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Revista GALO

Dossiê:

Imagem, patrimônio e educação Arte e paisagens na perspectiva da História Cultural

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Ocidente, Parnamirim, RN, Brasil) REVISTA GALO: ARTE, SOCIEDADE E CULTURA. [Versão Eletrônica] Ano 1, n.1 (janeiro/junho de 2020). Parnamirim-RN. Periódico semestral. DOSSIÊ: Imagem, Patrimônio e Educação: arte e paisagens na perspectiva da História Cultural. / Organizador do dossiê: Francisco Isaac Dantas de Oliveira. – 2020. 206 f.: il. color. Periódico científico - janeiro/junho de 2020. Editor responsável: Prof. Me. Francisco Isaac Dantas de Oliveira. 1. HISTÓRIA. 2. PATRIMÔNIO. 3. IMAGEM. I. Título.

CDD 700

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Sumário EDITORIAL ...................................................................................................................................................... 9

DOSSIÊ IMAGEM, PATRIMÔNIO E EDUCAÇÃO ARTE E PAISAGENS NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA

CULTURAL .................................................................................................................................................... 11

ICONOGRAFIA MARIANA As primeiras imagens de Maria e a construção do seu modelo iconográfico ........................................................................................................................................... 13

Iconografia mariana – As primeiras imagens ........................................................................... 14

Referências ........................................................................................................................................ 22

Referências bibliográficas .............................................................................................................. 22

Referências eletrônicas ................................................................................................................... 23

SUBINDO A AVENIDA. A CIDADE VOLTADA PARA O RIO, DÁ AS COSTAS PARA O RIO Uma antropogeografia da Avenida Eduardo Ribeiro e a reforma urbana de Manaus . 25

Introdução: fatores do aformoseamento da cidade de Manaus ............................................ 25

A cidade, a modernidade e o Rio: o sítio de Manaus ............................................................... 27

A Avenida e a reconfiguração sócio espacial ............................................................................ 31

Considerações finais ....................................................................................................................... 36

Referências ........................................................................................................................................ 37

O GÓTICO COMO CONCEITO E SEUS APORTES À HISTORIOGRAFIA ............................ 39

Introdução ......................................................................................................................................... 39

Estilo gótico ...................................................................................................................................... 40

Renascimento gótico ....................................................................................................................... 43

O gótico na pós-modernidade ...................................................................................................... 46

Conclusão .......................................................................................................................................... 47

Referências ........................................................................................................................................ 48

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Um passeio histórico pela cidade de Caxias-MA através das fotografias .............................................................................................................................................. 51

Introdução ......................................................................................................................................... 51

Patrimônio Histórico de Caxias ................................................................................................... 55

Considerações finais ....................................................................................................................... 63

Referências ........................................................................................................................................ 63

VEIGA VALLE (1806-1874) Recepção, tradição e a ideia de patrimônio na Cidade de Goiás .................................................................................................................................................................. 65

Introdução ......................................................................................................................................... 65

José Joaquim da Veiga Valle – o santeiro goiano .................................................................... 66

Um estudo da recepção nas obras de Veiga Valle .................................................................... 68

O ressentimento da transferência da capital Veiga Valle é (re)apresentado aos vilaboenses ............................................................................................................................................................. 71

A Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT) e o Museu de Arte Sacra da Boa Morte .......................................................................................................................................... 74

Considerações finais ....................................................................................................................... 76

Referências ........................................................................................................................................ 77

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RECORTES DA METRÓPOLE A cidade moderna pelo olhar de Baudelaire e António de Alcântara Machado ............................................................................................................................. 79

Introdução ......................................................................................................................................... 79

Recortes de Paris, pelo olhar de Charles Baudelaire ............................................................... 80

Recortes de São Paulo, pelo olhar de António de Alcântara Machado ............................... 83

Considerações Finais ...................................................................................................................... 88

Referências ........................................................................................................................................ 88

Filmes ................................................................................................................................................. 89

DESEJO DE MEMÓRIA Paisagem cultural e inventário participativo na Reserva Florestal do Morro Grande – Cotia – SP ......................................................................................................... 91

Introdução ......................................................................................................................................... 91

Consideração Finais ...................................................................................................................... 103

Referências ...................................................................................................................................... 105

A MEMÓRIA E SEU LUGAR Uma possibilidade da História Cultural................................. 109

Referências ...................................................................................................................................... 118

DESBRAVANDO O PLANALTO De uma pista para aviões nasce Parnamirim ................. 121

Uma breve introdução: gênese de Parnamirim como cidade .............................................. 122

Objetivo e metodologia da pesquisa ......................................................................................... 124

O tempo e o sonho de Ícaro ........................................................................................................ 125

A aviação comercial e o início de Parnamirim ....................................................................... 127

O patrimônio humano e material na história de Parnamirim ............................................ 128

Considerações Finais .................................................................................................................... 129

Referências ...................................................................................................................................... 130

ARTIGOS LIVRES ......................................................................................................................................... 133

OS DESAFIOS DO EDUCADOR UNIVERSITÁRIO NO ENSINO DO EDUCANDO SURDO................................................................................................................................................................ 135

Introdução ....................................................................................................................................... 135

O contexto da pesquisa ................................................................................................................ 136

A instituição de ensino ................................................................................................................ 136

A intérprete de Libras .................................................................................................................. 137

O educando surdo ......................................................................................................................... 138

O educador ...................................................................................................................................... 139

Qualidades docentes ..................................................................................................................... 139

Formação e prática docente ........................................................................................................ 140

Desafios e estratégias ................................................................................................................... 142

Considerações Finais .................................................................................................................... 143

Referências ...................................................................................................................................... 144

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E ENSINO DE GEOGRAFIA NA AMAZÔNIA BELTERRENSE Desafios e perspectivas ...................................................................................... 147

Introdução ....................................................................................................................................... 147

História da Educação do campo e ensino de Geografia: um debate teórico-metodológico ........................................................................................................................................................... 149

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Educação do campo e geografia escolar: práticas didático-pedagógicas para escola Professora Vitalina Motta, Belterra/PA .................................................................................... 153

Formação Histórica/Territorial da Escola Prof.ª Vitalina Motta: propostas metodológicas para o ensino de Geografia .............................................................................. 159

Considerações Finais .................................................................................................................... 162

Referências ...................................................................................................................................... 163

AS FESTIVIDADES JUNINAS E AS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS Projetos pedagógicos e ensino remoto .......................................................................................................... 165

Introdução ....................................................................................................................................... 165

Festividades juninas e a formação de identidades culturais: o desafio de se trabalhar com projetos pedagógicos no ensino não presencial ............................................................ 168

As festas Juninas na prática escolar: uma aprendizagem significativa ............................. 171

Considerações Finais .................................................................................................................... 175

Referências ...................................................................................................................................... 176

ENTRE NAÇÃO E NACIONALISMO Breve panorama do Brasil no século XIX .............. 177

Introdução ....................................................................................................................................... 177

O caso brasileiro ............................................................................................................................ 181

Referências ...................................................................................................................................... 186

TRANSCRIÇÃO DE DOCUMENTO ............................................................................................................... 189

UM SENHOR DE ENGENHO NA CIDADE DO NATAL COLONIAL O testamento do capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, 1798...................................................................... 191

Transcrição ..................................................................................................................................... 192

Referências ...................................................................................................................................... 195

PRÁTICA DOCENTE ..................................................................................................................................... 197

REPRESENTAÇÃO DAS NEGRAS E DOS NEGROS NO MUSEU HISTÓRICO DE CRATO-CE Invisibilidade e silenciamento .................................................................................................. 199

Memoria, história e negação: o papel das instituições de memória no silenciamento do povo negro ...................................................................................................................................... 199

O museu do Crato e a ausência das negras e dos negros ..................................................... 200

Referência bibliográfica................................................................................................................ 201

REVOLUÇÃO EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA .............................................. 203

FICHA TÉCNICA ........................................................................................................................................ 205

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REVISTA GALO, Ano 1, Nº 1 – Parnamirim, jan./jun. 2020 9

Editorial A Revista Galo é a concretização de um sonho antigo. Pensada e repensada muitas vezes à noite. Este projeto foi meu companheiro de muitos sonhos. A Revista Galo quer ser um espaço acadêmico democrático e plural, sem a cultura do cancelamento. Na arena das discussões não existem vencedor e perdedor, existem trocas de ideias e respeito múltiplo. Não estamos aqui para excluir, mas para somar e para ser um periódico propositivo. Buscando aumentar o nível das discussões.

A Revista Galo nasceu em 20 de abril de 2020 (temos data de nascimento). Este projeto acadêmico é singular, pois somos o primeiro periódico em ciências humanas no município de Parnamirim-RN. Lançar um novo periódico acadêmico em meio a uma pandemia de Covid-19 foi um desafio hercúleo. Divulgar, chamar corpo editorial, fazer site, pensar num nome e iden-tidade visual, pensar nas regras e diretrizes para autores; tudo isso demandou tempo e trabalho.

A Galo, como passamos carinhosamente a chamá-la, tem a missão de divulgar ensaios, pesquisas, resultados de dissertações, e teses, em formato de artigo; de pesquisadoras e pes-quisadores de todo Brasil e América Latina. Para tanto, quero recordar o poema “Tecendo a Manhã” do grande poeta e escritor João Cabral de Melo Neto, que utiliza a figura de vários galos para anunciar a manhã:

“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.”1

Esse trecho do poema de J. C. de M. Neto é elucidativo e fala do que a Revista Galo quer ser: um lugar de reunião e divulgação da ciência. Queremos ecoar os textos e trabalhos de historiadores, geógrafos, filósofos, sociólogos e professores de Ensino Infantil, Fundamen-tal, Médio e Superior. Aqui na Galo não queremos dizer NÃO, queremos dizer muitos SIMS!

Quero pedir licença ao estimado leitor para fazer uma apresentação um pouco dife-rente do convencional. Não apresentarei os títulos dos trabalhos – que podem ser encontrados no sumário da revista – mas, sim, seus autores: pesquisadoras e pesquisadores que contribuí-ram para esse primeiro número, confiando em nosso trabalho. São eles: Alyne Marinho Cézar Miranda, Fernando Martins dos Santos, Luis Felipe Figueiredo Leitão, Bruno Miranda Braga, Francisco Isaac Dantas de Oliveira, Ariane de Medeiros Pereira, Francilene Sales da Conceição, Thiago do Nascimento Torres de Paula, Bárbara Almeida da Cunha, Teógenes Luiz Silva da Costa, Paola Cristina Ribeiro, Antônia Lucivânia da Silva, Vilma Cristina Soutelo Assunção Noseda, Marina Rockenback de Almeida, Railany Oliveira de Sousa, Tamara Fernanda Mendes da Silva, Jakson dos Santos Ribeiro, Leonardo da Silva Claudiano e Ketlin Maria Lucht. Quero

1 Trecho do poema “Tecendo a Manhã”. João Cabral de Melo Neto de In: A educação pela pedra. Editora: Alfaguara; 1ª edição. 2008.

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agradecer cada um desses dezenove homens e mulheres que contribuíram com suas pesquisas, e nos deram a honra de enunciá-las, repercuti-las e ecoá-las; assim como os galos do poema fazem a manhã. Que a Revista Galo seja um palco que espalhe os bons frutos das ciências humanas.

Boa leitura! FRANCISCV ISAAC DANTAS DE OLIVEIRA, editor chefe. Corpo editorial e científico da Revista Galo.

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Dossiê Imagem, patrimônio e educação Arte e paisagens na perspectiva da História Cultural

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ICONOGRAFIA MARIANA As primeiras imagens de Maria e a construção do seu modelo iconográfico1

Alyne Marinho Cézar Miranda2 [email protected]

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar parte da iconografia mariana, em especial as pinturas que represen-tam o episódio da “Anunciação”, produzidas na Itália, desde o primitivismo cristão até o século XV. Para o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa foram utilizadas fontes documentais visuais representadas por pin-turas e fontes textuais representadas por documentos da época que tratam da produção e uso de imagens cristãs. Assim, com base nas pinturas e nos documentos escritos, foram propostas algumas interpretações acerca das pinturas de Anunciação. Palavras-chave: Virgem Maria. Imagem. Anunciação.

Abstract

The objective of this article is to analyze part of Mariana iconography, especially the paintings which represent the episode of "Annunciation", produced in Italy, from Christian primitivism to the fifteenth century. For the development of this rese. For the development of this research were used visual documentary sources repre-sented by paintings and textual sources represented by documents of the period that deal with the production and use of Christian imagery. Thus, based on the paintings and written documents have proposed a number of interpretations about painting Annunciation. Keywords: Virgin Mary. Picture. Annunciation.

― ―

A alegria com a qual sucessivas gerações lhe atribuíram o título de santa variou muito através dos séculos, porém, em todas as épocas foram notáveis o êxito e a importância alcançados pela bem-aventurança de Maria, tanto entre os homens como entre as mulheres, nas mais variadas situações. E, na verdade, isso realmente faz dela uma mulher para todas as épocas.

Jarolasv Pelikan, Maria através dos séculos.

O processo de devoção e culto à Virgem Maria, está ligado, desde o começo, a uma passagem bíblica: Lucas (1:26-38). Trata-se do relato da visita do anjo Gabriel à Maria para lhe anunciar a concepção do Filho de Deus. Este episódio é considerado pelos estudiosos como aquele que inaugura o despertar pela devoção mariana. Desde então, sua trajetória histórica e religiosa esteve intimamente ligada a uma intensa produção de imagens e, dentre essas, as de pinturas tem como tema inúmeras passagens de sua vida. Desde o primitivismo cristão começou-se a ser elaborada uma iconografia dedicada a representar a vida da Virgem Maria, da qual se destaca a representação de um episódio: aquele

1 Este artigo ora apresentado para a Revista Galo é parte integrante da minha monografia de especialização defendida na Universidade Potiguar – UnP – Natal/RN. A pesquisa teve a orientação do Prof. Me. Mariano de Azevedo Júnior e coorientação do Prof. Me. Francisco Isaac D. de Oliveira. 2 Especialista em História da Arte pela Universidade Potiguar – Natal/RN.

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que relata a Anunciação. Este episódio é considerado o mais importante da legenda mariana, e, como tal, veio a ser um dos mais representados e difundidos temas de sua iconografia desde os primeiros tempos da história marista.

A iconografia Mariana é extremamente rica e complexa, por isso, inicialmente, é ne-cessário apresentar como se constituíram os primeiros modelos de sua representação, sua relação com os textos hagiográficos e o seu desenvolvimento até o final do século XV. O per-curso pelas imagens desse tema será de fundamental importância para configurar o enredo de uma história que se que desenvolveu na longa duração da cultura cristã, levando em conside-ração não apenas os formatos iconográficos ou narrativos, mas também seus usos e funções nos contextos sociais, culturais, políticos e ideológicos, constantemente em renovação. Filha de Ana e Joaquim, Maria, acima de qualquer outra mulher, foi fonte de inspiração para um grande número de pessoas e, certamente, foi a personalidade feminina mais repre-sentada na história. Nossa Senhora – como assim ficou conhecida – representou dentro da ótica cristã “a pessoa por meio da qual o plano de Deus para a salvação do mundo foi colocado em ação”3. A passagem bíblica que coloca Maria no cenário teológico pode ser observada no Evangelho de Lucas no episódio conhecido por Anunciação onde, de acordo com a narrativa, o anjo do Senhor a saudou como “cheia de graça” e como aquela que seria a mãe do Filho de Deus. Em resposta ao anjo, Maria se colocou como a “serva do Senhor”4, atitude esta que a elevaria a posição de santidade. A atitude de Maria em se dispor inquestionavelmente obediente aos desígnios de Deus, ajudou a disseminar os ideais de uma religiosidade pautada naquilo que seria o modelo de virtude fundamental do cristianismo. Assim, Maria passou a desenvolver um papel preponde-rante na história, servindo como modelo simbólico de virtudes não só admiradas e apreciadas, mas também imitadas, as quais lhe renderam ao longo dos séculos inúmeras representações.

Maria é considerada “a Mulher” por excelência [...], as sutilezas e complexidades da interpretação de sua pessoa e de seu trabalho também possuem importância primor-dial para o estudo da posição histórica da mulher que começa a reclamar sua justa cota de atenção por parte dos estudiosos e do povo.5

Maria, que podia ser representada em imagens, era também considerada a “Rainha dos Céus”6. A glória do seu nome invadiu o mundo inteiro e a complexidade de sua significância influenciou, inclusive, a história da educação cristã. Ao longo do cristianismo, pelo menos até a Reforma, a vida dos santos servia como modelo de caráter, e, entre estes, Maria ocupava uma posição ímpar, talvez o mesmo lugar correspondente ao papel exercido por ela no plano de Deus.

Iconografia mariana – As primeiras imagens O processo de produção de imagens cristãs mariana está ligado, desde o começo, aos episódios de sua vida: Infância, Imaculada Conceição, Anunciação, Virgem Mãe, Paixão e Glória. Algumas das primeiras imagens relativas à Maria que se tem notícia remetem o primitivismo cristão e provém da Catacumba de Santa Priscila, em Roma.

3 PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. Tradução Vera Camargo Guar-nieri. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 31. 4 EVANGELHO DE LUCAS: In BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1997, p.1.310. 5 PELIKAN, Jaroslav, Op. Cit., p. 296. Grifo original do autor. 6 PELIKAN, Jaroslav, p. 151.

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Figura 1 – ANÔNIMO. Maria e o menino Jesus, Séc. II. Pintura. Sem informações sobre as dimen-sões. Catacumba de Santa Priscila, Roma. [à direita, detalhe da figura]

A imagem em questão – datada do século II depois de Cristo (d.C) – na qual a Virgem aparece amamentado o menino Jesus, constitui a chamada arte paleocristã7. De acordo com a descrição elaborada pela historiadora da arte Graça Proença a respeito desse período, a arte produzida nas catacumbas emergia de maneira “simples e simbólica” onde eram representa-dos, inicialmente, apenas alguns símbolos cristãos. Entretanto, essas pinturas começaram a evoluir representando cenas do Antigo e Novo Testamento que – pela forma como eram pro-duzidas – já indicavam o comprometimento entre a arte e a doutrina cristã, que se firmaria, cada vez mais, na Idade Média8.

Foi justamente no período medieval que as representações marianas ganharam uma forte floração, e, portanto, não seria possível conceber a história das imagens, da devoção e da espiritualidade cristã sem levar em consideração o lugar ocupado pela Virgem Maria. Como afirma Pelikan,

Não só iconográfica, mas também teologicamente, ela ocupou um único lugar na cristandade do Oriente [...] onde seu culto e as pesquisas sobre sua pessoa se con-centram nos primeiros séculos da história do cristianismo. A devoção a Maria encontrou sua suprema expressão na liturgia bizantina. A partir de seu surgimento na Igreja grega, por meio de seus padres, e no cristianismo bizantino, o marismo oriental se desenvolveu até exercer uma influência decisiva nas interpretações oci-dentais sobre Maria ao longo de todo o período patrístico e no início do período medieval [...]9

Entretanto, apesar de Oriente e Ocidente terem se prestado a “louvar e representar com graça” a Virgem Maria, tais culturas se portaram de maneiras diversas, como atesta, por exemplo, Jean-Claude Schmitt ao esclarecer “que no decurso da Idade Média, a cristandade latina e a grega mostraram-se fortemente opostas no plano das imagens religiosas, de suas

7 A arte paleocristã ou arte cristã primitiva constitui a arte produzida por cristãos ou sob o patrocínio cristão desde o início do século II até o final do século V. 8 PROENÇA, Graça. História da Arte. 16ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 07-08. 9 PELIKAN, Jaroslav, Op. Cit., p. 146.

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características formais, de seus usos rituais e de suas justificativas teóricas”10. No caso da cris-tandade latina, a história das imagens se mostrou de forma “clara e criativa”. Porém, a Eclésia latina nunca desenvolveu uma teologia da imagem parecida em tamanho e delicadeza à teo-logia grega do ícone. Ainda de acordo com Schmitt,

O comparativismo não pode se ligar somente aos caracteres formais das imagens, ao estilo, à cronologia própria das tradições artísticas. [...] Deve também levar em conta as funções cultuais, litúrgicas e políticas das imagens, e mais geralmente ainda os contextos sociais e ideológicos de sua produção e de sua recepção.11

No oriente, o papel exercido pelo ícone como “mediador” entre Deus e os homens e o culto das imagens, era considerado possível e teologicamente fundamentado. No campo das representações, pelo que parece, a cristandade grega não sentiu a menor dificuldade em re-tratar Maria como “divina” e os defensores de suas imagens, quase sempre, se mostraram insaciáveis ao falar sobre suas qualidades. Dentre as tantas representações que lhe foram con-feridas e que lhe rederam inúmeros títulos, o Ícone12 da Virgem parece ter sido àquele que melhor representou o que a arte bizantina reservou à Maria.

Neste tipo de iconografia, tradicionalmente, Maria aparece segurando o menino Jesus e a inscrição grega “Theotokos” é comumente vista.

Figura 2 – ANÔNIMO. Ícone da Virgem, Séc. XII-XIII. Pintura, 117×79cm. Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma. [em destaque: “ΜΡ ØΥ” – Theotokos (Mãe de Deus)].

10 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. tradução José Rivair Macedo – Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 51. Ver também na página 52 as definições de Schmitt sobre as diferenças formais entre a arte do Ocidente e do Oriente que, segundo ele, tiveram um duplo papel: no plano social, em virtude do estatuto do artista; e no plano político, devido à relação das imagens para com as autorida-des religiosas e seculares. 11 SCHMITT, Jean-Claude, Op. Cit., p. 53-54. 12 Ícones que dizer pinturas sobre madeira em duas dimensões representando Cristo, a crucificação com Maria e São João, ou ainda só a Virgem. Foram logo adotadas no Ocidente, onde os pintores não tardaram em imitá-las. SCHMITT, Jean-Claude. p. 112.

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Figura 3 – ANÔNIMO. Virgem de Vladimir, Séc. XII. Pintura, 110×70 cm. Galeria Tretyacov, Moscou. [em destaque: “ΜΡ ØΥ” – Theotokos (Mãe de Deus)].

Esse termo Theotokos 13, que no seu sentido mais completo quer dizer “aquela que deu à luz Deus”, foi sem dúvida o maior passo em toda a história do pensamento e da linguagem a respeito da Virgem, mas também foi, em alguns aspectos, um grande problema. Como Theotokos Maria foi o legítimo objeto de veneração da ortodoxia cristã e isso teria desencadeado os ataques dos iconoclastas14, que não só discordavam do culto aos ícones de forma geral, mas também da extrema devoção atribuída a Maria. Esses excessivos atos de veneração motivaram a necessidade de se determinar uma maneira correta de exaltar a Deus, aos santos e a Virgem, propiciando uma verdadeira eclosão de reflexões teóricas a respeito da importância dada às imagens cristãs, em especial à imagem mariana. As polêmicas envolvendo a questão das imagens religiosas foram inúmeras, porém, não poderiam ser aqui proferidas sem antes relacionarmos sua relação com a escrita. No cris-tianismo medieval, escrita e imagem desempenharam um papel central como objetos e práticas culturais. À escrita, foi reservado o papel da “palavra viva”, enquanto que à imagem, o papel da representação do invisível, da crença e da história sacra. Nas interpretações elabora-das por Schmitt a respeito do significado das imagens, ele diz:

Sem esquecer o fator essencial da diversidade das imagens [...], pode-se dizer que a imagem é, ou tem a vocação de ser, um instrumento de mediação entre o visível e o invisível; para melhor dizer e dar um caráter dinâmico à definição, essa imagem é uma mediação a ser apreendida, que está por ser apropriada.15

13 O termo Theotokos foi atribuído à Maria durante a realização do Concílio de Éfeso, em 431. 14 Referem-se àqueles que proscreviam o culto das imagens. 15 SCHMITT, Jean-Claude, Op. Cit., p. 88.

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Escrita e imagem se relacionaram e mudaram com tempo, e para reter os limites dessa história, darei destaque àquele personagem que foi o principal responsável pela definição das atitudes ocidentais em relação às imagens: o Papa Gregório Magno. No ano de 600 Gregório Magno escreveu uma carta16 ao Bispo iconoclasta Serenus de Marselha defendendo as ima-gens religiosas e lhes reconhecendo suas funções positivas. Para ele, a imagem, a exemplo da escrita, possui qualidades didáticas podendo ser apreendidas por aqueles que não sabem ler. O Papa alegava ainda ser lícita a confecção de imagens e sua conservação em igrejas, contanto que não houvesse adoração. “No tempo de Gregório Magno a carta foi um instrumento de crítica do papa às atitudes iconoclastas do bispo Serenus de Marselha, que havia destruído as imagens, pois entendia que haviam se tornado objeto de idolatria”17.

O termo funcionou como um alicerce: porque Gregório Magno o empregava, ele permitia legitimar as novas atitudes para com às imagens religiosas. Assim se podia continuar referindo à Carta a Serenus de Marselha como a autoridade por excelência nesse domínio.18

Em relação às imagens marianas, especificamente, apesar de toda contestação herética, seu uso e produção conheceram um extraordinário desenvolvimento principalmente nos sé-culos 12 e 13, no auge da Idade Média. Iniciou-se neste período uma combinação de “tradição e inovação” evidenciadas em algumas das representações marianas, em especial, àquelas pro-duzidas pela Igreja Ocidental. No Ocidente, as imagens de diversificaram e se difundiram largamente apresentando um amplo crescimento em sua forma plástica, admitindo a tridi-mensionalidade.

[...] durante os séculos XII e XIII, [...] essa combinação de tradição e inovação jamais foi tão dramaticamente evidenciada como na representação de Maria como Marter Dolorosa [Mãe sofredora] e na doutrina correlata que a considera Mediadora.19

Entretanto, apesar da “Marter Dolorosa” ter se transformado em um tema mariano bastante explorado, em particular pela Igreja Ocidental, entre as cenas da vida da Virgem Maria, aquela que lhe conferiu um maior número de representações, foi sem dúvida, a Anun-ciação. “De fato, a anunciação prevalece de tal forma que o número de referências a todos os outros temas marianos combinados provavelmente seria menor”20. A Anunciação significou, como sugerem as representações artísticas, a importância primordial para o milagre da encarnação. Foi este episódio àquele que mais despertou a reli-giosidade dos devotos e a criatividade dos artistas. Na Idade Média, a Anunciação funcionou como um importante tema de peças de altar e de outras pinturas ocidentais, já no Oriente, tornou-se tema de inúmeros ícones.

16 A carta se tornou conhecida por conter a afirmação de Gregório de que a pintura tem a capacidade de instruir os iletrados sobre a história sagrada, difundindo-se posteriormente a concepção de pintura como a “bíblia dos iletrados”. 17 CÉSAR, Aldilene Marinho. Imagens e práticas devocionais. A estigmatização de Francisco de Assis na pintura ibero-italiana dos séculos XV-XVI. Rio de Janeiro: UFRJ / Programa de Pós-graduação em História Social, 2010. p. 136. 18 SCHMITT, Jean-Claude, p. 98. Grifo original do autor. 19 PELIKAN, Jaroslav, Op. Cit., p. 171. 20 PELIKAN, Jaroslav, p. 117.

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É de Fra Angelico21 a iconografia da vida mariana considerada fundadora do seu tipo iconográfico mais difundido. “Fra Angelico, frade dominicano, pintou afrescos no mosteiro florentino de São Marcos, por volta de 1440, onde estão suas mais belas obras”22. Sua contri-buição é assinalada pelos muitos trabalhos que realizou sobre a Anunciação e uma de suas mais generosas representações sobre este episódio legendário encontra-se pintada na cela 3 do Mosteiro de São Marcos. Nela, Fra Angelico “representa a história sagrada em toda a sua beleza e simplicidade”23.

Figura 4 – Fra Angelico. Anunciação (Cela 3), c 1440-1442. Afresco, 176×148 cm. Museu de São Marcos, Florença.

A delicadeza com o qual representou o episódio – dominado por um espírito contem-plativo - auxiliou os cristãos a se lembrarem da Santa Maria com afeição. Além dos afrescos pintados em São Marcos, Fra Angelico realizou ainda muitos outros trabalhos dedicados à Anunciação, que serviram, na verdade, como modelo para as inúmeras “Anunciações” que do-ravante se representaria.

21 Fra Angélico é o nome com o qual o frade dominicano Giovanni da Fiesole, beatificado por suas virtudes insignes, entrou na legenda como um dos maiores mestres da pintura sacra. Ele viveu na primeira metade do século XV (1410-1455) e foi religioso do convento de São Marcos, em Florença. 22 GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. 16ª Ed. Rio de Janeiro. Editora LTC - Livros técnicos e científicos, 1999. p. 252. 23 GOMBRICH, Ernst Hans, p. 252.

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Figura 5 – Fra Angelico. Anunciação, c 1442-1443. Afresco, 230×321 cm. Museu de São Marcos, Florença.

Figura 6 – Fra Angelico. Anunciação, c 1451-1452. Têmpera sobre madeira, 38,5×37 cm. Museu de São Marcos, Florença.

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Figura 7 – Fra Angelico. Anunciação, c 1433-1434. Têmpera sobre madeira, 150×180 cm. Museu Diocesano, Cortona.

Figura 8 - Fra Angelico. Anunciação, c 1433-1434. Têmpera sobre madeira, 175×180 cm. Museu Diocesano, Cortona.

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Referências Fontes iconográficas ANÔNIMO. Maria e o Menino Jesus, Séc. II. Pintura, sem informação sobre as dimensões. Catacumba de Santa Priscila, Roma.

ANÔNIMO. Ícone da Virgem, Séc. XII-XIII. Pintura, 117×79 cm. Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma.

ANÔNIMO. Virgem de Vladimir, Séc. XIII. Pintura, 110×70 cm. Galeria Tretyacov, Moscou.

FRA ANGELICO. Anunciação (Cela 3), c 1440-1442. Afresco, 176×148 cm. Museu de São Marcos, Florença.

FRA ANGELICO. Anunciação, c 1442-1443. Afresco, 230×321 cm. Museu de São Marcos, Florença.

FRA ANGELICO. Anunciação, c 1451-1452. Têmpera sobre madeira, 38,5×37 cm. Museu de São Marcos, Florença.

FRA ANGELICO. Anunciação, c 1433-1434. Têmpera sobre madeira, 150 x 180 cm. Museu Diocesano, Cortona.

FRA ANGELICO. Anunciação, c 1433-1434. Têmpera sobre madeira, 175 x 180 cm. Museu Diocesano, Cortona.

Fontes escritas CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO. “Decreto sobre a invocação, a veneração e as relí-quias dos santos, e sobre as imagens sagradas (1563)”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura. Textos essenciais. Tradução Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2004. Vol. 2. p. 65-69.

MOLANUS, Jean. “História das imagens e pinturas sagradas (1570)”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura. Textos essenciais. Tradução Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2004. Vol. 2. p. 70-74.

PALEOTTI, Gabriele. “Discurso sobre as imagens. (1582)”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura. Textos essenciais. Tradução Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2004. Vol. 2. p. 75-82.

TEIXEIRA, Celso Márcio (Org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

Referências bibliográficas BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1997.

CÉSAR, Aldilene Marinho. Imagens e práticas devocionais. A estigmatização de Fran-cisco de Assis na pintura ibero-italiana dos séculos XV-XVI. Rio de Janeiro: UFRJ/Programa de Pós-graduação em História Social, 2010.

GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora LTC - Livros técnicos e científicos, 1999.

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PELIKAN, J. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PROENÇA, Graça. História da Arte. 16ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 2000.

SHIMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre e cultura visual na Idade Mé-dia. Tradução de José Rivair Macedo. Baurú, São Paulo: EDUSC, 2007.

Referências eletrônicas Web Gallery of Art. Disponível em: http://www.wga.hu/index1.html. Acesso em: 31 de ago. de 2012.

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SUBINDO A AVENIDA. A CIDADE VOLTADA PARA O RIO, DÁ AS COSTAS PARA O RIO Uma antropogeografia da Avenida Eduardo Ribeiro e a reforma urbana de Ma-naus

Bruno Miranda Braga1 [email protected]

Resumo

O artigo apresenta uma análise geohistórica da refundação, da reforma urbanística que foi operada em Manaus no decurso do século XIX, e limiar do XX, destacando a Avenida Eduardo Ribeiro como principal ponto desse processo. Pela análise das fontes e do correr da pesquisa, apresentamos que o desenvolvimento da cidade, que antes partia para de uma geografia naturalmente amazônica ligada ao rio, e suas sociabilidades, vai entrar em choque com o advento da modernidade e a riqueza proporcionada pela extração e comercio da borracha, im-pondo a Manaus um enquadramento nos padrões de “civilidade e cultura” que imperavam na Belle Époque. O texto parte de pressupostos interdisciplinares: interligamos conceitos e categorias geográficas com teorias e fon-tes históricas, categorias antropológicas nos proporcionando assim bem revelar o fenômeno urbano presente no ecúmeno, e suas diferentes idiossincrasias nesse espaço habitado. Apresenta uma análise de como foi a experi-ência da cidade de Manaus ao vivenciar a expansão urbana proporcionada pela exploração do ciclo econômico da borracha, ao fim do século XIX, início do XX. Propomos apresentar como uma cidadezinha, de tipologia inte-riorana e ainda na condição de Vila, cresceu, e expandiu-se tornando-se cidade, em um tempo rápido. Palavras-chave: Cidade de Manaus. Transformação. Avenida. Modernidade.

Resumen

El artículo presenta un análisis geohistórica de la refundación, de la reforma urbana que se operó en Manaos durante el siglo XIX, y umbral del XX, destacando la Avenida Eduardo Ribeiro como el punto principal de este proceso. Analizando las fuentes y el curso de la investigación, presentamos que el desarrollo de la ciudad, que anteriormente se apartó de una geografía naturalmente amazónica vinculada al río, y su sociabilidad, chocará con el advenimiento de la modernidad y la riqueza proporcionada por la extracción y el comercio de caucho, imponiendo a Manaos un marco en los estándares de "civilidad y cultura" que prevalecieron en belle époque. El texto parte de supuestos interdisciplinarios: interconectamos conceptos y categorías geográficas con teorías y fuentes históricas, categorías antropológicas, proporcionándonos así a revelar el fenómeno urbano presente en el ecumeno, y sus diferentes idiosincrasias en este espacio habitado. Presenta un análisis de cómo era la expe-riencia de la ciudad de Manaos al experimentar la expansión urbana que proporcionaba la exploración del ciclo económico del caucho, a finales del siglo XIX, principios del siglo XX. Proponemos presentar como un pequeño pueblo, de tipología interior y aún en la condición de Vila, creció, y expandiéndose convirtiéndose en una ciudad, en un tiempo rápido. Palabras clave: Ciudad de Manaus. Transformación. Avenida. Modernidad.

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Introdução: fatores do aformoseamento da cidade de Manaus A Cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, vivenciou no último quartel do século XIX, um surto modernizador, devido ao período de expansão trazido pela economia da extra-ção do látex. Pesquisar sobre esse período é relevante essencialmente uma pesquisa voltada

1 Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, na linha de Cultura e Representação. É mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas – PPGH/UFAM (2016). Es-pecialista em Gestão e Produção Cultural (UEA, 2018) Licenciado em História (UNINORTE, 2013), licenciado em Geografia (UEA, 2017). Atualmente é bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico – CNPq.

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para as visões e imagens do urbano, pois nesse momento, a então Manáos passava por uma fase de intensa especulação com o alto valor comercial do extrativismo da borracha, o que acarretou grandes fenômenos geográficos urbanos, e socioculturais na medida em que de um lado os enriquecidos tentaram modificar sua paisagem natural, e transformá-la em grande urbe, porém, de outro lado, haverá intensa migração de trabalhadores, iludidos pelo discurso do fácil enriquecimento; fora o êxodo rural de habitantes da hinterlândia da Amazônia, essen-cialmente caboclos e indígenas.

Assim, de cada vez mais urbanizada nos padrões de modernidade de então, e iniciando sua industrialização, bem como, expandindo seu comércio, Manaus crescera, sua população também. Seu perímetro urbano avança a floresta que a circunda, aterram-se igarapés, surgem os bonds e os grandes prédios públicos.

Na segunda metade do século XIX, as cidades de Belém e Manaus vivenciaram mo-mentos de rápido enriquecimento, denominado de “boom da borracha”. Manaus até então provavelmente, não passava de uma vila pouco habitada, pouco crescida e pouco urbanizada, temos essa visão quando analisamos os escritos da época como a literatura dos viajantes, os jornais, bem como, as falas oficiais do governo e da intendência. Os governantes e a elite enriquecida tinham a necessidade de transformar a cidadezinha em grande urbe, que exalasse modernidade e ordem. Possivelmente a parte pouco favorecida da população (formada por imigrantes e trabalhadores urbanos), não foi bem vista por essa elite, e seria aos poucos expe-lida para longe do perímetro urbano da cidade.

Grandes prédios públicos surgiram, trazendo consigo uma beleza urbanística, mas houve mendicância, e graves problemas sociais. Muitos foram ter de se abrigar nos subúrbios que começaram a fazer parte da cidade. Eventualmente, nas legislações da época, eram pro-postos acima de tudo a ordem urbana e transformar a cidade num lugar limpo, porém cheio de segregação social e espacial. Tudo isso motivado por um discurso modernizador proposto pelos governantes de então.

Manaus como outras cidades do período, implementou em sua paisagem elementos característicos de uma nova urbe, moderna, com circulação de bondes elétricos, pontes de metal, uma arquitetura mais elegante, se aformoseou, nos dizeres da época. Certamente, houve em Manaus falta de moradias, desemprego, segregação espacial e aumento significativo da população.

No mesmo espaço/tempo em que se cria a cidade projetada, enfeitada e urbana, cria-se um lugar para poucos, um lugar para um público específico, e afasta quem não se enquadra em suas normatizações. A cidade cresceu, sua população também. Houve uma expansão da área urbana (da cidade), surgiram uma série de situações que iam contra a ordem e o modelo de cidade disciplinar.

Seguindo a teoria proposta pelo filósofo Henri Lefebvre (2001), houve possivelmente diferentes fatos que apresentaram as contradições da vida urbana, pois os violentos contrastes entre riqueza e pobreza, poderosos (no caso de Manaus os barões da borracha, e a elite enri-quecida) e oprimidos não impedem o apego a cidade, nem a contribuição ativa para a beleza da obra; isso será visível à medida que o poder público travou uma luta, utilizando meios legais para alterar a topografia da cidade, a sociabilidade, e consequentemente, a geoestrutura do cotidiano citadino.

O governo, especialmente o de Eduardo Gonçalves Ribeiro, fará algo que se aproxima do proposto por Lefebvre (2001), quando este destacou os três atos em Paris e, estes atos pro-duzirão uma urbanização desurbanizante, pois ao mesmo tempo que embeleza, segrega, exclui, impõem valores diferentes. Tudo isso e, outras coisas, aconteceram por aqui, e há

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necessidade da ciência geográfica, ciência esta que se preocupa com o bem-estar do homem no espaço, pesquisar sobre tal acontecimento espacial/temporal, pois é pelo tempo que vis-lumbramos as transformações do espaço.

A cidade, a modernidade e o Rio: o sítio de Manaus Ainda na atualidade, uma das formas de se chegar a Manaus é pelo transporte fluvial, pelo Rio. Ao se chegar a Manaus pela via fluvial, o primeiro contato que temos é de uma cidade banhada pelo Rio Negro, e o primeiro contato visual que vemos é o templo da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, com sua frente voltada para o Rio, como um convite à cidade.

O sítio da cidade na segunda metade do século XIX, era o entorno do porto, mesmo que sem suas instalações. A cidade e sua sociabilidade estavam diretamente ligadas ao rio, como nos diz José Aldemir de Oliveira (2004), a cultura das cidades da Amazônia, colonizada por portugueses, estão diretamente ligadas à beira de rio. O rio era o primeiro contato com a cidade. As figuras 1 e 2 apresentam a frente de Manaus em 1885.

Figura 1 – A cidade de Manaus na segunda metade do século XIX. Fonte: Santa-Anna Nery, Les Pays des Amazones, 1885.

Figura 2 – O antigo ancoradouro de Manaus – Paisagem do ancoradouro de Manaus na segunda metade do século XIX. Fonte: Santa-Anna Nery, Les Pays des Amazones, 1885.

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De acordo com Aziz Ab’Saber (1953), a primeira gravura corresponde a um fragmento da paisagem antiga da capital do Amazonas, retratando a cidade num período que precedeu a instalação do porto e da alfândega e que antecedeu o soterramento de um dos pequenos iga-rapés centrais do aglomerado urbano. Já a segunda gravura, conforme o mesmo autor, trata-se do lugar exato, onde mais tarde, nos primeiros anos do século XX, foram construídas as modernas instalações portuárias da cidade. Com essas imagens queremos aludir para a paisa-gem de Manaus, uma paisagem que remota hoje em nós uma coisa distante, quase uma utopia, nisso nos aproximamos de Lefebvre (2001), quando o teórico nos propõe

A utopia apega-se a múltiplas realidades, mais ou menos longínquas, mais ou menos conhecidas, desconhecidas, mas conhecidas. Não se apega mais a vida real quotidi-ana. Não nasce mais nas ausências e lacunas que escavam cruelmente a realidade circundante. O olhar se desvia, deixa o horizonte, perde-se nas nuvens, alhures. Ta-manho é poder que a ideologia tem de desviar, no exato instante em que não se crê mais na ideologia, mas sim no realismo e no racionalismo. (LEFEBVRE, 2001, p. 123).

Manaus estava mudando, estava crescendo, se expandindo. A cidade que crescera vol-tada para o rio, tenderia a se distanciar, especialmente do ímpeto topográfico que era mais visível em seu sítio. O plano modernizador2 implantado na cidade alterou grande parte da urbe, tornando a cidade soberba e presunçosa.

A atividade de extração em si ocorria nos seringais, portanto, fora das cidades, numa espacialidade resultante da necessidade de mapear, cortar e extrair o látex, por um lado, e da solidão de um cotidiano do não ter com juntamente com a força da ativi-dade quem falar, interagir, fazendo o seringueiro existir de fato, não enquanto ser biológico, mas dessa justaposição, enquanto ser ontológico. Contudo, era nas cidades que se podia observar a concretização da ideologia do “novo”, na arquitetura, na indumentária, nos pretéritos, hábitos alimentares, tudo advindo junto com realidade da produção do espaço urbano escoar da seiva. Essa ideologia do novo engrandeceu Manaus com monumentos importados da Europa, tentava-se simular uma vida europeia, um simulacro espacial que tentava negar a herança indígena e a natureza circundante. O rio, que trazia a memória do meio natural, tinha que ser esquecido e a nova cidade de Manaus, produzida a partir da necessidade de inserção no circuito do capital, foi se estabelecendo de costas para ele. (LIMA, 2008, p. 111).

Aos poucos, cumprindo os ideais de civilização e urbanidade de então, a cidade se vol-tou de costas para o rio. E subiu a avenida! Se tomarmos como base os primeiros edifícios construídos na cidade, verificamos que a sociabilidade era estabelecida na orla do rio. Até aqui enfatizamos a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, como marco voltado para Rio. Outro edifício tão frequentado quanto o Templo, é o Mercado Público Adolpho Lisboa. Loca-lizado em terra firme, mas numa região literalmente à beira do rio, voltado para o rio.3

2 Também chamado de “Política de embelezamento”, tratasse de ações e estratégias políticas levantadas entre os anos 1890-1895 para a transformação da urbe de Manaus. Entre esse período, a cidade foi administrada por Eduardo Ribeiro, um dos mentores da política de embelezamento que levou adiante grande parte das construções arquitetônicas e paisagísticas da cidade. Com esse plano, Manaus mudou quase que completamente seu traçado urbano, e deixou quase por completo as características de vila, e se tornara uma pequena e graciosa cidade. 3 O Mercado possui duas fachadas e entradas, uma na Rua dos Barés, e outra voltada para o Rio Negro. O Mercado foi construído entre 1881-1902, segundo o estudioso Otoni Mesquita. Ainda segundo este autor, a Igreja Matriz, chamada popularmente de Catedral foi a primeira grande obra arquitetônica do período provincial.

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Ana Daou destaca a subida a avenida4 pelo traçado urbano pela construção de novos edifícios públicos no alto da Avenida. De fato, pela leitura de relatórios e documentos do pe-ríodo vemos que a Avenida se tornou o local de maiores investimentos e transformações urbanas. Nessa perspectiva, Ana Daou destaca que,

Colinas foram aplainadas, de tal modo que a cidade antes dividida pelos igarapés, agora aterrados e canalizados, passou a ter dois patamares principais: aquele voltado para o rio e o que dele se distanciava, incorporando as áreas de mata ao quadriculado do novo traçado. A avenida principal, denominada Avenida do Palácio quando inau-gurada em 1901, recebeu o nome de Eduardo Ribeiro, uma homenagem póstuma. Conhecida pelos moradores da cidade como “Avenida”, indicava o centro simbólico da cidade então concebida. (DAOU, 2014 p. 118).

Quando verificamos as cartas produzidas no período, verificamos o avanço da cidade rumo ao alto da avenida, no sentido norte partindo da área portuária da cidade rumo ao atual edifício do Instituto de Educação do Amazonas-IEA, no alto da Avenida na Rua Ramos Ferreira entorno da Praça Antônio Bittencourt (do Congresso).

A hidrografia e a influência dos rios e das águas na Amazônia é indiscutível. Manaus, encontra-se assentada numa posição de confluência de rios, e defronte para o Rio Negro. Oli-veira enfatiza que a água e o lugar em Manaus foram importantes pois:

O núcleo central que se foi estruturando a partir do forte e da igreja encontra-se em terras firmes, correspondentes aos divisores d’águas dos igarapés e de suas vertentes. Até meados do século XIX, os igarapés resistiram às intervenções e mantiveram-se presentes nas formas do espaço da cidade, estabelecendo, de certo modo, os limites de crescimento da cidade. A hidrografia, portanto, exerceu e exerce forte influência na configuração do sítio urbano e de certa maneira na morfologia da cidade. Até os anos sessenta sua ocupação produziu-se num processo que retoma a forma da cidade do final do século XIX, com o aterro dos igarapés da parte central da cidade e a construção de três pontes na Avenida Sete de Setembro. (OLIVEIRA, 2008, p. 34).

A morfologia da cidade, assim tendeu a se distanciar desses atributos físicos que des-tacam a forte influência dos igarapés no núcleo urbano, que como concordamos com o autor acima referenciado, se dava no entorno da Igreja Matriz e do antigo Forte, locais que eram referências a cidade antiga, a Vila da Barra, ligada ao atraso e ao não moderno.

A forma urbana de Manaus foi sendo moldada a partir do padrão topográfico limi-tado por vales afogados, com o rio Negro penetrando cidade adentro. A cidade foi se conformando aos igarapés que isolavam os blocos urbanos, e sua forma foi estrutu-rada pelo conjunto de sistemas naturais, igarapés, áreas alagadas e margem do rio Negro. Se até o final do século XIX foram os igarapés que condicionaram a direção do crescimento da cidade, no início do século XX, os fatores naturais delimitadores da cidade foram sendo superados por aterramentos e pela construção de pontes. O espaço da cidade de Manaus foi sendo moldado a partir de um sistema de objetos artificiais e por um sistema de ações (Santos, 1997) igualmente artificiais como pon-tes e aterros e ocupação das margens dos igarapés. (OLIVEIRA, 2008, p.p. 34 e 35).

Toda essa transformação urbana, essa modernização pela qual a cidade passou, foi fruto, reitero da economia da borracha pela qual a cidade foi modelada para atender gostos de enriquecidos que a elegeram como morada e por aqui exerciam suas atividades comerciais e

4 A Avenida que nos referimos é a atual Avenida Eduardo Ribeiro, antigamente denominada de Avenida do Palácio.

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econômicas. A geografia da cidade tendia a se afastar da geografia de beira de rio. A cidade se expandiu floresta adentro, e se distanciou da orla do rio, se afastou na medida em que subia a Avenida e para lá, se formou uma cidade para a elite, uma cidade de sociabilidade moldada para satisfazer os gostos de um grupo específico. O plano de embelezamento seguia uma pro-posta urbana na qual haveria uma tríade edificada formada pelo cruzamento em forma triangular de três edifícios que seriam centrais no alto da Avenida, como vemos no detalhe extraído da Carta Cadastral da cidade e arrabaldes de Manaus de 1893.

Figura 3 – Carta Cadastral da Cidade e Arrabaldes de Manaus de 1893. [detalhe para a localização dos novos edifícios da Avenida5].

A figura 3, um recorte da Carta Cadastral de 1893, mostra como a cidade estava avan-çando rumo ao alto da Avenida e se distanciando do rio. Ana Daou (2014) propõe que a cidade estava de fato se dividindo em duas a primeira voltada para o rio no entorno da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, do Mercado Público e do Ancoradouro, e uma outra parte, subindo rumo ao alto da Avenida. Assim a cidade neste momento passou a ser determinada pela Avenida, uma vez que:

Começando junto ao cais do porto – que ainda não existia naquela ocasião – a Ave-nida passava pelo relógio público e margeava a praça da Matriz, avançando para o alto, por uma área até então praticamente desocupada. Este eixo conecta o alto e o baixo. No baixo, junto ao rio, a antiga Matriz, próxima ao Palacete Provincial, a área dos armazéns e do comércio. No alto, os novos espaços da cidade em expansão. (DAOU, 2014. p.p.118-119 – grifos nossos).

5 A ideia foi proposta por Ana Daou, que é geógrafa, mestra e doutora em Antropologia Social, e professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1. No alto da Avenida estaria o Palácio do Governo (novo).

2. Ao lado Direito no sentido subindo a Avenida, está o Teatro Amazonas.

3. Ao lado Esquerdo, está o Palácio da Justiça.

4. Igreja Matriz, voltada para o Rio Negro.

5. Mercado Público, as margens do Rio Negro.

6. Ancoradouro do Rio Negro.

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Com relação a colocação dos três imponentes edifícios o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, e, o Palácio do Governo, Ana Daou (2014) destacou que a forma triangular como vemos na imagem anterior era um adorno urbano na qual o coroamento seria o Palácio do Governo, pois:

Imaginando-se o traçado de um triângulo, o Palácio do Governo ocuparia o vértice superior, a partir do qual em pontos simetricamente equidistantes, situam-se os outros dois que comporiam a tríade: à esquerda o prédio do Teatro Amazonas, e à direita, o do Tribunal de Justiça. Os três edifícios previstos no plano tinham funções especificas: a política, a justiça, e a alta cultura ou artes dramáticas. A tríade não chegou a ser inteiramente realizada. No conjunto da “Manaus mo-derna”, os emblemas da ordem republicana foram deslocas para outro lugar, atendendo aos interesses mais imediatos da elite urbana, em detrimento da utopia positivista. Pois o abandono da construção do Palácio do Governo, no início da dé-cada de 1900, é correlato ao final de uma época em que atuaram predominantemente como governadores aqueles ligados à “mocidade militar”. Encerrava-se um período de consagração do ideário republicano tão bem disposto na triangulação formada pelos prédios que encimavam a Avenida. (DAOU, 2014, p. 120 – grifos nossos).

A cidade estava se expandindo... E essa expansão também engendrou uma segregação espacial, ao subir a Avenida, ao destaca-la com três grandes e imponentes edifícios públicos é evidente que não seriam todos os cidadãos que transitaram, que usufruíram deste espaço pois o mesmo se tornou um lugar estratégico de trânsito da elite.6

Foi uma cidade, reitera-se, projetada pela elite, para elite, pois,

É a Manaus das avenidas, dos cafés, do teatro, dos palacetes, de um urbanismo higi-enizado e organicista, fruto de uma racionalidade que se estabelece a partir da abertura de ruas e de aterro de igarapés. Um urbanismo cuja finalidade era a busca, por meio da construção de equipamentos urbanos e de infraestrutura, de soluções para alguns dos problemas de uma cidade e para dar conta de suas novas funções urbanas. Esta Manaus, mais que uma cidade real, fazia parte do imaginário da elite extrativista. (OLIVEIRA, 2008, p. 36).

A Avenida e a reconfiguração sócio espacial A Avenida em 1904, no Postal, figura 4, já se encontrava quase que em completa e perfeita harmonia. Seus prédios públicos apresentam aspectos elegantes, a imagem da cidade a partir da Avenida mostra elementos urbanos de uma cidade elegante e feliz, com ares estrangeiros.

6 Ao subir a Avenida, ali se instalaram os membros da alta sociedade da cidade. As práticas da elite, as sociabili-dades começaram a acontecer no entorno do Teatro Amazonas, no Palácio da Justiça, ou mesmo nas praças que surgiram nas proximidades da Avenida. Ana Daou aponta para essa questão enfatizando que tudo que anterior-mente acontecia no entorno da Igreja da Matriz do Mercado ou do Cais do Porto, passou a ser realizado, ou transferido para a Avenida.

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Figura 4 – Manaus, Avenida Eduardo Ribeiro, 1904. Postais Manaus 1 – Photographia Allemã de G. Huebner & Amaral, Manaus. Acervo: IGHA, 2015.

A sensação transmitida pela cena retratada no postal é de um cotidiano feliz, mas no cotidiano, dá-se as diferenças e as sobrevivências. De acordo com Milton Santos (2006),

No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e insti-tuições – cooperação e conflito são a base da vida comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontanei-dade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubs-tituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (SANTOS, 2006, p. 218 – grifos nossos).

Seguindo a teoria proposta por Milton Santos (2006), vemos que em Manaus mesmo com as tentativas forçosas de impor uma nova ordem urbana, os habitantes ainda viveram com suas tradições sociais e culturais, mesmo que impedidos de serem manifestados. O lugar ocupado pela elite ao subir a Avenida foi uma das diversas tentativas de romper a imagem da cidade ligada a “beira do rio”, era necessário no discurso da época, que a cidade abandonasse essa ligação natural do meio físico para impor “improvisar” uma nova urbe.

[...] No final da Avenida, em cima de um pequeno promontório que lhe acentuava a importância, estava prevista a construção do Palácio do Governo, o lugar privilegi-ado do poder. O novo centro cívico ocupava agora uma posição oposta à do antigo centro. Definia-se uma área nova e distanciada do prédio da Igreja Matriz, tal como a ordem republicana estabelecia a separação dos poderes. Marcava-se no espaço ur-bano o início de um novo tempo: projetava-se para o alto, no patamar topograficamente mais elevado, os prédios do Palácio do Governo, do Palácio da Jus-tiça e do Teatro Amazonas. (DAOU, 2014, p. 119).

A Avenida se tornou um símbolo do progresso, nela se instalaram diversos elementos que apresentavam Manaus como uma nova cidade, uma cidade agradável, cosmopolita, uma cidade digna para sediar as negociações da borracha. Mas, concordamos com os trabalhos da

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nova historiografia da cidade7 que apresentam em seus textos o outro lado da cidade, o lado que pouco vivenciou o glamour urbano da Belle Époque. Otoni Mesquita (2009), em sua tese de doutoramento aponta que a transformação urbana da cidade de Manaus foi parte de um forte processo para atrair capital estrangeiro, no qual a cidade passou a ser uma vitrina, algo para mostrar e atrair olhares. Nisso, a Avenida e o urbano nela inserido compuseram o dis-curso. As figuras 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, destacam o processo de transformação que se operou na paisagem e na geografia da Avenida.

Figura 5 – Igarapé do Espírito Santo no Sentido Sul. Autor: George Huebner, 1870. Acervo: Otoni Mesquita.

Fotografia de George Huebner, década de 1870. Apresenta o Igarapé do Espírito Santo no sentido Sul, nas proximidades da Ponte do espírito Santo. Segundo Otoni Mesquita, atual-mente este lugar corresponde ao cruzamento da Avenida Eduardo Ribeiro com a Avenida Sete de Setembro, vemos a paisagem citadina, muita vegetação local, e um igarapé tipicamente amazônico...

Figura 6 – Avenida do Palácio, 1890, vista partindo do rio para o Alto da Avenida. Autor: George Huebner, 1890 – Álbum Vistas de Manaus. Acervo: Instituto Moreira Salles.

7 Como os trabalhos de Edinea Mascarenhas Dias, Maria Luíza Ugarte, de Otoni Mesquita, e outros.

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Neste ano, 1890, o fotógrafo George Huebner, um alemão que se hospedou em Manaus e por aqui fez carreira, retratou o processo de pavimentação e alargamento da Avenida. Per-cebemos na cena, encaminhar da Avenida no sentido Norte, se partindo do Rio Negro. Nesse rumo vemos acima trabalhadores urbanos, possivelmente funcionários do governo do setor de obras públicas.

Figura 7 – Avenida Eduardo Ribeiro. Fonte: Álbum do Amazonas 1901-1902. Acervo Pessoal.

Figura 8 – Uma parte da Avenida Eduardo Ribeiro. Fonte: Álbum do Amazonas 1901-1902. Acervo Pessoal.

Nesta imagem vemos o mesmo ângulo da imagem da figura, porém agora sem um elemento central: o igarapé Espirito Santo que dava nome a Avenida anteriormente. O igarapé foi aterrado e a Avenida do Palácio passou a se chamar Avenida Eduardo Ribeiro, e formara o principal lugar da cidade. Pela fotografia acima, verificamos como nos aponta Otoni Mes-quita (2009) que seguindo o plano de embelezamento, houve desapropriações de alguns terrenos e imóveis, que ficavam maldispostos entre “a travessa do Equador, a travessa da Con-ceição e a rua Comendador Clementino.

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Figura 9 – Avenida Eduardo Ribeiro, 1901. Autor: George Huebner, 1901 Acervo: Bilioteca Pública do Estado do Amazonas (Versão digitalizada).

Elementos da modernidade urbana na cidade: prédios em arquitetura estrangeira, ruas largas e pavimentadas, bondes elétricos. Neste local anos antes corria o igarapé que foi ater-rado em nome do progresso. As obras no topo da Avenida seguem, e para lá que a cidade caminha, o novo perímetro urbano cresceu no sentido norte da subida da Avenida, partindo do Rio.

Vista a partir da metade, no sentido Norte, partindo do Rio, a Avenida já se encontrava com as mudas de sua arborização, algumas dessas árvores ainda estão em pé. Vemos ainda parte da vegetação silvestre no entorno do Teatro Amazonas. Vê-se uma área sendo aterrada, possivelmente seria a parte final do Igarapé, a direita. Presenciamos nesta imagem uma nova morfologia que se implantou na cidade, uma cidade que subia, e se distanciava da beira do rio.

Figura 10 – Avenida Eduardo Ribeiro, Parte Comercial. Fonte: Almanaque Palais Royal, 1909. Acervo: Bilioteca Pública do Estado do Amazonas (Versão digitalizada).

Aqui a Avenida encontra-se em seu processo de quase completa urbanização. O iga-rapé foi completamente aterrado, sendo substituído pela larga e pavimenta Avenida. Vemos

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o Bonde de tração elétrica, que simboliza outro elemento da modernidade na selva. Vemos também charretes a tração animal, prédios comerciais com fachadas em estilo europeu. A vegetação silvestre deu lugar a uma vegetação improvisada.

Imagem famosa em nossa memória quando pensamos em Manaus do fim do século XIX. A Avenida Eduardo Ribeiro com toda sua extensão rumo ao norte, partindo do Rio. A cena cotidiana mostra as algumas das características urbanas e sociais do dia a dia da cidade. A Avenida como lugar de consumo e consumo de lugar, como teorizou Henri Lefebvre. Nesta cena, vemos o fluxo de pessoas seja nos transportes (charretes), seja pedestre mesmo. Vemos as fachadas das casas comerciais que se formaram ao longo da Avenida, e é claro, vemos os novos elementos urbanos que transformaram a geografia da cidade. Manaus aqui parecia um doce e agradável cidadezinha.

Figura 11 – Avenida Eduardo Ribeiro. Álbum do Amazonas 1901-1902. Acervo Pessoal.

Acima da Avenida, estão ainda hoje erguidos o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, e o projeto do Novo Palácio do Governo. Com relação a este último, o desenho foi de autoria do italiano Domenico de Angelis, requintado artista do período, que em Manaus foi o respon-sável pela decoração do Salão Nobre do Teatro Amazonas, e também foi o criador do Monumento a Abertura dos Portos, presente no Largo de São Sebastião. De fato, a tríade dos edifícios e o coroamento desta que seria dado pela colocação do Palácio do Governo nunca foi concluído, o que temos hoje no alto da Avenida Eduardo Ribeiro é o prédio do Instituto de Educação do Amazonas – IEA, ali instalado nos anos 1940, fundado sobre o que restara do projeto do Palácio.

Considerações finais A cidade ao começar o processo de modernização urbana, aponta para uma destruição de tudo que remetesse a antiga Vila da Barra. Apontamos que mesmo o nome da cidade, a cidade inicialmente se chamou Cidade da Barra do Rio Negro, e em menos de três anos mudou seu nome para cidade de Manaus. Assim as elites da cidade tentaram romper com tudo que reme-tesse ao seu passado, passado este ligado a uma geografia difícil e sem glamour, de uma cidadezinha que mais parecia uma vila sem pavimentação, sem ornamentos, sem estética

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urbana. O ímpeto de mudar as feições da cidade se tornou uma medida governamental e uma prioridade de diferentes governantes, especialmente no governo de Eduardo Ribeiro.

Grandes e suntuosos edifícios públicos, espaços verdes e praças com traçado decora-tivo, bondes elétricos, pontes de ferro, ruas largas e pavimentadas, começaram a surgir em diferentes pontos do perímetro urbano trazendo consigo uma emblemática urbanização na qual os habitantes menos abastados pouco presenciavam e eram inseridos nesse contexto de novidade.

Os Códigos de Posturas eram instrumentos de exclusão social. Tal legislação ordenava aos habitantes, uma completa modificação de sua moradia, até a postura nos logradouros pú-blicos. A nova arquitetura da cidade vem trazendo um estigma de que a cidade representa civilização, era preocupante para os enriquecidos que a cidade mais parecesse uma grande aldeia atrasada, do que a capital mundial da borracha. É como, nos diz o historiador Otoni Mesquita (2006), Manaus foi enfeitada, urbanizada seguindo os moldes de uma vitrine, objeti-vando atrair olhares de comerciantes e investidores internacionais.

Referências AB’SABER, Aziz Nacib. A cidade de Manaus: Primeiros Estudos. In: Amazônia do Dis-curso a práxis. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o Paiz das Seringueiras: práticas e representa-ções da sociedade amazonense na passagem do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2014.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Trad. de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

LIMA, Marcos Castro de. A Cidade, o Urbano e o Rio na Amazônia. In: Revista ACTA Geo-gráfica, ANO II, n°3, jan./jun. de 2008.

MESQUITA, Otoni Moreira. La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos (1890-1900). Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas (EDUA, 2009).

OLIVEIRA, José Aldemir de. Espaço-Tempo de Manaus: a natureza das águas na produção do espaço urbano. In: Revista Espaço e Cultura. UERJ. N. 23. Rio de Janeiro: jan./jun. de 2008, p.p. 33-41. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br. Acesso em: 02 de setembro de 2009.

OLIVEIRA, José Aldemir. A Cultura nas (das) pequenas cidades da Amazônia Brasileira. Comunicação apresentada no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. setembro de 2004. Disponível em: http://www.ces.ue.pt/lab2004/inscriçao/pdfs/painel74. Acesso em: 02 de setembro de 2009.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

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O GÓTICO COMO CONCEITO E SEUS APORTES À HISTORIOGRAFIA

Luis Felipe Figueiredo Leitão1 [email protected]

Resumo

Este trabalho tem como objetivo lançar sobre o gótico um olhar historiográfico a fim de analisar suas ocorrências identificando as contribuições e significados que lhes foram conferidos e que assumiram na sociedade. Para tanto, tomou-se como guia os cenários em que surgiu desde seu princípio na baixa Idade Média até a segunda metade do século XX quando se inseriu entre os movimentos contraculturais do período, observando possíveis conexões entre suas múltiplas insurgências bem como a construção da mentalidade, estética e identidade próprias que lhe puseram sempre em oposição aos valores socioculturais, políticos e econômicos dos períodos. Palavras-chave: Arte. Gótico. Sociedade. Cultura. Contracultura.

Abstract

This work aims to cast a historiographic look on the Gothic in order to analyze its occurrences identifying the contributions and meanings that have been given to them and that they have assumed in society. To this end, it took as a guide the scenarios in which it emerged from its beginning in the low Middle Ages until the second half of the 20th century when it was inserted among the countercultural movements of the period, observing possible connections between its multiple insurgencies as well as the construction of the mentality , aesthetics and identity that have always put it in opposition to the socio-cultural, political and economic values of the periods. Keywords: Art. Gothic. Society. Culture. Counterculture.

― ―

Introdução As manifestações artísticas sempre carregaram entre seus múltiplos meios e significados a exteriorização do caráter intimista caracterizando, dessa maneira, uma forma de se comunicar, o que constitui um dos pilares centrais nas relações humanas.

Na história da sociedade ocidental, o advento da escrita é o marco da concepção de civilidade expondo uma tendência implícita e quase natural de colocar na penumbra as mani-festações artísticas antecedentes. Dessa forma, a arte e a humanidade caminharam e caminham perpendicularmente no desenrolar da história humana onde, a despeito da dificul-dade ou impossibilidade de determinar o que é arte, tem-se em consenso que se trata de manifestações. Manifestações de emoções, de percepções, do imaginário ou ainda de repre-sentações; e assim oferta marcos às culturas, memórias, saberes, entre outros. Portanto, manifestações artísticas figuram também como testemunhas da história.

Assim sendo, a aglutinação desses dois elementos fornece ao pesquisador vistas ao indizível. Também permite a este trabalho tanto o seu recorte específico quanto o transitar por entre os diferentes períodos de manifestação do gótico, esse termo que surgiu como um estilo artístico e metamorfoseou-se em sua travessia pelos séculos estendendo suas ramifica-ções desde a Idade Média até a atualidade.

1 Graduado em História pela UFRJ, especialista em Ensino de História pela UCAM e mestrando em Filosofia e Ensino pelo Cefet-RJ. Professor de História, pesquisador independente, redator do Portal Deviante e podcaster.

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Estilo gótico O termo gótico é originário do latim gothicus e faz referência aos godos, um dos povos ger-mânicos a habitar o limes romano e que se diferenciava dos demais pelo uso de espadas curtas, escudos redondos e uma constituição social de submissão ao rei. Foi cunhado pelos humanis-tas do período renascentista com intuito pejorativo de associação das manifestações artísticas medievais a uma arte “bárbara”, por haver se desenvolvido entre o declínio da civilização clássica e o nascente período da renascença.

Portanto, o estilo gótico emerge em meio a transformações na sociedade europeia que assinalam o processo de decadência do sistema feudal como, por exemplo, o deslocamento no eixo de poder que elevou as relações econômicas a um patamar mais dinâmico, debruçada sobre uma rede comercial que também se construía por meio de transações culturais que rea-vivaram os centros urbanos acompanhando a ascensão da classe burguesa.

A esse contexto se conjugaram os valores estéticos e filosóficos nascentes, opostos às características do estilo românico, assim como a cultura e as técnicas orientais levadas pelos cavaleiros regressos da primeira marcha cruzadista ao médio oriente – os quais, mais tarde, fizeram o movimento inverso levando o estilo gótico ao Oriente Próximo. Por outro lado, o elemento religioso, tão caro e característico do cenário medieval, demonstrou maior resistên-cia aos efeitos dessas transições socioculturais sendo, portanto, em seu interior que emerge a chamada arte gótica.

Falar em arte gótica ou estilo gótico é algo repleto de nebulosidade, uma vez que o termo foi cunhado com direcionamento específico à arquitetura onde mais se observou seus atributos, muito embora não tenha se atido somente a ela, mas também à pintura e às artes plásticas. Inclusive, é igualmente obscuro determinar a origem dessa manifestação e delimitar o nível de inserção que tenha alcançado na cultura europeia, visto que se manteve por quatro séculos em alguns lugares ao passo que em outras regiões não passou de 150 anos de duração.

Figura 1 – Interior de Uma Catedral Gótica. Pieter Neefs, o Velho, início do séc. XVII. Fonte: https://toutelamemoiredumonde.wordpress.com/2014/04/24/a-arquitetura-gotica-e-o-amor-pela-luz/.

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Figura 2 – Lloro sobre Cristo Muerto, Giotto. Fonte: https://todotipodearte.home.blog/2018/12/12/pintura-gotica/.

Figura 3 – Galeria dos Reis na fachada principal da Catedral. Burgos, Espanha. Fonte: http://arte.vmribeiro.net/?attachment_id=276.

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Dessa forma, toma-se como marco de nascimento a reforma da então abadia de Saint Denis, entre os anos de 1140 e 1144, idealizada pelo abade Surger que identificara a superlo-tação do lugar em períodos festivo com a busca da população pela adoração das relíquias, refletindo justamente a proeminência do campo religioso na vida das pessoas. O projeto in-cluía a ampliação do espaço, literal e figurativamente, ampliando-se as janelas e tornando os espaços mais limpos a fim de dar a fluidez de movimentos e abdicando da quantidade exces-siva de paredes abrindo espaço para a entrada da luz. A luminosidade que a partir de então abundava nos espaços de comunhão também recebia sentidos literal e metafórico, para a pre-sença divina. Com o término da reconstrução do coro, o estilo gótico era inaugurado: um estilo de estímulo à espiritualidade e acesso ao sublime.

Figura 4 – Planta da Abadia de Saint Denis. Fonte: https://ccnmtl.columbia.edu/projects/paris_map/buildings/stdenis/1300.html.

Figura 5 – Altar da Abadia de Saint Denis. Fonte: https://ccnmtl.columbia.edu/projects/paris_map/buildings/stdenis/1300.html.

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Não tardou para que o estilo se expandisse tanto para as demais catedrais francesas – fosse em construções, fosse em reformas – quanto por demais áreas do continente sendo co-nhecida como opus modernum ou francigenum, ou seja, obra moderna ou francesa. A primeira catedral em estilo gótico fora da França foi construída aproximadamente três décadas após a reconstrução de Saint Denis, na Inglaterra. A Catedral da Canterbury foi projetada pelo fran-cês Guillaume de Sens que também projetou a famosa Catedral de Westminster, em 1254, entre outras.

Um século após o aparecimento do estilo gótico, a maior parte da Europa, desde a Sicília até a Islândia, já se apresentava tomada por ele contando pouquíssimas exceções que ainda mantinham a arte românica. À oeste, na península Ibérica, o estilo gótico sofreu influên-cias da cultura latina perdendo uma parte da pureza do movimento estético.

Entre os alemães, o estilo gótico se estendeu por entre todos os povos de língua ger-mânica desempenhando importante papel ao fim do século XIII através das imagens religiosas que apresentavam um fôlego novo. Nesse sentido, a pietà encontrou maior destaque especial-mente pela riqueza de detalhes e onde se buscou provocar o horror e a piedade em uma dimensão quase sufocante, conquistada pela ampliação dos detalhes denunciantes da agonia e da dor.

Essa essência artística manifestava-se tanto pelas artes alemãs, evocantes da grandeza do Criador por intermédio da valorização da obra máxima da criação, quanto nas obras arqui-tetônicas, nas quais as catedrais eram símbolos da Cidade Celeste. Para isso, dois elementos estruturais se destacam na construção material e idealizada: as abóbadas, sustentadas sobre dois arcos cruzados; e o arco ogival, cuja extremidade pontiaguda contribuía para a sensação de verticalização estimulando no fiel o sentimento de busca pela transcendência. No interior desse arranjo, a disposição dos espaços e elementos contribuíam também para a criação da atmosfera transcendental, com o interior em formato cruciforme onde o altar principal era posto à nascente solar e com as paredes permeadas de enormes janelas acompanhadas por vitrais imensos e coloridos, nos quais preponderavam o púrpura, o verde e o violeta. A luz penetrante promovia uma luminosidade extranatural reforçada pelas temáticas de passagens bíblicas específicas para o ensino das premissas cristãs.

As manifestações góticas se estenderam até a cercania dos séculos XIV e XV dando sinais de declínio por volta de 1450, não se fazendo presente entre italianos, e havendo desa-parecido quase totalmente um século mais tarde. A última grande manifestação foi com o estilo flamboyant, caracterizado por florais que tinham forma de flamas e por isso também chamado de “gótico flamejante” antes de gradativamente dar lugar ao estilo renascentista. Foi um movimento de imensa expressão na França, mas que também teve manifestações em Por-tugal onde seus elementos foram substituídos por outros de inspiração náutica e nomeado como gótico manuelino.

Entretanto, o advento da Renascença, que acabou por substituir o estilo gótico assim como designou-lhe a nomenclatura, não significou sua supressão. No máximo um hiato, pois foi novamente alçado à superfície após quase três séculos.

Renascimento gótico Nos últimos séculos da modernidade, o gótico ultrapassou o status de estilo estritamente ar-quitetônico e passou a ser analisado também em referências pictóricas e esculturais. Essa ampliação no entendimento do gótico expôs por um lado as incertezas sobre os seus limites e, por outro, o fato de que o modo como o conceito de arte gótica evoluiu configurar um indicador de seu progresso. Esse movimento permitiu observar recortes temporais de

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predominante manifestação do gótico onde principiou na arquitetura por cerca de um século (1150-1250), sendo o caráter dominante da Era das Grandes Catedrais. A escultura, que se manifestava já no interior arquitetônico, vem em seguida vivenciando seu predomínio por dois séculos (1220-1420) assim como a pintura, que alcançou o seu ápice entre os anos de 1300 e 1350, especialmente no meio italiano, se tornando a arte mais importante ao norte dos Alpes por volta dos anos 1400.

Permitiu também, no século XVIII, com a renovação do interesse na arquitetura medi-eval, o renascimento do gótico sob a alcunha de neogótico.

Figura 6 - Westminster Palace, também conhecido como House of Parliament, reconstruído em 1840 em estilo neogótico. Fonte: https://citaliarestauro.com/o-que-foi-o-neogotico/.

Outra manifestação a nascer nesse período foi a literatura romântica, que materiali-zava o imaginário da época, inspirado pelas formas decrépitas das antigas construções medievais, conquistadas por séculos de existência, e que também constituíam o cenário per-feito para os ares lendários e saudosistas alimentados por certa magia e possibilidades de incorporação e revivescência de sentimentos, aflições, conflitos, terrores e etc. O toque final para a consolidação do gênero literário foi dado pela obra O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, em 1764.

Esse desenvolvimento marcou a passagem do século XVIII para o XIX na sociedade britânica e na francesa marcou o alvorecer do novo século. A expansão do imaginário literário entre as principais cidades europeias acompanhou de certa maneira a expansão já desbravada pela arquitetura gótica da medievalidade. Londres, Paris, Berlin... e até Los Angeles apresen-tavam-se envoltas em névoas expondo as sombras do período entre assassinos estripadores, bordéis e clubes de ópio, marginalizados em geral e sonhos diurnos transmutados em pesade-los noturnos. Em certo tom de humor histórico e guardadas as devidas proporções, poderia se pensar no renascimento do gótico no século XVIII como uma resposta requintada, uma vez

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que emerge em oposição ao neoclássico compondo uma espécie de levante consciente contra o postulado “bom gosto”.

Isso porque durante o Renascimento, foram redescobertas obras de arte e esculturas de caráter greco-romano em grutas e por isso foi denominada arte grotesca, sob a qual o gótico também foi incluído. Uma denominação que revela um movimento de colisão com as norma-tivas religiosas, sociais, jurídicas, artísticas e morais assim como ao sagrado e à narrativa posta como oficial por meio dos artistas que evocavam a obscuridade das lendas populares e segre-dos doutrinários explorando o obsceno, o marginal, o sombrio e o macabro.

Dessa forma, o gótico vai revelando-se um termo fluido que gera uma falsa sensação de conhecimento e familiaridade, mas que guarda uma infinidade de significados. Ainda as-sim, apresenta traços identitários como o jogo de antagonismos: luzes e sombras, bem e mal, sagrado e profano, sexo e morte. Em outras palavras, uma característica primordial é o con-traste que faça emergir os valores inerentes ao lado que se pretende silenciar. Esse aspecto também é observável na escrita gótica que vai priorizar o estilo preterindo o conteúdo e que se tornou bastante popular como no caso dos romances ingleses que denotavam uma narrativa fantasiosa e estimuladora do imaginário. Portanto, a ocorrência do gótico é a manifestação das profundezas do indivíduo, do âmago da existência, conferindo lócus às sombras em meio ao dia e expondo as contradições por séculos alimentadas; é a aproximação da morte como reconhecimento da vida. É, entre muitos sentidos, a externalização da complementaridade dos opostos.

Para os homens do século XIX o gótico tornou-se um viés de posicionamento contra os eventos correntes como, por exemplo, Augustus Pugin que, em seu True Principles of Poin-ted a Christian Architecture de 1841, entende esse movimento artístico como uma resposta à crise social e cultural do período. De igual maneira, o leem como uma bandeira para os ro-mânticos, oriundos da brecha formada pelo “abraço” do capital no movimento gótico moderno ao perceber a oportunidade de lucro que representava o cenário e alimentando o caráter pa-triótico que acabou por suplantar o subversivo. Plantava-se, assim, as sementes do nacionalismo romântico do século XIX, de caráter ainda indefinido, mas com raízes proveni-entes do gótico.

O auge do nacionalismo cultural e das teorias evolucionistas do progresso histórico acabaram por semear uma disputa pela origem do estilo gótico. O termo passou, portanto, a definir não só um estilo artístico, mas também todo um período histórico reconhecido sob a alcunha de uma época gótica manifestada em diferentes visões. Entre os românticos franceses foi o admirável período da fé enquanto para os ingleses tratou-se da luminosa fase dos arte-sãos anterior ao alvorecer industrial, e para os alemães do início do século XX a antecipação da própria angústia.

A transvaloração do gótico, de estilo para práxis, fornece em última instância a passa-gem para sua leitura sob a ótica do século XX. Mais precisamente, sua inserção nos movimentos contraculturais da segunda metade do século, manifestando-se entre finais dos anos 1970 aos fins da década de 1980. Nesse cenário, surge a agora “subcultura” gótica preser-vando seu DNA2 de antagonismos e fazendo sentir tanto a influência quanto o ressurgimento de elementos vitorianos. O grotesco que eleva a imagem da morte ao ponto mais alto também materializa o desprezo pela estética da década representada pela new wave, disco e pelo glam rock, por exemplo.

2 A escolha pelo termo se justifica a partir do entendimento de que o gótico é um movimento orgânico, especi-almente pela sua adaptabilidade aos tempos e meios de propagação, que apresenta características identitárias próprias e que permitem identificá-lo a despeito da forma que assuma.

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O gótico na pós-modernidade As últimas décadas do século XX guardaram espaço ainda para mais um renascimento do gótico sob a forma de uma subcultura questionadora e agressiva que o fazia com apatia e indiferença. Em mais uma vida dessa fênix cultural, subversão e reinvenção se mostram ine-rentes ao gótico e referenciam a habilidade de transmutar-se em uma ampla corrente cultural capaz de manejar os antagonismos assim como sobreviver a uma espécie de caoticidade na-tural. Além disso, a multiformidade estética, seja estritamente artística ou cultural, legou ao gótico independência e singularidade de um estilo artístico que se tornou em estilo de vida com um legado próprio de trevas e subversão.

Estruturalmente, o movimento do século XX revela um tripé fundamental constituído por referenciais da baixa Idade Média, do Romantismo e do Decadentismo observáveis tanto na literatura quanto nas composições musicais que retomavam elementos arquitetônicos e do imaginário medieval orbitados por antíteses como luz e trevas ou mesmo bem e mal além das críticas aos valores morais, principalmente no que diz respeito à figura do anti-herói.

O poeta inglês Lord Byron figura como a inspiração maior desse período dentro do campo literário que também gozou a aparição de um “certo” Fausto explanando magnifica-mente esse caráter de antíteses, criticismo e acesso ao infinito, ao metafísico, e expondo a dor das limitações físicas. Fausto e Mefistófeles oferecem, inclusive, uma interpretação da exis-tência que anela uma vitalidade inspiradora da busca paladínica pelo paraíso assim como, em seu acesso ao ilimitado, Fausto também externaliza a consolidada visão depreciativa da morte como tradutora do desespero e do terror humanos.

A base trial dessa nova fase do gótico se conectou ainda com as referências do movi-mento punk na composição da sua identidade musical que aliou os referenciais literários românticos à agressividade tonal punk, manifestando a emocionalidade por intermédio da melancolia, da morbidez e do pessimismo pulsantes. A musicalidade desempenhou fundamen-tal papel na construção do movimento gótico nos anos 1980, especialmente pelo fácil acesso, uma vez que as letras representavam os questionamentos enquanto o som melodioso, que se convertera em uma das características identitárias primordiais, foi alterando o escopo crítico migrando da agressividade para as metáforas letradas em uma espécie de apatia constante. Dessa forma, identifica-se como marco de nascimento o lançamento do EP Bela Lugosi’s Dead da banda inglesa Bauhaus. Esse álbum conferiu os contornos do gótico na pós-modernidade ao trazer letras melancólicas e fazer referência ao ator húngaro Béla Lugosi que interpretou o Drácula nos anos 1930 unindo e expondo, assim, dois grandes temas do gótico: o horror e a morte.

A identidade estética-emocional, extrapolada de sensibilidade e sofisticação, deflagra uma forma de viver, de perceber a si no mundo e o próprio mundo diferentes ao passo que aproxima da ambiguidade e obscuridade inerentes às figuras vampirescas que, ironicamente, lançam luz sobre esses elementos que, inclusive, produzem um ao outro e simbolizam o so-brenatural, o imaterial e a inexistência. A inabilidade em lidar com a morte, além de confrontar o status quo da sociedade moderna e pós-moderna, figuram como foco da literatura, da música, do pensamento e da aparência gótica que coloca o indivíduo frente a frente com essa condição de finitude da materialidade existencial. Nesse sentido, a estética visual corrobora com esse fator na predominância da contraposição do preto ao branco, abusando da primeira, além de corpos magros que denotam fragilidade e ao mesmo tempo busca a supressão da distância entre os gêneros culminando no entendimento de igualdade entre todos, o que configura uma das críticas às diferenças socioeconômicas impostas pelo capitalismo bem como ao consu-mismo.

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Esse ambiente distante das conveniências dos valores sociais que reforça a seletividade dos gostos e a valorização da criatividade e do individualismo cumpre o papel ambíguo de alimentar tanto a essência da (sub)cultura quanto a imagem de ameaça à sociedade e à família ligando-os genericamente ao satanismo, à depressão e ao comportamento suicida. Tem rela-ção íntima com o cenário que a produziu como (sub ou contra)cultura, uma vez que reunia elementos como a constante ameaça nuclear, um Leste europeu separado do Ocidente por um extenso muro e a devastação ambiental com parques industriais se expandindo e aumentando os níveis de poluição tornando-se, dessa maneira, uma preocupação crescente à medida que a militância clandestina por causas estritamente político-ideológicas declinava.

No Brasil, o gótico dos anos 1980 ficou conhecido como dark e viu bons exemplos de manifestação da (sub)cultura gótica na Baixada Santista e em Cubatão que, no início dos anos 1980, foi considerada pela ONU a cidade mais poluída do mundo. As roupas pretas, cabelos despenteados e escuros, o ar melancólico e as olheiras símbolo das noites em claro junto às boates no subsolo, a exemplo do Madame Satã que durou até 2009, construíram o ambiente dark paulista ao passo que no Rio de Janeiro, destacou-se o bairro de Copacabana pelo con-traste entre o ensolarado ambiente praieiro preenchido pelos adeptos dos exercícios físicos com roupas supercoloridas e a palidez dos que evitavam a luminosidade e a vida diurna com seus coturnos e sobretudos pesados como representação extrema à negação social. Tratava-se ainda de um período marcado pelo declínio dos hábitos de ostentação, a famigerada “década perdida”, sobre a qual expressou a cantora Elis Regina: “está cada vez mais down ser high society”3 ; e que observa a emergência das demandas por responsabilidade social promovendo uma alteração profunda na paisagem carioca substituindo as socialites e suas roupas de grifes acompanhadas por seus homens bien habillés por novas tribos urbanas como os dark.

Atualmente, a contracultura gótica é observada no interior da cultura comercial. As transformações políticas, como as democracias, aliadas à moda, que soube absorver certos elementos góticos, sustentaram a acessibilidade à imagem gótica, especialmente no que diz respeito ao modo de se vestir. Nesse sentido, a cantora e atriz Cher teve grande participação ao se inserir no ramo e popularizar o vestuário gótico através de suas peças e joias.

Conclusão Olhar para as múltiplas formas que adotou o gótico em cada contexto de manifestação expõe suas singularidades ao mesmo tempo em que permite detectar aspectos unificadores que as-sinalam a identidade desse campo repleto de controvérsias. Nebulosidade, sombras, antíteses e a imaterialidade poderiam ser justamente as bases nitrogenadas do DNA gótico4.

A construção do homem tanto enquanto indivíduo quanto como ser social sempre per-passou a relação entre a luminosidade e a escuridão literalmente ou não. Dia e noite, sol e luar, a razão e o instinto... tal qual o gótico, independente da forma que assuma, mantém a sua essência na cultura popular. A noite recebeu categoricamente o dever de encerrar o que não deve ser visto à luz do dia; um tempo e momento de queda das máscaras da moral e da boa conduta.

É possível observar referências às sombras em diversos meios culturais. Na Filosofia, por exemplo, é representada pela contraposição entre razão e instinto, onde este último tende a ser suprimido tal qual foi e é feito pela moral cristã que o demonifica e insiste em seu

3 “Marciano” é uma canção de Elis Regina. CARAVALHO, R.; CARVALHO, R.Z. A. de. Alô, alô marciano. 2 É Demais, 1980. Disponível em: https://www.musixmatch.com/pt-br/album/6861/21559873. 4 As bases nitrogenadas – guanina, citosina, adenina e timina – constituem as duplas hélices do DNA, onde ficam armazenadas as informações genéticas dos indivíduos.

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expurgo para que se alcance a santificação. Na Psicologia, esse contraste toma as formas do id e do ego. Nas literaturas, quadrinhos, novelas, cinematografia e outros exemplos tem-se a figura do herói contra o vilão. Em todos esses exemplos o que se vê é o estímulo às caracte-rísticas postas e consolidadas como positivas, da luz, do bem, as virtudes em oposição aos vícios, ao mal, às trevas... ao lado negro da força.

Postas estas referências, o gótico assimila a sombra coletiva que é a elevação da sombra do indivíduo para o patamar da sociedade. E o faz externalizando valores culturais, políticos, artísticos e sociais latentes, reprimidos por uma histórica construção social desequilibrada do ponto de vista da complementaridade do ser enquanto existente. Nesse sentido, o ápice dessa dualidade está no encontro entre vida e morte, tendo em vista a cultura ocidental cristã apre-sentar a extrema valorização do ímpeto pela vivacidade em detrimento da morte que recebe estigmas degradantes.

A brecha para uma leitura alternativa sobre ela encontra-se precisamente no sobrena-tural. Isso porque, a partir mais uma vez da cultura ocidental cristã, o além-vida costuma suavizar a morte como uma mera passagem para um paraíso de luzes e pacificidade. O outro extremo se refere estritamente à punição para aqueles que não foram capazes de resistir às sombras. No entanto, o post vitam é a essência do gótico. Já havia aproximado a criatura do criador no medievo por meio de seus vitrais e abóbadas e manteve-se evocando o imaterial, apesar da substituição do divino pelo humano no foco da sociedade e da cultura, ressurgindo sob os ares vampirescos da modernidade mórbida, enevoada pelo despontar industrial e da melancolia pós-moderna de conflitos iminentes.

Metaforizando-o na criatura idealizada pelo dr. Victor Frankstein, ganhou vida e tor-nou-se independente, principalmente da temporalidade. Materializou por intermédio das construções culturais – arte, estética, política, moda e identidade, por exemplo – o fluxo dire-cionado à essência da existência levando à luz diurna os elementos constitutivos do ser relegados pela “cultura da felicidade” e evocando o equívoco da supressão do unum hominem mundum pelo unique hominem in universum. Nisso, insere-se necessariamente a concepção, a compreensão e a aceitação do inverso aditivo da vida: a anti-vida, ou seja, a morte e, por consequência, o não mais ser.

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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Um passeio histórico pela cidade de Caxias-MA através das fotografias

Railany Oliveira de Sousa1 [email protected]

Tamara Fernanda Mendes da Silva2 [email protected]

Professor Orientador: Jakson dos Santos Ribeiro3 [email protected]

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar reflexões sobre a Educação Patrimonial, ressaltando a impor-tância da preservação e conservação do patrimônio histórico local, em caso especial a cidade de Caxias. O texto apresenta o patrimônio histórico existente na cidade, o qual representa sua dimensão histórica. A metodologia da pesquisa está fundamentada em revisão bibliográfica, pautada em teóricos como: Buczenko (2013), Horta (1999), Kossoy (2001), Mauad (1996), Mesquita (1999), Souza (2016). Essas reflexões também são frutos da expe-riência adquirida em sala de aula com alunos do ensino fundamental de uma escola da rede municipal de Caxias, ao se trabalhar com eles o patrimônio histórico da cidade com a utilização de fotografias. As discussões feitas ao longo do trabalho evidenciam a necessidade da apropriação do conhecimento acerca do nosso lugar, para que haja uma valorização do patrimônio, e sobretudo o desenvolvimento do sentimento de identidade, de se perceber nessa história. Palavras-chave: Patrimônio. Fotografia. Caxias.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar reflexiones sobre la educación patrimonial, enfatizando la importan-cia de preservar y conservar el patrimonio histórico local, en particular la ciudad de Caxias. El texto presenta el patrimonio histórico existente en la ciudad, que representa su dimensión histórica. La metodología de investi-gación se basa en la revisión bibliográfica, basada en teóricos como: Buczenko (2013), Horta (1999), Kossoy (2001), Mauad (1996), Mesquita (1999), Souza (2016). Estas reflexiones también son el resultado de la experiencia adquirida en el aula con estudiantes de primaria en una escuela de la red municipal de Caxias, al trabajar con ellos en el patrimonio histórico de la ciudad utilizando fotografías. Las discusiones realizadas a lo largo del tra-bajo muestran la necesidad de la apropiación del conocimiento sobre nuestro lugar, de modo que se aprecie el patrimonio y, sobre todo, el desarrollo del sentimiento de identidad, de percibir en esta historia. Palavras-clave: Patrimonio. Fotografía. Caxias.

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Introdução Este artigo é resultado de uma experiência acadêmica durante a execução de um projeto de intervenção com alunos do Ensino Fundamental Maior, mais especificamente com os alunos do 6° ano, de uma escola da rede municipal de Caxias-MA. O referido projeto, teve como proposta apresentar os locais históricos de Caxias por meio de fotografias, mostrando a

1 Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Maranhão-UEMA. 2 Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Maranhão-UEMA. 3 Professor Adjunto I da Universidade Estadual do Maranhão-CESC/UEMA, Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão-GRUGEM, Doutor em História Social da Amazônia-UFPA, Mestre em História Social-UFMA, Especialista em História do Maranhão-IESF, Graduado em História-UEMA.

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importância desse patrimônio para compreensão da história da cidade, possibilitando ainda entender elementos importantes da realidade da cidade, bem como estimular a percepção, a memória e o senso crítico dentro do processo de valorização.

Neste artigo, pretendemos trazer algumas reflexões acerca de Educação Patrimonial, problematizar elementos da história local através das fotografias, utilizando-a como um re-curso didático no processo de ensino aprendizagem, além de ressaltar a valorização do patrimônio histórico da cidade, para que este não seja ameaçado, devido à falta de conscien-tização e desconhecimento da população sobre sua importância. Nesse sentido garantir a sua conservação, é preservar também a memória histórica da cidade, pois, como afirma Tolentino (2013, p.07):

As memórias constituem a nossa capacidade de perceber e reunir experiências, sa-beres, sensações, emoções e sentimentos que, por um motivo ou outro, escolhemos para guardar. Elas são essenciais a um grupo porque estão atreladas à construção de sua identidade. São o resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de continuidade e de experiência, isto é, de identidade.

Assim buscamos entender que o uso das imagens, possibilita a interpretação da histó-ria em diversos períodos ou épocas, sendo, portanto, uma excelente fonte de pesquisa para o ensino da história da cidade de Caxias. Estudar a história local é fazer com que o aluno e a comunidade como um todo compreenda que são sujeitos participantes da história que os ro-deia, do lugar onde vivem, percebendo-se dentro desse processo como sujeitos históricos. Buczenko (2013, p. 5) relata que:

O ensino de História possibilita diferentes relações no tempo e no espaço passando-se pela história local, regional e do mundo, assim, possibilitando ao aluno, inúmeras conexões com o conhecimento. São várias as possibilidades de trabalho com a histó-ria local, como estratégia de aprendizagem, segundo Schmidt e Cainelli (2009), sendo: a possibilidade de inserir o aluno na comunidade da qual é parte, criando a historicidade e identidade dele; despertar atitudes investigativas, com base no coti-diano do aluno, ajudando-o a refletir sobre a realidade que o cerca e seus diferentes níveis, econômico, político, social e cultural; o espaço menor possibilita ao aluno a visão de continuidade e diferenças com as evidências de mudanças, conflitos e per-manecias e a história local pode instrumentalizar o aluno para uma história da pluralidade, onde todos os sujeitos da história tenham voz.

As fotografias mostradas ao longo deste texto, das quais iremos discorrer são alguns dos locais históricos que constituem a história da cidade de Caxias, destacando os seguintes locais, que foram trabalhados com os alunos na aplicação do projeto de intervenção: Igreja da Matriz, Igreja Catedral, Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Igreja Nossa Senhora de Nazaré, Palácio Episcopal, Antigo Mercado Municipal, Antiga Fábrica União Têxtil, Antiga Estação Ferroviária, Ruínas da Balaiada e o Memorial da Balaiada. Devido à dimensão do acervo fotográfico, o estudo está voltado também para estudar o patrimônio religioso, no caso os templos das igrejas católicas. A aquisição de conhecimento desses e outros lugares é im-portante para despertar o sentimento de identidade, de pertencimento e sobre essa questão, Barros (2013, p. 311) diz que o ensino de História auxilia nesse processo, ao afirmar que:

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O ensino de História possui objetivos específicos, sendo um dos mais relevantes, o que se relaciona à constituição da noção de identidade. Assim, é primordial que o ensino de História estabeleça relações entre identidades individuais, sociais e coleti-vas, entre as quais as que se constituem como nacionais. Dentro dessa perspectiva, o ensino de História tende a desempenhar um papel mais relevante na formação da cidadania, envolvendo a reflexão sobre a atuação do indivíduo em suas relações pes-soais com o grupo de convívio, suas afetividades e sua participação no coletivo.

Ademais, este estudo baseou-se em pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, e fon-tes bibliográficas. Dentre os principais teóricos que abordam as questões presentes neste trabalho, destaca-se: Buczenko (2013), Horta (1999), Kossoy (2001), Mauad (1996), Mesquita (1999), Souza (2016).

A experiência obtida em sala de aula mostrou a importância de se conhecer a história da cidade não apenas através das imagens, mas de todas as formas, pois ajuda compreender a própria trajetória histórica da cidade e a sua identidade. Após o desenvolvimento do projeto, percebeu-se que as imagens se trabalhadas de forma adequada contribuem e muito para a formação dos alunos e na construção de suas identidades, como também da comunidade como um todo. Com isso, fica claro que o uso das imagens precisa ser melhor entendido e aprovei-tado e não ser visto apenas como figura ou desenhos ilustrativos, mas como fonte de pesquisa.

Nesse caso, a Educação Patrimonial é definida como um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à com-preensão do universo sócio-cultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. De acordo com Horta (1999, p. 05) a Educação Patrimonial é:

Um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patri-mônio Cultural como fonte primária de conhecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto desses bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural.

A metodologia específica dessa educação pode ser aplicada a qualquer evidência ma-terial ou manifestação da cultura, seja um objeto ou conjunto de bens, um monumento ou um sítio histórico ou arqueológico, uma paisagem natural, um parque ou uma área de proteção ambiental, um centro histórico urbano ou uma comunidade da área rural, uma manifestação popular de caráter folclórico ou ritual, um processo de produção industrial ou artesanal, tec-nologias e saberes populares, e qualquer outra expressão resultante da relação entre indivíduos e seu meio ambiente.

Um dos objetivos da Educação Patrimonial é estimular a apropriação e o uso, pela co-munidade, do Patrimônio Cultural que ela detém e pelo geral é também responsável. Essa educação procura descobrir os valores, costumes, hábitos, aspectos da vida, lendas, cultura material e particularidades do ambiente, a fim de revitalizá-los para que toda a comunidade tenha acesso a essas informações. De acordo com o Iphan (2013, p. 08):

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Na educação formal, a Educação Patrimonial deve ser uma proposta dinâmica e cri-ativa de a escola se relacionar com o patrimônio de sua região e de sua localidade. A partir dessa ação, deve-se ampliar o entendimento dos vários aspectos que consti-tuem o nosso patrimônio cultural e o que isso tem a ver com formação de cidadania, identidade, memória e tantas outras coisas que fazem parte da nossa vida, mas, mui-tas vezes, não nos damos conta do quão importantes elas são.

Outro objetivo dessa educação é promover a produção de novos conhecimentos sobre a dinâmica cultural e seus resultados, incorporando-os às ações de identificação, proteção e valorização do Patrimônio Cultural no nível das comunidades locais e das instituições envol-vidas. Nesse sentido, Farias (2002, p.62) diz que:

Cabe à educação patrimonial proceder à escuta e à mediação dos sujeitos sociais portadores de tradições, de saberes e fazeres que, em sua diversidade, constroem atrativos geradores de significação e integradores da identidade e identificação cul-tural. É sua responsabilidade sensibilizar e conscientizar as comunidades em torno de seus valores e tradições, inserindo tais práticas na vida sustentável, resgatando e preservando o imaginário coletivo e o patrimônio representativo da cultura, no eixo temporal e espacial.

Desse modo, proporcionar à comunidade local, elementos que possibilitem a leitura do seu Patrimônio Cultural, pode permitir o reconhecimento, a reflexão e aprendizagem sobre seu papel na configuração de seu meio, sobre a importância desse patrimônio na preservação de sua memória e a valorização de sua identidade. É de suma importância desenvolver essa educação patrimonial no meio social em que alunos e a comunidade em geral estão inseridos, com o objetivo de resguardar a história local e principalmente, de preservar o que ainda se tem como herança patrimonial.

O conhecimento e a apropriação pelas comunidades são fatores indispensáveis ao processo de preservação do Patrimônio Cultural. Este processo de valorização e de troca possibilita a geração e produção de novos conhecimentos, num processo con-tínuo de enriquecimento individual, coletivo e institucional. (Castro, 2005, p. 03).

Abordaremos o estudo de Educação Patrimonial da cidade de Caxias através da utili-zação da fotografia, levando em consideração também que existem outras formas de abordagens significativas para esse estudo. Tomando como base a fotografia, esta servirá como um instrumento para se pensar num passado que já foi vivido, que pode ser relembrado, para formação de uma consciência histórica. Boris Kossoy (2001, p. 36) ressalta que:

A imagem do real retida pela fotografia (quando preservada ou reproduzida) fornece o testemunho visual e material dos fatos aos espectadores ausentes da cena. A ima-gem fotográfica é o que resta do acontecido, fragmento congelado de uma realidade passada, informação maior de vida e morte, além de ser o produto final que caracte-riza a intromissão de um ser fotográfico num instante dos tempos.

Esse mesmo autor também salienta que as imagens são muito importantes para pre-servar e difundir a memória histórica, e é desta forma que ela alcança sua função social maior. A imagem pode contribuir para a formação de conceitos e do pensamento histórico a partir da sua leitura, percepção, análise e interpretação, e principalmente para a construção do co-nhecimento.

Ao analisarmos uma fotografia, somos levados a indagar, a refletir sobre o que está sendo representado, e a procurar entender o que está por trás dela, o contexto histórico que

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estava sendo vivenciado naquele dado momento, as pretensões de quem a tirou, pois como afirma a autora Mauad (1996, p. 15):

Nunca ficamos passivos diante de uma fotografia: ela incita nossa imaginação, nos faz pensar sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na ima-gem. Um indício, um fantasma, talvez uma ilusão que, em certo momento da história, deixou sua marca registrada, numa superfície sensível, da mesma forma que as mar-cas do sol no corpo bronzeado, como lembrou Dubois. Num determinado momento o sol existiu sobre aquela pele, num determinado momento um certo aquilo existiu diante da objetiva fotográfica, diante do olhar do fotógrafo, e isto é impossível negar.

Ao trabalharmos a história local com auxílio da fotografia nos aproximamos da nossa realidade, passamos a conhecer aspectos antes não compreendidos. Quando entramos em con-tato com o acervo de museus, instituições culturais e exposições, podem ser estabelecidas relações com a realidade social que nos cerca, nos permite revisitar o passado de forma mais dinâmica e reflexiva, nos percebendo quanto agentes nesse processo. Acerca disso, Barros (2013, p. 316) afirma que:

O trabalho com a História Local no ensino da História facilita, também, a construção de problematização, a apresentação de várias histórias lidas com base em distintos sujeitos da história, bem como de histórias que foram silenciadas, isto é, que não foram institucionalizadas sob a forma de conhecimento histórico. Ademais, esse tra-balho pode favorecer a recuperação de experiências individuais e coletivas do aluno, fazendo-o vê-las como constitutivas de uma realidade histórica mais ampla e produ-zindo um conhecimento que, ao ser analisado e retrabalhado, contribui para a construção de sua consciência histórica.

As fotografias ao serem observadas, faz com que cada um possa mergulhar em seu tempo, em um momento histórico e imaginar os fatos e as circunstâncias e até a representação no contexto em que ela foi produzida, ou seja, o indivíduo a partir dessa interação se percebe como um sujeito histórico. Kossoy (2001, p. 32) afirma que:

As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que pro-mete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações, estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para decifração de seus conteúdos, e por conseqüência, da realidade que os originou.

O uso da imagem aliada a educação patrimonial propicia uma reflexão acerca da ne-cessidade de preservação e valorização do patrimônio local, reconhecendo-se a importância desses bens culturais dentro do contexto histórico da cidade de Caxias, neste caso, e na repre-sentação da própria identidade.

Patrimônio Histórico de Caxias Caxias é um município do estado do Maranhão, sendo a quinta mais populosa cidade do es-tado, com uma população de 164.880 habitantes, conforme dados do IBGE de 2019. Sua área é de 5.150,667 quilômetros quadrados, o que a torna a terceira maior cidade do Maranhão. É banhada pelo Rio Itapecuru que banha quase toda extensão do município.

Sua localização é situada a 360 km da capital São Luís, tendo como limites as cidades de Aldeias Altas, Coelho Neto, Codó, São Joao do Sóter, Matões, Timon e próxima de Teresina capital do Piauí. É um dos maiores centros econômicos do estado graças a seu grande desem-penho industrial, e um importante centro político, cultural e populacional do estado do

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Maranhão, tem uma arquitetura herdada do século XIX e início do século XX no estilo portu-guês. Nas palavras de Souza (2016, p. 64-65) a cidade:

Possui uma rica diversidade cultural, destacando-se, além da literatura, o acervo ar-quitetônico com as igrejas dos séculos XVIII, XIX e XX, logradouros públicos, casarões, praças, monumentos marcantes de sua história como: a resistência à Inde-pendência e ao movimento da Balaiada, as manifestações espontâneas da cultura popular e religiosa como as procissões e celebrações, suas riquezas naturais que são fontes saudáveis e aprazíveis de bem-estar, lazer, o que torna a cidade um patrimônio histórico, portanto rico.

A história de Caxias emerge no século XVII, com o Movimento de Entradas e Bandeiras ao interior maranhense para o reconhecimento e ocupação das terras às margens do Rio Ita-pecuru, durante a invasão francesa no Maranhão (IBGE, 2015). O local onde está situada a cidade de Caxias foi, primitivamente, um agregado de grandes aldeias dos índios Timbiras e Gamelas, que conviviam pacificamente com os franceses. Entretanto, com a expulsão dos fran-ceses do Maranhão, em 1615, os portugueses subjugaram tais aldeias e venderam os índios como escravos. Ainda segundo o IBGE (2015):

Várias denominações foram impostas ao lugar, dentre as quais: Guanaré (denomina-ção indígena), São José das Aldeias Altas, Freguesia das Aldeias Altas, Arraial das Aldeias Altas, Vila de Caxias e, finalmente, em 1836, Caxias. Foi na Igreja de São Benedito que, em 1858, o antístite da Igreja Maranhense, Dom Manoel Joaquim da Silveira, denominou Caxias com o título: “A princesa do sertão maranhense”.

O patrimônio erguido de Caxias é um testemunho do processo de urbanização da ci-dade e concentração de riquezas proporcionadas pelo ciclo de exportação do algodão. Esses lugares considerados lugar de memórias em Caxias fazem referências a uma cidade provinci-ana com aspectos modernos e com uma riqueza material resultante também de influências vindas da Europa.

A seguir veremos algumas imagens dos locais históricos da cidade de Caxias, em que são apresentadas algumas informações sobre estes locais e a necessidade de preservação deste patrimônio para que a memória também seja preservada.

Igreja Matriz A Igreja de Nossa Senhora da Conceição e São José, conhecida como Igreja da Matriz, por conta de sua localização no centro da Cidade, foi construída em 1735 pelos padres da Compa-nhia de Jesus. Como afirma Souza (2016, p. 73):

Figura 1 – Igreja da Matriz Foto: Lina Medeiros (2018) Fonte: https://noticializando2018.word-press.com/2018/11/19/igreja-da-matriz-patrimonio-eclesiastico-historico-e-cultu-ral-de-caxias-ma/. Acesso em 22 de jul. de 2020.

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Sua construção é de pedra e cal característico do estilo colonial, com um campanário do lado direito, ao qual denota uma das características do estilo colonial. No interior da Matriz, ainda mantém-se as Artes Sacras representação pelas imagens originais da época da construção do século XVIII como as imagens de Nossa Senhora Das Dores e Bom Jesus dos Passos e a Nossa Senhora dos Remédios e São José, ambos são os padroeiros da cidade. Nessa igreja possui cinco altares laterais, guarda ainda muitas relíquias religiosas. No século XX, só as pessoas brancas frequentavam a igreja, resultado do alto índice de preconceito existente na cidade.

No local, foi assinado o termo de Adesão à Indepen-dência do Brasil no dia 07 de agosto de 1823, sendo a última cidade do Maranhão a aderir à Independência e ao Imperador D. Pedro I. A Igreja está localizada no Centro Histórico da cidade em frente à praça Cândido Mendes.

Igreja Catedral Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, conhecida como Igreja da Catedral, foi construída no século XIX pela Ir-mandade de Nossa Senhora dos Remédios. O local serviu durante a invasão dos balaios à cidade como depósito de munições.

Foi colocado em uma das torres um relógio D’Jong do ano de 1842, ainda em funcionamento, suas badaladas podem ser ouvidas pelos quatro cantos da ci-dade. O relógio centenário tocava de meia em meia hora para marcar o tempo como forma de orientação das pes-soas e trabalhadores do Século XIX. Nesta igreja estão as lápides de Bispo Dom Luís Marelim e Dom Luís D’An-dréa.

Igreja Nossa Senhora de Nazaré A Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, foi a primeira Igreja fundada em Caxias no século XVIII, está localizada na margem esquerda do Rio Itapecuru, no bairro Trezidela. Foi destruída durante a guerra da Balaiada por conta que no local havia a presença de balaios e era armazém de munição. A igreja foi reconstruída, porém não perdeu pouco de suas características anteriores, na fachada existe um campanário, janelas e portas com arcos típicos do estilo colonial.

Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, uma das igrejas mais antigas que fazem parte do acervo ecle-siástico da cidade. A mesma consta de um requerimento de 04 de outubro de 1775, construída pela mão-de-obra escrava, feita de pedra e cal. No período da Balaiada, foi abrigo da Intendência, ao lado direito onde encontra-se uma cruz, havia um pelourinho, que foi retirado na

Figura 2 – Igreja Catedral, Fev. de 2016 Fonte: https://eziquio.wordpress.com/tag/ arquitetura/page/3/. Acesso em 22 de jul. de 2020.

Figura 3 – Igreja Nossa Senhora de Nazaré Fonte: http://caxiasmaranhaoma.blogs-pot.com/2013/03/tradicoes-religiosas-paixao-de-cristo.html?m=1. Acesso em 22 de jul. de 2020.

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década de 1980. Localizada na Praça Rui Barbosa, a igreja permanece com sua fachada original, segundo Mesquita (1992, p.69):

Do lado de direito da Igreja, existia um pelourinho, onde os escravos eram cruel-mente açoitados e castigados pelos seus donos condenado à morte. O templo ainda conserva o Altar – Mor original. No teto, encontra-se desenhado um cálice da comu-nhão. Nas paredes, encontram-se ainda restos mortais de pessoas abastardas, muitas delas portuguesas, que compravam um pedaço de chão dentro da igreja. Essas lápi-des eram feitas em mármore e esculpidas em bronze.

A Comemoração em louvor à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ocorre no dia 07 de outubro. Durante a semana que antecede essa data, há procissões e missas à santa que é protetora dos negros e escravos. Foi umas das igrejas onde se esconderam os balaios quando invadiram Caxias.

Figura 4 – Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Fonte: http://wikimapia.org/22674715/pt/Igreja-Nossa-Senhora-do-Rosário-dos- Pretos. Acesso em 22 de jul. de 2020.

Palácio Episcopal Localizado na praça Magalhães de Almeida, ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, o Palácio Episcopal ou Palácio Diocesano, abriga os Bispos da cidade e faz parte do acervo arquitetônico do Centro Histórico. O prédio construído em estilo colonial eclético, possui duas colunas frontais e dois pavimentos; os mosaicos que cobrem o chão foram produzidos nos fundos do Palácio, onde D. Luís fundou uma olaria.

De estilo colonial, com mais de 50 janelas de arcos arredondados, foi construído na metade do século XX, sua pedra fundamental foi erguida pelo então Arcebispo do Maranhão Dom Carlos Carmelo Vasconcelos Mota, em 1943, e foi concluída na Dé-cada de 1950 sob a administração do Bispo Dom Luís Gonzaga da Cunha Marelim. O interior é composto por biblioteca, uma capela, auditório, sala de acervo, imagens de santos do século XIX, como por exemplo a imagem de Nossa Senhora dos Remé-dios e utensílios litúrgicos. Atualmente, o Palácio está aberto à visitação para a população. (Souza, 2016, p.71).

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O palácio episcopal é considerado como um grande patrimônio histórico cultural, pois como já dito anteriormente, abriga vários documentos históricos antigos. Possui um vasto acervo religioso, onde está registrado um pouco da história da Igreja Católica de Caxias.

Figura 5 – Palácio Episcopal Fonte: http://wikimapia.org/22675447/pt/Paço-Episcopal-de-Caxias. Acesso em: 22/07/2020.

Antiga Estação Ferroviária A Estação Ferroviária era um símbolo marcante de modernidade que encantava os caxienses. A estrada de ferro ligava os dois Estados e foi aberta em seu primeiro trecho em 1895, ligando Caxias a Cajazeiras (Flores) hoje a cidade de Timon. Em 1919, foi aberto outro trecho de São Luís a Caximbós, prolongado em 1920 até Caxias. Em seguida, O decreto-Lei nº 14.598, de 30 de dezembro de 1920 estabelece que a Estrada de Ferro São Luís – Caxias passe a ser denomi-nada São Luís – Teresina. A ferrovia foi parte integrante da chamada “belle époque” caxiense.

Caxias repercutiu no Maranhão até meados do século XX, com uma frenética onda modernizadora de desenvolvimento econômico e social. A estrada de ferro não trouxe apenas o progresso, mas mudanças sociais significativas na postura dos ca-xienses. Com a estrada de ferro veio o dinamismo do comércio interno, o fetiche da modernidade tomou conta da cidade, o ambiente urbano era afetado por pessoas vindas da capital São Luís, e da Europa, no qual circulavam aqui para vender e com-prar mercadorias. (SOUZA, 2010, p.230).

Na estação, diariamente havia um frequente fluxo de pessoas, a elite intelectual, os grandes comerciantes, os latifundiários e pessoas que tinham posses e de poder que desfruta-vam do transporte ferroviário. Muitas pessoas iam observar o trem chegar de São Luís bem cedo da manhã e ao entardecer.

Atualmente no local, funciona o Instituto Histórico e Geográfico de Caxias-IHGC (ima-gem 7) uma associação científica e cultural que tem como finalidade a promoção de estudos, pesquisas, debates e a difusão de conhecimentos da História, Geografia e Ciências afins, refe-rentes ao Brasil, ao Maranhão, e, especialmente ao Município de Caxias. Inaugurado desde 12 de dezembro de 2003, é chamado a “Casa de César Marques”.

O Instituto é presidido pelo Desembargador Arthur Almada Lima e conta com Sócios Membros e Sócios Mantenedores. No acervo, estão documentos históricos, biblioteca e obras importantes como um exemplar do “Dicionário Histórico e Geográfico do Maranhão”. Além do acervo documental, existem fontes hemerográficas, que servem de pesquisa para

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estudantes do ensino básico e superior e da comunidade em geral; não somente da população local, assim como estudantes de outras cidades maranhenses, que desejam pesquisar, além de outros Estados.

Antiga Fábrica União Têxtil Caxiense Fundada em 1889, pelos Srs. Antonio Joaquim Ferreira Guimarães, Dr. Francisco Dias Car-neiro e Manoel Correia Baima do Lago, a Companhia de Fiação e Tecidos União Caxiense é uma construção de origem inglesa com fachada em estilo neoclássico. A mão de obra era composta pelo trabalho feminino, na qual as mulheres eram chamadas de “pipiras”. O prédio da extinta União Caxiense foi o primeiro tombamento isolado ocorrido na cidade, pelo Depar-tamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão (Dphap/MA), sob o Decreto nº 7.660, de 23 de junho de 1980, e inscrito no Livro de Tombo em 15 de outubro de 1980.

Atualmente funciona o Centro de Cultura Acadêmico José Sarney (imagem 9) que abriga alguns órgãos municipais como a Secretaria Municipal de Educação, Secretaria de Cul-tura, Secretaria do Trabalho e Tributação. Na fachada ainda mantém-se a imponente chaminé que pode ser vista por muitos lugares da cidade.

Figura 6 – Antiga Estação ferroviária https://www.estacoesferroviarias.com.br/ma-pi/caxias.htm. Acesso em 22/07/2020.

Figura 7 – IHGC Fonte: https://www.ferias.tur.br/fotogr/142124/ caxias-ma-institutohistoricoegeografico-fotorn-latvian/caxias%20/. Acesso em 22/07/2020

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Memorial da Balaiada O Memorial da Balaiada foi construído em 26 de junho de 2004, está situado na Praça Duque de Caxias, é um lugar de memória que guarda a história do movimento dos balaios, principal-mente sob o olhar dos excluídos. Considerado um centro educativo-cultural, recebe diariamente alunos das escolas municipais, estaduais e particulares, assim como turistas bra-sileiros e estrangeiros para apreciar a exposição de seu acervo, como mobília de época doado por famílias tradicionais da cidade, armaria, artefatos bélicos, arqueológicos, numismático, em 1839.

A Revolta da Balaiada de caráter popular teve como principais líderes:

Cosme Bento das Chagas (Negro Cosme), Raimundo Gomes Vieira (o Cara Preta) e Lívio Lopes Castelo Branco e Silva, os três estão representados nas estátuas em frente á Praça Duque de Caxias como uma forma de confrontar a memória oficial. O Memorial da Balaiada integra atualmente museu-escola, biblioteca, centro de docu-mentação e um laboratório de restauração de textos antigos. (Souza, 2016, p.69).

A apresentação feita desse museu na experiência em sala de aula, foi como citado acima, como um lugar que traz à tona a memória não relembrada dessa revolta, confrontando a historiografia oficial, em que destaca o papel dos principais líderes proeminentes na defla-gração desse movimento conhecido como Balaiada, pois como se sabe o governo da época e a historiografia oficial insistiram em desconsiderar a liderança popular do movimento. O museu surge então como um espaço em que se pode ter o conhecimento das versões criadas sobre essa revolta, mas com um olhar direcionado à história dos balaios.

Figura 8 – Atual Centro de Cultura Fonte: http://caxiasmaranhaoma.blogs-pot.com/2013/04/historico-e-cultural-centro-de-cultura.html?m=1. Acesso em 22/07/2020.

Figura 9 – Antiga União Têxtil Caxiense Fonte: https://docplayer.com.br/6250340 3-Educacao-patrimonial-passados-possi-veis-de-se-preservar-em-caxias-ma.html. Acesso em 22/07/2020.

Figura 10 – Memorial da Balaiada Fonte: Foto Linna Medeiros (2018). Acesso em 22 de jul. de 2020.

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Ruínas da Balaiada As Ruínas do Forte da Balaiada, estão localizadas no Morro do Alecrim, é uma das poucas fortificações em terra construídas no Brasil, cujos vestígios ainda são aparentes. Feito de pedra de calcário e cal, em formato retangular, a construção do Forte é datada de 1840, local que serviu como quartel de polícia na época e que abrigou as tropas do português José da Cunha Fidiê e José Alves de Lima e Silva (Duque de Caxias). Nesse período acontecia a chamada Guerra ou Revolta da Balaiada (1939-1941).

Em 1997, um grupo de estudiosos do Maranhão, em parceria com a Universidade Es-tadual do Maranhão, manifestaram preocupação com o estado físico das Ruínas e encamparam o projeto de restauração do monumento. Segundo Souza (2016):

Em Agosto tiveram início a pesquisa, a qual foi coordenada pelo arqueólogo Deus-dedit Carneiro Filho, com apoio de acadêmicos do Curso de História do Centro de Estudos Superiores de Caxias, utilizou um processo de escavação sistemática na área do morro do Alecrim, em Caxias, onde foram encontrados principalmente artefatos bélicos: projéteis, pederneiras, as Ruínas foram restauradas com o acompanhamento técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

As ruínas foram integradas ao jardim do Memorial da Balaiada, museu responsável pela salvaguarda da memória escrita e oral da revolta maranhense. Ao passar pelo local, é possível contemplar os resquícios desse lugar que foi tão importante para a construção da história da cidade. É um dos pontos mais visitados na cidade, justamente pelo seu valor his-tórico.

Figura 11 – Ruínas da Balaiada Fonte: http://www.qualviagem.com.br/conheca-a-rota-da-ba laiada-em-caxias/. Acesso em 22 de jul. de 2020.

Antigo Mercado Municipal O antigo Mercado Público, localizado em frente à praça Dias Carneiro (Panteon), foi inaugu-rado em 1922. O Mercado Público foi reutilizado e atualmente funciona a Prefeitura Municipal de Caxias. O Prédio ainda conserva sua fachada original com algumas adaptações modernas na parte interior.

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Considerações finais Através do patrimônio histórico podemos, portanto, conhecer a história e tudo que a envolve, por isso é importante nos apropriarmos da educação patrimonial, pois ela é capaz de ajudar a recuperar a memória local, de sensibilizar a comunidade para seus valores históricos, como também, a despertar a identidade local preservando e valorizando o seu patrimônio. Desse modo é de extrema importância nos atentarmos para a necessidade de preservarmos o que for possível para manter a integridade da nossa herança patrimonial, conferindo a nós mesmos o legado da nossa própria identidade tanto coletiva como individualmente.

Para serem colocadas em práticas medidas de conservação e preservação do nosso pa-trimônio devem ser tomadas iniciativas desse cunho, tanto pelo poder público como pela comunidade em geral, o poder público promove isso através de inventários, registros, vigilân-cia, tombamento, e outras formas de proteção ao patrimônio, cabendo a ambos darem suas contribuições. Como foi explanado no decorrer do texto, outro importante meio de resguardar os bens históricos é através da educação patrimonial, que está baseada numa ação educativa com o intuito de difundir o conhecimento sobre o patrimônio em conjunto com a comunidade, a fim de enfatizar sua valorização e preservação.

Portanto, a preservação do patrimônio garante o direito à memória individual e cole-tiva e permite aos indivíduos entender o universo sociocultural em que estão inseridos. Para identificar e valorizar é preciso preservar o patrimônio, e para preservar é preciso conhecer. Esse conhecer pode ser obtido através da Educação Patrimonial que, realizada com a comuni-dade local, é capaz de contribuir com a revitalização e valorização de sua própria cultura.

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Figura 12 – Antigo Mercado Municipal Fonte: https://br.pinterest.com/pin/716354503081 17830/. Acesso em 22 de jul. de 2020.

Figura 13 – Atual Prefeitura de Caxias Fonte: http://caxias.ma.gov.br/wpcontent/uplo-ads/2019/03/FOTO.jpeg. Acesso em 20 de jul. de 2020.

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VEIGA VALLE (1806-1874) Recepção, tradição e a ideia de patrimônio na Cidade de Goiás

Fernando Martins dos Santos1 [email protected]

Resumo

Este artigo tem como proposta analisar, a partir da estética da recepção, como se deu o reconhecimento de José Joaquim da Veiga Valle, o santeiro goiano, no contexto das primeiras propostas de tombamentos da Cidade de Goiás como Patrimônio Histórico e Artístico, e o uso do artista para o fortalecimento da ideia de a cidade ser o berço da cultura goiana no processo de transferência da capital. Sendo assim, as obras de Veiga Valle se tornam imprescindíveis para o projeto patrimônio e para colocar a Cidade de Goiás como berço da cultura goiana. Palavras-chave: Veiga Valle. Tradição vilaboense. Patrimônio. Recepção. VEIGA VALLE (1806-1874) Reception, tradition and the heritage idea in Cidade de Goiás

Abstract

This article has as a proposal to analyze the importance and recognition of José Joaquim da Veiga Valle, santeiro goiano, from the context of the first proposals for protection of the town of Goiás as historical heritage and the use of the artist for the strengthening the idea of the city being the birthplace of goiana culture in the process of transferring the capital. Therefore, the works of Veiga Valle become essential for the project to put the Cidade de Goiás heritage project and cradle of goiana culture. Keywords: Veiga Valle. Vilaboense tradition. Heritage. Reception.

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Introdução A maioria dos estudos sobre o artista se concentraram em biografias e sua técnica artística2. O artista e sua obra já foram estudados por vários ângulos e possibilidades, mas ainda não de forma inesgotável. No entanto, ainda falta um trabalho que articule a importância do artista à invenção das tradições em Goiás e a sua relevância no processo de patrimonialização. O presente artigo é um resultado parcial das investigações iniciadas na tese de doutoramento.

Para atingir os resultados, alguns questionamentos ainda se mostraram abertos, como por exemplo: como Veiga Valle foi recebido e apropriado em processos de reafirmação da tradição vilaboense? Qual importância do artista e suas obras no processo de patrimonializa-ção da Cidade de Goiás?

O texto a seguir tentará responder tais questionamentos a partir das análises possibi-litadas de sua recepção, na qual será permitido analisar o efeito que as obras de Veiga Valle tiveram nos seus destinatários quando foram condicionadas a eles, possibilitando observar suas novas expectativas e vivências. Esse tipo de análise permite mostrar como uma obra é

1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás - UFG, na linha de pesquisa Fronteiras, Intercul-turalidades e Ensino de História. Mestre em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidade Estadual de Goiás (2018) – UEG. Graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008). 2 João José Rescala, Relatório sobre Veiga Valle (1940); Heliana Angotti Salgueiro, A Singularidade da obra de Veiga Valle (1983); Elder Camargo de Passos, Veiga Valle – seu ciclo criativo (1997).

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recebida e interpretada de formas diferentes no tempo, segundo Gadamer “cada época deve entender o texto de uma forma, pois o texto forma parte do todo da tradição, onde cada época tem o seu interesse e procura entender a si mesmo” (GADAMER, 1999, p.443).

Sendo assim, inicialmente uma pequena biografia do artista e características de sua obra se mostra necessária, assim como um breve histórico da estética da recepção. Posterior-mente, o texto segue tentando mostrar a forma que Veiga Valle foi colocado como uma figura de destaque para a tradição vilaboense a partir do processo de transferência de capital, em 1937, para Goiânia.

Com a consolidação da transferência da capital, a ideia da cidade como berço da tradi-ção goiana vai se firmando. Os primeiros tombamentos da cidade como Patrimônio Histórico e Artístico acontecem nos anos 50, em que uma peça de Veiga Valle foi incluída. O auge da ideia de patrimônio foi a conquista do título de Patrimônio Histórico e Cultural Mundial, pela UNESCO, em 2001.

José Joaquim da Veiga Valle – o santeiro goiano José Joaquim da Veiga Valle nasceu em 09 de setembro de 1806 na cidade de Meia Ponte (atualmente Pirenópolis). Filho do ca-pitão Joaquim Pereira Valle e Anna Joaquina Pereira da Veiga, portadores de influência social e política na cidade. Joaquim Pereira Valle possuía o título honorífico de Capitão da Guarda Nacional, vereador e suplente da Câmara Municipal de Meia Ponte. Substituiu o padre Manoel Amâncio Luz como juiz mu-nicipal, em seguida, foi nomeado Juiz de Paz do primeiro distrito de Vila e foi membro da Irmandade do Santíssimo Sa-cramento de Meia Ponte.

Veiga Valle, aos 34 anos, mudou-se da cidade de Meia Ponte (Pirenópolis) para a Cidade de Goiás, em razão do seu casamento com Joaquina Porfíria Jardim, filha do então presi-dente da província, José Rodrigues Jardim. Veiga Valle se tornou um cidadão da elite vilaboense, mas que tinha como um dos ofícios ser santeiro, um ofício considerado popular. No en-tanto, o caráter artístico de suas obras não foi reconhecido naquele momento pela sociedade vilaboense. Os nomes mais importantes da sociedade vilaboense estavam ligadas às ques-tões políticas e econômicas e não estéticas. Politicamente Veiga Valle não era uma figura influente e representativa, mesmo sendo um membro da elite vilaboense, genro de um presi-dente da província, ocupando cargos políticos e religioso, não significava que ele seria permanentemente lembrado. Sua obra era vista mais com o caráter religioso do que estético.

Uma das maiores discussões a respeito de Veiga Valle é sobre a aprendizagem das téc-nicas de esculturas, já que pouco se sabe sobre sua infância ou juventude. O que se deve lembrar é que, na cidade de Meia Ponte, existiam várias igrejas, com altares entalhados e dou-rados, oratórios, imagens sacras que vieram de Portugal e Espanha. O que se percebe é que Veiga Valle tinha um ambiente propício para aprendizado e inspiração: “Cresceu Veiga Valle acostumado a ver seu redor um ambiente anteriormente preparado, através das obras existen-tes nas igrejas de sua terra natal” (CONFALONI apud LACERDA, 1977, p. 10).

A obra de Veiga Valle é composta por uma variedade de santos, destacando as Mado-nas, representadas principalmente por Nossa Senhora d´Abadia, da Conceição, da Guia, do

Figura 1 – José Joaquim da Veiga Valle, [s.d.]. Foto: Arquivo do autor.

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Bom Parto, do Rosário, da Penha, das Mercês, do Rosário, entre outras. Além das madonas, ele produziu imagens de São Sebastião, Cristo em Agonia, São José de Botas, São Joaquim e Meninos-Deus. A seguir uma escultura de São Miguel Arcanjo.

Figura 2 – Veiga Valle. São Miguel Arcanjo e detalhe, [s.d.]. Escultura em madeira dourada e policromada, 94 cm. Museu de arte sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos (2019).

Segundo Salgueiro, a maioria das peças não era inteiriça, pois mãos e faces eram escul-pidos separadamente. Como a maioria da arte sacra brasileira, também a maioria das obras de Veiga Valle era feita em madeira cedro, uma vez que existia certa dificuldade de encontrar pedras para se esculpir e havia muita madeira disponível, o que explica a abundância de ma-deira nos ornamentos das igrejas. (SALGUEIRO, 1983). As peças de Veiga Valle obedeciam a iconografia da arte sacra, como os mantos esvoaçantes em forma de “V” ou “S”, as mangas das vestes ficam sucessivas e superpostas, os cabelos caem pelos ombros e normalmente partidos ao meio, os véus parecem se movimentar com o vento. Mas é no esgrafiato3 e na policromia que as peças de Veiga Valle mais chamam atenção e se dá sua assinatura como artista. Mesmo Veiga Valle tendo vivido em época que vigorava a arte neoclássica, suas obras são classificadas no estilo barroco. Mas ao se observar atentamente se nota que ele não seguiu um único estilo artístico. Na composição de suas peças se observa uma mistura de três estilos, o barroco, o rococó e o neoclássico

Suas caracteristicas barrocas aparecem principalmente na composição dos temas, dos gestos e na movimentação dos mantos esvoaçantes. Nota-se muito o neoclássico nos traços que compõem a fisionomia, que são mais serenos, contemplativos e bene-volentes, diferenciando-se do barroco, que valoriza o extase e o drama. O rococó aparece nitidamente nos ornamentos e panejamentos, as cores das pinturas são mais claras e luminosas. (SANTOS, 2018, p. 44).

3 Uma fina camada de tinta era passa na peça, inclusive por das folhas de ouro, que foram fixadas na peça durante o processo de douramento. Quando a tinta secava, eram feitos elementos decorativos, o esgrafiado, em que se usa uma espécie de estilete, para tirar o excesso, criando ornamentos, como: medalhões ovais, ramagens, buquês de flores, conchas, pérolas, plumagens etc.

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Figura 3 – Veiga Valle. Nossa Senhora da Imaculada Conceição e detalhe, [s.d.]. Escultura em madeira dourada e policromada, 26 cm. Museu de arte sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás-GO. Foto: Fernando Santos (2019).

Veiga Valle, viveu na Cidade de Goiás até sua morte, em 29 de janeiro de 1874. Desse período até as primeiras movimentações para a transferência da capital, da Cidade de Goiás para Goiânia, sua obra se tornou praticamente esquecida, inclusive para os vilaboenses. Essa situação começou a mudar com as primeiras articulações para que se colocasse a Cidade de Goiás como berço da cultura e da tradição goiana.

Um estudo da recepção nas obras de Veiga Valle A metodologia utilizada para analisar como Veiga Valle e suas obras foram imprescindíveis para reforçar a identidade vilaboense e para o processo de patrimonialização da Cidade de Goiás, será a estética da recepção. Para melhor entendimento desse método, se mostra neces-sário um breve histórico e posteriormente sua aplicação.

A estética da recepção nasceu como uma teoria de análise literária apresentada nos anos 70, em Constança, na Alemanha, por Hans Robert Jauss. Naquele momento, os estudan-tes questionavam os estudos da História da Literatura, que eram “tradicionais e desinteressantes”, ainda uma “herança do idealismo e do positivismo” (ZILBERMAN, 1989), pois não consideravam a história para se fazer a análise de um texto literário. De acordo com Jauss

[...] a estética se concentrava no papel de apresentação da arte e a história da arte se compreendia como história das obras e seus autores. Das funções vitais (le-bensweltlich) da arte, passou-se a considerar apenas o lado produtivo da experiência estética, raramente o receptivo e quase nunca o comunicativo. Do historicismo até agora, a investigação cientifica da arte tem-nos incansavelmente instruído sobre a tradição das obras e de suas interpretações, sobre sua gênese objetiva e subjetiva [...] da qual as histórias da literatura e da arte sempre nos transmitem o produto já obje-tivado. (JAUSS, 2011, p. 68).

Jauss propõe que o foco de uma obra deve ser o leitor e a sua recepção, e não exclusi-vamente sobre o autor e a sua produção, como já se fazia desde o século XIX. A proposta de Jauss é que se faça um exame de como os métodos de análise se modificam com o tempo, pois eles são os indicadores das mudanças que ocorreram com os principais fenômenos da época, afinal cada uma delas pode compreender o passado de forma diferente. Segundo Jauss, “para a análise da experiência do leitor ou da ´sociedade leitora´ de um tempo histórico

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determinado, necessita-se diferençar, colocar e estabelecer a comunicação entre os dois lados da relação texto e leitor” (JAUSS, 2011, p.73). Por isso, não se pode considerar que haja um ponto de observação privilegiado, todos pertencem a um encadeamento temporal, de onde examinam o presente e o passado. No entanto, a recepção está condicionada tanto à estrutura formal e temática do texto, quanto às disposições que variam do público (ZILBERMAN, 1989).

Antes de Hans Robert Jauss apresentar sua estética da recepção, três campos intelec-tuais já apresentavam estudos relacionados aos efeitos da estética no seu destinatário, sendo eles a Sociologia da leitura4, o Estruturalismo Tcheco5 e o Read – Response Criticism6. Porém, foi na estética da recepção que o leitor tem o papel central, juntamente com as questões rela-cionadas a sua recepção.

Quando Jauss coloca o leitor como peça-chave para se que possa fazer uma análise de uma obra, ele divide sua teoria em sete teses, sendo as quatro primeiras, base para o caminho metodológico das três últimas. De acordo com a primeira tese, a natureza histórica da litera-tura se manifesta durante o processo de recepção e efeito de sua obra, mostrando que o diálogo entre o leitor e o texto é fator principal.

A relação da obra, o leitor e a história são demonstrados nas teses seguintes, quando se coloca que uma obra se atualiza com o tempo, tornando-se mutável. Em relação ao leitor, se faz uma análise de seu conhecimento prévio, na verdade a sua experiência leitora. Para isso, se investiga a expectativa da obra quando foi concebida, uma breve busca dos gêneros, das temáticas de obras anteriores conhecidas e de sua oposição. De acordo com a tese, as obras se apropriam de elementos vigentes da época e não são novidades absolutas. No entanto, elas podem oferecer um horizonte de expectativas, que o leitor já está familiarizado, podendo al-terar, corrigir, transformar ou apenas reproduzir as expectativas do receptor. Mesmo a recepção podendo ser diferente em cada leitor, se deve considerá-la um fator social (ZILBER-MAN, 1989). É justamente nessa reconstituição de horizontes que aparece a terceira tese, pois é ele que determina o seu caráter artístico, que segundo a tese, só tem valor aquela obra que consegue contrariar a percepção usual do sujeito.

Ao propor examinar as relações da obra com a época que apareceu, Jauss, na quarta tese, enfatiza que a obra contraria o que já está consolidado, mas precisa responder aos anseios do público, se não, não teria propósito a sua existência. Com essa reconstrução de horizontes, se pode observar como se dava a interpretação passada e atual de uma obra, pois o horizonte de expectativas na época em que surgiu não é o mesmo do atual, ele já pode ter sido englobado na sociedade.

4 Na Sociologia da leitura o objetivo é estudar o público, já que os gostos e preferências podem interferir na circulação e no processo de produção das obras, sendo assim, contesta que a arte seja autônoma e indiferente aos fenômenos sociais e históricos. Na sociologia da leitura “seu enfoque sociológico não procura encontrar contrapartida na estética, que restringe sua contribuição à teoria da literatura” (ZILBERMAN, 1989, p. 18). 5 No Estruturalismo tcheco se trabalha a ideia de “estranhamento”, quando uma obra de arte de qualidade mo-biliza vários artifícios no intuito de causar um choque no destinatário, mas para isso a obra precisa estar em constante processo de renovação. Para o Estruturalismo tcheco, cabe a arte desautomatizar e descristalizar as percepções dos indivíduos, pois é ele que transforma a obra, até então um mero artefato, em um objeto estético, pois decodifica o seu significado que ali foram transmitidos. Algo só vira arte quando é percebida por uma cons-ciência, no caso a sujeito estético (ZILBERMAN, 1989). 6 Com o Read – Response Criticism a obra de arte depende totalmente dos sentidos que o leitor deposita nela, para isso ele tem quem vivenciá-la como uma obra de arte, buscando a partir daí novas experiências, para essa corrente teórica o processo de leitura depende do texto e do leitor, no qual o primeiro cria um constrangimento e o segundo com suas experiências e os sinais dados pelos pelo texto, vai se organizando um sentido para a obra.

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Como dito anteriormente, as três últimas teses da estética da recepção de Jauss mos-tram um programa metodológico. Dessa modo, na quinta tese é demostrado como situar uma obra ao longo da história, que Jauss chama de “diacrônico”, pois uma obra não perde poder de ação no decorrer do tempo, o que pode acontecer, na verdade, é ela perder ou ganhar impor-tância, por isso se deve revisar o período de sua escrita e fazer uma relação de como ela é percebida na atualidade.

O segundo momento, que corresponde a sexta tese, chamada de “sincrônico”, deve-se observar como a obra de uma determinada época histórica corresponde com as fases que são organizadas e sequenciadas, buscando aquelas obras que tiveram um caráter articulador de rupturas. Porém, o público as tem como simultâneas e as relacionam umas com as outras. Sendo assim, se torna necessário fazer a observação do simultâneo e também das mudanças ocorridas, comparando com os momentos históricos.

O relacionamento da obra com a vida prática é demonstrado na sétima tese, em que Jauss coloca a literatura como pré-formadora da compreensão do mundo e, consequente-mente, repercute no seu comportamento social. Segundo Jauss

a relação entre a literatura e o leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como no estímulo a percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhida e julgada tanto contra o background de outras formas artísticas, como ante o backgound da experiência coti-diana da vida. (JAUSS apud ZILBERMAN, 1989, p. 39).

Tendo essa possibilidade de colocar a arte como participante do processo de pré-for-mação e motivação do comportamento social, Jauss demonstra que a recepção tem uma representação intelectual, sensorial e emotiva com a própria obra, e o leitor tende a se identi-ficar com essas normas, transformando-as em modelo de ação. Entendendo que a arte pode repetir padrões consagrados, e também criar possibilidades de romper com eles, convida o receptor a participar desse novo momento, pois “a expectativa da obra e a vivência do desti-natário, produziu uma nova significação” (JAUSS, 2011, p. 73), uma liberação pela experiência estética. A liberação estética se dá em três pontos, a poiesis, aisthesis e katharsis, em só pode ser concluída quando o leitor se identifica com a obra e não devem serem vistas de forma sepa-rada. A poiesis ̧ corresponde ao momento em que o destinatário tem o prazer de se sentir coautor da obra. Na aisthesis, o destinatário percebe a capacidade de poder renovar o mundo ao seu redor. Com a katharsis, o destinatário assume novas normas de comportamento social, retomando ideias que foram expostas anteriormente, fazendo com que, a arte passe a libertar o espectador dos interesses práticos do seu cotidiano, pois oferece uma visão mais ampla dos eventos estimulando-o a julgá-los (ZILBERMAN, 1989). Com esta metodologia, se mostra como uma obra é recebida e interpretada de formas diferentes no tempo, e que o leitor é uma figura importante para se fazer uma análise de uma obra e do entendimento da época que ela foi produzida. A partir do confronto entre obra e história, pode-se reconstruir a realidade que a rodeou, pois ela se apropria dos elementos do cotidiano e reelabora-o artisticamente, indicando seus contatos com a sociedade e mostrando como tal realidade foi transportada para a obra em si.

Contudo, toda obra tem seus próprios códigos e eles não mudam com o tempo, o que muda é seu receptor, com suas vivências individuais e coletivas, fazendo com que a obra ganhe vida e passe a dialogar com a sociedade. Justamente nesse sentido que se propôs o uso da estética da recepção como eixo metodológico, com a intenção de identificar como Veiga Valle

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e sua obra foram recebidas no decorrer do processo de patrimonialização e, consequente-mente, utilizadas como um meio de fortalecer a identidade vilaboense, que se iniciou com o processo de mudança da capital, da Cidade de Goiás para Goiânia, em 1937.

O ressentimento da transferência da capital Veiga Valle é (re)apresentado aos vilaboenses Transferir a capital goiana da antiga Vila Boa para um local que possibilitasse mais cresci-mento e salubridade já era antiga, apesar disso, a empreitada só ocorreu na primeira metade do século XX. Para os vilaboenses, a transferência foi traumática, pois perderam o que mais lhes orgulhava: ser o centro político do Estado.

Quando se consolidou a transferência, os vilaboenses se sentiram abandonados e com a sensação de que a cidade poderia desaparecer. Após várias tentativas frustradas de impedir o projeto mudancista de Pedro Ludovico Teixeira, a sociedade e a população se voltaram para seu passado buscando por suas tradições, tentando difundir a ideia de que ali era o berço da cultura goiana.

Desde as primeiras notícias até a efetivação da transferência da capital, em 1937, a população vilaboense se dividiu em mudancistas e antimudancistas. Justamente esses últimos, acreditavam que a cidade não poderia continuar no marasmo e cair no esquecimento e esva-ziamento, pois seria a morte da antiga capital. Para os antimudancistas, a transferência da capital aconteceu de forma autoritária, violenta e muitas vezes desrespeitosa. Essa ideia pode ser exemplificada em crônica da escritora vilabo-ense Nice Monteiro Daher, que era adolescente na época:

Junto a tudo o triste rever dos caminhões enfileirados, esperando o alongar da manhã que começava em que eles carregariam o fim da visão nunca esquecida – a Mudança da Capital. Nós adolescentes daquela época trazíamos no coração a angústia nunca esquecida também, procurando entender os passos dos homens que, para construir uma cidade, pisava tão agrestes, na sensibilidade da outra. Sempre eu ali passava, imaginava que Vila Boa era uma velhinha abandonada, sen-tada nas escadas do Palácio, com as mãos trêmulas mergulhadas nos cabelos brancos, olhos chorosos que não queriam ver os caminhões levando pedaços do seu corpo transformado nos escombros, sobras de sua alma molhada de amargura. Trouxeram tudo. Carteiras velhas de todas as escolas, mesas quebradas, famílias cho-rosas, corpos sofredores carregando emoções nascidas na Cidade de Bartolomeu Bueno. Somente ficaram conosco as queridas Irmãs Dominicana e nossos lindos san-tos do Veiga Valle. (DAHER apud TAMASO, 2007, p. 103).

Como mostra a crônica de Nice Monteiro Daher, a forma como aconteceu a transfe-rência da capital criou um ressentimento entre um grupo antimudancista. Ao pensar o ressentimento antimudancista e suas atitudes, pode-se amparar nos estudos de Pierre Ansart, em que o ressentimento viabiliza uma solidariedade coletiva que opera movimentos e conse-quentemente conduzem a ação. Mas, para isso, seria necessária uma reflexão sobre os sentimentos e emoções que levaram a tal ressentimento, que pode ser: inveja, ciúme, o rancor, a maldade e o desejo de vingança. E o que mais se encaixa, no caso da Cidade de Goiás, foram a experiência de humilhação, experiência do medo e a experiência do amor-próprio ferido (ANSART, 2001).

A principal estratégia para minimizar o sentimento de perda e abandono era reverter a imagem da Cidade de Goiás, vinculada ao atraso, à insalubre e à degradação. Para isso, di-fundiu-se a ideia de que a cidade era o berço da cultura e a da intelectualidade goiana, a matriz

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geradora da história das tradições de Goiás. Foram, portanto, os antimudancistas que criaram uma nova imagem para a cidade.

Quando o grupo antimudancista incentiva a preservação da tradição, envolve iniciati-vas para criar os lugares de memória. Pensando Pierre Nora, os lugares de memória surgem para se criar uma ideia de pertencimento, se tornar algo interno, psicológico. Pois, a memória de uma pessoa, quando busca seu passado, é feita sob a perspectiva de algo que já passou e acaba usando o presente como principal referência. “A passagem de memória para história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história” (NORA, 1993, p. 17). Foi o que aconteceu com a Cidade de Goiás, já que ela foi desprovida de um de seus maiores referenciais simbólicos, quando deixou de ser capital. Nesse contexto de valorização, surgem as primeiras manifestações para que a cidade se tornasse patrimônio histórico e artístico brasileiro. A primeira manifestação encontrada referindo a Cidade de Goiás como monumento histórico, foi num embate entre os jornalistas do Cidade de Goiás, D. L. de Sant’Anna e Lacerda de Athayde, em 1939. Ao saber que Lacerda de Athayde solicitou a Pedro Ludovico que lavrasse um decreto considerando a Cidade de Goiás como Monumento Histórico do Estado, Sant´Anna faz um longo artigo acusando Athayde de “um enamorado da nossa terra7” e continua o artigo explicando que “a categoria de Monumento histórico dá-nos a ideia de intangibilidade”, que a cidade não precisava de tal elevação, uma vez que “a Cidade de Goiaz precisava sentir as influências do modernismo, engrandecer-se mais, reconstruir-se”. Sant´Anna alegava que este tipo de coisa faria a cidade parar no tempo e que o caminho deveria ser outro. O jornalista encerra dizendo que “as nossas tradições constituem um patrimônio moral, todavia cultuar as tradições não significa estacio-nar. Por isso saberemos cultuá-las, prosseguindo: PARA FRENTE E PARA O ALTO” (CIDADE DE GOIAZ, 20 de ago. de 1939, p. 1).

A resposta de Lacerda de Athayde foi publicada em dois números em um longo artigo intitulado Goiaz, cidade histórica do Brasil

[...] A minha intenção teve como único fim elevar à altura que merece esse torrão sagrado, donde se geraram as maiores glórias históricas deste Estado donde se irra-diaram todas as outras cidades e donde saíram os maiores talentos que não só glorificaram Goiás como também o Brasil. [...] Colocar uma corôa histórica sobre uma cidade que merece, não é entravar o seu progresso, não é diminuí-la, ao contrário é perpetuá-la perante os olhos de todos os brasileiros. [...] O decreto ainda não foi publicado e portanto o Sr. D. L. Santana foi muito pre-cipitado nas suas apreciações que só serviram para causar ressentimentos perante as almas bem intencionadas que sonham ver essa terra de poesias, de bondades e de glórias como: - CIDADE HISTÓRICA DO BRASIL. (CIDADE DE GOIAZ, 02 de set. de 1939, p. 1 e 4).

O movimento se intensifica e, em 1940, chega à Cidade de Goiás, a serviço do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o pintor e restaurador João José Res-cala8, para fazer um inventário dos bens artísticos da cidade, catalogando imóveis públicos e

7 O jornalista faz uma crítica a um artigo de Athayde intitulado “Mãe, adotiva”, em que ele faz um longo texto comparando a cidade como uma mãe e exaltando as belezas da região. O texto foi publicado no jornal Cidade de Goiaz, em 06 de agosto de 1939. 8 João José Rescala nasceu no Rio de Janeiro em 1910, era pintor, restaurador e professor de Teoria, Conservação e Restauração da Pintura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Em busca de um melhor direcionamento à arte que vinha praticando, Rescala frequentou o Curso de Pintura da Escola Nacional de Belas

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civis, possíveis candidatos a monumentos históricos – e observou que nas igrejas algumas esculturas eram muito semelhantes. Dessa forma, Rescala foi em busca de informações sobre o artista e, por meio de um dos descendentes e do então prefeito, Edilberto Veiga (bisneto de Veiga Valle), descobre que as imagens eram de autoria de Veiga Valle, um artista desconhecido até mesmo para as pessoas da cidade.

Para que os vilaboenses pudessem ter conhecimento das obras de Veiga Valle, João José Rescala, com o apoio do prefeito da cidade, organizou a primeira exposição das obras de Veiga Valle na Sucursal do Liceu de Goiás, em março de 1940. Para a exposição, algumas imagens foram retiradas das igrejas e outras foram cedidas por particulares. Veiga Valle passa a sair do seu “silêncio” e inicia o seu processo de reconhecimento como artista, integrando-se aos lugares de memória da paisagem vilaboense.

A Cidade de Goiás se encaixava na perspectiva de tombamento do SPHAN, em priori-zar o período colonial e o barroco, já que a maioria da arquitetura do centro histórico da cidade era colonial e as obras sacras de Veiga Valle eram consideradas barrocas.

Porém, somente em 1948, que se iniciou a deliberação dos tombamentos para a inscri-ção nos Livros do Tombo. No entanto, os tombamentos ocorreram formalmente pelo SPHAN durante a década de 1950 e, neste período, foram tombadas pelo órgão: a Igreja de São Fran-cisco de Paula, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de Nossa d´Abadia, Igreja da Boa Morte, Acervo Arquitetônico e Paisagístico do Antigo Largo do Chafariz, Acervo Arquitetônico e Paisagístico da Antiga Rua da Fundição, Antiga Casa de Câmara e Cadeia, Antigo Palácio dos Governadores (incluindo um brasão real e dois bustos) e uma imagem de Nossa Senhora do Parto, de Veiga Valle, considerada por muitos como sua obra-prima.

Figura 4 – Veiga Valle. Nossa Senhora do Parto e detalhe, [s.d.]. Escultura em madeira dourada e policromada, 140 cm. Museu de arte sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos (2019).

Para muitos vilaboenses, a cidade, reconhecida como Monumento Histórico, voltaria a ser valorizada na sociedade goiana, nos termos de Pierre Nora, um lugar de memória, em que a imaginação a investiu de uma aura simbólica (NORA, 1993). Neste sentido, os argumen-tos para o reconhecimento do centro histórico da cidade de Goiás levavam em conta os seguintes aspectos: políticos, sendo a primeira capital; arquitetônicos, com as igrejas, algumas

Artes, aliou-se a um grupo de alunos que propuseram a formação de um movimento em prol ao modernismo carioca: O Núcleo Bernadelli. (BALTIERI, 2014).

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casas e órgãos do governo; culturais, com o berço da cultura goiana, devido sua literatura, teatro e música; e estéticos e as obras de Veiga Valle (que teve uma obra tombada).

A Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT) e o Museu de Arte Sacra da Boa Morte Depois da primeira exposição no Lyceu de Goiás, em 1940, as obras de Veiga Valle também foram expostas: na 1ª Exposição da Escola Goiana de Belas Artes, em 1953; no 1º Congresso de Intelectuais, em 1954. Com tais exposições, se afirmava sua importância como artista regi-onal que ajudava na afirmação da tradição vilaboense.

Desde a transferência da capital que a potencialidade turística da Cidade de Goiás era discutida, e os primeiros tombamentos reforçaram ainda mais tal ideia. Em 1965, foi criada a Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), com o propósito de organizar, pesqui-sar, valorizar e divulgar a tradição cultural e artística da Cidade de Goiás. No livreto de comemoração dos 40 anos da OVAT, é explicado as motivações que levaram um grupo de intelectuais da cidade a criar a tal organização:

Na década de sessenta nós criamos a OVAT, Organização Vilaboense de Artes de Tradições, que era um grupo de pessoas ligadas à cultura e à arte e começamos a planejar o que seria Goiás para o futuro. De que ela poderia viver? Nós partimos a pesquisar e ver que o passado de Goiás era um passado muito rico em tradições, em arte, em cultura, em história. Desde a fundação até 1937, a vida do Estado desenvol-veu aqui dentro. Então, quer queira, quer não queira, isso já é um ponto fantástico. E nós tínhamos vários prédios que estavam abandonados, que estavam deixados, emprestados a órgãos públicos, a escolas, a “n” coisas. Nós começamos a fazer um levantamento histórico. Vimos que o futuro era o passado. (CATALOGO, 2005, p. 7).

O interesse em valorizar o passado e as tradições da cidade acontecia desde a mudança da capital, principalmente com os chamados antimudancistas, sendo que os membros funda-dores da OVAT se consideravam herdeiros dos antimudancistas (DELGADO, 2003, p. 418). O turismo seria um dos principais caminhos para que a Cidade de Goiás continuasse “viva” e relembrada como berço da cultura goiana, o que pode ser notado no final do depoimento, quando Elder afirma que o “futuro era o passado”. É justamente nesse ensejo de planejar o futuro através do passado, que a OVAT se coloca e se torna a principal guardiã da memória da cidade, como fica demonstrado em seu livreto de comemoração de 40 anos: “É fundamental reconhecer uma Goiás antes e outra depois da OVAT. Uma Goiás que recria e preserva suas tradições visando unicamente perpetuar a identidade goiana”. (CATALOGO, 2005, p. 4).

Com sua pretensão de guardiã e divulgadora da memória da Cidade de Goiás, a OVAT efetivou inúmeras pesquisas e estudos sobre temas atualmente denominados de “cultura ima-terial” (TAMASO, 2007, p. 314), especificamente sobre a história, a vida cultural, as artes e o artesanato. No seu primeiro momento foi priorizada a principal festa religiosa da cidade, a Semana Santa. E em 1966, a OVAT reestrutura as comemorações da Semana Santa na cidade, como a Semana dos Passos e das Dores e cerimônias como: o Lava-Pés e a Adoração da Cruz e ainda dramatizações como a Procissão do Enterro e a Procissão da Ressurreição - e ainda reintroduziu aquela que é tida como a maior manifestação religiosa da Cidade de Goiás, a Procissão do Fogaréu, que ainda hoje é o maior chamariz turístico da cidade.

A OVAT se auto – instituiu guardiã das tradições vilaboenses, com a sensibilidade de preservar o patrimônio material (passado) e inventar o patrimônio imaterial (presente) e, com isso, projetando o turismo – patrimonial (futuro). Quando a OVAT fez resgate do patrimônio

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imaterial a partir da representação de rituais religiosos, como foi o caso da Procissão do Fo-garéu, as obras de Veiga Valle se tornam de extrema importância para se rememorar um passado artístico que existiu na cidade. Desse modo, as obras confeccionadas por Veiga Valle eram vistas nas igrejas e nas casas da elite vilaboense, assim legitimando a “invenção das tradições” por parte da instituição (MIRANDA BARBOSA, 2017).

A OVAT cria datas comemorativas, resgata espaços na cidade e muda sua função ini-cial; elege alguns personagens como referências culturais e silencia sobre outros. Em relação a essa manipulação da memória, Clóvis Britto faz a seguinte observação:

Não narrar alguém ou algo é um mecanismo eficaz de instituí-los como “mortos” metaforicamente, de conferir uma identidade a partir da não identificação. Soma-se a esse fato, o reconhecimento de que a memória se pauta em um jogo entre lembran-ças e esquecimentos e, no âmbito individual, na disputa entre o que ser lembrado, narrado, fabricado. Questões que desembocam em embates de uma política da me-mória que permeia a constituição das narrativas. (BRITTO, 2013, p. 19).

E um dos nomes escolhidos pela OVAT para ser uma referência cultural da cidade veio a ser Veiga Valle, tornando-se a maior responsável pela catalogação e divulgação de suas obras, contribuindo para o seu reconhecimento como principal artista goiano do século XIX. Segundo Tamaso, “antes da emergência de Cora Coralina na década de 80, Veiga Valle era o grande nome da cultura local” (TAMASO, 2007, p. 357).

Em 1968, a OVAT propôs que se transferisse o Museu da Cúria9 para Igreja da Boa Morte, pois ali se poderia aproveitar os altares em talha e pintado, dando um melhor aspecto para a exposição e disposição das peças sacras. A proposta foi aceita de imediato por Dom Tomás Balduíno, então bispo da cidade e em fevereiro de 1969, o museu passou a chamar Museu de Arte Sacra da Boa Morte. Um convênio foi firmado com o DPHAN (Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a Diocese de Goiás, para a criação e instalação do museu.

Em um primeiro momento a exposição do museu era composta apenas pelo acervo do Museu da Cúria, mas o convênio entre o DPHAN e a Diocese preconizava o envio de peças das igrejas filiadas à diocese para o museu. Segundo Tamaso

A partir de então teve início o processo de transferência das imagens das igrejas do município de Goiás, em custódio do Museu de Arte Sacra. Segundo percepções de vários vilaboenses, este é momento no qual começam a carregar os santos para o museu. (TAMASO, 2007, p. 669).

A retirada das obras de Veiga Valle do seu contexto sagrado foi fundamental para que se consolidasse a funcionalidade estética, em detrimento da litúrgica. O Museu de Arte Sacra da Boa Morte passa a ser um “lugar de memória”, tanto no resguardo das obras do principal artista goiano do século XIX, quanto da tradição vilaboense. De acordo com Pierre Nora “mu-seus, arquivos, cemitérios e coleções (...) são marcos testemunhais de uma outra era, das ilusões de eternidade” (NORA, 1993, p. 13).

A maioria das peças de Veiga Valle foram levadas para o Museu de Arte Sacra da Boa Morte, já na década de 70, tornando o local com a maior quantidade de suas obras reunidas. Com o apoio da OVAT, o museu passou a fazer uma ampla divulgação de sua obra. Não se fez um “Museu Veiga Valle”, mas parte de suas imagens sacras foram reunidas e colocadas dentro

9 Esse museu funcionava nos fundos da Matriz de Sant’Anna, desde 1958. Não se tem informação se alguma obra de Veiga Valle era exposta.

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de uma igreja, que se transformou em museu, para abrigar especificamente este tipo de obra. As obras de Veiga Valle tornaram-se referência do museu, como fica bem evidente numa re-portagem do jornal Cinco de Março, sobre a exposição do centenário da morte de Veiga Valle

O Museu da Boa Morte foi instalado onde antes era a Igreja da mesma denominação. Apesar de ali estarem sendo conservadas as antiguidades da Paróquia local, a im-pressão que deixa ao visitante é que tudo ali é obra de Veiga Valle, o extraordinário escultor santeiro [...]. (CINCO DE MARÇO, 11 a 17 de fevereiro de 1974, s/p).

A OVAT passa a organizar as principais exposições de suas obras nos anos posteriores, como: Centenário da morte de Veiga Valle (1974), na Cidade de Goiás; exposição da 1ª e 2ª Semana de Arte da Cidade de Goiás – GO (1974 e 1981); exposição em São Paulo – SP, no MASP (1978); exposição no Palácio das Esmeraldas (1978), em Goiânia - GO; Exposição Brasil 500 anos (2000), em São Paulo – SP.

Veiga Valle foi nomeado patrono da instituição, no qual se juntou a representação do artista mais importante que a cidade teve no século XIX, com a instituição que se responsabi-lizou em guardar e divulgar a arte e a cultura vilaboense.

Considerações finais Como visto inicialmente, a ideia de patrimônio na Cidade de Goiás se iniciou já com a trans-ferência da capital, em 1937, tendo os seus primeiros tombamentos na década de 50. No entanto, nos anos 2000, a cidade ambiciona um voo mais alto e se propõe como Patrimônio Histórico e Cultural Mundial.

A recepção das obras de Veiga Valle em alguns campos, como no memorialístico, ar-tístico e na imprensa, sempre nortearam para o sentido de serem muito belas e geniais, afirmando a sua importância para identidade vilaboense. Somente no meio acadêmico é que essa recepção toma uma nova visão, pois se desvencilha do campo da obra ser bela ou não, para ressaltar no seu processo produtivo e canônico.

Nesse contexto, cabe a reflexão que a obra de Veiga Valle foi amplamente divulgada como um bem imprescindível da tradição vilaboense e sua ideia de patrimonialização. Dessa forma, podemos pensar na ideia de “tradição inventada”, de Eric Hobsbawn e Terence Ranger, em que tradições que parecem ou são consideradas antigas, na verdade, são recentes ou, às vezes, são inventadas. Se entende por “tradição inventada”

[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou aberta-mente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automati-camente: uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com o passado histórico apropriado. (HOBSBAWN e RANGER, 2008, p. 9).

“Inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição” para se ter “uma continuidade em relação ao passado”, foi o que propiciou buscar a “tradição vilaboense”. Na medida em que se tem uma referência a um determinado passado histórico, essas tradições inventadas devem ser vistas como reações a novas situações. No caso de Goiás, esse algo novo foi a mudança da capital, que acabou destituindo ou debilitando a sociedade, com a perda de referencial simbólico valorizado socialmente. Para contornar a situação, uma nova tradição é inventada, já que “sempre se pode buscar no passado os elementos para inventar as tradições”

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(HOBSBAWN e RANGER, 2008, p. 14) e foi o que a sociedade vilaboense fez através de sua elite cultural, iniciando com os antimudancistas e continuando com a OVAT.

Nos anos 2000, como não era de estranhar e devido a sua influência, a OVAT é convi-dada para participar do Movimento Pró-Cidade de Goiás, para organizar o Dossiê com a finalidade de lançar a Cidade de Goiás como candidata ao título de Patrimônio Histórico e Cultural Mundial, pela UNESCO. O título foi concedido em 2001, quando as peças de Veiga Valle são colocadas como um dos bens artísticos que representam a tradição vilaboense.

No Dossiê da proposição da Cidade de Goiás para o título, o único artista que tem obras no anexo do Inventário de bens móveis e integrados é Veiga Valle, sendo elas: Nossa Senhora do Parto, São Miguel Arcanjo, São Joaquim, São José de Botas com Menino, São João Batista e Menino Deus. Ainda no Dossiê, dentro do contexto cultural do século XIX, Veiga Valle foi designado como o “grande artista” da época na região. É insinuando um possível autodidatismo e destacado a peculiaridade de que mesmo que o santeiro nunca tenha saído de Goiás, tenha conseguido produzir obras com tais qualidades.

Durante todo este esse período da ideia de patrimonialização, os estudos de recepção demostram que Veiga Valle nasce como artista a partir de 1937 e sua vida e obra vai se afir-mando com o processo de patrimonialização, sempre sendo colocado como umas das peças-chave para tal processo.

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RECORTES DA METRÓPOLE A cidade moderna pelo olhar de Baudelaire e António de Alcântara Machado

Leonardo da Silva Claudiano1

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Resumo

Separados no tempo e no espaço, Charles Baudelaire e António de Alcântara Machado perceberam suas respec-tivas cidades, Paris e São Paulo, em cartografias, cronologias e vivências sobrepostas. Essa percepção foi traduzida em ficção, que não apenas procurou abarcar as contradições inerentes à modernidade, como, a partir dessas contradições, construir uma imagem de cidade cujo movimento dialético entre ruas/construções e expe-riências sociais/subjetivas revelasse os percalços e as potencialidades do existir urbano. Este artigo pretende buscar tais experiências. Palavras-chave: Cidade; Modernidade; História; Literatura.

Abstract

Separated in time and space, Charles Baudelaire and António de Alcântara Machado perceived their respective cities, Paris and São Paulo, in cartographies, chronologies and overlapping experiences. This perception was translated into fiction, which not only sought to contain the contradictions inherent to modernity, but, based on these contradictions, to build an image of a city whose dialectic movement between streets / buildings and social / subjective experiences revealed obstacles and potentialities of urban living. This article aims to look for those experiences. Keywords: City; Modernity; History; Literature.

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Introdução A cidade moderna possui inúmeras características, concretas e abstratas, que a definem. A hierarquia desses aspectos é dispensada, uma vez que as imagens e as identidades urbanas se fazem por vias dialéticas entre esses elementos, no espaço e no tempo, na materialidade e na imaterialidade. Em outras palavras, a cartografia da cidade entendida pelo traçado de suas ruas tem relação com a memória que seus habitantes constroem pelas vivências em cada es-quina, em cada vizinhança. Os deslocamentos realizados pela urbe planejada, em busca de ócios e ofícios, interferem nas sociabilidades que se estabelecem, nas relações com os espaços, no ir, vir e habitar. Por sua vez, as experiências urbanas subjetivas e coletivas dão novos sig-nificados de vivências às vias públicas, além das definidas pelo poder municipal, geralmente relacionadas ao fluxo, sanitarismo e vigilância.

Essa relação entre espaço e memória traz consigo elementos da temporalidade, funda-mentais para compreendermos como se constroem, preservam e se alteram as imagens e identidades citadinas, sempre em constante negociação. Os suportes físicos da memória, na cidade moderna, cujo mote é a transformação constante, coexistem com “memórias diversas, esquecidas ou rejeitadas, confusas ou fragmentadas” (BRESCIANI, 2018, p. 439). Assim, a urbe

1 Doutorando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com bolsa CAPES. Pesquisador do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade (NEHSC/PUC-SP).

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que se (re)faz no tempo é (re)construída em lembranças pessoais e coletivas, resguardadas em relatos orais, escritas memorialistas, textos ficcionais, cinema, música, et cetera. Da mesma forma, a cidade que se apresenta refeita possibilita novas vivências, outras experiências e rei-vindicações de se existir no espaço público, o que, por sua vez, legará inéditas reminiscências.

Distantes algumas décadas, separados por espaços e contextos, Charles Baudelaire e António de Alcântara Machado registraram em suas obras ficcionais a cidade que se alterava em velocidade surpreendente e inédita até então. Mais do que se dedicarem aos suportes físi-cos da cidade, procuraram nas sociabilidades as alterações postas em movimento com o urbanismo dado a grandes reformas. Registraram, igualmente, como os homens e as mulheres de seu tempo se resguardaram de mudanças espaciais violentas, seja via negação, negociação e ressignificação. Propomos, aqui, a análise do espaço parisiense, na segunda metade do XIX, e das ruas paulistanas dos anos vinte do século XX. Propomos, ainda, que a análise se realize via ficção, pelo pequeno poema em prosa “Os olhos dos pobres”, de Baudelaire, e pelo conto “O tímido José (José Borba)”, de António de Alcântara Machado. Assim, pretendemos investi-gar como essas cidades foram compreendidas pelos escritores e como seus textos contribuíram para o entendimento desse caleidoscópio urbano de temporalidades sobrepostas, limites geo-gráficos borrados e vivências relacionadas.

Recortes de Paris, pelo olhar de Charles Baudelaire Marshall Berman (1986), em instigante ensaio sobre a dialética entre modernismo e moderni-zação, traz considerações e análises interessantes a respeito de Baudelaire. Ao se debruçar sobre alguns textos do autor (Spleen de Paris), observa como as reformas urbanas de Hauss-mann repercutiram na percepção e escrita do poeta, que, sensível às contradições que se apresentavam, soube traduzir em sua literatura a multiplicidade de espaços, temporalidades, elementos materiais e subjetividades, como a pintar painéis que condensavam, em relances:

(...) cenas modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e Haussmann, mas estão impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transfor-mando-as em arquétipos da vida moderna. (BERMAN, 1986, p. 144).

Uma dessas cenas, ainda segundo Berman, é retratada no texto de Baudelaire “Os olhos dos pobres” (BAUDELAIRE, 2011, p. 133). O enredo se apresenta simples, porém o desenvol-vimento é carregado de significados que referenciam conflitos externos e internos.

O narrador principia em tom de lamento. Pretende explicar à mulher o motivo de sua tristeza: “Ah! Você quer saber por que hoje a odeio.” (BAUDELAIRE, 2011, p. 133). Assim, somos colocados a observar o desentendimento de um casal. O motivo da queixa é fundamen-tal na narrativa. Entretanto, até que se revele, temos alguns pontos consideráveis que extrapolam o texto escrito e apontam para as novas formas de sociabilidades na cidade mo-derna. O próprio fato de sermos testemunhas de um desentendimento entre apaixonados é revelador nesse sentido, uma vez que, em diálogo com os demais parágrafos, notamos o quão se tornaram explícitas as relações afetivas. A cidade é palco, é cenário de amores e desamores, disponíveis a quem quiser vivenciar ou observar.

Prosseguimos na leitura e vemos que Baudelaire retoma o dia vivido pelos amantes: “Tínhamos passado juntos um longo dia que me parecera curto.” (BAUDELAIRE, 2011, p. 133). O tom é de saudade dos instantes vividos horas antes. Nessa demanda de eterno presente, advinda com a aceleração propiciada pela revolução tecnológica, os bons momentos parecem

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reforçar a brevidade, sugerem a preservação imediata do efêmero, bem como apelam por iné-ditos igualmente fugazes. Linhas adiante, a atmosfera de sonho vivido na cidade tem continuidade. O narrador nos diz que:

À noite, um pouco cansada, você quis sentar-se frente a um café novo, que formava a esquina com uma avenida nova, ainda apinhada de cascalhos e já exibindo glorio-samente seus esplendores inacabados. O café reluzia. (BAUDELAIRE, 2011, p. 133).

Temos que o desentendimento, o fio condutor da narrativa, esmaeceu. O tom prepon-derante, a sensação partilhada, é de suavidade. O ódio e sua razão nos é distante, não há sensação de urgência pelo desfecho e a curiosidade acerca da amargura é, nesse momento, nula. Afinal, estamos em Paris, nas décadas finais do XIX. A cidade e seu enredo de amantes ganham as atenções. Nós, leitores distantes no tempo, somos levados por esse pequeno poema em prosa a imaginar ruas, cheiros, sons, romances. Temos como substância de concepção, além das palavras de Baudelaire, inúmeras outras, em letras, imagens e músicas, que fizeram do palco citadino, um palco de namorados. O poeta deixa o registro de que apaixonar-se, na cidade, tem relação direta com a modernização do espaço, com seus bulevares, cafés e as fu-turas luzes de neon (BERMAN, 1986).

Entretanto, algo romperá o clima etéreo de romance. Um ruído insinua-se nos acordes do casal. Incômodo que tem relação com os cascalhos da demolição que fez nascer o cenário em que se encontram. Um cenário que se edifica tanto do novo e do reluzente, como dos resquícios de outro tempo. Essas sobras que parecem não encontrarem espaço no moderno desenho urbano, são atestados do progresso que derruba para erguer, mas também prova de uma memória que sobrevive, testemunha, ainda que feita de resquícios, esqueletos de um tempo não tão distante. Aos amantes e ao bulevar - cujo esplendor se mostra, mesmo que inacabado -, Baudelaire acrescenta novos personagens:

Bem em frente de nós, na calçada, quedava-se um bom homem de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, com uma das mãos segurando um menino e le-vando, no outro braço, uma criaturinha frágil demais para andar. Ele fazia as vezes de babá e trouxera os filhos para tomar o ar da noite. Todos em andrajos. Os três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o café com admiração igual, porém distintamente matizada pela idade. (BAUDELAIRE, 2011, p. 133).

Um homem e duas crianças, pobres, ao centro. Como os entulhos da reforma urbana, eles são colocados em cena, indesejáveis. Não é fortuita essa mudança de perspectiva que o olhar do narrador nos conduz. Berman nos diz que aí reside o elemento de sustentação da cena primordial, o que torna possível a existência próxima de experiências distintas, da so-breposição de amor pequeno burguês e miséria humana: “o novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional.” (BERMAN, 1986, p. 145).

O plano urbanístico realizado por Haussmann em Paris teve, no bulevar, seu eixo fun-damental. A cidade de ruas estreitas, tortuosas, medievais, que retardavam os fluxos comerciais e a movimentação de tropas, e facilitavam tanto o ponto fixo da insurreição, que é a barricada, como as fugas dos revoltosos por vias escuras, sinuosas, seria cortada por bule-vares. Assim, o poder público alcançaria os objetivos diretos de fluidez e controle. Bulevares em linha reta, amplos, aumentaram a velocidade do tráfego. Calçadas também largas, pontu-adas por bancos e ricamente arborizadas. “Grandes e majestosas perspectivas foram

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desenhadas, com monumentos erigidos no extremo dos bulevares, de modo que cada passeio conduzisse a um clímax dramático” (BERMAN, 2011, p. 147). Paris tornava-se a capital da modernidade, em funcionalidade e deslumbramentos sociais e subjetivos. Entretanto, para além da aparência imediata, outras intenções se revelam. Haussmann, ao alterar o seio urbano através da normatização do espaço público, também buscou, por reflexo, ordenar o espaço privado. Ora, “o empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e mi-lhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos” (BERMAN, 1986, p. 146). No mesmo movimento demolidor das ruas labirínticas medievais e próprias aos levantes populares, foram abaixo as moradias e um deslocamento forçado foi efetivado. Então, uma vez que o meio fugidio e suspeito, o lar, foi realocado, os hábitos foram embaralhados, determinando novas rotinas e formas de locomoções. Assim, na mesma medida em que dis-cursos e outras práticas normativas ultrapassavam portas e janelas, o Estado roçava seus dedos no particular objetivo e subjetivo. Mais: ao conduzir para os distritos periféricos as classes baixas, Haussmann, não apenas as retirou do campo de abrangência das frágeis retinas burguesas, como homogeneizou bairros inteiros. Em leitura apurada, a urbanização derrubou as paredes das casas, não só concreta, mas também abstratamente, realocando-as num espaço determinado com os limites do privado agora estendidos à vizinhança una:

A diferenciação entre ruas e casas, entre espaço “públicos” e “privados”, devia ser necessariamente acompanhada pela geografia de exclusão e segregação social, que acabasse separando em bairros distintos os diversos segmentos da sociedade. Priva-cidade, portanto, não poderia mais confundir-se com domesticidade, com os simples limites da casa, mas escapava para uma dimensão que abarcava os convívios, os vi-zinhos – todos sujeitos a uma mesma gramática de comportamento. (MARINS, 1998, p. 136).

À essa equação dialética, podemos somar a manipulação da memória. Os bulevares, as novas habitações e as casas comerciais que se erguiam em Paris, aquecendo a economia e higienizando a cidade, também trabalhavam com lembranças e esquecimentos. As vielas me-dievais de outrora, que travavam a fluidez monetária e que igualmente facilitavam as barricadas de insurretos populares, conservavam vivas em suas pedras os levantes e massa-cres. Com muitos mortos e deportados, restavam, ainda, como testemunhas do conflito de 1848, por exemplo, as já citadas ruas tortuosas de casas e sobrados espremidos, chapiscadas de sangue revoltoso. A demolição não visava tornar pó apenas as habitações populares, mas também a memória que elas evocavam. Remodelar a cidade foi também remodelar a lem-brança. E não deixa de ser irônico que toda a derrubada e reconstrução foram levadas a cabo pelos populares, vitimados duplamente: pela momentânea desconstrução de sua história e pela posterior segregação urbana. Entretanto, a ironia se justifica, uma vez que as reformas geraram inúmeros empregos – quase 25% da mão de obra disponível – em projetos de longo prazo. O estímulo à expansão de negócios locais também teve reflexos positivos na emprega-bilidade. (BERMAN, 1986).

Temos, dessa forma, que os detritos da cidade de ruelas medievais e a família de mal-trapilhos, a compartilhar o mesmo ambiente de cafés modernos e casais apaixonados, reclamando para si atenção e presença, são elementos de outro tempo, que se atualizam e se impõem no presente. As barricadas voltarão às ruas alguns anos adiante do texto de Baude-laire, na Comuna de 1871; bem como retornarão em maio de 68, no século XX. O significado daqueles detritos é progresso, mas também é revolta. A família de pobres, em duas gerações, traz na figura do pai o reclame da cidade que o segregou, e na dos filhos a luta que se estenderá.

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Berman chama a atenção para o fato de Baudelaire não descrever os olhos como famintos ou revoltosos:

Os olhos do pai diziam: “Que bonito! Que bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio encerrar-se nessas paredes”. Os olhos do menino: “Que bonito! Que bo-nito! Só que é uma casa onde só entra gente que não é como a gente”. Quanto aos olhos do menorzinho, estavam fascinados demais para expressar algo além de uma alegria estúpida e profunda.” (BAUDELAIRE, 2011, p. 133-134).

Existe consciência das diferenças de classes, mas ela não milita em favor da luta. Não por enquanto. O deslumbramento parece ser maior. “O problema”, nos diz Berman, “não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é que eles simplesmente não irão embora. Eles também querem um lugar sob a luz.” (BERMAN, 1986, p. 148)

No fim, o homem releva sua mágoa. O texto é curto, porém o desenvolvimento é rico, ratificamos, já que Baudelaire encontra-se na fronteira de mudanças rápidas e significativas; mudanças que se fazem de contrários em negação e acordos. Esse conflito permanente é atu-alizado quando do desfecho da narrativa:

Eu me sentia não só comovido com aquela família de olhos, como envergonhado com nossos copos e jarras, maiores que a nossa sede. Voltei o meu olhar para o seu, amor querido, para nele ler o meu pensamento; mergulhava nos seus olhos tão lindos e extremamente doces, seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, e então você disse: “Não suporto essa gente, esses olhos arregalados! Você não poderia pedir ao dono do café que os afastasse daqui? (BAUDELAIRE, 2011, p. 134).

Berman aponta para uma dupla chave de análise nesse fechamento. A primeira, mais evidente: os posicionamentos contrários do homem e da mulher. A segunda: ao se ater no trecho em que diz “para nele ler o meu pensamento”, podemos tecer considerações que indi-cam a semelhança do pensamento de ambos e a incapacidade do narrador em lidar com esse sentimento sócio excludente que faz parte de si. Então, ao se ver na mulher, o desgosto latente é manifesto, e o dia de sonho termina. Seja como for, por um ou outro viés interpretativo possível, o que nos vale é o indício que “mostra como as contradições que animam a cidade moderna ressoam na vida interior do homem na rua”. (BERMAN, 1986, p. 150).

Notamos, dessa maneira, como existem espaços, tempos e memórias em disputa pelo corpo social citadino. As alterações urbanas refletem no concreto da existência, que, por sua vez, ressignificam e subvertem as intenções originais das municipalidades, em maior ou me-nor grau. O fato é que nesse embate perpétuo de avanços e recuos é onde se afirmam as imagens e identidades da cidade. O casal baudelairiano e a família de maltrapilhos reconhecem a cidade e, entre sustos e deslumbramentos, buscam nela postar-se. A Paris, não é de Hauss-mann, tampouco seus bulevares. A multidão que caminha nas ruas as reivindica.

Recortes de São Paulo, pelo olhar de António de Alcântara Machado Em 1928, chegava às livrarias a coletânea de contos “Laranja da China”, de António de Alcân-tara Machado. Bem recepcionado pela crítica, arrancou elogios de Tristão de Athayde, para quem o autor era “um dos mais moços e mais originais dos nossos contistas modernos”, com “um sabor todo próprio no que escreve. E um senso de realidade extremamente vivo” (ATHAYDE, 1982, p. 69), e palavras afáveis de José Lins do Rego, que considerou “Laranja da China” um “livro de contos em uma língua deliciosa (...) A língua de Alcântara é livre, vem de dentro de seus personagens, se articula numa pureza admirável” (REGO, 1982, p. 71).

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Em “Laranja da China”, António abandonara os ítalos-paulistas de “Brás, Bexiga e Barra Funda (1927)”, para focar suas lentes na pequena burguesia paulistana de funcionários públicos dos mais diversos. Composto por doze contos, cada personagem-título traz consigo uma característica própria, que é rápida e comicamente desenvolvida pela narrativa. Assim, numa série de curtas-metragens, temos, no caminhar e nas experiências urbanas de cada um, película curiosa da São Paulo dos anos vinte, tal qual foi percebida pelo autor.

Interessante notar que os dois críticos citados fazem elogios à linguagem de Alcântara Machado, considerado “o prosador do Modernismo paulista” (BOSI, 2006, p. 400). De fato, nas páginas encontramos linguagem saborosa que busca a todo momento dialogar com expressões advindas da técnica e características da modernidade, como publicidade, fotografia e cinema. Frases curtas, grafismos, cortes bruscos, espaços em branco entre blocos textuais, que chamam o leitor a participar da narrativa e a compor os vazios pelos ganchos deixados entre um trecho e outro, a busca pela simultaneidade, a câmera que abusa de planos abertos e fechados... Mais do que se referir aos aparelhos modernos, como aeroplanos e automóveis, como cinemató-grafo e cartões postais, Alcântara realizou, segundo Flora Süssekind2, a apropriação e ressignificação de técnicas modernas de representação para a transformação da própria lite-ratura:

Transformação em sintonia com mudanças significativas nas formas de percepção e na sensibilidade dos habitantes das grandes cidades brasileiras então. Em sintonia com o império da imagem, do instante e da técnica como mediações todo-poderosas no modo de se vivenciar a paisagem urbana, o tempo e uma subjetividade sob cons-tante ameaça de desaparição. (SÜSSEKIND, 2006, p. 15-16).

Ou seja, já na composição de Alcântara, encontramos elementos que abordam a cidade moderna. Vamos ao conto. A eletricidade ampliou o tempo de se estar na cidade. Em poucos anos, a noite se ilu-minou, gerando novas possibilidades de interação para além da luz solar. No entanto, ainda que os postes da Light fossem, paulatinamente, sugerindo e afirmando novas sociabilidades, a noite significava “desconhecido”. Berman (2009) nos diz da existência de “terrores noturnos”, mesmo na Times Square dos anúncios que iluminam. Debruçado sobre o filme noir clássico, “A morte passou por perto”, de Stanley Kubrick, o autor enxerga na narrativa os estranha-mentos a que somos submetidos quando diante de acontecimentos sem mecanismos prévios de leitura, os quais são fundamentais para nossa orientação. Na película de 1955, o herói é um jovem boxeador em dificuldades que planeja fugir da cidade com a namorada. Antes, no entanto, os dois precisam receber pelos trabalhos que realizaram e combinam o encontro na noite da Times. Diluídos na multidão, o anonimato lhes garantiria o sucesso da fuga. Entretanto, numa hora em que a Square deveria estar cheia, somos jogados em um ambiente vazio. Kubrick faz questão de tomadas amplas, como a au-mentar nossa angústia de nadas. Deserta, a Times Square é também silenciosa. Se a multidão tem o poder de oprimir; se os barulhos da urbe não nos permitem ouvir; surpreendentemente, é a ausência desses elementos que nos angustia. A modernidade criou locais em que o vácuo é mais aterrorizante que a descarga abundante aos sentidos. Berman ainda traz outra repre-sentação cinematográfica do “terror dos espaços infinitos” (BERMAN, 2009, p. 34): “Vanilla

2 Flora Süssekind, em Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil, não aborda de ma-neira específica António de Alcântara Machado. Traz inúmeros escritores e demonstra, por contos, crônica e romances, como a técnica se insinuou a ponto de, na década de vinte, transformar a forma literária. António de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mario de Andrade aparecem como exemplos da ressignificação das demais linguagens no fazer literário.

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Sky” (2001), do diretor Cameron Crowe. No enredo, Tom Cruise para o carro numa Times Square praticamente deserta. O pânico em seus olhos é evidente. Ele grita, corre, mas ninguém pode ouvi-lo. Está sozinho na cidade, numa imagem incondizente com o que entendemos por cidade. Compartilhamos da angústia do personagem de tal modo que a sua solidão nos é, também, opressiva. Isso ocorre, não apenas pelas qualidades técnicas de fotografia, pela dire-ção e pela atuação. A angústia que nos causa estranhamento tem relação com o referencial de cidade que possuímos. Esse referencial nos é legado por nossa experiência urbana. Maria Stella Martins Bresciani, ao analisar o tempo que se constitui de memórias, coletivas ou pessoais, afirma que é essa elaboração afetiva de lugares que “torna os espaços vazios insuportáveis, uma ausência a subverter nossa concepção de urbano, lugar do pleno, do preenchido, por excelência (BRESCIANI, 2018, p. 440). Entretanto, Berman nos fornece chave complementar de leitura. Aflitos, pelos nadas que se mostram em locais outrora repletos, a modernidade, no íntimo do desconforto, apresenta possibilidades. Vazio não necessariamente significa inexis-tência. Algo sobrevive, ali, na Times de Kubrick e Crowe: nas duas películas que Berman analisa, a Times Square, palco, afirma-se. Mais: impõe-se com sua presença; impõe-se com suas ausências. Esse clima noir, que distorce cenas e personagens, atrelados à uma narrativa que cria tensão crescente, foi incorporado por António de Alcântara Machado no conto O tímido José (José Borba). O enredo é simples. Madrugada, em um abrigo, o personagem espera o bonde para Lapa, onde mora. Surge uma mulher misteriosa e a partir daí a história se desenvolve, entre risos, sutil sensualidade e suspense. A ausência da multidão – este elemento característico da cidade moderna – permite que se conheça e se reconheça espaços que, diante de sua presença, diante dos múltiplos estí-mulos, não percebemos. O modo de interagir com os espaços tem, também, relação em como eles são enxergados, interpretados e representados. Para o tímido José, a relação com essa cidade que se mostra plenamente durante a madrugada é tensa: a ausência da impessoalidade da multidão lhe retira os referencias de conduta pelo espaço urbano. Ele necessita de suportes, não apenas para a memória, mas para existir urbanamente. A sensação de perda é importante para a narrativa, o que gera uma atmosfera noir, de caráter detetivesco, num curta metragem em preto e branco, onde jogos de luzes - claro e escuro-, destacam os aspectos psicológicos do personagem e criam tensão. (CARMO, 2004) Já na primeira cena somos imersos no conto. No entanto, o cenário que construímos é desfocado, misterioso. Tateamos confusos e curiosos:

Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhan-gabaú. Começou a bater os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desa-nimava. (MACHADO, 2013, p. 131).

Os gestos de José chamam a atenção. Encolhe-se, fecha-se em si. Solidão, reforçada pelo ambiente, de garoa característica e nevoeiro fantasmagórico. Mais do que uma reação ao provável frio, a contração do personagem funciona como forma de autoproteção diante da hostilidade que pressente. Levantar a gola do paletó; descer a aba do chapéu; enfiar as mãos no bolso. O personagem é escondido de nós. A neblina e a garoa escondem o cenário. Não sabemos o que presenciamos. O bonde não vem. As únicas pistas relativamente sólidas, em-bora envoltas em brumas, são o Anhangabaú e seu viaduto - citado pouco adiante [“Tomou o

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viaduto. O bonde vinha vindo” (MACHADO, 2003, p.131)]. E provavelmente as citações ao Vale e ao Viaduto do Chá não foram gratuitas. A superação do Anhangabaú, com a construção do viaduto, permitiu a expansão da cidade para o oeste. Tornou-se símbolo da tenacidade paulista, símbolo da metrópole moderna, com todos os seus impactos nos imaginários:

São Paulo, sem o Viaduto que o caracteriza, o Viaduto do Chá, envolto pela garoa, nas noites de frio, com os lampiões esvoaçantes de névoa, não seria o São Paulo das velhas tradições, o São Paulo-estudante dos tempos atrás, o São Paulo –“yankee” dos tempos modernos e o São Paulo-boêmio de todos os tempos. (...) O Viaduto é o símbolo vivo da cidade, ligando a vida do passado à vida do pre-sente... (MOURA, 1980, p. 126-128).

É interessante percebermos como António utiliza esse marco do progresso, que igual-mente atua sobre ele, para envolvê-lo em neblinas, sugeri-lo e com isso desrealizar subitamente o cenário, acentuando o mistério. Então, de repente, alguém se aproxima:

Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza de que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou o os olhos, puxou o relógio. - Pode me dizer que horas são? - Duas. Duas e menos três minutos. Agradeceu e sorriu. (MACHADO, 2013, p. 131).

O cenário se delimita. Continuamos a leitura e algo nos incomoda, ainda. É a neblina. Ela está nas páginas, remetendo-nos ao fog londrino das histórias de Conan Doyle. O mistério do cenário alcança a mulher, cuja descrição é negada. António é habilidoso e, durante toda a história, apenas nos fornece fragmentos. Jogando com zonas erógenas, olhares e movimento [“Uma mulher. Uma mulher com pele no pescoço”, “Olhou para ele”, “Disfarçadamente exa-minava a mulher”, “Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa”, “o nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou pra trás”, “Estava parada na esquina. E virada para o lado dele”, “De repente ela parou e sentou-se no banco”, “a mulher virou o rosto na direção dele”, “A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo.” (MACHADO, 2003, p. 131-133)], os quadros focados nos permitem, pouco a pouco, construirmos a imagem da femme fatale. (CARMO, 2004). Ora... há poucas décadas as paulistanas frequentavam as ruas de mantilhas! O tempo dos Fords e arranha-céus trouxe novas sociabilidades.

Zonas erógenas, olhares, femme fatale. Não se trata de um conto erótico. Mas essa espécie de trama paralela, de brandas insinuações, descreve aspectos comportamentais que transformaram as formas de sedução. A troca de olhares, num ambiente moderno, no qual a visão é o sentido principal de referência, ganhou novos significados. Assim, como o bonde, o flerte (flirt) era produto de um meio onde a velocidade e a fugacidade davam a tônica:

Versão urbana do amor, o flirt surge como filho legítimo do mercado de impressões que regia os encontros voláteis sobre o qual se baseava, cada vez mais, a prática da sociabilidade na cidade. (O’DONNELL, 2008, p. 139).

Tiranizados pelo tempo [“Olha o relógio: sete para as duas”; “Duas. Duas menos três minutos”; “Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa”; “Puxou o relógio: vinte e cinco para as três” (MACHADO, 2013, p. 131-133)]; tiranizados pela pressa, o flerte (flirt) nascia de novas posturas que a relação entre palcos e atores modernos exigia. Era a ressignificação do olhar – ver e ser visto-, da proximidade física e dos rituais de conquista amorosa (O’DONNELL, 2008).

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Enquanto segue a mulher pela cidade deserta – havia perdido o bonde em nome da sedução (“o nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou pra trás.”), José cruza com um velho que “também começara a seguir a sujeita (...) Era velho mesmo, tinha bigodes bran-cos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação” (MACHADO, 2003, p. 131-132). Pela chave de análise do flerte (flirt) como uma prática moderna, o velho representaria o tradicio-nal, que também deseja participar das inéditas formas de interação. Por fim, a troca de olhares não resulta em conquista amorosa. José não vence a timidez, não consegue aproximar-se fisicamente da mulher que desejara. Entretanto, apesar de incon-formado com o comportamento medroso, podemos dizer que sua desilusão – assim como o seu desejo – serão passageiros. O fato o atormentará até à próxima troca de olhares – que seria na esquina seguinte, caso fosse dia e a multidão estivesse na rua. A sina e a salvação têm, paradoxalmente, a mesma matriz: “nosso destino de habitantes desses lugares é transitarmos de uma paixão para outra sem nunca vivermos plenamente nenhuma delas.” (CARMO, 2004, p.136). E nesse momento cabe referência direta a Baudelaire, que décadas antes soube traduzir no poema “A uma passante”, a efemeridade dos amores da cidade moderna. O luto, represen-tado na mulher, é o luto pelo que foi e pelo que poderia ter sido:

A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido. Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (BAUDELAIRE, 1985, p. 345).

Perdas. Desencontros. A desilusão de José. Esse romance difuso, estranho, que não se realiza na cidade deserta, deixa a sensação passageira de impotência, da expectativa frustrada. Deixa, igualmente, dúvidas que não se respondem: quem é o homem “sem chapéu e sem pa-letó” que esperava pela mulher e que “gritava palavrões na cara da sujeita que chorava” (MACHADO, 2003, p. 133)? Ele é seu marido ou proxeneta? Não temos como saber. E este fato, plantado ao final da história, faz-nos questionar o que se desenvolveu até ali. O jogo de sedução se fez pela atração ou pela monetização que parece atingir todos os campos da soci-abilidade humana? Há muita neblina, ainda. Mesmo vendo em pregresso, com os novos elementos disponíveis, as lentes se embaçam. José se recolhe dentro do chapéu e sobretudo; a mulher, propositalmente, pouco se revela; o velho surge na narrativa sem nada que o prea-nunciasse, assim como o agressor. A neblina e a garoa, persistentes, escondem o cenário. Mas há algo ali: é a cidade, que se impõe. E nas ruas desertas, sem a multidão que a caracteriza, os personagens procuram outras formas de se dissolverem no espaço público, ainda que busquem o encontro. A experiência moderna é dialética.

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Considerações Finais Seja em Paris, no século XIX, seja em São Paulo, no século XX, existem experiências citadinas que, embora únicas e atreladas aos seus respectivos contextos, apontam paralelos importan-tes.

Essas similaridades se apresentam, principalmente, nas interações que seus habitantes travam no espaço concreto, reivindicando para si a participação na cidade que quase sempre os segrega. Todos os personagens apresentados buscam essa experiência e constroem as imagens urbanas através da relação que estabelecem entre si e entre o espaço público que os cerca. Os amantes querem viver na capital francesa todas as possibilidades que os relacionamentos efê-meros possibilitam; a família maltrapilha quer participar da cidade que lhe foi negada pela reforma de Haussmann. O tímido José, ainda que se perca na cidade vazia e deserta, ainda que necessite um suporte fixo, busca na mulher noturna o amor urbano fugaz. Esta, por sua vez, retarda a volta para casa, a volta para o violento ambiente privado, e parece sentir-se à vontade nas ruas vazias que a metrópole e as luzes noturnas lhe oferecem.

As ficções de Baudelaire e António de Alcântara Machado, traduzem, nos recortes apresentados, contatos concretos, práticas cotidianas de homens e mulheres no processo de entendimento da cidade moderna. Nessa paisagem multifacetada e fluída, de mudanças cons-tantes, o registro literário que reinventa a cidade e torna habitantes, personagens, fornece uma outra linguagem para se percorrer bulevares e viadutos, uma outra forma de se investigar como se criam as imagens urbanas, para além das pranchetas do poder. A cidade concentra, em si, todas as contradições da modernidade. Por isso assusta. Por isso seduz. Por isso impõe. Por isso se levanta.

Referências ATHAYDE, Tristão. António de Alcântara Machado – Laranja da China. In: LARA, Ce-cília. Comentários e notas à edição fac-similar de 1982 de Laranja da China, de António de Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O Spleen de Paris]. São Paulo: He-dra, 2011.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1986.

BERMAN, Marshall. Um século em Nova York: Espetáculos em Times Square. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Da cidade e do urbano: experiências, sensibilidades, projetos. São Paulo: Alameda, 2018.

CARMO, Eduardo Benzatti do. A obra ficcional e jornalística do escritor António de Alcântara Machado: letras e imagens. Tese de Doutoramento, PUC-SP, 2004.

MACHADO, António de Alcântara. Contos Reunidos (Brás, Bexiga e Barra Funda; La-ranja da China; e outros contos). São Paulo: Ática, 2003.

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MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgi-mento das metrópoles brasileiras. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da Vida Privada no Brasil III. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MOURA, Paulo Cursino. São Paulo de outrora: evocações da metrópole. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980.

O’DONNELL, Julia. De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

REGO, José Lins do. António de Alcântara Machado. In: LARA, Cecília. Comentários e notas à edição fac-similar de 1982 de Laranja da China, de António de Alcântara Machado. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.

SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Filmes A morte passou por perto. Direção: Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick e Morris Bousel. Intérpretes: Frank Silveira, Jamie Smith, Irene Kane et al. Roteiro: Stanley Kubrick e Howard Sackler. Distribuidora: United Artists, 1955, 67 min., pb.

Vanilla Sky. Direção: Cameron Crowe. Produção: Cameron Crowe, Tom Cruise e Paula Wagner. Intérpretes: Tom Cruise, Cameron Diaz, Penélope Cruz, Kurt Russel et al. Roteiro: Cameron Crowe, Alejandro Amenábar e Mateo Gil. Distribuidora: Paramount Pictures, 2001, 137 min., color.

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DESEJO DE MEMÓRIA Paisagem cultural e inventário participativo na Reserva Florestal do Morro Grande – Cotia – SP

Vilma Cristina Soutelo Assunção Noseda1 [email protected]

Resumo

Esse artigo corresponde a uma etapa da pesquisa de doutorado que desenvolvo sobre a Reserva Florestal do Morro Grande e o seu entorno, localizado no município de Cotia, Zona Sudoeste da Região Metropolitana, a partir do conceito de paisagem cultural, considerando as relações entre urbanização, patrimônios naturais, ma-teriais e imateriais, considerando o passado , o presente e o futuro. A intenção é a construção de um inventário participativo como instrumento de Educação Patrimonial, onde a própria comunidade forneça os subsídios para a elaboração de um projeto de “musealização” do território que contemple a valorização e a instrumentalização da comunidade ao propiciar condições para reverter o quadro atual de subutilização do patrimônio cultural da região. Palavras–chave: Paisagem Cultural. Inventário Participativo. Educação Patrimonial.

Abstract

This article corresponds to a stage of the doctoral research that I develop on the Morro Grande Forest Reserve and its surroundings, located in the municipality of Cotia, Southwest Zone of the Metropolitan Region, based on the concept of cultural landscape, considering the relationships between urbanization, natural, material and immaterial heritage, considering the past, the present and the future. The intention is the construction of a participatory inventory as an instrument of Heritage Education, where the community itself provides the sub-sidies for the elaboration of a project of musealization of the territory that contemplates the valorization and instrumentalization of the community by providing conditions to revert the current framework of underutiliza-tion of the region's cultural heritage. Keywords: Cultural Landscape. Participatory Inventory. Patrimonial Education.

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Introdução Apresentando a Reserva Florestal do Morro Grande A Reserva Florestal do Morro Grande encontra-se localizada a 34 quilômetros do centro de São Paulo, ocupa 10.870 hectares, o que corresponde a 1/3 do território do município de Cotia, representa uma das maiores extensões de Mata Atlântica do Planalto Paulistano. Atualmente está sob a responsabilidade da Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo - Sabesp, devido aos seus mananciais, os rios Capivari, dos Peixes, Cotia e da Graça nascem dentro da Reserva, alimentando o Sistema Alto Cotia, englobando as represas da Graça e Pedro Beicht, além da Estação de Tratamento que distribui água para mais de 400 mil pessoas que habitam na Grande São Paulo. No século XIX, em decorrência da expansão da economia cafeeira, a cidade de São Paulo vivenciou um amplo processo de modernização e urbanização. O crescimento

1 Doutoranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em História Social na PUC-SP – Bolsista CAPES.

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acentuado da população urbana1, aumenta a demanda de água para o consumo próprio, aliás a questão da falta de água2 e de saneamento era tida como um dos principais problemas da cidade na época. Para solucionar a questão da falta de água, em 1900, o Dr. Antônio Cândido Rodrigues, secretário da Agricultura, desapropriou o território referente a Bacia do Ribeirão Cotia, acima da Cachoeira Pedro Beicht, a partir de anteprojeto realizado por Theodoro Sampaio, chefe da Repartição de Água e Esgotos da Capital. A Estação de Tratamento do Sistema Alto Cotia, como ficou denominada, foi construída, em duas etapas a primeira foi a construção da barragem para o represamento da Cachoeira Nossa Senhora da Graça, iniciada em 1914 e inaugurada em 1918.

A cosntrucção da estação de tratamento, cuja inauguração se deu em janeiro de 1918, foi executada durante a grande guerra, não poude a Repartição de Águas, por esse motivo, adquirir nos paizes extrangeiros uma installação dotada do apparelhamento moderno da época. Teve assim que enfrentar o problema, cuja solução urgente lhe era imposta, lançando mão dos escassos recursos locaes. (CUNHA, 1973, p.301).

Em 1920 foram iniciadas as obras para a segunda etapa do Sistema Alto Cotia, em 1925, a cidade de São Paulo passa pelo que ficou conhecido como uma das maiores estiagem já vivida na Capital (WHITAKER, 1946, p.11) assim, em 1927 foram iniciadas as obras da bar-ragem Pedro Beicht, concluídas em 1933, sendo formado um lago artificial, denominado Reservatório Pedro Beicht, com capacidade de armazenamento de 15 milhões de metros cúbi-cos de água. (CUNHA, 1973, p.301).

As décadas de 30 e 40 do século XX, devido ao crescimento urbano e às restrições comerciais e à crise no abastecimento de produtos petrolíferos impostas pela Segunda Guerra Mundial, grande parte das florestas do município de Cotia, foram derrubadas para o estabele-cimento do cultivo, principalmente de batatas e de retirada de madeira (SEABRA, M. 1971). A área onde hoje se encontra a RFMG era ocupada por pequenos sitiantes que praticavam cul-turas agrícolas em meio às matas e capoeiras. Neste período ocorreu também a construção da Estrada de Ferro Sorocabana – Ligação Ferroviária Mairinque-Santos (1927-1937), que corta a parte sul da RFMG, facilitando o escoamento do carvão. (METZGER; ALVES; GOULART; TEI-XEIRA; SIMÕES, CATHARINO, 2006).

A interrupção das atividades agropastoris, ocorreu por meio da Lei Estadual nº 1.949 de 04 de abril de 1979 possibilitou a criação da Reserva Florestal do Morro Grande, com a destinação específica de preservação da flora e da fauna e proteção aos mananciais.

Atualmente a competência administrativa sobre as Reservas Florestais estaduais cabe, a princípio, ao Instituto Florestal (IF). No caso do Morro Grande, por ser a SABESP a principal responsável pelo gerenciamento dos reservatórios Pedro Beicht e Cachoeira da Graça, e pela distribuição da água deste manancial, a administração direta, guarda e vigilância da Reserva como um todo está também a seu encargo. (BREGA FILHO, D. & BOMBONATO JR., C. 1992).

1 A cidade cresceu vertiginosamente, a população passou da casa dos 31 mil habitantes em 1872 para 239.820 mil habitantes no ano de 1900. Disponível em: http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabe-las/pop_brasil.php. 2 Zanirato comenta que o processo de urbanização da cidade, gerou a ocupação das áreas de várzeas do rio Tietê,

conjuntamente com o início do processo de impermeabilização do solo, quando a cidade recebeu os primeiros

paralelepípedos. (ZANIRATO, 2011).

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Ainda, no ano de 1981, foi assinada a Resolução nº 2 de tombamento da RFMG pela Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, que a considerou “ecossistema digno de ser preservado quanto à sua cobertura florística, à fauna e aos seus mananciais, além de suas condições paisagísticas, topográficas e valores climáticos, constituindo conjunto de inegável interesse cultural e turístico do Estado de São Paulo”. A partir desta data, a RFMG não poderia ser mais alterada sem prévia autorização do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado)3.

O processo do tombamento da RFMG (1978 – 1981) é resultado do desfecho da luta do movimento ambientalista contrário ao projeto de construção do Aeroporto Metropolitano de São Paulo proposto durante o governo de Paulo Egydio Martins no período de 1975 a 1978. Movimento que contou com o apoio de diversos setores da sociedade, como intelectuais, jor-nalistas, arquitetos, Igreja Católica e dos agricultores dos arredores da RFMG. Ao mesmo tempo em que se configura em uma postura de vanguarda do CONDEPHAAT, na época co-ordenado pelo geógrafo e professor Aziz Ab´Saber representante do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.

Porém, ao analisarmos tanto os documentos referente ao processo de tombamento da RFMG, quanto nas entrevistas que realizamos com moradores e antigos trabalhadores da DAE, durante a realização do inventário participativo, percebemos a exclusão do conjunto de edificações da antiga vila dos trabalhadores da DAE 4 (Departamento de Água e Esgoto) – atual propriedade da SABESP, localizada na entrada da RFMG. Constituída por 52 casas, construídas entre as décadas de 1910 e 1930, com o objetivo de alojar os trabalhadores res-ponsáveis pela construção e conservação/manutenção da barragem da “Cachoeira da Graça” (1914-1917) e da barragem “Pedro Beicht” (1927-1933). A mesma exclusão ocorreu com os hábitos e costumes dessa comunidade, desde o seu trabalho na construção e conservação das estruturas do DAE- atual Sabesp, ou do seu dia a dia na vila, como as compras na mercearia do DAE, a construção da capelinha pelos moradores, as romarias e quermesses, as folias de reis, a congada, o futebol, os bailes e sessões de cinema organizados pelo Centro Recreativo do DAE e até mesmo a relação desses moradores com a floresta e com o rio Cotia, não são retratados e nem se quer elencados pelos órgãos responsáveis por sua preservação.

Portanto, com o objetivo de atender ao “desejo de memória” dessa comunidade e em oposição a outros projetos de usos que foram elaborados para região e com a compreensão de que a produção e gestão deste patrimônio devem ser feitas com a participação de sua comu-nidade por meio do seu envolvimento e da valorização de sua memória e dos seus saberes locais, propomos a elaboração de um inventário participativo, instrumento da educação pa-trimonial no qual as comunidades assumem, em primeira pessoa, a identificação, a seleção e o registro das referências culturais mais significativas para suas memórias e histórias sociais.

3 Em 1994, a RFMG foi também inserida como área núcleo na Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo, recebendo assim o reconhecimento internacional da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) pelos significativos serviços ambientais que ela propicia à cidade de São Paulo (Victor et al. 1998). 4 Parte dessas casas ainda hoje, permanece habitadas por esses antigos trabalhadores e seus familiares). Divididas entre casas dos engenheiros, administradores e as casas dos “conserveiros”, (como era chamado os trabalhadores responsáveis pelas obras de manutenção dos aquedutos, da barragem e da vila), além da edificação do Grêmio Recreativo, o campo de futebol e o clube com piscina para os funcionários (atualmente desativada). No ano de 2016, oito dessas casas foram destruídas por um incêndio, sobrando somente as estruturas.

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No campo da Museologia, o recurso permite estabelecer diálogos entre as pessoas, a fim de identificar os aspectos a serem patrimonializados pela comunidade, assim como propor conjuntamente produtos difusores das ações de memória. Dentro do âmbito do inventário participativo realizaremos encontros com a comunidade que chamaremos aqui de Rodas de Memória, o que possibilitará abordar questões que perpassam os temas: memória, cultura, patrimônio, políticas culturais, museu e cidadania.

Adotamos o conceito de paisagem cultural, por ao mesmo tempo ser capaz de superar a dicotomia entre homem e natureza, por “contornar os limites das dualidades entre patri-mônio cultural e natural e entre patrimônio material e imaterial praticadas pelas instituições de patrimônio nacional e internacional” (PEREIRA, 2018) e por “costurar conceitos de me-mória e história aos conceitos da geografia, antropologia e urbanismo e pressupor a ação integrada do planejamento urbano e gestão territorial com as políticas culturais, ambientais, econômicas e sociais.” (FIGUEIREDO, 2011. p. 61-84).

O Conceito de Paisagem É somente a partir do século XV, com os artistas do Renascimento que surge a preocupação de preservar a paisagem, ao se utilizarem de novos conhecimentos, como distância, ponto de fuga, sequência de planos, progressão, proporção e enquadramento, com a finalidade de cap-turar a beleza da natureza.

Por sua vez, a preservação da paisagem desde suas origens é ligada a natureza e du-rante um longo período interligada aos padrões de estética, de beleza e da excepcionalidade e como aponta Scifoni de monumentalidade (SCIFONI, 2006).

Mas tanto Choay, Fonseca e Poulot são categóricos ao afirmarem que é a partir da restauração monárquica francesa (1815–1830), que ocorre a consagração do Monumento His-tórico com a institucionalização definitiva de sua preservação pelo estado na França, que se dá por meio da a criação do cargo de Inspetor Geral dos Monumentos Históricos, pelo então Ministro Interior (e posteriormente Ministro da Educação) François Guizot ( 1787-1874) 5.

É ainda no final do século XIX e início do século XX, segundo SCIFONI que o mo-numento ganha mais um novo adjetivo o natural, a difusão da revolução industrial, a expansão da urbanização, as transformações da cidade moderna, se evidência o início de uma tomada de consciência em favor da proteção da natureza, muito relacionada ainda ao padrão estético e cênico.(CALVIMONTES; RANCAN; DA COSTA FERREIRA, p. 77).

O que verificamos pela adesão entusiasmada de intelectuais, artistas e escritores, como Victor Hugo escritor pertencente a corrente do romantismo primeiro comitê de defesa da floresta de Fontainebleau (FERREIRA, 2006, p. 79-88) em que declara que “uma árvore é um edifício, um floresta é uma cidade e entre todas, a floresta de Fontainebleau é um monumento” (FROMAGEAU, 2004).

SCIFONI (2006) argumenta que as transformações das cidades modernas, no final do século XIX, foi um fator determinante para criação de instrumentos legais e administrativos de proteção à natureza, em diversos países como a Suíça, EUA, Japão, França e Brasil.

Outros países da Ásia como China, Índia e Japão o apreço a natureza também já existia a muito tempo, como no Japão que é o país pioneiro na inclusão do termo monumento natural.

Conjuntamente, com a criação de instrumentos legais e administrativos de proteção à natureza, no final do século XIX, a natureza ganha novas formulações acadêmicas em busca

5 Com objetivo de construir a memória nacional, volta-se para arquitetura medieval, principalmente os góticos franceses que passam a ser considerados uma verdadeira manifestação do gênio francês em oposição a arquite-tura acadêmica.

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de sua regularidade e melhor aproveitamento. Ao mesmo tempo, o conceito de paisagem é formulado na perspectiva da ciência, pelo naturalista alemão Alexander Von Humboldt, (1769-1859) com uma visão totalizante, comparativa, integrava fatos naturais e fatos sociais (RI-BEIRO, 2007, p. 17) Para Humboldt, a paisagem se configurava em uma apropriação sensorial, pois é o sujeito que atribui sentido ao que vê e designa como paisagem. (RIBEIRO, 2007, p. 20).

Apesar da influência de Humboldt, a definição de paisagem como conceito formal da geografia moderna se estabelece no final do século XIX e início do século XX.

Foi Carl Sauer geógrafo norte americano na década de 20, que fortemente influenciado pela geografia tradicional alemã, utilizou como base para sua teoria os conceitos elaborados por Schluter e Passarge de Paisagem Natural e Paisagem Cultural. Estabelece que para o es-tudo da paisagem, só se deveria tomar aspectos visíveis, os elementos físicos, excluindo assim todos os fatos não materiais da atividade humana. (RIBEIRO, 2007, p. 20).

Para Carl O. Sauer, a paisagem natural é aquela paisagem ainda sem transformação do Homem, enquanto a paisagem cultural é a paisagem transformada pelo Homem, não se cons-tituem em dois elementos distintos, a paisagem é um elemento integrador, se constituí simplesmente como uma unidade com dois lados. Scifoni aponta que isso é a principal carac-terística do pensamento de Sauer o fato dele eliminar o pensamento dicotômico sobre a paisagem ainda no ano de 1925, por meio da sua obra Morfology of Landscape. A teoria de Sauer conquistou diversos adeptos especialmente na Escola de Berkeley até os dias atuais.

Contudo a partir da década de 60, Carl Sauer e a Escola de Berkeley passaram a ser criticados, por intelectuais adeptos a nova corrente de pensamento que se intitulava Geo-grafia Humanista, ao identificarem que o fundamental na paisagem é seu caráter simbólico e subjetivo, criticavam a definição do conceito de cultura adotada por Sauer, proposto por seu amigo e professor de antropologia em Berkeley Alfred Kroeber (1876 – 1960), no qual a cultura possui um valor auto explicativo, não necessitando ser explicada, desconsiderando as dimensões sociais e psicológicas da cultura.

Como RIBEIRO aponta para os geógrafos da Geografia Humanista a paisagem repre-sentava, “mais do que simplesmente o visível, os remanescentes físicos da atividade humana sobre o solo. A paisagem é introjetada no sistema de valores humanos, definindo relaciona-mentos complexos entre as atitudes e a percepção sobre o meio”. Neste momento se destacam dois autores David Lowenthal e Yun Fu Tuan.

David Lowenthal é considerado o precursor da Geografia Humanista, defende a ideia de uma geografia que abrangesse todas as maneiras de observação: consciente e inconsciente, nublada e distinta, objetiva e subjetiva, inadvertida e deliberada, literal e esquemática”.

Yun Fu Tuan compreende a paisagem de forma holística, considerando tanto elemen-tos materiais como simbólicos, dá mais valor ao conceito de lugar que ao de paisagem. Para ele, o conceito de lugar demonstraria mais fortemente a ideia de pertencimento, de individu-alidade do ser humano e de seu apego a determinados espaços. Tuan chegou a desenvolver em seus livros a noção de Topofilia, como o amor ao lugar. (TUAN, 1980).

Na década de 80, surge a Nova Geografia Cultural, destacam-se os geógrafos James Ducan e Denis Cosgrove, críticos da Geografia Cultural e de sua concepção de cultura e influenciados pela Geografia Humanista, o que se apresenta ao incorporarem como foco de análise a simbologia da paisagem passando a valorizar o caráter subjetivo do conhecimento.

James Duncan em sua obra The City as a Text (1990), defende a ideia de que a paisagem deve ser lida como um texto, sendo como tal passível de múltiplas interpretações.

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Considerado um dos principais representantes da Nova Geografia Cultural, Denis Cos-grove, com objetivo de substituir as ideias positivistas anteriores, trabalha a simbologia da paisagem por meio de uma abordagem ancorada no materialismo histórico, “demonstra como o estudo da cultura está intimamente ligado ao estudo do poder, revelando as relações de dominação e opressão” (NAME, 2010. p. 178).

Mas Cosgrove não ficaria dominado pelo determinismo econômico, aponta novos ca-minhos para a Geografia Cultural ancorada na interpretação das paisagens. Valoriza a abordagem da paisagem como um texto e como teatro e abordagem dos historiadores da arte sobre a iconografia da paisagem como o melhor método de interpretação de imagens.

Augustin Berque oferece uma importante contribuição para o entendimento do funci-onamento da simbologia da paisagem. A paisagem, para Berque é ao mesmo tempo matriz e marco: Paisagem Matriz na medida em que as estruturas e formas da paisagem contribuem para a perpetuação de usos e significações entre as gerações; Paisagem Marco, na medida em que cada grupo grava em seu espaço os sinais e os símbolos de sua atividade. (BERQUE, 1984, p. 33-34). Ainda para Berque, a importância do estudo da paisagem está no fato de que ela nos permite perceber o sentido do mundo no qual estamos. (RIBEIRO, 2007, p. 30).

A proteção à paisagem cultural em nível internacional Embora a paisagem tenha sido objeto de reflexão dos geógrafos, desde o final do século XIX, a consideração da paisagem como bem cultural, retorna a ser debatida em diversos docu-mentos internacionais, ainda na década de 30, em todos os documentos, o critério para a preservação da paisagem era a excepcionalidade, a preocupação principal era com o monu-mento arquitetônico, ainda que o conceito tivesse se ampliado, valorizando a arquitetura modesta, a paisagem se constituía com moldura, que tinha como função dar sentido ao bem .

No ano de 1972, ocorre a Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, promovida pela UNESCO, que se constitui como um marco, pois como ZANIRATO argumenta é considerada “o primeiro documento internacional a se referir à identificação e conservação das paisagens num sentido mais amplo, como manifestações resultantes da in-teração entre o homem e o ambiente” (ZANIRATO, 2014, p. 293-316).

Como forma de promover a proteção aos bens considerados patrimônio cultural da humanidade, se criou a Lista do Patrimônio Mundial, onde os bens patrimoniais poderiam ser inscritos em duas categorias: Patrimônio Cultural e Patrimônio natural.

Embora a Convenção relativa à para a Proteção do Patrimônio Mundial, de 1972, seja o primeiro documento a definir os conceitos de patrimônio cultural e natural, o seu texto acaba por refletir a dicotomia entre as categorias cultural e natural, o que Rafael Ribeiro analisa como reflexo da origem bipartite da preocupação com o patrimônio mundial, oriunda de dois movimentos separados: um que se preocupava com os sítios culturais e outro que lutava pela conservação da natureza (RIBEIRO, 2007, p. 38).

A preocupação com a devastação da natureza conjuntamente com a afirmação da eco-logia política como disciplina e a discussão em torno de categorias como o desenvolvimento sustentável (RIBEIRO,2007, p. 40-41), provocou uma valorização no contexto internacional das relações harmoniosas entre os homens e o meio ambiente.

Em 1992, no mesmo ano em que se realizava a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio Janeiro, é realizada a 16º sessão Comitê do Patri-mônio Mundial da UNESCO que inclui a categoria de “paisagem cultural”, na Lista de Patrimônio Mundial da Humanidade, pondo um fim na dualidade até então vigente.

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RIBEIRO (2007, p. 42) argumenta que a adoção da categoria de paisagem cultural da UNESCO, em 1992, representou uma ruptura com as concepções anteriores, por adotar a pró-pria paisagem como um bem, valorizando todas as inter-relações que ali coexistem.

Com objetivo de ampliar a proteção de territórios que foram considerados merecedo-res de proteção, em 1995 o Comitê de Ministros do Conselho da Europa, adotou a Recomendação R (95)9, que versa Sobre a conservação integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas, recomenda a adoção dessa abordagem nas polí-ticas de preservação do patrimônio.

Como FIGUEIREDO analisa ao abordar a questão da gestão das paisagens culturais a Recomendação (95) 9 ressalta, que

trabalhar com as paisagens culturais implica na ação integrada do planejamento ter-ritorial com as políticas ambientais e socioeconômicas. Busca conjugar a política de preservação ao processo dinâmico de desenvolvimento da cultura, das sociedades e suas cidades, o que implica, necessariamente, em não impedir as mudanças, mas em direcioná-las a favor dos patrimônios e, portanto, trabalhar na perspectiva da sus-tentabilidade. (FIGUEIREDO, 2016).

A Recomendação R (95)9 considera a paisagem como patrimônio cultural, por meio de um triplo significado cultural: a percepção do indivíduo ou da comunidade sobre o território, o testemunho do relacionamento existente entre os indivíduos e o seu meio ambiente, a espe-cificidade das culturas locais, práticas, crenças e tradições.

Por fim, a Recomendação R (95)9 irá diferenciar paisagem, algo múltiplo, complexo e mais geral, de áreas de paisagem cultural, unidades ou sistemas de paisagens onde se pode identificar e justificar as especificidades e os valores reconhecidos como patrimônio cultural:

As áreas de paisagem cultural são partes específicas, topograficamente delimitadas da paisagem, formadas por várias combinações de agenciamentos naturais e huma-nos, que ilustram a evolução da sociedade humana, seu estabelecimento e seu caráter através do tempo e do espaço e quanto de valores reconhecidos têm adquirido social e culturalmente em diferentes níveis territoriais, graças à presença de remanescentes físicos que refletem o uso e as atividades desenvolvidas na terra no passado, experi-ências ou tradições particulares, ou representações em obras literárias ou artísticas, ou pelo fato de ali haverem ocorrido fatos históricos. Recomendação R (95) 9. (IPHAN, 2004, p. 332).

Como consequência, da Recomendação R(95)9, no ano 2000, os países integrantes da União Europeia assinam um tratado regional especializado sobre a proteção das paisagens, a Convenção Europeia da Paisagem, que passou a vigorar em março de 2004.

A Convenção Europeia da Paisagem , diferencia-se bastante da Convenção Mundial de 1992, primeiro pela escala territorial de atuação, enquanto uma tem objetivo regional (Europa) 6, a outra é mundial, e a outra diferença é que a Convenção Mundial estabelece a proteção sobre todas as paisagens e não apenas aquelas de valor excepcional e introduz regras de proteção, gerenciamento e planejamento para todas as paisagens num conjunto de regras, se constituindo em um elemento fundamental de gestão do território.

6 Como RIBEIRO destaca que a Convenção se estabelece “num contexto de unificação da Europa, de estabele-cimento de políticas públicas comuns, mas também de que o conceito seja entendido de uma maneira mais unívoca.” IN: RIBEIRO, Rafael Winter Paisagem cultural e patrimônio – Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC. 2007. p.55.

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Na perspectiva europeia, a partir de sua qualidade de documento, o território inteiro deve ser considerado como um grande arquivo de história do homem, bem como da natureza. Igualmente, o território é um palimpsesto, isto é, um documento em per-pétua transformação, onde encontramos alguns traços, mas não todos, que as diferentes épocas deixaram e que se misturam aos traços que o presente deixa à sua volta e que o modifica continuamente, de maneira contrária a uma simples estratifi-cação. (RIBEIRO, 2007. p. 58).

A proteção da Paisagem Cultural no Brasil No Brasil, em 1936, por solicitação do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, - Mário de Andrade ainda chefe do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo redige o anteprojeto da lei de proteção ao patrimônio cultural, no qual propõe a criação do SPAN (Serviço do Patrimônio Artístico Nacional).

A concepção de patrimônio de Mário de Andrade revelam um sentido amplo de cultura , “Habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos”, uma vez que a paisagem é fruto do engenho humano, é para Mário de Andrade um bem artístico, passível de valorização e inscrição no Livro Tombo.

A preservação do patrimônio natural será associada a paisagem como bem de valor patrimonial que deve ser preservado, aparece no anteprojeto de Mario de Andrade (1936), sob a perspectiva das disciplinas da Arqueologia e da Etnologia. Conforme Ribeiro relembra:

Mario associava a paisagem à etnografia e, quando dizia etnografia pensava também nas manifestações populares, na arte popular. Era em função disso que entendia a paisagem, também como constructo da arte popular, a partir de uma concepção am-pla de paisagem. Através do tombamento de paisagem, os bens materiais impressos no espaço pelo trabalho coletivo, desassociados daquilo que considera como arte erudita, poderiam ser reconhecidos como patrimônio e preservados. É sintomático o fato de Mario usar, como exemplos para esse caso, mocambos do Recife e vilarejos da Amazônia. (RIBEIRO, 2007, p. 71).

Mas, o anteprojeto de Mario de Andrade não teria lugar no governo autoritário de Getúlio Vargas em que a prioridade era a “construção da história nacional através dos monu-mentos históricos, onde se privilegiava a unidade nacional.” (OLIVEIRA, 2008, p. 19-38).

No que se refere ao patrimônio natural o Decreto-lei 25/1937, a natureza é apresentada por seu caráter monumental, “reflete uma natureza espetacular, grandiosa, quase sempre au-sente de condição humana, intocável e disponível apenas para a fruição visual.” (SCIFONI, 2006, p. 55-78). O decreto-lei 25/1937, de 30 de novembro de 1937, elaborado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, que instaura o SPHAN (Serviço Patrimônio Histórico Artístico Nacional) repre-senta a integração da temática do patrimônio ao projeto de construção da nação pelo Estado.

Durante toda a fase heroica, como ficou conhecido o período de (1937-1975) o IPHAN elaborou um plano discursivo (SANTOS, 1996, p. 73-85) do que deveria ser tombado e preser-vado, valorizando uma cultura genuinamente nacional, “o patrimônio se articulou em torno de fatos e dos heróis mas, especialmente em torno de artefatos e lugares que testemunharam estes fatos, imprimindo unicidade à diversidade cultural e assim conduzindo ao apagamento das diferenças culturais e históricas presentes na sociedade (GONÇALVES; OLIVEIRA, 2002, p. 109-173).

A concepção de pensamento de Rodrigo de Melo Franco de Andrade o Patrimônio se constituía como ferramenta educativa com objetivo de civilizar o povo brasileiro, por isso a valorização do passado, da tradição, como forma do Brasil se tornar civilizado, daí o

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tombamento , como política de salvaguarda dos objetos de arte e arquitetura como (igrejas, fortes, palácios, casas de câmara e cadeia), conjuntos arquitetônicos e urbanísticos, os chama-dos patrimônios de “pedra e cal” que representassem a identidade nacional.

O tombamento foi durante muito tempo o único instrumento de preservação do patri-mônio cultural brasileiro. Instrumento responsável sobretudo pela preservação do patrimônio arquitetônico - o patrimônio de “pedra e cal”, porém se demonstrou pouco eficaz à preserva-ção de manifestações culturais de natureza imaterial e simbólica e ao patrimônio natural.

A criação do CONDEPHAAT se dá no ano de 1968, no auge da repressão da ditadura militar, durante o governo estadual de Abreu Sodré, por meio da Lei nº10.247 de 1968 que regulamentava o artigo 128 da Constituição Estadual de 1967, que no artigo 2º estabelecia as atribuições do novo órgão preservacionista.

Artigo 2º – Competirá ao Conselho a adoção de todas as medidas para a defesa do patrimônio histórico, artístico e turístico do Estado, cuja conservação se imponha em razão de fatos históricos memoráveis, do seu valor folclórico, artístico, documen-tal ou turístico, bem assim dos recantos paisagísticos, que mereçam ser preservados7.

Conforme Marly Rodrigues, sua origem “só foi possível quando frações conservadoras e tradicionalistas da burguesia paulista buscaram reafirmar a identidade bandeirante nos li-mites do quadro autoritário estabelecido em 1964.” (RODRIGUES, 1994).

Em um período de ascensão do conservadorismo, a criação do Condephaat segue a mesma diretriz do IPHAN ao tombar, nos seus primeiros anos, os remanescentes da coloniza-ção, testemunhos da história nacional e regional, como as Casas Bandeiristas.

Ao Condephaat caberia prestar assistência e supervisão técnica às prefeituras e tom-bar ex-officios bens já tombados pelo Patrimônio Nacional. Suas intenções se concentrariam nos bens de interesse estadual “relacionados à história sócio – eco-nômica e a arte da terra paulista”. (RODRIGUES, 1994, p. 56).

Atendendo ao Compromisso de Brasília 8, em 1974, se realiza por meio da parceria entre o IPHAN, os órgãos estaduais de patrimônio e as universidades, o curso de pós- gra-duação sobre o patrimônio cultural e restauração de obras de arte, na FAU/USP, ministrado pelo museólogo e historiador da Arte, Hugues Varine – Bohan, diretor do Conselho Interna-cional de Museus (ICOM) da UNESCO. As aulas ministradas por Varine-Bohan ficaram na memória dos profissionais do patrimônio, são frequentemente citadas pelo seu caráter inova-dor, responsáveis por mudar o pensamento cristalizado pelas práticas do “velho IPHAN”, o principal interlocutor de patrimônio no Estado até aquele momento. (NASCIMENTO, 2016, p. 205- 236). Para Varine-Bohan, o Patrimônio Cultural deveria ser abordado da perspectiva de três vetores básicos:

7 Dispo. em: https://www.al.sp.gov.br/leis/constituicoes/constituicoes-anteriores/constituicao-estadual-1967/. 8 O Compromisso de Brasília é o documento resultante do Primeiro Encontro dos Governadores de Estado, Se-cretários Estaduais da Área Cultural, Prefeitos de Municípios Interessados, Presidentes e Representantes de Instituições Culturais no ano de 1970. Esse corpo de medidas institucionais determinou que Estados e Municípios deveriam ter ação complementar na proteção de bens culturais, além de constatar a necessidade de curso para suprir a carência de mão de obra especializada em restauro. Disponível em http://www.iphan.gov.br-/legis-lac/cartaspatrimoniais/cartaspatrimoniais.htm.

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o do conhecimento, o dos bens culturais e do meio ambiente. Sob esse prisma, definia o "patrimônio do conhecimento" como os "costumes”, as “crenças” e o “saber fazer” capaz de viabilizar a sobrevivência do homem no meio ambiente onde vivia, e delimitava o "patrimônio dos bens culturais" como conjunto de artefatos e tudo o mais que derivava do uso do patrimônio ambiental. Este último contemplava os elementos inerentes à natureza, como o próprio meio e os recursos naturais. (VARINE-BOHAN,1974).

O conceito de patrimônio cultural e a reflexão ocasionada por sua pergunta sobre a finalidade da ação preservacionista, resultou em um forte impacto sob os órgãos responsáveis pela preservação no Brasil.

No IPHAN, o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) criado por Aloísio de Magalhães no ano de 1975, tinha como perspectiva rever as políticas de preservação do patri-mônio, inclusive se aproximando das questões propostas por Mário de Andrade no anteprojeto de criação do IPHAN, em 1936, em que chamava a atenção para o valor histórico e artístico das manifestações populares, inclusive dos fazeres e dos saberes da população bra-sileira, além de visar o desenvolvimento do desenho industrial no país.

O CONDEPHAAT, também no ano de 1975 passa por uma reestruturação interna, sob a coordenação de Azziz Ab’Saber, representante do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, o tombamento passou a ser adotado como medida de proteção do meio ambiente. (RODRIGUES, 2000. p. 77).

Segundo Felipe Crispim,

entre as áreas naturais tombadas pelo Condephaat, destacam-se as serras e morros limítrofes da região metropolitana de São Paulo, onde a alta seletividade espacial exigia a adoção de medidas urgentes de preservação, como são os casos do tomba-mento do Maciço da Jureia (1979), da Reserva Florestal de Morro Grande (1981) e da Serra do Japi (1983), entre outros espaços naturais no entorno da capital e litoral paulista. (CRISPIM, 2011).

CRISPIM (2011) destaca para orientar a atuação do CONDEPHAAT no tocante ao pa-trimônio natural, uma vez que algumas experiências pontuais já estavam se dando desde a sua criação, em 1969. Ab´Saber em 1976 apresentou um texto ao conselho, intitulado "Diretri-zes para uma política de preservação de reservas naturais no estado de São Paulo".

A ideia central das diretrizes era de que no contexto da modernização da agricultura, da urbanização e industrialização em São Paulo, determinadas áreas assumiam um significado especial que, em outras circunstâncias, talvez não tivessem.

Nas “Diretrizes” (SCIFONI; CARVALHO, ESPEJEl, JULIANO, 2018) o professor Ab`Sa-ber estabelece três critérios para seleção. O primeiro deles é a Preservação de áreas críticas e ecologicamente estratégicas, correspondentes a filtros de Biosfera, reservas naturais de pre-servação obrigatória, amostras representativas de diferentes ecossistemas ou geofácies das paisagens paulistas. É nesse critério que o professor Ab´Saber classifica a Reserva Florestal do Morro Grande, por ser área de formação de mananciais, abastecedora da região metropolitana.

O segundo critério, é o que o autor chamou de paisagens de exceção, o que Scifigone chama a atenção que ao utilizar esse termo o autor não está se referindo a fragmentos da natureza que se destacavam do ponto de vista estético e sim para o conhecimento das trans-formações resultantes da formação da natureza na terra SCIFONI; CARVALHO, ESPEJEl, JULIANO, 2018, p. 625), como morros testemunhos, mares de pedra, lapas e cavernas. E por

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fim, o terceiro critério as paisagens de substituição como hortos florestais, jardins e parques para quais se projetava fins turísticos e recreativos.

Assim, o Condephaat assume uma posição de vanguarda ao tomar o processo de tombamento historicamente associado à preservação do patrimônio edificado, para áreas naturais, conforme relembrado por Crispim (2011), “atuava como sendo uma possibilidade de intervenção direta na escala de valores atribuídos ao território em que o valor cultural pos-sibilitaria a construção de pactos sociais em prol da paisagem.” E como afirmava AB’SABER:

A tomada de decisão para o tombamento é antes de tudo um ato de discernimento cultural, que procura atender as reclamações de muitas vozes e de muitas gerações. Como tal é um ato de inteligência e de coragem coletiva. Trata-se de uma estratégia trans ideológica destinada a ter permanência e validade histórica. (AB’SABER, 1986, p. 9).

Por fim, no ano de 2009, a Portaria no. 127, a paisagem passa a ser incorporada como nova categoria de patrimônio cultural pelo IPHAN, que instituiu um novo instrumento jurí-dico para sua proteção, denominado de chancela. A adoção desta nova categoria no Brasil deu-se sob a influência das práticas internacionais que estavam ocorrendo, conforme já foi explicitado.

Ampliação do conceito de Patrimônio, Educação patrimonial e Inventário Participa-tivo No Brasil, a partir dos anos 80, movimentos sociais populares, liderados por novos atores sociais (negros, índios, mulheres, camponeses, etc.) veem na preservação de sua memória um instrumento de afirmação de sua identidade e de luta pelos direitos de cidadania. O que, pau-latinamente, norteou a passagem da noção do patrimônio histórico consagrado por uma historiografia “oficial” centrada em episódios para uma nova perspectiva, mais ampla, que inclui o “cultural” incorporado ao “histórico” e às dimensões testemunhais do cotidiano e aos feitos não tangíveis18 e o patrimônio natural. No ano de 1988, a Constituição Brasileira adota a denominação “patrimônio cultural” no lugar de “histórico, artístico, arquitetônico”, indicando uma abrangência maior de elemen-tos que vão compor o patrimônio cultural. Desta forma, o artigo 216 seção II – DA CULTURA (BRASIL, 2002, p. 98) demonstra esta ampliação dos bens culturais a serem preservados, apon-tando para a constituição do patrimônio cultural brasileiro como sendo os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto.

O referencial conceitual que fundamenta as práticas de proteção ao patrimônio incor-pora em seu texto constitucional uma “nova” noção de patrimônio cultural e reconhece a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Atribui ao Estado, em colabora-ção com a sociedade civil, o nosso papel na preservação compartilhada destes bens e estabelece o registro e o inventário como importantes instrumentos de salvaguarda (IPHAN, 2007, p. 16). Como apresenta o artigo 216 da Constituição Brasileira, em seu parágrafo 1º que re-gistra que o “poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação”.

A Constituição brasileira, ao inserir o papel da comunidade como colaboradora da pre-servação do patrimônio, demonstra a compreensão desta como prática social e cultural de diversos e múltiplos agentes.

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Com a Constituição de 1988 abriu-se o espaço para a afirmação de algumas exclusões e silêncios até então contidos nos procedimentos de construção do patrimônio. Um deles é o de “patrimônio imaterial” ― que se consubstancia no Decreto n. 3.551, de agosto de 2000, com a criação do registro como forma de salvaguarda e do Programa Nacional de Patri-mônio Imaterial (PNPI). Esse representa uma estratégia de democratização do patrimônio, de modo a amenizar a exclusão de muitas manifestações que estruturam a vida espiritual e as relações de sociabilidade de inúmeros grupos de pessoas.

O Decreto n. 3.551 de agosto de 2000, que estabelece Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), tem como objetivo viabilizar projetos de identificação, reconhecimento, sal-vaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural. É a instauração de uma política pública para a salvaguarda do patrimônio imaterial, que estabelece como instrumento jurídico de proteção do patrimônio imaterial o registro, que por sua vez , é bastante diverso do tombamento a aplicada nos estudos do patrimônio material, na qual o sujeito não está incluído e gira em torno do conhecimento acadêmico sobre um determinado objeto. O con-ceito matriz que rege o estudo dos bens intangíveis é o de Referência Cultural9, de caráter marcadamente antropológico que busca a relação entre sujeito, manifestação cultural e espaço e a criação de uma nova metodologia de pesquisa o Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC).

Desenvolvido pelo IPHAN a metodologia do INRC tem como objetivo criar um instru-mento de aprofundamento do conhecimento acerca de bens culturais de natureza imaterial segundo as referências contidas no Decreto nº 3.551/2000.

O Inventário Nacional de Referências Culturais–INRC – é uma metodologia de pes-quisa desenvolvida pelo IPHAN que tem como objetivo produzir conhecimento sobre os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e referências de identidade para determinado grupos social. Contempla, além das categorias estabelecidas no Registro, edificações associ-adas a certos usos, a significações históricas e a imagens urbanas, independentemente de sua qualidade arquitetônica ou artística. A delimitação da área do inventário ocorre em função das referências culturais presentes num deter-minado território. Essas áreas podem ser reconhecidas em diferentes escalas, ou seja, podem corresponder a uma vila, a um bairro, a uma zona ou mancha urbana, a uma região geográfica culturalmente diferenciada ou mesmo a um conjunto de segmen-tos territoriais.10

Apesar de presente desde a fundação do IPHAN em 1937 a educação patrimonial foi defendida e praticada como ferramenta complementar de forma recorrente. Buscava-se, por meio da informação educativa, convencer — sob a alcunha da conscientização — o “povo” da importância de colaborar com as ações preservacionistas realizadas pelo Estado. (SIVIERO, 2019, p. 111-132).

9 Falar em referências culturais nesse caso significa, pois, dirigir o olhar para representações que configuram uma “identidade” da região para seus habitantes, e que remetem à paisagem, às edificações e objetos, aos “faze-res” e “saberes”, às crenças, hábitos, etc. Referências culturais não se constituem, portanto, em objetos considerados em si mesmos, intrinsicamente valiosos, nem apreender referências significa apenas armazenar bens ou informações. Ao identificarem determinados elementos como particularmente significativos, os grupos sociais operam uma ressemantização desses elementos, relacionando-os a uma representação coletiva, a que cada membro do grupo de algum modo se identifica. 10 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/685/.

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A ideia de que o “conscientizar para preservar” sob a justificativa de que o “povo bra-sileiro é um povo ignorante” é um “povo sem cultura”, não reflete a realidade, em que assistimos grupos sociais criarem agendas políticas pela preservação do patrimônio.

Essa ideia despolitiza o debate, pois retira-se a culpa dos gestores do patrimônio, do poder público, junto aos vereadores, deputados, prefeitos e governadores e dos empreende-dores imobiliários, que por diversas vezes são os responsáveis por causarem o desaparecimento de bens culturais ou perda de seus sentidos e significados. (SCIFONI, 2017, p. 5-16).

A Portaria 137/2016 que institui o marco legal para a educação patrimonial estimulou uma reorientação da prática, ao seguir princípios como:

favorecer a participação social nas ações educativas; integrá-las no cotidiano e na vida das pessoas; compreender o território onde se atua como espaço educativo; fo-mentar a relação de afetividade em relação aos bens culturais; e, principalmente, reconhecer que as práticas educativas se inserem em um campo de negociação e conflito entre diferentes grupos sociais.

O compromisso da educação patrimonial deve superar a ideia da transmissão da cul-tura e da informação – a educação bancária, conforme denunciada por FREIRE, para entendê-lo como processo de formação da consciência crítica sobre a realidade que pode possibilitar o reconhecimento das pessoas como sujeitos de sua própria história e cultura, capazes de agir em busca das transformações necessárias.

Consideração Finais A escolha do território da RFMG e o seu entorno como objeto de estudo é motivada por apre-sentar diversos conflitos socioambientais influenciados pela dinâmica do desenvolvimento econômico e urbano da região, como também pelo “desejo de memória” da sua comunidade. Após 10 anos da elaboração do Plano Diretor do Município de Cotia o que se verifica é que a RFMG ainda não foi enquadrada numa das categorias permanentes de Unidade de Conservação, conforme a exigência do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Na-tureza (SNUC) (BRASIL, 2000) e nem sequer foi elaborado o plano de manejo para a RFMG. A adoção do conceito de paisagem cultural tem como proposta conjugar a política de preservação ao processo dinâmico de desenvolvimento da cidade, o que implica necessaria-mente em não impedir a mudança, mas em direcioná-la e, portanto, trabalhar na perspectiva do desenvolvimento e preservação sustentáveis.

Iniciamos a pesquisa com algumas conversas com os moradores sobre o conceito do inventário participativo e principalmente no que tange a diferenciação entre pesquisa histó-rica com o uso de fontes orais, imagéticas, etc., e o inventário propriamente dito.

As narrativas de memória da comunidade do bairro do Morro Grande são fundamen-tais para essa pesquisa, são estas que nos apresentam os significados e representações atribuídos pela comunidade às transformações da paisagem, como: o trabalho com a terra e com os animais, o trabalho na Estação de Tratamento de Água – Alto Cotia da antiga DAE, as formas de sociabilidade dentro do trabalho, do grupo familiar e entre vizinhos, a relação com a Floresta e com o Rio Cotia, as estórias de assombrações, a morte, além dos saberes e fazeres e celebrações (Folias, Congada e Romarias) da comunidade e da sua relação com o

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próprio Museu - o Sítio do Padre Inácio11 , como é conhecido e com a própria Reserva Florestal do Morro Grande.

É a memória da comunidade do bairro do Morro Grande e do seu entorno que nos guia pelos caminhos das culturas populares, pois é a partir dela que podemos dar conta dos sentidos e significados dessa cultura para seus participantes. Aqui, a preocupação é com os processos culturais e com as experiências de seus participantes. Nesta pesquisa, os moradores, “sujeitos-viventes”, ao recontar suas estórias sobre os espaços e os tempos no bairro, nos possibilita escavar o passado recente para iluminar a relação da comunidade com o seu território.

Convém esclarecer que a pesquisa histórica, produzida através de registros orais indi-vidual ou coletiva, é considerada documento que compõe o inventário participativo e não o próprio inventário. Pretende-se de forma colaborativa com os agentes desse patrimônio, rea-lizar a sistematização dos dados coletados para a elaboração de produtos entre eles o mapeamento das principais referências culturais situadas no território da Reserva do Morro Grande, que se tornará o documento de referência do processo de registro e posteriormente, servirá de base para a elaboração do plano de salvaguarda, comunicação e difusão. O inventário participativo além de identificar as referências patrimoniais da Reserva Florestal do Morro Grande e o seu entorno, vinha nos demonstrando as potencialidades e os desafios para a implantação do museu de território da RFMG e do seu entorno. Analisando características das edificações da Antiga Vila dos Trabalhadores da DAE e de outras edifica-ções, os recursos humanos disponíveis, a adequação do tema à realidade e as potencialidades do patrimônio local, o estado de conservação dos acervos identificados, entre outros itens.

Anterior à crise sanitária ocasionada pela Covid-19, ainda no âmbito do inventário participativo foram realizados alguns encontros chamados inicialmente de rodas de conversa, mas também conhecidas como rodas de memória, realizadas com os antigos moradores, al-guns trabalhadores do DAE e mestres de cultura.

Sobre a influência do pensamento de Paulo Freire (1996) de que “Há uma pedagogici-dade indiscutível na materialidade do espaço”, iniciamos as oficinas sobre o Inventário Participativo, na Escola Estadual Professor José Barreto localizada no bairro do Morro Grande, com alunos do primeiro ano do Ensino Médio, com a intenção de promover um processo de educação colaborativa e de debater e refletir sobre os seguintes temas: museu, memória, cultura e patrimônio e paisagem cultural e sobre o próprio inventário.”

Infelizmente, as Rodas de Memória e as oficinas sobre o Inventário Participativo foram suspensas temporariamente para atender as normas do isolamento social estabelecidas devido a pandemia.

Por fim, a crise sanitária gerada pela Covid- 19 trouxe a questão da assistência social como uma necessidade, para as comunidades onde os grupos culturais atuam, perante as difi-culdades de obtenção do auxilio governamental de R$ 600,00 reais, a realização de encontros virtuais (Lives), teve como o objetivo não somente a preservação das manifestações, dos sa-beres e fazeres e formas de celebração dessas manifestações culturais, mas também a divulgação e obtenção de doações alimentares para ações de solidariedade na comunidade.

A Covid19, portanto, trouxe a urgência desses mestres e mestras das mais diversas manifestações culturais se apropriarem das diversas tecnologias de informação.

Para além, das redes sociais como o Facebook e Instagram, se fez necessário aprender a utilizar de novas plataformas de comunicação, como Zoom, Google Meets, Jstisi e outras...

11 Sítio do Padre Inácio, exemplar típico da arquitetura colonial rural paulista, localizada no entorno da RFMG, tombada no ano de 1951 pelo IPHAN.

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Com o objetivo de debater e pressionar pela aprovação da Lei Aldir Blanc12. Ao mesmo tempo, em que reivindicam para o poder público municipal a efetivação do Conselho Municipal de Cultura e do Fundo Municipal de Cultura.

Por fim, a intenção desse artigo é de colaborar com o debate do patrimônio na pers-pectiva da paisagem cultural e de como a construção do o inventário da comunidade da Reserva Florestal do Morro Grande e do seu entorno promove a participação ativa e organi-zada da sociedade civil pela preservação.

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12 A lei garante um auxílio emergencial a trabalhadores da cultura e espaços culturais, neste momento de crise causado pela pandemia da Covid-19. Uma renda emergencial no valor R$ 600, por pessoa, durante três meses, além de um subsídio mensal para espaços culturais que varia de R$ 3 mil a R$ 10 mil.

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A MEMÓRIA E SEU LUGAR Uma possibilidade da História Cultural

Marina Rockenback de Almeida1 [email protected]

Resumo

A construção e legitimação da memória como elemento fundamental para a compreensão do lugar histórico, sendo este influenciado e influenciador das atividades humanas. Abordaremos a contribuição da história cultural no que tange a possibilidade de novos questionamentos e debates, tornando possível e interessante o diálogo interdisciplinar entre história e as demais áreas do saber. Palavras-chave: Memória. Lugar. História Cultural. Historiografia.

Abstract

The construction and legitimization of memory as a fundamental element for understanding the historical place, which is influenced and influences human activities. We will approach the contribution of cultural history re-garding the possibility of new questions and debates, making the interdisciplinary dialogue between history and other areas of knowledge. Keywords: Memory. Place. Cultural History. Historiography

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Qual é a necessidade humana de lembrar-se? Fatos marcantes para quem? Para o co-

letivo? Para o individual? Ou para um seleto grupo? São essas questões que norteiam o pensamento ao tratarmos de memória relacionada diretamente com a história. Construídas e identificadas, as memórias são capazes de compor elementos imprescindíveis para a constru-ção do saber histórico (DETIENNE, 2004, p. 42-43). Uma lembrança por si só não é capaz de constituir-se em um pensamento histórico2, porém, a partir do momento que se atribui a ela questionamentos e sua devida organização, a memória3 passa a ter seu caráter individual e coletivo, e compõe-se também como elemento do passado.

O lugar, o espaço, ou até mesmo a paisagem4, que a memória venha a se inserir, nos gera uma sequência de questionamentos, que abrangem diversas áreas do saber, e podem ren-der ricas discussões não somente entre historiadores, como também com antropólogos, sociólogos, geógrafos, paisagistas, arquitetos, dentre outros pesquisadores. De um modo geral, devido essa multiplicidade, ao nos depararmos com qualquer que seja o objeto de pesquisa, e a problemática a ser aplicada, é de suma importância que tenhamos conhecimento da

1 Mestra em História Comparada pelo PPGHC- UFRJ. Professora Pesquisadora do grupo de pesquisa NEH-MAAT/UFF e pesquisadora contribuinte do grupo de pesquisa NEA/UERJ. Pós-graduada em História Antiga e Medieval - CEHAM/UERJ. Pós-Graduada em Estudos Clássicos-ARCHAI/UNB. Graduada em Licenciatura Plena em História-UNISUAM. Graduada em Gastronomia- UNIFRAN. Desenvolve pesquisas em Antiguidade, História Comparada e História da Alimentação. 2 (MARTINS, 2011). 3 Conceito desenvolvido no decorrer do artigo. 4 Conceitos de lugar, espaço e paisagem são abordados no decorrer do artigo.

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existência das vastas possibilidades e visões sobre o mesmo, a fim de não limitar o saber e, possibilitar amplas abordagens, concebidas a partir de significados e significantes consisten-tes.

Nesse ínterim, abordaremos o desenvolvimento da História Cultural no campo histo-riográfico atrelado a discussão sobre memória e lugar. Assim abordaremos um debate sobre geografia humana e geografia física, tal qual a diferença entre espaço e lugar. Isso, pois as nuances e possibilidades no campo da pesquisa histórica amplificaram-se no decorrer do tempo, tornando-se cada vez mais flexível ao tratar de possibilidades temáticas variadas, e até então, não imaginadas, mas sem deixar de abordar as temáticas tradicionais, consideradas enrijecidas, tais como política e economia.

O processo conceitual da História Cultural atrela-se ao próprio entendimento das mu-danças que decorriam no campo histórico em si. Conforme sintetiza Chartier “a história era então institucionalmente dominante e [...] se encontrava intelectualmente ameaçada” (CHAR-TIER, 1988, p.13). O surgimento de novos debates intelectuais acaba por induzir a ampliação de olhares no campo historiográfico, estes voltados a dialogarem com as outras áreas de co-nhecimento. Esse processo é claramente observável na década de 70, quando essa fragmentação das discussões busca subsídio em obras de Michael Foucault e Pierre Nora, que trazem consigo “interrogações novas, fecundadas pelas ciências vizinhas, à ampliação para o mundo inteiro de uma consciência histórica [...] a história mudou seus métodos, seus roteiros e os seus objetos.” (NORA, 1971, apud DELACROIX, 2012, p. 269). Quando o fator globalizante da história já não era mais suficiente para tecer as explicações, surge então a partir dos com-ponentes dos Annales uma “Nova História”, que traria a noção de “roupa larga” a qual permitiria ao “historiador colher informações de diversos campos” (DELACROIX, 2012, p. 273).

Obviamente a aceitação das novas abordagens encontrou dificuldades, pois os múlti-plos possíveis objetos fazem com que cada elemento estudado desenvolva sua própria abordagem histórica, o que para tendências tradicionalistas trazia um caráter um tanto quanto desconfortável. Sendo assim os debates sobre a construção do saber histórico, são constantes e necessários, e com o decorrer do tempo, possibilitaram a flexibilidade temática e de aborda-gem, tornando a interdisciplinaridade uma grande aliada dos pesquisadores.

O interesse dos historiadores pelo aspecto cultural em detrimento do econômico e po-lítico aproximou-os de outras áreas do saber, uma delas a arqueologia (BURKE, 2012, p. 31). Isso em decorrência de uma maior dedicação a credibilidade ao uso da documentação prove-niente da cultura material, visto que os artefatos constituem uma representação simbólica e mnemônica (JONES, 2007, p. 5) Lidar com o cultural, implica também em compreender a cons-trução da identidade 5 do ser e o imaginário social 6 que esses indivíduos estão inseridos.

Para M. S. dos Santos,

As relações traçadas entre memória e sociedade, intensificaram-se ao longo do tempo. Com a crise das grandes narrativas da história, abordagens historiográficas substituíram antigas provas documentais por testemunhos orais, tomando a memó-ria tanto objeto de análise quanto método. (2012, p. 16).

As relações traçadas entre memória e sociedade, intensificaram-se ao longo do tempo. Com a crise das grandes narrativas da história, abordagens historiográficas substituíram

5 AUGÉ, 1997, p. 94. 6 BACZKO, 1985.

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antigas provas documentais por testemunhos orais, tomando a memória tanto objeto de aná-lise quanto método. (2012, p. 16).

Nesse ínterim, destacamos a memória como elemento chave para compor a dinâmica de construção da História. Memória essa, não só presente em artefatos arqueológicos, con-forme citamos anteriormente. Mas também aparente em discursos, em elementos simbólicos, e inclusive, no silêncio. O fato de silenciar e esquecer também produz e diz muito sobre o que ficará materializado na memória, isso, pois a “memória do dizer”, como cita Eni Orlandi (2006, p. 64), apresenta um sujeito que é diretamente afetado pelo interdiscurso e que para compor uma memória, precisa sentir-se afetado pela composição dela. Ou seja, o que permanece afeta e é afetado, produz em alguém para assim, permanecer e ser compreendida.

M. P. Santos (2007) se debruça a compreender as diferentes formas de apresentação da memória. Como uma ferramenta de reconstrução do passado, mas não enrijecida. A autora defende o entendimento da memória, também como um elemento político, para compreensão de indivíduos e também de seus grupos.

Nesse sentido, o passado emerge quando o hoje o permite. E isso se dando de diver-sas formas, segundo diferentes necessidades de quem recorre a esse passado. O ato de memória reveste-se assim de uma intencionalidade que transcende a perspectiva de “conhecer o passado”, reconstruí-lo, propondo-se, nesse caso, a revivê-lo, na sua passionalidade, na capacidade de deixar vir à tona as memórias, com toda a carga afetiva que elas possuem e que irá, também, delimitar ações e reações necessárias ao exercício político, seja ele individual ou coletivo, marcando identidades e lutas. (SANTOS, 2007, p. 85).

Essa capacidade de permitir emergir memórias, que potencializam as ações humanas, como uma das muitas funções do pesquisador em história, corrobora com o entendimento de que um mesmo objeto de pesquisa é capaz de ser subsídio para infinitas pesquisas, pois de-pende do olhar que lhe é direcionado. O pesquisador Fernando Catroga (2015) pondera sobre a construção da memória e ressalta que a produzida de forma individual está diretamente ligada a vivências em grupos, em constante construção de acordo com a fluidez do tempo e espaço.

Essa dinâmica dos recortes dialoga com a complexidade com a qual o tema se envolve, para Santos (2012), a memória vai além do campo dos pensamentos, mas torna-se construção constante do que somos, além de ser “objetivada em representações rituais, textos e comemo-rações” (SANTOS, 2012, p. 30). Essas representações rituais e comemorações acabam por se legitimar na memória através do processo de interiorização, não só de quem participa e vivencia, mas também quem mesmo sem interagir, acabam por coabitar com a existência de tais traços culturais. Desse modo é relevante ressaltar que compreendemos o aspecto ritual como um elemento de medi-ação na construção do indivíduo, tanto quanto o modo de se relacionar com o lugar de culto e com os demais integrantes de seu meio de convivência. De acordo com Catherine Bell (1997, p. 140), a “prática ritual” é composta por seis etapas: “formalismo, tradicionalismo, invariância disciplinada, regra de governo, simbolismo sacral e performance”, essas etapas estão alta-mente relacionadas, o que corrobora sobre a essência complexa do que representa o termo ritual. A ritualização não pode ser verificada de forma superficial como simplesmente uma atitude puramente oficializada, mas sim como uma sucessão de elementos que constroem a prática, e que podemos identificar através de etapas e da subjetividade simbólica do seu con-teúdo. O formalismo é tratado pela autora como caráter essencial para a ratificação de um rito, pois as atividades podem ser formalizadas em diversos graus e etapas contrastando com

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atividades informais. E quando uma atividade tende a tornar-se formal, os graus “de formali-dade forçam as pessoas a afirmar ou confirmar sentimentos generalizados e bastante impessoais sobre preocupações relativamente abstratas” (BELL, 1997, p. 139). Em diálogo com Bell, Pêcheux (1999) ressalta que a memória constrói-se estrutural-mente da materialidade discursiva, que se estende em uma “dialética de repetição e da regularização”, o que o autor chama de “memória discursiva”, ou seja, a memória que resta-belece o que está implícito, nessa situação ao ler sobre um determinado acontecimento, através neste caso, de uma análise metodológica do discurso. Sendo assim, “compreendida em sentidos entrecruzados de memória mítica, memória social inscrita em práticas e da memória construída pelo historiador” (PÊCHEUX, 1999, p. 50).

Infere-se que também há a formalização de um discurso em cada ritual, pois a imposi-ção de sonoridades e entonações em uma fala assegura o controle do interlocutor quanto ao seu ouvinte, pois se as pessoas não se preocupam em desafiar o estilo da mensagem, “eles estão efetivamente aceitando o conteúdo” do discurso. Isso dialoga diretamente ao tratarmos anteriormente sobre sentir-se afetado pela memória do dizer 7.

O discurso produzido ao tornar-se memória encontra a urgência de que o “aconteci-mento lembrado reencontre sua vivacidade; e, sobretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da comunidade social” (DEVA-LON,1999, p. 25). O autor ressalta ainda a capacidade de conservação do passado e sua fragilidade no tempo, atribuindo ao enunciado linguístico da cultura material imagética como uma forma de replicar uma memória e uma possível realidade. (DEVALON, 1999, p. 28).

Dentro do viés interdisciplinar proposto, a psicologia e a linguística nos possibilitam compreender como a memória se forma mentalmente, uma forma de corroborar com o caráter simbólico das lembranças. Durand (1999, p. 37) traz à tona a discussão da construção efetiva-mente mental da memória, com testes em seres humanos ou não, recorrem de uma mesma estrutura, e geram o que o autor chama de memórias “rígida e espacial”. A rígida seria exem-plificada por procedimentos específicos, pouco flexíveis, resultando em uma “memória procedimental”. E a memória espacial, seria mais maleável, referente a conhecimentos adap-táveis a situações, resultando em uma “memória declarativa”.

É relevante ressaltarmos que ambas as memórias são produzidas e conservadas por partes diferentes do cérebro e a partir daí a memória humana é vista como um “dispositivo que permite construir conhecimentos” (DURAND, 1999, p. 39). Isso posto, inferimos que essa necessidade de absorção, juntamente com os registros compreendidos pela memória de um lugar, de um objeto ou de uma situação, são fatores indissociáveis da construção histórica, visto que cada recorte espaço-temporal é produtor de imaginário social e memórias individu-ais e coletivas.

Ao tratarmos sobre a produção interna da memória, torna-se interessante trazermos as interferências dos aspectos externos. E desse modo, a relevância de um debate sobre o ca-ráter geográfico e simbólico do ambiente e da criação do lugar da memória.

Estabelecer um diálogo da História com a Geografia nos remete a uma prática comum nas produções históricas desde a antiguidade, como por exemplo Heródoto em suas “Histó-rias” 8, que referencia cada local visitado demonstrando as informações que coleta em cada

7 Orlandi, 1999, p. 64. 8 HERÓDOTO; Histórias, tradução de Pierre Henri Larcher.

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viagem, além de seus aspectos geográficos e geológicos. “Descrições da Grécia” 9de Pausânias é outro clássico da antiguidade que nos propõe a visão da necessidade do conhecimento da região, visto que, para que o historiador possa demarcar seu objeto, ou delimitar áreas a serem pesquisadas, faz-se necessário que conheça rotas, fronteiras e aspectos geográficos em geral.

Essa preocupação com a paisagem antecede até mesmo o entendimento do conceito geográfico em si.

O conceito de paisagem, em seu sentido pictórico, antecede e acompanha o surgi-mento e a vida da ciência geográfica, e em um sentido mais amplo, ele se liga à própria cultura burguesa em formação. Por outro lado, ele não só é fruto de uma nova concepção filosófica do mundo ou de uma nova concepção de arte (o roman-tismo), mas deita raízes no próprio desenvolvimento de ciências cujos avanços proporcionaram novas possibilidades à imaginação, mudando também o olhar do homem sobre o seu mundo. (VIDAL; POZZO. 2010, p. 114).

O ambiente nos possibilita enxergar apenas o que se encontra a vista? Esse questiona-mento tornou-se constante, em conjunto com a efervescência do cenário historiográfico da época, passou-se a coabitar diferentes perspectivas do aspecto geográfico. O que pode ser per-cebido através do debate sobre o termo paisagem, entre as escolas, alemã e francesa:

Na literatura francesa a “paysage” não ganhará ares científicos, sendo o conceito mesmo criticado por geógrafos da estatura de André Cholley – que nele viam a ma-nifestação de uma Geografia meramente descritiva, pouco dinâmica – e preterido em detrimento de outros termos como “região”, e principalmente “meio” (milieu). Por outro lado, a Geografia alemã, principalmente a partir do trabalho de C. Troll, insistirá no uso do termo Landschaft, delimitando-o conceitualmente até chegar na idéia de “entidade visual e espacial total do espaço vivido pelo homem” (TROLL, 1971, apud VEADO, 2006), ou seja, um complexo natural totalmente relacionado à ação humana (paisagem cultural). (VIDAL; POZZO. 2010, p. 116).

Sendo assim, seguindo esses debates estabelecidos a partir, principalmente, da década de 60, o conceito de paisagem engloba a relação dos elementos físicos, biológicos e de inter-venção humana, todos entre si, e de forma fluida e dinâmica. Ainda compondo esse intenso debate sobre a ressignificação de questões da formação da ciência geográfica, ressaltamos a geografia física e a geografia humana, sendo uma que apresenta aspectos visuais do ambiente, e a outra, aspectos de interferência humana e, automaticamente, social nesse lugar, respecti-vamente.

No que tange essa discussão, Silva (2013) destaca a necessidade da observação global do espaço geográfico, compondo análises dos aspectos físicos, intervenções humanas no am-biente, incluindo contexto econômico e social e ao invés de incentivar uma dicotomia entre questões geográficas, físicas e humanas, o relevante encontra-se em compreender a necessi-dade de observação do lugar como um todo, unindo todas os elementos possíveis, para produção de pesquisas cada vez mais amplas e com margem de análise mais eficazes.

Essa dicotomia criada entre as duas formas de observar o mesmo local, continua sendo no século XXI um ponto a ser compreendido, pautando-se em um estudo necessário por parte dos pesquisadores, para que se atentem na utilização e manutenção dessas informações de forma a abordarem seu objeto de pesquisa com maior segurança e amplitude. Isso pois inde-pendente da temporalidade e do recorte o estudioso enxerga na paisagem aparentemente

9 Pausanias. Description of Greece. Translated by Jones, W.H.S. and Omerod H.A. Loeb Classical Library. Volu-mes. Cambridge, MA, Harvard University Press; London. 1918.

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estática o dinamismo, seja das forças naturais que atuaram no modelado do relevo, hidrografia etc; seja das forças humanas manifestas em distintos modos de produção e formações sociais que evoluem ao longo das gerações (SILVA, 2013, p. 118).

Ao compreendermos a fluidez entre o que é o ambiente visual e as interações e inter-ferências humanas no mesmo, podemos prosseguir com a significação deste lugar e a memória que lhe é compreendida. Destarte, temos em Pollak (1992, p. 200-2012), a memória construída a partir do individual e do social, tendo em vista a identidade como uma imagem da relação entre esses dois aspectos.

O individual e o social formam um elo que permanece contido nos elementos de for-mação do indivíduo, seja através dos seus antepassados e os signos complementares que ainda são de sua interação. Cada pessoa atribui significantes diversos, o que torna possível verificar a fluidez que compõe os grupos que estão inseridos, o imaginário social construído e a auto-maticamente a permanência no tempo, através dos artefatos, dos documentos e da memória atribuída. Isso permite que os “lugares de memória” sejam interpretados e identificados, tor-nando o lugar, um lugar histórico (AUGÉ, 1997, p. 53).

Tendo em vista essa conexão entre o ser e o social, Bosi (1979), em concordância com Pollack, traduz a construção da memória atrelada diretamente ao local de atuação do indiví-duo, pois é composta da mesma relação entre o “um” e o “todo”. A autora nos acrescenta que “...cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda conforme o lugar que algo ocupa e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios” (BOSI, 1979. p. 42).

Nesse interim torna-se possível compreender a diferença da ideia de espaço e de lugar, pois não bastaria modificar o ambiente e ser modificado por ele. Entendemos assim que um espaço só se transforma em lugar, no momento em que lhe são apropriados valores, memórias, tornando-o particular. (ANDRADE, 2008, p. 570).

Usando inicialmente o artifício de relações com o desenvolvimento histórico, podemos perceber que, para que possamos construir nosso conhecimento, devemos atrelar o estudo da região, juntamente ao estudo do significado, mesmo que subjetivo, de cada local. Sendo assim, o uso da Geografia nos fornece subsídio para que no decorrer da pesquisa histórica o pesqui-sador possa delimitar da forma ideal o lugar e o recorte a ser analisado, com todas as suas particularidades.

O que corrobora com as mudanças propostas na construção historiográfica de Nora e outros estudiosos, visto que se torna relevante compreender o ambiente a qual o personagem histórico está inserido, tanto quanto suas relações com outras pessoas, além de sua função social, seus feitos e sua narrativa. A memória extraída de um recorte espaço-temporal possi-bilita reconstruir a subjetividade presente na história, seja através da documentação escrita, pela cultura material, ou pelo que não foi dito. Por intermédio da contribuição das diversas áreas do saber, todos os elementos irão se tornar fragmentos a compor um quebra cabeça pelo historiador.

Bhabha (1998) ressalta essa questão, e corrobora na importância da construção da me-mória, sendo ela social, individual e cultural, como elemento chave para compor a história, pois deixam de ser lembranças, e quando questionadas e organizadas representam sua signi-ficância histórica.

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O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o "novo" que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado, refigurando-o como um "entre-lugar" con-tingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O "passado-presente" torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (BHABHA, 1998, p. 27).

Le Goff (1924) acrescenta de modo a nos contribuir a respeito da inter-relação da his-tória e a memória, quando trata de documento e monumento, como heranças do historiador e do passado, respectivamente.

Em complemento a ideia do lugar, Nora (1993) e Augé (2005) dialogam com relação ao lugar da memória, reforçando o que tratamos até o momento, trazendo-o como um ponto de fixação para algo subjetivo, visto que Nora trata o lugar como material, simbólico e funcional e Marc Augé, vem a tratar do não-lugar como espaços de relação entre pontos, além de de-senvolver também outros conceitos relativos ao lugar, como por exemplo o conceito de lugar antropológico, que visa compreender além dos elementos simbólicos, o aspecto geométrico do lugar, compreendendo itinerários, eixos e caminhos (AUGÉ, 2005, p. 50).

Vimos até aqui que a compreensão da paisagem e da geografia sofreram uma impor-tante ressignificação aliadas as mudanças que ocorriam no campo historiográfico. Utilizar da ciência geográfica vai além de compreender aspectos visuais como solo, as marés entre outros. A subjetividade presente em cada lugar, em cada paisagem propõe compreender tanto os as-pectos visuais quanto os de interação.

Com efeito de exemplificarmos de forma breve essa subjetividade presente no ambi-ente geográfico, que acaba por compor a construção da memória, elencamos o porto do Pireu, principal porto de Atenas- Grécia. Por ser o principal porto da polis grega, o Pireu atraia de forma intensa estrangeiros, comerciantes e intelectuais, contribuindo assim na produção e circulação financeira da polis. Sendo um ambiente multicultural, repleto de signos e com uma interação intensa dos indivíduos com o seu espaço, como poderíamos observar apenas seu aspecto visual?

Ao tratarmos de comércio e mercado, sabemos que estes “se desenvolveram natural-mente em todos os lugares onde os transportadores tinham que parar” (POLANYI, 2000, p. 81) Isso contribui diretamente para fundamentar o caráter multicultural aplicado ao Pireu, pois, como entreposto comercial, ele tornava-se ambiente de recepção e mediação de diversas cul-turas. (ROCKENBACK, 2016, p. 31).

Muito embora o porto se apresentasse como elemento chave para o comércio, ele tam-bém representava um local de culto de diversas divindades gregas e estrangeiras, pois continha em seu espaço diversos templos religiosos. Desse modo as construções míticas ad-vindas das relações estabelecidas possibilitam a demarcação e abrangência territorial, através dos agentes sociais ali inseridos e a área de abrangência dessas divindades.

Tendo em a vasta gama de elementos da cultura material advindos do espaço do porto do Pireu, tanto quanto o estudo de sua topografia, identifica-se o porto em questão não só com um espaço de simples circulação, mas como um lugar antropológico 10, pois o porto pos-suía divisões em sua estrutura, cada qual com suas especificidades, e uma intensa relação humana presente. Todos esses elementos atribuídos de valor, ressignificam a construção da memória tanto dos agentes históricos quanto do lugar propriamente dito, e dos artefatos ar-queológicos remanescentes do espaço estudado. Isso é complementado por Massey (2000),

10 AUGÉ, 2005.

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definindo o lugar tomando por princípio seus espaços compostos de relações sociais, físicas ou simbólicas, pois não necessariamente possuem demarcações no território, ou seja, “em vez de pensar lugares como áreas com fronteiras ao redor pode-se imaginá-los como momentos articulados” (MASSEY, 2000, p. 184).

A seguir verificaremos um mapa e duas imagens, que nos indicam essa flexibilidade de trabalhar o lugar da memória através da cultura material, visando assim, não se limitar ao físico, mas a toda a estrutura que compõe o ambiente.

Figura 1 - Mapa do Porto do Pireu Disponível em www2.rgzm.de.

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Figura 2 – Porto do Pireu e a topografia do lugar. Foto: Marina Rockenback de Almeida (2015).

Figura 3 – Região Antiga do porto do Pireu conservada pelo Arqueological Museum of Piraues. Foto: Marina Rockenback de Almeida (2015).

A pura observação das imagens nos apresenta um recorte da região do porto, porém com a significação e questionamentos aplicados torna-se possível identificarmos, mesmo que

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com uma análise breve, elementos que tornam possível a passagem de caracterização do es-paço para lugar de memória e lugar de fala do indivíduo histórico. Sendo assim o mapa faz jus a visualização da estrutura global do lugar e seus caminhos, para que possamos compre-ender de modo geral as delimitações do espaço e a fluidez cultural, através da entrada e saída de embarcações tanto quanto a entrada e saída de pessoas do porto até o centro da polis.

Já as duas imagens subsequentes nos apresentam elementos de extrema importante his-tórica e geográfica, que ao serem analisas proporcionam suporte e legitimação da atividade humana com a constante construção de memórias no decorrer da história. Visto que, ao ob-servar ambas as imagens, torna-se possível notar a interação do homem, seja na antiguidade ou nos teus presentes, com os elementos da cultura material, corroborando com o que trata-mos anteriormente do homem, afetar e ser afetado pelo seu ambiente de circulação, fazendo com que o lugar se torne um lugar de memória. Ressaltamos ainda dois elementos importantes que demonstram muito mais que uma paisagem. O primeiro, ao observarmos a topografia das montanhas no fundo da imagem 1, que permite questionarmos sobre as questões agrárias e automaticamente econômicas da região. E em segundo a presença da estrutura das ruínas de um pequeno teatro no território que se compreende o porto, o que representa interação do homem com o ambiente. Que mesmo com o passar dos anos, permanece como forma de materialização da atividade humana e de sua memória. Além da subjetividade dos assuntos tratados e discutidos nesse lugar, compondo temáticas sociais, políticas, econômicas e religi-osas. Elementos esses, que compõem toda uma estrutura mnemônica da sociedade em questão, representados pelos fragmentos arqueológicos e suas significações.

Desse modo, pode-se concluir que a transformação sofrida pela historiografia no decor-rer dos tempos possibilitou a ampliação da compreensão do fazer história, tornando possível a interdisciplinaridade entre as diversas áreas do saber, assim como legitimação das questões até então vulneráveis pela passagem do tempo, fortalecidas pelo uso apropriado de elementos da cultura material e da sensibilidade do pesquisador, em compreender a subjetividade e sin-gularidade de cada elemento que compõe seu objeto de pesquisa.

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DESBRAVANDO O PLANALTO De uma pista para aviões nasce Parnamirim1

Francisco Isaac D. de Oliveira2 [email protected]

Resumo

A aviação comercial e os esforços de guerra criaram cidades. Parnamirim, cidade da região metropolitana de Natal é criada nesse momento histórico, nasceu do agrupamento humano nos arredores da Base Aérea de Natal. Nesse artigo, vamos traçar de forma geral uma breve história da gênese dessa cidade, buscaremos entender esse emaranhado históricos nos escritos de memorialistas, textos acadêmicos e em documentos de época: como o Jornal A República, hoje conservado nos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico do RN. Nosso objetivo é criar referências e apontar os caminhos para novas pesquisas históricas, como mencionado, vamos discutir a memória, os personagens locais, a gênese histórica, a identidade local e o patrimônio. A metodologia foi analisar fontes escritas e revisão bibliográfica. Os resultados obtidos a partir da pesquisa apontam que Parnamirim só existe oficialmente quando a guerra acaba, o mito fundador da cidade, que é contado pelos populares e memori-alistas, que seria a partir de 1927 com a construção da pista de pouso é anacrônico e não procede. Todos os artigos, textos e principalmente a documentação de época apontam que o campo de pouso, o aeroporto e a Base Aérea Militar fundada para a II Guerra Mundial eram natalenses, dizer que essa história é de Parnamirim é roubar a história de Natal. Palavras-chave: Campo de pouso. Natal. Parnamirim. II Guerra Mundial. ROMPIENDO LA PLANICÍA De una pista para aviones nace Parnamirim

Resumen

La aviación comercial y los esfuerzos de guerra crearon ciudades. Parnamirim, ciudad en la región metropolitana de Natal se crea en este momento histórico, nació de la agrupación humana alrededor de la Base Aérea de Natal. En este artículo, describiremos en general una breve historia de la génesis de esta ciudad, trataremos de com-prender esta maraña histórica en los escritos de los memoriales, textos académicos y documentos de época: como el periódico A República, ahora guardado en los archivos del Instituto Histórico e Geográfico de Rio G. do Norte. Nuestro objetivo es crear referencias y señalar el camino para una nueva investigación histórica, como se men-cionó, discutiremos la memoria, los personajes locales, la génesis histórica, la identidad local y el patrimonio. La metodología fue analizar fuentes escritas y revisión bibliográfica. Los resultados obtenidos de la investigación muestran que Parnamirim solo existe oficialmente cuando termina la guerra, el mito fundador de la ciudad, que cuentan los populares y los memoriales, que sería a partir de 1927 con la construcción de la pista de aterrizaje es anacrónico y no procedas. Todos los artículos, textos y principalmente la documentación periódica señalan que el aeródromo, el aeropuerto y la Base Aérea Militar fundada para la Segunda Guerra Mundial eran de Natal, decir que esta historia es de Parnamirim es robar la historia de Natal.

Palabras clave: Campo de aterrizaje. Aeródromo. Natal. Parnamirim. II Guerra Mundial.

1 Esse texto faz parte da pesquisa “MAPEAMENTO DAS REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E CULTURAIS DO MU-NICÍPIO DE PARNAMIRIM” que foi financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Universidade Potiguar (UnP) no ano de 2008, teve como professoras orientadoras Me. Marluce Lopes da Silva e Me. Marlene Mariz. Esse texto foi apresentado como Comunicação Oral no X Congresso Científico da UnP no ano de 2008. Peço a atenção do leitor para a ausência das citações completas das fontes no corpo do texto, o leitor verá que elas estão incom-pletas, porém, as poucas informações oferecidas estão corretas e asseguro que foram revistas e atualizadas. 2 Professor de História. Mestre em História e Espaços pela UFRN. Atualmente é aluno no Doutorado em História Social pela PUC-SP, Bolsista CAPES. É aluno na graduação em Biblioteconomia na UFRN.

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“Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente an-davam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala”. (RAMOS, Graciliano. ‘Mudanças’. In: Vidas Secas. p. 9, Ed. Record. s/d).

Uma breve introdução: gênese de Parnamirim como cidade O início da história do município de Parnamirim3 no Rio Grande do Norte é muito semelhante a essa epígrafe usada por nós no início desse texto. Assim como no livro clássico de Graciliano Ramos “Vidas Secas”, que conta à trágica história dos flagelados da seca, muito comum no sertão do Nordeste do Brasil. Parnamirim será emancipada – desmembrada – de Natal depois do fim da II Guerra Mundial, e um grosso fluxo de desterrados da seca do sertão vieram morar na recém criada cidade. Parnamirim será fundada gloriosamente em cima dos alicerces da aviação potiguar.

A cidade vai desenvolver-se em cima da memória dos ex-combatentes e da aviação comercial e militar norte-rio-grandense, vai usar a memória dos trabalhadores que lentamente ocuparam e circundaram a periferia da Base Aérea Militar brasileira e norte-americana du-rante a guerra. Pensando em torno do texto de Graciliano Ramos, podemos dizer que muitos nordestinos do interior potiguar que chegaram a Natal na década de 1940 vieram em busca de emprego e oportunidades, fugidos das secas que os castigavam e expulsava-os de suas cidades. Essas pequenas cidades do interior potiguar eram espaços sociais de miséria, assim como no romance que conta uma trama de sofrimento humano e busca por felicidade e comida nas cidades litorâneas. Parnamirim foi aos poucos sendo povoada pelos migrantes das graves se-cas do sertão, esses chegaram a Natal em busca de oportunidades, vale deixar muito claro que essas pessoas vieram para Natal e não para Parnamirim, pois nessa época, ainda não existia Parnamirim como nós concebemos atualmente.

Essas pessoas – homens e mulheres – procuravam terras para plantar e água para ma-tar a sede, saíram de suas casas na esperança de encontrarem no planalto de parnamirim, região baixa, de característica plana, com vegetação rala e muito bons ventos, uma vida nova, uma vida de mais fartura e água. Essa região era a entrada de Natal, caminho de passagem entre Natal e as cidades do sertão potiguar, situava-se antes do centro social e econômico da cidade do Natal. Muitas famílias foram direcionadas para a Ribeira e o bairro de Cidade Alta, no centro de Natal; outras famílias foram fixando sítios e chácaras ao redor da pista de voo e da futura Base Aérea Militar que seria implantada durante a II Guerra. Essa história colocaria Natal como uma das protagonistas no mapa mundial por meio da II Guerra Mundial.

Quero advertir os meus leitores que esse artigo não traz grandes contribuições histo-riográficas sobre os pormenores da II Guerra Mundial em Natal. Nossa preocupação desde o início foi estudar a problemática da fundação de Parnamirim por meio do seu patrimônio histórico e da memória do seu povo. Deixo aqui registrado a minha vontade que outros his-toriadores sigam os passos da pesquisa e possam preencher as lacunas deixadas por nós sobre o cotidiano da guerra em Natal, com toda certeza uma investigação nos arquivos locais e na-cionais seria muito bem-vinda para discutimos a participação brasileira na II Guerra Mundial.

3 Quero lembrar o leitor com a finalidade que não haja dúvidas e confusões de entendimento, da opção de usar duas formas de escrever o nome de Parnamirim. Quando usamos com ‘p’ minúsculo estamos nos referindo a região antes de ser oficializada como município do Rio Grande do Norte; quando usamos a letra ‘P’ em maiúsculo estamos nos referindo a municipalidade, oficializada pelos órgãos públicos.

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Nossas pretensões foram infinitamente mais modestas, e nos comprometemos em dar o ponta pé inicial na rica história de Parnamirim.

Parnamirim tem seu topônimo de origem nas línguas indígenas Tupi-Guarani, ou seja, paranã significa Rio, e mirim quer dizer pequeno, logo “parnamirim” é “Rio Pequeno”. As primeiras menções do nome de parnamirim é dos mapas holandeses do século XVII, o cartó-grafo Jorge Mac Grave traz essa informação nitidamente e data do ano de 1643, no mapa é mostrado um caminho pluvial para Nova Amsterdam, ou seja, Natal.

Oficialmente, Parnamirim foi instituída como cidade no ano de 1958, mais precisa-mente em 17 de dezembro de 1958. Em 2008 a cidade completou 50 anos de independência de Natal, 2008 foi um ano de festa e júbilo para os nascidos em Parnamirim. Porém, essa região tem seu “nascimento” em idos de 1927, segundo documentação histórica consultada por nós no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), o jornal A República é farto em matérias que conta um pouco dessa história. O povoamento de Parna-mirim tem início no planalto ou planície de Parnamirim. Aos poucos essa região se desenvolvia, em 1927 os especialistas em aviação escolheram instalar uma pista de pouso e decolagem para os aviões pudessem decolar e pousar em Natal, colocando a cidade no roteiro cobiçado das trocas comerciais e das comunicações. As pesquisas bibliográficas e no arquivo do IHGRN mostram o desejo e o esforço social político e comercial para colocar a capital potiguar no mapa do mundo.

Figura 1 – Detalhe do mapa holandês realizado por Jorge Macgrave em 1643. O mapa representa a região perto do litoral da capitania do Rio Grande, e mostra os caminhos para as capitanias do sul (Paraíba e Pernambuco) saindo de Natal. Essa é possivelmente a primeira representação pictórica da região de paranã-miri.

Figura 2 – Autoridades locais recepcionam os viajantes aéreos no campo de pouso de parnamirim em Natal-RN. Na foto, vemos os aeronautas Costes e Le Brix. Imagem retirada do livro de Paulo P. de Viveiros.

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Segundo os entendidos, essa região era ideal, elegeram-na como sendo própria para a implantação da pista de pouso e decolagem, legando assim um futuro brilhante para Natal. Atualmente, o Rio Grande do Norte conta com o Aeroporto Internacional Aluísio Alves no município de São Gonçalo do Amarante e o antigo aeroporto Augusto Severo de Parnamirim, que é um aeroporto histórico pelo seu passado e efetiva participação no drama da II Guerra Mundial, sendo palco e paisagem das ações de guerra no Rio Grande do Norte4.

O município de Parnamirim tem uma boa infraestrutura, e a cada ano alcança bons resultados no IDH, muito embora saibamos que os problemas existam e que muita coisa pre-cisa ser feita para o bem estar pleno da população. Parnamirim conta ainda com o parque de exposições Aristófanes Fernandes que todos os anos expõem as atividades agroindústrias pe-cuárias do Estado do RN, sem falar na Base Aérea das Forças Armadas do Brasil, que desde a década de 1940 foi implantada em Parnamirim quando essa ainda fazia parte da cidade do Natal.

Esse texto tem como objetivo, dar subsídios a futuras pesquisas históricas, pois o tema da aviação comercial e militar é muito rico, complexo e cheio de representações e significados para as cidades do Natal, Parnamirim e para o Estado do Rio Grande do Norte. Pois o século XX foi uma época rica em cultura, trouxe desenvolvimento econômico para essa região poti-guar.

Esse período teve um grande fluxo de informações. A cultura e a economia foram pri-vilegiadas e muitas pessoas, sejam elas civis ou militares, sentem saudades dessa época e guardam na memória as histórias de medo da violência da guerra, mas guardam também, memórias variadas de consumo, da língua inglesa, das paixões, da tecnologia, da religião pro-testante e Parnamirim surge num contexto mundial de desenvolvimento bélico, a guerra é sempre um momento de desenvolvimento das forças armadas, náuticas, aeronáuticas e co-mercial.

Nomes consagrados na historiografia local, como Manuel Machado, que era o dono das terras de parnamirim e doador de uma porção generosa de terras para a construção do primeiro esboço do aeroporto; e o piloto Le Brix, primeiro a pousar na pista de parnamirim em Natal. Esses nomes carregam interesses histórico e popular, e fazem de Parnamirim, uma terra em ebulição, um caldeirão cultural (de anedotas e histórias) para a história do Rio G. do Norte.

Objetivo e metodologia da pesquisa Esta pesquisa sobre o mapeamento histórico e cultural do município de Parnamirim, tem como principal objetivo reconstruir a memória histórica de Parnamirim (RN), e através dele fazer um mapeamento das referências históricas e culturais do município. Com isso procuramos elaborar um banco de dados de documentos que possibilitem trabalhos ou pesquisas futuras, tanto no que se refere a história do lugar, quanto as suas manifestações culturais, como por exemplo, festas populares e sabedoria do povo.

Parnamirim constitui uma grande referência na história do estado, pelo o papel que teve na Segunda Guerra Mundial, com presença de uma base americana o que, consequente-mente, influenciou bastantes mudanças na vida da população de Natal. Sendo assim, este

4 Hoje Parnamirim tem o aeroporto internacional Augusto Severo, que foi desativado para voos comerciais. Só funcionando para voos das Forças Armadas do Brasil. Parnamirim conta ainda com um parque industrial bem diversificado, com fábricas de plásticos, têxtil, serviços, agricultura e comercio. O município de Parnamirim fica a 25 Km do centro de Natal, possui uma área de 126 Km quadrados de extensão e cerca de 200 mil habitantes conforme censo do IBGE.

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trabalho foi dividido em três partes para facilitar a pesquisa, a primeira parte foi visto a ne-cessidade da pesquisa bibliográfica, onde os livros e fontes hemerográficas (jornais) foram pesquisados; a segunda parte foi realizada através da pesquisa oral, onde algumas pessoas com idade acima de 70 anos, responderam a perguntas informais para ajudar na pesquisa; e a ter-ceira fase da pesquisa será feito um levantamento do patrimônio material e imaterial da cidade, possibilitando assim o fechamento da pesquisa. Nesse sentido, destacaremos, além da história local, um pouco do seu desenvolvimento urbano, suas personagens, festas, cultura e o cotidiano social que revele a nova face da cidade.

Como podemos ver anteriormente na imagem 1, a região de parnamirim já era conhe-cida e representada em mapas holandeses sobre o norte do Brasil desde o século XVII. Porém, esse espaço social só se desenvolveria séculos mais tarde, no contexto da II Guerra Mundial, essa região ao sul de Natal vai ganhar melhoramentos na infraestrutura. Os esforços de guerra – via recursos do governo norte-americano – foram o grande patrocinador dos melhoramen-tos e pela elevada circulação de pessoas.

A famosa II Guerra Mundial atribui significados variados na memória dos potiguares, traz boas e, más lembranças para nossa historiografia. Com o fim da guerra e a emancipação política de Parnamirim, por vontade de poucos militares que resolveram homenagear o bri-gadeiro do ar Eduardo Gomes, a cidade passou a se chamar Eduardo Gomes. A população não se adaptou rápido a essa imposição, e houve uma mobilização a partir do povo para que vol-tasse ao nome antigo de Parnamirim. Aí podemos perceber a identidade que o povo sente pelo nome indígena5.

Assim, entre muitas idas e vindas Parnamirim cresceu e hoje é uma das maiores cida-des potiguares. Mas o desenvolvimento foi lento, quase ao sabor dos ventos que trazem os aviões e ajudam os pássaros a realizarem os voos de Ícaro. Atualmente a cidade é construída e reconstruída quase que diariamente por muitas pessoas e etnias. O mapeamento das refe-rências históricas e culturais de Parnamirim são importantes para melhor entendimento dessa sociedade complexa, nesse sentido, conhecer o passado histórico é necessário para uma com-preensão mais próxima das demandas populares.

O tempo e o sonho de Ícaro Lentamente a construção de um sonho surge pelas mãos de homens que sonharam em voar. É através do campo de pouso de Natal, capital do Rio Grande do Norte, que esse sonho irá se realizar. Surge da necessidade das elites locais em colocar Natal no mapa do mundo. Existia um interesse popular pelas informações e o cotidiano dos pousos e decolagens no aeroporto, notícias publicadas no jornal A República davam as seguintes notícias

“Procedente de Belém do Pará com destino ao Rio de Janeiro, transitou ontem às 14:30 horas pelo aeroporto da Condor a aeronave brasileira ‘Araci’, sob o comando do Sr. Leonardo Haas. Embarcaram neste porto os senhores Dr. Dioclecio Dantas Duarte e Augusto Graessgen. Em trânsito (estavam) os senhores José F. Pacheco, Hans Cristian Friedrich Barth e Wily Reuters” (A República, 1939. AIHGRN).

Os informativos eram publicados nos jornais locais e atraiam o interesse das elites e dos populares, era um serviço de utilidade pública, pois a companhia Condor também oferecia

5 Um fato curioso e que merece uma análise mais profunda é a mudança de nome do município. Depois da guerra a cidade passa a se chamar Eduardo Gomes, uma homenagem que não agrada a população do lugar, e através de manifestações do povo, esses conseguiram mudar esse fato histórico, voltando a se chamar Parnamirim.

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o serviço de informações, postagens e entregas de encomendas. O jornal dava notícias dos aviões e dos passageiros que embarcavam, desembarcavam e os que estavam em trânsito.

É obvio que nem todas as pessoas tinham acesso a essas informações, dado o número de analfabetos ser elevado na cidade do Natal, porém, a informação das malas de correio6 e encomendas circulavam pela cidade de forma precária ou não. Todas as informações que che-gavam à cidade colocavam o cidadão natalense no mundo, o aeroporto e suas máquinas aladas eram uma janela importante para atualizar o povo dos acontecimentos mundiais.

Nos primeiros trinta anos do século XX, Natal ainda era pequena e tinha grande inte-resse em participar das comunicações e cultura Ocidental. A elite local surge timidamente, doa terrenos, patrocina jornais e financia clubes aéreos que vão montar a estrutura para o futuro aeroporto e consequentemente colocará Natal como destaque no cenário nacional, que na II Guerra vai despontar como centro aeronáutico brasileiro. É a partir desse sonho que mais tarde será desenvolvido o projeto de uma cidade, “Esse era o destino de Parnamirim, uma cidade preparada para voar” (Morais, 1993. s/p).

Figura 3 – Mostra uma propaganda da companhia aérea Condor, publicada em 1º de julho de 1939 no Jornal A República-Natal. Foto de Francisco Isaac D. de Oliveira, 2008. Arquivo do IHGRN.

O município surge em meio do “tabuleiro”, área plana e arenosa com muitos ventos. Os relatos populares e de repórteres dos jornais já relatavam essas características físicas, tam-bém de acordo com Câmara Cascudo, ele nos informa que era uma região arenosa, “de grande espaço e sem muita vegetação”, ou seja, uma região sem muitas construções. Essa localidade começa a ser povoado em meados dos anos 20, mais precisamente no final dessa década, no ano de 1927, a partir dessa data podemos assegurar que a aviação deu um grande salto, a elite potiguar apostou no comercio, colocando Natal na rota da Europa para o Rio de Janeiro e Buenos Aires na Argentina, sendo assim, foi o comercio de produtos o principal motivador para essa expansão7. Foi o desejo de comercializar com outras cidades, estabelecer negócios

6 Existiam as notícias das malas de correios e despachos de encomendas. 7 Parnamirim nasce assim se desmembrando de Natal, e passa a se constituir como município no final da década de 50 do século XX, tudo isso patrocinado pela aviação comercial.

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com os vizinhos da América do Sul (ver a figura 3), que impulsionou a aviação comercial no Natal e Parnamirim.

A aviação comercial e o início de Parnamirim Voltemos a contextualizar o início dessa jornada aeroportuária e as relações econômicas e sociais entre as elites locais e o mundo. O ponta pé inicial desse processo histórico foi dado pelo piloto francês Paulo Vechet no ano de 1927, ele fazia parte da comissão francesa para inspeção de áreas para pousos e decolagens, e decidiu instalar um aeródromo8 em Natal, esse modelo foi realizado em outras partes do mundo, foi o próprio Paul Vechet quem começou a construção da pista de pouso e decolagem de Natal/Parnamirim, chefiando uma equipe mista de franceses e brasileiros.

O local escolhido foi à planície do “tabuleiro de parnamirim”, como era conhecido pelo povo da capital. Essas terras pertenciam ao português Manuel Machado, esse era um rico comerciante que possuía muitas terras, Manuel Machado tratou logo de doar as terras. Ele não ofereceu nenhum obstáculo a construção do aeródromo, tendo em vista que poderia lucrar com a construção, pois seria no futuro um ponto de comercio internacional. Existe uma lenda de que esse homem doará as terras apenas por pura bondade, tendo em vista uma revisão bibliográfica dos fatos, podemos interpretar essa doação como visão futura de bons negócios.

O campo de pouso de parnamirim foi inaugurado em 14 de outubro de 1927, teve o primeiro pouso do avião Nungesser-et-Coll sob o comando do piloto francês Josep-Lebrix. “Nessa época o campo de pouso de Parnamirim era iluminado com luz das fogueiras acesas em toda extensão da pista.” (ALDA NUNES, 2006. p. 18), nesse sentido, muitas foram as difi-culdades que o aeródromo de Natal se desenvolveu, a luta era para estabelecer um ponto para o comercio intercontinental.

No início dos anos 20 do século XX começaram a construção da via férrea que ia ligar as cidades de Natal e Recife, pelo local que passaria a ferrovia ainda não existia habitações e era justamente ali onde nasceria Parnamirim. As pessoas que por ali passavam eram a pé ou no lombo de animais como descreve José Geraldo “as pessoas passam por esse caminho de arreia e vegetação rala, quase que o caminho todo desconfortavelmente, andando sem topar com gente nenhuma, e todo esse percurso é feito no lombo do jumento.” (GERALDO, s/d. grifo meu), podemos perceber as dificuldades que era uma viagem. Encarar uma caminhada como essa no lombo de animais não era uma viagem confortável. A ferrovia era muito bem-vinda, sua construção aliviaria as muitas dificuldades de locomoção. Como já foi mencionado, nessa área não havia habitações, foi a inspeção da comitiva francesa em busca de terras apropriadas para edificação do campo de pouso que trouxe alguma facilidade por menor que fosse morar nessas redondezas seria mais fácil para a vida das pessoas. Quando Paul Vechet chegou na-quele campo extenso e plano viu que poderia ser feita ali a pista de pouso e decolagens, o aeródromo sairia do papel e se transformaria em realidade, colocando Natal no meio do cami-nho do novo comercio mundial.

Muitos pesquisadores ávidos em legitimar um passado de glórias para Parnamirim apontam a data de nascimento da cidade como sendo o dia 20 de julho do ano 1927. Mas a essa altura a localidade não contava com nenhuma instituição política como Câmara de vere-adores, prefeitura ou igrejas, escolas, postos de Saúde, e muito menos casas e pessoas. Ou seja,

8 Antigamente aeródromo eram campos de pousos e decolagens. Atualmente esse termo foi atualizado, ficando mais moderno, são os famosos aeroportos.

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é muita pretensão (errônea a anacrônica) fixar o nascimento de uma cidade sem instituições públicas e gente.

Para desfazer esse argumento, é só buscar informações nas páginas dos jornais locais e constatar que em fins da década de 1920 a região de parnamirim não tinha nenhum movi-mento9. Só com a instalação da Base Aérea Norte-americana em plena Segunda Guerra Mundial foi que a “cidade” começou a atrair pessoas para sua periferia.

Com os esforços da II Guerra Mundial o aeroporto se converteu em um dos mais mo-vimentados do mundo, em pousos e decolagens diárias, Parnamirim nem era citada nos documentos oficiais do Estado brasileiro, era Natal que detinha esse protagonismo. Podemos constatar essa informação no livro “Cenários Municipais” de Anfilóquio Câmara, publicado em 1943, esse livro era patrocinado por Órgãos do Governo Estadual e usava as estatísticas oficiais da época. Ou seja, parnamirim era considerada como um distrito de Natal, só a partir de 1948, é que Parnamirim será elevada à categoria de Vila Distrital da capital, e será fixado delimitações territoriais, é dessa época os limites atuais, pois município foi definido com 126 km quadrados de extensão, sua população era pequena. Essa população estava concentrada na periferia e arredores do campo de pouso.

Em suas terras poderia ser encontrado segundo Câmara Cascudo uma pequena lagoa “Parazinho”, insignificante, uma espécie de banho pluvial. Cascudo ainda nos fala que Parazi-nho é um município do Estado de Pernambuco, sendo esse nome exclusivo. “A cidade constituída de Parnamirim só nasce no final da década de 50, mais precisamente na data 17 de dezembro de 1958, sendo elevada a cidade, e o decreto lei foi aprovado em 10 de janeiro de 1959.” (CASCUDO. s/d), ou seja, podemos afirmar categoricamente que em 1927 não existia a cidade de Parnamirim. Tudo era Natal10.

Uma questão muito interessante e pertinente para ser discutida futuramente em outras pesquisas é a profunda ausência da participação indígena na construção histórica dessa ci-dade. A história do índio ser negada no Rio Grande do Norte não é nenhuma novidade, em Parnamirim essa negação é muito mais clara e evidente, nenhum autor consultado para esta pesquisa se quer, menciona um esboço de protagonismo ou participação indígena, muito em-bora, o nome que batiza a cidade e é marca de identidade popular tenha origem na cultura nativa. Os resquícios da presença indígena e sua cultura precisam ser discutidos na historio-grafia potiguar. A única menção sobre os índios constatada por nós foi uma comparação feita pelo autor Mateus Nogueira Brandão, ele fala, “os índios Parnamirins estão presentes na lagoa de Mecejana, no município de mesmo nome, no Estado do Ceará”11.

O patrimônio humano e material na história de Parnamirim A história local elegeu seus patronos, alguns personagens históricos foram decisivos para a construção da cidade, esses homens colaboraram ativamente, sendo reconhecidos pelos his-toriadores e pela memória local. Um dado interessante para a história da cidade de Parnamirim

9 Uma revelação fica clara e é interessante para entendermos a real situação da área de parnamirim, segundo Mateus Nogueira “Essa região é totalmente desértica, improdutiva e inútil, os moradores mais próximos desse lugar fica ao norte do sítio do Alecrim em Natal, e ao sul as casinhas mais próximas são as da comunidade da ‘Taborda’ em São José de Mipibu.” (Mateus Nogueira). Esse trecho, nos prova definitivamente a condição de crescimento lento do município, ao contrário das aéreas próximas do campo de pouso que atualmente podemos ver as casas mais antigas ficam no redor da Base Aérea. 10 CASCUDO, Luiz da Câmara. Nomes da Terra. Sem ano. 11 Historicamente a historiografia positivista potiguar sempre negou a presença dos índios no estado do RN. A resistência imposta pelos índios a colonização portuguesa pode ser um indício dessa negação cultural. Sabemos que a resistência oferecida pelos potiguares foi implacável, fato esse, que revela um massacre feroz praticado pelo colonizador português nessas terras.

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é a consideração dos moradores com os seus “padrinhos”. Existe um orgulho dos moradores para alguns nomes, como exemplo: o coronel do exército brasileiro Luiz Tavares Guerreiro (1881-1958), foi ele quem apresentou a área do “tabuleiro de parnamirim” para o piloto francês Paul Vechet. Vechet também é reverenciado como padrinho da cidade, junto com o português Emanuel Machado. Essa primeira fase histórica tem poucas informações, a versão mais cor-rente e reconhecida pela memória popular está discutida aqui.

O patrimônio material mais preservado fica no centro da cidade, e nos arredores da Base Militar, sendo esse, o perímetro mais importante para compreendermos os monumentos históricos que contam a história de Parnamirim. O próprio espaço interno da Base Aérea Mi-litar é um grande museu a céu aberto, seus prédios revelam o cotidiano dos soldados e militares brasileiros e norte-americanos que passaram por lá. Todos os prédios são da época da II Guerra Mundial. No centro da cidade tem a igreja católica, que foi construída nesse con-texto, porém quando a guerra já havia acabado, ainda no centro, temos as casas construídas para residências oficiais dos comandantes e soldados durante a II Guerra Mundial, mais co-nhecida como Vila Militar. A própria base aérea por possuir um patrimônio arquitetônico relativamente conservado serviu de cenário para produções cinematográficas brasileiras, na década de 1990 foi cenário para filme “For All - O Trampolim da Vitória” de 1997, que conta a história cotidiana da guerra em Natal.

Os outros pormenores históricos sobre o cotidiano ficam prejudicadas, dada à falta de conservação e manutenção dos documentos existentes sobre essa época. A melhor casa de pesquisa, ou arquivo para consulta sobre esse tema no Estado do Rio Grande do Norte é o Instituto Histórico e Geográfico do RN. Porém, a má conservação de alguns documentos, prin-cipalmente o jornal A República da virada dos anos 20 para os anos 30 do século XX estavam bastante degradados, o prejudicou profundamente a análise documental. Nesse cenário, os exemplares dos jornais guardados no arquivo do IHGRN não puderam ser consultados, nosso interesse era analisar números do jornal A República anteriores ao ano de 1939, que seria extremamente necessária para a nossa discussão, pois esse período é rico em informações cotidianas da política e da sociedade em Natal.

Considerações Finais A pesquisa teve o objetivo de estudar a história local do município de Parnamirim e os refe-renciais culturais como os personagens históricos locais e o patrimônio material. Outro objetivo importante que motivou a investigação foi criar referências históricas e apontar ca-minhos para novas pesquisas. Nesse breve artigo, discutimos o “mito histórico” da criação da cidade de Parnamirim, e o início da aviação comercial no Rio Grande do Norte, toda essa história posteriormente desaguaria na aviação militar que perpassa a história dos dois muni-cípios (Natal e Parnamirim). Parte dessa pesquisa foi realizada no arquivo do IHGRN e se apropriou do jornal A República como fonte histórica principal, também usamos como fonte histórica o patrimônio material da cidade como ponto de baliza para entendermos as mudan-ças e transformações urbanas na paisagem de Parnamirim, a junção dessas fontes foram importantes para que nós pudéssemos elaborar nossas conclusões sobre a história dessa mu-nicipalidade.

A primeira fase da pesquisa, foi realizada por meio de um cuidadoso levantamento nas fontes secundárias, ou seja, nos livros de autores acadêmicos e memorialistas potiguares, essas foram nossas primeiras referências para começarmos a discutir os mitos que envolviam a cri-ação de Parnamirim. Esses primeiros passos resultaram na elaboração de um quadro inicial de caracterização da história de Natal, da aviação potiguar inserida num contexto mais amplo,

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ou seja, numa história da aviação internacional. Essa primeira investigação na bibliografia possibilitou perceber as primeiras ocupações humanas em idos de 1927, já no contexto de uma aviação comercial regional e internacional, e posteriormente numa importante escalada de crescimento populacional até a aviação militar na década de 1940 com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, essa segunda leva de ocupação se deu a partir do momento da efetiva circulação de militares norte-americanos e brasileiros na região que hoje é o município de Parnamirim. A segunda fase da pesquisa foi desenvolvida nos arquivos do IHGRN, onde tive-mos contato com os jornais e pudemos comparar e efetivar nossa narrativa.

Os resultados obtidos a partir da pesquisa bibliográfica e documental, apontaram que Parnamirim só existe oficialmente como município quando a II Guerra Mundial acaba, logo, o mito fundador da cidade, que é contado pelos populares e memorialistas, de que a fundação da cidade remonta ao ano de 1927 – período anterior a Grande Guerra – com a construção da pista de pouso é anacrônica e não procede, é perigoso fazer tal afirmação. Todos os artigos, textos e principalmente a documentação de época apontam que o campo de pouso, o aeroporto e a Base Aérea Militar fundada para a II Guerra Mundial eram natalenses, dizer que essa his-tória é de Parnamirim é esvaziar a discussão e “roubar” a história de Natal.

Tendo em vista a vasta bibliografia consultada e as notícias nos jornais da época, po-demos afirmar com toda clareza de que o município de Parnamirim só surgiu no cenário político e social do Brasil a partir das necessidades de organização urbana da municipalidade natalense. Logo, o “Trampolim da Vitória” que tanto é proclamado e reivindicado pelos mo-radores mais apaixonados de Parnamirim não passa de um grotesco erro histórico. A história da aviação comercial e militar pertencem a Natal e está intimamente ligada a história do sé-culo XX nessa cidade. Cabe a cidade de Parnamirim ser a herdeira dessa história, Parnamirim é na verdade, guardiã dessa memória e desse patrimônio civil-militar da II Guerra. Todos os documentos da época que foram consultados por nós, apontam que Natal foi a protagonista no palco das negociações políticas, e que o território usado tanto para a primeira pista de pouso como para a Base Militar Norte-Americana ficavam em Natal. A cidade do Natal cresceu e se beneficiou dos esforços de guerra, tendo sido Natal que se destacou em todo o Brasil em fins da década de 1940 e início dos anos de 1950.

Referências Fontes primárias Jornal A República – julho de 1939. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN).

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Artigos livres

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OS DESAFIOS DO EDUCADOR UNIVERSITÁRIO NO ENSINO DO EDU-CANDO SURDO

Bárbara Almeida da Cunha1 [email protected]

Teógenes Luiz Silva da Costa2 [email protected]

Resumo

O presente artigo objetiva refletir sobre os desafios do professor de nível superior no ensino do aluno com surdez. Na fundamentação teórica utilizamos as ideias de Freire (2015) e Tardiff (2002). Os dados aqui apresentados referem-se à observação em campo, a partir do acompanhamento das aulas de educando surdo do curso de Ba-charelado em Ciências Biológicas em uma universidade pública, na região Oeste do Pará. Como ferramentas metodológicas, lançamos mão de dados reunidos em diário de campo e nas conversas informais realizadas com o docente da disciplina, com o educando surdo e com a intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), respon-sável pela tradução das aulas e de qualquer diálogo entre o estudante surdo e os ouvintes. Palavras-chave: Educação de Surdos. Inclusão. Ensino Superior.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre los desafíos de los maestros de educación superior en la enseñanza de estudiantes sordos. En la base teórica utilizamos las ideas de Freire (2015) y Tardiff (2002). Los datos presentados aquí se refieren a la observación de campo, a partir del monitoreo de las clases de uno estu-diante sordo del curso de Bachiller en Ciencias Biológicas en una universidad pública, en la región occidental de Pará. Como herramientas metodológicas, utilizamos datos recopilados en un diario. en el campo y en conversa-ciones informales mantenidas con el profesor de la asignatura, con el alumno sordo y con el intérprete de lengua de signos brasileño (Libras), responsable de la traducción de las clases y de cualquier diálogo entre el alumno sordo y los oyentes. Palabras-clave: Educación para sordos. Inclusión. Enseñanza superior.

― ―

Introdução De acordo com o Senso da Educação Superior, realizado pelo Ministério da Educação (MEC), através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2016, na região Norte do Brasil 193.437 pessoas se matricularam em cursos de graduação de universidades públicas, dos quais 71.183 pessoas estão no estado do Pará. No que diz respeito ao município de Santarém, cerca de 22% dos alunos surdos encontram-se na graduação. E apesar de garantido o acesso às universidades, ainda é possível encontrar problemas que difi-cultam a permanência destes alunos nos cursos de graduação. A Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 em seu art.4º determina que:

1 Mestra em Educação pela Universidade Federal do Oeste do Pará-UFOPA. Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação de Surdos GEPES-UFOPA. 2 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará-UFC. Docente do Instituto de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Oeste do Pará-UFOPA.

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O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de Educação Especial, de Fo-noaudióloga e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais – Libras, como parte integrante dos parâmetros Curriculares Na-cionais – PCNs, conforme legislação vigente.3

Muitos professores ainda não se sentem aptos a trabalharem com este público. Na ver-dade, muitos dos futuros docentes ainda se perguntam por que estudar Libras. Esquecendo-se que cada vez mais os surdos, e pessoas com outras deficiências, estão ocupando os espaços públicos e a qualquer momento pode-se ter um aluno deste segmento social.

Nenhuma instituição de ensino, seja pública ou privada, de qualquer nível da educação, pode negar a matrícula de um aluno por causa da sua deficiência. Na verdade, além de garantir a matrícula, a instituição de ensino é obrigada a disponibilizar as condições necessárias para o desenvolvimento de um aprendizado de qualidade. Dessa maneira, é urgente que as escolas, universidades e faculdades estejam preparadas em sua estrutura física e pedagógica para aten-der as pessoas com deficiência. Não deve ser encaminhada como gentileza ou simples assistencialismo, mas sim, enquanto um direito previsto em lei.

A Libras é a segunda língua oficial do Brasil, reconhecida como meio legal de comuni-cação e expressão, no entanto as escolas de educação bilíngue quase que majoritariamente oferecem o inglês ou o espanhol como segunda língua. Dessa maneira, percebe-se por que muitos jovens durante a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2017 tiveram dificuldades para escrever sobre o tema "desafios para a formação educacional de surdos no Brasil". Muitos dos participantes sequer sabiam o que é a Libras. Tanto na mídia quanto nas redes sociais existiram muitas críticas em torno do tema escolhido pelo MEC, in-clusive muitos defenderam que esta temática é específica para professores, sendo inadequada para aqueles que acabaram de concluir o ensino básico, porém, questiono-me se a educação dos surdos mais do que um assunto para professores não seria uma questão social que toda a população deveria ter conhecimento, inclusive os alunos do ensino médio.

Neste paper veremos um pouco da realidade do professor universitário em relação à educação do estudante surdo. Refletindo sobre a formação do professor, a prática docente e seu importante papel na inclusão do surdo no ensino superior.

O contexto da pesquisa Para uma maior compreensão sobre a temática que pretendemos problematizar é importante conhecer o contexto pesquisado, dessa maneira, faremos breve apresentação dos principais colaboradores deste estudo. Sendo eles: a universidade, a intérprete, o aluno surdo e, final-mente, o professor da disciplina.

A instituição de ensino Inaugurada em 2009, a universidade que foi palco da pesquisa de campo, aqui apresentada e sintetizada enquanto artigo, trata-se de uma instituição pública localizada no município de Santarém-PA. Uma das suas principais bandeiras de criação daquela instituição foi a amplia-ção do ensino superior na região da Amazônia e a promoção do ingresso neste nível da educação aos grupos minoritários locais, os quais historicamente tiveram seu acesso ao ensino superior dificultado, tais como as comunidades indígenas, quilombolas e as pessoas com defi-ciência.

3 Disponível em www.brasil.gov.br. Acessado em 23 de fev. de 2018.

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A instituição é composta por 7 campus, 6 institutos, 38 cursos, um quadro docente com mais de 400 professores e 5.219 estudantes, dos quais 5 são surdos e conta com 4 intérpretes de Libras. Possui dois tipos distintos de processos seletivos para o ingresso de novos alunos. A saber, o processo seletivo especial (PSE) para quilombolas e indígenas e o processo seletivo regular (PSR) que tem como critério de avaliação a nota do participante no ENEM. É exata-mente no PSR que as pessoas com deficiência devem se inscrever para concorrer às vagas destinadas a este público. A universidade disponibiliza em seu site o edital do processo sele-tivo em Libras para melhor atender os candidatos surdos.

Existe também o Núcleo de Acessibilidade que atende aos professores e aos discentes com deficiência. O núcleo é composto por alguns concursados e poucos alunos bolsistas, com e sem deficiência, que se revezam nos atendimentos. Além desta ação, o núcleo de acessibili-dade oferece formação através dos mais diversos cursos, tais como por exemplo: audiodescrição, orientação e mobilidade e Libras para professores, técnicos, alunos e comuni-dade em geral. Mesmo dispondo de poucos recursos o núcleo se esforça a convidar professores de outras universidades federais para desenvolverem ações voltadas para a acessibilidade en-tre outras demandas das pessoas com deficiência. No que diz respeito aos professores, o núcleo está à disposição para orientá-los em relação à possíveis estratégias de ensino para alunos com deficiência. O que acontece é que são poucos os docentes que buscam informações a esse respeito. Apesar das dificuldades, prin-cipalmente em relação a recursos e o número insuficiente de profissionais que compõem o núcleo, sua existência é de grande importância para melhorar a educação dos alunos com deficiência desta universidade.

A intérprete de Libras Este profissional é essencial para a permanência do surdo na universidade. Com a função fundamental de mediar a comunicação entre surdos e ouvintes, a presença do intérprete ga-rante ao surdo o acesso à informação. Como já foi mencionado, a língua materna da maioria dos surdos é a língua de sinais e como a Libras possui estrutura gramatical própria e distinta do português, muitos surdos sentem dificuldades com a língua majoritária, principalmente aqueles que são surdos congênitos ou que adquiriram a surdez ainda muito jovem.

A intérprete da universidade é concursada, formada em pedagogia, faz parte do núcleo de acessibilidade e é casada com um surdo. Esta informação é importante porque nos diz o quanto ela tem contato com a língua de sinais, portanto, reflete sua alta capacidade profissio-nal.

Durante as aulas percebemos o interesse da intérprete em trabalhar com comprometi-mento, existe responsabilidade e compromisso com a atividade que exerce. Além de interpretar as aulas, ela estimulava o aluno surdo a se dedicar aos estudos e a ter mais confi-ança em si mesmo4. O educando em questão era bastante inseguro, dizia que não entendia, era tímido e mesmo quando não entendia, acabava guardando a dúvida para si. Quando a intérprete percebia a dúvida do aluno sempre insistia para que ele perguntasse ao professor, pois ele é o responsável pelo ensino. Vale a pena destacar que a intérprete de Libras tem a função de mediar a comunicação, quem deve dominar o conteúdo é o professor. O código de ética dos intérpretes é claro quando diz que o intérprete educacional está em sala para

4 A compreensão do conteúdo gerado a partir da interação entre a intérprete, o aluno surdo e o professor da disciplina observada foi facilitada por termos conhecimentos intermediários em Libras.

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traduzir, o responsável pelo ensino do aluno é o professor. Isso deve ficar bem claro, pois a maioria das pessoas pensam que o intérprete é babá do aluno surdo.

Outro aspecto que devemos salientar é o interesse da intérprete em ter mais conheci-mento sobre o conteúdo da aula. Sempre que possível ela estudava o assunto discutido em sala para melhor traduzi-lo. Antes, e mesmo durante, das aulas ela pesquisava os sinais que não conhecia, principalmente aqueles específicos da área, e os que não conseguia encontrar, buscava o conceito da palavra e juntamente com o aluno surdo combinavam um sinal que o representasse. Foi o que aconteceu com o conceito “Placas tectônicas”. Essa prática é muito comum entre os intérpretes e é primordial que o aluno compreenda o que está sendo expli-cado.

O educando surdo O estudante surdo trata-se de um jovem que tem surdez congênita, utiliza a língua de sinais e não domina o Português escrito, morava em uma pequena cidade do estado do Pará e após algumas tentativas conseguiu ser aprovado no curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. No período de observação das aulas ele cursava o primeiro semestre da graduação e logo nas primeiras avaliações cogitou a possibilidade de desistir da graduação.

Sentia-se inseguro e dizia ter muita dificuldade com os conteúdos. Neste momento a intérprete foi de fundamental importância, pois insistiu em ajudar o surdo com encontros no núcleo de acessibilidade para estudar e ainda encarregou um aluno bolsista que sabe Libras para auxiliá-lo nos conteúdos mais complexos. Pois ambos cursavam disciplinas semelhantes.

Destacamos ainda, sobre o estudante, sua identidade surda. O aluno se reconhece en-quanto surdo, pois faz parte da comunidade surda, se relaciona com outros surdos, tem a Libras como primeira língua e sua percepção de mundo estar baseada em experiências visuais. Dessa maneira, o aluno vai se constituindo enquanto pessoa surda. Vale a pena ressaltar que:

Pensar o surdo no singular, com uma identidade e uma cultura surda, é apagar a diversidade e o multiculturalismo que distingue o surdo negro, a surda mulher, do surdo cego, do surdo índio, do surdo cadeirante, do surdo homossexual, do surdo oralizado, do surdo de lares ouvintes, do surdo de lares surdos, do surdo gaúcho, do surdo paulista, do surdo de zonas rurais... (Skliar, 1998; Gesser, 2006, 2008; apud GESSER, 2009, p. 55).

Deixamos claro que existem diferentes identidades e culturas5 surdas, o foco deste trabalho não é definir minuciosamente a identidade e cultura daquele surdo, porém é neces-sário saber um pouco sobre elas para respeitá-las e melhor atender as necessidades pedagógicas deste aluno, pois como coloca Freire (2012), a identidade cultural dos alunos in-fluencia diretamente em sua visão de mundo e deve ser considerada em nossa prática educativa, em como ministrar conteúdos para estes alunos. Saber se o estudante tem surdez congênita ou adquirida, se tem família ouvinte ou surda, se é fluente na Libras, se domina a língua portuguesa em sua modalidade escrita, se é oralizado, se aceita a surdez, sua classe social, se frequentou escolas públicas ou privadas, são informações valiosas e essenciais para o desenvolvimento de uma prática educativa com qualidade.

5 O debate em torno do conceito de cultura é complexo e, por não ser o escopo do presente, exige apenas que apontemos que para posterior aprofundamento da questão, sugere-se iniciar-se na temática a partir do texto Cultura: um conceito antropológico (LARAIA, 2001).

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O educador Enquanto acompanhava as aulas, observamos principalmente o trabalho do ministrante da disciplina com o intuito de identificar e problematizar alguns desafios encontrados por este para ensinar o aluno surdo. No entanto, é necessário deixar claro que em nenhum momento pretendemos classificar a metodologia utilizada pelo professor participante da pesquisa como satisfatório ou não, trata-se de um contexto pedagógico novo para a maioria dos docentes e o mais importante para este estudo é perceber os desafios que qualquer educador, com ou sem experiência, teria diante de um aluno surdo.

Jovem geógrafo e sem qualquer conhecimento sobre Libras ou Educação de Surdos, o professor da disciplina “Fundamentos de Ciências da Terra” estava em seu primeiro semestre lecionando na universidade quando do primeiro encontro com a turma pediu que todos se apresentassem. Durante a apresentação de um dos estudantes, o docente ficou totalmente desconcertado porque não entendia nada do que o aluno falava. Como a atividade era coletiva, o professor ficou com receio de perguntar em público se o aluno tinha alguma dificuldade na fala, então, preferiu fazer esta perguntar no final da aula de maneira particular, evitando qual-quer tipo de constrangimento para o estudante. No meio da correria que acontece ao final de qualquer aula, alunos solicitando a atenção do professor e outros saindo de sala apressada-mente, quando o ministrante da disciplina procurou o aluno para conversa, este já tinha ido embora. Então, o diálogo foi adiado para a próxima aula.

Na segunda aula, o professor foi surpreendido ao descobrir, através da intérprete (au-sente no primeiro encontro), que aquele aluno que ele não conseguiu entender nada da apresentação pessoal era na verdade um aluno com surdez. O professor ficou impressionado de como existia um aluno surdo na turma e ninguém (coordenação e núcleo de acessibilidade) o informou para que pudesse planejar aulas que contemplasse a necessidade daquele discente. Ao final da aula o docente, que nunca tivera um surdo como aluno, pediu ajuda à intérprete, pois ele não sabia a melhor maneira para potencializar o processo de aprendizado do educando surdo.

Dessa maneira, vê-se que os desafios do professor em questão iniciaram-se logo no primeiro encontro da disciplina quando ele nem mesmo sabia que tinha um surdo entre seus alunos. Sem aviso prévio, sem intérprete e sem qualquer conhecimento sobre a língua de si-nais e a educação de surdos o professor teve que buscar novos conhecimentos para atender uma nova demanda.

Qualidades docentes Na obra “Professora sim, tia não”, Freire (2012) apresenta algumas qualidades indispensáveis para o melhor desempenho das educadoras e educadores progressistas6. A primeira qualidade apresentada pelo autor é a humildade que “nos ajuda a reconhecer esta sentença óbvia: nin-guém sabe tudo, ninguém ignora tudo. Todos nós sabemos algo, todos nós ignoramos algo p.75” [tradução livre]. Assim sendo, havemos de destacar o fato de o professor da disciplina ter sido humilde quando assumiu que não sabia como trabalhar com aquele aluno surdo e pediu ajuda tanto a intérprete quanto a uma amiga que é especializada em Educação Inclusiva.

A primeira atitude foi repensar todas as aulas da disciplina que já estavam planejadas. Foi necessário refletir quais aulas não estariam acessíveis para o aluno, como por exemplo, a utilização de vídeo que houvesse apenas áudio. O professor precisou buscar conhecimento sobre a educação de surdos e estratégias para o seu ensino. Neste momento o docente

6 Aqueles educadores que, de acordo com o autor, formam cidadãos críticos, livres e conscientes.

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apresentou mais uma virtude defendida por Paulo Freire (2012) para o educador progressista: a amorosidade. Que também foi citada por Edgar Morin (2003) quando falava sobre a docência:

Exige algo que não é mencionado em nenhum manual, mas que Platão já havia acu-sado como condição indispensável a todo ensino: eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos. O eros permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição ligada à doação. É isso que antes de tudo mais, pode despertar o desejo, o prazer e o amor no aluno e no estudante. Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para o professor; e de tédio, para os alunos. (MORIN, 2003, p. 101-102).

Sem amor à função que exerce, nenhum profissional, e muito menos o educador, deve continuar trabalhando, especialmente quando se trata do trabalho direto com alunos com al-gum tipo de deficiência. Dessa maneira, sobre a prática educativa, Paulo Freire (2012) coloca que:

[...] é algo muito sério. Tratamos com gente, com crianças, adolescentes ou adultos. Participamos de sua formação. Ajudamo-los ou os prejudicamos nesta busca. Esta-mos intricadamente conectados com eles nesse processo de conhecimento. Podemos contribuir com seu fracasso com nossa incompetência, má preparação ou irrespon-sabilidade. Porém também podemos contribuir com nossa responsabilidade, com nossa preparação científica e nosso gosto pelo ensino, com nossa seriedade e nosso exemplo de luta contra as injustiças, assim os educandos vão se transformando em presenças notáveis no mundo (FREIRE, 2012, p. 67-68). [Tradução livre].

A docência exige muita dedicação, pois cada contexto é um novo desafio. Por isso é tão importante o educador ter valentia, outra qualidade defendida por Freire (2012), “a valentia de lutar ao lado da valentia de amar p. 77” [tradução livre]. Principalmente quando lecionamos nas escolas e universidades públicas brasileiras, em que, na maioria dos casos, falta material, estrutura física, formação continuada, organização e a grande parte dos alunos vivem com dificuldades financeiras, o que dificulta sua permanência na escola ou na universidade.

Formação e prática docente Já foi mencionado neste trabalho que a Lei nº 10.436 exige que todas as licenciaturas, cursos de formação de professores, em nível médio e superior, além do curso de Fonoaudiologia te-nham a disciplina de Libras como parte de seu currículo obrigatório. O decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a lei supracitada, determina que todos os demais cursos de educação superior e educação profissional ofertem a Libras como disciplina curricular op-tativa a partir de um ano da publicação do decreto.

No caso do professor observado para o desenvolvimento desta pesquisa, apesar de jo-vem, este não teve a Libras no currículo de seu curso de graduação. Ainda assim, inquieta-nos pensar se o docente realmente estaria preparado para ministrar aulas para aquele aluno surdo caso tivesse realizado a disciplina de Libras. A discussão que existe é se 40h/a da disciplina de Libras são suficientes para garantir ao futuro professor fluência na língua de sinais. O decreto não deixa clara a forma como a disciplina deve ser oferecida, bem como as normas, o conteúdo e a carga horária. Dessa forma, a Libras é ofertada da maneira como as universidades e facul-dades acreditam ser a mais eficiente.

Apesar do problema em relação à maneira como é ofertada a disciplina de Libras, ter uma lei que defenda a presença deste componente curricular nos cursos de graduação é um importante avanço para a inclusão e grande motivação para que os futuros professores bus-quem um maior contato com a comunidade surda e talvez alcancem a fluência na língua. O

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mais importante é o contato com o falante da língua, como qualquer outro idioma, seu desen-volvimento é estimulado com a prática. Assim como acontece com a própria docência. Nenhum professor sai da universidade pronto, acabado, concluído para dar aulas, ele possui os conhecimentos teóricos, mas apenas associando-os a prática é que aquele se constitui de fato como um educador. O cotidiano em sala de aula proporciona novos saberes aos profes-sores.

Tardif (2010, p. 36) define o saber docente “como um saber plural, formado pelo amál-gama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. O autor aponta os saberes disciplinares, curricula-res e da formação profissional como aqueles que o professor não produz nem controla, pois estes foram previamente determinados e impostos por uma elite do conhecimento.

Os saberes das disciplinas e os saberes curriculares que os professores possuem e transmitem não são o saber dos professores nem o saber docente. De fato o corpo docente não é responsável pela definição nem pela seleção dos saberes que a escola e a universidade transmitem. Ele não controla diretamente, e nem mesmo indireta-mente, o processo de definição e de seleção dos saberes sociais que são transformados em saberes escolares (disciplinares e curriculares) através das cate-gorias, programas, matérias, e disciplinas que a instituição escolar gera e impõe como modelo da cultura erudita. Nesse sentido, os saberes disciplinares e curricula-res que os professores transmitem situam-se numa posição de exterioridade em relação à prática docente: eles aparecem como produtos que já se encontram consi-deravelmente determinados em sua forma e conteúdo, produtos oriundos da tradição cultural e dos grupos produtores de saberes sociais e incorporados à prática docente através das disciplinas, programas escolares, matérias e conteúdos a serem transmi-tidos. (TARDIF, 2002, p. 40).

Se os professores não podem controlar ou definir os saberes oriundos da formação profissional, mas simplesmente cumpri-los para concluírem sua formação acadêmica é com o saber experiencial que eles são “donos de si” e podem selecionar o que querem ou não para sua atuação em sala de aula. Através do cotidiano de sua função, o corpo docente desenvolve meios e artimanhas para enfrentar e driblar os desafios de uma sala de aula heterogênea e diversificada. Cada turma, ainda que pertencente ao mesmo grau escolar possui suas especi-ficidades e cabe ao professor perceber quais as melhores maneiras para trabalhar com aqueles alunos. Por isso, os saberes experienciais são tão importantes para o docente.

Pode-se chamar de saberes experienciais o conjunto de saberes atualizados, adquiri-dos e necessários no âmbito da prática da profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem de currículos. Estes saberes não se encontram siste-matizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de represen-tações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação. (TARDIF, 2002, p. 48).

É através das experiências do cotidiano em sala de aula e da troca entre seus pares, que os professores, principalmente os que trabalham com alunos com deficiência, acabam su-prindo as lacunas existentes em sua formação acadêmica, especialmente aqueles que estão dando início a sua carreira como educador. “Para os professores de profissão, a experiência de trabalho parece ser a fonte privilegiada de seu saber-ensinar” (TARDIF, 2002, p. 61).

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Paulo Freire (2015) defende que a parceria entre teoria e prática, a avaliação da própria prática educativa e a formação continuada são os principais meios para melhorar sua função como educador. É importante refletir se as metodologias e estratégias utilizadas estão alcan-çando seus objetivos. Pois “na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática p.40”. Fica claro que para constituir-se um bom pro-fessor é necessária a associação de todos os elementos citados, desde uma formação de qualidade, a experiência em sala de aula e, principalmente, o amor pela função que exerce. Sem eles a docência não será nada além do que a transmissão de conhecimentos.

Desafios e estratégias O professor participante da pesquisa assumiu todas as qualidades do educador progressista e iniciou estratégias para potencializar o processo de ensino e aprendizagem do aluno surdo. Seus principais desafios era a comunicação entre ele e o aluno, tornar as aulas mais acessíveis, motivar a interação entre surdo e ouvintes, e pensar em como avaliar o surdo. Para isso, além do auxílio do Núcleo de Acessibilidade da universidade, o docente pediu a esta pesquisadora sugestões de como ajudar seu aluno surdo, que apresentamos nos quadros abaixo:

SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO

• Solicitar ao aluno surdo que se sente em uma carteira onde ele possa ter uma boa visibilidade da intérprete, do quadro, da projeção e do professor.

• Quanto mais imagens forem utilizadas durante as explicações, melhor para a compreensão do surdo. Lembre-se que a primeira língua dele é visual.

• Ter o contato do aluno para o envio do material das aulas e até mesmo algo extra com um vocabulário mais simples que facilitará a compreensão do conteúdo.

• Cooperação entre professor e intérprete; ter o contato do intérprete é ne-cessário para o envio do material das aulas com antecedência, possibilitando o estudo de sinais específicos da área. O intérprete pode inclusive participar do planejamento da aula.

• Solicitar ao surdo as mesmas atividades que pedir aos demais alunos. A intérprete o auxiliará na questão da comunicação. O aluno surdo é total-mente capaz de pesquisar e apresentar em Libras enquanto a intérprete faz a tradução para o português.

• Se utilizar a lousa ou slides, organize os tópicos de maneira direta e resu-mida. O melhor é escrever tudo, dá um tempo para o aluno copiar e depois explicar. Afinal o estudante surdo precisa prestar atenção na intérprete.

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SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS PARA A SOCIALIZAÇÃO

• Saiba como o aluno surdo prefere se comunicar, se apenas através da lín-gua de sinais, se é oralizado e qual o nível de domínio em relação ao Português escrito.

• Aprenda e utilize a Libras. Assim será possível usar alguns sinais em sala. Isso não gera constrangimento no surdo, pois você está utilizando os si-nais com todos os alunos. O que promove a aproximação entre ouvintes e surdo e consequentemente a inclusão.

• Perceba quais colegas se aproximam do aluno surdo e tente motivar par-cerias entre eles, pois estes podem se tornar bons colaboradores. Inclusive aprendendo a Libras.

• Com o auxílio da intérprete, reserve breves minutos da sua aula para apresentar alguns sinais relacionados à temática estudada.

SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS PARA A AVALIAÇÃO

• O aluno com deficiência tem direito a prova adaptada. E caso ele não te-nha um bom domínio do português escrito, sugiro que utiliza também provas sinalizadas. O conteúdo será o mesmo você apenas utilizará uma avaliação diferenciada.

• Mesmo com dificuldades com o português escrito é importante que o aluno tenha contato com textos para que possa se familiarizar com os termos da área. Estimule isso.

Vale a pena ressaltar que não existe um passo a posso que deve ser seguido para al-

cançará o êxito desejado. Mas estas estratégias podem ser caminhos que mostraram outras possibilidades que venham a somar para uma maior inclusão do aluno surdo. O mais impor-tante é que o professor não encarre o fato de ter um estudante surdo em sala de aula como um fardo, dessa maneira, a prática pedagógica certamente não terá um bom resultado. O medo e a insegurança que surgem no educador inexperiente com este tipo de contexto é algo natu-ral. O que não seria normal e ético seria negar ao aluno o direito ao conhecimento. Fingir ensinar, enquanto o aluno finge aprender.

Considerações Finais Durante o período de observação das aulas ficou claro que o maior entrave para o melhor desenvolvimento das aulas para o aluno surdo foi a pouca presença da Língua de Sinais em sala de aula. Apesar da existência da intérprete e do esforço do professor da disciplina para tornar suas aulas acessíveis ainda é insuficiente. A língua de sinais é a língua natural dos surdos e deve ser divulgada e promovida dentro da comunidade acadêmica. O ensino bilíngue é a melhor maneira dos surdos aprende-rem. O surdo se sentirá mais incluído e valorizado se sua língua estiver inserida em todos os espaços da universidade. Os técnicos, os professores, colegas e funcionários em geral devem

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aprender Libras. As pesquisas sobre a educação de surdos e sua inclusão devem ser estimula-das e materiais didáticos de todas as áreas em Libras devem ser elaborados e disponibilizados aos surdos. Além disso, os trabalhos de final de curso, como monografias e artigos, podem ser elaborados e apresentados em Libras. Isso já acontece em algumas universidades federais. O que presenciamos foi o predomínio da língua oral e do Português.

O problema tem suas raízes logo na educação básica, quando os educandos, surdos e ouvintes, já deveriam ter acesso à Libras. No entanto, o que acontece é que muitos estudantes terminam o ensino médio sem saberem da existência da Libras. E quando estes alunos chegam às universidades, cobram aos professores metodologias para um ensino de qualidade que ga-rantam sua inclusão.

Os professores não são mágicos, eles precisam da colaboração e do envolvimento de toda a comunidade acadêmica, de formação inicial e continuada de qualidade, além de todas aquelas qualidades defendidas por Paulo Freire. Os surdos precisam de uma educação que de fato respeitem suas especificidades e necessidades educacionais. As barreiras atitudinais5 ainda não foram superadas, pois as leis existem, porém não são postas em prática com exce-lência. A universidade garante o acesso dos alunos surdos aos cursos, mas, não viabiliza sua permanência quando não garante o suporte adequado para sua educação. O que dificulta o trabalho docente e reduz a qualidade do ensino do aluno com surdez.

É hora de colocar em prática, de forma eficaz e de qualidade, o que a lei determina para a educação das pessoas com deficiência. É necessária uma maior qualificação dos professores e a superação de problemas antigos para a devida educação da pessoa com deficiência. O do-cente é instrumento fundamental neste processo, pois sem o interesse e envolvimento deste profissional não existirá inclusão e muito menos educação. A sociedade precisa entender que a inclusão é algo que deve ser realizado de maneira coletiva e que não é responsabilidade apenas da família ou dos professores das pessoas com surdez. Todos, sociedade civil e Estado, devem se unir para garantir a efetivação das leis que garantem o acesso e a permanência do surdo a uma educação com qualidade.

Referências BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Brasília, 24 de abril de 2002; 181º da Indepen-dência e 114º da República.

BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. (LI-BRAS). Brasília, 2005.

FREIRE, Paulo. Cartas a quien pretende enseñar. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

GESSER, Audrei. Libras? Que língua é essa? crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

5 De acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência são atitudes ou comportamentos que impeçam ou preju-diquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.

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LARAIA. Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Ja-neiro: Bertrand Brasil, 2003.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional / Maurice Tardif. – Petró-polis, RJ: Vozes, 2002.

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E ENSINO DE GEOGRAFIA NA AMAZÔNIA BELTERRENSE Desafios e perspectivas

Francilene Sales da Conceição1 [email protected]

Resumo

Este artigo objetiva contribuir com discussões teórico-metodológicas no ensino de geografia para alunos do en-sino fundamental II de uma Escola do Campo do município de Belterra/PA e propor metodologias de ensino para as turmas do 6º ano na escola municipal Professora Vitalina Motta. A escola está localizada no Km 37 da BR-163, comunidade do Trevo, município de Belterra, oeste do Pará, Amazônia brasileira. Foram realizadas revisão teó-rica-conceitual e pesquisas documentais para compreender a história da Educação do Campo e ensino de geografia e o trabalho de campo, observações diretas nas aulas de geografia, entrevistas não estruturadas e con-versas informais aplicadas a professores, alunos, servidores da escola e camponeses/camponesas. Pensar em novas metodologias de ensino para as Escolas do Campo contribui com a formação para cidadania dos povos do campo e reconhece o processo histórico de lutas sociais e Re-existências territoriais camponesas. Palavras-chave: Geografia. Educação do Campo. Metodologia. Belterra/PA.

Abstract

This article aims to contribute with theoretical and methodological discussions in the teaching of geography to elementary school students from a Escola do Campo in the municipality of Belterra / PA and to propose teaching methodologies for the 6th grade classes at the municipal school Professora Vitalina Motta. The school is located at Km 37 of the BR-163, community of Trevo, municipality of Belterra, western of Pará, brazilian Amazon. The-oretical-conceptual review and documentary research were carried out to understand the history of Rural Education and geography teaching and fieldwork, direct observations in geography classes, unstructured inter-views and informal conversations applied to teachers, students, school staff and peasants. Thinking about new teaching methodologies for the Rural Schools contributes to the formation for citizenship of the countryside peoples and recognizes the historical process of social struggles and peasant territorial Re-existences. Keywords: Geography. Rural Education. Methodology. Belterra/PA.

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Introdução A Educação do Campo surge como uma estratégia de valorização do modo de vida do campe-sinato e que tem a educação como um dos instrumentos de sua luta para a defesa de seus territórios e de sua identidade sócio-espacial, em que o modo de produção capitalista nega, desintegra, marginaliza, criminaliza e subalterniza os povos do campo. Deste modo, conceber o território como algo produzido pelos homens e por atores sociais a partir do processo rela-cional, materializa-se relações de poder que são tecidas na sua existência (RAFFESTIN, 1993).

A escola como uma instituição essencial na sociedade, tem um importante papel em confrontar o conhecimento científico com conhecimento cotidiano. É no campo que essa

1 Licenciada em Geografia (UFPA), Mestra em Geografia (PPGG/UNIR), Doutoranda em Geografia (PPGG/UNIR), Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia (GTGA/UNIR) e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Dinâmicas Territoriais na Amazônia (GPDAM/UFOPA/CNPq).

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interação entre os diferentes saberes deve ser levada em consideração. A função da escola é formar cidadãos conscientes e promotores da autorreflexão. Por isso, compreender a geografia a partir da prática cotidiana dos estudantes-camponeses/camponesas estimula a pensar e de-senvolver o senso crítico. A Escola do Campo além de ser o espaço de construção sistemática do saber historicamente acumulado pela sociedade é um território de lutas e resistências, como uma estratégia de recriação social, espacial e territorial.

Nesse contexto, o ensino de geografia nas Escolas do Campo na Amazônia é marcado por alguns entraves, devendo ser problematizados e contextualizados. Pensar em uma didática e metodologias diferenciadas para a geografia escolar em uma Escola do Campo no município de Belterra no oeste paraense é a maneira de amenizar com esse dilema negacionista e de uma educação hegemônica-colonial que exclui o contexto histórico dos povos e comunidades tra-dicionais tapajônicas (camponeses, indígenas, ribeirinhos e extrativistas), não reconhecendo suas origens, lutas sociais, resistências territoriais e identidades locais.

Figura 1 – Mapa de localização da Escola Professora Vitalina Motta, Belterra-PA. Elaboração: GOLOBOVANTE, Rainer F. S., 2016. Bases cartográficas: Limites, sedes municipais e comunidades (IBGE); Massa d’água e vias de acesso (IMAZON); Área urbana de Belterra (SEMAT Belterra); Unidades de Conservação (ICMBio) e Terras indígenas (FUNAI).

O município de Belterra é caracterizado por um mosaico territorial de comunidades rurais camponesas que vivem e trabalham nas territorialidades e espacialidades das Terras-Águas-Florestas, na qual abrangem o rio Tapajós e a rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá). Nesse sentido, o recorte espacial analisado é a escola municipal Professora Vitalina Motta, pois é uma Escola do Campo que atende aos estudantes-camponeses/camponesas que vivem à mar-gem e nas estradas transversais da rodovia BR-163.

A escola está localizada no Km 37 da BR-163, na comunidade do Trevo, município de Belterra, região oeste do Pará, Amazônia brasileira. Esta Escola do Campo possui papel fun-damental na formação escolar e cidadã dos estudantes-camponeses/camponesas, pois assegura o direito dos povos do campo, sem que estes precisem sair do campo para estudar.

Este artigo objetiva contribuir com discussões teórico-metodológicas no ensino de ge-ografia para alunos do ensino fundamental II de uma Escola do Campo do município de

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Belterra e propor metodologias de ensino, fundamentalmente para as turmas do 6º ano na escola municipal Professora Vitalina Motta.

A metodologia utilizada foi uma revisão teórica-conceitual sobre a história da Educa-ção do Campo e sua relação com o ensino de geografia, Caldart (2003); Arroyo, Caldart, Molina (2009); Secad/Mec (2007); PCNs (1998); Cavalcanti (1998); Santos (1991, 2001). Foram realiza-das pesquisas documentais para a compreensão da Escola do Campo em estudo. O trabalho de campo foi necessário, com observações diretas nas aulas de geografia, com o uso da técnica de entrevistas não estruturadas e conversas informais aplicadas a professores, alunos, demais servidores da escola e trabalhadores camponeses e trabalhadoras camponesas das comunida-des do campo do município de Belterra, cuja finalidade é compreender a geografia agrária e sua relação com Educação do Campo e geografia escolar.

A contextualização da Educação do Campo mostra que o docente ao lecionar a disci-plina geografia estimula o aluno a desenvolver uma leitura espacial e territorial de onde habita o campesinato e contribui fundamentalmente com o processo de ensino e aprendizagem. Ao trabalhar os conteúdos geográficos e relacionar com espaço de vivência dos estudantes cam-poneses/camponesas da escola Municipal Professora Vitalina Motta para alunos do 6º ano do ensino fundamental II, significa levar em consideração a territorialização da luta e Re-existên-cia camponesa no espaço escolar belterrense tapajônico.

Ao pensar em uma didática e propostas metodológicas diferenciadas para o ensino de geografia em uma Escola do Campo no município de Belterra tapajônico, estado do Pará, é uma maneira de contribuir substantivamente com a formação social e humanitária dos estu-dantes filhos de trabalhadores e trabalhadoras do campo. É a forma de reconhecer as identidades territoriais, modos de vidas e levar em consideração o processo histórico de uma classe social camponesa que há muito tempo luta, resiste e persiste para garantir sua existên-cia frente às opressões de um sistema educacional hegemônico desigual e combinado.

História da Educação do campo e ensino de Geografia: um debate teórico-metodológico Por Escola do Campo, entende-se um movimento sociocultural e político de humanização dos grupos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, um movimento organizado de reafirmação simbólico-identitária dos povos do campo e que reivindicam o direito à educação, sendo su-jeitos construtores de sua própria história (CALDART, 2003).

Para compreender a Educação do Campo é necessário primeiramente entender a geo-grafia agrária e territorial a partir de sua lógica excludente e contraditória que se cristalizam no campo brasileiro. É preciso recorrer ao espaço agrário para entender a dinâmica territorial, pois classes sociais que trabalham e vivem do campo estão em movimento, reproduzindo no contexto escolar as lutas sociais e formas de Re-existências territoriais.

As pluralidades de conhecimentos e saberes fazem parte das territorialidades campo-nesas e devem ser aproveitadas e valorizadas em sala de aula. A realidade do espaço agrário vivenciado e experienciado pelo campesinato não está dissociado da escola, mas fazem parte de uma totalidade de tamanha complexidade sócio-espacial, na qual são aqui designados como saber escolar e saber do estudante-camponês/camponesa, uma forma de compartilhamento de experiência e de aprendizado e que valoriza a identidade dos indivíduos. O campo é aqui en-tendido como:

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um lugar de vida, onde as pessoas podem morar, trabalhar, estudar com dignidade de quem tem o seu lugar, a sua identidade cultural. O campo não é só o lugar da produção agropecuária e agroindustrial, do latifúndio e da grilagem de terras. O campo é espaço e território dos camponeses e dos quilombolas. É no campo que estão as florestas, onde vivem as diversas nações indígenas. Por tudo isso, o campo é lugar de vida e sobretudo de educação. (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2009, p. 137).

Discutir a Educação do Campo em uma perspectiva do cotidiano do aluno no ambiente escolar é uma forma de valorizar o território cultural e identidade do estudante-campo-nês/camponesa e instigar o aluno construir conceitos e alcançar o processo de ensino/aprendizagem.

O campo é visto pejorativamente como um lugar de atraso e decadência e que seus sujeitos são concebidos como “ignorantes” e desconhecedores de sua realidade. De fato, essa abordagem para o campesinato não condiz de forma verídica com a sua história e seu modo de vida. Isso se refere a uma desvalorização e uma marginalização dos camponeses enquanto classe social. Porquanto, a dicotomia na Geografia entre campo x cidade e rural x urbano sem-pre desfavoreceu o camponês/camponesa, sendo este visto como uma classe subalterna.

Outrora, as políticas públicas para a educação fora das cidades se restringiam somente à localização geográfica das escolas e a baixa densidade demográfica nas áreas rurais. As ne-cessidades de percorrer grandes distâncias entre casa e a escola e o baixíssimo número de alunos implicavam diretamente nos gastos de recursos para o ensino rural (SECAD/MEC, 2007).

Por volta do ano de 1932, foi lançado o Manifesto da Educação Nova2, que buscava diagnosticar e sugerir rumos às políticas públicas de educação e preconizava a organização uma escola democrática, proporcionando oportunidades a todos, sobre a base de uma cultura geral comum. Dessa forma, houve a separação entre educação das elites e educação das classes populares. Prontamente, na década de 1960, com a finalidade de atender os interesses da elite brasileira, a educação rural foi tomada pelo Estado como uma estratégia de contenção do fluxo migratório do campo para a cidade (SECAD/MEC, 2007).

A aplicabilidade de uma educação para as Escolas do Campo estava voltada para outro contexto, cujo termo era denominado de “Educação Rural”. Todavia, esse tipo de educação era proveniente do comando do Estado, apresentando uma política alfabetizadora para as pessoas, uma forma de ofertar para o setor industrial das cidades, mão-de-obra mais rapidamente, edu-cação está chamada de instrumental, o que não colaborava com a ascensão social dos moradores das áreas rurais.

2 A Escola Nova é um dos nomes dados a um movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, na primeira metade do século XX. Os primeiros grandes inspiradores do movimento foram o escritor Jean-Jacques Rousseau e os pedagogos Heinrich Pestalozzi e Freidrich Fröebel. No Brasil, as ideias da Escola Nova foram introduzidas já em 1882 por Rui Barbosa e ganharam especial força com a divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, quando foi apresentada uma das ideias estruturais do movimento: as escolas deviam deixar de ser meros locais de transmissão de conhecimentos e tornar-se pequenas comunidades, onde houvesse maior preocupação em entender e adaptar-se a cada criança do que em encaixar todas no mesmo molde. O documento foi assinado por: Fernando de Azevedo, Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Doria, Anísio Spinola Teixeira, M. Bergstrom Lourenço Filho, Roquette Pinto, J. G. Frota Pessoa, Julio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Jr., J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira, Hermes Lima, Attilio Vivacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto, Garcia de Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes.

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A implementação dessas escolas como não levou em consideração as reais necessida-des de suas populações. Entrou em decadência, surgindo daí uma nova proposta, isto é, outra forma de educação que leve em consideração o espaço vivido dos povos do campo, a sua cul-tura, os saberes, as lutas sociais e as estratégias de Re-existências do campesinato. Essa proposta de Educação do Campo estimulou o pensamento crítico dos alunos e que estes como sujeitos atuantes no espaço e conhecedores de seu território, pudessem se reconhecer como sujeitos pertencentes ao lugar e que estão em movimentos de lutas (CALDART, 2003).

No contexto da Articulação Nacional para uma Educação Básica do Campo foram re-alizadas duas Conferências Nacionais, uma em 1998 e outra em 2004, objetivando discutir uma Educação do campo que leve em consideração as territorialidades e espacialidades campone-sas nos conteúdos escolares.

Em 1998, foi criada a “Articulação Nacional por uma Educação do Campo”, entidade supra-organizacional que passou a promover e gerir as ações conjuntas pela escola-rização dos povos do campo em nível nacional. Dentre as conquistas alcançadas por essa Articulação estão a realização de duas Conferências Nacionais por uma Educa-ção Básica do Campo - em 1998 e 2004, a instituição pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2002; e a instituição do Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT), em 2003. A criação, em 2004, no âmbito do Ministério da Educação, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, à qual está vin-culada a Coordenação-Geral de Educação do Campo, significa a inclusão na estrutura estatal federal de uma instância responsável, especificamente, pelo atendi-mento dessa demanda a partir do reconhecimento de suas necessidades e singularidades. (SECAD/MEC, 2007, p. 12).

Incluir no currículo escolar a questão agrária e o modo de vida dos povos do campo são necessários para o fortalecimento dos direitos humanos e territoriais para os povos do campo e promover a materialização de resistências no território camponês/camponesa. A Educação do Campo é a valorização do modo de vida do campesinato, a forma de libertação e autonomia de práticas didático-pedagógicas, no que se refere aos valores espaciais, territoriais e culturais (identitário-simbólico), da sua relação de viver, experienciar, trabalhar e pertencer na terra/território. Nesse aspecto, pode dizer que:

A educação do campo nasceu dos pensamentos, desejos e interesses dos sujeitos do campo, que nas últimas décadas intensificaram suas lutas, espacializando-se e terri-torializando-se, formando territórios concretos imateriais, constituindo comunidades e políticas, determinando seus destinos na construção de suas ideolo-gias, suas visões de mundo. (SOUSA, 2006, p. 16).

Essa forma de educação apresenta uma visão diferenciada, porque que a organização social do campesinato possui seu modo de vida, cultura, práticas espaciais e métodos distintos daqueles que residem na zona urbana e que o sujeitos lutam por direito à cidadania e por uma educação digna que leva em consideração seus conhecimentos e interesses para sua perma-nência no campo. Valorizar o saber do camponês/camponesa significa para ele reconhecer sua identidade e seus pontos de vista, espacialmente e territorialmente.

Estudar o lugar para compreender o mundo significa para o aluno a possibilidade de trilhar no caminho de construir sua identidade e reconhecer o seu pertencimento (STRAFO-RINI, 2004). Isso deve ser valorizado e trabalhado nas Escolas do Campo, sendo relevante para a discussão de uma educação que esteja pautada no reconhecimento das identidades de seus sujeitos e, assim contribuir com os processos educativos.

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Para entender a Educação do Campo é necessário compreender as dinâmicas agrárias e territoriais a partir da concepção dos seus estudantes camponeses/camponesas, pois “a es-cola não move o campo, mas o campo não se move sem a escola.” (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2009, p.107). A escola e campo são complementares, uma depende da outra para difusão do conhecimento e reprodução de territorialidades camponesas.

Esses tipos de conhecimentos diversificados e interativos devem fazer partes das aulas nas Escolas do Campo e são aqui designados como saber escolar e saber do estudante campo-nês/camponesa, uma forma de compartilhamento de experiências ensino e aprendizagem múltiplas que valorize a identidade territorial dos indivíduos e busca formular práticas didá-tico-pedagógicas com a realidade da classe social camponesa.

O campo é percebido como lócus onde se vive e trabalha. Conforme Santos (2001, p. 114), “ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro”. O ambiente do campo é o local de existência da organização social do campesinato que se inventa e reinventa espacialmente e territorialmente e resiste para manter seus padrões culturais, sociais e políticos.

A geografia agrária é indissociável de Educação do Campo, e consequentemente, da geografia escolar. A luta pela terra e território deve fazer parte dos conteúdos curriculares e contextos das Escolas do Campo do espaço agrário brasileiro. O avanço do capitalismo no campo tem ameaçado a existência dos povos do campo, pois muitas escolas vêm sendo fecha-das para dá lugar a territorialização do capital, com predominância do latifúndio com uma ampla concentração fundiária e a manutenção da propriedade privada da terra.

Deve-se pensar uma Educação do/no/para o Campo de forma libertária, autônoma, equitativa e de qualidade. Precisa pensar em uma Pedagogia Camponesa da Alternância to-mando como ponto de partida os anseios e necessidades dos próprios sujeitos do campo (Escola do Campo) e não apenas uma educação imposta forçadamente e com metodologias e didáticas hegemônicas que é imposta de cima para baixo (Escola no Campo), configurando-se como educação carregada pela colonialidade e de uma supremacia hegemonizada que preco-niza a “superioridade” e a “modernidade”.

Precisa-se pensar em pedagogias descoloniais, que deva partir da realidade dos pró-prios sujeitos e sujeitas do campo, devendo pensar e aplicar novas metodologias de ensino em sala de aula que considere a territorialização camponesa. Entretanto, a diferenciação entre escolas do campo e escolas no campo de modo que se possa compreender o processo educa-cional que circunda os estudantes, é uma totalidade sócio-espacial complexa.

[...] as diferenças entre escola no campo e escola do campo são pelo menos duas: enquanto escola no campo representa um modelo pedagógico ligado a uma tradição ruralista de dominação, a escola do campo representa uma proposta de construção de uma pedagogia, tomando como referências as diferentes experiências dos seus sujeitos: os povos do campo. (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2009, p. 142).

A Escola do Campo é um modelo de escola que luta por uma pedagogia do campesinato e que esta realidade possa dialogar com o cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e fazer parte da estrutura curricular, resultado de uma forma de resistência frente ao avanço do modo de produção capitalista. Por outro lado, a Escola no Campo revela um modelo pedagógico de apropriação, controle e dominação territorial de escola que aprisiona e oprime

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estudantes camponeses/camponesas e limita práticas didático-pedagógicas dos professores que atuam no campo.

O espaço agrário é marcado por antagonismos em suas múltiplas dimensões e escalas espaciais. Por isso, deseja a construção de uma escola que vislumbra uma realidade endógena do campesinato e não uma pedagogia exógena Des-libertadora, Des-reguladora, Des-territo-rializadora e Des-campenisadora. Considerar os saberes dos povos do campo em suas diferentes experiências e a representação de uma proposta a partir da construção de uma pe-dagogia nos remete a ter uma Escola do Campo que está voltada para a identificação e respeito do espaço de vivência, mantendo vivos os valores socioculturais camponeses.

Educação do campo e geografia escolar: práticas didático-pedagógicas para escola Professora Vitalina Motta, Belterra/PA A geografia como uma ciência que estuda a relação entre ser humano/natureza e sociedade/es-paço, necessita valorizar os conhecimentos e saberes cotidianos trazidos pelos estudantes-camponeses/camponesas para sala de aula. Cabe aos alunos compreender os conceitos e cate-gorias geográficas e o professor mediar os processos educativos, estimulando os discentes a construírem conceitos próprios, criticidade, questionar e indagar sua realidade.

O ensino de geografia como tem trabalhado em seus estudos a geografia agrária e te-mas correlatos, não pode deixar de levar em consideração os conteúdos geográficos desvinculado da Educação do Campo. Relacionar temas da geografia escolar com o espaço vivido das lutas sociais e resistências territoriais é uma alternativa necessária de organização e mobilização dos movimentos e ativismos sociais camponeses dotados de direitos. Diante dessa premissa, pesquisar como o ensino de geografia vem sendo desenvolvido em uma Escola do Campo na Amazônia do oeste paraense corresponde uma estratégia pedagógica de resis-tência frente a uma educação hegemônica de cunho colonial.

Figura 2 - Mapa de localização da comunidade do Trevo, município de Belterra/PA. Elaboração: GOLOBOVANTE, Rainer F. S., 2016. Bases cartográficas: Limites, sedes municipais e comunidades (IBGE); Massa d’água e vias de acesso (IMAZON); Área urbana de Belterra (SEMAT Belterra); Unidades de Conservação (ICMBio), Terras indígenas (FUNAI), IBAMA.

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A área analisada é a escola Municipal Professora Vitalina Motta, situada no Km 37 na Rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), comunidade do Trevo no município de Belterra, oeste do estado do Pará, região Baixo Amazonas.

TURMAS TURNO DISCIPLINAS

Atendimento Educacio-nal Especializado (AEE)

Manhã e tarde

-

Ensino Fundamental de nove anos – 1º Ano

Manhã e tarde

Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Estudos Sociais, Estudos Sociais ou Sociologia, Educação Fí-sica, Língua Portuguesa, Ensino de História e Geografia, Ciências e Matemática

Ensino Fundamental de nove anos – 2º Ano Tarde

Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Estudos Sociais, Estudos Sociais ou Sociologia e Educação Física, Língua Portuguesa, Ensino de História e Ge-ografia, Ciências e Matemática

Ensino Fundamental de nove anos – 3º Ano Manhã

Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Estudos Sociais, Estudos Sociais ou Sociologia e Educação Física, Língua Portuguesa, Ensino de História e Ge-ografia, Ciências e Matemática

Ensino Fundamental de nove anos – 4º Ano Tarde

Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Estudos Sociais, Estudos Sociais ou Sociologia e Educação Física, Língua Portuguesa, Ensino de História e Ge-ografia, Ciências e Matemática

Ensino Fundamental de nove anos – 5º Ano

Manhã e tarde

Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Estudos Sociais, Estudos Sociais ou Sociologia e Educação Física, Língua Portuguesa, Ensino de História e Ge-ografia, Ciências e Matemática

Ensino Fundamental de nove anos – 6º Ano

Manhã e tarde

Inglês, Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Educação Física, Língua Portuguesa, História, Geo-grafia, Ciências Físicas e Biológicas, Matemática, Estudos Amazônicos e História de Belterra

Ensino Fundamental de nove anos – 7º Ano

Manhã e tarde

Inglês, Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Educação Física, Língua Portuguesa, História, Geo-grafia, Ciências Físicas e Biológicas, Matemática, Estudos Amazônicos e História de Belterra

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TURMAS TURNO DISCIPLINAS

Ensino Fundamental de nove anos – 8º Ano Manhã

Inglês, Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Educação Física, Língua Portuguesa, História, Geo-grafia, Ciências Físicas e Biológicas, Matemática, Estudos Amazônicos e História de Belterra

Ensino Fundamental de nove anos – 9º Ano

Tarde

Inglês, Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Ensino Religioso, Educação Física, Língua Portuguesa, História, Geo-grafia, Ciências Físicas e Biológicas, Matemática, Estudos Amazônicos e História de Belterra

Educação de Jovens e Adultos (EJA) Ensino Fundamental Anos Finais

Tarde

Inglês, Arte (Educação Artística, Teatro, Dança, Música, Artes Plásticas e outras), Educação Física, Língua Portuguesa, História, Geografia, Ciências Fí-sicas e Biológicas, Matemática, Estudos Amazônicos e História de Belterra

Quadro 1 - Organização do ensino da Escola Professora Vitalina Mott. Organizadora: Francilene Sales da Conceição (2020). Fonte: Censo Escolar, 2019. Disponível em www.escol.as/13519-professora-vitalina-motta.

Ao analisar os conteúdos geográficos (espaço, lugar, paisagem, território, região, redes, escala, sociedade e natureza) trabalhado nas turmas do 6º ano com a realidade vivenciada pelos estudantes camponeses/camponesas é a forma de estimular que estes alunos percebam as transformações socioespaciais e como o espaço é socialmente produzido a partir das ativi-dades desenvolvidas no espaço agrário amazônico, cujas territorialidades estão fundamentadas nas Terras-Águas-Florestas.

A Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Professora Vitalina Motta (Qua-dro 01), possui um importante papel na região belterrense para a formação de estudantes camponeses/camponesas. É uma Escola do Campo polo que possui onze escolas anexas, cuja estrutura de organização do ensino, principalmente no que tange as disciplinas do currículo, devem abranger as especificidades da classe social camponesa belterrense. Os alunos da escola são filhos de trabalhadores e trabalhadoras do campo que tem a agricultura e o extrativismo como práticas espaciais de reprodução social da vida e do trabalho familiar, garantidora da soberania alimentar e autonomia da produção diversificada de policulturas, com práticas de roças e quintais produtivos.

A construção do prédio escolar surgiu para atender as necessidades de grande parte das famílias da BR-163 e comunidades no seu entorno. O campesinato se organizou mobilizou e lutou para garantir direitos humanos e territoriais da Educação do Campo na região do planalto belterrense tapajônico. Seu funcionamento atende turnos manhã e tarde, dividida em Atendimento Educacional Especializado (AEE), Educação Fundamental I (1º ano a 5º ano), Ensino Fundamental II (6º ano a 9º ano) e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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CATEGORIAS CARACTERIZAÇÃO

1) Infraestrutura

Alimentação escolar para os alunos, Energia da rede pública, Lixo destinado à queima, Água filtrada, Fossa, Acesso à inter-net, Água de poço artesiano, Lixo destinado à coleta periódica, Banda larga

2) Instalação de ensino

9 salas de aulas, Quadra de esportes coberta, Refeitório, Sala de professores, Cozinha Despensa, Sala de Recursos multi-funcionais para Atendimento Educacional Especializado (AEE) e Sala de Secretaria

3) Equipamentos TV, Projeto multimídia (data show), DVD e Impressora

Quadro 2 – Organização do espaço físico da Escola Professora Vitalina Motta. Organizadora: Francilene Sales da Conceição (2020). Fonte: Censo Escolar, 2019. Disponível em www.escol.as/13519-professora-vitalina-motta.

A organização do espaço físico (Quadro 02) sofreu ampliação ao longo do tempo, mas foi alvo de luta política pela comunidade escolar, pois houve cobranças junto ao poder público municipal para possibilitar uma estrutura de escola que pudesse contribuir com o ensino em Belterra.

A Escola Professora Vitalina Mota é uma Escola do Campo que enfrenta pressões ter-ritoriais do agronegócio latifundiário. Está cercada por produções de commodities e o uso de agrotóxico desenfreado nas plantações agrícolas afeta diretamente alunos, professores, servi-dores da escola e os moradores que residem às proximidades da agricultura capitalista monocultora. É uma ameaça à existência de vidas, da natureza e ao direito de estudar dos povos do campo, pois o agronegócio instaura sua lógica violenta, perversa e contraditória.

Essa geografia agrária onde se encontra a escola e as comunidades onde residem os estudantes camponeses/camponesas devem ser considerados ao trabalhar os conteúdos e ca-tegorias geográficas, porque desvela uma realidade do lugar em que o estudante conhece, facilitando a sua compreensão. Porquanto, a escola como instituição educativa tem um im-portante papel em confrontar conhecimento científico com conhecimento cotidiano, um indicativo para alcançar o processo de ensinar e aprender em geografia. Os desafios e a pers-pectivas para os professores de geografia estão na transposição didática, por meio da formulação de metodologias e uma didática específica aplicada a uma determinada turma.

A escola tem a função de “trazer” o cotidiano para seu interior com o intuito de fazer uma reflexão sobre ele por meio de uma confrontação com o conhecimento cientí-fico. Assim, deve estar estreitamente ligada ao cotidiano. Porém, se a prática do cotidiano é uma referência da escola, é no sentido de contribuir para sua reflexão e transformação e, para tanto, tem como instrumentos os conhecimentos científicos que veicula. (CAVALCANTI, 1998, p. 129).

A disciplina geografia trabalha com várias categorias geográficas em que o professor como um sujeito mediador do processo educacional tem que dominar os conceitos e levar o seu aluno a refletir sobre ele. Isso é possível quando o professor leva em consideração o coti-diano do educando do campo, estimulando-o a construir conceitos e formar opiniões e não apenas dá um conceito pronto para o aluno em que ele decora e finge que aprende.

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[...] o saber e a realidade do aluno é uma referência para o estudo do espaço geográ-fico. O ensino de geografia, assim, não se deve pautar pela descrição e enumeração de dados, priorizando apenas aqueles visíveis e observáveis na sua aparência (na maioria das vezes impostos à “memória” dos alunos, sem real interesse por parte destes). Ao contrário, o ensino deve propiciar ao aluno a compreensão do espaço geográfico na sua concretude, nas suas contradições. (CAVALCANTI, 1998, p. 20).

Não se quer um ensino de geografia mecânico, sem significados, caraterizado por um “Faz de Conta”, em que o docente finge que ensina e o aluno finge que aprende, sem considerar ao dia a dia dos estudantes. Kaercher (2004) diz que o aluno ao compreender o espaço que ele habita, a forma de entender o seu mundo, o seu cotidiano e as pessoas que ali habitam, facilita o ensino e aprendizagem. Assim, os alunos do campo ao compreender as paisagens, os lugares e os territórios estão construindo conhecimentos geográficos e espaciais.

Pensar em métodos e metodologias diferenciadas para contribuir com o ensino de ge-ografia para estudantes camponeses/camponesas do 6º ano da escola Professora Vitalina Motta, requer considerar os conhecimentos espaciais e territoriais dos alunos, pensar em prá-ticas didático-pedagógicas, usar recursos didáticos apropriados ao conteúdo e saber fazer a transposição do conhecimento da geografia escolar.

O conceito de paisagem nas aulas de geografia é uma categoria relevante. A paisagem vista como um conjunto heterogêneo de formas naturais e artificiais leva em consideração o tamanho, o volume, a cor, a utilidade, ou por qualquer outro critério (SANTOS, 1991; CAVAL-CANTI, 1998) e deve vir associada com o espaço de vivência do estudante.

A paisagem deve ser expressada e exemplificada de várias maneiras nas aulas de geo-grafia, por meio do uso do recurso didático audiovisual, imagens ilustrativas, desenhos e maquetes. Essa representação espacial percepção de paisagem deve partir de realidades pró-ximas onde vivem os alunos, relacionado conteúdo geográfico e cotidiano do espaço agrário belterrense tapajônico. Ao invés de abordar temáticas que não condizem com a realidade dos sujeitos do campo, porque não levar para a sala de aula a realidade em que vivem, daí está se configura como uma estratégia para alcançar o raciocínio geográfico.

A geografia na escola deve estar então, voltada para o estudo de conhecimentos co-tidianos trazidos pelos alunos e para seu confronto com o saber sistematizado que estrutura o raciocínio geográfico. A memorização induzida na Geografia não é uma memorização desejada pelo aluno, pode-se dizer mesmo que é uma memorização forçada. O aluno, em geral, não quer decorar fatos, nomes da Geografia, não porque ele não quer decorar nenhuma informação, mas porque ele não é mobilizado para as informações da Geografia. (CAVALCANTI, 1998, p. 129-133).

Quando o aluno memoriza, não aprende e com o tempo ele esquece. O estudante cam-ponês/camponesa quando ele vai para a escola, leva toda uma bagagem de conhecimento do lugar vivido, diferenciando dos alunos da cidade. Deste modo, a proposta para a geografia escolar significa aproximar o cotidiano do aluno do campo com conteúdos geográficos. Estu-dar os conceitos e categorias geográficas é levar o estudante do campo a fazer uma leitura do mundo agrário e perceber as metamorfoses espaciais, territoriais e paisagísticas.

Destarte, a escola Professora Vitalina Motta é uma Escola do Campo que precisa ter uma proposta de ensino de geografia diferenciado, devendo as categoriais geográficas, aqui estudada, está relacionada com espaço vivido de seus educandos, devendo seus professores pensar uma didática que os reconheça enquanto sujeitos do campo, sem perder de vista o tripé

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que está inserido no modo de vida camponês/camponesa: Terra/Família/Trabalho, elementos territoriais que são indissociáveis (ALMEIDA, 2006; CAMACHO, 2008).

Os estudantes da escola Professora Vitalina Motta são moradores do campo que apre-sentam um forte vínculo com a vida e produção na terra. Uns moram nas proximidades da escola, enquanto outros moram vários quilômetros distantes, por isso, vão para a escola em busca de um aprendizado eficiente e de qualidade. Esses estudantes trabalham também nas práticas agroextrativistas nas suas respectivas unidades familiares camponesas. Sabe o tempo de cultivar a terra e de colheita no período adequado, possuem técnicas manuais próprias e ajudam a família na roça ou em outras atividades para a subsistência e renda. Apresentam uma realidade distinta dos sujeitos da cidade. Por isso, há a necessidade de uma educação diferenciada e que leve em consideração os conhecimentos que estes já possuem.

É na sala de aula que o professor a maioria das vezes não explora em suas aulas o conhecimento desses alunos. O aluno conhece e compreende a paisagem que ele vivencia e não paisagens externas ao lugar que não condiz com sua realidade dele. A paisagem local e o espaço vivido e experienciado são as referências primordiais que o professor de geografia deve organizar seu trabalho, possibilitando aos alunos a compreensão dos espaços mundializados (PCNs, 1998).

A categoria paisagem, por sua vez, também está relacionada à categoria lugar, tanto na visão da Geografia Tradicional quanto nas novas abordagens. O sentimento de pertencer a um território e a sua paisagem significa fazer deles o seu lugar de vida e estabelecer uma identidade com eles. A categoria lugar traduz espaços com os quais as pessoas têm vínculos afetivos. (PCNs, 1998, p. 29).

Superar práticas tradicionais e formular novas linguagens para a geografia escolar, é possível, ao investir na formação continuada dos professores. Ter o domínio do conteúdo, instituir novas metodologias de ensino e repensar uma didática coerente corroboram com um ensino de geografia eficaz, que reconhece as particularidades e singularidades dos discentes. “É imprescindível que o professor tenha uma boa formação para que, ao trabalhar temas e conteúdos, garanta ao aluno perceber a identidade da Geografia como área” (PCNs, 1998, p. 40).

A formação de professores indica o quão é fundamental que os docentes das Escolas do Campo tenham formação em geografia. A formação na própria área do conhecimento (ini-cial ou continuada) possibilita a criação de estratégias de ensino/aprendizagem condizente com a realidade trabalhada. Entretanto, o livro didático de geografia utilizado pelas Escolas do Campo não deve ser o mesmo que utilizado pelas escolas da cidade, pois não considera, não expressa e não contextualiza o modo de vida dos estudantes-camponeses/camponesas. Porém, essa é a realidade que aflige a Escola Professora Vitalina Motta em Belterra/PA.

As docentes de geografia da escola devem abordar mais a realidade dos estudantes-camponeses/camponesas, facilitando os processos educativos. Os conceitos e as categorias geográficas não devem ficar restritos apenas ao livro didático, mas ter uma dimensão do lugar e do cotidiano. Os profissionais da educação devem reconhecer que a Educação do Campo é um tipo de educação diferenciada para os povos do campo, que leva em consideração a vivên-cia, a identidade do estudante de se pertencer, a valorização e reconhecimento de suas origens e modos de vidas no lugar, bem como destacar as formas de enfrentamento de lutas sociais e Re-existências no território.

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Formação Histórica/Territorial da Escola Prof.ª Vitalina Motta: propostas metodológicas para o ensino de Geografia A escola Professora Vitalina Motta surgiu como um movimento de luta para construção de uma Escola do Campo que consolide os direitos humanos e territoriais para povos e comuni-dades tradicionais, especificamente o campesinato. No município de Belterra, as comunidades camponesas possuem suas práticas voltadas para atividades agroextrativas e a Educação do Campo se manifesta como uma necessidade social, cultural e territorial, que contribui com a formação para a cidadania sem precisar sair do local em que vive e trabalha.

As informações históricas e geográficas fornecidos pela escola municipal Professora Vitalina Motta, como é atualmente conhecida, mostra que esta foi fundada em 1987, cujo nome da escola era São Francisco do Amapá. Recebeu esse nome para homenagear o Senhor Fran-cisco de Freitas, um dos fundadores da comunidade São Francisco da Volta Grande. O local de funcionamento do educandário era no barracão da comunidade, cuja manutenção da escola era de inteira responsabilidade e colaboração dos comunitários. Funcionava apenas com vinte e sete alunos, tendo como a primeira professora a senhora Izabel Cristina. Os campone-ses/camponesas estudavam no barracão da comunidade São Francisco do Amapá. Esses alunos precisavam ser alfabetizados, portanto, havia uma maior mobilização dos comunitários para manter o funcionamento do educandário.

No ano de 1990, a escola passou a funcionar com a autorização da Prefeitura Municipal de Santarém, assumindo a função de professora a senhora Josefa de Sousa Brito, tendo a escola quarenta e cinco alunos de 1ª a 4ª série, em um período de dois anos. No ano de 1997, ano de emancipação de Belterra, a escola passou a funcionar com cinco professores, totalizando um valor de cento e quarenta alunos, oferecendo o ensino de 1ª a 4ª séries, sob a responsabilidade da Secretária Municipal de Educação (SEMED), Professora Elza Sena. A partir daí os comuni-tários começaram a lutar pela construção de um prédio escolar que acolhesse e atendesse às necessidades de seus filhos.

A primeira eleição municipal fortaleceu a luta, essencialmente no mandato da verea-dora Raimunda Lúcia Lira de Sousa, autora do requerimento que solicitava a construção de um novo prédio que atendesse as necessidades de grande parte das famílias da BR-163 e co-munidades do seu entorno. Em 2000, foi construído o prédio escolar no Km 37 da BR-163, comunidade São Francisco da Volta Grande, onde funcionava o ensino de 1ª a 5ª série. Recebeu o nome de Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Vitalina Motta para homena-gear uma professora que muito contribuiu com a educação belterrense.

Nos anos de 2001 a 2003 foi implantado o ensino fundamental completo, totalizando trezentos e oitenta alunos. Por volta do ano de 2005, a escola passa a ser a escola polo, aten-dendo a demanda de 11 escolas anexas. No mesmo ano em que o educandário passou a funcionar, houve a ocorrência do primeiro ano do Ensino Modular e, no ano posterior, foi implantada a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

A escola Professora Vitalina Motta na atualidade é uma escola de resistência frente à expansão do agronegócio que pressiona e expropria o campesinato belterrense. A territoria-lização do capital pela monocultura da soja em Belterra iniciou a partir da década de 2000 e hoje vem espacializando os conflitos agrários e territoriais na região. Essa problemática da geografia agrária é vivenciada pelos alunos não apenas quando estão na escola, mas nas co-munidades onde vivem os estudantes camponeses/camponesas, esse avanço do agronegócio se torna bem expressivo, porque tem legitimado uma ação letal violenta e desterritorializa-dora. É uma luta pela permanência na terra/território e pelo direito de produzir alimentos sadios e diversificados e pelo direito por uma Educação do Campo de qualidade.

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Esse debate em que envolve campesinato e agronegócio deve ser trabalhado no ensino de geografia, pois são lógicas, processos e escalas diferentes, exigindo proposições de novas linguagens para o ensino de geografia. Os conteúdos geográficos devem partir do cotidiano dos alunos, pois a ordem local está associada à ordem global (SANTOS, 2001). É possível na medida em que as categorias e conceitos geográficos, espaço, lugar, paisagem, território, re-gião, redes, escalas, sociedade e natureza operacionalizadas nos conteúdos geográficos sejam trabalhados a partir da realidade do aluno e com uma metodologia e uma didática voltada para os povos do campo. Tanto alunos quanto professores precisam ser ativos no processo educa-cional e superar com essa prática tradicional e de uma educação colonial da cidade que nada colabora com a formação dos sujeitos e sujeitas do campo.

Pretendemos pensar o espaço agrário belterrense a partir da ótica dos próprios sujeitos que vivem, experienciam e trabalham no campo. Essa ação contra-hegemônica da Educação do Campo deve ser pensada no ambiente escolar, sendo um grande desafio para os professores da educação básica camponesa em pensar em inovadoras estratégias didático-pedagógicas.

CATEGORIAS GEOGRÁFICAS

CARACTERÍSTICAS E DEFINIÇÕES PROPOSTAS METODOLÓGICAS

1) ESPAÇO Dinâmico: indissociabili-dade entre sistemas de objetos e ações que trans-forma a materialidade da vida dos sujeitos. Produ-ção do espaço por meio da tecnificação e cientifi-cação

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Figuras com registros fotográficos produção audiovisual com uso de geotecnologias (celular ou câ-mera fotográfica); Mapas mentais e croquis; Produção textual, histórias em quadrinhos, entrevistas e jornais im-presso e televisivo e produção de murais

2) LUGAR Dimensão do vivido, ex-periência, familiar, subjetividade, existência, co-existência e co-pre-sença

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Figuras com Registros fotográficos produção audiovisual com uso de geotecnologias (celular ou câ-mera fotográfica); Mapas mentais e croquis; Produção textual, histórias em quadrinhos, entrevistas e jornais im-presso e televisivo e produção de murais

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CATEGORIAS GEOGRÁFICAS

CARACTERÍSTICAS E DEFINIÇÕES PROPOSTAS METODOLÓGICAS

3) PAISAGEM Domínio do visível onde a vista pode alcançar, carre-gada de sons, odores, sons, cheiros. Pode ser natural e humanizada, cultural, artificial ou téc-nica.

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Registros fotográficos produção audiovisual com uso de geotecnologias (celular ou câmera fotográfica); Mapas mentais e croquis; Histórias em quadri-nhos, entrevistas e produção de murais

4) TERRITÓRIO Relações de poder, de controle, de domínio, de uso. Uma porção do es-paço apropriado, disputado ou um campo de força.

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Registros fotográficos e produção audiovisual com uso de geo-tecnologias (celular ou câmera fotográfica); mapas mentais e croquis; produção textual, histórias em quadri-nhos, entrevistas, jornais impresso e televisivo e produção de murais

5) REGIÃO Diferenciação e comparti-mentação do espaço de acordo com as especifici-dades ou critérios estabelecidos para dife-renciar as áreas

Maquetes, plantas, mapas mentais e cro-quis para representação espacial; Registros fotográficos produção audio-visual com uso de geotecnologias (celular ou câmera fotográfica); e produ-ção de murais

6) REDES Conexidade e estrutura-ção das lógicas dos fluxos no processo de globaliza-ção. Podem ser: organizacional, temporal e espacial

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Registros fotográficos e produção audiovisual com uso de geo-tecnologias (celular ou câmera fotográfica) e pesquisas na internet; ma-pas mentais e croquis; produção textual, histórias em quadrinhos, entrevistas, jornais impresso e televisivo e produção de murais

7) ESCALA É um dado fundamental e se configura como uma representação espacial, partindo de um lugar pró-ximo e vai ampliando para compreensão do glo-bal. Podem ser: local, regional, nacional e glo-bal/mundial

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Registros fotográficos e produção audiovisual com uso de geo-tecnologias (celular ou câmera fotográfica) e pesquisas na internet; ma-pas mentais e croquis; produção textual, histórias em quadrinhos, entrevistas, jornais impresso e televisivo e produção de murais

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CATEGORIAS GEOGRÁFICAS

CARACTERÍSTICAS E DEFINIÇÕES PROPOSTAS METODOLÓGICAS

8) SOCIEDADE E NATUREZA

A natureza é determi-nante para a vida das pessoas, alvo de apropria-ção e transformação pelo trabalho humano. Espaço socialmente produzido

Trabalho de campo com o estudo do meio; Maquetes para representação es-pacial; Figuras com registros fotográficos produção audiovisual com uso de geotecnologias (celular ou câ-mera fotográfica); Mapas mentais e croquis; Produção textual, histórias em quadrinhos, entrevistas e jornais im-presso e televisivo e produção de murais

Quadro 3 - Propostas metodológicas para a geografia escolar Professora Vitalina Mota Fonte: PIRES, Lucineide Mendes e ALVES, Adriana Olivia, 2013. Organização: Conceição, F. S. da., 2020.

As categorias geográficas (Quadro 03) acompanham os diferentes temas da geografia escolar. O domínio conceitual e do conteúdo a ser trabalhado é fundamental nas aulas. Por isso, a sugestão de novas linguagens conforme o Quadro 3, contribui com um ensino diferen-ciado para a Escola do Campo Professora Vitalina Mota. Essas propostas são indicadas para as aulas da geografia, porque se acompanhou e se fez um levantamento acerca do ensino de geografia e da geografia agrária preexistente no espaço agrário belterrense tapajônico.

Essa proposta é eficiente e recomendada para utilização didático-pedagógica, pois já foi aplicada em outra escola do campo do Planalto Santareno, alcançando resultados satisfa-tórios e sem desconsiderar as particularidades e singularidades do lugar e múltiplas territorialidades. Essas metodologias de ensino deixam as aulas mais dinâmicas, atraentes e desperta o entretenimento dos estudantes-camponeses/camponesas, estimulando-os a cons-truir seus próprios conceitos e a compreender as metamorfoses socioespaciais e socioterritoriais.

Em relação ao livro didático utilizado pela Professora Vitalina Motta, estes deveriam trazer uma abordagem que contextualize e valorize o modo de vida do/no lugar, voltado para as especificidades de seus sujeitos e os reconhecendo na sua totalidade. Nesse sentido, a pro-dução de cartilhas didáticas representadas por meio signos (significantes e significados) do lugar onde vivem os estudantes-camponeses/camponesas é uma forma consolidar a Educação do Campo e produzir pedagogias geográficas contra-hegemônicas.

O professor deve estimular seu aluno a desenvolver habilidades para um pensar geo-gráfico e um raciocínio espacial (CAVALCANTI, 1998). Os alunos do campo em formação para a cidadania devem contextualizar os fenômenos espaciais relacionando com a vida diária. A relação entre cotidiano e conhecimento científico é uma ação concreta da transposição didá-tica, devendo ser executada no âmbito da geografia escolar pelo docente.

Considerações Finais A história da Educação do campo é resultado de um processo histórico de lutas sociais e re-existências territoriais. Nesse sentido, o professor das Escolas do Campo como um ente medi-ador do processo educativo tem o papel relacionar o conhecimento científico com o conhecimento do cotidiano, pois o estudante-camponês/camponesa quando ele vai para a es-cola leva todo um conhecimento acerca de seu espaço vivido/vivenciado, devendo o professor aproveitar esse tipo de conhecimento e relacionar com os conteúdos geográficos.

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Compartilhar conhecimentos entre saber escolar e saber do estudante camponês/cam-ponesa estimula a ser um formador de opinião e construtor de conceitos geográficos. As aulas devem ser dinâmicas e devem despertar os interesses dos educandos. Isso é possível no mo-mento em que se utilizam novas linguagens na geografia escolar. A criatividade e a operacionalização de novas metodologias de ensino é um desafio para as Escolas do Campo do município de Belterra do Tapajós e uma perspectiva de implementar uma Educação do Campo contra-hegemônica e valorizar o processo histórico.

Os professores ao trabalhar a disciplina de geografia devem receber formação conti-nuada na área do conhecimento, caso contrário, o professor não fará uma leitura geográfica do espaço de forma adequada e satisfatória e o processo de ensino/aprendizagem dos alunos seja comprometido. Possibilitar qualificação profissional para os docentes do oeste paraense, investindo na formação continuada, melhora as metodologias e didáticas para Educação do Campo dos povos que vivem: Terras-Águas-Florestas.

É preciso que se tenha nas Escolas do Campo um livro de geografia que contextualize a realidade da classe social do campesinato, reconhecendo como sujeitos de direitos que atuam e resistem para sua permanência e sobrevivência no território. Além de melhoramento do espaço físico das escolas camponesas, temos que pensar em métodos, metodologias e didáticas diversificadas para serem trabalhados na sala de aula no ensino de geografia.

A Educação no Campo vem se mostrando deficitária e apresenta uma estrutura física e curricular de escola precária e caótica que não valoriza a identidade dos povos do campo. A Educação do campo tem muito que melhorar, não somente no desenvolvimento das práticas didático-pedagógicas, mas carece maior apoio do Estado na implementação de políticas pú-blicas educacionais para essas escolas continuarem funcionando e formando o campesinato para a cidadania. A educação é direito, mas esse direito precisa ser reconhecido e valorizado.

Referências ALMEIDA, Rosemeire A. de. (Re) criação do campesinato, identidade e distinção: a luta pela terra e o habitus de classe. São Paulo, Unesp, 2006.

ARROYO, Miguel. G.; CALDART, Roseli. S.; MOLINA, Mônica. C. Por Uma Educação Do Campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. 216p.

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CALDART, Roseli S. A escola do campo em movimento. Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, 2003, pp.60-81.

CAMACHO, Rodrigo S. O ensino da geografia e a questão agrária nas séries iniciais do ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Aquidauana, 2008, 468p.

CAVALCANTI, Lana de S. Geografia, escola e construção do conhecimento. Campinas, SP: Papirus, 1998.

KAERCHER, Nestor A. Ler e escrever a Geografia para dizer a sua palavra e construir o seu espaço. In: NEVES, Iara Conceição Bitencourt et. al. (org.) Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. 6ª edição. Porto Alegre: Editora UFGRS, 2004.

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PIRES, Lucineide M.; ALVES, Adriana O. Revisitando os conceitos geográficos e sua aborda-gem no ensino. In: SILVA, E. I. da.; PIRES, L.M. Desafios da didática da geografia. – Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2013, 260p.

RAFFESTIN, C. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.

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AS FESTIVIDADES JUNINAS E AS REPRESENTAÇÕES CULTURAIS Projetos pedagógicos e ensino remoto

Ariane de Medeiros Pereira1 [email protected]

Resumo

A comunicação que ora se tece tem como finalidade discutir as representações que são agenciadas a cultura e a formação de identidades. Bem como, dialogar sobre a importância das festas juninas como uma forma de gestar identidades culturais e contribuir com a aprendizagem significativa dos alunos em consonância com o ensino remoto. Para tanto, utilizamos do conceito de cultura e suas representações, segundo o entendimento de Chartier (1990), que a coloca em uma perspectiva de construção social, em face dos mecanismos e compreensão que os atores sociais fazem de si e dos outros para tecer práticas culturais identitárias. Podemos averiguar que, os alunos possuem uma identidade com as festas juninas ligadas ao meio rural. Palavras-chave: Representações culturais. Identidade cultural. Festa Junina. Aprendizagem significativa. JUNE FESTIVITIES AND CULTURAL REPRESENTATIONS Pedagogical projects and remote teaching

Abstract

The communication that is now being made has the purpose of discussing the representations that are linked to culture and the formation of identities. As well as, dialogue with the importance of the June festivities as a way to generate cultural identities and contribute to the students' significant learning in line with remote teaching. For that, we use the concept of culture and its representations, according to Chartier (1990), who places it in a perspective of social construction, in the face of the mechanisms and understanding that social actors make of themselves and others to weave practices cultural identities. We can verify that the students have an identity with the June festivities connected to the rural environment. Keywords: Cultural representations. Cultural identity. June party. Meaningful learning.

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Introdução A relação passado e presente é um diálogo estável, quando averiguamos que aqueles são cons-tituídos por memórias que não obstante embaralha, transforma, e por vezes, permanece (NAVA,1974). As práticas culturais gestadas no passado podem ganhar força no presente, considerando que, não são imóveis e podendo acontecer por meio de imagens sucessivas, das artes visuais, da cultura que são solicitadas nas realidades atuais. O presente torna-se fictício por apresentar-se em constante desgaste e reelaboração e capaz de se constituir com contem-poraneidade usando do passado e seus significados.

1 Licenciada e Bacharela pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES. Especialista em História dos Sertões pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES. Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CCHLA. Atualmente professora do Colégio Diocesano Seridoense/Caicó/RN.

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Parto conceito de cultura para entender qualquer ação humana sobre a natureza e, por consequências, temos suas marcas empregadas na sociedade praticante. Nesse sentido, de-corre que o conceito de cultura não é estático, ao contrário, ele é flexível ao passo que pode ser definido e redefinido segundo os valores, as normas e as práticas exercidas pelas relações sociais e seus múltiplos contextos e situações específicas. Neste caso, utilizamos do conceito de culturas e suas representações, segundo o entendimento de Roger Chartier (1990) como perspectiva de uma leitura de construções sociais, enquanto mecanismos de leitura e de com-preensão que os atores sociais fazem de si e dos outros, para enfim tecer suas práticas culturais e identitárias.

O indivíduo em sua experiência e formação cultural é repertório composto a partir de sua interação com o meio social compartilhado, revisto de memórias e significados, capaz de tornar possível a comunicação social entre determinado grupo que se afirma e se define, a partir de determinados códigos que traduzem suas representações próprias e específicas, dado a vivência particular.

O conceito de representação encontra-se permanentemente imbricado nas diversas re-lações existentes com o meio social, na qual aquela está inserida, que podemos pensar segundo as discussões empreendidas pela Antropologia Social que percebe “a noção de cultura parte do estabelecimento de uma unidade fundamental entre ação e representação, unidade esta que está dada em todo o comportamento social” (DURHAM, 1980), logo, estamos dizendo que a ação da representação cultural é o sistema de valores, padrões e concepções experimentados por uma sociedade ao longo da construção social da vida.

O produto cultural seria o resultante dos suportes culturais - hábitos, ritos, festas, obras de artes - construídos por sujeitos sociais anteriores que engendraram ações que lhes confere significados na vida contemporânea por meio do uso de representações simbólicas inerentes a códigos ou sistemas de classificação de determinados usos, realizados por grupos ou socie-dades específicos. Podemos pensar que, de uma prática simbólica individual e que é perpassada para o grupo social, temos a configuração de uma dimensão cultural coletiva e dinâmica que pressupõe trocas de representações, culturas, identidades e leituras sociais.

Pensar no conceito de representação cultural e na formação do poder simbólico de suas ações nas sociedades é entender que as práticas culturais são agenciadas no passado e são reatualizadas no presente, como é o caso, das festas juninas que nasceram como festas pagãs, mas que diante das ressignificações sociais passam a fazer parte do terceiro século da era cristã como uma relação cultural que merecia está presente no calendário eclesiástico, demons-trando sua importância e sendo um fator memorável para as sociedades cristãs. Podemos pensar que, este respaldo nas festas juninas aconteceu em razão da morte dos cristãos que foram martirizados pelo Império Romano.

As festas juninas dentro da simbiose das práticas culturais e sociais de determinadas épocas, nascem justamente do momento de homenagens a São João e São Pedro que foram perseguidos pelos soldados do Império Romano em oposição aqueles que seguiam a Jesus. Posteriormente, o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano, no século IV, os rituais foram ressignificados para aquela comunidade e os rituais passaram a empregar o sin-cretismo feito entre o culto cristão e o culto a Dionísio – deus grego ligado ao vinho, a colheita. Assim, a cultura passa por uma reelaboração na qual os antigos mártires passam a ser home-nageados e é o momento de festejo das boas colheitas.

No período antigo, os meses de junho e de julho, era corriqueiro que as festanças acon-tecessem marcadas pela proximidade das boas colheitas e celebradas com determinados ritos que perpassavam por danças ao redor do fogo, saltos sobre as chamas. Estes rituais eram

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carregados de simbologias e superstições, considerando que, tinham como finalidade espantar os espíritos da fome, do frio e da miséria. Se pensarmos, nas modificações que correm nas sociedades ao longo do tempo, no tocante, a suas culturas, podemos averiguar que a simbolo-gia de passar por cima das brasas da fogueira é uma reinvenção do século IV cristão, tendo em vista que, no século I esta já era uma prática dos fiéis da deusa Diana, em Éfeso. Nesse caso, com bem salienta Nava (1974) a cultura do passado opera na vivência da sociedade atual.

As festas juninas podem ser arrazoadas tanto pelo poder da arte quanto a arte do poder. Primeiramente aquela passou a ser impregnada de simbologias, de identidades e elemento de cultura do mundo antigo cristão. Posteriormente, suas rupturas e permanências chegaram à contemporaneidade reatualizadas ditando suas representações, tornando-se arte do poder. Agora os festejos juninos agem no imaginário da sociedade com suas obras culturais de pa-trimônio e pedagogias, idolatrias e convenções2, demarcando seu poder de fala social e cultural.

Os festejos juninos ganham conotações altruístas, representa o outro, dedica-se a ema-nar raízes culturais a uma dada sociedade, como salienta Pierre Bourdieu (1989), manifesta um poder intelectual de construir, instruir e impor, uma “categoria particular de sinais” (BOURDIEU, 1989) e formar identidade por gerações. As celebrações juninas, em diferentes temporalidades, possuem o caráter de instrumentalizar e privilegiar o seu poder simbólico com as problemáticas da vida habitual, as colheitas, a falta de chuva, as crenças nos santos. Torna-se um espaço de uma cultura de dominação e de legitimação de sua prática, sendo secularizada e enraizada nas mentalidades sociais.

As festividades juninas chegam ao Brasil no contexto do sincretismo cultural entre a tradição cristã, crenças, costumes indígenas e cultos de matrizes africanas, a princípio, prati-cadas nas propriedades rurais, mas que ao passar os anos, se espalharam por diversas cidades das regiões brasileiras, ganhando novos significados e participações. Vale ressaltar, que as festas juninas se fizeram presente no Brasil em face ao processo de colonização na qual os missionários católicos utilizavam dos festejos de São João e São Pedro para converter os indí-genas à fé católica. Ademais, está ao redor da fogueira era um rito praticado pelos índios, como também, pelos escravos africanos que dançavam ao redor das fogueiras. Podemos per-ceber o quanto os rituais praticados nas festas juninas povoavam as mentalidades de povos com culturas diferentes e que possuíam simbologias diversas. Como nos faz refletir Michel de Certeau (1984) “a actualidade é o ser real começo”, assim, e segundo este pensamento, as fes-tividades juninas elas apresentam novas abordagens e perspectivas no tempo presente.

De modo que, a proposta desta comunicação é discutir a importância das festas juninas como uma forma de gestar identidades culturais e contribuir com a aprendizagem significativa dos alunos. Nesse sentido, nos propusemos a discutir as celebrações juninas no âmbito escolar como meio de potencializar a aprendizagem e promover a diversidade cultural, no cenário da educação não presencial, em razão, da pandemia do Covid-19, no presente ano. As ditas cele-brações possuem uma importância significativa na composição identitária brasileira, tendo em vista que, foi introduzida pelos colonizadores portugueses, mas que alguns ritos já se fa-ziam presente na cultura indígena.

Mais tarde, no século XVII, teríamos a presença das fogueiras fazendo parte da vida dos cativos nas senzalas do Brasil, como bem coloca Robert Slenes (1999) “na choça do cativo ardia um fogo, que era mantido permanentemente aceso mesmo nos dias mais quentes”.

2 Para uma discussão mais profunda sobre a representação da arte como poder, ver: BOUBLIL, Alan. Le pouvoir de l’art, Paris. Belfond, 1991.

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Podemos evidenciar que a fogueira fazia parte da vida cotidiano dos cativos, fosse para mantê-los aquecidos, fosse para a realização de atividades culturais, tendo em vista que, os cativos souberam ressignificar sua cultura africana no ambiente escravo3 .

O fogo aceso representava para os africanos o culto aos seus ancestrais e representava a continuidade da linhagem, em uma dimensão intergeracional e mantendo uma relação direta entre as gerações presente e pretérita. Para as mulheres escravas o fogo, no próprio espaço do trabalho que era o campo, significava um tipo proteção "medicinal" dos espíritos face ao tra-balho, além da proteção aos filhos. No primeiro caso, se as trabalhadoras não produzissem efetivamente poderiam ser castigadas. No segundo momento, os filhos ficavam entregues à própria sorte nas senzalas, logo, o fogo simbolizava um objeto sagrado e de proteção.

Diante do exposto e da importância da festividade junina para a cultura e a formação identitária do povo do Brasil, não poderíamos deixar de pensar em um projeto pedagógico para trabalharmos com nossos alunos no âmbito de uma educação de qualidade e formativa, além de discutir as conotações existentes no hibridismo cultural junino ao longo das tempo-ralidades. Para tanto, entendemos o conceito de culturas como sendo plural e uma construção social, como bem aborda Roger Chartier (1990), sendo nosso embasamento teórico. Além de sermos norteados pelo pensamento de Nava (1974) que coloca que as relações e os significados simbólicos estão na simbiose entre passado e presente.

No tocante à metodologia para compor este escrito, nos ancoramos na perspectiva que o ensino se torna significativo a partir de projetos pedagógicos, como salienta William H. Kilpatrick (1918), no qual o aluno é agente ativo na produção do conhecimento. Como Fer-nando Hernández (1998) enfatiza que trabalhar com projetos significa um desafio para as escolas e se pensarmos no contexto das aulas não presenciais este desafio se torna, ainda mais, efetivo. Assim, temos a justificativa para a realização da nossa discussão atrelando a signifi-cância das festividades juninas ao desafio de se trabalhar com projeto, tendo em vista uma aprendizagem significativa. Neste sentido, como as festas juninas contribuem para a formação de identidades? Quais os desafios de se trabalhar com projetos em um ensino não presencial?

Festividades juninas e a formação de identidades culturais: o desafio de se trabalhar com projetos pedagógicos no ensino não presencial As festividades juninas são carregadas de elementos significativos que impregnam um enredo sobre a identidade cultural tanto no âmbito nacional, regional e local. Sendo um evento mar-cado pelo hibridismo cultural de diversas etnias em várias temporalidades, mas mediada pelos sentidos culturais que cada povo a oferta, promovendo inúmeras narrativas e experiências sociais.

Para adentrar pelo universo das expressões culturais regionais e os processos de cons-trução de identidades culturais de uma comunidade, devemos levar em consideração a lógica de consumo e práticas culturais empregadas por uma determinada sociedade, bem como, as feições que dada cultura assume, nesta sociedade. Assim, partimos da ideia de que as festas juninas são gestadas no ambiente escolar com significância a aprendizagem cultural.

Torna-se necessário entender as modificações que ocorrem nas festas juninas ao longo do tempo e perceber que aquelas passaram a ser um elemento presente na construção de iden-tidade das pessoas que moram na cidade. Na contemporaneidade os festejos juninos saem do espaço rural e, ganha, novas conotações no espaço da cidade e na vida dos agentes sociais que

3 Para uma discussão mais efetiva sobre as formas como os escravos conseguiram ressignificar sua cultura e sua religiosidade, ver: SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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os exercitam. Nesse itinerário, as festas juninas adquirirem um novo significado ao adentrar o meio citadino.

As comemorações juninas, na cidade, se transformaram em um evento turístico com finalidades econômicas, políticas e culturais. No meio familiar, urbano, passou a ser um evento de massas com elementos antigos, tais como, as comidas típicas, as danças e as brincadeiras. Ao ganhar o espaço público alinha-se tanto ao conjunto de atrações culturais antigas, como também, a novas roupagens com a festa com grandes nomes do forró, do sertanejo agregando novas roupagens a cultura junina.

A festa junina, sem dúvida, ganha uma bricolagem4 de suas práticas na atualidade. Essa série de colagem de imagens, sons, cores, vestimentas, crenças, valores, representações tecem teias significativas no imaginário social da comunidade, em conjunto com outros ele-mentos culturais de várias raízes, que nem sempre é fácil discernir sobre a identificação das fontes de suas origens, dada à congregação de valores e formas advindas do sincretismo cul-tural de diferentes procedências e contextos.

Diante, desse contexto, de simbiose entre os elementos juninos e práticas culturais das festividades juninas do passado com o presente é notório que as instituições de ensino discu-tam como trabalhar estas comemorações, que são construções imagéticas e sociais, da sociedade nacional, regional e local, por meio de projetos pedagógicos nas escolas. Tendo em vista, a importância da formação da identidade cultural que as citadas festas adquirem no corpo social. A identidade cultural pode ser entendida como um conjunto de características comuns que os grupos sociais se identificam e se definem.

A identidade é algo que não existe de forma natural, ela constituída socialmente pelos grupos sociais através de suas experiências e das temporalidades. Hall (1997) analisa a forma-ção da identidade aliada ao caráter da mudança na modernidade tardia, advertindo que existem vários impactos causados sobre a noção de identidade cultural. Segundo Hall: “[...] as sociedades na modernidade tardia são caracterizadas pela ‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’ – isto é, identidade para os indivíduos” (HALL, 1997, p18). Logo, perce-bemos que as identidades são mutáveis e que, portanto, discutidas haja vista que, são uma construção social do meio em que se vive.

Dessa forma, no mundo contemporâneo, a noção de identidade como resultado do su-jeito a se reconhecer torna-se modificável, considerando que, as identidades modernas, individuais ou coletivas, são fragmentadas, descentradas e descontínuas. Nesse sentido, os projetos pedagógicos nas unidades educacionais tornam-se proeminentes, ao considerar que, busca discutir a constituição de identidade por meio dos festejos juninos e suas representati-vidades. Acreditando-se no diálogo construtivo ente as categorias que são interceptadas por novos cruzamentos, que tem uma linha tênue entre continuidade e descontinuidades.

Ao adotar o trabalho com projetos pedagógicos estamos deixando que o conhecimento esteja ensejado em um dado método funcional, regular e rígido, considerando que, o método assume o caráter de um trabalho com objetivos e conteúdos pré-fixados, pré-determinados, apresentando uma sequência regular e prevista nos moldes das bases curriculares. Os projetos pedagógicos oferecem um outro viés direcionado ao ensino-aprendizagem por meio do ato de projetar, formular metas e os percursos a serem desenvolvido no ambiente escolar. Não é um

4 Para uma discussão efetiva sobre o conceito de bricolagem, ver: ALBUQUERQUE Junior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 3. Ed.São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2006.

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método fixo, ordenado, mas uma concepção de ensino flexível que permite a construção do conhecimento por meio das experiências vividas e praticadas por parte dos alunos.

Os projetos pedagógicos permitem um conhecimento diferente daquele empregado pelos currículos, representa uma outra forma de organizar o conhecimento por meio da apro-ximação com a identidade e a experiência dos alunos em consonância com os conteúdos escolares entre si e os saberes provenientes do contexto social e cultural. Nesta perspectiva trabalhar com projetos pedagógicos estava em conexão com nossa proposta de discutir as festividades juninas e suas representações, tendo em vista que, é um conhecimento que está para além do currículo base, mas que permeia a vivência social e cultural dos alunos. Neste caso, o estudando realiza o contato com o conhecimento não como algo pronto e fixo, mas são eles que o constroem por meio de pesquisas, análises e interpretações.

Um dos aspectos importantes de se trabalhar com a perspectiva dos projetos pedagó-gicos é que ela permite que os alunos desenvolvam uma atitude ativa e reflexiva frente a sua aprendizagem, visto que, eles são sujeitos sociais e que aquele novo conhecimento possui um sentido e significado para sua vida, para sua compreensão do mundo. Assim, as festividades juninas são percebidas enquanto formadoras de identidades ou não para os alunos, conside-rando que, o sentido de cultura na atualidade pode ser pensado como um discurso construído pela sociedade e, como tal, é carregada de símbolos e representações. O discurso cultural teria como finalidade influenciar e organizar as concepções que temos de nós mesmos e aqueles que chegam a nós por meio das conversas, das estórias e das práticas gestadas em comunidade.

Ao pensar sobre o sentido da cultura nas festividades juninas podemos refletir, que talvez, os alunos de atualmente não as vejam com os mesmo significados que a sua terceira geração passada, mas que ainda existe uma memória do passado operando em seu presente, dado as imagens construídas ao longo de sua experiência. Logo, podemos arrazoar que por meio dos projetos pedagógicos os discentes vão conseguir filtrar o que realmente os compõem, em frente às celebrações juninas, resgatando sua historicidade e práticas culturais. Na peda-gogia de projetos o aluno aprende no processo de produzir, levantar dúvidas, pesquisar e criar relações que incentivem a buscar por novas descobertas para a aprendizagem significativa. O papel do professor sai da órbita da função de transmitir conhecimento para aquele que cria situações de aprendizagem para que o aluno encontre sentido naquilo que aprende.

No contexto que vivemos atualmente, com os efeitos do Covid-19, e a educação sendo gestado de forma não presencial pelos meios tecnológicos, a instituição escolar torna-se um desafio ainda maior. Professores, famílias e alunos buscam formas de dar uma resposta satis-fatória a aprendizagem significativa e de qualidade.5 Nesse percurso percebemos a importância dos projetos pedagógicos, tendo em vista que, se apresentam aos alunos como uma proposta inovadora, na qual aqueles serão os sujeitos que constituirão sua aprendizagem, mesmo que com os direcionamentos do professor, mas eles serão atuantes e fundamentais na produção e concretização do conhecimento. Assim, como bem coloca Fernando Herández (1998) os projetos pedagógicos é uma maneira diferente de suscitar a compreensão dos alunos sobre os conhecimentos que circulam fora dos conteúdos pré-estabelecidos nos currículos das escolas, além de ser uma forma, pela qual os alunos constroem suas identidades.

Para Leite (1996) os projetos pedagógicos são uma concepção adotada pelo conheci-mento escolar e que permite aos docentes novas formas de trabalho, dentre as quais, a

5 Para uma discussão mais efetiva sobre os desafios da educação, no contexto do Covid-19, e uma experiência educacional, ver: Gonçalves, Sónia P. Educação no contexto da pandemia: Um olhar sobre o caso de Por-tugal. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/educacao-no-contexto-da-pandemia-um-olhar-sobre-o-caso-de-portugal/. Acesso em 18. jun. 2020.

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interdisciplinaridade que promove romper com as fronteiras disciplinares, favorecendo o es-tabelecimento da aprendizagem. Diante disso, o aluno consegui elaborar conhecimento de várias áreas de aprendizagem por meio de uma temática de ensino. O aluno tem uma apren-dizagem integral permeada por diversas oportunidades conceitual, atitudinal e procedimental. Esta prática pedagógica possibilita que os alunos elaborem, decidam, construa e sintetizem o conhecimento, demonstrando sua autonomia e seu compromisso com o social, formando-se enquanto sujeitos culturais e cidadãos, além de reconhecer sua identidade.

Diante dos desafios da educação não presencial será cada vez mais necessário criar oportunidades para que os alunos participem ainda mais da resolução das atividades e no processo de elaboração do conhecimento , considerando que, o professor não se faz presente enquanto um transmissor de conhecimento, apenas atua como um mediador de conhecimento e um elemento que propõe atividades desafiadoras aos alunos para que estes consigam de-monstrar sua aprendizagem de modo satisfatória.

Frente a este contexto de desafios do ensino não presencial e do trabalho com os pro-jetos pedagógicos buscamos concretizar a aprendizagem significativa dos nossos alunos, por meio da temática das festividades juninas, para que estes pudessem compreender o significado destas celebrações para o povo brasileiro e suas reapresentações, mas em especial, perceber de que forma os alunos se apropriam ou não das concepções e representações das festas juni-nas e que conhecimento conseguiram produzir, a partir de suas pesquisas, estudos e “maturamento” de ideias.

As festas Juninas na prática escolar: uma aprendizagem significativa O meio escolar e suas práticas são marcados pela multiplicidade de gestos, culturas, formas de pensar e de agir, basta pensarmos o quanto complexo é o ser humano em sua totalidade, imaginamos que esta complexidade aumenta em um ambiente repleto de crianças, adolescen-tes e adultos que partilham diálogo, experiências e construção de conhecimento. As festas juninas contribuem para esta esfera de diversidade no ensino-aprendizagem, de modo que, aquelas permitem que os professores das diversas áreas do conhecimento possam trabalhar de maneira concatenada e interdisciplinar.

Ao pensar, o mês de junho, o mês das festas junina, e dentro da perspectiva das cele-brações que a cultura nacional remete a esta festividade, o Colégio Diocesano Seridoense, na Cidade de Caicó, Estado do Rio Grande, não deixou que a cultura das confraternizações juni-nas fossem extintas, no momento em que as aulas acontecem de forma não presencial, dada as ações e efeitos do Covid-19. Sendo assim, gestou e planejou o "O São João Virtual Solidário do CDS" com o intuito de manter o elo de ligação entre as comemorações juninas, as famílias, professores e funcionários da referida instituição.

Dentro desta perspectiva nos reunimos, via aplicativos eletrônicos, pensamos e plane-jamos as ações que seriam implementadas com as nossas turmas de alunos dos segmentos do Colégio. Dessa maneira, as discussões ora empreendidas aqui, parte da experiência desenvol-vida por um grupo de professoras do Ensino Fundamental I6 – como podemos observar na imagem a seguir – e suas práticas com as turmas dos quartos anos7 do citado colégio.

6 O grupo de professoras que planejaram e colocaram em prática o projeto “Musicalizando o São João” com os alunos dos quartos anos do Colégio Diocesano Seridoense foram: Ana Angélica Andrade Farias (Professora de Educação Física), Ana Priscila da Silva Alves (Professora de Filosofia), Ana Santana Nogueira (Professora de Educação Física, Matemática e Ciências), Ariane de Medeiros Pereira (Professora de História) e Maria Luciana Araújo Medeiros (Professora de Língua Inglesa). 7 Aqui deixo claro que as turmas dos quartos anos, do Colégio Diocesano Seridoense, são duplas, ou seja, existem duas turmas por ano de ensino.

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Consideramos que as festas juninas é um elemento pedagógico importante para a formação dos estudantes, e no contexto das aulas remotas, torna-se um diferencial na vida dos alunos que tem a oportunidade de serem sujeitos ativos no processo de sua aprendizagem. Até as professoras se inserem em um novo contexto, como podemos observar na imagem a seguir:

Figura 1 – Grupo de professoras que idealizaram o projeto “Musicalizando o São João”. Fonte: acervo pessoal da pesquisadora.

Diante do cenário das aulas remotas, montamos como estratégia para a comunicação entre as professoras e os alunos para a realização do nosso projeto o uso de um vídeo, como podemos observar na imagem anterior, explicando o significado das festas juninas e suas re-presentações para a sociedade em nível nacional, regional e local. No mesmo vídeo lançamos a proposta dos alunos trabalharem com as músicas juninas que eles acreditavam que não po-deriam faltar em sua festa junina, bem como, fazer uma pesquisa sobre o contexto de sua criação, compositor e a qual região do Brasil a mesma pertencia. Todas estas informações e o vídeo foram enviados por meio do aplicativo do sistema do Colégio aos pais, bem como, foi inserido no grupo de WhatsApp dos pais das referidas turmas.

Com a proposta desta atividade os alunos poderiam colocar em prática o desenvolvi-mento de atividades lúdicas, tendo em vista que, eles tinham o domínio de expressar a festa junina por meio de diversas manifestações culturais e suportes como: a dança, o desenho, as vestimentas abordando diversas temporalidades da festa junina em seu percurso histórico e sociais no tocante as diversas regiões do país. Além disso, a atividade proporciona aos alunos desenvolver e ampliar suas habilidades emocionais tendo em vista que, possibilita a integração e a afeição entre o grupo familiar, no caso, tendo a estimulação das competências para a soci-abilização, a cooperação, a paciência e o respeito, como também, o trabalho com cultura de diversas regiões do Brasil. Ademais, as diversas temporalidades permitem que os educandos desenvolvam a empatia e a noção de alteridade que são indispensáveis a sociedade atual.

Percebemos que por meio das festividades juninas os elementos do passado e do pre-sente voltam a se tocar, como bem salienta Nava (1974), existe descontinuidade em algumas práticas culturais, todavia as manifestações culturais antigas se fazem presente na atualidade por meio de suas ressignificações ou através de suas marcas e de suas consequências.

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Percebemos que as festividades juninas extrapolam o seu próprio contexto e promove o de-senvolvimento do respeito e da alteridade no educando, em razão, das diferentes formas que são praticadas as festas juninas nas diversas regiões que compõe o Brasil. Assim, a nossa pro-posta estimula o engajamento e o planejamento dos alunos para realizar as ações programadas para a festividade.

Neste caso, os alunos iriam produzirem um vídeo de até vinte segundo com sua música que simbolizava sua identidade com o São João, eles poderiam representá-la de diversas for-mas, por meio de um desenho, pintura, dança, entre outros, canto. Sendo assim, a atividade promove uma integração do aluno e sua família, tendo em vista, que é uma atividade na qual os pais ou responsáveis podem fazer parte. Assim, toda a família é mobilizada com o espírito da festa junina e suas representações. A família, nesse sentido, tem a oportunidade de desen-volver habilidades de socialização, de construção de conhecimento, de ressignificar a cultura junina e reformular novas aprendizagens. As atividades lúdicas promovem imaginação, inte-ração e prazer por parte daqueles que a praticam. Podemos perceber isto na imagem a seguir:

Figura 2 – Vídeos produzidos pelos alunos – representação das músicas juninas. Fonte: acervo pessoal da pesquisadora.

O nosso projeto "Musicalizando o São João" teve como finalidade colocar os alunos em contanto com as músicas juninas tidas como símbolos de identidade cultural para o povo bra-sileiro. Neste caso, as músicas das festividades juninas ganham as conotações de manifestações culturais em que as pessoas as praticam por gerações. Logo, podemos pensar, em concepção ideológica cultural, na qual parte da premissa que os sujeitos ativos a cultua empregam suas marcas e forma uma identidade cultural e social. As músicas são elementos que simbolizam a cultura e a identidade de uma população, assim, por meio das músicas juni-nas podemos aprender, interpretar e formar novos conhecimentos.

A música pode ser percebida e entendida enquanto um agente de múltiplas possibili-dades ao processo identitário, sendo ela gestada na heterogeneidade, e que não raras às vezes, se torna contraditória em ressaltar os aspectos culturais de uma sociedade marcada pela

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variedade étnica. Para deixar claro, podemos verificar essa ocorrência nas músicas juninas, nas quais existem aquelas direcionadas ao espaço rural onde acontecem as comemorações com músicas voltadas ao forró pé de serra, a instrumentos como o zabumba e o triângulo, consideradas típicas de épocas passadas. E as músicas que são vivenciadas na cidade em ho-menagens aos festejos juninos que são direcionadas ao forró estilizado e com grandes bandas de forró de renome.

Dentro do contexto escolar, os discentes podem discutir os processos culturais, histó-ricos e geográficos utilizando da música. Aquele estilo de música tradicional pode ser considerado como aquele que estava vinculado ao homem do campo que era produtor de ali-mentos não somente para sua sobrevivência, mas para o espaço da cidade e que tem como objeto uma menor degradação ambiental. Já as músicas praticadas no ambiente citadino esta-riam ligadas ao tempo da modernidade, do turismo, de uma celebração comercial que visa unir o lucro e a cultural popular de tempos pretéritos. A música contribui para discutirmos o papel da formação identitária do povo brasileiro na atualidade, como vista, a entender que esta constituição identitária se torna múltipla, heterogênea e definida a partir das diferenças.

Ao se explorar as potencialidades da música para o ensino e aprendizagem significa-tiva8, averiguamos que a música pode ser inserida no contexto de ser considerada uma fonte histórica, haja vista que, ela nos permite fazer uma análise social de seus diversos aspectos, dentre os quais: letra, melodia, gênero musical, mensagem transmitida, difusão de pensa-mento, além de seu contexto histórico. Fato é que, nosso projeto "Musicalizando o São João" podemos perceber que nossos alunos em suas produções não utilizaram do forró atual para se identificar com a cultura junina foram buscar sua composição de conhecimento em músicas como "Asa Branca" que tem como compositor Luíz Gonzaga e Humberto Teixeira, sendo con-siderada como o hino dos nordestinos e dos sertanejos. Um Nordeste e um sertão da paisagem rural, da seca e da resistência ao sol castigante e a falta de chuva.

Interessante perceber que todas as músicas escolhidas pelos alunos fossem para ser dançadas, cantadas, pintadas ou desenhada se faziam presente o espaço rural, fazendo infe-rência às fogueiras, ao colorido das festas juninas, a fauna e a flora do sertão. Assim, podemos perceber que a cultura na atualidade e com as crianças ainda se passa pelo imaginário antigo de um São João vinculado ao espaço rural, do homem que usa a terra para sobreviver com suas plantações, que anseia pela chuva e que comemora sua chegada, tendo em vista que, significa a prosperidade do homem do campo com sua mesa farta e água em abundância. As-sim, vemos que as festas juninas ainda estão atreladas aos antigos deuses da fertilidade do solo, das chuvas e da colheita. As festas juninas apresentam-se enquanto um multicultura-lismo praticado de diversas maneiras, mas que permeia o imaginário daqueles que as praticam seja com elementos da cultura antiga perpassando por novas simbologias, como é o caso do forró eletrônico que faz parte da musicalidade nas festas juninas.

Para a culminância do projeto sobre a temática junina do Colégio Diocesano Serido-ense “O São João Virtual Solidário do CDS”9 foi realizada uma live no dia vinte e três de junho do de dois mil e vinte, nas dependências do Colégio, seguindo as orientações sanitárias, na qual os pais da referida instituição abrilhantaram a festa com a banda de música dos pais e alunos que tocaram as músicas das festividades juninas no estilo das tocadas em tempos de

8 Para uma discussão mais eloquente sobre o uso da música no processo de ensino-aprendizagem, ver: Bitten-court, Jane.; Celeste, Sandro. Currículo, música e produção identitária no ensino de História. IV COLBEDUCA e II CIEE: Braga e Paredes de Coura, Portugal, 2018. 9 O arraiá foi denominado solidário, pois a live arrecadou alimentos para as famílias necessitadas da Cidade de Caicó afetada pelos efeitos da pandemia do Covid-19.

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outrora. A live ainda contou com as apresentações dos alunos do Ensino Fundamental I e Educação Infantil na qual voltaram o seu olhar para os festejos juninos desde as brincadeiras, as comidas típicas, os ditos populares, entre outros, a poesia. Neste caso, os alunos do nosso projeto “Musicalizando o São João” tiveram suas representações juninas ressaltadas na live, por meio das músicas juninas escolhidas que tinham significância para os mesmos, como aquelas que não poderiam faltar em seu São João. Dessa forma, a citada instituição manteve ativa as festas juninas do Colégio de outrora, mas de modo reatualizada em face as conse-quências do Covid-19.

Considerações Finais Pensar em cultura na modernidade é colocá-la em um discurso marcado por semelhança com as práticas gestadas e efetivadas no passado, mas ter a clareza que, se constitui na diferença, digo isto, considerando que, a cultura no tempo presente é reatuliazada constantemente, sendo inseridas novas maneiras sociais de conduzi-la. A identidade dos indivíduos, grupos e sociedade passa a ser compreendida por meio da multiplicidade de suas referências constitu-tivas. Os sujeitos sociais são formados a partir do que eles ouvem, sentem, elabora e reelabora.

A identidade cultural, nas sociedades complexas, é tradução da diversificação de expe-riências sociais e seus sistemas de representação, apontando para o fato de ocorrem situação na qual existe um hibridismo cultural. Falo aqui, das práticas culturais antigas sendo ressig-nificada pelas percepções do presente, mas com uma interação indispensável à formação do sujeito social e cultural. É através da diversidade cultural que o ser humano pode expressar sua forma de agir e pensar sobre o mundo, inaugurando sua forma de comunicação com um todo social.

As festividades juninas se inserem, nesse contexto, dado vista que elas surgem na an-tiguidade com uma forma de culto aos deuses do vinho e da colheita. Atualmente, as festas juninas ganham novas conotações, mas mantém a raiz nas celebrações com vista a homena-gear o período da colheita, da boa produção. Todavia, vale ressaltar que ela não é uma cultura ensejada, ao contrário, se tornou uma cultura móvel, flexível na qual deixou o espaço pura-mente rural para adentrar o meio urbano com novas significações. Sendo, necessária discuti-la como um processo histórico, marcada por temporalidades e práticas distintas.

Diante da significância da cultura permeada pelas festas juninas, as instituições edu-cacionais têm um papel importante de conduzir esta discussão aos seus alunos e a todo o corpo educacional que compõe o ambiente escolar. Mesmo sendo uma temática que não está determinada nas bases curriculares, os festejos juninos podem ser trabalhados nas escolas por meio dos projetos pedagógicos com o intuito de uma aprendizagem significava, na qual os alunos são entendidos enquanto agentes atuantes na construção de seu conhecimento e atores na formação de sua cultura, sendo sujeitos que se reconhecem.

Por meio do projeto "Musicalizando o São João", desenvolvido no Colégio Diocesano Seridoense, podemos perceber que as festividades juninas perpassam pelo imaginário de todos aqueles que fazem parte da instituição. E que os alunos por meio da música e suas vertentes possuem uma predisposição a colocar a festa junina em consonância com o espaço rural, isto fica evidente quando os discentes vão representar as celebrações juninas evoca uma série de objetos como característico do meio rural. Para tanto, convocam para a formação cultural de sua festa junina as roupas, os instrumentos musicais, a fogueira que caracterizam objetos das práticas antiga exercida nos sítios, fazendas e povoados.

Podemos perceber, assim, que o indivíduo moderno ou pós-moderno vive no espaço da cidade com novas significações culturais, mas que sempre mantém um diálogo constante

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com os elementos culturais do passado, se reconhecendo e aplicando em sua vivência cotidi-ana. Na atualidade, os sujeitos sociais vivem diferentes padrões e dinâmicas culturais. Podemos afirmar que, além da complexidade e da heterogeneidade que marcam a dinâmica cultural, esta é praticada de forma diferenciada e contraditória por cada um que dela participa. Esta diversidade e contradição têm sua raiz nas experiências vividas e no modo com os indi-víduos enxergam o mundo.

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ENTRE NAÇÃO E NACIONALISMO Breve panorama do Brasil no século XIX

Ketlin Maria Lucht1 [email protected]

Resumo

O presente artigo pretende discutir algumas teorizações acerca de formulações nacionais propostas por autores como Gellner; Benedict Anderson; Smith; Hobsbawm e Bhabha. Busca-se assim perceber de que forma termos como nação e nacionalismo foram pensados e contextualizados ao longo do tempo. Tais processos são analisados para posteriormente compreender como um projeto nacional foi pensado e implementado no Brasil do século XIX. Este projeto, oriundo da vertente reflexiva do romantismo será assim irradiado pela historiografia, litera-tura e arte, fazendo do indígena o componente étnico característico da nação. Analisa-se então, as possibilidades e as impossibilidades que as teorias oferecem no caso brasileiro, verificando a plausibilidade ou não destas refle-xões. Palavras-chave: Nação. Nacionalismo. Brasil.

Abstract

This article intends to discuss some theories about national formulations proposed by authors like Gellner; Ben-edict Anderson; Smith; Hobsbawm and Bhabha. Thus, we seek to understand how terms such as nation and nationalism were thought and contextualized over time. Such processes are analyzed to later understand how a national project was conceived and implemented in Brazil in the 19th century. This project, originating from the reflexive aspect of romanticism, will thus be radiated by historiography, literature and art, making the indige-nous person the ethnic component characteristic of the nation. Then, the possibilities and impossibilities that theories offer in the Brazilian case are analyzed, verifying the plausibility or not of these reflections. Keywords: Nation. Nationalism. Brazil.

― ―

Introdução As reflexões advindas de termos como nação e nacionalismo dizem muito sobre os processos históricos constituintes das sociedades, entender sobre estes processos nacionais e nacionali-zantes significa ancorar uma pré-disposição para compreensão minuciosa de pactos políticos que respaldam e dão corpo à comunidade nacional. Para um melhor entendimento deste de-senvolvimento político, torna-se necessário refletir sobre como intelectuais teorizaram esses movimentos, e principalmente, refletir também se essas teorizações lograram êxito quando colocadas lado a lado com a prática.

O francês Ernest Gellner (1925-1995) em sua obra Nações e Nacionalismos, caracteriza o termo nação como uma conjunção entre uma fronteira cultural e uma fronteira política. Pautado por um movimento histórico de ordem estrutural, Gellner esquematiza como uma determinada elite política pensa e sistematiza essa homogeneidade. A nação seria

1 Ketlin Maria Lucht é graduada em História na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO) e mestranda no Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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fundamentada posterior à junção de uma escolarização e industrialização. A sociedade indus-trial causaria um rompimento nas sociedades agrárias levando a uma consecutiva ruptura nas culturas locais, assim, a sociedade caminharia para uma via de mão única em direção à homo-geneização estruturada também pela escola, que difundiria a cultura almejada. Em suma, o nascimento de uma alta cultura seria fruto e motor do mencionado processo, e o Estado, de forma forçosa, uniria a esfera política à esfera pública. Daí a importância da divisão do traba-lho oriunda da industrialização, esta divisão, essencialmente dinâmica e sistematizada pela educação, proporcionaria um treinamento genérico, básico e universal e por sequência, medi-ante uma possível homogeneidade através de um compartilhamento cultural e linguístico, certo nacionalismo começaria a ser fomentado (GELLNER, 1993).

Apesar de o intelectual francês demonstrar prováveis aspectos aos quais a sua teoria não seria capaz de contemplar, ele ainda fala a partir de um ponto de vista europeu e univer-salizante. Em outras palavras, Gellner seria um exemplo para mostrar que na prática, a teoria pode ser outra. A realidade que ele conheceu foi de um sistema educacional e industrial já bem consolidado, sua análise, portanto, trata de processos ocorridos na Europa, que atendem parcialmente ou sequer atendem processos de outros países. No Brasil, por exemplo, a educa-ção, só será pensada em moldes nacionais no contexto da primeira república. Já a indústria, só será realmente fomentada em meandros do século XX. Desta forma, parte dos estudos em-preendidos por Gellner servirão também como ponto de partida para reflexões posteriores.

Alguns possíveis lapsos na teoria na Gellner foram apontados por Benedict Anderson (1936-2015). Em Comunidades Imaginadas, Anderson (2008) aponta que o francês define naci-onalismo como algo que inventa nações onde elas não existem. O contra-argumento desse importante autor britânico a ser mencionado é de que nacionalismos não podem ser conside-rados falsos ou verdadeiros, o que deve ser levado em conta é o processo pelos quais eles foram imaginados. Estes processos, depois de absortos por uma determinada parte da popu-lação, são verdadeiros para quem os internalizou, não se tratando de uma simples “invenção”. Assim, contrastando com vertentes anteriores, Anderson define a nação como uma comuni-dade política imaginada, limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Imaginada pelo fato de seus membros, mesmo que nunca venham a se conhecer, comunguem e se solidarizem diante de suas respectivas existências. Limitada porque esta possui fronteiras, não só físicas como tam-bém abstratas. Soberana por ser dotada de um poder consolidado indubitavelmente em forma de Estado. Por fim, imaginada como comunidade pelo fato de esta, ser envolta por um processo de camaradagem horizontal (ANDERSON, 2008, p. 34).

Anderson (2008) aponta como houve espaço para o nascimento do fenômeno motor do nacionalismo mediante a ascensão dos vernáculos e a queda ou desprestígio do latim. Este fenômeno, nomeado como Capitalismo Editorial, faria com que o nascimento da imprensa no século XVIII criasse novas maneiras de representar comunidades condizentes com nações al-mejadas. Tal movimento começava lentamente a provocar uma sensação de temporalidade homogênea na mentalidade das pessoas. Daí a importância do jornal, fio condutor de vínculos imaginários.

[...] jornais são, para o homem moderno, um substituto das orações matinais – é paradoxal. Ela é realizada no silêncio da privacidade, nos escaninhos do cérebro. E no entanto cada participante dessa cerimônia tem clara consciência de que ela está sendo repetida simultaneamente por milhares (ou milhões) de pessoas cuja existên-cia lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente desconhecida [...] Ao mesmo tempo, o leitor do jornal, ao ver réplicas idênticas sendo consumidas no me-trô, no barbeiro ou no bairro em que mora, reassegura-se continuamente das raízes visíveis do mundo imaginário na vida cotidiana.

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(ANDERSON, p. 68, 2008).

O capitalismo, junto com o advento da imprensa, fez com que a ação vernacularizante se estendesse ao segmento populacional, criando assim, uma massa de público letrado que caminharia em direção a uma consciência nacional. Ciente que este processo não necessaria-mente ocorre em todas as nações, Anderson teoriza também sobre possíveis nacionalismos tardios.

Ainda sobre a posição modernista de Gellner, uma perspectiva suplementar e corretora de tais lacunas foi proposta por Anthony D. Smith (1939-2016). O sociólogo inglês em sua última obra Etno-simbolismo e nacionalismo: uma abordagem cultural aponta como uma nação possui uma gênese pré-moderna, e como este fator é deliberadamente utilizado para constru-ção de um posterior nacionalismo, assim, seria possível encontrar elementos étnicos e culturais que sobreviveram e ganharam sequência (continuidade utilizada muitas vezes de forma intencional) desde a pré-modernidade até o nacionalismo moderno. Ser faltoso(a) quanto à existência e contextualização destes elementos é uma falha que intelectuais devem evitar cometer ao tentar explanar sobre nações e nacionalismos, pois esta atitude deixaria de lado aspectos centrais que constituem o plano de fundo do referido campo nacional (SMITH, 2009, p. 9).

Nações requerem, de acordo com Smith, traços étnico-culturais bem delimitados, ou ao menos, bem forjados. Este seria o subsídio crucial para erigir uma comunidade solidária consistente. Para o etno-simbolista, é a cultura que deve ser o cerne dos estudos nacionais, e esta, não pode ser restrita unicamente ao período moderno, logo, rupturas e permanências do(s) passado(s) devem ser descobertas, analisadas e constantemente contextualizadas. Por fim, mediante um estudo permeado por uma longa duração, o sociólogo aponta como as na-ções se constituem em meio a lembranças e esquecimentos coletivos, sendo a etnicidade e a cultura elementos chave.

Historicamente, podemos traçar uma série de casos importantes de transformação de comunidades étnicas em "nações" e [...] casos em que os elementos simbólicos de diferentes grupos étnicos alimentaram ou foram usados por nacionalismos subse-quentes em suas atividades de formação nacional. (SMITH, 2009, p. 18. Tradução nossa)2.

Não obstante, sobre a retomada (ou permanência) de passados em prol de construções de projetos nacionais, vale aqui destacar as contribuições do intelectual marxista Eric Hobs-bawm (1917-2012). Em sua obra Nações e Nacionalismos o historiador fala sobre possíveis engodos que intelectuais cometem ao definir com tanta fixidez termos que advém do quesito nacional. No intento de delinear o que é nação, critérios linguísticos, étnicos, culturais, terri-toriais acabam sendo o espectro da análise, sendo que as falhas nas definições acontecem exatamente porque talvez a referida comunidade ainda não possuíra aspirações nacionais ou porque estes arcabouços categóricos – sempre mutáveis – não abraçam uma totalidade popu-lacional, vindo sempre a emergir as exceções (HOBSBAWM, 1990, p. 15).

Considerando a mutabilidade destas nações e as metamorfoses pelas quais elas passam em meio a engenharia social que tenta constituí-las, Hobsbawm em A invenção das tradições aponta como recorre-se a um passado para inculcar valores e normas em uma determinada

2 “Historically, we can trace a number of important cases of transformation of ethnic communities into ‘nations’, and [...] cases where the symbolic elements of different ethnic groups fed into, or were used by, subsequent nationalisms in their nation-forming activities.”

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sociedade, dando assim uma aparente estabilidade à nação. Mesmo as tradições que tentam romper com o passado acabam se deitando em antigas estruturas. Estas tradições, inventadas ou não, estabelecem e legitimam instituições, práticas e poderes. (HOBSBAWM, 1997, p. 17). Neste ângulo, as permanências não se tratam necessariamente de invenções. “[...] a força e a adaptabilidade das tradições não deve ser confundida com a ‘invenção das tradições’. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (HOBSBAWM, 1997, p. 16). Vê-se desta forma como, voluntária ou involuntariamente, a in-corporação de heranças antigas ocorre de forma deliberada.

Por fim, denotada a importância dos processos nacionais que ganham uma “aparente fixidez” com o uso e adaptação das tradições, Hobsbawm adverte também sobre como Gellner e outros intelectuais basearam-se em ideias estruturantes, construídas “de cima” e deixando de lado os “de baixo”, ou seja, a camada subalterna que compõem a nação (HOBSBAWM, 1990, p. 20). Apesar de não teorizar com muita delonga sobre a subalternidade, o intelectual mar-xista alerta para o fato da exclusão que o campo nacional pode gerar ao basear-se exclusivamente em estruturas que veem as populações com tamanha inércia. Dito isto, é im-portante apresentar a vertente que vem para dar voz ao subalterno.

O campo pós-colonial, frente às teorias essencialistas e nacionalizantes que silenciam certas camadas sociais, faz um denso questionamento a produção de conhecimento que acaba implícita ou explicitamente carregando consigo uma lógica ainda colonial. Neste sentido, o “pós” não significa uma tentativa de abolição total do “colonial”, mas sim uma profunda inda-gação para que haja um lugar de enunciação aos sujeitos híbridos que emergem na história (BHABHA, 2013; COSTA, 2006). Em meio a esta tentativa de desconstrução do mito da homo-geneidade nacional, Homi K. Bhabha (1949 -) em O local da cultura aponta como identidades que anseiam por um lugar no mundo moderno acabam passando por um processo de negoci-ação complexo. Dentro desta perspectiva intersticial, de “entre lugares”, sempre que se tenta conduzir a sociedade a uma homogeneidade é que a heterogeneidade aparece de forma gri-tante. Em outras palavras, as diferenças se mostram atenuantes quando uma comunidade é concebida como projeto (BHABHA, 2013, p. 27).

Para fugir destas categorizações que situam o sujeito em lugares que este mais per-tence a um “não lugar” do que propriamente um lugar, Bhabha propõem que categorias binárias sejam deslocadas, pois estas sempre acabam por inferiorizar e essencializar uma ou ambas as partes. A partir destes deslocamentos é que fronteiras passam a agir possibilitando um contato e não uma separação. São as reflexões epistemológicas produzidas neste âmago que darão voz aos que antes não puderam falar. Do mesmo modo Kymlicka (1995) adverte sobre a necessidade desses lugares culturais plurais, especialmente quando indivíduos – dias-póricos ou não – à margem de políticas coercitivas e paternalistas não tem sua subjetividade reconhecida. Nenhuma nação é auto contida, seja culturalmente, etnicamente, linguistica-mente, neste sentido o multiculturalismo propõem práticas integralizadoras que desmantelem o mito da homogeneidade cultural, fazendo – na medida do possível – a maioria se abrir para a minoria, para o pluralismo e para diversidade.

Nesta lógica, o autor indiano G. Aloysius também aponta como mobilizações de cunho nacional, sendo socialmente verticais ou horizontais, podem ser tanto integrativas quanto dis-ruptivas (ALOYSIUS, 1997, p. 21). Assim como outros críticos da área, o sociólogo versa sobre como intelectuais esquecem (ou negligenciam) a mutabilidade e a efemeridade da sociedade e das teorias que as contemplam. Visto que a teoria nunca alcança integralmente um encaixe com a prática, Aloysius propõem que intelectuais analisem de forma muito ímpar os contextos e as sociedades em que estão se inserindo como pesquisadores, para que não haja “traumas de

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nacionalismos ideias”. Em síntese, assim como sociedades e contextos são mutáveis, as teorias também o devem ser.

Da mesma maneira que Aloysius aponta sobre a dificuldade de quebrar os paradigmas oriundos da modernidade, Bhabha também o faz. Este aponta como os discursos nacionais reificam e excluem sujeitos históricos, assim, nem todos estes indivíduos podem ser inseridos no tempo “vazio e homogêneo” de um dito nacionalismo, estes sujeitos mais aparecem quando se analisam os interstícios e as ambivalências que a modernidade obscurece (BHABHA, 2013, p. 231).

Em meio ao tempo complexo da narrativa nacional, torna-se necessário analisar como as pretensões nacionais na teoria, se utilizam de diversos agentes para formular uma certa narrativa, mas na prática os exclui. Diante disto, é possível constatar como o nacionalismo, travestido das melhores intenções, acaba por vezes sendo excludente, sendo este um “[...] espaço para uma posição agonística de minoria” (BHABHA, 2013, p. 268).

Diante de toda teoria exposta anteriormente, é agora possível traçar um panorama quanto às possibilidades e impossibilidades dos referidos processos no contexto brasileiro. É notável que a questão da industrialização, da escolarização e da respectiva consciência nacio-nal através de vernáculos ocorreu de forma tardia no Brasil. É perceptível também, mediante a perspectiva etno-simbolista, observar como ocorreu uma busca por um passado mítico que encontra na figura do indígena o símbolo “ideal”, sendo este símbolo amplamente difundido pelo romantismo. Também pode-se considerar a permanência da coroa portuguesa no Brasil num contexto anterior e posterior à independência mediante a continuidade de uma longín-qua tradição. Por fim, vê-se como nacionalismos são também excludentes, ao passo que teoricamente incluem sujeitos étnicos em sua identidade nacional, e na prática os negligência.

O caso brasileiro No que consente à construção de uma ideia de nação e nacionalismo brasileiro no decênio de 1850, cabe pontuar alguns aspectos que influenciaram o período. Entre 1831 à 1840, no con-texto regencial que sucedeu a abdicação de D. Pedro I, o Brasil estava envolto num processo dúbio de anseios monarquistas e republicanos, tais anseios, vistos em revoltas como Cabana-gem, Balaiada, Sabinada e Farrapos entrariam em breve “estabilidade” apenas em meados de 1840-41 com o golpe da maioridade de D. Pedro II (CARVALHO, 1978, p. 236). Tais revoltas requeriam o mesmo: o fim da monarquia. A entrada do monarca no poder põe fim às regências e novamente tenta realçar as mentalidades em moldes monarquistas. Mesmo no âmago da independência e da volta do poderio centralizado, um entrave merece ser destacado:

[...] a confusão é o efeito do critério de pressupor que a maioria das atuais nações iberoamericanas já existia desde o momento inicial da independência [...] Se trata, em suma, das derivações ainda vigentes do critério de projetar sobre o momento da independência uma realidade inexistente [...]. (CHIARAMONTE, 2004, p. 60. Tradução nossa)3.

Visto que nações não passam a existir necessariamente no exato momento da inde-pendência, urge a necessidade da criação de uma, pois este é um dos quesitos para fortificação de um Estado agora independente. Enquanto nas colônias hispano-americanas o problema da independência era carregado pela necessidade de substituir a legitimidade da monarquia, na

3 “[...] la confusión es efecto del criterio de presuponer que la mayoría de las actuales naciones ibero-americanas existía ya desde el momento inicial de la independencia [...] Se trata, em suma, de las derivaciones aún vigentes del criterio de proyectar sobre el momento de la independencia una realidad inexistente [...].”

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colônia portuguesa a independência era facilitada pela continuidade da mesma, ou seja, pela perduração de um poder legítimo. Segundo Hobsbawm, tradições que se adaptam ao longo do tempo e não passam necessariamente por um processo de invenção, pois mostram sua força carregando consigo suas antigas normas e valores. Talvez por isso, diante da permanência de uma longínqua tradição portuguesa em solo brasileiro, a monarquia ainda ligava Brasil ao país que almejava se desvincular. Brasil, tendo herdado e dado continuidade aos velhos usos e valores, ainda era um pedaço de Portugal na América (CHIARAMONTE, 2004, p. 64).

O Brasil que emerge na metade do século XIX viria a ser relativamente “estável”. Num momento onde o governo e as elites econômicas não passam por grande divergência de inte-resses, surgem outras prioridades. Desta forma, o monarca abraça a ideia de um projeto nacional para conferir uma identidade à nação, fomentar um possível nacionalismo e dar au-tenticidade ao Estado (SCHWARCZ, 1998). Diferente do período regencial ou do período de D. Pedro I, onde pensava-se a cultura através de um viés não necessariamente palaciano, o projeto agora possuía oficialidade e respaldo nacional.

Para formatar essa ideia de nação e irradiá-la pelo e no ambiente historiográfico, lite-rário e artístico, os ideários oriundos do romantismo foram de suma importância (CHIARAMONTE, 2004, p. 60). Inicia-se assim, um projeto de transição cultural. No contexto latino-americano os romantismos verteram em diferentes correntes, porém, acabaram por uti-lizar imagens emblemáticas semelhantes: o índio e a exoticidade natural (BETHEL, 2014, p. 834). Diante da perspectiva etno-simbolista, é visível como houve um rastreamento de sujeitos “etnicamente genuínos” para legitimar um histórico nacional.

A devoção ideológica romântica a um senso de identidade nacional era um dos as-pectos de uma busca mais ampla pela "autenticidade" [...] isso foi impulsionado mais pela necessidade de reafirmar as nobres origens e a grandeza da nação, ou para lem-brar as pessoas das lutas edificantes de seus ancestrais. (SMITH, 2009, p. 68. Tradução nossa)4.

Em relação à formulação da ideia de nação no meio historiográfico, é de grande valia destacar o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O instituto almejava criar e legitimar uma ideia de Brasil como entidade política separada de Portugal. Criado em 1838 e formado pela elite carioca, ele passa por várias fases, sendo um dos períodos mais significati-vos o de 1840, ano em que seria concedido um prêmio a quem elaborasse “O melhor plano para escrita da história do Brasil”. Vence Philipp von Martius. Para o alemão, o que deveria ser contemplado na historiografia brasileira era a mistura das raças, sendo o português o cerne de todas elas, dando certa ênfase ao indígena e quase nenhuma ao negro. O texto, na tentativa de definir uma identidade “una” proclamou a base da mescla racial, sendo este pensamento um dos influenciadores da posterior ideia de democracia racial. “Assim, Martius pode ser visto como o iniciador de toda uma linha de interpretação do Brasil” (RICUPERO, 2004, p. 125).

Em 1849 o IHGB passa por uma transição importante. A oficial entrada de D. Pedro II é tida como a verdadeira legitimação do instituto como um dos formadores do sistema cultural brasileiro. Neste ínterim, é incumbida à Adolfo de Varnhagen a tarefa de escrever a história do Brasil em moldes Magistra Vitae, através de uma linha teleológica de progresso, onde o

4 “Romantic ideological devotion to a sense of national identity was one aspect of a wider search for ‘authentic-ity’ [...] this was actuated more by a need to reaffirm the noble origins and greatness of the nation, or to remind people of their ancestors’ uplifting struggles”.

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passado seria propriamente norteador e exemplo do futuro. A obra principal do expoente da historiografia brasileira do século XIX, História Geral do Brasil, dividida em dois volumes e publicada em 1854 e 1857, dá continuidade ao conservadorismo de Martius (RICUPERO, 2004, p. 132).

Neste sentido, Varnhagen tece elogios à colonização portuguesa, pautando que seu processo fora satisfatório, pois produziu grandes homens, reis, súditos e governadores, por consequência, não se enfatiza o índio desapropriado, mas sim, o português vitorioso. Em relação ao indígena, o sorocabano chega até mesmo a produzir uma narrativa aversiva, carac-terizando-os como “falsos e infiéis”, enfatizando um necessário apagamento do passado de tais “bárbaros selvagens” em prol da chegada do europeu que ali estava para os salvar com seu “espirito evangelizador”. Assim sendo, demonstrar interesse para com o indígena, reite-rando a perspectiva etno-simbolista, significaria seletivamente recuperar as distantes origens históricas e míticas da nação. A participação do negro era um ponto no qual Varnhagen se apoiava para fazer severas críticas, pontuando que a escravidão seria um erro, mas, já que havia acontecido fala da “sorte” do negro por entrar em contato com gente tão “polida”, como os portugueses (REIS, 2007, p. 43).

Em suma, em meio a este processo de emancipação cultural e política, Varnagen fala de um Brasil independente, porém, ainda tradicionalmente português. Esta ênfase em um Bra-sil-português reforça a tentativa de fazer a independência ser vista não como uma ruptura, mas como um “desenvolvimento a esperar” (RICUPERO, 2004, p. 134), sendo esta e outras considerações do sorocabano a mentalidade amplamente difundida na época, se tornando pos-teriormente “senso comum”.

Convém agora citar outro irradiador desta pretensa ideia de nação, sendo este, a lite-ratura. Literatos que participaram da construção da identidade nacional acreditavam veementemente que a história e a poesia do Brasil poderiam certamente ser encontradas no indígena. A literatura, neste sentido, apesar das “maiores liberdades” de escrita em relação à história, não deixa de ser um ato político, fundado na seletividade de interesses nacionais. Neste cenário, Gonçalves Dias – um dos maiores expoentes da literatura indianista – caracte-riza dois tipos de indígenas: o bom e o mau, sendo respectivamente o que melhor se relaciona com o europeu e o que nega contato com a “civilização” (RICUPERO, 2004, p. 139).

Conferindo ao índio uma imagem de herói, em um de seus escritos mais famosos de 1851: I-Juca-Pirama, o poeta ressalta sua bravura “Assim o Timbira, coberto do glórias, guar-dava a memória, do moço guerreiro, do velho tupi!”5. Gonçalves Dias, além de “dar ao índio uma aura guerreira, próxima ao cavaleiro medieval europeu, encontra terreno de recepção bastante propício na situação contemporânea do Brasil, onde ainda estavam bastante frescas as lembranças das lutas da Regência. (RICUPERO, 2004, p. 159).

Outro expoente do romantismo, José de Alencar, publica em 1857 O Guarani, onde o índio Peri, apaixonado pela portuguesa Cecília, pensa em converter-se ao cristianismo (en-trando nos moldes do “bom selvagem” de Rousseau) para ter a amada em seus braços. Já em Iracema (1865), obra também muito significativa de Alencar, faz-se uma alusão aos forjadores da nação e aos três componentes identitários do Brasil, Martin: o português, Iracema: a índia e Moacir: o primeiro brasileiro miscigenado, resultado da união entre a índia e o português. Vê-se assim, como românticos procuram no passado remoto referências para constituição de mitos nacional que estabelecem a identidade de uma nação em processo de recente formação (RICUPERO, 2004, p. 166; SMITH, 2009, p. 42).

5 DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama.

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Vele ressaltar que o negro só teria espaço determinante na literatura da terceira gera-ção do romantismo, a chamada geração condoreira, onde havia anseio pela república e pela abolição da escravatura. Até então, o silenciamento em relação ao negro era proporcional à estabilidade e a quietude da elite, já que esta, se beneficiava do sistema escravocrata.

No Brasil [...] o consenso sobre a escravidão entre a elite imperial é tamanho que ela não é sequer mencionada no texto constitucional [...] o maior motivo para preservar a unidade territorial e o estímulo para ação da burocracia foi, como vimos, a manu-tenção da escravidão. (RICUPERO, 2004, p. 197).

E por fim, assinalando o papel não menos importante da arte como produtora e irradi-adora do plano nacional, vale destacar o papel da Academia Imperial de Belas Artes (SCHWARCZ, 1998, p. 144). A (AIBA) foi propriamente fundada por D. João VI, mas foi só no governo de D. Pedro II que a Academia adentrou em um contexto de estabilidade e produção oficial de uma cultura nacional. O monarca costumava financiar o aprendizado dos artistas dentro e fora do país, e mais uma vez, era a coroa que permitia e limitava a arte. O academi-cismo dessa vertente artística se faz palaciano, diferente por exemplo de Debret, que não ligado ao referido plano nacional, produzia num contexto mais “livre”. Sendo assim, a produ-ção artística deveria necessariamente ter uma proximidade com o movimento literário, representando o exotismo, a natureza e o indígena, porém, a corrente indianista só chega à pintura após sua consolidação na literatura. Esta arte ainda europeizada tornava o índio cada vez mais branco, e o monarca, cada vez mais tropical.

A pintura brasileira [...] passou a tomar, após a independência, em 1822, um rumo mais marcadamente nacionalista, mas o nacionalismo, na forma como foi transmi-tido através de mentores franceses e italianos, não raro produziu uma versão meramente insípida de uma pretensa arte "universalista", de fato totalmente euro-peizada. (BETHELL, 2014, p. 841).

Victor Meirelles, neste viés, na obra A Primeira Missa no Brasil (1860), toma para si a missão de reproduzir o instante em que o Brasil “nasceu”. Além de realizar um estudo apro-fundado da natureza local, o artista lê e relê a carta de Pero Vaz de Caminha para fazer uma analogia fiel àquela de 1500. Assim, o projeto de Meirelles voltava-se para a representação da fusão fundadora da pátria, a fusão do europeu, especificamente do português, com o indígena, conferindo à obra um caráter mítico e ao mesmo tempo, edificando de uma “verdade” reque-rida pelo projeto nacional vigente da época. (COLI, 1998). Dentre as tentativas de delimitar uma imagem de nação no Brasil através de projetos oficiais, esta do contexto pós independência aqui retratada, demostra como se fez presente a ausência do povo. Este empreendimento que visava construir uma nação e um nacionalismo, apesar de todos os esforços, ainda era um projeto da elite para a elite. A população, neste contexto, era:

[...]quase exclusivamente rural e analfabeta, isolada na imensa extensão territorial do país. Por serem precárias as comunicações, notícias importantes [...] levavam três meses para chegar às capitais provinciais mais distantes e mais tempo ainda para atingir o interior [...] a nação brasileira ainda era uma ficção. (CARVALHO, 1978, p. 237).

Visto por esse ângulo, o fato de quase 85% da população ser analfabeta em 1870, é um grande empecilho em relação à formação de uma suposta nação ou de um nacionalismo (RI-CUPERO, 2014, p. XXXVI). Terias como a do Capitalismo Editorial de Anderson, ou a de

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Gellner sobre a escolarização e industrialização como fomentadores de um nacionalismo, caem por água abaixo no Brasil. Isto porque a criação de um público leitor, condição essencial para produção e reprodução de uma consciência nacional através de periódicos, no contexto brasileiro é inviabilizada, já que mais da metade da população (até mesmo boa parte da elite) vive no analfabetismo. Sendo assim, torna-se impossível a criação de uma comunidade política movida por “camaradagens horizontais” através de vínculos imaginários.

Também a industrialização e a escolarização, ao menos no referido contexto, compro-metem o processo nacional teorizado por Gellner. Primeiro porque a etapa decisiva de industrialização brasileira somente ocorrerá no contexto da Primeira Guerra Mundial, e esta, quando ocorre, se concentra no Nordeste (FURTADO, 1963). E segundo, em relação à escola-rização, pouco foi feito para criar e disseminar uma identidade nacional. Mesmo que em 1834 fosse definido que a educação devia ter um grande alcance populacional e que tal feito deveria ser pensado e executado pelo Estado, fora a questão do analfabetismo ser atenuante, a educa-ção ainda era importada de Portugal. Esta situação será recorrente ainda na Proclamação da República.

[...] José Veríssimo, educador e crítico literário, fez uma crítica devastadora do sis-tema educativo acusando-o de não ser nacional, de não procurar formar cidadãos. Na escola brasileira, disse ele, não havia educação moral e cívica. Os livros de leitura empregados no ensino primário não continham temática nacional, eram muitas ve-zes trazidos ou publicados em Portugal [...]. (CARVALHO, 1978, p. 240).

Vê-se diante de tudo isso como em contextos multiculturais ou não, projetos de nação e nacionalismo podem tomar rumos inimagináveis e acabar por excluir a população, fazendo com que, diante da possível não inclusão da diferença, algumas camadas sociais não partici-pem do engendramento nacional. O uso deliberado da figura do indígena como mito simbólico diz muito sobre isso, pois este uso se pauta muito mais nas teorizações nacionais do que na discussão de reais problemas sociais por quais estes povos passaram a partir do momento que tiveram contato com o europeu. Daí a importância da revisão proposta pela campo pós-colo-nial e da inclusão sugerida pelo campo multicultural.

O mesmo pode-se dizer sobre a figura do negro. O silêncio gritante que fez-se nesse primeiro projeto nacional ecoa até os dias atuais. Mesmo que se façam usos de sua figura em gerações posteriores, tanto na historiografia, na literatura e na arte, esses usos dificilmente saem da teoria. Nesse contexto, após o reconhecimento de sua existência por alguns abolicio-nistas, mais por razões econômicas e por movimentos globais do que pela preocupação com uma possível injustiça, “[...] o que emergiu foi a vigorosa adesão à ideia de um Brasil, paula-tinamente, mais branco” (SKIDMORE, 1976, p. 43). Em outras palavras, desejou-se a longo prazo que figuras que irrompessem a “branquitude” fossem lentamente sendo apagadas. Como diria Schwarcz sobre nosso processo nacional e imaginativo na apresentação de Comunidades Imaginadas:

[...] nossa nacionalidade tropical é uma identidade invariavelmente definida pela “falta”. Imaginar é, como vimos, selecionar e obliterar, e é interessante pensar como, em meados do século XIX, em pleno império, nos entendíamos como europeus ou no máximo indígenas [...] na representação oficial “esquecemos” a instituição escra-vocrata [...] e exaltamos a natureza provedora dos trópicos.” (2008, p. 15 -16).

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Em prol da criação de uma identidade una, que represente “toda uma nação”, vários apagamentos são realizados, porém, essas tentativas de apagamento não são inertes. Sujeitos que foram forçosamente colocados numa “caixa social homogênea” agora clamam por seu direito à heterogeneidade, mais ainda, clamam pelo direito de um lugar de enunciação no meio social que os dê a chance de negociar a liberdade de sua subjetividade. Sujeitos que agora emergem desses interstícios provam que a recusa às ambivalências ao longo da história tem efeito desconcertante nos anseios nacionais. A asserção mais óbvia que esses indivíduos que desafiam a homogeneidade nos dão é que o Brasil tem um longo passado pela frente.

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Transcrição de documento

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UM SENHOR DE ENGENHO NA CIDADE DO NATAL COLONIAL O testamento do capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, 17981

Thiago do Nascimento Torres de Paula2 [email protected]

“[...] em casas de morada do engenho do capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, para onde eu tabelião adiante nomeado fui vindo e sendo apareceu perante mim tabelião o dito capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, doente de cama, porém, em seu perfeito juízo e entendimento que Deus foi servido dar-lhe, pessoa que reco-nheço pela própria de que se trata de que dou fé e logo por ele me foi dado este papel de sua mão a minha dizendo-me era o seu solene testamento [...]” (Joaquim José Pereira, escrivão interino da vara, 1798).

O objetivo deste estudo, é apresentar a comunidade de pesquisadores em História a transcri-ção do testamento do Capitão Manuel Alvares de Morais Navarro e Senhor de engenho no termo da Cidade do Natal. Com isso, buscando preservar o documento original elaborado na segunda metade do século XVIII, que atualmente encontra-se sob a guarda do arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Poucos foram os testamentos da Capitania do Rio Grande do Norte que chegaram ao tempo presente. O documento que expressa as últimas vontades do indivíduo supramencio-nado, agora transcrito sob as normas do Arquivo Nacional Brasileiro, vem a público com as marcas de sua trajetória, alguns pontos de ilegibilidade que foram causados pela ação de in-setos e acidentes com água. No entanto, tais lacunas não interferem na compreensão total da transcrição.

O testamento setecentista é uma confirmação da fé e do pertencimento a cristandade. No documento o indivíduo católico, reafirma sua crença nos dogmas da instituição, opondo-se àqueles da crença protestante, encomendando a alma à Santíssima Trindade, à Virgem, aos Santos, ao Anjo da guarda e a toda Corte celestial. Reconhecendo o sacrifício de Cristo como salvador de almas imortais, evoca-o através das missas e celebrações, deixados pagos, a serem consagradas à salvação da própria alma e às daqueles que faleceram anteriormente.

O desejo do testador era pôr a alma no caminho da salvação e do descanso eterno. Reconhecer os erros cometidos, as dívidas arroladas em vida e definindo ações para mitigá-los, o cristão estaria mais próximo do paraíso prometido nas escrituras sagradas. Em determi-nados casos, deixavam como universal herdeira a própria alma que se beneficiaria das decisões finais.

A declaração de bens, e principalmente das dívidas contraídas ao longo da vida a serem pagas pelos testamenteiros aponta para as prementes preocupações do fim da vida. Dessa forma, a oferta de bens e pagamentos diretos a Igreja, a repartição de valores aos pobres, alforria de cativos, ajuda aos afilhados e sobrinhos, tal como o reconhecimento de filhos bas-tardos, demonstrava a necessidade de reparação dos erros e de alívio da consciência.

1 A transcrição em tela é produto de um projeto de pós-doutorado com financiamento da CAPES. 2 Analista de Ciência, Tecnologia e Inovação da FAPERN (Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio Grande do Norte), Pós-Doutor em Educação pela UFRN (PNPD/CAPES/2017-2018), Doutor em História pela UFPR (2016), Mestre em História pela UFRN (2009), Bacharel e Licenciado em História pela UFRN (2005). Pesquisador do LEHS/UFRN (Laboratório de Experimentação em História Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Docente Colaborador do Curso de Mestrado em História dos Sertões da UFRN, Colaborador da Pós-Graduação Lato Sensu do IFRN, Colaborador do Núcleo de Formação de Professores da SEEC-RN e titular da Cadeira de nº 96 do IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte).

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O testamento do senhor de engenho, terras e escravos o Capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, elaborado e aprovado ao apaga das luzes do século XVIII, especificamente aos 3 de novembro de 1798, escrito em sua propriedade as margens do rio Potengi na povoação de São Gonçalo, presta-se a um exemplo dos muitos outros testamentos da América portu-guesa, e pouquíssimos do termo da Cidade do Natal colonial.

Ao fim, é consenso entre os historiadores que testamentos elaborados em outras tem-poralidades, apresentam-se como fontes importantes para compreensão das múltiplas dimensões da vida cotidiana. Os testamentos em suas estruturas são portadores de informa-ções que podem ser examinadas por procedimentos qualitativos e quantitativos (MARCILIO, 1983; RODRIGUES, 2013; SANTOS, 2013).

Em suma, a transcrição exposta poderá servir como material para o processo de ensino e aprendizado de jovens pesquisadores, em cursos e seminários de Metodologia da Pesquisa Histórica, ou mesmo, como fonte para investigações no campo da História Sociocultural, His-tória Econômica e História da Cultura Material.

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Transcrição Testamento do Capitão Manuel Alvares de Morais Navarro (1798). Registro do testamento com que faleceu o capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, mora-dor que foi na povoação de São Gonçalo, desta freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Em nome da santíssima trindade, padre, filho, espírito santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro em quem creio, confesso e adoro. Saibam quantos este instrumento virem como no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil sete centos e noventa e oito, aos três dias do mês de novembro do dito ano, estando eu, o capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, na minha própria casa de engenho no sítio Potengi de São Gonçalo, em meu perfeito juízo e entendimento, achando-me molestado na saúde, desejando salvar-me que confio na misericórdia de meu senhor Jesus Cristo, faço este meu testamento no dito meu sítio e minha própria casa da forma seguinte. Primeiramente encomendo a minha alma a santíssima trin-dade que a criou e rogo ao eterno pai pela mor do seu filho nosso salvador Jesus Cristo a queira receber, e por isso peço a gloriosa virgem Maria Nossa Senhora e a todos os santos da corte do céu, particularmente ao meu anjo da guardam intercedam por mim, a meu senhor Jesus Cristo, agora e quando a minha alma deste corpo sair, porque como verdadeiro cristão quero viver e morrer na santa fé católica, nesta espero salvar a minha alma, não pelos meus merecimentos, mas pela morte paixão do meu unigênito Filho de Deus. Peço e rogo ao reve-rendíssimo senhor padre Bonifácio da Rocha Vieira, e ao coronel de milícias, o senhor Joaquim José do Rego Barros, a Inácio Nunes Correia Tomás, que por serviço de Nossa Senhora e por me fazerem mercê queiram ser os meus testamenteiros que confio nas suas caridades e [ilegí-vel] a minha súplica. Primeiramente o meu testamenteiro, digo, o meu corpo será sepultado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação desta freguesia vestido no hábito de São Francisco, a quem acompanhará o meu reverendo pároco com o seu sacristão unicamente até a cidade sendo disposto em alguma casa será conduzido para Igreja com acompanhamento dos clérigos e coroinhas que na mesma cidade houverem e me acham que para este fim se fizerem o meu reverendo pároco fará logo oficio de corpo presente com os disto clérigo e coroinhas na mesma cidade sem chamar outros de outra parte, em sinais da obrigação o meu

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testamenteiro dará unicamente velas ao meu pároco e mais clérigos e algum homem de pro-bidade mandará logo dizer missa por todos os clérigos que houverem de corpo presente com a esmola de trezentos e vinte réis a todos os ditos clérigos dará oitavário com a mesma esmola de trezentos e vinte. Declaro que por minha alma se diga quatro capelas de missas com a esmola da constituição. Declaro que se diga mais duas capelas de missas por alma de meus pais e mais meia capela pelas almas do purgatório, com as esmolas declaradas. Declaro que tenho no sítio Pumari, ribeira do Ceará-mirim, de largura cumprimento e do cumprimento largura para onde melhor contas fizer. Declaro que nesta [ilegível] de São Gonçalo do Potengi tenho cento e setenta e quatro braças de terra de largura com o fundo de meia légua, em que esta estabelecida a minha casa de vivenda e o Engenho de fazer açúcar. Declaro que tenho umas cabeças de gado no Potengi e Ceará-mirim, cujo número será o que a terra disser. De-claro que tenho cinquenta cabeças de animal cavalar pouco mais ou menos, entre machos e fêmea. Declaro que tenho os escravos seguintes: Angelo, Amuto, José, Vicente, Luís, Alexan-dre, Ana, Maria e Joaquina. Declaro que Joaquina o meu testamenteiro lhe pagará sua carta de alforria por ser esta a minha vontade. Declaro que tenho um vestido inteiro de farda, um espadim e dois traçados, um de prata e outro de cabo de osso, um jogo de fivelas de pés, ligas e pescoço, duas bengalas, dois pares de esporas, quatro colheres, um garfo, tudo de prata, tenho mais um par de fivelas usado, tenho mais um breve pequeno de ouro lavrado. Declaro que tenho duas celas de moroquim com acento de veludo, uma verde e outra encarnada, ambas bordadas e umas capeladas azuis bordadas de fio de prata, tenho quatro camisas finas com berturas, mais um jogo de calções e coletes de sustão branco. Declaro que devo ao santíssimo sacramento tudo quanto disser o tesoureiro. Declaro que dei uma obrigação de cinquenta ou sessenta mil réis ao tesoureiro de Nossa Senhora da Apresentação para pagar as mais que eu devesse que é Inácio Nunes Correia Tomás, se acaso sobejar ser tudo para a mesma senhora e se ficar devendo o meu testamenteiro prontamente pagará como também toda a dívida de irmandade de santos algum que constar que seja de pessoa fidedigna ainda que não mostre obrigação. Declaro que o meu engenho se acha fabricado de uma caldeira de melar, três tachos, uma escumadeira e duas ponbas, tudo de cobre, dezesseis bons manpos, um carro velho e suas cangas. Declaro que possuo trezentos mil réis que os entreguei a minha cunhada Dona Maria Soares, diante do reverendo padre Miguel Francisco. Domingos Rodrigues da Silveira, que este escreveu para os entregar por minha morte ao meu testamenteiro para as minhas disposições. Declaro que nunca fui casado e nem tenho herdeiros forçados só sim dois filhos naturais, um macho e outra fêmea, o macho filho de Margarida de Mendonça, chamado Antônio de Morais, e a fêmea filha da viúva Francisca Antônia na cidade chamada de Inácia, ao meu filho Antônio meu testamenteiro dará para cômodo da sua sustentação três bestas, dois cavalos e quatro vacas ou novilhos, e toda a terra que comprei a viúva Maria Freira da Apresentação, deixo a minha filha Inácia trezentos mil réis, cento e dez na minha escrava Maria, com que o meu testamenteiro lhe completará em dinheiro, ouro, prata. Deixo a meu afilhado Lourenço, filho de meu irmão Joaquim de Morais, o cabra Alexandre. O meu testamenteiro dará a duas mu-lheres pobres viúvas e honradas a cada uma quatro mil reis. O meu testamenteiro dará ao reverendo padre Inácio Pinto de Almeida e ao capitão Francisco de Souza quatro mil réis a cada um para desencargo de minha consciência em algum descuido que tivesse na fatura dos açucares que se fizeram no meu engenho, dos ditos senhores e a todos os mais que no meu engenho moeram destuções; Deixo ao senhor Gonçalo oito mil réis. Deixo a Nossa Senhora da Apresentação desta cidade vinte mil réis. O meu testamenteiro cumpridos os meus legados a meu sobrinho José Rego, filho de meu irmão, o capitão-mor Joaquim de Morais dará um dez mil réis para vos que eu tenho, e o mais se repartirá igualmente entre as minhas sobrinhas

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Dona Francisca, filha de meu irmão o capitão Francisco Teixeira, Dona Ana Pedrosa, mulher do tenente Vitor Antônio, Dona Ana Maria, mulher de Manuel Cavalcante, o que tudo o meu testamenteiro administrará por ser esta minha última vontade. Declaro mais este dos bens que deixo as minhas ditas sobrinhas, nem seus pais, nem seus maridos poderão depender, nem herdar, pois quero que os mesmos bens por morte de minhas sobrinhas passem para seus filhos, as que tiverem, e as que não tiverem filhos por sua morte passará aos meus herdeiros. Portanto, revogo outro qualquer testamento ou codecilho que antes deste tenha feito e só quero que este unicamente tenha todo o vigor por ser só esta minha última vontade, para o que peço aos meus testamenteiros acima declarados queiram aceitar este testamento como tenho determinado, aos quais todos juntos e cada um [ilegível] in solidum dou todos os meus poderes que em direito posso, e me são permitidos para dos meus bens tomarem e venderem o que necessário for para meu enterramento e cumprimento dos meus legados e para tudo os constituo meus bastantes procuradores, administradores, agentes, solicitadores com livre e geral administração e poderes em todos os meus bens e fazendas para haverem assim qualquer parte onde se acharem e obrarem, receber, administrar e dispor como se seu próprio fosse para assim o fazerem sem impedimento algum ou embargo por ser esta a minha última von-tade a justiças de Sua Majestade Fidelíssima o cumpram e fação cumprir e guardar como neste testamento se contém e por não poder estar escrevendo para não aprovar a minha enfermi-dade, ainda que em meu juízo perfeito ditando e declarando tudo quanto neste testamento se contém, pedi e roguei a Domingos Rodrigues da Silveira, este escreveu como testemunha as-sinasse o que tudo o meu testamenteiro a custa da minha fazenda assim cumpra dissolvendo todo o embaraço que puserem. Domingos Rodrigues Silveira, Manuel Alvares de Morais Na-varro = Aprovação = Saibam quantos este público instrumento de aprovação virem que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e noventa e oito anos, aos três dias do mês de novembro do dito ano, nesta povoação de São Gonçalo, Barreira do Rio Potengi, termo da cidade do Natal, capitania do Rio Grande, em casas de morada do en-genho do capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, para onde eu tabelião adiante nomeado fui vindo e sendo apareceu perante mim tabelião o dito capitão Manuel Alvares de Morais Navarro, doente de cama, porém, em seu perfeito juízo e entendimento que Deus foi servido dar-lhe, pessoa que reconheço pela própria de que se trata de que dou fé e logo por ele me foi dado este papel de sua mão a minha dizendo-me era o seu solene testamento que o havia mandado escrever por Domingos Rodrigues da Silveira, ditando-o ele testador e depois de escrito o mandará ler e aprovar conforme e na forma que ele testador o havia ditado se assi-nara com o dito Domingos da Silva, como testemunha que o escrevi, o requerendo-me o aprovasse, porquanto ele aprovava e retificava outro qualquer algum que antes deste tivesse feito ou codecilho e que só este queria tivesse todo o vigor e requeria as justiças de Sua Ma-jestade Fidelíssima que Deus guarde, assim seculares como eclesiásticas lhes devem todo inteiro vigor, cujo testamento o tomei eu tabelião e o corri e acheu limpo, sem vício, entrelinha ou borrão algum que dúvida fizesse, o qual testamento estava escrito em cinco laudas e meia de papel que acaba onde eu tabelião principiei esta aprovação, cujo testamento estava escrito e assinado como testemunha que a escreveu Domingos Rodrigues da Silveira com o dito tes-tador, cujo testamento assim declarado o aprovo e hei por aprovado, tanto quanto em direito posso, como de meu ofício sou obrigado, sendo a tudo presentes por testemunhas que assina-ram com o dito testador, o alferes Antônio Rodrigues Santiago, Antônio Figueiredo Maciel, João Manuel de Abreu Soares, o porta bandeira Roberto de Sá Bezerra, o porta bandeira Joao Correia de Souza, o capitão diretor Francisco Xavier da Cunha, o furriel Estevão José Maciel, pessoas que reconhecem ao testador, e estes as testemunhas e todas de mim tabelião

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reconhecidas pelas próprias de que se tratam de que dou fé eu, Patrício Antônio de Albuquer-que, tabelião do público judicial e notas, na cidade do Natal, capitania do Rio Grande do Norte e seu termo pela rainha fidelíssima Nossa Senhora que Deus guarde etc que escrevi e assinei esta aprovação de meu sinal público, dia e era no principio dela declarado em fé de verdade, Patrício Antônio de Albuquerque, estava o sinal público, o tabelião Patrício Antônio de Albu-querque, Manuel Alvares de Morais Navarros = Antônio Rodrigues Santiago = Antônio de Figueiredo Maciel = José Manuel de Abreu Soares = Roberto de Sá Bezerra= Estevão José Maciel = Francisco Xavier da Cunha = João Correia de Souza = Aos dez dias do mês de no-vembro do ano de mil setecentos e noventa e oito, nesta cidade do Natal, capitania do Rio Grande do Norte, abri este testamento retro por me apresentar o tenente Vitor Antônio de Morais Castro, dizendo-me era falecido o testador o capitão Manuel Alvares de Morais Na-varro e estava serrado com três pontos de linha branca, por banda e outros tantos pingos de lacar vermelho, aprovado pelo tabelião Patrício Antônio de Albuquerque, pelo que ordeno se cumpra como nele se contem dia, mês, ano, era supra. O padre Miguel Francisco do Rego Barros, vigário encomendado = Aceito este testamento com o pretexto da minha vintena ci-dade do Natal, aos dez de novembro de mil setecentos e noventa e oito. Bonifácio da Costa Vieira = E não se continha mais em dito testamento que eu, Joaquim José Pereira, escrivão da vara interino bem e fielmente copiei do próprio escrevi aos quatorze dias do mês de novembro do ano de mil setecentos e noventa e oito.

Joaquim José Pereira Escrivão interino da vara.

Referências Fonte Fundo Documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Livro de Notas. Testamentos Nº cx. Ant. 113. Nº. Cx. atual: Ano: 1776. Fls. 93 - 96.

Bibliografia MARCÍLIO, Maria Luiza. “A morte de nossos ancestrais”. In: MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1983.

RODRIGUES, Cláudia, DILLMANN, Mauro. “Desejando pôr a minha alma no caminho da salvação: modelos católicos de testamentos no século XVIII”. História Unisinos, São Leo-poldo, v. 1, n. 17, p. 1-11, jan./abr. 2013.

SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. “Por uma história da morte: fontes, metodologia e possibi-lidades interpretativas sobre o Seridó”. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros; SANTOS, Rosenilson da Silva (Org.). Capitania do Rio Grande: história e colonização na América portuguesa. Natal: EDUFRN, 2013.

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Prática docente Excepcionalmente, esta primeira edição traz dois textos que tratam sobre prática docente.

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REPRESENTAÇÃO DAS NEGRAS E DOS NEGROS NO MUSEU HISTÓRICO DE CRATO-CE Invisibilidade e silenciamento

Antônia Lucivânia da Silva1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo discutir sobre o lugar do povo negro nos espaços de memória bem como quais narrativas são construídas acerca da história desse grupo étnico, tomando como ponto de partida o Museu Histórico Fundação Cultural José de Figueiredo Filho, na cidade de Crato-CE. O embasamento teórico tomou como referência a tese Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas negras em exposições de Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha, de 2006. A metodologia consistiu em uma visita de campo ao museu, no mês de abril de 2019, com licenciandos bolsistas do PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, projeto do qual a autora deste artigo fez parte como supervisora do subprojeto multidisci-plinar, o qual tinha como eixos norteadores: Gênero, Raça e Poder. Os procedimentos utilizados foram inicialmente a visita ao referido museu e, posteriormente, roda de conversa para socialização e problematização dos discursos acerca das presenças e das ausências legitimadas por esta instituição acerca do povo negro. Palavras-chave: Representação. Espaços de memória. Invisibilidade. Silenciamento.

Memoria, história e negação: o papel das instituições de memória no si-lenciamento do povo negro As exposições dos bens materiais referentes à história dos povos africanos apresentados pelos museus, na maioria das vezes, acabam transformando as manifestações culturais de origem ou inspiração africana em mercadoria, em objeto de consumo, distanciando o sentido dos ob-jetos e das culturas por eles representados de sua realidade. Manifestações que muitas vezes no cotidiano estão atreladas a uma concepção de mundo são vistos apenas como um produto mercadológico, destituídos do sentido que originariamente possuíam. São ressignificados a partir do olhar hierarquizador. Para o branco, até é aceitável consumir esta cultura como mero produto que se escolhe na “prateleira”. Mas esses mesmos consumidores de uma cultura trans-formada em algo exótico, não a aceitam como uma concepção de mundo, nem para si, nem para o outro, muitas vezes enxergando-a apenas como uma peça folclórica a ser admirada como algo já ultrapassado. Um simples artefato do passado que funciona como prova de uma suposta evolução cultural.

Desde o início do colonialismo sobre a África, colonizadores europeus reuniram ma-teriais desse continente para fomentar acervos de museus na Europa. Sobre esses objetos foi lançado um olhar classificador. Tais objetos, retirados do seu contexto de uso, receberam um tom exótico. Era o europeu estabelecendo e dizendo quem era o Outro, visto como o diferente e incivilizado.

Qual o sentido de expor? Expor objetos em museus nem sempre é sinônimo de valori-zação. Pode ser o contrário. Os europeus expunham em seus museus materiais das culturas africanas com intuito de convencer sua sociedade do quão inferior, escandalosa e incivilizada eram os povos africanos. Assim, a população dos países ditos civilizados, convencida da su-posta inferioridade e barbaridade dos povos colonizados, apoiariam a dominação sobre a África. Essas culturas eram − e ainda são − expostas nos museus como exemplo do que não deve ser seguido.

1 Professora da educação básica E. E. M. José Alves de Figueiredo SEDUC-CE.

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Sempre que entrarmos em um museu temos que olhar para os objetos tentando abs-trair a forma como eles estão representados. Que discurso é construído sobre eles? Não devemos apenas olhá-los mecanicamente, mas problematizá-los. Que objetos são esses? A quem pertenceram? Que funções desempenhavam no seu lugar de origem? Quem decidiu levá-los ao museu? Por quê? Como esses objetos foram adquiridos? Que discurso é construído em torno dos mesmos? Como esses objetos, no museu, representam os povos que os produzi-ram?

Os museus são lugares de produção de lembranças e de esquecimentos. São também espaços de violência. Têm a força de forjar um passado, um presente e um futuro. Constroem uma narrativa que muitas vezes omite conflitos e elaborando uma narrativa harmônica. Uma História que, em parte, nunca existiu. Ao silenciar os conflitos, castra possibilidades de repre-sentar o passado, e forçando a continuidade de uma sociedade violenta, porém, supostamente harmônica. Conforme aponta Cunha:

Outra questão percebida trata do predomínio de referências relativas aos negros no passado e em abordagens de trabalho escravo na lavoura – raramente em atividades urbanas e domésticas – sem que se apresentem informações sobre processos de luta e resistência organizados e enfrentados pelos escravizados. Em nenhuma das expo-sições há referências aos quilombos ou insurreições, por exemplo. Prevalecem imagens que levam à ideia da sociedade brasileira como de perfeita “ordem e pro-gresso” ao longo de sua história. A escravidão não é apresentada de forma problematizada, com todas as injunções a ela relacionadas, mas como prática plena-mente aceita e naturalizada, sem conflitos e pressões internas. (CUNHA, 2006, p. 79).

Eis um exemplo de silenciamento. Não evocar os conflitos, ajuda a forjar a crença de que a escravidão foi consentida pelos negros. Não mostrar os quilombos é esconder as possi-bilidades de resistência no passado e desencorajar as lutas e resistências no presente.

E por que os museus, conforme pesquisa apresentada por Cunha (2006), dão preferên-cia a mostrar o trabalho do negro somente na agricultura? Que idealização é essa? A pessoa negra poderia estar associada apenas à força física? E, o que fazer com os negros que se des-tacaram na arte e no trabalho intelectual? Ainda, o que fazer com as vidas negras após o período abolicionista e no tempo presente? O museu nega a capacidade política do povo negro e produz invisibilidades. Há uma negação do negro no presente. O autor destaca ainda a homogeneização das culturas africanas a partir das peças expostas nos museus, que geral-mente abordam a cultura ou a religião numa perspectiva que ele chama de iorubarização, pois repassa a ideia de que todos cultuavam as mesmas divindades, tinham as mesmas práticas culturais.

O museu do Crato e a ausência das negras e dos negros Mediante a proposta de visitarmos o museu, observamos que o discurso produzido pelo museu de Crato não difere muito do que fora constado por Cunha em sua pesquisa em museus do Brasil e Europa, ou difere no sentido de que sequer apresenta objetos ou imagens relacionadas à cultura africana e afro-brasileira. De alguma relação com a África, o museu apenas dispõe de uma pequena peça representando uma divindade antropozoomórfica de uma divindade egípcia, o que sequer foi mencionado pelos guias da instituição, dando a impressão de que o Egito não faz parte da África.

Sobre as pessoas negras no Brasil, ou mais especificamente as pessoas negras na His-tória do Crato, apenas foram mencionados pelos guias os castigos físicos de negros açoitados ao tronco de madeira, quando na ocasião um dos visitantes lhes indagou acerca de um tronco

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com correntes de ferro exposto em uma das salas. Vale ressaltar que a historiografia cearense até pouco tempo negou a existência de pessoas negras no Ceará, narrativa que vem sendo desconstruída principalmente pelo GRUNEC – Grupo de Valorização Negra do Cariri.

A história que se conta, seja pelos objetos e imagens expostas, seja pela narrativa ver-balizada pelos guias, reflete o protagonismo do colonizador, sendo quase que totalmente silenciada a história do povo negro ou só mencionada a sua presença enquanto ser subalter-nizado, sujeito à escravidão e aos castigos físicos.

A presença indígena, ainda que de forma insuficiente, foi representada por algumas peças, tais como: cachimbos, bonecas de argila, instrumentos líticos e urna funerária produ-zida em cerâmica, que pertenceram aos índios Kariri. Esses, vistos como seres do passado. Povos que habitaram a região e que foram exterminados, negando qualquer possibilidade da existência de integrantes desta nação indígena no tempo presente.

Com esse processo formativo foi possível perceber que na instituição legitimadora de memórias, o lugar das pessoas negras foi relegado ao silêncio, não havendo nenhuma refe-rência material que indique a presença dos afrodescendentes na construção da cidade de Crato. Pensar sobre as consequências políticas da ausência dos artefatos dos povos negros neste espaço de memórias, desnaturalizar os silenciamentos e criar estratégias de inserção das negras e dos negros de forma positiva nas exposições museológicas são possibilidades para o ensino de História e formação de professores.

Há um verdadeiro branqueamento da História narrada pelo museu. No entanto, a par-tir das ausências é possível desenvolver ações educativas neste espaço instituidor de lembranças e de esquecimentos, podendo indagar quem eram os sujeitos que habitavam aquele espaço que outrora desempenhou as funções de Casa de Câmara e Cadeia? Qual era a atuação das pessoas negras dentro daquele espaço de poder? Quais as possibilidades de pes-quisas acerca desse passado e desses sujeitos históricos?

Referência bibliográfica CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de memórias, palco de esqueci-mento: culturas africanas e das diásporas negras em exposições. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.

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REVOLUÇÃO EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA

Paola Cristina Ribeiro1

Em tempos de pandemia, toda sociedade foi obrigada a se reinventar, quem dirá os professo-res. Essa nova forma de atuar também nos permitiu repensar e analisar o que de fato estávamos fazendo, nesse mundo que está cada vez mais difícil promover o pensamento crítico e criativo dos alunos.

Introduzir o cotidiano dos alunos dentro do currículo, incorporando a resolução de problemas do cotidiano na estrutura curricular das escolas, contextualizando a vida e experi-ência do aluno ao conteúdo, é a forma de enriquecer o aprendizado, pois une o conhecimento teórico e a realidade de cada um, criando novas experiências e infinitas possibilidades.

O ensino online foi o grande desafio para o professor de química, alias para todos os profissionais de educação, tivemos que repensar o conteúdo e espaço, o giz e a lousa já não estavam mais disponíveis, o receio das aulas ao vivo assombrou até o mais experiente profes-sor, faltava à troca e a interação aluno-professor, precisava fazer com que eles tivessem presentes e participassem das aulas, assim a preparação do conteúdo das aulas se tornou o grande desafio. E se passar o conteúdo teórico já estava complicado, quem dirá as aulas prá-ticas sem laboratório, em química o momento mais esperado pelo aluno... Fazer experimentos, nesse momento corresponder às expectativas do aluno e manter ele entusiasmado pesou, acentuando a necessidade de se repensar o formato das aulas, foi então que a ideia de contex-tualizar a pratica do ensino ao cotidiano dos alunos se tornou a luz no fim do túnel.

Em uma das aulas ensinava o que era uma solução2, e que a mesma era composta de um soluto3 e um solvente4, tal diferenciação era essencial para futuros cálculos de concentra-ção que seriam ensinados a seguir. Em tempos normais essa matéria teria uma aula pratica para identificarem o que era o soluto e o solvente. Então como trabalho envie a seguinte pro-posta: Qual a atividade que você exerce em casa, na sua rotina em que utiliza soluções, faça um vídeo demonstrando ou contando, indicando o soluto e o solvente.

No dia seguinte os e-mails foram chegando com as atividades, não esperava grande adesão da turma já que nem todos se sentem confortáveis para gravar vídeos e se expressar publicamente, porém quando vi os frutos dessa proposta fiquei surpresa. Primeiramente a aderência dos alunos foi um número inesperado, cerca de 90% dos alunos enviaram o vídeo. Depois de assistir pude perceber a adequação da teoria a realidade de cada, eles juntaram as experiências e ferramentas que tinham a mão e uniram ao conteúdo, se tornando o protago-nista do conhecimento. Um aluno fez um vídeo enquanto preparava a mamadeira do filho, indicando que no caso da solução de leite, o pó com a mistura láctea seria o soluto e a água na qual ele iria dissolver o pó era o solvente, outro preparou uma solução de café instantâneo, indicando que o pó de café era o soluto e agua o solvente.

1 Química formada pela Faculdade de Pindamonhangaba (FAPI), Mestra em Ciências Ambientais pela Universi-dade de Taubaté (UNITAU), atualmente é doutoranda em Engenharia no Programa de pós-graduação em Engenharia Mecânica - Departamento de energia - linha de pesquisa em sustentabilidade pela Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). Professora no Colégio Tableau – escola particular do Ensino Infantil ao Técnico da cidade de Taubaté, situada no Vale do Paraíba, estado de São Paulo. 2 As soluções químicas são misturas homogêneas, formadas por um soluto totalmente dissolvido em um sol-vente. 3 Soluto: é a substância que pode ser dissolvida pelo solvente. Ela fica “solta” no processo de mistura até que se transforme em uma solução. No geral, os solutos estão no estado sólido. 4 Solvente: é a substância que pode dissolver outras substâncias, no caso o soluto, e formar soluções homogê-neas.

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O fato de os alunos conseguirem enxergar a química no dia a dia, contextualizar o aprendizado ao cafezinho de todos os dias foi muito gratificante, com isso o ensino acabou “rompendo” os muros da escola e chegando à casa de cada um, tornando o aluno protagonista do conhecimento. Levando-nos a refletir quais ensinamentos vamos levar desse tempo de pandemia? O que podemos mudar quando voltarmos à sala de aula? O comprometimento e resultado dos alunos nessa proposta de prática em casa me levaram a pensar... Quem sabe poderíamos difundir mais o conhecimento e levar a realidade de cada aluno para a sala de aula? E quem sabe com esse olhar poderemos fazer com que o aluno se permita construir o conhecimento junto ao professor e se sentir parte daquilo, podendo nos surpreender com os resultados.

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Ficha técnica Organizador do Dossiê Francisco Isaac Dantas de Oliveira – PUC-SP. Editoração e diagramação dos textos Gabriel Araújo Leonardo da Silva Claudiano Capa Francisco Isaac Dantas de Oliveira Gabriel Araújo Editor chefe Francisco Isaac Dantas de Oliveira Corpo editorial Alyne Marinho Cézar Miranda José Roberto Gimael Ferraz Junior Laura Oliveira Motta Leonardo da Silva Claudiano Luis Felipe Figueiredo Leitão Marina Rockenback Mariza Silva de Araújo Olivia Silva Nery Pedro Teixeira Monteiro Rodrigo Sampaio Pinto Thiago do Nascimento Torres de Paula Tipografia Linux Libertine (corpo) Linux Biolinum (títulos) Av. Olavo Lacerda Montenegro, 4369, L-20 Parnamirim, RN, CEP: 59154-350 Parnamirim, Rio Grande do Norte, 10 de agosto de 2020.

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