trabalhava, era ela a respon-sável pelos mais novos. Não foi diferente três meses depois, com a chegada de Fábio.

Naquele dia, Celita saiu para trabalhar no restaurante, como sempre fazia. Algu-mas horas depois o telefone tocou. Era a

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assistente social que ela havia conhecido um tempo antes. “Dona Celita, nasceu um gurizinho como a senhora queria”, relem-bra. “Ele é moreninho, pesa 2.850 kg, a mãe pulou o muro da sacada do hospital e fu-giu. Ele está para adoção e o casal escolhi-do foste tu e teu marido”. Por um segundo, Celita não sabia o que fazer. Acabara de adotar Emanuela. E agora?

No segundo seguinte estava com o menino em casa. Fábio foi o nome esco-lhido. Celita sempre quis que as mães biológicas conhecessem os filhos. Foi en-tão que começou a busca pela mãe de Fá-bio. Depois de muito trabalho e procura, a busca teve fim. As duas se encontram no restaurante onde Celita trabalhava. “Ela chegou bem faceira perguntando quem era a dona Celita. Eu me apresentei e ela perguntou o que eu queria.”

Enquanto as duas conversaram, Fá-bio e a irmã Emanuela corriam e brinca-vam entre as mesas do restaurante. “Eu disse: eu sou Celita, a mãe do Fábio e ali está teu filho. Pode ir lá abraçar ele”. Ela obedeceu, abraçou, beijou e segurou a criança que há pouco colocara no mun-do. As duas caminharam juntas e Celita mostrou onde morava com a intenção de que ela pudesse voltar quando quisesse. Mas, a mulher nunca mais fez esse cami-nho, nunca mais procurou o filho.

A menina que no passado cuidava das bonecas como crianças de verdade, ago-ra tinha cinco filhos. Cinco anjos. Porém, mais estavam por vir. Uma das maiores

lutas de Celita foi com o filho Vanúcio. Na incubadora havia 45 dias, o menino espe-rava por alguém que pudesse o levar para casa. Não ganhava peso, o que dificultava sua saída. A mãe tinha problemas mentais e usava drogas. Dividia seus dias entre as idas à clínicas e ao hospital psiquiátrico.

Vanúcio herdou o mal causado pelas drogas no corpo e organismo da mãe. Por causa disso, enquanto ainda esperava por nascer, faltou-lhe oxigenação no cérebro. O médico explicou que por falta de oxigê-nio, ele sofreu uma lesão cerebral. A assis-tente social alertou que se o bebê perma-necesse com a mãe biológica, morreria em poucos dias. Celita não desistiu da criança. Como Vanúcio não poderia sair do hospi-tal enquanto não ganhasse peso, a nova mãe modificou sua rotina.

Saía todo dia do trabalho, corria para casa, pegava Emanuela e Fábio e partia para o hospital. Lá era encaminhada para um quatro onde passava horas conver-sando e fazendo carinho em Vanúcio para suprir a falta de contato humano. O amor de Celita pelo menino fez efeito. E como fez. Tempo depois, ele estava em casa com a mãe e os irmãos. Mas a bata-lha de Vanúcio pela vida não parou por aí. A lesão cerebral tornou sua vida mais difícil e sofrida. A médica disse à Celita que era preciso operar o filho, que ele não caminharia até os três meses e que era preciso colocá-lo na Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).

“Eu sai de lá, atravessei a cidade e che-

guei ao hospital. Quando entrei, eu sentei no chão, não tinha mais forças para ca-minhar de tanto que eu chorava”, conta emocionada. Porém, ela tinha um amigo, o doutor Fialho. Foi ele quem ajudou mãe e filho a suportarem o tratamento e o so-frimento que viria com ele. O até então marido de Celita, não aceitou a adoção de Vanúcio e saiu de casa assim que o meni-no chegou. Os problemas aumentavam a uma proporção assustadora. Os médicos suspeitaram que o menino estivesse com a mesma doença que a mãe enfrentou na juventude. O câncer que arrancou a pos-sibilidade de filhos de sangue de Celita agora cercava o filho.

Foram a Santa Maria. Acordavam às 5 horas e viajam 120 quilômetros. Chegando lá, enfrentavam mais um ônibus lotado, até chegar ao hospital. Para devolver a esperança aos olhos cansados de Celita, o medo não se confirmou e os exames exclu-íram a possibilidade de tumor. Depois de mais alguns tratamentos, Vanúcio estava bem de novo. E se o filho estava bem, a mãe também estava. Para conseguir cuidar dos filhos e dar atenção necessária para Vanú-cio, Celita largou o emprego e começou a vender lanches nas ruas da cidade. “Con-segui criar essas crianças todas vendendo lanche e passando frio.”

Inverno e verão lá estava ela, cami-nhando de um lado para o outro com uma cesta em uma das mãos e uma térmica de chá ou suco, noutra. Se chovia, não tinha como carregar o guarda-chuva. A única coi-

Celita: “Medo? Eu nunca tive medo, sempre tive coragem”

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Coração de mãe sempre cabe mais um, independente de quantas

escovas de dente ainda caibam no pote

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sabe quando tu poderias ficar horas e horas sen-tada apenas ouvindo o que uma pessoa tem para te contar? Pois foi isso que aconteceu. Desejei que o dia fosse mais comprido, que tivéssemos mais duas horas de conversa. Por um momento esqueci que estava ali para fazer anotações e perguntas. Apenas liguei o gravador e aproveitei cada palavra e gesto que a senhora de 67 anos me dizia. Parava uma vez ou outra para fazer carinho no gato que

nos acompanhava. Ele também estava ouvindo o que ela tinha a dizer, embora já conhecesse aquela história, já tivesse ouvido milhares de vezes ou até enfrentado com a dona as batalhas da vida. Cada palavra era preciosa. Celita Losenkann desviava o rumo da conversa e retomava com uma maestria de quem fala sobre tudo, de quem gosta de falar sobre tudo. E o gato acompanhava. Nunca vou me esquecer dos olhos dele. Nem dos dela.

sa que tinha eram dois bonés, enquanto um estava protegendo a cabeça contra a chuva, o outro estava secando dentro da bolsa para que logo trocassem de lugar. Se qualquer pessoa pensaria em desistir, Celita ainda tinha espaço em seu coração para mais três filhos: Jaisson, João Paulo e Lauren.

Os dois últimos meninos são filhos de uma mesma mãe. João Paulo foi o décimo filho dessa mulher, de todos apenas um ela não havia entregado para adoção. Lauren é a mais nova e, na verdade, sua neta. Emanuela, uma das filhas adotivas, engravidou ainda jovem e quem passou a servir de mãe para a menina foi Celita. Para Lauren, Emanuela não é sua mãe e nem gosta de tocar no assun-to. Avó e neta se adotaram como mãe e filha.

Entre uma conversa e outra, Celita re-lembra os tempos de adolescente, as cal-ças feitas com saco de farinha e o chimar-rão com os pais. A vida naquela época não era fácil. Moravam numa casa pequena e velha, bem diferente da casa em que vive hoje. Enquanto falava, Celita era sempre acompanhada pela gata da casa. Uma vira-lata de pelagem escura com man-chas amarelas distribuídas pelo corpo todo. A gata parecia entender a dona e olhava ora para ela, ora para uma peque-na formiga que passava no chão.

Cada criança que chegava na casa to-mava logo lugar na cama da mãe. À me-dida que novos irmãos chegavam, o até então ocupante do quarto se mudava para um novo e cedia seu lugar. Hoje quem tem a sorte de dividir a cama com a mãe é Lau-ren. E se pudesse, Celita faria uma cama enorme, onde pudesse aconchegar todos os filhos, dar-lhes amor e proteção. Hoje estão todos encaminhados na vida; os que não trabalham, estudam e alguns dividem o tempo entre as duas tarefas.

“Eu passei trabalho, isso eu passei mes-mo, e passei muito”. Mesmo assim, nunca desistiu, nunca sentiu medo. Para a mãe, os filhos são tudo na vida, são a riqueza de Celita, o seu ouro e seus diamantes. Criou todos vendendo lanche nas ruas e orga-nizando viagens pelo estado. O próximo destino ela já tem planejado. Quer visitar a serra gaúcha, experimentar as geleias e os vinhos feitos por lá. Quer viver, aprovei-tar o que tem de bom na vida, ver os filhos também vivendo, felizes. E Celita sorri, com o orgulho de uma mulher guerreira que nunca precisou passar por cima de ninguém para chegar ao sucesso. E como o sorriso dela é bonito. Como é sincero. Não o sorriso da boca, mas o dos olhos. Dos olhos azuis de Celita.

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SONHO NA PORTA

DA ESCOLA

Joana e Regina têm um passado que guarda frustrações. Uma abandonou o sonho, a outra ficou famosa

TEXTO: LETÍCIA WACHOLZ | FOTOS: FÁBIO GOULART E ACERVO PESSOAL

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Na porta da escola Cônego Albino Juchel, Joana*, com apenas 14 anos ouviu aquela que achou que seria a melhor proposta de sua vida. Hoje,

aos 23, ela lembra bem o dia que foi abordada por um olheiro, que lhe entregou um folder a chamando para uma seletiva de modelo. De origem alemã e perfi l exótico, imediatamente foi encantada com os elogios para seus olhos verdes e os longos cabelos loiros levemente encaracolados. Ser famosa, gravar comerciais, subir em passarelas, ser capa de revista sempre foi o sonho da moça que tanto chamava aten-ção, na hora do recreio, pelas pernas longas.

Naquele dia Joana chegou em casa e correu para a cozinha para avisar a mãe, que termina-va o almoço. A mãe não tinha gostado muito da ideia, mas quis satisfazer a vontade da fi lha e confi rmou que iriam à seletiva que aconteceria em dois dias, em um hotel da cidade. Para Jo-ana, que desde pequeninha desfi lava no meio da sala para toda a família, apenas uma porta a separava do início de uma carreira de mode-lo. Com vestido preto e uma sandália de salto fi no, se dirigiram até o saguão do hotel, onde dividiu espaço com dezenas de outros jovens, todos com o mesmo desejo.

Quando chegou sua vez, Joana se apresen-tou, sorriu, desfi lou e ouviu a opinião criteriosa de dois homens “bem estilosos”, recorda a jovem. “Eles chegaram a dizer que eu precisava perder pelo menos uns 4 quilos. Primeiro eu não gostei muito, mas depois me levou a pensar que eles estavam preocupados comigo e queriam que eu evoluísse, que eu desse certo”, conta.

O pedido foi apenas um disfarce diante de um discurso de que, para começar a carreira, deveria ter um book de fotos para apresentar o trabalho. As fotos teriam um custo de cerca de R$ 900 mais uma taxa para cadastrar a jovem na agência e poder participar dos castings com os clientes.

As fotos aconteceram um dia depois, no mes-mo hotel. Joana não teve produção e usou suas próprias roupas para fazer as poses no cenário pre-to. Na verdade, ela estava acostumada. “Eu adora-va fazer poses em frente ao espelho. Em casa eu trocava de roupas o tempo todo e me fotografava.”

No mesmo dia a mãe de Joana pagou o book. Aliás, ela ainda teve que pedir uma parte do dinheiro emprestado, pois exigiam o paga-

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mento à vista. Feito isso, as duas fo-ram para casa, de onde aguardariam a chegava do material. Os agenciadores voltariam em alguns dias para nova seleção na região e para entregar as fo-tografias. No entanto, a agência e seus olheiros foram embora e nunca mais se ouviu falar neles. Tudo não passou de um golpe. Nada pode ser feito e Jo-ana, com medo de novos golpes, aban-donou o sonho. A depressão foi quem desfilou com ela, por um bom tempo, pelo saguão da escola. Joana não acei-tou o fim do sonho.

Histórias como a dela, surgem em portas de escolas, diariamente. Joana, não teve sorte. Ela mesma diz que não teve pulso para seguir em frente. Entre tantas falsas promessas de olheiros, muitas meninas, com vocações para serem modelos, foram abordadas nas ruas, nas portas de escolas e não de-sistiram. Um exemplo é Regina, que por sinal, tem cabelos loiros, olhos claros e pernas longas, como Joana. Em comum, um passado que guarda frustrações. No entanto, uma vive o anonimato, a outra, a fama.

Regina, a menina criada em família simples e que cresceu nas ruas do bair-ro Gressler, em Venâncio Aires, hoje é a Menina Fantástica. É assim que todos se referem a ela que, em 2009, se tornou uma das principais modelos do país e do mundo. No quadro do programa da Rede Globo, Fantástico, um ônibus percorria todas as capitais do Brasil pra encontrar uma modelo e Regina ganhou entre 1.250.000 candidatas.

Para quem acompanha a jovem de 22 anos nas revistas e passarelas não imagina que a bela loira de 1,77 de altura, manequim 36 e olhos azuis, viveu de perto a realidade dos golpes de agências ou falsas seletivas de mo-delos. Filha de mãe professora e pai caminhoneiro, Regina participou de diversas reuniões e seletivas de mode-los em Venâncio Aires, sua cidade na-tal, antes de se tornar famosa. “Minha mãe ou minha irmã sempre estavam comigo. Sempre assistíamos à pales-tra e ouvíamos tudo o que os agentes e olheiros tinham para nos dizer até a hora que inventavam cobrar alguma coisa, como inscrição de curso por exemplo. Daí íamos para casa, sem pa-gar, é claro”, recorda a jovem.

Em uma das seletivas, Iara, mãe de Regina acabou pagando o book. Na época, cerca de 30 pessoas em Venân-cio fizeram o trabalho fotográfico, mas os falsos fotógrafos entregaram somen-te metade das fotos e desapareceram. Nunca mais atenderam ao telefone, colocado à disposição. “Eles tiveram a capacidade de fazer uma revista e nela tinha a foto de vários modelos, colo-caram a minha foto lá também, quase como se estivéssemos à venda. E nós acreditamos neles”, lamenta Regina.

Para ela, a internet vem auxilian-do na pesquisa de agências e olheiros, mas ainda é necessário atenção. Sobre o book, ela observa que toda modelo precisa deste material, mas há ressal-vas para a cobrança. “Um bom book é muito importante. Quando a agên-

cia acredita na modelo essa agência ‘adianta’ o book. Assim aconteceu co-migo, no meu caso sou agenciada pela agência Mega Model Brasil (a maior da América Latina). Logo que cheguei a São Paulo, a primeira coisa que pre-cisei foi fazer book. Um não, vários. Esse é o meu material de trabalho.”

Regina explica que estas fotos são pagas pela agência, mas o gasto fica “no nosso extrato em vermelho, até come-çarmos a trabalhar e assim consequen-temente vamos pagando as dívidas que vão muito além das fotos. O começo é complicado, precisa pagar aluguel, transporte, alimentação e tudo isso também vai para o extrato. A agência vai adiantando, dando o conforto ne-cessário para as meninas viverem e co-meçarem uma carreira”, explica.

Apesar deste extrato, isso está longe de ser um problema, garante a top model. “Quando a agência aposta na modelo, dando book e todo supor-te necessário é sinal de que essa mo-delo vai trabalhar muito e pagar essas dívidas rapidinho. As agências sérias têm anos de trabalho e detectam os perfis das modelos.”

Regina explica que os falsos olhei-ros causam mais do que um golpe fi-nanceiro, eles acabam com sonhos de muitas meninas e mães. Segundo Re-gina, as promessas são tantas que até quem não tem o perfil necessário para a profissão, acaba sendo iludido. “Eles inventam histórias, prometem mun-dos e fundos. São todos muito simpá-ticos e você acaba acreditando”. Foi o

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Regina saiu do anonimato e se tornou uma das principais modelos do país (acima, a esquerda). A venacio-airense hoje mora em São Paulo e faz parte de uma das agências de modelos mais renomadas (acima, a direita)

quem nunca ouviu alguma história de ilusão de

modelo? Eu não apenas ouvi, como já fiz parte de uma delas. Nunca quis ser uma top model,

mas fui uma das tantas meninas que foi abordada na porta de

uma escola com promessas que saciam o ego. A loirinha de olho

azul que poderia facilmente ir para a tevê ou fazer campanhas

para revistas. Foi com esta velha lembrança que me motivei a

escrever esta reportagem com uma menina que conheci nos

tempos da escola. O desafio não foi escrever, mas puxar de sua memória momentos que ela só

quis, e ainda quer, esquecer.

Por outro lado, a reportagem me possibilitou voltar a con-

versar com Regina. A Menina Fantástica. Uma menina doce, inteligente, que conheci antes

de se tornar uma das principais modelos dos país. Com graça e

sabedoria, e principalmente, hu-mildade, contou das dificuldades

que também enfrentou antes de brilhar nas passarelas e ensaios

fotográficos. Regina entra nesta reportagem para provar que

sua essência é a mesma daquela menina que estudou na escola

Monte das Tabocas e assim como tantas outras, sonhou em

ser modelo e também foi engana-da. Mas teve sua vez. Sua sorte!

que aconteceu com ela quando produ-ziu o primeiro book. Os agenciadores passaram confiança de que na semana seguinte estaria trabalhando, fotogra-fando campanhas e ganhando dinhei-ro. “Acreditei. Minha mãe pagou e eles desapareceram do mapa. Esses falsos olheiros não estão nenhum pouco preocupados com nossos sonhos, só querem nosso dinheiro”, garante. A dica de Regina é nunca ouvir apenas uma opinião e procurar uma agência conhecida e conceituada para reali-zar um teste. “Eles não brincam com o sonho das pessoas. São sinceros até demais, o que modéstia parte é muito bom, porque se você não tiver o perfil, bola pra frente, parta para o plano B. A vida segue”, ensina.

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PARA SEMPRECOLECIONADOR

João Pedro tem 11 anos e uma paixão: vivenciar o passado no presente

TEXTO E FOTOS: ANDRESSA BANDEIRA

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Qual é teu ponto?” Foi com esta pergunta que João Pedro An-dres Trojahn começou sua con versa comigo. O menino de 11

anos queria saber porque eu gostaria tan-to de conversar com ele. Expliquei-lhe o motivo. Pretendia escrever sobre sua pai-xão por objetos antigos, História, carros e músicas de outros tempos. Ele concordou. Conversamos e João me deixou ver um pouco da criança apaixonada por antigui-dades e extremamente inteligente que é. Seu amor por coisas antigas é diferente de tudo que já tinha sentido: é maior do que suas palavras e se materializa através de suas raras e especiais coleções.

Na sala da casa em que João vive com a família - a mãe, Luciane, a irmã, Caro-lina, e o pai, Rodrigo -, há um toca dis-cos, muitos vinis e CDs que o menino foi mostrando logo de início. Guns N’Roses, Elvis Presley, Legião Urbana, Elton John, Ritchie, Lulu Santos, Barão Vermelho e Beatles são alguns dos artistas que enfei-tam a estante da sala de João. Os discos são tanto dos pais quanto dele, que adora as bandas antigas. Das paixões musicais João destaca sempre Legião Urbana e El-

“ vis Presley. Do Rei do Rock, o garoto tem um quadro em seu quarto, além dos LPs e DVD. Da Legião Urbana, João mostra com orgulho o CD e vestia a camiseta da banda na noite em que conversei com ele.

Suas coleções estão espalhadas pela casa. No bom sentido do termo, pois as latinhas, moedas antigas e objetos de ou-tras épocas podem ser encontrados no quarto do menino, dos pais e na parte de-baixo da casa, perto da garagem. Nossa primeira parada para conhecer os tesou-ros de João foi seu quarto.

Ao entrar no refúgio particular do ga-roto, me deparei com pequenas estantes abarrotadas de objetos, livros, quadros, latinhas e Gummer, o peixe de estima-ção que se encontra acomodado ao lado das edições antigas de Quatro Rodas. São mais de cem exemplares. Os qua-dros coloridos, pintados por ele, também fazem parte da decoração. Das coisas guardadas havia objetos dos familiares e de pessoas próximas que presenteiam João em função de conhecer o seu gosto por antiguidades. Por ali, o menino me mostrou alguns de seus tesouros. O anel de formatura de seu avô é um deles, junto

Dentre os objetos colecionados por João, estão latinhas e miniaturas de carros antigos

(acima). De suas bandas favoritas, Legião Urbana está no topo da lista (a direita)

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com suas latinhas antigas e seu Livro de Raridades. Dentro desta obra, uma pas-tinha de capa preta com saquinhos plás-ticos guardava cédulas de dinheiro de vá-rios países. No Livro, João separou as que estão em melhores condições. Argentina, Estados Unidos e Brasil são alguns dos países representados naquelas notas.

Enquanto estive lá, João encontrou, meio perdido em suas latas, duas de suas raridades: autógrafos de ex-goleiros da dupla Grenal, Taffarel e Mazzaropi. O me-nino aproveitou a oportunidade e os guar-dou em seu Livro de Raridades. Assim os autógrafos passaram a conviver com notas de 1960, do Banco Central da Argentina e com personagens famosos que João reco-nhece nas cédulas. Entre eles Getúlio Var-gas, Princesa Isabel, Barão do Rio Branco. As cédulas de João vão mais longe que a América Latina. Cédulas da Arábia tam-bém compõe o livro do garoto. Das que estavam ali ele aponta sua favorita, uma nota de cinco dólares, com Abraham Lin-coln estampado em um papel rosado.

Ainda em seu Livro, ele guarda o que lhe é pessoal, fotos antigas de Sobradi-nho, cidade em que mora, promoções da

sua revista de coleção, a Quatro Rodas, fotografias dele quando bebê, fotos do bi-savô e tataravô, dentre outras coisas que o pequeno julga valioso guardar. Ele não apenas coleciona, guarda, amontoa. O ga-roto se interessa pelo que tem, reconhece os personagens históricos, pesquisa so-bre as bandas que gosta e lê suas revistas antigas, guardadas no quarto.

Apesar de serem coisas raras e antigas, João não tem problemas em deixar que eu pegue, vasculhe e olhe não só com meus olhos, mas com minhas mãos também.

Posso tocar e João retira o que peço e depois coloca no lugar, sem ciúmes, sem preocu-pação, sem sofrimento que algo vá estragar.

Do alto de seus 11 anos e apesar de gos-tar tanto do passado, João já planeja seu futuro. Dentre seus grandes sonhos estão o de ter um Clube de Automóveis Antigos e um Museu. Ainda para o futuro há o de-sejo de estudar História. Ainda mais que agora, conta orgulhoso, foi o único da tur-ma da escola a passar em uma prova difícil.

Depois do quarto de João, o próximo passo é desbravar o quarto dos pais. No

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Das paixões de João, além das suas coleções e dos carros antigos, existe também a música. Para ele, antigamente, as canções faziam mais sentido. Essa paixão cresce e ultrapassa o ouvir as músicas, João gosta também de ler sobre as bandas que aprecia.

Para o pequeno, tudo envolve História e as pessoas deveriam preservar o que dura. João acredita que, antigamente, éramos mais felizes. Os moti-vos são muitos. Os objetos eram melhores e mais resistentes, as coisas eram de luxo e começaram a surgir os carros mais importantes e que são referên-cia até hoje. Apesar do apreço por objetos bonitos, João não acha que este é o critério principal que deve ser levado em conta. “Não ache que as coisas são bonitas, tipo as pessoas, tem que ver elas por dentro”, diz o menino.

Das personalidades históricas que o inspiram, João me citou al-gumas. Começando por Wolfgang Amadeus Mozart. Ou só Mozart. Compositor de música clássica que João fez questão de me explicar quem era e dar um breve resumo da sua vida. Outra figura especial para o garoto é seu xará, Dom João I. Por ele ter vindo com a Corte de Por-tugal, imposto a Imprensa Régia e por liberar o Rio de Janeiro para o comércio nos portos. A Princesa Isabel também teve sua importância. Isso porque a membro da família real foi fundamental para a abolição da escravatura. A habilidade com que o menino fala dos dois persona-gens históricos, tanto Dom João como a Princesa Isabel é de se fazer pensar se o garoto tem apenas onze primaveras.

Como é de se esperar a matéria favorita de João é História. Sempre é o primeiro da turma a responder as perguntas da professora. O peque-no gosta também de estudar Ensino Religioso. Já as disciplinas que não

DAS PREFERÊNCIAS DO PEQUENO COLECIONADORguarda roupa de Luciane e Rodrigo, o filho mantém um grande pote de vidro, cheio de moedas. Mas não moedas quaisquer, algumas tão antigas que nem a Família Real brasileira havia chegado ao país na época. Nas relíquias do pequeno colecio-nador a moeda mais antiga data de 1802. As moedas de João são presentes. Os amigos do avô lhe presenteiam por saber do interesse do guri pelas moedas. Brasil, Suíça, Arábia e Inglaterra são algumas das nações presentes nas moedas do menino.

Ali João me contou qual foi sua primei-ra coleção, a de carrinhos Hot Wheels. A paixão por carros antigos e a de ser cole-cionador veio também pelo pai. Rodrigo gosta de participar de encontros de Carros Antigos e costuma levar toda a família.

Então, eu recebi um convite: “Quer ir lá embaixo?”. Ir lá embaixo quer dizer descer e encontrar uma sala repleta dos muitos objetos e equipamentos que João coleciona. O pequeno convida a irmã mais nova para vir junto e ela, que já esta-va conosco, nos acompanha.

Na sala em que fui convidada a entrar, objetos dos mais variados tipos e origens ocupavam o local. Placas de carros, fer-ros de passar roupa antigos, mais latas, calibrador de pneu, volante de carro. Tudo espalhado pelo quartinho. “Tudo tranqueira”, diz ele brincando e com um toque de carinho na voz. Das tranqueiras de João ali expostas, as latas são as que aparecem em maior quantidade. Cento e oitenta e nove delas. Como as cédulas e as moedas, as latas representam diver-sos países. Argentina, Uruguai, França, Estados Unidos, Japão, Espanha e por aí mundo afora. Com orgulho, ele me mos-tra uma das que gosta muito. Uma lati-nha fininha e comprida de Starcola, dos Power Rangers. Tudo isso, presentes.

Para o menino, as coisas antigas duram mais e são melhores. Há coisas mais boni-tas agora, mas há as antigas que continuam sendo mais bonitas que as atuais. Para ele, a época mais bela foi os anos 50 e 60. Os car-ros destas décadas encantam o menino, que tem o sonho de possuir um Opala.

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o apetecem são Ciência e Matemática. O aspirante a dono de museu também adora ler livros de suspense, Quem matou o grande mestre da Matemática? está entre suas preferências, além de obras que tratam de mitos gregos, como o do Minotauro.

Apesar de gostar de viajar nos livros, e os preferir à adaptações ci-nematográficas, João também tem seus lugares de concreto e História que deseja visitar. O Palácio de Versailles, na França, e o Big Ben, na Inglaterra, estão entre estes lugares que ele me contou. A Casa Branca é uma visita que interessa um pouco o jovem, mas seu desejo é maior quando se fala na cidade de Ouro Preto, nas suas minas do século XIX e na Serra Pelada. João não apenas tem vontade de conhecer os lugares, ele já os conhece de tanto ler sobre eles.

Para o futuro, quer ter desafios e se tornar alguém na vida. Alguém importante e que será lembrado, se não pelo mundo todo, pelo menos na sua cidade. Apesar de dizerem para João que ele deveria ser artista por desenhar bem, seu sonho é ser Arqueólogo.

No fim da conversa, ao som de Yesterday, dos Beatles, João volta comigo para seu quarto e mostra sua televisão, das antigas em preto e branco, a que ele costuma assistir. Tiramos fotografias dele e da irmã e nos despedimos. Fui embora com um sorriso no rosto, após conversar com um rapazinho tão especial que tem o objetivo como ele mesmo disse de “honrar as coisas antigas” e ser “sempre um colecionador”.

da primeira vez que eu ouvi a história de João Pedro eu sou-be que ela merecia ser conta-da. Merecia as páginas de uma revista e até de um livro. Por enquanto, em minhas mãos eu tinha a oportunidade de contar aos leitores da Exceção o quanto o João era bacana e foi o que fiz. Fui até a casa dele e conversei com esse menino que vive com um pé no passado e outro no pre-sente. Durante a visita, João logo se soltou e andou para lá e pra cá, querendo saber qual era daquele gravador que eu carregava sempre comigo, não querendo perder uma palavra do que ele tinha pra dizer. Foi uma decisão acertada, não querer perder o que aquele pequeno tinha para dizer. Foi uma decisão acertada ter escolhido João para conversar. Ele é inspirador e eu saí de lá acreditando um pouco mais na humanidade.

Aparelho de televisão antigo funciona perfeitamente e é companheiro de João

Pedro em seus momentos de lazer

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O FUNDODO POÇO

As histórias que correm com as águas que geraram o nome do

município de Arroio do Tigre

TEXTO: EDUARDO FINKLER | FOTOS: REPRODUÇÃO

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Às vezes uma lenda parece ser tão real, tão verdadeira, que há aqueles capazes de enfrentar as mais diversas

dificuldades para descobrir se ela real-mente existe. Mesmo que isso signifique chegar até o fundo do poço. É exatamente no fundo do poço que essa história começa. No ano de 1900, o Rio Grande do Sul ainda estava sendo desbravado por imigrantes. Muito destes enfrentaram grandes riscos em suas caminhadas, mas o desconheci-mento sempre foi o principal deles. No meio de uma destas aventuras um desbravador matou uma onça próxima a um riacho. O local, então, por um pequeno equívoco, pas-sou a ser chamado Arroio do Tigre.

No arroio onde a onça saciava sua sede, hoje as águas são rasas e não há lo-cais possíveis para se banhar. No entanto, há na propriedade do agricultor aposenta-do Armando Wappler, um poço com mais de 13 metros de profundidade, que reserva inúmeros boatos. “O pessoal sempre vinha dizendo que pescou carpas de 2

metros dentro do poço e que havia mais de mil carpas deste tamanho dentro do mesmo”, recorda Roberto Teichmann.

Eram tantos boatos e lendas que cor-riam junto às águas que algo inevitável aconteceu. Em uma das piores secas já registradas na história do município, Ro-berto Teichmnn, juntamente com seus vizinhos, convenceu Armando Wappler a tentar realizar algo aparentemente impos-sível: secar o poço. Roberto foi o idealizador de tal façanha. “Na época eu tinha meus 40 anos e um dia meu vizinho chegou dizendo que pescara peixes gigantescos dentro do poço. Então tive a ideia de secá-lo, pois para mim tudo era fácil.”

Atualmente se olharmos para Armando Wappler, vemos um senhor que aparenta mais de 80 anos. Suas mãos têm inúmeros calos provocados pelo trabalho na terra, mas ainda se recorda da época claramente. “Era verão de 1995, por volta de fevereiro. Meus vizinhos da época, Lauro, Trezzi e Roberto Teichmann, desceram com canos e foram abrindo caminho pela lavoura. En-

tão trouxemos duas máquinas de secar ar-roz e iniciamos a secagem do poço.”

Apesar de localizar-se em meio a um rochedo, Armando e seus vizinhos abriram um caminho bem amplo com facões, enxa-das e foices; colocaram alguns canos e uma lona para que o riacho continuasse a correr e para que todos pudessem passar. O rumor da secagem logo se espalhou pela vizinhança. Movidos pela curiosidade, muitos passaram a conhecer o lugar. Até mesmo pessoas de outros municípios e localidades foram até a propriedade em busca de comprovar a ve-racidade dos rumores. Alguns até ajudaram o grupo com a secagem.

Armando lembra muito bem das dificuldades enfrentadas. “Utilizamos 145 litros de diesel e apesar de ser verão, quando escurecia, tínhamos que colocar casacos, pois fazia muito frio lá”. Assim, Wappler e seus vizinhos prosseguiram os trabalhos durante três dias, até secar o local. O proprietário recorda que tiraram alguns peixes grandes, porém não havia um número tão elevado como se espa-

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lharam os boatos. “Talvez com as chuvas, alguns tenham sido levados.”

Mas, a grande surpresa foi o resul-tado de tanto trabalho. Após secarem o poço, foi encontrada uma caverna. Den-tro dela todos realizaram uma festa que acabou atraindo mais gente. Foi neste evento que Alexandre Emmanouilidis, hoje com 51 anos, fotógrafo e repórter na época, conheceu o lugar. Alexandre con-tou que trabalhava no jornal Gazeta da Serra desde 1991 e fazia matérias voltadas ao interior. Então, aquele acontecimento chamou-lhe a atenção, pois havia inú-meras pessoas indo para lá. “O lugar era realmente de difícil acesso. Lembro-me que passei maus bocados para chegar. Mas valeu a pena, pois o que eu vi era um lugar extremamente belo.”

A histórica visita na caverna teve ainda a gravação do ano nas rochas. Roberto Tei-chmann tirou fotos e fez uma filmagem de tudo. Mas, o arroio nunca voltou a secar a nível tão baixo para mostrar os números ou a caverna novamente. A festa, que durou da última noite de secagem até à tarde se-guinte, foi brindada com cerveja e música. Uma festa jamais esquecida pela família Wappler, já que uniu todos seus vizinhos.

Alguns anos depois, o lugar voltou a virar notícia, desta vez foram dois ir-mãos, que quase perderam a vida no local. “Eles queriam mergulhar até a ca-verna, porém, a correnteza ‘puxa’ para baixo”, contou Armando, que passou a restringir as visitas ao poço.

Outro fato também foi lembrado por ele. “Certa vez fui pescar e começou a chover. Antes que eu me dessa conta, a correnteza estava chegando até mim. Pu-lei no poço imediatamente e nunca mais fui lá”. Atualmente o poço não recebe mais visitantes. Os 20 anos que se passaram fi-zeram com que o fato fosse esquecido pela população. Armando, por sua vez, não vai mais lá devido à idade e ao acontecimento que quase lhe tirou a vida.

o local onde fica o poço ainda possui um trilho por onde Armando e seus amigos passaram. Apesar de ter somente 22 anos, senti grande dificuldade de chegar lá. A história me impressionou não só pela ou-sadia, mas pelas dificuldades enfrentadas pelo grupo. O local por si é muito bonito. Para quem conhece o arroio é difícil pensar que haja um poço tão grande e profundo. Apesar de fazer quase 20 anos, é impressionante escutar Wappler, pois ele se recorda muito bem de tudo. No entanto, em minhas buscas por mais fontes, só encontrei duas pessoas que se recordavam da história, as demais não lembram ou já faleceram. Para mim foi muito gratificante poder recuperar uma história ligada ao meu município de origem.

Armando e seus vizinhos comemoram a secagem do poço (a direita). É marcado o ano da secagem dentro da caverna (acima, a esquerda)

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VALE A PENA AMAR O TEATRO?

Mesmo com as novas tecnologias e as dificuldades de seguir

carreira na dramaturgia, ainda é possível ter êxito nos palcos

TEXTO E FOTOS: MATEUS SOUZA

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19 horas. Inicia-se mais um espetáculo teatral em Santa Cruz do Sul. O público se acomoda e lota

o Espaço Camarim, um dos pontos cul-turais mais tradicionais da cidade. A peça inicia e todos estão atentos aos detalhes. Ou pelo menos a maioria. Há quem pre-fira, primeiro, pegar seu celular e anunciar

aos amigos nas redes sociais, perdendo segundos importantes da peça. A cena re-trata o que vem acontecendo não somente aqui na região, mas também no país inteiro.

Num país como o Brasil, onde a cul-tura muitas vezes é deixada de lado, será que vale a pena amar e se dedicar ao teatro? Com mais de três décadas de experiência, a professora, atriz e dire-tora Simone Bencke, 42, tem uma vida dedicada à arte. Desde sua infância, ela mostrava que o palco era o seu lugar favorito, onde se sentia bem. A paixão surgiu naturalmente em sua vida, pois é oriunda de uma família de músicos. Unindo o útil ao agradável, ela e seus primos passavam a se reunir para ou-vir música e fazer apresentações. Era apenas o início de um amor sem fim.

Formada em Teatro pela Universi-dade Federal de Santa Maria (UFSM), Simone vê a sua profissão como a hu-manização do ser humano, o que ajuda a explicar o tempo em que está envol-

O fascinante mundo do teatro, onde pessoas se tornam personagens e personagens viram pessoas (abaixo). A paixão pelos personagens: entre tantas histórias, Dom Quixote é uma das que mexem com a emoção de Simone (abaixo, ao lado)

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vida com a arte. No entanto, enxerga um grande problema na carreira, que é a dedicação integral. “Ao longo do tempo, consegui muito respeito e reconheci-mento. Mas para isso tive que trabalhar muito, precisei lamber o chão. Quem co-meça a fazer teatro hoje não pode achar que o mundo te abre as portas do nada”, alerta.

Parar para refletir também faz par-te da rotina de quem trabalha com o teatro. “Será que eu estou no caminho certo?”. “Tenho futuro trabalhando com teatro no Brasil?”. Repensar a profissão é algo mais comum do que se imagina, acredita Simone, que residiu em cidades como o Rio de Janeiro e até no exterior, em Portugal. Mas quando parece estar pronta para abandonar a carreira, alguma coisa surge e a faz seguir atuando nos palcos.

Pode até ser a fala de alguns dos seus inúmeros alunos e ex-alunos, dos quais ela se orgulha muito. “Muitas pesso-as para quem dei aula são formadas na área e estudam no exterior. Tem outros

que seguiram em outras profissões, mas adoram o teatro. Esse é o melhor retorno que poderíamos ter”, conta Simone, lem-brando relatos curiosos de um ex-aluno que levou a dramaturgia para a medicina, tornando um trabalho que, em tese, seria mais estressante, em algo mais humano.

Será que assistir a uma peça de teatro é interessante, em tempos de internet? A rede mundial de computadores é uma aliada, e, ao mesmo tempo, representa um perigo ao futuro das encenações nos palcos. O ponto positivo é que a inter-net ajuda a divulgar a realização de es-petáculos no mundo inteiro e permite uma integração maior entre os amantes do teatro. O lado negativo mostra que uma pessoa, mesmo que vá assistir a uma peça, pode pegar seu celular e ficar navegando, em vez de prestar atenção no que está no palco. “Falta conexão do público. Isto detona a arte, pois as pes-soas estão no lugar, mas é como se não estivessem”, lamenta Simone.

O Teatro Espaço Camarim se confunde com a história da cultura santa-cruzense. Surgiu em 2002 com um grupo de atores que decidiram alugar uma sede para pro-mover espetáculos de circulação regional e até estadual. Em 2007, o Espaço Camarim passou a funcionar no prédio da Rua Mare-chal Floriano, na esquina com a Rua Borges de Medeiros, ampliando o seu trabalho e oferecendo cursos para adolescentes caren-tes e também oficinas para a comunidade.

Mas a história do teatro em Santa Cruz começa bem antes. O grupo que Simone atua hoje sucedeu outros três. O primeiro e pioneiro é o do alemão Roman Riesch, que comandou o grupo de Tea-tro Riesch-Bühne, fundado na Baviera, na Alemanha. Ele desembarcou na cida-de em 1938 e ficou até o fim de sua vida. E teve uma enorme contribuição para Santa Cruz, não apenas pelos palcos, mas

também para o patrimônio da cidade, ao pintar parte da Catedral São João Batista.

Depois do Roman Riesch, surgiu, na década de 50, o Grupo Amador de Teatro Independente (GATI), o qual tinha como um de seus principais integrantes o filho de Riesch, Roman Riesch Filho. O palco das apresentações? O mesmo de seu pai, do grupo sucessor e também o que recebe os espetáculos hoje no Espaço Camarim.

O terceiro grupo que utilizou o palco do Espaço Camarim é o Grupo Teatral Polivalente, do qual Simone fez parte, ainda adolescente. Segundo ela, as peças das quais participou percorreram prati-camente todo o Estado. Com este grupo, ela participou da apresentação de Viúva Porém Honesta, peça teatral de Nelson Rodrigues, um dos principais escritores do século XX. “Com essa peça, lotamos um cinema com mil pessoas em Lajeado.”

TEATRO EM SANTA CRUZ

uma vez um professor me disse que nunca podemos morrer na primeira ideia. A fala, apesar do tom publicitário, também se aplica ao jornalismo. Minha pri-meira ideia de pauta era relacio-nada a Cachoeira do Sul, minha cidade natal e onde eu residia até a quinta semana da disciplina de Jornalismo de Revista. A mudan-ça de cidade e de rotina atra-palharam meus planos iniciais, mas me abriram a possibilidade de um assunto com o qual eu sempre simpatizei, mas nunca tive a oportunidade de escrever. E creio que escolhi muito bem o assunto. Acho esse mundo tea-tral fascinante. E foi muito bom ouvir de uma pessoa que traba-lha há três décadas com o teatro sobre a sua paixão pela profissão, num país onde o teatro não tem a valorização necessária.

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PROFISSÃO: MAQUIADOR DE CADÁVER

Em um meio onde a vida não é mais protagonista, os agentes funerários atuam como zeladores

do último sopro da existência

TEXTO E FOTO: ISADORA TRILHA

Lidar com a tristeza dos outros. É assim que Julio define o ofício para o qual se dedica há 24 anos: o de agente funerário. Dois casamentos acabados e muitas histó-

rias acumuladas depois, o santa-cruzense lembra que não escolheu a profissão na qual atua há tanto tempo. Aos 16 anos de idade, numa época onde trabalhar des-de cedo não era uma opção, mas sim obrigação, Julio deu início à carreira que o faria conviver com a morte em seu estado mais delicado. Influenciado pelo avô, amigo do dono de uma funerária de Santa Cruz do Sul, o menino que sonhava em seguir a carreira mili-tar não hesitou em começar a trabalhar como agente funerário. Quando completou a maioridade, Julio se alistou no exército e lá permaneceu durante um ano inteiro. Não chegou a completar o ensino médio, já

que estudar não era lá sua maior preferência. Ao en-cerrar o ciclo, ele voltou ao compromisso inicial e re-tornou às atividades fúnebres. Não teve opção.

Julio, que hoje trabalha em Rio Pardo, traz nos ges-tos calmos e na voz suave a reflexão da pacata rotina composta por horas inacabáveis. Acordar cedo, fazer a manutenção dos veículos da empresa, verificar se fal-tam materiais e, é claro, aguardar pelos atendimentos às famílias são algumas das tarefas de sua responsabi-lidade. Quando alguém o procura, porém, o trabalho mais árduo tem início. Tratar com tranquilidade a dor do outro é o que Julio faz de melhor. “Tu tens que ser forte, não podes fraquejar nunca”, diz. Entretanto, aquele que utiliza da força emocional como meio de ganhar a vida também já teve momentos de recaída. Não na frente dos familiares de quem morreu, é claro.

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No ambiente onde trabalha, Julio se vê cercado por objetos relativos à morte

Diante do sofrimento alheio, Julio se por-ta como uma rocha. Atende, orienta so-bre os próximos passos e passa a cuidar da preparação do corpo para o velório e o sepultamento. Não há tempo nem para cogitar a possibilidade de ficar triste.

A partir de então, começa o ritual. Recolhe-se o cadáver. Leva-se ele para a funerária. O agente em atividade, então, se encarrega de dar início à higienização. O processo é lento e é feito com muito cuidado. Respeitar os mortos também é tarefa de quem trabalha no ramo fúnebre. Após o banho, vem o tamponamento. Os algodões são meticulosamente alocados nos orifícios do corpo para que não haja vazamentos durante as homenagens póstumas. Produtos são utilizados para facilitar a tarefa. Julio, que aprendeu a preparação ao acompanhar o trabalho feito por familiares, procura tomar o máximo de cuidado para que tudo saia dentro dos conformes. As roupas, esco-lhidas a dedo pela família, são colocadas detalhadamente. Finalizado a arruma-ção, vem o “acabamento”. Unhas são pin-tadas, maquiagens são montadas, barbas são feitas. “Tudo depende da família, cada uma tem um jeito”, reforça.

Ao final do tratamento, o cadáver é levado para o velório e, após, para o ce-mitério. Muitos ainda resistem ao tentar entender o ofício do agente funerário. Para Julio, tudo não passa de um conceito pré--concebido que não dá conta da realidade. As comparações com profissões conside-

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falar sobre a morte, de um modo geral, é sempre perturba-dor. Encará-la de frente, então, nem se fala. Como repórter, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a história do Julio, um homem que vive esbarrando com o fim da vida diariamente. Devido à falta de informação, minha primeira impressão acerca do ofício de agente funerário era bastante restrita. Ao conversar com Julio, porém, pude entender melhor o que se passa na cabeça de quem trabalha nesta área. Os percalços, a falta de horários,

a distância da família e, acima de tudo, o controle emocio-nal exigido foram pontos que me marcaram de maneira intensa. É por isso que, invariavelmente, produzir repor-tagens sempre nos leva ao limite da experiência. Entender realidades completamente distintas e, a partir destas histó-rias, dar sentido à vida que descobrimos é extremamente interessante. Espero que os demais Julios que sobrevivem em função do fim alheio possam ser mais reconhecidos e compreendidos a cada palavra escrita.

radas mais notórias, como a de bombeiro ou de policial, faz dos que trabalham com a morte meros figurantes no cenário final. “Muita gente não dá bola para a profissão, somos conhecidos como os “papas-de-funto”, sabe?”. Apelidos à parte, Julio tem convicção de que o trabalho para o qual foi “empurrado”, como diz, em 1990, cor-responde a um importante papel na socie-dade. Sem os agentes funerários, quem iria recolher corpos e prepará-los com o maior cuidado para que tenham um fim de vida digno? Incógnita.

Desde muito cedo preparado para en-carar desafios, Julio nunca temeu enfren-tar dramas e situações difíceis durante o exercício da profissão. Recolher corpos de crianças em meio a destroços de um in-cêndio ocorrido em Rio Pardo foi uma ex-periência extremamente marcante para o santa-cruzense. Sentir a pequena silhueta de um bebê amolecer em suas mãos quan-do auxiliou na retirada das vítimas de um incêndio ocorrido no bairro Ramiz Gal-vão, em Rio Pardo, é algo que Julio tenta esquecer diariamente. “Tem que levantar a criança dali, né?” lembra. A força para não fraquejar em momentos como este é a cha-ve para ser um bom profissional. Endure-cer o coração não é opção; é regra.

Ainda quando jovem, no início de sua trajetória como agente funerário, Julio presenciou o suicídio do avô com um tiro na cabeça. Mesmo sem entender, o jovem foi responsável por preparar o corpo do idoso como se fosse um cliente qualquer.

Sem hesitar, sem chorar. Logo depois, veio a morte do pai. Mais uma vez, Julio estava pronto para o que tivesse que ser feito. “Tive que ser forte, né?”. Entender a dor dos outros, de certa forma, é compre-ensível depois de certo tempo exercendo a profissão. Entender a própria dor, ter que superá-la e, enfim, canalizá-la para os fins práticos é extremamente mais com-plicado. É quando o outro passa a ser a si próprio. É o Julio neto lutando contra o Julio profissional. Nesta batalha, vence quem consegue deixar o coração em es-pera por algumas horas.

Apesar dos desafios sentimentais, o que mais incomoda Julio é a falta de tempo para desfrutar da família. A rotina contur-bada, sem horários definidos, faz com que a atual esposa – com quem está junto há oito anos – e os cinco filhos acabem fican-do em segundo lugar às vezes. Dois deles foram frutos de outros relacionamentos acabados devido à profissão: as ex-com-panheiras de Julio não aceitavam ser “tro-cadas” pelos compromissos da funerária. Mateus, de 5 anos, conta para os colegui-nhas, orgulhoso, que o pai é responsável por levar os mortos para o cemitério. Já o mais velho, de 18 anos, já avisou para quem quiser saber que pretende seguir os passos do pai; também quer ser agen-te funerário. Numa tentativa frustrada de reverter o quadro, Julio recebeu como resposta a convicção de quem pode es-colher o que fazer do futuro.

Quanto à esposa, o amor foi supe-

rior às adversidades. Lediane, que mora em Santa Cruz com os três filhos, acos-tumou com as idas e vindas do amado. Chegou a participar de uma das viagens que Julio fazia quando trabalhava em Caxias do Sul para vivenciar um pouco da experiência do marido. Não aguentou. Achou muito cansativo. Mesmo com pouco tempo e muitos afazeres, o casal concilia a vida sem horários com mui-ta parceria. Julio reside na casa alocada junto à funerária onde trabalha em Rio Pardo. Porém, quando há um tempinho sobrando, não pensa duas vezes: segue rumo a Santa Cruz do Sul para dar um abraço nos filhos e um beijo carinho-so na mulher. “Ela já tá acostumada, tá sempre junto”, conta, faceiro.

Ao final de cada dia, com a sensação de dever cumprido, Julio verifica cada sala da funerária, confere se está tudo em ordem e, por fim, apaga as luzes e se dirige para casa. Acompanhado da falta que sente da família e muito comprome-timento, ele encerra as atividades diárias sob o peso da responsabilidade de lidar com o fim da vida alheia. É a profissões como esta que pessoas como Julio de-dicam uma existência inteira. Força, controle emocional, sangue frio e muita paciência integram a base dos pilares dos maquiadores de cadáveres, pessoas que muitas vezes não escolhem o trabalho que fazem, mas que o acolhem como um dever supremo. Sem elas, o fim não teria amparo. Sem elas, o fim não tem fim.

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QUANDO DEZEMBRO

CHEGARPara muitos, um ponto turístico e ambiente de lazer em Santa Cruz do Sul. Para outros, um cantinho

que chamam de casa

TEXTO: NATANY BORGES | FOTOS: ANDRÉ THIES

Quando dezembro chegar, Noeli Este-la do Nascimento, 44 anos, chegará em casa após o trabalho e vai encontrar um lugar diferente. Ao invés de assentos de es-

critório encontrados na rua, ela terá um sofá para decorar a sua sala de estar. Quando dezembro chegar, a catadora e o marido, Luciano de Souza, 41, terão uma geladeira e não mais um muro para depositar os alimentos que hoje ficam a mercê de cães e das condições climáticas. Nesse mês, o casal vai usufruir de um quarto privado e deve abando-nar os cômodos separados por finas camadas de caixas de papelão onde os colchões são dispostos em cima do gramado. É finalmente em dezembro que os santa-cruzenses terão uma casa para cha-mar de sua e não mais a pequena área localizada ao lado da antiga Estação Férrea de Santa Cruz do Sul. Terreno este que, a céu aberto, é desprovido de qualquer estrutura para proteger as seis pesso-as que ali convivem. A simplicidade da anfitriã, no entanto, a desprende de encarar a atual realidade com qualquer toque de sofrimento. “Só não repa-

ra que hoje está meio bagunçado. Mais tarde vou fazer uma geral aqui”, conta ela em tom de preo-cupação, pois não admite receber visitas sem estar com a “casa” em ordem.

Os parceiros da atual moradia Ivan Gioni Kehl, 40, Sandra Palma, 30, Jair Lopes, 46 e Edinei Soares, 18, dividem as despesas com o casal responsável pelo local. “Agradeço a mãezinha e ao papaizinho. Se eles me ajudam, o mínimo que posso fazer é retribuir organizando as latinhas, plásticos e demais resí-duos”, afirma Kehl em tom de carinho. E o coração solidário de Noeli retribui. “Aqui a gente sempre encontra um cantinho para mais um. Aonde come um, comem dois, três, quatro”, reforça.

A prática de conviver na rua, Noeli aprendeu há quatro anos. Foi em 2010 que ela e o marido deixa-ram a casa onde moravam no Bairro Pedreira para desbravar o espaço situado junto a Praça Siegfried Heuser. O motivo? A alta do aluguel. “Primeiro era R$ 100,00, depois R$ 120,00, até que não tivemos mais condições de pagar”, explica. Foi então que o casal decidiu deixar a filha Andressa - na época

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com 4 anos - sob os cuidados da mãe de Luciano para apostar na profissão de catador. Hoje, os pais a visitam todos os fins de semana, mas a prole de Noeli é bem mais numerosa. Cabisbaixa e com um misto de vergonha e tristeza na fala, contabiliza: “Como é que eu posso te di-zer... Tenho 11 filhos, mas só duas são do Luciano. O resto está pelo mundo”. Aos poucos, após retomar o fôlego, ela conta o paradeiro de um dos meninos que batizou com o nome de John Lenon, por achar o vocalista dos Beatles um ‘charme’. “Ele é professor de música e esses tempos veio aqui para me tirar da rua. Mas eu disse que não vou. O Luciano me trata bem e logo vamos sair daqui.”

A certeza da santa-cruzense para resis-tir ao convite do filho tem nome e data para ganhar forma. Foi ainda em abril deste ano que, após se inscrever no programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, foi contemplada com uma residência no Loteamento Bem Viver, situado no Bairro Carlota. A futura moradia que Noeli deve se apropriar a partir de dezembro terá 40 metros quadrados e vai contar com dois dormitórios, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e calçada no entorno. Uma casa completa que a fará deixar de lado o ba-nheiro público como opção de dormitório quando chove e o banho com pano úmido para aderir ao chuveiro.

O desejo dos cônjuges é levar os ami-gos junto para a nova casa, nem que seja para fazer um “puxadinho” no terreno que consideram extenso. Entretanto, a futura dona de casa já avisa que nesta próxima fase, a rotina que pretende levar sofrerá algumas mudanças. “Na minha casa nova não entra bebida e eu já falei pro Luciano. Quero me converter para a igreja evangélica e quando temos Jesus no coração não são aceitos vícios”, relata.

Com um pouco mais de conversa, ela ad-mite que o marido é alcoólatra.

Neste momento uma porção de sen-sações são evidenciadas em um olhar que mescla tristeza e esperança. São os sonhos de Noeli que batem em sua porta imaginária e a orientam não desistir das pessoas que ama, muito menos daquilo que chama de vida. Afinal, quando de-zembro chegar, tudo vai mudar.

CANTINHO QUE SURPREENDE

Na segunda visita ao espaço, Noeli e Luciano não estavam, pois dedicam o fim de semana para ir ao encontro da fi-lha Andressa. O recepcionista daquele sábado nublado, portanto, foi Ivan Kehl. Ao contrário da primeira ida ao local, em que o sol brilhava na companhia dos pás-saros, o ambiente estava parecido com o dia: insólito e sem cor. Sob o efeito do álcool, o catador aparentou uma perso-nalidade explosiva. Às vezes feliz, outras tantas emotivo, o ex-pedreiro pediu aju-

da. “Ei, psiu, me tira daqui? Eu quero sair da rua”, suplicou. Há dois meses e meio no local, o amigo do casal admitiu que também tem problemas com bebida. No entanto, se recusa a procurar tratamento. “Já fui para o albergue (veja box), só que eu não gostei. Me desculpe o “palavriado” aí, mas achei um ‘saco’’, lamenta.

Sem muito rumo em seu discurso, ele tentou, de todas as formas, encon-trar um ombro amigo para desabafar. E a carência, de repente, veio à tona como um corte abrupto no peito. “Meu pai foi assassinado há muitos anos e com a mi-nha mãe eu não falo mais. Ela e a minha irmã me impediram de entrar em casa e eu nunca mais as procurei”. De cabeça baixa e se dizendo incapaz, Kehl recebe apoio do parceiro de morada, Jair Lopes. “Quero ver um pedreiro melhor que esse. É só procurar as casas que ele já ergueu. Eu já vi e sei o que estou falando, o cara é bom.” E o sorriso retorna aos lábios do catador, que mesmo enfrentando aque-le cantinho a poucos metros da estação

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férrea, com alguns contratempos, sabe que a amizade e o companheirismo dos colegas o fortalecem.

OPÇÃO PARA O DESCASO

Além de viver na rua, os moradores da antiga Estação Férrea têm em comum a convivência no Albergue Municipal de Santa Cruz do Sul. Noeli e Luciano saíram de lá porque, dizem, preferem a rua. Já Ivan não se adaptou às regras. Jair – também alcoólatra- recaiu e o jovem Edinei ainda frequenta o local. De acordo com a assistente administrativa da casa, Camila Lopes, hoje o espaço oferece dois tipos de programas. Através da ronda social, os monitores recolhem, todos os dias, às 8h e às 22h, pessoas que estão em situação de vulnerabilidade pelas ruas do município. Neste processo, elas po-dem tomar banho, fazer refeições e ain-da dormir no local. “Contando almoço e pernoite, cerca de 50 pessoas passam pelo albergue por dia”, conta. Em alguns

casos, quando os usuários são encontra-dos sob o efeito de entorpecentes, tam-bém são encaminhados para o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas de Santa Cruz do Sul (CAPS AD III) ou para a Casa de Saúde Ignez Irene de Moraes, o popular hospitalzinho. A aderência ao tratamento proposto, no entanto, depende da vontade de o indi-víduo aceitar ajuda. Camila ressalta que se as intervenções apresentarem resul-tados positivos, os sem teto também são encaminhados para a assistência social do município. Enquanto isso, o projeto Casa da Cidadania oportuniza à alber-gagem tratamento para a ressocialização e também oferece emprego para quem mostra resultados de recuperação.

Uma possibilidade que Ivan Kehl co-meça a reconsiderar. “Quem sabe eu não volto pra lá e me arranjam um emprego como pedreiro?”, sonha o morador de rua que olha a vida passar em meio às famí-lias que passeiam na praça... Imaginando, um dia, construir uma.

Parte I: Entre todas as pautas que já produzi, posso falar tranquilamente que esta foi uma das que mais me emocionei. Enquanto estive conver-sando com os moradores daquela pequena área, o tempo pareceu não passar. Foram horas ouvindo histórias e experiências de vida que só me fize-ram ter uma certeza: Noeli, Luciano, Jair, Ivan, Sandra e Edinei são heróis. E mais. O contato com aquela simplici-dade me fez olhar para dentro. Por que eu tenho uma casa, um trabalho, uma realidade sem passar por dificuldades e aquelas pessoas não? Se não encon-trei resposta para esta pergunta, ao menos fui ao encontro de um caminho para melhorar o meu ser. Voltei para casa e olhei em minha volta. Agradeci por tudo o que tenho e imediatamente fui dar um beijo na minha mãe que ainda dormia.

Parte II: A solidariedade também floresceu. No fim de semana posterior à primeira visita preparei algumas marmitas com arroz, feijão, purê, carne e lasanha e levei ao local. Uma semana depois, eu e meu namorado – o autor das fotos - entregamos blusões, bonés e agasalhos que nem todos possuíam. Sei que não mudamos aquela realida-de, mas ao menos amenizamos um pouco do frio e da fome que ali existe e ainda ganhamos novos amigos, já que o convite para retornar ao local foi mais do que reforçado.

Área localizada ao lado da Antiga Estação Férrea abriga seis moradores de rua que tiram do lixo o seu sustento. Na casa imaginária, cômodos são separados por finas camadas de papelão

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A trajetória de dois jovens entre o exercício da carreira militar e a ajuda humanitária

TEXTO: JOÃO JUNQUEIRA | FOTOS: ACERVO PESSOAL

HAITI: ENTREIDAS E VINDAS

Há dez anos, o Brasil foi designado pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) para chefi ar a chamada Minustah, sigla em francês para Missão das Nações Unidas

pela Estabilidade no Haiti. A operação militar foi defla-grada para a reconstrução de um país violentado pela po-lítica corrupta e seus ditadores, além de ver suas mazelas sociais expostas para o mundo graças aos escândalos que pipocavam após a deposição do então primeiro presi-dente democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide. A revolta armada da população, no começo de 2004, foi o ponto final para a interferência da ONU no mesmo ano.

Milhares de quilômetros distantes de Porto Príncipe, capital do Haiti, em Santa Cruz do Sul algumas centenas de jovens ingressavam na atividade militar. Para o jovem Rafael Giovane de Oliveira, o ano de 2004 não represen-tou muitas mudanças, mas o que viria a seguir reservou fortes emoções. O Santa-cruzense de 31 anos guarda, em sua memória, bons momentos vividos durante os sete anos em que serviu ao Exército Brasileiro. Rafael desejava a carreira militar graças às inspirações de dentro de casa. Além do irmão mais velho, seu tio também participou do serviço militar. Porém, somente Rafael engajou nas fileiras do Exército. Foram sete anos de muito aprendizado, ami-

zade e, claro, aventura. Em 2004, quando o Ministério da Defesa brasileiro assumiu o controle da Missão de Paz no Haiti, ele vislumbrou a chance de unir seus dois principais objetivos no momento: viajar e ajudar ao próximo.

Em 2003, após todos os trâmites e exames para novos recrutas, o jovem logo virou soldado Rafael. No mesmo ano, realizou um curso de três meses, para, dois anos de-pois, ser promovido a Cabo. Obcecado pela rotina mili-tar, Rafael se inteirou das mais diversas atividades, como, por exemplo, pilotar blindado e ser mecânico do veículo.

Na primeira participação do quartel santa-cruzense para fornecer contingente para a Missão de Paz que ainda ten-tava controlar os rebeldes haitianos, em 2007, Rafael foi vo-luntário junto com cerca de 600 soldados. “Fizemos muita preparação em finais de semana em Santa Maria e aqui no 7º BIB. Lá em Santa Maria a gente teve instrução com o pessoal dos Comandos, que é a tropa de elite do Exército. Eles nos davam muita preparação de tiro e de manuseio do armamento”. Rafael revela que havia tensão e expectativa antes da ida para o país caribenho, pois borbulhavam re-latos sobre troca de tiro com os rebeldes. “A gente foi bem tenso mesmo, para trocar tiro, como numa guerra. Mas de-pois de uma semana a tensão passou porque o contingente anterior ao nosso tinha pacificado o Haiti.”

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Embora a apreensão inicial tivesse sido acalmada logo no início dos seis meses que passaria lá, Rafael revela os horrores que presenciou. “O país em si era um hor-ror, muita poluição, esgoto a céu aberto, e com o clima abafado, o cheiro era horrível”. O ex-Cabo do Exército e hoje corretor de imóveis, guarda histórias peculiares sobre o país mais pobre das Américas. Ele conta que após o território entrar em crise finan-ceira profunda e as forças armadas serem extintas, o governo ofereceu armamento e munição para os civis que estavam dis-pensados das obrigações militares haitia-na como forma de pagamento. Com isso, a revolução armada, partindo da cidade de Gonaïves - 150 quilômetros ao sul de Por-to Príncipe -, começou.

No Haiti, Rafael habituou-se a viver e trabalhar sob pressão. Durante as rondas noturnas, a penumbra era completa nas ruas da capital do país. Sem sistema de iluminação pública e munido apenas das lanternas e faroletes dos veículos blindados, a atenção era redobrada durante as incur-sões. O ex-militar também conta a inexis-tência de animais de estimação no país,

assim como a dificuldade em se obter água, por parte da população. “Não se via bichos nas ruas, tudo virava comida. E a água deles basicamente dependia da ajuda humani-tária, que doava saquinhos de 100 ml para a população pelas ruas, mas comprar água em bares ou mercado não existia”.

Para Oliveira a oportunidade de viver in loco a tensão de uma atividade militar real jamais vai ser esquecida. “Lá não ti-nha margem para erro. Era tudo de ver-dade: os tiros, as munições, tudo. Aqui a gente treinava, mas dava pra ter momen-to de brincadeira, lá não tinha essa”. Ra-fael conta ainda sobre as mortes que pre-senciou e algumas brigas, muitas vezes por comida. “Eu vi uma criança morta, provavelmente a pedradas ou pauladas, na rua. A gente fez um cerco para não ter aproximação das pessoas, mas não pega-mos nenhum envolvido”.

Rafael ficou por seis meses no país da América Central. Depois do trabalho feito, aproveitou duas semanas de descanso em Miami e Orlando, nos Estados Unidos. Na preparação para a Missão de Paz, além das instruções de tiro e estratégias de guerra,

teve aulas de crioulo, língua nativa caribe-nha considerada oficial junto com o francês.

Do mesmo modo, Diogo, aos 25 anos de idade é Sargento formado pela EsSa (Escola de Sargento das Armas) e espera encontrar muitas dificuldades no Haiti. “Eu penso que será uma situação muito precária. Não existe iluminação pública, falta estrutura para transporte público e o sistema de saúde é muito precário”. Além dos percalços na teia social do país, provavelmente ele encontrará caracterís-ticas alertadas por Rafael. “Lá não tem gato, cachorro nas ruas, ou animais de estimação. A população toda passa mui-ta fome, então como último recurso eles comem esses bichos.”

Atuante no 7º BIB desde 2012, Diogo se preparou para estar entre os escolhi-dos para participar da Missão. Além das avaliações físicas, tradicionais no quartel quando envolve qualquer possibilidade de combate ou competição, o Sargento de Comunicação precisou frequentar cursos específicos para desenvolver competência necessária a fim de ser o responsável da comunicação dos combatentes no Caribe.

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ano passado iniciei um curso de língua francesa. Eu dizia que era como nascer de novo. Eu teria que aprender a falar. Pois ao contrá-rio do inglês, não é comum ter contato com este idioma antes de estudá-lo. Na reportagem sobre os militares santa-cruzenses no Haiti foi a mesma coisa. Precisei pesquisar com cuidado a história política do país para entender a necessidade da Minustah (Sigla em francês para Missão das Nações Unidas pela Estabilização do Haiti). Frente a isso, fui realizar as entrevistas, e utilizando de algumas amizades paralelas cheguei ao Rafael Giovane de Oliveira, ex-Cabo do 7º BIB, sediado em Santa Cruz do Sul. Com muitas histórias sobre os seis meses em que passou lá, foi preciso um apanhado geral para não alongar muito o texto e ficar confuso. Já com o Sargento Diogo Pilz foi mais complicado. Apesar de ser meu amigo de infância, não foi fácil convencê-lo a falar. Apesar disso, saiu uma história interessante. E ao contrário do curso de francês, a reportagem foi concluída.

O auxilio do contingente brasileiro vai além da segurança das ruas (a esquerda). Interação entre as nacionalidades, Rafael e paquistanês (abaixo, a direita)

Ao contrário de Rafael, o Sargento Diogo é militar de carreira. Em 2009 foi aprovado no concurso para Sargento Combatente da EsSa. Fez a primeira fase do curso de formação de sargento no período básico durante meio ano em Altamira, sul do Pará, e passou um ano na cidade de Três Corações, Minas Ge-rais, para concluir o curso e se qualificar em Comunicação. Após essa jornada de um ano e meio, definiu o 7º Batalhão de Infantaria Blindado, de sua cidade natal, Santa Cruz do Sul, como sua primeira organização militar para servir, de fato, como Sargento formado pela EsSa.

Decidido a ir para o Haiti assim que ingressou na Escola de Sargento das Armas, em 2010, Pilz precisou viajar até Brasília, em setembro deste ano, para ter aulas sobre o sistema de comunicação do Exército. “Nós fizemos contato com o pessoal do Haiti e tivemos noção do que ocorre lá e das atividades que irei desem-penhar no local que é cuidar dos rádios das patrulhas e das viaturas e do sistema interno de comunicação”. Diogo ainda será o “salva-vidas” dos laptops pessoais dos participantes da Missão.

Cada um desempenhando com ex-trema perícia suas funções determinadas, os dois jovens, Rafael e Diogo, de alguma maneira contribuem para a reconstrução de um país famigerado, cercado pelas mais belas praias do Caribe. Rafael exe-cutou sua Missão de Paz fazendo rondas de segurança, garantindo a ordem duran-te o período mais crítico da presença bra-sileira no Haiti. Já Diogo se prepara para um momento de transição. Completados dez anos da Minusta, vê como oportuni-dade de por em prática toda a preparação da sua carreira militar até então.

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TUDO ISSO TEM NO BOM JESUS

Rotulado por ser um bairro violento, adolescentes e moradores descrevem

o que o local tem de bom

TEXTO E FOTOS: FÁBIO FELÍCIO

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O clima primaveril gaúcho ornamenta uma manhã per-feita de céu mais que azul. O vento sopra e leva consigo as

flores do imponente Ipê roxo. No campo de futebol, o “sentinela dos pampas” faz guarnição ao filhote. Crianças voam de bicicleta. Logo atrás, uma matilha de vi-ra-latas acompanha as peripécias da mo-lecada. O sol, ainda tímido, aquece a roda de chimarrão das senhoras. As ruas, becos e vielas pouco mudaram, dando a impres-são de que voltei ao passado. Um passeio guiado pelas lembranças da infância e da adolescência. Pena que, mais à frente, o cenário perfumado pelas recordações do passado é dilacerado por uma estrutura protegida com arames farpados. Aí, vem à tona a realidade vivida no bairro.

O Bom Jesus já não é mais o mesmo. A armação superprotegida que osten-ta uma câmera de alto alcance reforça a crítica situação do Camboim, como é conhecido o povoado que surgiu dentre um acampamento para trabalhadores do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (DAER), que construíram a BR- 471 e a RS- 409. Em volta do acampa-mento havia muitas árvores de camboim, que são comuns em torno de ribeiras, já que o território fica próximo ao Rio Par-dinho. Daí surgiu o apelido deste que é o

segundo bairro com maior população de Santa Cruz do Sul. Dados da Polícia Ci-vil apontam o Bom Jesus como campeão nos índices de violência. Números que chateiam e distorcem todo sentimento de conforto quando venho ao local. A busca pelo controle do tráfego de drogas já contabiliza mais de cinco mortes. Se-gundo a Brigada Militar, no primeiro se-mestre de 2014, foram apreendidos mais de 300 quilos de entorpecentes. Núme-ros que preocupam e que reforçaram a necessidade da instalação de uma câmera de segurança no bairro. Um olhar digital para o controle de atos ilícitos de algu-mas pessoas que mancham toda a ima-gem do Camboim. Mas, um bairro com mais de cinco mil habitantes, não pode só ter pontos negativos, como normalmente é veiculado em jornais e, até mesmo, em conversas cotidianas. O Bom Jesus é um lugar bom para viver e curtir.

Para confirmar isso, fui até a Escola Municipal de Ensino Fundamental Bom Jesus - onde cursei meu ensino fundamen-tal - conversar com os alunos do oitavo ano. Como já faz mais de dez anos que não moro no bairro, procurei dialogar com aqueles que serão o futuro do local.

Numa manhã produtiva e agradável, tive um bate-papo com a turma 181, co-mandada pela professora Glaucia Weg-

O campo de futebol foi apontado pelos estudantes como o melhor local do bairro, seguido da hospitalidade entre os moradores do cambuim, indicado como melhor aspecto do Bom Jesus

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mann. Primeiramente percebi, com as perguntas feitas, que a universidade pa-rece algo distante da realidade da mole-cada. Partindo daí, fui expondo ideias, trabalhos, projetos do meio acadêmico. No decorrer da conversa veio a confirma-ção de que o senso comum da sociedade santa-cruzense, em pensar que no bairro não há pontos positivos, afeta diretamen-te na autoestima dos jovens moradores. Dessa forma, pude fazer a pergunta cha-ve: o que o Bom Jesus tem de bom?

Um silêncio toma conta da sala, mas não me preocupo. Pois, vejo que a turma tem muita coisa a dizer. O brilho nos olhos dos discentes pede a fala. Na verdade, creio que essa foi uma pergunta nunca feita antes. E eles buscam a resposta certa para uma in-finidade de coisas que permutam na mente.

O aluno Tiago Ferreira diz que o bairro não é perfeito, como todos os ou-tros lugares, mas que “quem vive aqui, sabe muito bem que é um lugar bom de morar”. Gislaine Vaz complementa: “Minha prima paranaense tinha medo de vir. Insisti que viesse. Demorou, mas quando ela passou um tempo aqui, não queria mais voltar para casa. Curtiu muito o bairro”. Lucas dos Santos pede licença e fala que o local “tem muita gen-te trabalhadora, esforçada e capaz. É ní-tida a evolução do bairro.”

Nesse ritmo, um panorama de fatores positivos vai tomando forma. Aí, a garo-tada fala do atendimento dos dois Postos de Saúde do bairro. Neles, além de aten-dimentos eletivos e periódicos, é adotada a Estratégia Saúde da Familiar, em que a equipe vai às casas dos moradores para ver de perto a realidade de cada família. Quem faz a visita é o agente de saúde, ou melhor, a simpática Maria Jôse Cavag-nolli. Ela atende um número definido de famílias. Jôse comenta que sua visita vai muito além da coleta. “Para muitos, é um momento para receber um amigo; tomar um chimarrão; trocar ideias.”

Jôse atende a família de Eloísa e Eli-rio Felicio que há 31 anos lideram o Gru-po de União e Consciência Negra no qual nasceu da necessidade em assumir a identidade afro-brasileira dentro do bairro. “Estudar e resgatar a cultura afro foi muito positivo, pois, além de muitos moradores se identificarem com o pro-jeto, podemos mostrar para a sociedade que estamos aí para construirmos jun-tos um mundo melhor. O importante era abrir o espaço. Iniciar a caminhada”, diz Elirio. Com a promoção de eventos relativos à cultura afro-brasileira, o gru-po já despertou em outras comunidades o gosto pela cultura negra e fé, já que é ligado à pastoral da Negritude.

Todo ano, no terceiro sábado de no-vembro, é realizada a missa afro na Igreja Conceição, em referência ao 20 de novem-bro - Dia da Consciência Negra. Nela, a partir da cultura afro, os integrantes e a comunidade louvam e agradecem a Deus o dom da “negritude” com danças, cantos e rezas em yoruba - dialeto africano.

Outra personalidade do bairro é Ala-ídes Nopes, ou melhor, a tia Laídes. As-sessora do Grupo de Jovens Unidos pela Paz há mais de 30 anos, ela acredita que a comunicação é essencial dentro de uma comunidade. “Não adianta gritar com as crianças. Temos que entendê-las, amá-las, abraçá-las. Jovens e crianças são o reflexo de uma sociedade. Se elas são mal educa-das ou arteiras, foi por falha da sociedade num todo. Temos que ter isso em men-te”, diz a senhora com garra juvenil para mudar a cara do bairro. Uma dessas ini-ciativas é a atual menina dos olhos da tia Laídes: a biblioteca comunitária da igreja. Foram dois anos de trabalho duro para construir a estrutura e catalogar os livros doados pela comunidade e por algumas empresas. Quem tiver interesse pode ligar para o telefone (51) 37155384 ou ir até a Rua Padre Luiz Muller, 441 - Igreja Nossa Senhora da Imaculada Conceição.

Atitudes como a da tia Laídes ale-gram Mônica Ruhoff Specht, professora

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há 25 anos da escola Bom Jesus. Além de trabalhar com o conteúdo específico de cada série, a professora busca, aplicando dinâmicas de grupo, desenvolver valo-res e a autoestima da garotada. “Hoje não adianta ter a formação apenas, é preciso trazer esse conhecimento para a vida, dando uma melhor contribuição para a comunidade”, conta.

Mônica também é moradora do bair-ro e diz que não troca o Bom Jesus por nada. “Vi este bairro crescer, a escola evo-luir. Olho da janela da escola e tenho uma visão privilegiada. Trocar tudo isso pra quê?”, fala com um largo sorriso contem-plando, da janela da sala de aula o Lago Dourado e o verde dos morros do vale.

No bairro, as mães corujas e super-protetoras ganham destaque. Dione Souza é um exemplo. Ela ensina, para seu filho Kevin de 10 anos, que aprendeu desde cedo a se virar para conseguir o que queria. Mas, nunca procurou a ma-neira mais fácil. “Sempre digo para meu filho: cada um colhe o que planta. É difícil trabalhar um mês para ganhar o que eles

(tráfico) ganham em um dia. Mas durmo com a consciência limpa”. Apontando fa-tos negativos ocorridos no bairro, Dione passa seus ensinamentos ao filho e deixa a mensagem: “Um filho vive do exemplo da família. Não me queixo de trabalho para que ele entenda que se quiser algo, terá que trabalhar duro.”

A mãe de Dione, Carmen Souza, pa-rece que ensinou isso muito bem. Pois, além de Dione, outro de seus filhos tra-balha forte em prol das melhorias no bairro. Jeferson Souza é coordenador do Centro de Referência da Assistência So-cial (CRAS) que funciona como porta de entrada para o amparo das vulnerabilida-des sociais do bairro. Lá o foco principal é o trabalho de serviços de convivência e fortalecimento de vínculos, atendendo crianças de 6 á 12 anos no turno oposto às aulas, onde são oferecidas oficinas de artes, esportes e reforço escolar.

Dentre os trabalhos em destaque no centro, estão o Pelotão Mirim - coman-dado pela Brigada Militar, que utiliza as instalações do prédio para as atividades -

e o Projeto Casa de Prata - parceria com o Senac Santa Cruz - onde alunos e volun-tários utilizam caixas de leite vazias para revestir chalés de moradores carentes do bairro. “A comunidade antes tinha receio para contatar o CRAS. Agora, como me conhecem, tudo é mais fácil para eles. So-mos uma grande família que busca sem-pre o melhor para todos”, diz Jeferson, mais conhecido como Redondo.

Quem também faz o melhor, mas com um precinho camarada é o casal Heinz e Iracilda Staats que viram, na oportunida-de de oferecer um produto de qualidade com o menor preço, uma forma de aumen-tar a renda familiar. Iracilda faz sorvetes há mais de 15 anos. Tudo começou como hobby e, quando se deu conta, já estava com mais de cinco freezeres lotados de sorvetes. “Foi rápida a procura. Tudo na propaganda boca a boca. Amo o que faço”, diz Iracilda. Já seu Heinz, vende o sorvete com muito humor e descontração. “Pro-porcionamos um produto de qualidade e acessível para todos. E de quebra, tem o meu atendimento”, brinca aos risos.

Alunos da Turma 181 são a nova geração do Bom Jesus (abaixo).

Preservar e resgatar a identidade Negra esse é o lema de Elirio e Eloisa Felicio (a direita)

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E o sorriso foi a grande marca dessa matéria. Por todos os lugares vi e “senti” os sorrisos. Sempre belos, largos e cintilantes, foram unanimes em todas as narrativas. Uma verdadeira corrente de esperança e convívio. Dentre a contribuição da tur-ma 181, teve um lugar e um aspecto que ganhou destaque na conversa: o famoso campo de futebol - que faz referência ao bairro -; e a amizade entre a vizinhança. Como disse o aluno Emerson Ristow: “O Bom Jesus é um bairro que todo mundo se ajuda, todo mundo se conhece. Aqui, o que prevalece é a amizade.”

Ver a mudança, a evolução, pernear pelas ruas, tomar chimarrão com amigos e conhecidos, entender essa nova era do bairro, sentir o cheirinho da sala de aula, rever professores e bater um papo com eles... foi fascinante. Mas o mais impor-tante foi sentir que o bairro estará nas mãos de jovens conscientes que estão engajados na busca de um futuro melhor, com infinitas possibilidades. O lado ruim do Bom Jesus está com os dias contados. Essa é a promessa da nova geração.

fazer a reportagem foi um desafio. Pois tive que me distanciar para ter uma real con-tribuição. Voltar à escola onde dei meus primeiros passos para o conhecimento foi mágico. A melhor parte da reportagem foi o tour pela escola, onde a professora Mô-nica me conduziu em cada cantinho da EMEF Bom Jesus, mostrando as mudanças e melhorias. Quando fomos para o andar superior do prédio antigo do colégio, mi-nhas pernas bambearam. Me deparava com a mesma escada, o mesmo desenho daque-le tempo. Foi nostálgico. O cheirinho das salas, os livros da infância que encontrei na biblioteca, as professoras... Tudo muito legal. Fiquei fascinado pelas oportunidades que o bairro oferece aos jovens. Confesso que tive inveja, mas também, dei um toque (puxão de orelha) aos novinhos, pois, no meu tempo, não havia nada disso!a

“Proporcionamos um produto de qualidade e acessível para todos. E de quebra, tem o meu atendimento”, diz Heinz

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O MENINO QUE QUERIA VOAR

Quando desejos de infância começam a tomar forma

TEXTO E FOTOS: LUIZA ADORNA

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Crianças costumam ter os mais intensos sonhos. Al-guns querem tornar-se as-tronautas. Outros querem

ser personagens dos contos de fadas. Meninas querem ser princesas, en-quanto os meninos desejam salvar o mundo com uma capa vermelha e co-ragem no olhar. É o caso de Gilvan Fle-ck, agricultor, 29 anos, cabelos negros e humor nas palavras. Gilvan, com 8 anos de idade, já queria voar. Mas, não como os herois dos desenhos anima-dos. Aos 12 anos, o garoto construiu a estrutura de um avião, com oito me-tros de largura e dois de comprimen-tos, utilizando ferros de uma barraca. A hélice fez de madeira. Mas, seu pai

não o deixou revestir as asas e tentar fazê-lo voar. Era apenas uma criança. Até pouco tempo, os restos daquele sonho não realizado e, aparentemen-te, impossível, ainda estavam guarda-dos na casa de sua mãe. Lembrança de um sonho que ainda não morreu.

Quem o vê contar, parece surreal. Mas, já são 21 anos de sonho, estudo e tentativas. Essa paixão começou quan-do, aos 8 anos, foi convidado por um piloto de avião agrícola a dar uma volta com ele em uma das aplicações de uréia nas lavouras. O garoto, que cresceu no campo, experimentou a sensação de estar perto das nuvens e nunca mais pa-rou de pensar nelas. Quando a internet passou a ser mais presente na vida das

Com asas deltas, motor de motocicleta e muito amor, o sonho comeca a tomar forma

(primeira, a direita). Metade fusca, metade triciclo, o trifuca foi inventado para auxiliar nas

atividades rurais (segunda, a direita)

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pessoas, Gilvan já era adolescente e co-meçava a pesquisar sobre aviação. Os ví-deos escolhidos não mostravam apenas o voo. Ele queria mesmo era saber como as pessoas conseguiam construir aquela “máquina de voar”. Já casado, ele, a es-posa Lisane e a filha Evelyn passaram a frequentar exposições aéreas em Santa Maria. As duas mulheres de sua vida sempre estiveram ao seu lado. O sonho apenas aumentava. Gilvan já era adulto, mas ainda mantinha o mesmo desejo de criança em seu coração.

Desde a infância o garoto gostava de inventar coisas e sabia lidar com ques-tões mecânicas e elétricas. Nunca nin-guém o ensinou e nem ele buscou ajuda. Muito observador, aprendeu a ver as

máquinas e a perceber o propósito de quem construiu, para conseguir enten-der o funcionamento. Já construiu um mini trator e dois carrinhos com motor, frente de motocicleta, estrutura de um fusca e pneu de trator, que chamou de trifuca. Em Goiás, também construiu al-guns equipamentos adaptados para seu patrão, como um rebocador de colheita-deira. Aliás, foi chamado para trabalhar lá justamente para construir essas coi-sas e acabou morando por mais de um ano em solo goiano.

Como sempre conseguiu construir tantas coisas, ele sabe que pode um dia voar através de uma máquina feita com suas próprias mãos. Ele vê que outras pessoas no mundo já fizeram e se ques-

tiona por que não conseguiria. Muitos o chamam de louco, mas ele prefere a definição de sonhador. Embora acredite que um pouquinho de loucura sempre é bom. Loucura e ousadia. Quando morou em Goiás, precisou ajudar um piloto agrí-cola – como aquele que lhe apresentou o gosto de voar ainda na infância, a fazer aplicação de veneno nas plantações do proprietário das terras onde estava traba-lhando. Foi então que sentiu novamente as sensações de voar, agora com metade do corpo para dentro do avião e a outra para fora, enquanto se apoiava na asa e orientava o profissional sobre as lavouras que deveriam ter aplicação, mesmo com as dificuldades de enxergar as terras e a rapidez do voo. Ele repetiu essa ousadia

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DUAS DÉCADAS DE SONHO

Quando tinha 8 anos, Gilvan não imaginava que 20 anos passariam e ele ainda estaria envolvido com essa “aviação caseira”, com testes e construções. O garoto sabia que um dia iria voar por conta de sua própria invenção, mas não tinha ideia de tempo. Hoje, ele sabe que fez certo. Gilvan explica que ten-tar adiantar a finalização de algo complexo, pode o fazer esquecer detalhes importantes. Mesmo sem estudo, ele gosta dos números e de medidas. Se saísse da agricultura, faria Engenharia Aeronáutica ou Mecatrônica. Mas, gosta muito de ser do campo também e de inven-tar as coisas somente com os seus conhecimentos práticos, originá-rios de uma vida inteira de tenta-tivas e muitos planos. O amor pelo que faz é perceptível no grande sorriso que abre ao falar de seu sonho. Enquanto ele sorria, sua

filha Evelyn se dividia entre dese-nhar e olhar para o pai sonhador.

Gilvan ainda não voou. Mas sabe que nada acontece de repen-te. Ao seu tempo, ele constrói, planeja e vive. Pretende fazer um curso de voo livre, para primeiro saber comandar a asa delta com segurança e depois transformá-la em um minitrike. Ele acredita que todo o sonho merece investimen-to. Hoje, já tem o carrinho pronto, a hélice e a asa. Falta ainda adaptar o motor, o que ele acredita que le-vará mais quatro meses. Pergunto o que fará depois e ele brinca: “aí eu tento achar um piloto, porque se cair, quem vai arrumar?”. Gil-van explica que após ficar pronto, ele vai fazer uma pista e correr em busca de um primeiro voo e da re-alização de seu verdadeiro sonho: o ultraleve. Sonhos de um menino, realidade de um adulto sonhador.

um dos maiores prêmios de um repórter é perceber que a pessoa conversa sobre o assunto com paixão e com verdade. Eu amo contar histórias e me sinto realizada ao fazer isso. Então, quando vejo o brilho nos olhos de um entrevistado fico ainda mais satis-feita. Afinal, estou narrando um fato a partir de uma descrição apaixonada. Talvez esse seja o segredo da felicidade do profissio-nal de jornalismo: conseguir entrevistados repletos de emoção e intensidade. Com essa reportagem, mais uma vez pude perceber os sonhos como combustível de vida e felicidade. Toda pauta gera ensinamentos. O menino que queria voar foi uma reporta-gem especial para minha trajetória acadêmica. Embora pouco extensa – eu adoro grandes reportagens, fiquei feliz em fazê-la, pois já conhecia meu entrevistado e essa história. Assim, pude compartilhar um pouquinho disso tudo com cada um de vocês, para que assim como eu, vocês passarem a acreditar na realiza-ção de todos os sonhos, até mesmo os mais complicados.

em outros dias, pois além de auxiliar, co-meçou a gostar da sensação.

Mesmo com muito trabalho, conti-nuou acreditando em seu sonho. Pes-quisando em um site, Gilvan encontrou uma asa delta a venda, de um morador de Formosa, Goiás, e a comprou. Assim começou a vontade de construir um mi-nitrike (uma espécie de asa delta moto-rizado), mas só depois descobriu que, na verdade, iria construir um microtrike, pois era para apenas uma pessoa. Para isso, precisava de uma boa hélice e, então, foi pesquisar na internet. O motor não seria problema, pois ele o tiraria de uma motocicleta. Conseguiu a hélice com um homem que tinha um hangar no aeropor-to em Brasília e que resolveu se aposen-tar, vendendo suas hélices por um preço menor que o normal. Afinal, tinha diver-sas delas, pois fabricava aeromodelos. Além de hélices, aquele homem lhe opor-tunizou muitas dicas sobre tipos de ma-teriais e angulação do motor. Comprou uma motocicleta DT 180 e tirou o motor para utilizar em seu microtrike. Quando Gilvan contou essa história, o motor es-tava desmanchado. Ele precisa adaptar a redução das polias 3 por 1. O motor pre-cisa rodar três vezes enquanto a da héli-ce gira uma. A rotação da hélice chega a 2.500 para voo e o motor é de 18 hp (horse power). Mas, como já é usado deve estar com 25 hp. No bom português: ele preci-sa fazer essa máquina voar.

Mas, o microtrike não é seu maior de-sejo. Seu verdadeiro objetivo é fabricar um ultraleve, que chega até 400kg. Ele pre-tende utilizar um motor de fusca e muita criatividade. Mesmo com a intensidade de seus sonhos, sabe que o tempo é funda-mental e pretende fazer uma coisa de cada vez. Hoje Gilvan mora em Capão Grande, interior de Paraíso do Sul. Com 29 anos de idade, ele divide seu tempo entre o tra-balho no campo e os seus sonhos. Porém, dedica apenas 3 horas por semana para a construção do microtrike, pois entende que é através da agricultura que se origina sua renda. Pelo menos por enquanto.

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De pai para filha: Evelyn brinca com o avião de isopor, como Gilvan fazia quando crianca.

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DA TESOURA À MÁQUINA

ELÉTRICAO Salão Globo, mais que uma barbearia,

é um local que se confunde com a história da cidade de Santa Cruz do Sul

TEXTO: ANA CLÁUDIA MÜLLER FOTOS: ANA CLÁUDIA MÜLLER E KYLE JONES (MORGUEFILE)

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Uma fachada branca, com um pequeno letreiro que indica “Salão Globo” quase passa despercebi-

da na Rua Tenente Coronel Brito, entre a Júlio de Castilhos e a 28 de Setembro. Ao entrar, o ranger da porta dá indícios que aquela sala está ali há muito tempo. O espelho, que cobre quase toda a extensão da parede à esquerda, está com um can-tinho quebrado, o que leva a crer que há muitos anos está ali pendurado, refletindo imagens naquela salinha

de cerca de três metros e meio por seis. Um relógio antigo faz barulho de “tic tac”, é mais um resquício do tempo naquele pequeno salão.

O Salão Globo, inaugurado em 5 de outubro de 1947, não foi o pri-meiro da cidade, mas é o mais antigo em funcionamento até hoje. Antes de chegar à pequena sala da Rua Te-nente Coronel Brito, há 48 anos, Seu Hélio, o fundador do salão, atendeu em outros endereços, mas foi ali, entre aquelas quatro paredes bran-cas, com espelho quebrado e relógio antigo que tornou-se um ponto tra-dicional da cidade. Curiosamente, quando se entra no Salão Globo não é Seu Hélio que se encontra com a tesoura e o barbeador na mão. Nes-te lugar, onde tudo parece ter mais de 50 anos, é Alexandre Luxardo, de 37, quem dá as ordens. Apesar de os outros dois filhos de Seu Hélio também terem seguido a profissão de barbeiro, coube a Alexandre, o caçula, tocar o negócio do pai. Alex, como gosta de ser chamado, coman-da o salão há 20 anos. Ele começou na profissão de barbeiro muito cedo, graças ao incentivo do pai. “Na épo-ca que eu comecei meu pai já tinha o salão. Ele percebeu que eu não queria saber de fazer nada. Estava sempre à toa na rua e me inscreveu em um curso para aprender e ajudar ele”, conta o profissional.

As paredes brancas que abrigam o Salão Globo são testemunhas do passar do tempo. Nos anos 60, era ali que os homens conversavam so-bre política e sobre os rumos do país, que vivia os difíceis anos da ditadura militar. Enquanto falavam,

Com a aposentadoria do pai, agora é Alex quem comanda o Salão Globo (a esquerda). Rui Barbosa Júnior sempre corta o cabelo com Alex, hábito que pegou de seu pai (a direita)

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Seu Hélio, que hoje se espanta com os penteados modernos, cortava os cabelos com toda a calma e cuidado. Naquele tempo, aparar as madeixas no sábado era “proibido”, já que esse era o dia de fazer a barba. Décadas atrás, no tempo em que ainda não existiam máquinas elétricas e lugar de se barbear era, exclusivamente, no barbeiro, Seu Hélio fazia uma caixinha, sempre que o Natal se aproximava, onde os fregueses co-locavam gorjeta. “Nós ganhávamos mal e esse dinheiro ajudava muito”, relembra Seu Hélio, nostálgico.

Passados quase 50 anos desde sua inauguração, o salão viveu mui-tas mudanças, especialmente no que diz respeito a forma de trabalhar. No entanto, o entra e sai constante no salão segue o mesmo de anos atrás. Enquanto Rui Barbosa Júnior aguarda Alex terminar seu corte de cabelo, ou-tras cinco pessoas esperam, sentadas em dois bancos estofados, encosta-dos na parede à direita, para serem atendidas. Apesar do salão ser pe-queno, o movimento é grande. São realizados ali cerca de 20 barbas por

semana, além de cortes de cabelo que chegam a mais ou menos 300 por mês. O empresário Rui Barbo-sa Júnior é um dos clientes fiéis do Globo. “Meu pai frequentava a bar-bearia do pai dele. Agora sou eu que venho aqui”, afirma Barbosa Júnior, que jura nunca ter cortado o cabelo em outro lugar. “Só confio no Alex.”

Um grande marco no Salão Globo aconteceu quando Seu Hélio decidiu se aposentar. Em 1992, com proble-mas de varizes por ficar muito tempo em pé, o barbeiro entendeu que pre-cisava parar. Não se preocupou. Sabia que seu caçula tocaria o negócio com o mesmo cuidado e esmero que ele. Até hoje, frequentemente faz companhia ao filho no salão e arrisca-se a ajudá-lo, quando o movimento aperta.

O tempo passou para Seu Hélio, que agora não tem mais a jovialida-de necessária para tocar o negócio. Alex deixou de ser um aprendiz de 17 anos e hoje é ele quem comanda o salão. Os instrumentos necessários para cortar um cabelo com maestria e fazer uma barba com delicade-za evoluíram, deixando o trabalho

mais fácil. Os assuntos discutidos no salão também não são mais os mesmos. Se antes se falava sobre o fim da ditadura e o sonho da con-quista do tetracampeonato na Copa do Mundo, hoje discute-se o resul-tado das eleições e segue-se sonhan-do com o hexa no Mundial. Mas, o Salão Globo continua o mesmo: as mesmas paredes brancas, o mesmo relógio fazendo “tic tac”, os mesmos bancos estofados e o mesmo espelho na parede à esquerda, agora com um cantinho quebrado.

quase todos os dias eu passava em frente ao “Salão Globo” e ficava impressionada com o entra e sai daquele lugar. Quando surgiu a possibilidade de fazer uma matéria sobre alguma exceção, como o nome da revista sugere, me dei conta de que aquele salãozinho que tanto me impressionava podia reservar histórias muito inte-ressantes. E eu estava certa. Cheguei ali sem avisar, sem marcar entrevista, e comecei a conversar com o Alex. En-quanto ele me contava as his-tórias do salão, do seu ingresso da profissão e de como o ofício de barbeiro perdeu o prestígio, seus clientes complementa-vam as informações, deixando claro pra mim que eles não estavam ali só pra cortar o cabelo ou fazer a barba. Eram amigos de longa data, frequen-tadores fiéis do salão, alguns de antes mesmo de Alex come-çar na profissão.

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COMO LOLÓ ENCONTROU

O BRASILCom 20 anos, Hannelore Goltz

deixou o país de origem em busca de pessoas com os mesmos

princípios que os seus

TEXTO E FOTOS: GIULIANE SILVA

Poucos segundos depois de tocar a campainha, sou recepcionada por um Dachshund. “Kommthier, Tobbi”, diz uma senhora na ponta de uma es-

cada bastante íngreme. É Hannelore Goltz, de 81 anos. Apesar dos cabelos brancos e das profundas marcas do tempo em seu rosto, tem o humor de uma criança de sorriso fácil.

Subo as escadas e ao passar pela porta sou abraçada por parte da história. “Gosto de coisas velhas”, conta Loló, como é conhe-cida. Numa salinha, sem muita iluminação, há uma mesa redonda com quatro cadeiras, um armário e um baú, todos marrons. “Fo-ram feitos em 1800, comprei quando morava no Rio de Janeiro”, me explica.

Rio de Janeiro foi apenas uma das deze-nas de cidades em que Hannelore passou. Ao longo dos seus 81 anos, Loló colecionou moradias, conheceu milhares de pessoas, casou-se duas vezes, mas não teve fi lhos. “Sempre fui... Como é que se diz aqui? Ah...”. “Independente?”, interfi ro. “Isso. Sempre fui independente”, conclui.

No começo da conversa fi ca evidente que Hannelore não domina a língua portuguesa. Claro, ela veio da Alemanha. Mesmo que es-teja no Brasil há cerca de 60 anos, nunca dei-xou a língua alemã fora da sua rotina, tanto que seu sotaque é forte e seu vocabulário português não é tão amplo quanto gostaria.

Palavras foram esquecidas ao longo dos

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anos, assim como a nossa entrevista marcada dias antes. “Se tu tivesses me lembrado, teria comprado um bolo”, desculpa-se. O bolo não fez falta, afinal, me saciei com tanta his-tória que ela tinha para comparti-lhar. Compartilhar, uma palavra que faz parte da sua vida.

Loló nasceu no dia 26 de junho de 1933. Viu de perto a 2ª Guerra Mun-dial. Neste período, aprendeu a dar sem esperar nada em troca. Apren-deu, vendo de seus pais, o princípio da solidariedade. O pai Alfred Sedat, cirurgião-dentista, e a mãe Anama-rie Sedat trabalhavam voluntaria-mente na Cruz Vermelha, atenden-do os soldados feridos.

No fim da guerra, em 1945, quan-do o Exército Vermelho Soviéti-co começou a invadir a Alemanha, Hannalore foi obrigada a deixar para trás sua casa na Prússia Orien-tal. Sua mãe teve que reduzir em cinco malas toda a história da fa-mília. A irmã, também chamada de Anamarie, aos 8 anos, não entendia muita coisa. “Para ela era apenas uma aventura”, recorda. Foram três semanas difíceis. “Não sabíamos se íamos acordar no dia seguinte. Mas, depois de certo tempo, já estávamos acostumados com esse sentimento.”

Ainda jovem aprendeu a se virar, a ser independente. Aprendeu que a neve seria um ótimo esconderijo. “Quando um avião russo passava, nos deitávamos no chão e nos cobrí-amos com ela”. Aprendeu que, mais do que pela sobrevivência, deveria lutar pela sua integridade. “Os sol-dados russos eram os mais brutais. Eles matavam os homens e estupra-vam crianças acima de 10 anos e as mulheres. Depois os matavam.”

Nem por isso “ficou sem cora-ção”, como muitos que, assim como ela, sobreviveram a dias difíceis. Momentos esquecidos na história e muitas vezes não divulgados. Dias

Em busca de bons corações, Loló e Tobby chegaram em Mato Leitão

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em que até os que passaram por isso preferem esquecer. “Lembro-me de muita coisa do passado, mas tem certas coisas que, como não gostava de lembrar, foram apagadas da mi-nha memória.”

Loló chegou ao Brasil em 1952. A vinda, através do convite de um ami-go da família para passar um tempo no Rio Grande do Sul, seria uma oportunidade para aprender portu-guês. “Como não me sentia bem lá, já que os alemães não eram mais os mesmos e pareciam não ter coração, resolvi vir”, conta. “Eu entendo eles, afinal, nós perdemos tudo o que tí-nhamos na guerra.”

Os anos se passaram e sua liga-ção com a Alemanha nunca foi in-terrompida. Em meados dos anos 80, em São Leopoldo, Loló come-çou a trabalhar na Organização Não governamental (Ong) Ampa-ro ao menor Carente (Amencar), que em 1999 passou a se chamar Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente. Por muitos anos a Ong foi mantida pela Kinderno-thilfe (KNH), sediada na cidade de Duisburg, na Alemanha.

A Ong foi criada em 1972 pelo imigrante alemão Hans Voget. Para ele, só a educação era capaz de redi-mir a miséria. O objetivo principal era, desde então, qualificar a vida das crianças e adolescentes. Tra-balhava também com o sistema de apadrinhamento, que consiste no envio de ajuda financeira a uma me-nina ou a um menino brasileiro por parte de um europeu.

O trabalho de Hannelore era jus-tamente o de intermediar o contato entre os padrinhos e afilhados. “Eu traduzia as cartas”, conta emocio-nada. Foram 32 anos de dedica-ção ao próximo. “Nesse período vi muitas pessoas mudarem. Aqueles alemães que antes tinham o cora-ção duro se tornaram pessoas mais

ao longo das minhas qua-se 3 horas de entrevista, percebi que a mulher de 81 anos tem muito mais a contar. A história e amor ao próximo de Loló, fizeram com que eu embarcasse numa viagem, sem a per-cepção do tempo. Uma viagem da qual não queria voltar, apenas desfrutar um pouco mais de cada instan-te. Posso ter deixado passar alguma coisa, mas tentei, através do texto, descrever o que vi e senti naquela tarde, ao lado de Hannelore Goltz, a mulher do coração puro, tanto quanto ao de uma criança.

doces graças as crianças do Brasil”. Loló se aposentou há um ano, mas se pudesse, permaneceria colabo-rando com a Ong. “Eu amo ajudar. Sinto falta disso”, desabafa.

Hanellore reside em Mato Leitão há 12 anos. Foi na cidade de quase quatro mil habitantes, no interior do Rio Grande do Sul, que encon-trou pessoas que, assim como ela, se preocupam com o próximo. “Aqui as pessoas se tratam de igual para igual. Posso não conhecê-las, mas ao passar por elas na rua me olham no olho e desejam bom dia”. Esse, entre tantos outros motivos, fez com que Loló se apaixonasse pelo pequeno município, que coincidentemente, foi colonizado por alemães.

A senhora do sorriso fácil chegou ao município por causa de uma filha de coração. “Morava em São Leopol-do quando fiz amizade com Lizete Hickmann, a mãe da menina. Como ela trabalhava em um banco, ajudei a criar a criança, que considero minha filha”. Lizete e a filha Barbara Anto-nina Dávila, moravam em Mato Lei-tão, motivo forte para Loló deixar a cidade que residia desde os primei-ros dias no Brasil. “Como estava so-zinha e, ao conhecer a cidade adorei, resolvi me mudar para cá.”

Além da família, que considera sua, Hannelore adotou também os vizinhos. “Tomo café da manhã e almoço todos os dias com a mulher que mora aqui na frente”. Além dela, todos que moram na rua se preo-cupam com ela. “Como não vou ao mercado há seis meses, já que caí e não consigo levantar o braço, se mi-nha filha não pode comprar as coisas para mim, sempre tem alguém que se manifesta e faz as compras.”

É com esta preocupação que o Loló e Tobbi se despedem de mim na porta de casa, na ponta escada. Além do “vá com Deus”, fica a pro-messa do “até logo”.

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ALMACIGANAPRODUÇÃO E FOTOGRAFIA: PAOLA SEVEROMODELO: NICOLE RIEGER

Em um mundo onde a tecnologia impera e as coisas mais simples da vida acabam se perdendo no turbilhão do cotidiano, os ide-ais boêmios da virada do século XIX nun-ca fizeram tanto sentido. Afinal quem não gostaria de perseguir verdade, beleza, liber-dade e amor em sua vida? Inspirados por esta filosofia sem raízes que foi influenciada pela cultura cigana, muitos adotam o boho ou bohemian como estilo de vida e compor-tamento e isso se reflete nas tendências de moda hoje. Misturando o étnico e o hippie a esse caldeirão, o resultado final é único, cheio de cores e personalidade. Com a volta dos festivais de música, as pessoas de espí-rito livre têm novos locais de encontro, po-dendo vagar pelo mundo e viajar sem para-gem em busca do desconhecido.

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EXPEDIENTE

Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)Av. Independência, 2293 – Bairro Universitário

CEP: 96815-900 – Santa Cruz do Sul/RSTelefone: (51) 3717-7300 | Site: www.unisc.br

Curso de Comunicação Social - JornalismoBloco 15 | Sala 1506

Telefone: (51) 3717-7383 Blog: novocomunicacord.blogspot.com.br

Coordenador do Curso: Hélio Etges

Blog: revistaexcecao.blogspot.comFacebook: facebook.com/excecaounisc

Sobre a revistaA Exceção é uma revista-laboratório do curso de

Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Ela é desenvolvida pelos acadêmicos da disciplina de Jornalismo de Revista, ministrada

pelo professor Demétrio de Azeredo Soster.

ImpressãoTiragem: 500 exemplares

Tamanho: 22x29cm – 84 páginasGráfi ca: Grafocem

Foto de capa e contracapaMateus Souza

Foto do editorialMartina Scherer

EdiçãoEditor-chefe: Demétrio de Azeredo Soster

Editora: Eduarda PavanattoSubeditoras: Letícia Wacholz e Natany Borges

ReportagemAna Cláudia Müller, Andressa Bandeira,

Bianca Cardoso, Carolina Schmidt, Eduarda Pavanatto, Eduardo Finkler, Fábio Felício,

Giuliane Silva, Isadora Trilha, João Junqueira, Letícia Wacholz, Liese Berwanger, Luiza Adorna,

Mateus Souza, Natany Borges e Wiliam Reis

Ensaio de modaPaola Severo

Equipe de diagramação

Martina Scherer e Viviane Fetzer

Equipe de divulgaçãoAna Cláudia Müller, Débora Paz,

Fábio Felício, Jaqueline Rodriguese Maria Regina Eichenberg

Equipe de fotografi aAndressa Bandeira, Eduardo Finkler e Wiliam Reis

Equipe de multimídiaBianca Cardoso, Caroline Fagundes,Eduardo Finkler, Guilherme Graeff

e João Junqueira

Equipe de revisãoCarolina Schmidt, Liese Berwanger,

Luísa Ziemann e Mônica Leal

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