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Sumário

Editorial 6

Incoerências significativas: o princípio da insignificância na jurisprudência brasileira

(José Maria Panoeiro e Monique Cheker) 7

1. Da limitação do Direito Penal pelo bem jurídico e sua relação com o princípio da

insignificância 8

2. O problema: aplicabilidade concreta da insignificância pelo STF e STJ 14

3. A delimitação objetiva dos crimes e a adoção de critérios legislativos

pelos tribunais 29

4. O “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento” como um problema de

culpabilidade e não de tipicidade 34

5. A insignificância como justiça do caso concreto 36

6. A habitualidade ou reiteração criminosa nos delitos de bagatela 40

7. Conclusões 47

A habitualidade criminosa como elemento apto a afastar o princípio da

insignificância? (rafaela Santos MartinS da rosa e Sílvia Sordi) 50

1. Introdução 51

2. A proteção de bens jurídicos como missão do Direito Penal 53

3. O reconhecimento da tipicidade penal 55

4. Do princípio da insignificância 60

5. A habitualidade criminosa 66

6. A relação entre o princípio da insignificância e a habitualidade criminosa 71

7. Conclusões 86

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HABITUALIDADE E BAGATELA: equívocos na interpretação dos institutos da

culpablidade de autor e de fato (anderson Lodetti Cunha de oLiveira) 95

1. Introdução 96

2. Culpabilidade de autor 97

3. Culpabilidade de Fato/Ato 109

4. Reiteração criminosa e bagatela 114

5. Conclusões 123

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Editorial

Quais os limites do poder punitivo do Estado? O que é insignificante? De que

forma os Tribunais vem tratando o assunto? Essas são algumas das perguntas que a

revista jurídica eletrônica Omnes busca responder em sua segunda edição.

A publicação traz como tema central o princípio da bagatela, ou da insignificân-

cia. A análise da jurisprudência referente ao assunto é feita de forma notável pelos

procuradores da República José Maria Panoeiro e Monique Cheker, bem como pela

juíza federal substituta em Jaraguá do Sul/SC Rafaela Santos Martins da Rosa e pela

servidora pública federal Sílvia Sordi.

Já o artigo do procurador da República Anderson Lodetti visa a demonstrar que

a reiteração criminosa e a habitualidade são incompatíveis com o princípio da insig-

nificância.

Mais uma vez a revista digital cumpre seu papel de incentivar o estudo da teoria,

da legislação e da jurisprudência.

Boa leitura!

Alexandre Camanho de Assis

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7Revista Omnes - ANPR no 1

Incoerências significativas: o princípio da

insignificância na jurisprudência brasileira

José Maria Panoeiro1

Monique Cheker2

1

Da limitação do Direito Penal pelo bem jurídico e sua relação com o princípio

da insignificância

2O problema: aplicabilidade concreta da insignificância pelo STF e STJ

3 A delimitação objetiva dos crimes e a adoção de

critérios legislativos pelos tribunais

4 O “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento”

como um problema de culpabilidade e não de tipicidade

5 A insignificância como justiça do caso concreto

6 A habitualidade ou reiteração criminosa nos delitos de bagatela

7 Conclusão

1 Procurador da República no Estado do Rio de Janeiro, mestrando em Direito Penal pela UERJ.

2 Procuradora da República no Município de Cascavel/PR.

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8 Revista Omnes - ANPR no 1

1. Da limitação do Direito Penal pelo bem jurídico e sua relação com o princípio

da insignificância

Desde que o Direito Penal, fortemente influenciado pelos paradigmas ilu-

ministas, abandonou a ideia de delito como pecado e substituiu a violação da

vontade divina pela violação da vontade da coletividade, a doutrina busca estabe-

lecer os limites dentro dos quais o exercício do poder punitivo se torne legítimo.

Busca-se, digamos, um vetor central para a aplicação da sanção a determinados

comportamentos.1

Nesse contexto, aponta-se para FEUERBACH como o primeiro grande estu-

dioso a buscar um conceito material de crime. O autor formula, então, a ideia de

bem jurídico como aquele que permitiria definir tal conceito. Em que pesem as

mais variadas concepções de bem jurídico, é certo que esse tem cumprido um

1 PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 26/27.

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9Revista Omnes - ANPR no 1

papel de limitar a intervenção penal em prol do indivíduo.2 Partindo de FEUER-

BACH - que toma o bem jurídico atrelado a um direito subjetivo e o delito, na sua

concepção material, a uma violação a tal direito -, passando pela concepção de

VON LISZT - que percebe no bem jurídico o interesse da vida humana juridica-

mente protegido -, ou ainda WELZEL - que o vê como um bem vital da comuni-

dade ou do indivíduo ou ainda um estado social desejável -, não é possível se afas-

tar da ideia de bem jurídico para legitimar a intervenção penal. Até mesmo concepções

funcionalistas sistêmicas (JAKOBS), que não aceitam um conteúdo a priori como

bem jurídico, acabam por identificar a vigência da norma como objeto de prote-

ção. De qualquer forma, em todas as concepções está presente a ideia de que o

bem jurídico funciona como um limite ao poder punitivo estatal.3

PUIG chega a fazer referência ao princípio de exclusiva proteção a bens jurídicos no

sentido de que não podem ser amparados pelo direito penal interesses meramente

morais, isto é, somente morais, o que não impede considerar que os bens jurí-

dicos penais também possam sê-los, mas exige-se que tenham algo a mais para

serem merecedores da tutela penal.4 É fundamental, temos, a presença da dano-

sidade social da conduta, isto é, que seja uma conduta socialmente indesejada e

que mereça o sancionamento penal.

Ainda, há de se esclarecer que se o conceito de bem jurídico padece de enor-

me controvérsia, sua vinculação à Constituição nos dias atuais apresenta-se de

2 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 25/26.

3 Para maiores considerações sobre a evolução do conceito de bem jurídico e seu panorama atual: Teoria do Bem Jurídico e Estrutura do Delito. RAPOSO, Guilherme Guedes. Porto Alegre: Núria Fábris Editora, 2011.

4 Tradução livre de SANTIAGO MIR PUIG. derecho penal. Parte geral. 8. ed. B de F: Buenos Aires, 2008, p. 120.

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10 Revista Omnes - ANPR no 1

maneira inconteste na doutrina5 e na jurisprudência.6

Como bem anota PRADO, as teorias constitucionais do bem jurídico pro-

curam formular critérios, a partir da Constituição, que se imponham de modo

necessário ao legislador ordinário no momento de criar o ilícito penal. Ainda

que se reconheçam duas concepções distintas, ora tomando a Constituição de

modo genérico a partir do modelo de Estado estabelecido na Carta (ROXIN), ora

tomando a Carta Política a partir de prescrições expressas ou não, os objetos de

tutela (BRICOLA), parecem não haver dúvidas de que a Lei Maior é o referencial

para o bem jurídico-penal.7

Nossa proposta de trabalho se aproxima dessa perspectiva constitucional de

bem jurídico e toma o princípio da insignificância como um verdadeiro corolário

da ideia de ofensividade concreta. O postulado da ofensividade (ou lesividade),

tão trabalhado pela doutrina atual, expressa simplesmente aquilo que corres-

pondeu à noção de crime, uma afetação de determinados interesses que são tu-

telados pelo Direito Penal. Nas palavras de HUNGRIA, “o crime é, antes de tudo, um

fato, entendendo-se por tal não só a expressão da vontade mediante ação (...) ou omissão,

como também o resultado (effectus sceleris), isto é, a consequente lesão ou periclitação de um

5 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 128/155. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral. 4. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp. 19/32. GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 95/120. GOMES, Luiz Flávio et alii. Direito Penal – Introdução e Princípios Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 377/562.

6 STF: HC 84687 / MS (DJ 27-10-2006) e HC 94524 / DF (DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008). STJ: AgRg no REsp 916207 / RS (DJe 18/08/2008) e HC 89798 / SP (DJe 04/08/2008).

7 PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal ... op.Cit., pp. 50/53.

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11Revista Omnes - ANPR no 1

bem ou interesse jurídico penalmente tutelado”. 8

Disso não destoa FERNANDO GALVÃO, que ao tratar da ofensividade afirma:

“o princípio materializa o axioma, segundo o qual nulla necessitas sine injuria, ou seja, não

há necessidade da repressão punitiva sem que haja ofensa ao bem jurídico”, e prossegue

em sua explanação estabelecendo nitidamente um vínculo entre as noções de

ofensividade e insignificância ao discorrer que “o direito penal não é instrumento

legítimo para reprovar condutas insignificantes, imorais, pecaminosas ou diferentes [...] a

repressão penal depende da ocorrência de manifestação externa, de uma interferência inter-

subjetiva, tendente a lesionar o bem jurídico.”9 (STOP)

A ideia de afetação do bem jurídico, embora uníssona na doutrina, motiva a

indicação de diferentes princípios e funções desempenhadas no âmbito penal.

Para alguns autores, perigo ou lesão ao bem jurídico é tema do princípio da ex-

clusiva proteção de bens jurídicos, incidente tanto na fase judicial, como na fase

legislativa.10

Outros abordam a questão dentro do princípio da lesividade e a examinam

sob um ponto de vista qualitativo de tal princípio, que impediria a criminali-

zação redutora de liberdades fundamentais previstas (de crença, de religião, de

8 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I, Tomo II. 4. ed. Rio de Janeiro: Foren-se, 1958, p. 10.

9 Direito Penal – Parte Geral. ... op.Cit., p. 117.

10 Segundo Luiz Régis Prado “O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos ... Reveste-se tal orientação de capital importância, pois não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Por influência, sobretudo, da doutrina italiana esse aspecto (ofensa ou lesão) cos-tuma ser autonomamente denominado de princípio da ofensividade ou da lesividade. Não obs-tante, convém frisar que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos opera nas fases legis-lativa (ou de criação do tipo de injusto) e judicial (ou de aplicação da lei penal). PRADO, Luiz Régis. Curso ... op. Cit., pp. 136/138.

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12 Revista Omnes - ANPR no 1

consciência, etc) na Constituição, e, sob um ponto de vista quantitativo, evitaria

a criminalização de lesões irrelevantes.11 Há, por fim, os que trabalham com o

tema sob as vestes da ofensividade, que teria uma dupla função no Direito Penal:

político-criminal, com o condão de impor um limite à atuação do legislador, a

vedar a criminalização de fatos que não colocassem o bem jurídico ao menos

em perigo; e uma função interpretativa, dirigida ao juiz, faria com que estivesse

afastada do Direito Penal uma conduta não ofensiva.12

Não temos dúvidas em identificar uma verdadeira proximidade, quando não

uma identidade, entre a função interpretativa do princípio da ofensividade e o

próprio princípio da insignificância. Isso permite que determinados crimes que

atingem bens de pequeno valor sejam tratados pelos princípios e institutos do

Direito Penal com a devida valoração ofensiva13 e não simplesmente no âmbito do

Direito Civil ou Administrativo.14 Contudo, ao mesmo tempo, não há que se ne-

gar que em determinados casos essa delinquência patrimonial leve possa estar

11 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral ... op. Cit., p. 26.

12 GOMES, Luiz Flávio. O Princípio da Ofensividade no Direito Penal - Série As Ciências Criminais no Século XXI. Vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 28.

13 Conforme registrado por JESÚS-MÁRIA SILVA SÁNCHEZ, as considerações relativas à influên-cia de determinadas estruturas sociais sobre o fato delitivo reafirmam a idéia de que a resposta penal à delinquência patrimonial leve há de ser de natureza simbólica-expressiva e, não, direta-mente perturbante (tradução livre) – delicuencia patrimonial leve: una observación del estado de la cues-tión, pp. 335-336. Disponível em http://portal.uclm.es/portal/page/portal/IDP/Revista%20Naran-ja20 (Documentos)/Seccion%2025/delincuencia% 20patrimonial%20leve.pdf. Acesso em 10/1/2010.

14 Ainda, de acordo com JESÚS-MÁRIA SILVA SÁNCHEZ, a conversão da chamada “delinquência patrimonial leve” em mero ilícito administrativo não atenderia ao seu autêntico desvalor ético--social. Ademais, o referido autor trabalha com a ideia de dano intelectual do delito como sendo aquele, a par do dano material, que causa intranquilidade e irritação na consciência jurídica da generalidade (tradução livre) – idem, pp. 337-338.

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13Revista Omnes - ANPR no 1

ao abrigo do princípio da insignificância.

Vale destacar, ademais, que, em que pese o mérito de algumas críticas feitas

ao referido princípio, não nos parece viável negar sua aplicação ao argumento

da existência dos Juizados Especiais Criminais para infrações de menor poten-

cial ofensivo, ou de uma figura privilegiada em relação aos delitos patrimoniais

cometidos sem violência ou grave ameaça, ou mesmo seja a opção pela crimi-

nalização do legislador e não do intérprete.15 É da realidade que determinadas

condutas não devem interessar ao Direito Penal. Assim, por exemplo, se toda e

qualquer ofensa à honra no âmbito de uma relação familiar justificasse a inter-

venção penal, o Direito Penal estaria mais a estimular a desagregação familiar

e social do que a proteger qualquer tipo de interesse.16 Por tal razão, correta é a

lição de FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, para quem o Direito Penal não deveria

se ocupar de bagatelas.17

15 MARINHO, Alexandre Araripe. FREITAS, André Guilherme Tavares de. Manual de Direito Pe-nal, Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 52/61. Vide também TJRJ. Processo n. 2008.050.01647: Furto qualificado. Art. 155, §4, I n/f 14, II todos do CP. Condenação. (...) O réu, no interior de estacionamento, valendo-se de chave de fenda, arrombou automóvel apropriando--se da frente de um rádio toca CDs. Avistado pela vítima, que deflagrou a perseguição da guarda local, não logrou seu intento. Apesar da existência do princípio da bagatela, este não se encontra positivado em nosso sistema jurídico. Ao revés, a criação de infrações tidas como de menor po-tencial ofensivo assinalam claramente que é outra a intenção do Legislador. Ademais, há de ser ressaltado que a mercadoria furtada tem valor de mercado, pode ser facilmente comercializada, e representa lesão significativa no patrimônio da vítima. (…) - Oitava Câmara Criminal. Julga-mento: 31/07/2008.

16 Embora a doutrina resolva a questão tendo em vista a natureza da ação penal, privada, o que acarretaria a decadência com conseqüente extinção da punibilidade, alguns autores têm resolvi-do a questão no âmbito do conceito de ilicitude material, resgatado para possibilitar a aplicação da insignificância no caso citado (SANTOS, Juarez Cirino dos. ... op. Cit.)

17 Segundo Francisco de Assis Toledo “... o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas. Assim no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qual-

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14 Revista Omnes - ANPR no 1

2. O problema: aplicabilidade concreta da insignificância pelo STF e STJ

De fato, nossa preocupação não gravita em torno da possibilidade de se apli-

car o princípio da insignificância – inconteste ao nosso ver -, mas se volta à apli-

cação concreta que é dada ao princípio que tem ignorado um aspecto subjacente

àquele que é o do contexto social onde está inserido o bem jurídico.

Para MIGUEL REALE JÚNIOR, ao tratar da concepção material de delito, é na

sociedade que devemos encontrar os bens jurídicos.18 Sendo assim, na aplicação

da lei penal, deve o juiz voltar seus olhos para a sociedade, não apenas para o

autor do delito. Deve, queremos demarcar, buscar sentido social da norma penal

que tutela o bem jurídico na linha do que estatui o art. 5º do Decreto-Lei 4657/42,

antiga Lei de Introdução ao Código Civil, hoje Lei de Introdução às Normas do

Direito Brasileiro.

Os Tribunais, entretanto, têm feito incidir o princípio da insignificância com

critérios um pouco subjetivos, ainda que declarem o contrário, ou seja, a existên-

cia de critérios objetivos. A consequência dessa falta de balizas é a abertura de

um grande espaço interpretativo (muitas vezes sem racionalidade e/ou sistema-

ticidade alguma) a cada julgador, que passa a buscar a “justiça do caso concreto”

quer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa... o peculato do art. 312 não pode estar dirigido a ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas... .” TOLEDO, Francis-co de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 133.

18 Segundo o autor “... o direito institucionaliza, via comandos normativos, o proibido e o permi-tido, que inconscientemente e em latência já atuavam de certo modo no meio social. O Estado (legislador) como centro de poder, ao estabelecer as normas sofre o impulso das influências so-ciais e históricas ...”. REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 1998, p. 17.

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15Revista Omnes - ANPR no 1

ou a sua visão do justo.

A título de exemplo inicial, cabe registrar que o STJ e STF, no crime de furto,

já consideraram os mais variados critérios para o reconhecimento da insignifi-

cância, algumas vezes afastados dos limites interpretativos desta e utilizados,

no mais das vezes, para fundamentar uma maior ou menor reprovabilidade de

um fato típico, ou ainda para a efetiva fixação de pena. Podemos citar as diversas

referências feitas por aquelas Cortes: existência ou não de arrombamento; de escalada;

de concurso de agentes; de tentativa; se agente fugiu posteriormente do local; se houve ou

não restituição para a vítima; arrependimento eficaz; se foi praticado por militar ou não; em

estabelecimento militar ou não.

2.1. O Supremo Tribunal Federal

Não obstante o STF tenha afirmado que não apresenta repercussão geral o recurso

extraordinário que verse sobre a questão do reconhecimento de aplicação do princípio da

insignificância, porque se trata de tema infraconstitucional19, a matéria é conhecida em

sede de habeas corpus. A Corte Suprema já reconheceu, entretanto, que o princípio

da insignificância deve ser ventilado nos órgãos julgadores inferiores, sob pena

de supressão de instância.20

Assim, há tempos o STF firmou a orientação de que o princípio da insignifi-

cância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições obje-

tivas: (a) mínima ofensividade da conduta do agente; (b) nenhuma periculosida-

19 STF. AI 747522 RG, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, julgado em 27/08/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-09 PP-02343.

20 STF. HC 100307, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 10/05/2011, DJe-106 DIVULG 02-06-2011 PUBLIC 03-06-2011 EMENT VOL-02536-01 PP-00119.

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16 Revista Omnes - ANPR no 1

de social da ação; (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento; e (d)

inexpressividade da lesão jurídica provocada.21 (Precedentes: HC 104403/SP, rel.

Min. Cármen Lúcia, 1ªTurma, DJ de 1/2/2011; HC 104117/MT, rel. Min. Ricardo

Lewandowski, 1ª Turma, DJ de 26/10/2010; HC 96757/RS, rel. Min. Dias Toffoli,

1ª Turma, DJ de 4/12/2009; RHC 96813/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de

24/4/2009).

A tais requisitos, já se somou um outro, qual seja, a ausência de periculo-

sidade do agente (vide HC 104348, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI,

Primeira Turma, julgado em 19/10/2010, DJe-215 DIVULG 09-11-2010 PUBLIC 10-

11-2010 EMENT VOL-02428-01 PP-00025 LEXSTF v. 32, n. 384, 2010, p. 430-437).

Entretanto, data venia, a amplitude de tais vetores deixa o reconhecimento da

insignificância mais a critério da concepção individual de cada julgador sobre o

que é justo ou não, do que a aspectos realmente que possam demonstrar a imper-

tinência da incidência do Direito Penal.

O que se falar de “nenhuma periculosidade social da ação”? Haverá ações, real-

mente, que não provocam “nenhuma” periculosidade social? Ou essa periculosi-

dade [frise-se: ao bem jurídico] será mínima ou não suficiente para fazer incidir

a tutela penal? Haveria algum delineamento, realmente, objetivo para tal análise?

Podemos citar inúmeros julgados em que o reconhecimento da insignificância foi

pautado nos mais variados critérios existentes, dos quais tentamos fazer uma síntese:

(a) não insignificante: (a.1) o furto de um lap top dentro de um estabelecimen-

21 STF. HC 84412, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004, DJ 19-11-2004 PP-00037 EMENT VOL-02173-02 PP-00229 RT v. 94, n. 834, 2005, p. 477-481 RTJ VOL-00192-03 PP-00963.

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17Revista Omnes - ANPR no 1

to militar, tendo em vista o valor (R$ 2.229,00) e por ser patrimônio nacional22;

(a.2) receptação de bens avaliados em R$ 258,00 (duzentos e cinquenta e oito

reais) pois, além do valor dos bens receptados terem sido avaliados ao que equi-

vale a 86% do salário mínimo da época em que se deram os fatos, o crime de

receptação estimula outros crimes até mais graves, como latrocínio e roubo23;

(a.3) furto de R$ 60,00 (sessenta reais) e um talonário com 10 (dez) folhas de

cheques em branco em uma sala de aula24; (a.4) furto de uma bicicleta, de uma

pessoa humilde e de poucas posses, e, em ato contínuo, uma garrafa de uísque

– respectivamente R$ 70,00 (setenta reais) e R$ 21,80 (vinte e um reais e oitenta

centavos), sem atos de violência25; (a.5) furto em residência no valor de R$ 90,00

(noventa reais) com a utilização de chave de fenda para o arrombamento26; (a.6)

furto de uma bicicleta avaliada em R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais) valor

que, à época dos fatos, superava o salário mínimo então vigente27; (a.7) posse,

por militar, de reduzida quantidade de substância entorpecente em lugar sujeito

à administração castrense, não autoriza a aplicação do princípio da insignifi-

22 STF. HC 98159, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-152 DIVULG 13-08-2009 PUBLIC 14-08-2009 EMENT VOL-02369-06 PP-01236 RTJ VOL-00211- PP-00473 LEXSTF v. 31, n. 368, 2009, p. 504-509.

23 STF. HC 108946, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 22/11/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011.

24 STF. HC 94439, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 03/03/2009, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009 EMENT VOL-02355-03 PP-00476 RTJ VOL-00210-01 PP-00321 LEXSTF v. 31, n. 364, 2009, p. 362-372.

25 STF. HC 96003, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 02/06/2009, DJe-121 DIVULG 30-06-2009 PUBLIC 01-07-2009 EMENT VOL-02367-03 PP-00572 LEXSTF v. 31, n. 367, 2009, p. 402-410.

26 STF. HC 108528, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 21/06/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-146 DIVULG 29-07-2011 PUBLIC 01-08-2011.

27 STF. HC 108117, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 07/06/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 21-06-2011 PUBLIC 22-06-2011.

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18 Revista Omnes - ANPR no 1

cância28; (a.8) furto no valor de R$ 130,00 (cento e trinta reais) com rompimento

de obstáculo29; (a.9) com a utilização das facilidades militares, em concurso e

pela escalada, a tentativa de furto de peças de fardamento militar no valor de

R$ 315,19 (trezentos e quinze reais e dezenove centavos)30; (a.10) colocação em

circulação de duas cédulas falsas no valor de R$ 10,00 (dez reais) cada31; (a.11)

receptação de obra de arte no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais) tendo em

vista que, não obstante a reduzida expressividade financeira do valor efetivamen-

te pago, a restituição do bem ao patrimônio da vítima se deu muito mais como

fruto da ação policial do que, propriamente, do arrependimento do réu;32 (a.12)

violação de direito autoral33; (a.13) tentativa de furto majorado, com prejuízo de

R$ 333,00 (trezentos e trinta e três reais), rompimento de obstáculo e evasão do

local34; (a.14) tentativa de furto qualificado de aproximadamente 50 (cinquen-

28 Nesse sentido: (1) STF. HC 107455, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 31/05/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-117 DIVULG 17-06-2011 PUBLIC 20-06-2011; (2) STF. HC 104564 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 05/04/2011, DJe-100 DIVULG 26-05-2011 PUBLIC 27-05-2011 EMENT VOL-02531-01 PP-00102; (3) HC 107688, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 07/06/2011, PROCESSO ELETRÔ-NICO DJe-239 DIVULG 16-12-2011 PUBLIC 19-12-2011.

29 HC 107772, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 17/05/2011, PRO-CESSO ELETRÔNICO DJe-104 DIVULG 31-05-2011 PUBLIC 01-06-2011.

30 STF. HC 107431, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-095 DIVULG 19-05-2011 PUBLIC 20-05-2011.

31 STF. HC 97220, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 05/04/2011, DJe-164 DIVULG 25-08-2011 PUBLIC 26-08-2011 EMENT VOL-02574-01 PP-00151.

32 STF. HC 104490, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 15/02/2011, DJe-116 DIVULG 16-06-2011 PUBLIC 17-06-2011 EMENT VOL-02546-01 PP-00156.

33 STF. HC 100240, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 07/12/2010, DJe-041 DIVULG 01-03-2011 PUBLIC 02-03-2011 EMENT VOL-02474-01 PP-00126 LEXSTF v. 33, n. 387, 2011, pp. 342-349.

34 STF. HC 104820, Relator(a): Min. AYRE S BRITO, Segunda Turma, julgado em 7/12/2010, DJe-109 DIVULG 07-06-2011 PUBLIC 08-06-2011. EMENT VOL-02539-01 PP-00104.

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19Revista Omnes - ANPR no 1

ta) metros de fios de cobre35; (a.15) crime de apropriação indébita previdenciária

(CP, art. 168-A), tendo em vista que, segundo relatório do Tribunal de Contas da

União, o déficit registrado nas contas da Previdência no ano de 2009 já supera os

quarenta bilhões de reais36; (a.16) furto e tentativa de furto de uma “frente” de

um aparelho de CD, uma bengala, um controle remoto, uma agenda, um porta

óculos e um óculos de sol, tudo no valor de R$ 245,00 (duzentos e quarenta e

cinco reais), com uso de chave falsa em dois veículos.37

(b) insignificante: (b.1) no crime de descaminho, ilusão de tributos em valor

inferior ao montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais)38; (b.2) tentativa de furto

de tubos de pasta dental e barras de chocolate, avaliados em R$ 33,00 (trinta e

três reais)39; (b.3) prática de peculato com a subtração de pequenos objetos – da

Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – cuja soma total foi de R$ 130,00

35 STF. HC 104043, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 2/12/2010, DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011. EMENT VOL-02454-03 PP-00670.

36 STF. HC 98021, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 22/06/2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-03 PP-00516 RMDPPP v. 7, n. 37, 2010, p. 99-105 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 425-433 RT v. 100, n. 904, 2011, pp. 516-520.

37 STF. RHC 103552, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 01/06/2010, DJe-116 DIVULG 24-06-2010 PUBLIC 25-06-2010 EMENT VOL-02407-03 PP-00717 LEXSTF v. 32, n. 380, 2010, pp. 460-466.

38 STF. HC 100942, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011, DJe-172 DIVULG 06-09-2011 PUBLIC 08-09-2011 EMENT VOL-02582-02 PP-00235. Colacionou-se o julga-do mais recente, mas o STF, em sua maioria, adere a tal posição. O início da reflexão ficou por conta do Ministro MARCO AURÉLIO que, no habeas corpus n. 96.661/PR, rel. Min. CÁRMEN LÚ-CIA, julgado em 23 de junho de 2009, entendeu que não existe em qualquer preceito normativo, nem mesmo na Lei n. 10.522/2002, o reconhecimento de que o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é insignificante. Ademais, que se esse valor não é insignificante quando se quer tutelar o patrimônio privado, não poderia ser utilizado quando estivéssemos diante da coisa pública.

39 STF. HC 106068, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 14/06/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-150 DIVULG 04-08-2011 PUBLIC 05-08-2011.

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(cento e trinta reais)40; (b.4) tentativa de furto simples de uma máquina de cortar

cabelo no valor de R$ 70,00 (setenta reais)41; (b.5) ao delito castrense de porte (ou

posse) de substância entorpecente, desde que em quantidade ínfima e destinada

a uso próprio42.

Quais os critérios adotados para a aplicação ou não da insignificância? Pela

análise acima, exclui-se com segurança a aferição simples do valor material dos

bens subtraídos.43 Ora se colocam em relevo aspectos de fatos pretéritos prati-

cados pelo criminoso (ex. reincidência, personalidade voltada para a prática de

crimes44, arrependimento eficaz etc.), ora do regime a que ele está submetido

(ex. militar ou não), ora da pessoa ofendida, ora do modus operandi do crime e

pós-crime (ex.: arrombamento ou não e evasão do local), ora o fato de se atingir

o patrimônio nacional/público e, por fim, de outros aspectos demasiadamente

subjetivos (ex.: o crime de receptação estimula outros crimes até mais graves,

como latrocínio e roubo). Ademais, é importante frisar que o STF não aplica o

40 STF. HC 107370, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 21-06-2011 PUBLIC 22-06-2011.

41 STF. HC 106510, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG 10-06-2011 PUBLIC 13-06-2011.

42 STF. HC 97131, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/08/2010, DJe-159 DIVULG 26-08-2010 PUBLIC 27-08-2010 EMENT VOL-02412-01 PP-00212 RJSP v. 58, n. 394, 2010, p. 171-184 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 408-424.

43 Aliás, isso foi afirmado expressamente nos autos do HC 107431, STF, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/05/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-095 DIVULG 19-05-2011 PUBLIC 20-05-2011.

44 Há julgados em que o STF afasta a aplicação do principio da insignificância não só quando há reincidência, mas também quando o acusado demonstra uma “personalidade voltada para a pra-tica de crimes” – HC 104348, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, jul-gado em 19/10/2010, DJe-215 DIVULG 09-11-2010 PUBLIC 10-11-2010 EMENT VOL-02428-01 PP-00025 LEXSTF v. 32, n. 384, 2010, p. 430-437.

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21Revista Omnes - ANPR no 1

principio da insignificância ao crime de roubo.45

Há hipóteses em que a própria Corte Maior, não obstante reconhecer a simili-

tude do caso a outros nos quais se aplicou o princípio da insignificância, afirmou

que pelas peculiaridades do caso concreto, não iria fazê-lo. O julgado envolveu

uma tentativa de furto de um secador de cabelos usado, no valor de R$ 40,00

(quarenta reais), quando o criminoso, assustado com a presença da vítima, dei-

xou o objeto no chão, sem levá-lo. Reconheceu-se que o deliquente possuía duas

condenações criminais pela prática de furto e uma ação em andamento.46 Assim,

há uma tendência maior a não se admitir a aplicação do princípio da insignifi-

cância quando houver reincidência ou prática habitual de crime.47

No âmbito da aplicação da insignificância, salta aos olhos uma específica in-

45 Nesse sentido: STF. HC 97190, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 10/08/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010 EMENT VOL-02418-02 PP-00323 RTJ VOL-00216- PP-00374.

46 STF. HC 101591, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 22/02/2011, DJe-082 DIVULG 03-05-2011 PUBLIC 04-05-2011 EMENT VOL-02514-01 PP-00068.

47 De acordo com julgados recentes, os posicionamentos dos Ministros estariam divididos da se-guinte forma: (1) Afastam a aplicação da insignificância quando houver reiteração/reincidência: Ministros Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Luiz Fux (vide HC 100367, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011, DJe-172 DIVULG 06-09-2011 PUBLIC 08-09-2011 EMENT VOL-02582-01 PP-00189); AI 600500 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 24/05/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-02 PP-00258; HC 107067, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNI-CO DJe-099 DIVULG 25-05-2011 PUBLIC 26-05-2011; HC 107138, Relator(a): Min. RICARDO LE-WANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DI-VULG 27-05-2011 PUBLIC 30-05-2011); (2) Entendem que aspectos de outros processos não podem ser considerados para a analise da insignificância: Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso e Gilmar Mendes (vide HC n. 108872, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 22-09-2011 PUBLIC 23-09-2011; HC 106510, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG 10-06-2011 PUBLIC 13-06-2011; HC 93393, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 14/04/2009, DJe-089 DIVULG 14-05-2009 PUBLIC 15-05-2009 EMENT VOL-02360-02 PP-00366).

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22 Revista Omnes - ANPR no 1

congruência, qual seja: o reconhecimento do montante de R$ 10.000,00 (dez mil

reais) como bagatela. Tal aspecto será abordado em próximo tópico, mas, aqui,

cabe afirmar que o STF parte de um pressuposto equivocado, qual seja, de que

“não há sentido lógico em permitir que alguém seja processado, criminalmente, pela falta de

recolhimento de um tributo que nem sequer se tem a certeza de que será cobrado no âmbito

administrativo-tributário”48, em referência ao art. 20, da Lei n. 10.522/2002.

O quantum acima referido está relacionado exclusivamente ao patamar

mínimo para a cobrança judicial e, desse modo, não afeta os chamados ins-

trumentos de coerção indireta como as notificações ou intimações para o pa-

gamento; a cobrança administrativa amigável; o positivamento da dívida na

certidão negativa de débito; o impedindo o devedor a negociar ou licitar com o

Poder Público por ser considerado inadimplente, além do protesto de certidão

de dívida ativa e da inscrição nos órgãos de proteção do crédito, como o CA-

DIN, SPC e SERASA.49

O fato é que não há como se crer que os diversos Tribunais espalhados pelo

País, bem como sua Corte Máxima, desconheçam tal situação, ou seja, de que o

48 STF. HC 100369, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em 25/05/2010, DJe-116 DIVULG 24-06-2010 PUBLIC 25-06-2010 EMENT VOL-02407-03 PP-00570 LEXSTF v. 32, n. 379, 2010, p. 367-378.

49 Em resposta a ofício direcionado pelo Exmo. Procurador Regional da República Dr. Douglas Fischer (Ofício n. 68/09-PDA/PRFN4R/RS), o procurador-chefe da Dívida Ativa da União, Rafael Dias Degani, em 8 de setembro de 2009, afirmou, adrede: “[…] os débitos para com a Fazenda nacio-nal de valor consolidado superior a r$ 1.000,00 são inscritos em dívida ativa da União (daU) nos moldes do art. 2º da Lei n. 6.830/80. a partir do momento em que o débito altera sua condição para inscrito, a Procura-doria da Fazenda nacional (PFn) passa a cobrá-lo administrativamente, independentemente do quantum devido. vale dizer, conquanto o valor não seja suficiente para a realização do ajuizamento (art. 1º, inc. ii, Portaria MF n. 49 – r$ 10.000,00), a PFn pratica vários atos de cobrança (documento anexo) e a inclusão do CnPJ/CPF do contribuinte no Cadastro de inadimplentes (Cadin) na forma e tempo previstos no art. 2º da Lei n. 10.522/02. Convém anotar, por fim, que o débito inscrito de pequeno valor, assim entendido menor de r$ 10.000,00, é considerado como restrição para fins de certificação fiscal e de restituição/ressarcimento de tribu-tos (art. 7º do decreto-Lei n. 2.287/86)”.

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23Revista Omnes - ANPR no 1

valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é cobrado administrativamente e somente

é empecilho para o movimento da “máquina processual jurisdicional” (mesmo

assim, até ser atingido aquele valor na cumulação dos diversos procedimen-

tos). Atualmente, aparenta ocorrer uma “ditadura da jurisprudência extintiva de

processos”, ou seja, diante do arquivamento e redução no volume de milhares de

processos, os Tribunais – principalmente nas áreas de fronteira – têm dificul-

dades estruturais de lidar com teses que reverteriam tal situação.

Se o ponto nodal é a “cobrança ou não” administrativa, o que se falar do

crime de furto quando atinge o patrimônio público? Exemplo ofertado é o caso

de subtração de fios de cobre de um poste de iluminação pública, em que o STF

reconheceu, por duas vezes, a não aplicação do princípio da insignificância.50

Ora, no caso, não há cobrança judicial e, da mesma forma como ocorre nos

crimes tributários, há inevitavelmente prejuízo à coletividade e ao Poder Públi-

co. Igualmente, ubi eadem est ratio, ibi ide jus, ocorre com o crime de estelionato

previdenciário.

O fato é que (e, talvez, isso seja um dado de infeliz coerência), em relação

aos crimes tributários, a sangria escaldante que atinge os cofres públicos é

submetida a benesses interpretativas incongruentes por parte do Poder Judi-

ciário. A incompreensível aplicação do insignificância nessa seara é apenas um

exemplo disso.51

2-b) O Superior Tribunal de Justiça

50 Nesse sentido: (1) STF. HC 203.331/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, decisão unâ-nime, julgado em 23.08.2011, DJ em 08.09.2011; (2) HC 150.349/SP, Rel. Ministro HAROLDO RO-DRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 29/08/2011.

51 Em referência a outras espécies de benesses interpretativas em relação aos crimes tributários,

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24 Revista Omnes - ANPR no 1

Da mesma forma como ocorre com o STF, o STJ não analisa o princípio da

insignificância não ventilado nos órgãos julgadores inferiores, sob pena de su-

pressão de instância.52 Igualmente, o STJ aplica os vetores oriundos do STF, já

supramencionados, com o seguinte resultado:

(a) não insignificante: (a.1) hipóteses de fraude contra o seguro-desemprego,

uma vez que, no caso em tela, o bem jurídico tutelado é o patrimônio público53;

(a.2) furto de quatro calças, no valor total de R$ 227,80 (duzentos e vinte e sete

reais e oitenta centavos), que não podem ser tidos como imprescindíveis e, por

serem bens supérfluos, demonstra o desprezo pela aplicação da lei penal54; (a.3)

furto de objetos pessoais no valor de R$ 36,77 (trinta e seis reais e setenta e sete

centavos), em concurso de agentes e mediante o arrombamento de obstáculos55;

(a.4) subtração de uma bicicleta avaliada em R$ 500,00 (quinhentos reais), pelo

considerável valor do bem56; (a.5) furto de R$ 120 (cento e vinte reais), com níti-

recomendamos: (1) FISCHER, Douglas. Como a jurisdição pode propiciar maior impunidade em crimes tributário-fiscais. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, v. 19, p. 52-73, 2011; (2) FISCHER, Douglas. a impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa ainda sobre os problemas derivados dos precedentes do StF no hC nº 81.611-SP e seu confronto com o que decidido no hC nº 90.795-Pe. Direito e Democracia (ULBRA), v. 9, p. 184, 2008.

52 STJ. HC 189.434/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2011, DJe 31/08/2011.

53 STJ. AgRg no Ag 1216623/PA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 22/11/2010.

54 STJ. HC 188.524/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2011, DJe 31/08/2011.

55 STJ. HC 141.389/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011.

56 STJ. HC 207.444/MS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 16/08/2011, DJe 31/08/2011.

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25Revista Omnes - ANPR no 1

do abuso de confiança do patrão57; (a.6) fraude (estelionato) no pagamento por

meio de cheque no valor de R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais)58; (a.7) tentativa

de subtração em um ferro-velho, de duas bases de liquidificador marca Walita,

uma base de liquidificador marca Arno e uma bobina Champion, avaliados em

R$ 272,00 (duzentos e setenta e dois reais), valor próximo ao salário-mínimo da

época59; (a.8) subtração em estabelecimento comercial de 16 (dezesseis) tabletes

de chocolate, 1 (uma) embalagem contendo 12 (doze) unidades de chocolate, e

outras 5 (cinco) embalagens com 24 (vinte e quatro) unidades, avaliados no total

de R$ 198,98 (cento e noventa e oito reais e noventa e oito centavos), valor próxi-

mo ao salário mínimo vigente à época, de R$ 380,00 (trezentos e oitenta reais)60;

(a.9) tentativa de subtração, mediante arrombamento da porta de uma residên-

cia, 15 (quinze) ferramentas e duas bicicletas, no valor de R$ 60,00 (sessenta

reais)61; (a.10) subtração de 15 metros de fios de cobre de um poste de iluminação

pública. Reconheceu-se que, não obstante o pequeno valor atribuído à coisa sub-

traída (R$ 35,00), o dano que ações como a do paciente ocasionam é evidente por

atingir a coletividade e o Poder Público. Ademais, não se pode ignorar o fato de o

57 STJ. REsp 1179690/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 16/08/2011, DJe 29/08/2011.

58 STJ. AgRg no REsp 1187172/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 19/08/2011.

59 STJ. RHC 30.361/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 17/08/2011.

60 STJ. HC 208.958/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 17/08/2011.

61 STJ. HC 167.639/DF, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 17/08/2011.

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26 Revista Omnes - ANPR no 1

delito ter sido praticado com a colaboração de um inimputável62.

(b) insignificante: (b.1) furto de uma peça de alcatra pesando cinco quilos e

meio, avaliada em R$ 41,45 (quarenta e um reais e quarenta e cinco centavos)63;

(b.2) tentativa de furto de 01 (um) óculos de sol avaliado em R$ 49,90 (quarenta

e nove reais e noventa centavos)64; (b.3) tentativa de furto de uma máscara de tra-

tamento capilar da marca Dove, avaliada em R$ 8,95 (oito reais e noventa e cinco

centavos), integralmente restituída à vitima65; (b.4) débitos tributários que não

ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), sob justificativa do disposto

no art. 20 da Lei nº 10.522/0266; (b.5) nos delitos de apropriação indébita previ-

denciária quando o débito, que também é considerado dívida ativa da União pela

Lei 11.457/07, não for superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)67.

Da mesma forma como ocorre no STF, há julgados do STJ que ficam atentos

quando o crime é utilizado como “meio de vida” e, assim, tendem a afastar a apli-

cação do princípio da insignificância nesses casos, independentemente do valor

62 STJ. HC 150.349/SP, Rel. Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCA-DO DO TJ/CE), SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 29/08/2011.

63 STJ. HC 206.697/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011.

64 STJ. HC 211.042/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011.

65 STJ. HC 204.982/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 16/08/2011, DJe 30/08/2011.

66 STJ. REsp 1112748/TO, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2009, DJe 13/10/2009.

67 STJ. REsp 1074790/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 24/08/2011.

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27Revista Omnes - ANPR no 1

dos bens envolvidos.68 Adotam o entendimento da Corte Maior no sentido de

que: “o princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar cons-

tantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimos, isolados,

sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos

contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua repro-

vabilidade, perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito penal”.69 A

matéria, entretanto, não é pacífica, com pronunciamentos em sentido contrário,

isto é, de que “não é empecilho à aplicação do princípio da insignificância a existência de

condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais

em curso”.70

O STJ, em uma quantidade maior de julgados, tenta buscar o valor do salário-

-mínimo à época da prática do crime como referência para a aplicação do prin-

cípio da insignificância. Contudo, mesmo assim, o critério não é seguido obje-

tivamente já que o fato de o valor dos bens envolvidos chegar próximo àquele

quantum já é suficiente para afastar a bagatela.71

Como no STF, o STJ leva em consideração diversos fatores na aplicação do

princípio da insignificância, como o fato de o crime ter sido praticado dentro ou

fora de residência, se o bem foi ou não restituído, se foi em concurso de agentes,

68 Nesse sentido: STJ. HC 189.093/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2011, DJe 31/08/2011.

69 STJ. HC 162.578/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011.

70 STJ. HC 130.166/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julga-do em 09/08/2011, DJe 24/08/2011.

71 STJ. HC 206.430/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 17/08/2011.

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28 Revista Omnes - ANPR no 1

mediante a utilização ou não de arrombamento.72

Por fim, estende-se ao STJ a mesma análise crítica negativa que se faz ao en-

tendimento do STF, quanto ao reconhecimento do montante de R$ 10.000,00

(dez mil reais) nas dívidas fiscais como insignificante. Mais grave: a Quinta Tur-

ma do STJ, em especial os Ministros ADILSON VIEIRA MACABU (Desembarga-

dor convocado do TJ/RJ), GILSON DIPP, LAuRITA VAz e NAPOLEãO NuNES

MAIA FILhO votou com o Ministro relator JORGE MuSSI e decidiu por aplicá-la

ao crime do art. 168-A do CP, algo que, pelo menos até a data das pesquisas rea-

lizadas, vai de encontro à postura jurisdicional do STF.73

Já no AgRg no Ag 1216623/PA, por unanimidade, os Ministros NAPOLEãO

NuNES MAIA FILhO, JORGE MuSSI, HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO

(convocado TJ/AP) e GILSON DIPP votaram com a Ministra Relatora LAuRITA

FAz e decidiram que “não se aplica o princípio da insignificância nas fraudes contra o

Programa de Seguro-desemprego, uma vez que, ainda que ínfimo o valor obtido com o este-

lionato praticado, deve ser levado em consideração, nesses casos, o risco de desestabilização

do referido programa”.74

Ora, absolutamente incompreensível a contradição acima, até porque, con-

72 STJ. HC 205.940/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 17/08/2011.

73 No AgRg-REsp 1114109/SP, sob a relatoria do Ministro Jorge Mussi, seguido pelos Ministros Marco Aurélio Bellizze, Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Gilson Dipp e Laurita Vaz, com poucas linhas de argumentação principal, entendeu-se que “a Lei nº 11.457⁄2007 considerou também como dívida ativa da União os débitos decorrentes das contribuições previ-denciárias, dando-lhes tratamento similar aos débitos tributários. tal a situação, não há porque distinguir para efeitos penais os crimes de descaminho e de apropriação indébita de contribuição previdenciária” – julga-do em 06/09/2011, DJe 16/09/2011.

74 STJ. STJ. AgRg no Ag 1216623/PA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 22/11/2010.

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29Revista Omnes - ANPR no 1

forme já reconheceu o STF, na rejeição da aplicação da insignificância aos cri-

mes de contribuição indébita previdenciária, devem-se levar em consideração

os danos verificados nas contas da previdência e, por óbvio, o próprio risco de

paralisação do sistema.75

A discrepância quanto ao valor da bagatela – e nem se fale que assim conside-

rou o legislador, pelas razões expostas acima não é somente entre o patrimônio

público e o particular, mas entre as decisões que tratam do primeiro. Nos autos

do habeas corpus n. 109639, decidiu-se que: “Por fim, quanto à aplicação do princípio

da insignificância, conquanto o objeto da ação delitiva tenha valor ínfimo - r$ 27,35

(vinte e sete reais e trinta e cinco centavos), a jurisprudência deste Sodalício assentou o

entendimento de ser inaplicável tal princípio aos delitos praticados contra a adminis-

tração pública [no caso em exame, a militar], haja vista, nesses casos, além da proteção

patrimonial, o resguardo da moral administrativa”.76

Ora, não obstante a independência funcional de cada órgão julgador, deci-

sões, como a acima mencionada, revelam – mais uma vez – quão anacrônica é a

consideração de que a afetação do patrimônio da previdência e do Fisco em valor

abaixo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é insignificante.

3. A delimitação objetiva dos crimes e a adoção de critérios legislativos pelos

tribunais

75 STF. HC 98021, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 22/06/2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-03 PP-00516 RMDPPP v. 7, n. 37, 2010, p. 99-105 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 425-433 RT v. 100, n. 904, 2011, pp. 516-520.

76 STJ. HC 109639, Rel. Vasco Della Giustina (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), SEX-TA TURMA, julgado em 06/09/2011, Dje 26/09/2011.

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30 Revista Omnes - ANPR no 1

A busca por critérios que legitimem a aplicação da insignificância e dimi-

nuam o grau de subjetivismo nos julgamentos passa pela análise de dois vetores:

(1) a delimitação dos crimes nos quais, em tese, é possível a aplicação do princí-

pio da insignificância – até porque, lembre-se, a relevância do bem jurídico deve

sempre ser considerada; (2) a busca, a priori, de critérios fixados pelo legislador.

Por claro, à falta de critérios legais para a aplicação da insignificância e mes-

mo dos crimes aos quais é possível sua incidência, fica a critério da jurisprudên-

cia fazer essa definição. Parece consolidado na jurisprudência do STJ e STF que o

crime de roubo não comporta a aplicação do princípio da insignificância. Nesse

ponto, claramente há uma opção pelo primeiro referencial, a excluir os delitos

cometidos com violência ou grave ameaça do rol daqueles que comportam a apli-

cação da insignificância.

Contudo, quando, por exemplo, no crime de furto, as referidas Cortes levam

em consideração aspectos que, posteriormente, deveriam ser valorados somen-

te no momento da aplicação da pena, data venia, equivocam-se. Pergunta-se: no

furto, o arrombamento, escalada e/ou concurso de agentes seriam relevantes

para a análise de afetação ao bem jurídico? Ou, ultrapassada a fase inicial de

tipicidade, devem ser considerados na culpabilidade?

Igualmente, quando, em alguns casos, rejeitam a insignificância por tal cri-

me ter sido praticado sob a administração simples ou militar também abrem

margem para julgamentos díspares como o foi o caso do furto de um lap top

dentro de um estabelecimento militar, em que foi afastada a insignificância pelo

valor e principalmente por ser patrimônio nacional.77 Não é pelo simples motivo

77 STF. HC 98159, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-152 DIVULG 13-08-2009 PUBLIC 14-08-2009 EMENT VOL-02369-06 PP-01236 RTJ VOL-00211- PP-00473 LEXSTF v. 31, n. 368, 2009, p. 504-509.

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31Revista Omnes - ANPR no 1

de a administração representar a coletividade que se irá afastar, de plano, a apli-

cação da insignificância sem análise do bem jurídico atingido.

Estivesse a bagatela limitada, desde logo, aos delitos patrimoniais, seria

mais fácil buscar um referencial naquilo que o legislador estabelece como re-

levante, por exemplo, o salário-mínimo. Entretanto, frise-se: tal critério pode

ser afastado justificadamente em relação às pessoas de menores posses e, não

simplesmente, com base em outros critérios inerentes à culpabilidade, confor-

me já destacado acima. Aqui, cumpre, então, colocar em confrontação dois re-

ferenciais equivalentes: patrimônio subtraído e prejuízo patrimonial à vítima.

A preocupação com esse referencial já foi objeto de consideração por parte do

Ministro CARLOS AYRES BRITTO, que trouxe à baila o problema decorrente de

tal referencial em relação às pessoas mais pobres.78

Vale lembrar que o ordenamento jurídico já traz uma previsão para um tra-

tamento mais brando em determinados delitos patrimoniais, o que deveria ser

sopesado no momento de se aplicar a insignificância (Art. 155, § 2º CP). A figura

privilegiada do furto é, segundo nossa visão, outra questão que merece ser revi-

sitada. O patamar de um salário mínimo, adotado pacificamente pela jurispru-

dência para a incidência da minorante, não traduz o “valor cuja perda poderá ser

facilmente suportada até mesmo por pessoa de recursos escassos” que HUNGRIA afirmava

ser o espírito da causa de diminuição.79

Parece evidente que o discurso da jurisprudência é no sentido da busca de um

78 STF. HC 84424, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 07/12/2004, DJ 07-10-2005 PP-00026 EMENT VOL-02208-02 PP-00238 RTJ VOL-00196-01 PP-00235 LEXSTF v. 27, n. 324, 2005, p. 383-391 RMP n. 28, 2008, p. 343-348.

79 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, Vol. VII, 1ª Edição, 1955, p. 30.

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32 Revista Omnes - ANPR no 1

referencial objetivo para a insignificância. Entretanto, são tantas as exceções,

relacionadas não à afetação do bem jurídico e, sim, à culpabilidade do agente,

que o critério se apresenta muito menos objetivo do que se pretende. Frise-se

que a existência de critérios legislativos, como o do salário-mínimo ou de outro

valor estabelecido pelo legislador, não é uma autorização ampla para se ignorar,

repita-se, a amplitude do dano ao bem jurídico – sempre em foco – e mesmo a vítima.

Mas, por outro lado, caso se queira afastar tal critério, é importante que haja

uma justificativa concreta para a peculiaridade do caso.

Outra tentativa de dar contornos objetivos ao princípio a partir da lei foi a uti-

lização do quantum de R$ 10.000,00 (dez mil reais) como insignificante – aspecto

acima abordado parcialmente. No entanto, os Tribunais conseguiram enxergar

algo que a norma não previu: que o art. 20, caput, da Lei n. 10.522/2002, mesmo

com a redação expressa do seu §1o80, tenha disposto sobre eventual desinteresse

na persecução ressarcitória, pior, ignoraram o real dispositivo do qual se poderia

retirar alguma conclusão nesse sentido, qual seja, o art. 18, §1o, daquele diploma

legal que fixa o valor de R$ 100,00 (cem reais) para que – aqui sim – haja dispen-

sa de constituição e inscrição em dívida ativa.81

Não bastasse a interpretação citada no parágrafo anterior, a jurisprudência

reforçou sua equivocada conclusão através de um engenhoso raciocínio que as-

80 “Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004). § 1o Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados”.

81 “Art. 18. Ficam dispensados a constituição de créditos da Fazenda Nacional, a inscrição como Dívida Ativa da União, o ajuizamento da respectiva execução fiscal, bem assim cancelados o lan-çamento e a inscrição, relativamente: […] § 1o Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)”.

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socia os princípios da insignificância e da intervenção mínima, forte na ideia de

ultima ratio do Direito Penal. Se não há interesse fiscal, não há interesse penal

como bem assentou o acórdão “(...) pois uma conduta administrativamente irrelevante

não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da

necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao

bem jurídico penalmente tutelado.”82

Porém, temos que se a Fazenda Pública - motivada por razões de economici-

dade, não deflagra a execução -, concluir que tal fato denotaria ausência de lesão

relevante no plano administrativo e, por consequência, insignificância no plano

criminal seria, no mínimo, açodado. Se não houvesse interesse fiscal, a hipótese

estaria acobertada por uma isenção e não simplesmente de uma hipótese de in-

cidência na qual o tributo não será executado. Se existem outras razões para não

haver execução, isso não quer dizer que o bem jurídico não tenha sido maltratado

e que a conduta não mereça sanção penal. Vale lembrar aqui que não se confun-

de a sonegação fiscal - conduta que tem como elementar a fraude e em muito se

aproxima do estelionato - com o mero inadimplemento. Estamos a cogitar de

crime, não de mera dívida de valor. É dizer assim que não se confunde com o

fato de que, no caso concreto, toda atuação administrativa deve estar pautada no

princípio da eficiência (art. 37 da CRFB/88) com a existência de crime.

Demais disso, a interpretação que toma por base o valor da execução cria uma

esdrúxula situação de “insignificância provisória”. É que a Lei n. 10.522/2002,

que regula a execução da Fazenda Pública Federal, afirma que uma vez ultrapas-

82 HC 92438/PR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008, EMENT VOL-02346-04 PP-00925, RTJ VOL-00207-03 PP-01163.

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sado o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a execução será reativada.

Ora, a insignificância em termos penais traduz, desde a conduta - permita-

-nos a redundância -, algo irrelevante para o Direito Penal. Como então se admi-

tir algo que fica em estado latente para se tornar relevante? Como compreender que um

fato não teria resultado jurídico no momento da conduta e com o passar do tem-

po assumiria tal resultado? Insignificante em termos de sonegação é o valor da

extinção dos créditos – como já aventamos acima - aquilo que a Fazenda Pública

declara, desde o início, que não afetou seu interesse arrecadatório.

Não se pode olvidar, ainda, a noção de delitos de acumulação que seriam os

delitos que isoladamente não parecem afetar o bem jurídico. Contudo, quando

suas condutas são reunidas, representam um enorme gravame para o objeto de

tutela.83 Isso ocorre nos delitos contra o meio ambiente, assim como na sonega-

ção fiscal. A solução defendida pela doutrina não é de excluir a bagatela em tais

crimes, mas de se delimitar com bastante precisão as hipóteses de insignificân-

cia, que no caso dos crimes tributários, segundo entendemos, poderia ser aquele

valor previsto no art. 18, § 1º, da Lei n. 10.522/2002.

4. O “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento” como um problema

de culpabilidade e não de tipicidade

A consagração do “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento”

como um dos requisitos “objetivos” para a aplicação da insignificância nos pare-

ce indevida. Evidente que a ideia de reprovação em Direito Penal está fortemente

83 Machado, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito Penal: Uma avaliação de novas ten-dências político criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, pp. 143-145.

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ligada à responsabilidade penal, é dizer, esta encontra seu fundamento naquela.84

Esse juízo de reprovação, associado à culpabilidade e não à tipicidade, é fruto

dos trabalhos de FRANK e, posteriormente, de GOLDSCHMIDT na concepção

normativa de culpabilidade.85 Desse modo, parece impróprio falar em reduzido

grau de reprovabilidade no âmbito de uma análise que deve ter por base o bem ju-

rídico como referencial único da tipicidade material. Tudo o mais – em especial,

a pessoa do agente, certa qualidade pessoal ostentada, a simples e pura reitera-

ção criminosa (ausente o intento de burlar a norma – vide observações abaixo) e

reincidência – deve ser analisado no momento da aplicação da pena.

Parece-nos evidente a proximidade desse tipo de construção com a doutrina

defendida por ROXIN, segundo a qual “aquilo que normalmente chamamos de exclusão

da culpabilidade se funda em parte na ausência ou redução da culpabilidade, mas em parte

também em considerações preventivo-gerais e especiais sobre a isenção de pena. dito posi-

tivamente: para a imputação subjetiva da ação injusta devem concorrer a culpabilidade do

autor e a necessidade preventiva de pena. Por isso proponho chamar a categoria do delito que

sucede ao injusto não de “culpabilidade”, mas de “responsabilidade”.86

Contudo, reiteramos, ROXIN trabalha com a questão no plano da dispensa

84 GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. ... op.cit., p. 405.

85 Segundo Galvão “A ideia de responsabilidade pelo ato praticado remonta a Aristóteles, mas como o pensador grego dissertou sobre a ética, e não sobre o Direito, foi FRANK, em sua obra de 1907, que ofereceu cabal contestação aos trabalhos positivistas e reuniu os elementos particula-res do juízo de reprovação da culpabilidade, que passa a ser considerada um juízo de valor nor-mativo. A noção de culpabilidade, a partir de então, foi enriquecida com a consideração sobre a contrariedade ao dever e deixou de ser meramente psicológica para adquirir carga valorativa”. GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. ... op.cit., pp. 409/410.

86 ROXIN, Claus; tradução Luís Greco. “Culpabilidade e sua exclusão em direito Penal” in estudos de di-reito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 154.

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da pena.87 A jurisprudência brasileira, por outro lado, que tem por base o crité-

rio da reprovabilidade, tem entendido pela exclusão da tipicidade ao abrigo da

insignificância.

5. A insignificância como justiça do caso concreto

Necessário trazer a registro, neste tópico, o precedente que é citado como

referencial para os vetores da insignificância: HC 84.412/SP (STF, 2ª T., Celso de

Mello, DJ 19.11.04). Não iremos diretamente aos vetores, mas ao fato concreto,

uma vez que as decisões judiciais em muitos casos se balizam mais pelo senso

de Justiça do que propriamente pela substância dos argumentos jurídicos desen-

volvidos.

Consta do inteiro teor que se tratava de furto de uma fita de videogame por

um jovem de 19 anos de idade. Não custa lembrar que a própria legislação penal

já prevê um tratamento mais brando para menores de 21 anos, o que aponta para

um juízo de reprovação menor, diverso daquele atribuído aos maiores de 21 e

menores de 70 anos.88

Ademais, independentemente do valor, não era o furto de dinheiro, mas de

87 No Brasil encontramos doutrina no sentido proposto por Roxin. Por todos colacionamos Luiz Flávio Gomes: “o princípio da irrelevância penal do fato está contemplado (expressamente) no art. 59 do CP e apresenta-se como consequência da desnecessidade da pena, no caso concreto. Já o princípio da insignificân-cia, ressalvadas raras exceções, não está previsto expressamente no direito brasileiro (é pura criação jurispru-dencial fundamentada nos princípios gerais do direito Penal.”(Princípio da Insignificância e outras ex-cludentes de tipicidade. Coleção Direito e Ciências Afins V.1. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 97).

88 “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: I - ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença” [...] “Art. 115 - São redu-zidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos”.

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37Revista Omnes - ANPR no 1

uma fita de videogame. E qual jovem já não quis um determinado brinquedo que

jamais teve? Porém, associar a pobreza ou a miséria automaticamente ao come-

timento do delito, tal e qual algumas correntes sociológicas preconizam, é de-

masiado precipitado.89

Retornamos ao julgado e constatamos que o valor do objeto material (a fita)

era de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) e que aparentemente havia “intenção de de-

volvê-la”, segundo uma testemunha. Ter a intenção de restituir não é algo apto a

apagar o delito, seja pela dificuldade em se provar tal intenção, ou mesmo porque

a restituição em nosso sistema jurídico não tem o condão de extinguir a punibi-

lidade, mas apenas de minorar a pena.

Cumpre aqui registrar que não seria essa a primeira vez que o STF teria se uti-

lizado da insignificância para trancar ações penais nas quais o fundamento adequado seria

outro, bem diverso da bagatela. Citemos o caso de uma nota falsa encontrada em

meio a várias notas verdadeiras. É mais do que assente na jurisprudência que no

delito de moeda falsa, não sendo o bem jurídico (fé pública) passível de quantifi-

cação descabe cogitar de insignificância.90

A hipótese descrita parece, a nosso juízo, ser muito mais uma questão de

fragilidade probatória do que propriamente de aplicação da insignificância.91

89 DIAS, Jorge de Figueiredo & Andadre, Manoel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2ª reimpressão. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, pp. 03-62

90 HC 97220/MG (STF, 2ª T., AYRES BRITTO, DJe-164 DIVULG 25-08-2011 PUBLIC 26-08-2011) , HC 96080/DF (STF, 1ªT., CÁRMEN LÚCIA, DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009) e HC 96153/MG (STF, 1ªT., CÁRMEN LÚCIA,DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009).

91 Parece-nos muito claro que a questão era de fragilidade probatória, uma vez que se estivésse-mos diante de alguém que já ostentasse outras condenações por delito de moeda falsa, por este-lionato talvez a conclusão fosse diversa.

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38 Revista Omnes - ANPR no 1

Contudo, a solução do STF foi no sentido de conceder a ordem diante da insigni-

ficância da conduta.92

Noutro caso julgado em 20/11/2007 e que poderia ser apontado como exem-

plo doutrinário de estado de necessidade, um militar que fora denunciado pelo

crime de abandono de posto (art. 195 do CPM) e obteve habeas corpus, ao abrigo

da insignificância e da exclusão da ilicitude, uma vez que cometera o delito para

salvar seu filho diante de uma situação de emergência.93 Ocorre que o mesmo

STF denegara dois outros habeas corpus, cujo fundamento era a alegação de estado

de necessidade.94

Ora, se a hipótese era tão flagrante em torno do estado de necessidade, a me-

lhor solução teria sido o arquivamento do procedimento investigatório; tal pro-

cedimento evitaria o surgimento de um precedente, aplicando a bagatela em um

crime militar, cuja objetividade jurídica não é passível de quantificação.

Podemos reconhecer nesse momento uma verdade, digamos, inconveniente: o

princípio da insignificância funciona como uma válvula de escape para que os

Tribunais Superiores realizem a justiça do caso concreto.

Novamente, ao examinarmos o inteiro teor do HC 84.412/SP, verificamos que

o suposto lesado “quis retirar a queixa” o que não foi possível diante da indisponi-

bilidade da ação penal. A impetração sustentava a desproporção entre a pena de

92 STF. HC 83526, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Primeira Turma, julgado em 16/03/2004, DJ 07-05-2004 PP-00025 EMENT VOL-02150-02 PP-00271.

93 STF. HC 92910, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/11/2007, DJe-064 DIVULG 04-04-2011 PUBLIC 05-04-2011 EMENT VOL-02496-01 PP-00044.

94 HC 94904 / RJ (STF, 1ª T., CARLOS BRITTO, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008) e HC 106128 / PR (STF, 2ª T., GILMAR MENDES, DJe-075 DIVULG 19-04-2011 PUBLIC 25-04-2011).

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39Revista Omnes - ANPR no 1

8 meses e o valor da coisa subtraída e ainda que tendo sido a coisa recuperada,

não haveria qualquer prejuízo.

Interessante notar que o furto tem pena mínima de 1 ano na forma simples

e que, no caso concreto, incidiu, por óbvio, a minorante do parágrafo 2º do art.

155 do CP de molde a fixar a pena abaixo da escala penal prevista no preceito

secundário do tipo. Por outro lado, a recuperação da coisa não tem o condão de

tornar irrelevante o fato, pois não se confunde reparação do dano com recupera-

ção da coisa e ambas com a insignificância, que deve ser aferida no momento da

conduta e da ocorrência do resultado.

O quadro apresentado é digno de reflexão, pois ao buscar Justiça, o relator

fixou as balizas ou vetores da insignificância como hoje conhecemos: (a) mínima

ofensividade da conduta do agente; (b) nenhuma periculosidade social da ação;

(c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressivi-

dade da lesão jurídica provocada.

Interessante foi constatar que o relator ressalvou que o princípio não se aplica

ao tema de entorpecentes, em especial no tráfico, por não estarem presentes os

vetores. Contudo, o mesmo ministro posteriormente reconheceu a aplicação do princípio

em delito de droga do Código Penal Militar (art. 290).95 Novamente, temos que a ques-

tão diz com o sentido de Justiça, uma vez que a legislação comum dá um trata-

mento extremamente brando ao usuário de drogas, quando em confronto com a

legislação castrense.

Isso fica evidente quando o próprio STF, ao aplicar o princípio em relação a

95 HC 97131 / RS (STF: 2ª T., CELSO DE MELLO, DJe-159 DIVULG 26-08-2010 PUBLIC 27-08-2010) e HC 101759 / MG (STF: 2ª T., CELSO DE MELLO, DJe-159 DIVULG 26-08-2010 PUBLIC 27-08-2010).

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dois militares que foram excluídos das Forças Armadas por porte de drogas, faz

o confronto da legislação castrense com as sanções do art. 28 da Lei 11.343/2006

para reconhecer a atipicidade da conduta, dando por suficiente a “sanção” de

exclusão administrativa.96

Desse modo, fica evidente que a aplicação do princípio da insignificância pelo

Pretório Excelso encontra-se muito mais vinculada a uma ideia de desnecessidade da

pena, em vez de vincular-se à pouca ou nenhuma afetação do bem jurídico. A

nosso viso, o maior problema desse tipo de construção é que, longe da realização

da justiça do caso concreto específico em que foram elaborados, os preceden-

tes funcionam como verdadeiros referenciais para todos os juízes e tribunais do

país.97 E mais, conduzem à punição de condutas penalmente relevantes à seara

da sorte ou do azar, conforme o julgador do caso concreto num verdadeiro mal-

trato ao princípio da isonomia.

6. A habitualidade ou reiteração criminosa nos delitos de bagatela

A problemática dos efeitos penais da reiteração criminosa, vista de uma for-

ma ampla, e o chamado “direito penal do autor” tem espaço não somente no Bra-

sil98 com discussões, por exemplo, em torno da reincidência, como circunstância

96 HC94524 / DF (STF, 2ªT, EROS GRAU, DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008) e HC 92961/SP (STF, 2ªT, EROS GRAU, DJe-031 DIVULG 21-02-2008 PUBLIC 22-02-2008).

97 Nem se fale quando os juízes e tribunais seguem as ementas desses precedentes que, algumas vezes, nada têm a ver com o inteiro teor dos próprios acórdãos. Sobre o tema: FISCHER, Douglas. a Prescrição no Crime de estelionato Previdenciário Continuado, as "ementas" e suas (equivocadas) "interpre-tações. Boletim dos Procuradores da República (Impresso), v. 83, p. 8-15, 2011.

98 Na Espanha, observar em JESÚS-MÁRIA SILVA SÁNCHEZ – delicuencia patrimonial leve: una ob-servación del estado de la cuestión – as discussões em torno do art. 234, do Código Penal com a se-guinte redação: “el que, con ánimo de lucro, tomare las cosas muebles ajenas sin la voluntad de su dueño será castigado, como reo de hurto, con la pena de prisión de seis a dieciocho meses si la cuantía de lo sustraído ex-cede de 400 euros. Con la misma pena se castigará al que en el plazo de un año realice tres veces la acción des-

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agravante no art. 61, I, do CP brasileiro.

Mas o que se analisa, no presente tópico, é a consideração de uma pura e

simples reiteração - não necessariamente reincidência em sentido técnico - para

afastar o princípio da insignificância, tese que, conforme já visto acima, tem en-

contrado abrigo na jurisprudência do STJ e STF.

Cumpre destacar aqui o fato de que determinadas situações que se apresen-

tam na vida real podem nos conduzir a uma situação de perplexidade. Imagine-

mos a situação de um estagiário de banco que logre transferir por meio de um

comando, num único dia, um centavo da conta de um milhão de clientes para

sua própria conta auferindo um ganho ilícito de dez mil reais. Ou ainda, pense-

mos na empregada doméstica que ao longo de seis meses subtraia, diariamente,

seu patrão em valores insignificantes de um ou dois reais. Como resolver tais

situações?

Podemos tomar o conjunto do proveito econômico obtido para fins de insig-

nificância? Ou devemos nos conformar com o fato de as lesões individualmente

consideradas são ínfimas e todo o fato escapa da incidência do Direito Penal?

Qualquer que seja a solução, ela passará por uma revisão em torno do que

seja a lesão decorrente do delito. Em tais situações, ZAFFARONI e PIERANGELI

trabalham com a idéia de um “verdadeiro delito continuado” para representar a

busca por uma solução justa e racional para casos como os apresentados.99 Se-

crita en el apartado 1 del artículo 623 de este Código, siempre que el montante acumulado de las infracciones sea superior al mínimo de la referida figura del delito”.

99 Zaffaroni, Eugênio Raúl & Pierangeli, José Henrique. Manual de direito Penal Brasileiro, vol. 1 – Parte Geral. São Paulo: RT, 7ª Edição, 2007, pp. 619/621.

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gundo esses autores, é necessário buscar uma interpretação racional dos tipos

penais de modo a evitar a conclusão, no segundo exemplo, de que a empregada

teria cometido cento e oitenta furtos. Dizem que no caso onde o bem jurídico

não é objeto de destruição, a reiteração constitui uma verdadeira modalidade de

execução ou prática do crime, no caso concreto.100

Contudo, para que se reconheça o verdadeiro crime continuado, é necessário

que estejamos diante de uma unidade de dolo, de um fator psicológico ou fator

final. Do contrário, se estivermos diante de decisões diárias absolutamente au-

tônomas, a hipótese será de um concurso real privilegiado, denominado por eles

de falso crime continuado (Art. 71 CP). Os autores exigem, ainda, para o reco-

nhecimento do verdadeiro crime continuado, que esteja presente uma identidade

de bem jurídico e de tipo penal realizado.

Pois bem, a solução apresentada por ZAFFARONI e PIERANGELI nos parece

muito mais voltada a uma distinção entre ato e conduta. Como bem se sabe, o

tipo penal é representativo de uma conduta penalmente relevante; contudo, no

caso concreto essa conduta pode ser desmembrada em vários atos. Sendo assim,

devemos tomar aquela ideia de um dolo final como sendo a escolha do agente

pela fragmentação da conduta de molde que o intérprete deva considerar o con-

junto da obra criminosa – todos os atos - e não cada um deles individualmente

considerados. Nesse caso, há de se reconhecer um delito único se o bem jurídico

e o sujeito passivo forem os mesmos.

O exemplo apresentado do estagiário do banco só não gera maiores perple-

xidades, segundo entendemos, diante do entendimento jurisprudencial de que,

100 Cumpre salientar que essa interpretação racional do tipo penal não pode ser aplicada quando há destruição total do bem jurídico pela conduta do agente. Assim, num homicídio teremos tan-tos homicídios quantas sejam as pessoas mortas.

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em casos de desvio de valores de conta-corrente por meio de fraudes eletrônicas,

o banco, e não o correntista, é o sujeito passivo do delito.101 Porém, é interessante

notar como a doutrina funciona como uma caixa de ressonância da ideia da “jus-

tiça do caso concreto” e da “subjetividade da insignificância”.

LUIZ FLÁVIO GOMES e ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA expressa-

mente afirmam que “para o reconhecimento da insignificância e, em consequência, da

infração bagatelar própria, é muito importante a análise de cada caso concreto, da vítima

concreta, das circunstâncias do fato, local, etc.”.102 E exemplificam: “o furto de uma gar-

rafa d’água, em princípio é absolutamente insignificante. Mas para quem está no deserto

do Saara não o é. Como se vê, ser insignificante ou não o fato depende de cada situação

concreta.”

De fato, ninguém há de se opor que uma garrafa de água no deserto é um bem

valioso. O problema está em tomar o exemplo para justificar a “justiça do caso

concreto” como fazem mais adiante os autores citados a fomentar um ativismo

judicial que nem sempre conduz ao justo:

“nesse novo direito penal, que é um direito do caso concreto, a proeminência

do juiz é indiscutível. Mas também, a chance de fazer justiça no caso concreto é

muito maior que antes (quando o juiz estava atrelado ao velho silogismo forma-

lista da premissa maior, premissa menor e conclusão). o fiat justitia et pereat

mundus ( faça-se justiça embora pereça o mundo) já não tem sentido nos dias

101 “... Hipótese em que o agente se valeu de fraude eletrônica para a retirada de mais de dois mil e quinhentos reais de conta bancária, por meio da "Internet Banking" da Caixa Econômica Federal, o que ocorreu, por certo, sem qualquer tipo de consentimento da vítima, o Banco. A fraude, de fato, foi usada para burlar o sistema de proteção e de vigilância do Banco sobre os valores manti-dos sob sua guarda. Configuração do crime de furto qualificado por fraude, e não estelionato. ...” – STJ. CC 67343/GO, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/03/2007, DJ 11/12/2007.

102 direito Penal, v.2, Parte Geral. São Paulo: RT, 2008, 2ª Tiragem, p. 304

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atuais. o juiz já não pode se contentar só com a aplicação formal da lei, ainda

que o mundo pereça”.103

Não estamos aqui a advogar um Direito formalista e radical, mas um Direito

Penal do equilíbrio entre as funções de garantia do cidadão e de proteção aos

bens jurídicos mais relevantes para a vida em sociedade. E mais, defendemos

um Direito Penal que faça uma interpretação progressiva dos tipos penais exis-

tentes, adaptando-os ao século XXI, como bem fez o STJ no CC 67.343 – GO ao

concluir que os dados representativos de valores em sistemas informáticos são

dinheiro e, por essa razão, passíveis de subtração.104 Ora, tal interpretação está

em consonância com o processo de desmaterialização da moeda muito bem es-

tudado por autores como FÁBIO NUSDEO.105

É desse autor também que podemos colher a noção de bem econômico:

“Se a humanidade vive sob o jugo da lei da escassez e se a noção básica de econo-

mia está indissociavelmente presa a essa realidade, chama-se de bem econômico

103 idem.

104 “... O dinheiro, bem de expressão máxima da idéia de valor econômico , hodiernamente, como se sabe, circula em boa parte no chamado "mundo virtual" da informática. Esses valores recebidos e transferidos por meio da manipulação de dados digitais não são tangíveis, mas nem por isso deixaram de ser dinheiro . O bem, ainda que de forma virtual, circula como qualquer outra coisa, com valor econômico evidente. De fato, a informação digital e o bem material correspondente estão intrínseca e inseparavelmente ligados, se confundem. Esses registros contidos em banco de dados não possuem existência autônoma, desvinculada do bem que representam, por isso são passíveis de movimentação, com a troca de titularidade. Assim, em consonância com a melhor doutrina, é possível o crime de furto por meio do sistema informático. ...” - STJ. CC 67343/GO, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/03/2007, DJ 11/12/2007.

105 “a espontaneidade e a generalização do uso da moeda levaram-na a se representar pelas mais diversas mer-cadorias e produtos, desde que apresentasse um mínimo de requisitos... . a partir daí, longo processo evolutivo começa a se desenvolver, levando a uma crescente padronização, mas também à progressiva desmaterialização, a tal ponto de ela – moeda – reduzir-se, hoje, a um simples lançamento contábil feito eletronicamente em de-corrência de leitura de um cartão magnetizado e inteligente.”(Curso de economia, introdução ao direito econô-mico. São Paulo: RT, 6ª Edição, 2010, pp.50/51)

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todo aquele dotado de utilidade e cujo suprimento seja escasso. em duas pala-

vras, o bem econômico é aquele útil e escasso.”106

Por fim, NUSDEO nos adverte que “quanto mais escassos os bens e aguçados os in-

teresses sobre eles, maior quantidade e diversidade de normas se fazem necessárias para o

equilíbrio de tais interesses. daí a frase de Carnelutti…: quanto più economia, più diritto.”107

Diante de tais considerações, é possível afirmar que o valor de uma garrafa de

água no deserto não é tão desprezível como se apresenta se tomado o objeto em

si; porém, isso não nos parece autorizar a que o juiz, segundo sua própria von-

tade e concepção de mundo, passe a fazer justiça segundo suas próprias convic-

ções em torno do merecimento ou não de pena, como tem sido feito pela juris-

prudência.

Outro aspecto que não escapou do exame de LUIZ FLÁVIO GOMES e de AN-

TONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA é a questão da conduta cumulativa, tra-

zida por nós nos exemplos do estagiário e da empregada doméstica. Dizem os

autores que nesse caso se “o sujeito furta diariamente r$ 1,00 do caixa. depois de alguns

anos aufere uma quantia significativa. deve-se reconhecer, nesse caso, o crime continuado

(afastando-se a aplicação do princípio da insignificância). o fato, globalmente considerado,

não é insignificante.”.108

Nesta hipótese, parece-nos menos ofensiva à ideia de um critério objetivo

com base na afetação do bem jurídico que se faça, como propuseram ZAFFA-

RONI e PIERANGELI, reconhecer diante de um planejamento unitário o crime

106 idem, p. 31.

107 idem, pp. 29/30.

108 ob. cit., pp. 304/305.

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único a afastar a insignificância. Nesse caso, embora o agente tenha praticado

vários delitos, ficaria sujeito a uma única pena. Tal solução, embora não se apre-

sente como o ideal, é próxima daquela adotada pelo Código Penal Espanhol que

pune com a mesma pena do furto aquele que comete quatro delitos abaixo do

patamar mínimo fixado para a caracterização do crime patrimonial.109

Contudo, advogamos que a melhor solução será sempre que o legislador de-

fina patamares de bagatela verdadeiramente ínfimos; assim, não se apresentaria

como necessária qualquer ginástica interpretativa para equacionar situações de

injustiça.

Pois bem. E o que foi observado nos julgados submetidos ao STJ e STF no que

tange a esse aspecto?

Seja por precariedade na instrução processual, seja por ausência de um crité-

rio definido, não é nítida a correlação jurídica entre o fato criminoso que está sob

discussão e os anteriores ou anterior a que se faz referência, apta a excluir a criação

de um critério puramente subjetivo indeterminado acerca da habitualidade criminosa. Em

suma: fala-se em habitualidade delitiva ou reiteração criminosa, mas não se es-

tabelece o que é exatamente isso.

Inicialmente, saliente-se que a imputação de crime continuado (na versão do

Código Penal brasileiro) – que está sujeito a exigências específicas de tempo, lugar

e forma de execução – não é posta necessariamente na presente discussão, até por-

109 Artículo 234: El que, con ánimo de lucro, tomare las cosas muebles ajenas sin la voluntad de su dueño, será castigado, como reo de hurto, con la pena de prisión de seis a dieciocho meses, si la cuantía de lo sustraído excede de cincuenta mil pesetas.

Con la misma pena se castigará al que en el plazo de un año realice cuatro veces la acción descri-ta en el artículo 623.1 de este Código, siempre que el montante acumulado de las infracciones sea superior al mínimo de La referida figura del delito.

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que se preenchidos os requisitos do Art. 71, caput, do CP, o agente, certamente,

será assim denunciado com o registro de todos os elementos do tipo.

A nosso ver, deve estar presente a intenção de burla à norma penal, em espe-

cial ao princípio da insignificância. Assim, se um determinado indivíduo – ciente

de que o valor de insignificância no crime de contrabando e descaminho é igual

ou inferior a 10.000,00 (dez mil reais) – pratica reiteradamente, e como forma de vida,

tais crimes em tal patamar necessário para se livrar da sanção penal, não há como se aplicar

o princípio da insignificância.

Note-se que, no exemplo citado, não se relevam aspectos pessoais do delin-

quente e, sim, dados de burlar à norma. Sem tal análise – que, registre-se, é ple-

namente possível através de dados da Receita Federal referentes às apreensões

feitas em nome de uma determinada pessoa, conjugada com uma investigação

própria – a pura constatação de que uma ou duas vezes o sujeito foi flagrado com

mercadorias descaminhadas ou contrabandeadas e que isso afastaria, por si só,

o princípio da insignificância, é demasiadamente subjetiva.

7. Conclusões

Diante de tudo o que se expôs, temos que em nome da realização de uma

contenção do poder punitivo estatal, pela via da insignificância, está a jurispru-

dência a criar um ambiente no qual absolvição e condenação passam a depender

mais de fatores sorte ou azar, do que propriamente de uma ideia fundamental

de Justiça.

A afetação do bem jurídico, que deveria ser o critério fundamental para nor-

tear a insignificância, tem sido relegada a um segundo plano. Cada um tem sua

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própria concepção de justo, de bagatela, de necessidade da pena. Desse modo,

cremos que se há um problema a ser resolvido este é o da busca de um referencial

verdadeiramente objetivo para a bagatela, se possível, fixado pelo legislador, de

molde a reduzir o grau de subjetividade.

Não custa tomar como exemplo o Código Penal espanhol, que não pune com

pena de prisão o furto abaixo de cinquenta mil pesetas. Porém, tal conduta é tra-

tada como uma falta contra o patrimônio e pode ser sancionada prisão de final

de semana.110 Além disso, prevê a lei caso forem praticados quatro delitos de bagatela ao

longo de um ano, isto é, mas que em seu conjunto superem o patamar fixado; nesse

caso, o agente fica sujeito à pena de prisão.

A adoção de critérios como esse permitiria, com segurança, definir um pa-

tamar para a bagatela, bem assim punir tais condutas de maneira mais branda,

não simplesmente dispensá-las de pena.

Defendemos assim, de lege ferenda, a partir da análise do bem jurídico, que o le-

gislador estabeleça quais crimes admitem a aplicação do princípio da insignifi-

cância, bem como qual o patamar para a bagatela nos delitos que possuam um

referencial econômico. Para além disso, parece-nos evidente que existem certos

parâmetros que não podem ser ignorados pelo aplicador do direito: 1) a questão

em torno dos delitos de acumulação, sob pena de se proporcionar lesões rele-

110 Artículo 234: El que, con ánimo de lucro, tomare las cosas muebles ajenas sin la voluntad de su dueño, será castigado, como reo de hurto, con la pena de prisión de seis a dieciocho meses, si la cuantía de lo sustraído excede de cincuenta mil pesetas.

Con la misma pena se castigará al que en el plazo de un año realice cuatro veces la acción descri-ta en el artículo 623.1 de este Código, siempre que el montante acumulado de las infracciones sea superior al mínimo de La referida figura del delito.

Artículo 623: Serán castigados con arresto de dos a seis fines de semana o multa de uno a dos meses: 1. Los que cometan hurto, si el valor de lo hurtado no excediera de cincuenta mil pesetas.

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49Revista Omnes - ANPR no 1

vantes a bens jurídicos a partir de comportamentos aparentemente irrelevantes

em especial no que diz respeito à sonegação fiscal, à apropriação indébita pre-

videnciária e aos crimes contra o meio ambiente; 2) certos delitos não devem

comportar a aplicação da bagatela e isso precisa ficar bem claro nas decisões

dos Tribunais. Assim, no roubo e na extorsão, a vedação decorreria do fato de

que, mesmo sendo pequena a afetação patrimonial, existem outros bens jurídi-

cos que foram afetados de maneira relevante. De igual modo, delitos de grave

desvio funcional contra a Administração Pública não devem admitir a aplicação

da insignificância. Assim, de nada adianta alegar insignificância de um pedido

de propina de pequeno valor. Contudo, no peculato, o valor ínfimo talvez possa

ser objeto do princípio da insignificância. Do mesmo modo, os crimes contra a

fé pública, contra a saúde pública, dentre eles o que envolve a difusão de drogas

ilícitas, os de trânsito, dado o caráter transindividual das condutas não devem

admitir a incidência da insignificância; e 3) a reiteração de crimes da mesma es-

pécie deve ser ponderada sob o ponto de vista de uma afetação global do bem

jurídico e de burla à norma. Esse critério tem especial relevância em se tratando

de criminalidade de colarinho branco, onde há um planejamento da atividade

criminosa para que a mesma não se apresente com evidente tipicidade. Talvez,

assim, possamos chegar a um Direito Penal do equilíbrio, um Direito Penal que

pondere de um lado a função protetiva de bens jurídicos e de outro a função de

garantia dos indivíduos em face do poder punitivo estatal.

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50 Revista Omnes - ANPR no 1

A habitualidade criminosa como elemento

apto a afastar o princípio da insignificância?

rafaela santos Martins da rosa1

sílvia sordi2

1

Da limitação do Direito Penal pelo bem jurídico e sua relação com o princípio

da insignificância

2O problema: aplicabilidade concreta da insignificância pelo STF e STJ

3 A delimitação objetiva dos crimes e a adoção de

critérios legislativos pelos tribunais

4 O “reduzido grau de reprovabilidade do comportamento”

como um problema de culpabilidade e não de tipicidade

5 A insignificância como justiça do caso concreto

6 A habitualidade ou reiteração criminosa nos delitos de bagatela

7 Conclusão

1 Juíza Federal Substituta em Jaraguá do Sul/SC. Mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – PPCJ/UNIVALI.

2 Servidora Pública Federal. Pós-graduada em Direito Ambiental e Urbanístico.

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51Revista Omnes - ANPR no 1

1. Introdução

O presente artigo se propõe a examinar a relação hoje estabelecida pelo Su-

premo Tribunal Federal entre o princípio da insignificância penal e a habituali-

dade criminosa, notadamente os argumentos utilizados pelos julgadores para

afastar e/ou manter a incidência da bagatela quando caracterizada a reiteração

delitiva do acusado.

Um exame apropriado da questão pressupõe a fixação do conteúdo do princí-

pio da insignificância penal em nosso Sistema Penal, em especial o que o mesmo

hodiernamente representa, da mesma forma que o conceito e caracteres da ha-

bitualidade delitiva, e a conexão que (pode) ser estabelecida entre os institutos.

É possível adiantar que o embate que se irá travar diz com dois institutos de

matriz completamente distinta. A insignificância penal foi cunhada do garantis-

mo, vindo a ser estabelecida por Claus Roxin, Ferrajoli e outros tantos, ao passo

que a noção de habitualidade criminosa, originalmente (mas de forma já supe-

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52 Revista Omnes - ANPR no 1

rada), assenta matriz em um Sistema Penal focado na culpabilidade de autor (o

criminoso de tendência), doutrina frontalmente oposta às premissas do direito

penal de intervenção mínima e de principiologia garantista.

Essa relação não chega a causar maior estranheza, uma vez que, em termos

de tendência ideológica da Ciência Criminal Brasileira, forçoso reconhecer que

não temos uma corrente majoritária definida. Como em muitos outros aspectos

de nossas relações sociais, a Ciência Penal no país sofre influências de várias

marés, reproduzindo preceitos tanto de movimentos que podem ser considera-

dos como de “direito penal máximo”, como o de “Lei e de Ordem”, de direito

penal do “terror” (pensemos em nossa Lei dos “Crimes Hediondos”, ela própria

hedionda em vários aspectos, o regime disciplinar diferenciado, etc) e, de forma

concomitante e paralela, endossamos constitucionalmente conceitos de ordem

garantista, de “direito penal mínimo”, acolhendo e aplicando princípios como o

da insignificância, da intervenção mínima, da fragmentariedade, da adequação

social, da ofensividade e da exclusiva proteção dos bens jurídicos.

No prefácio à primeira edição do Manual de Direito Penal dos professores

Zaffaroni e Pierangeli, Alberto Silva Franco já pontuara nossa “dualidade” ideo-

lógica:

“Na própria Constituição Federal, de 1988, o modelo garantístico e o

princípio da intervenção penal mínima, que são, sem dúvida, dados

caracterizadores do Estado Democrático de Direito, não o foram aco-

lhidos em sua inteireza, admitindo nocivas interferências. “Como

entender que possa estar em consonância com o paradigma consti-

tucional uma figura como a dos crimes hediondo? Como considerar

em coerência com um sistema democrático, fundado na dignidade da

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53Revista Omnes - ANPR no 1

pessoa humana, tipos imprescritíveis?...”1

2. A proteção de bens jurídicos como missão do Direito Penal

A incriminação de determinadas condutas como objeto da punição estatal

é sempre uma questão tormentosa não apenas para o legislador, mas também

para a própria Ciência do Direito Penal. Contudo, alguns princípios orientam a

atividade legislativa e o Direito Penal ao estabelecerem limites e critérios para a

penalização de condutas humanas, de forma a equacionar a garantia constitu-

cional de liberdade e a necessária punição a partir da violação de bens considera-

dos juridicamente relevantes em matéria penal.

“Embora se possa encontrar divisão na doutrina sobre quais bens ju-

rídicos são dignos de tutela penal é praticamente unânime a concep-

ção segundo a qual a missão essencial do direito penal é a proteção

de bens jurídicos ou, ao menos, a noção de que um direito penal de-

mocrático não pode prescindir do conceito de bem jurídico enquanto

limite à atividade produtora de normas penais.”2

A missão do Direito Penal sob esse enfoque consiste em tutelar apenas os

bens jurídicos mais relevantes e necessários à vida em sociedade (intervenção

mínima), destacando-se o seu caráter fragmentário no sentido de intervir ape-

nas nos casos dos ataques mais graves aos bens jurídicos de maior importância

1 Franco, Alberto Silva. Prefácio à 1ª Edição do “Manual de Direito Penal” de Eugênio Raúl Zaffa-roni e José Henrique Pierangeli. Editora Revista dos Tribunais, 5ª Edição, 2004, página 10.

2 Oliveira, Ricardo Rachid de. Crimes contra a Administração Ambiental, em Crimes Ambientais – Estudos em homenagem ao Desembargador Vladimir Passos de Freitas. Editora Verbo Jurídi-co, 2010, página 457.

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54 Revista Omnes - ANPR no 1

(ultima ratio), como bem destaca Cezar Roberto Bitencourt3:

“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima

ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando

que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio

necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras

formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se

suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inade-

quada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica

violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas

que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal

deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais

ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens

relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.”

De outro lado, existem causas de exclusão da tipicidade e da ilicitude expres-

samente reconhecidas pela própria norma penal e outras ainda que resultam de

construção jurisprudencial e doutrinária (causas supra-legais). Nos últimos anos

ganhou destaque a aplicação do princípio da insignificância, especialmente em

razão de seu reconhecimento pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que inclu-

sive delineou os critérios necessários para aplicação de tal medida excludente da

ilicitude.

O amadurecimento decorrente da aplicação de tal instituto despenalizador

trouxe aos tribunais pátrios outras problemáticas, tal como a possibilidade ou

não da aplicação do princípio da insignificância em contraponto à habitualidade

criminosa, não sendo ainda pacífica sua aceitação e tampouco os critérios para

seu reconhecimento pelo Poder Judiciário. É a ideia que se pretende tratar, por-

3 Lições de direito penal – parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p. 32

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55Revista Omnes - ANPR no 1

quanto o estudo de tal questão certamente contribuirá para uma melhor reflexão

acerca de sua aplicabilidade na seara penal, sempre à luz da normatividade cons-

titucional.

3. O reconhecimento da tipicidade penal

A Constituição Federal de 1988 reconheceu expressamente o princípio nullum

crimen sine lege ao estabelecer que não haverá crime sem lei anterior que o defina,

nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, inciso XXXIX). Este princípio de

Direito Penal determina ao legislador que a imposição ou proibição de condutas

sob a ameaça de sanção, deve, obrigatoriamente, ser realizada mediante lei.

O princípio da legalidade antes mencionado é complementado pelo princípio

da intervenção mínima, que exerce a função orientadora e limitadora do poder

incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta so-

mente se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado

bem jurídico. Se outros meios de controle social ou espécies de sanção revela-

rem-se suficientes para a tutela desse bem jurídico, a sua criminalização pelo

Direito Penal será inadequada e não recomendável4.

A escolha de quais seriam os bens jurídicos a serem tutelados penalmente

não é tarefa fácil para o legislador, exigindo especial perspicácia para que não

se criem normais penais arbitrárias e despidas de razoabilidade, sob pena de

aniquilar a garantia de liberdade que a Constituição Federal assegura aos indiví-

4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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56 Revista Omnes - ANPR no 1

duos. Sobre o tema, é salutar a lição de Claus Roxin5:

Eu parto de que as fronteiras da autorização de intervenção jurídico-

-penal devem resultar de uma função social do Direito Penal. O que

está além desta função não deve ser logicamente o objeto do Direito

Penal. A função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos

uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando

estas metas não possam ser alcançadas por outras medidas político-

-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos.

[...] De tudo isto resulta: em um Estado democrático de Direito, mode-

lo teórico de Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais

devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma

coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos hu-

manos. Por isso, o Estado deve garantir, com os instrumentos jurí-

dico-penais, não somente as condições individuais necessárias para

uma coexistência semelhante (isto é, proteção da vida e do corpo, da

liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.), mas também as

instituições estatais adequadas para este fim (uma administração de

justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma

administração livre de corrupção etc.), sempre e quando isto não se

possa alcançar de outra forma melhor.

A congregação de tais elementos deverá orientar a atuação do legislador di-

recionada à elaboração da lei em sentido estrito, objetivando definir quais serão

os bens jurídicos e as condutas que merecerão a tutela especial do Direito Penal

como ultima ratio, sempre acompanhada da cominação de uma sanção propor-

cional à gravidade da conduta proibida, surgindo então o chamado tipo penal.

5 A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. org. e trad. André Luis Calle-gari e Nereu José Giacomolli. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 16-18

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57Revista Omnes - ANPR no 1

Na definição de Eugenio Raúl Zaffaroni6 “o tipo penal é um instrumento legal

logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem

por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes”.

Em síntese, a existência do delito (tipo penal), sem adentrarmos na discussão

acerca das teorias do crime, depende basicamente da existência concomitante

e necessária de três elementos que integram o conceito analítico de crime: fato

típico, antijuridicidade e culpabilidade, obrigatoriamente nesa ordem, de modo

que inexistente o fato típico, não há que se falar em antijuridicidade e daí por

diante. Por sua vez, o fato típico é composto por quatro requisitos: conduta, re-

sultado, nexo causal e tipicidade.

Assim, de acordo com a sistemática constitucional, a lei penal será produzida

pelo Estado e descreverá precisamente o modelo de conduta proibida (preceito

primário), atribuindo uma pena destinada a punir a quem desobedecê-la, estan-

do as respectivas sanções igualmente definidas na norma legal incriminadora

(preceito secundário). Em linhas gerais, como bem salienta Rogério Greco7:

[...] o fato típico é composto pela conduta do agente, dolosa ou cul-

posa, comissiva ou omissiva; pelo resultado; bem como pelo nexo de

causalidade entre aquela e este. Mas isso não basta. É preciso que a

conduta também se amolde, subsuma-se a um modelo abstrato pre-

visto na lei, que denominamos tipo.

A adequação da conduta do agente ao tipo penal abstratamente descrito faz

6 Manual de Derecho Penal – parte general. Buenos Aires: Ediar, 2000. p. 371

7 Curso de Direito Penal. Vol. I. 5ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 175

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58 Revista Omnes - ANPR no 1

surgir a tipicidade formal ou legal, definida por Francisco Muñoz Conde8 como

“a adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal. Por

imperativo do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, só

os fatos tipificados na lei penal como delitos podem ser considerados como tal”.

Contudo, a tipicidade formal não é suficiente para que se conclua pela exis-

tência do delito. Há necessidade ainda da presença da chamada tipicidade ma-

terial que é a valoração da importância do bem jurídico violado no caso con-

creto, a fim de se possa apurar se determinado bem merece ou não a proteção

do Direito Penal.

Em outras palavras, enquanto a tipicidade formal representa o conceito clás-

sico de tipicidade, a denominada tipicidade material vem a ser definida como

a conduta formalmente típica que gera um ataque inadmissível ao bem jurídi-

co tutelado penalmente pelo Estado e causa-lhe lesão significante (relevância

jurídico-penal da ação). Só assim, de acordo com a posição mais moderna da

doutrina e da jurisprudência, o fato poderá ser considerado penalmente típico.

Nesse sentido, é elucidativo trecho de voto da Ministra Carmen Lúcia no Habeas

Corpus 97.772/RS9:

“2. É consabido que a tipicidade penal não pode ser percebida como o

trivial exercício de adequação do fato concreto à norma abstrata. Além

da correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é ne-

cessária a análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso

concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão séria,

8 Teoria Geral do Delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Régis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antô-nio Fabris,1988. p. 41.

9 STF. HC 97.772/RS. Primeira Turma. Relatora. Min. Cármen Lúcia. Dje n. 218: 20.11.2009

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59Revista Omnes - ANPR no 1

contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado.”

Esse entendimento tem sido amplamente adotado pelo Pretório Excelso (vide

HC 102.088/RS, Primeira Turma, DJe 20.05.2010; HC 106.510/MG, Segunda Tur-

ma, DJe 13.06.2011), sendo igualmente seguido pelo Superior Tribunal de Justiça

(HC 212.156/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, Sexta Turma, DJe 28/09/2011;

HC 205.285/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJe 05/10/2011; HC

184.488/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJe 01/08/2011; AgRg

no Ag 1329672/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Quinta Turma, DJe 25/04/2011).

Sobre o tema, é relevante a lição do ilustre jurista Cesar Roberto Bittencourt10,

in verbis:

“A tipicidade penal exige ofensa de alguma gravidade aos bens jurí-

dicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou

interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo este

princípio, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravi-

dade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção

estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal,

sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância ma-

terial. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicida-

de penal, porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado”.

A adoção desse conceito de tipicidade (formal + material) coaduna-se com

os mandamentos constitucionais que regem a liberdade das pessoas, uma vez

que respeita a função social do Direito Penal como instrumento de garantia de

existência pacífica, livre e socialmente segura dos indivíduos. E, principalmente,

estabelece parâmetros dotados de razoabilidade para aplicação e reconhecimen-

10 Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 6

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60 Revista Omnes - ANPR no 1

to do princípio da insignificância como causa supra-legal, excludente, portanto,

da própria ilicitude da ação.

4. Do princípio da insignificância

A origem do princípio da insignificância ou da bagatela é objeto de alguma

controvérsia doutrinária. Há autores que posicionam o surgimento do princí-

pio do Direito Romano, em razão do brocardo “minimis non curat pretor”11, mas

ponderam que o princípio prolatado pelos romanos inseria-se em um Direito de

caráter notadamente privado, ainda não fulcrado sob os alicerces da legalidade

do Direito Penal, por exemplo.1213

A maioria da doutrina, contudo, tende a identificar a enunciação primeira do

princípio da insignificância, nos moldes em que hoje é reconhecido, no Direito

alemão pós-Segunda Guerra, na figura do penalista Claus Roxin, que vislumbrou

a necessidade de correção da tipicidade material, notadamente pelo expressivo

aumento da prática de pequenos furtos, motivados por dificuldades financeiras

11 ACKEL FILHO, Diomar. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. revista de Jurispru-dência do tribunal de alçada Criminal de São Paulo, abr-jun/1988. "no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo

geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardo de minimis non curat praetor".

12Gomes Filho, Demerval Farias Gomes. “A Dimensão do Princípio da Insignificância – Impreci-são Doutrinária e Jurisprudencial – necessidade de nova reflexão no crime de descaminho?”. Ar-tigo publicado em 09.07.2009, na 3ª Edição da Revista Eletrônica da Justiça Federal da Seção Ju-diciária do Distrito Federal, TRF1, disponível em http://www.mpdft.gov.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=1654&Itemid=93, acesso em 07.10.2011.

13 Nesse sentido é a crítica tecida ao creditar-se a origem do princípio da insignificância do Direi-to Romano formulada por Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Em LOPES, Maurício Antônio Ribei-

ro. Princípio da insignificância no direito Penal - análise à Luz da Lei n. 9.099/95 e da Juris-prudência atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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61Revista Omnes - ANPR no 1

à época vividas pelo povo alemão, que aos poucos reerguia sua economia.

Diferentemente da celeuma em torno da origem do princípio da insignificân-

cia, há consenso doutrinário quanto à natureza jurídica do instituto, no sentido

de que o mesmo retira a tipicidade material de uma conduta formalmente apre-

sentada como ilícita, e daí porque faleceria o interesse de repressão do fato pela

seara penal.

O tipo penal, conforme nos acentua Welzel, “não é uma descrição avalorada,

mas uma seleção das condutas que supõem uma infração grave, insuportável da

ordem ético-social da comunidade”14.

Em linhas gerais, a tipicidade penal objetivamente considerada reclama uma

ofensa de certa gravidade praticada contra os bens jurídicos tutelados pela nor-

ma. Contudo, nem toda ofensa atingirá com a mesma magnitude os bens jurí-

dicos penalmente tutelados, havendo condutas que causem ofensas mínimas ou

diminutas a um bem ou interesse juridicamente protegido não sendo capazes

de alcançarem a ofensividade exigida pela tipicidade penal – sendo exatamente

sobre essa perspectiva que o princípio da insignificância incidirá.

No que respeita à previsão constitucional/legal do instituto, conforme lecio-

na René Ariel Dotti, o princípio da insignificância penal é um corolário lógico do

princípio da intervenção penal mínima, previsto no artigo 8º da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão15, e recepcionado pela Constituição Federal de

1988, em seu artigo 5º, parágrafo 2º (cláusula geral de recepção da legislação in-

14 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 58.

15 “a lei deve estabelecer penas restrita evidentemente necessárias.”

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ternacional). Esclarece o autor que o princípio da intervenção mínima dirige-se

ao legislador, com o propósito de coibir a produção de normas incriminadoras

desnecessárias, ao passo que o princípio da insignificância dirige-se ao Juiz do

caso concreto, que deverá avaliar se o dano ou o perigo de dano sofrido pelo bem

jurídico autoriza a aplicação de uma sanção penal.16

Apesar de derivar de um princípio reconhecido pelo Direito Internacional, já

ratificado pelo Brasil (intervenção penal mínima), o princípio da insignificância

não possui previsão legal expressa em nosso ordenamento. Não está positiva-

do em nenhum diploma legislativo (nem mesmo a Constituição Federal trata do

tema). Não é uma norma, tampouco uma regra de aplicação imperativa.

A força do princípio, todavia, reside em um consenso quanto ao reconheci-

mento da existência implícita do mesmo em nosso ordenamento, e esse consen-

so que acaba exigindo, conforme ponderou a Ministra Carmen Lúcia ao apreciar

o pedido de habeas corpus n.º 107.067, uma análise materialmente valorativa das

circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de algu-

ma lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado, a

justificar a imposição de sanção penal pelo fato.

Logo, para uma correta aplicação do princípio da insignificância, pressupõe-

-se a recusa de quaisquer parâmetros fixos em sua incidência, , ainda que a mes-

ma possa estar amparada em critérios objetivos, sua aplicação é de caráter subje-

tivo, variando conforme as especificidades do fato delituoso. Não se pode, assim,

por exemplo, aceitar o tabelamento da insignificância de determinados delitos

(supor-se que furtar menos do que uma quantia “x” será sempre insignificante;

16 Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Editora Forense, Rio de Janeiro: 2003, p. 67-68.

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63Revista Omnes - ANPR no 1

pescar menos do que uma quantidade “y”, etc), prática que desvirtuaria a própria

natureza jurídica do instituto.1718

A aplicabilidade do princípio da insignificância demanda conjugação com os

postulados da fragmentariedade e também da intervenção mínima do Estado

em matéria penal, pois o seu reconhecimento autoriza a exclusão ou afastamen-

to da própria tipicidade penal, analisada na perspectiva de seu caráter material.

A reforçar tal consideração, salutar o magistério de Carlos Vico Mañas19:

“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas

tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incrimi-

nado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de

meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves.

O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações

dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva

do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de

expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada

17 Nessa seara, a insignificância aplicada àqueles que sonegam menos de R$ 10.000,00 (dez mil reais) em tributos é, digamos, de difícil digestão. A tese vencedora em nossas Cortes parte do raciocínio de que o maior interessado na arrecadação tributária é a autoridade fiscal (e não a so-ciedade como um todo, que deve receber os benefícios revertidos da aplicação da arrecadação tributária), e que, portanto, se a mesma tem autorização legal para deixar de cobrar dívidas infe-riores a essa quantia, não se justificaria a atuação do Direito Penal. A quantia, dez mil reais, é reputada insignificante porque assim o considerou a autoridade fazendária, ao reconhecer sua incapacidade (deficiência de estrutura) de realizar a cobrança do débito sem despender montan-te superior à própria dívida.

18 No mesmo sentido, foi a expressão utilizada pela Ministra Carmem Lúcia de que “o princípio da insignificância não exige um montante pré-fixado”. (HC 107638, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚ-CIA, Primeira Turma, julgado em 13/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 28-09-2011 PUBLIC 29-09-2011).

19 O princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal. São Paulo: Sa-raiva, 1994, p. 80-81.

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64 Revista Omnes - ANPR no 1

mais fez do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do di-

reito penal.

O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como ins-

trumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material

do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via ju-

dicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático,

a proposição político-criminal de descriminalização de condutas que,

embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente rele-

vante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal”.

De outra parte, o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a aplicabili-

dade do princípio da insignificância penal em reiterados julgados, firmando seu

entendimento no sentido de que para o reconhecimento de uma infração penal

como insignificante (ou ínfima) não é possível utilizar-se de considerações sub-

jetivas. Portanto, a Corte Constitucional admite e reconhece expressamente a in-

cidência do princípio da insignificância em nosso ordenamento jurídico (apesar

da inexistência de normatividade expressa), e em atenção à “natureza objetiva”

que estaria subjacente à aplicação de tal princípio, elenca taxativamente quais

são os aspectos objetivos a serem considerados para o seu reconhecimento: (a)

ofensividade mínima da conduta; (b) ausência de periculosidade social; (c) redu-

zido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e (d) a inexpressivi-

dade da lesão ao bem juridicamente protegido (confira-se o recente HC 108512,

Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 04/10/2011, DJe-202,

divulg. 19-10-2011, public. 20-10-2011).

O Superior Tribunal de Justiça vem igualmente adotando esse entendimento,

mediante a consideração dos critérios estabelecidos pela Corte Suprema para o

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65Revista Omnes - ANPR no 1

reconhecimento do princípio da insignificância penal20.

Para os fins do presente artigo, nos interessa atenção ao requisito concer-

nente à “ausência de periculosidade social e reduzido grau de reprovabilidade

do comportamento do agente”, na medida em que justamente na formulação do

que seja o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente é que a

relação entre o princípio da insignificância e a habitualidade delitiva vem à tona.

Como dito, na medida em que o princípio da insignificância não tem previ-

são constitucional ou legal, sendo uma construção doutrinária hoje reconheci-

da pela jurisprudência, não há, a rigor, qualquer óbice à avaliação do princípio,

tomando-se como base o comportamento do agente como um todo, ou seja,

analisando-se dados objetivos concretos (ofensas anteriores à norma penal) para

concluir pela inaplicabilidade da bagatela em seu favor.

Preciosa, nesse sentido, a ponderação feita pela Ministra Carmen Lúcia ao

afirmar que

“... o princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar

e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que

desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito

penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrá-

rios à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devi-

do à sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem

se submeter ao direito penal. (STF, HC 107.067/DF, Relatora Ministra

20 HC 165.336/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 04/10/2011, DJe 17/10/2011; HC 173.324/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 29/08/2011; REsp 1253545/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 03/08/2011; HC 192.696/SC, Rel. Mi-nistro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 04/04/2011.

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66 Revista Omnes - ANPR no 1

Carmen Lúcia, 1ª Turma, 26.04.2011).

5. A habitualidade criminosa

Em linhas gerais, tem-se que a habitualidade delitiva é a reiteração crimino-

sa, consistente no costume de praticar crimes. Uma pessoa que vive de diferen-

ciados tipos de crimes será criminosa habitual. O reconhecimento do que seria

um criminoso habitual quando se trata de processo penal e garantias constitu-

cionais sofre restrições, não podendo tais circunstâncias serem livremente valo-

radas pelo julgador.

Segundo o magistério de Nelson Hungria:

(...) a habitualidade é a persistência de um estado subjetivo de afei-

çoamento ao crime, ou mais particularizadamente: é um status de

anti-sociabilidade, criado pela cumplicidade de fatores endógenos e

exógenos, em virtude do qual, um indivíduo se entrega repetidamente

à prática de crimes, procurando ou cuidando de não perder ocasiões

para isso, de tal modo que a conduta criminosa se faz nele uma ten-

dência radicada na estrutura mesma de sua personalidade. O delin-

qüente habitual, de que é extremo grau o delinqüente profissional (que

faz do crime um meio de vida), não representa senão um species do ge-

nus, delinquente perigoso, cuja debelação ou neutralização constitui,

na atualidade, o objeto central da política de prevenção do crime. Se

a habitualidade não fosse um acentuado tipo de periculosidade, não

haveria razão, como é claro, para que dela cuidasse de modo especial,

ou destacadamente da reincidência simples ou da ‘delinqüência oca-

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67Revista Omnes - ANPR no 1

sional ou de emergência’.21

Em síntese, quem faz do crime a sua principal atividade como meio de vida,

como se fosse uma profissão, incide na hipótese da habitualidade.

Sob o enfoque do direito material, verificamos em nosso ordenamento ju-

rídico a existência de algumas condutas tipificadas penalmente baseadas no

conceito de habitualidade criminosa, que constituem o que se denomina crime

habitual, no qual a reiteração de atos penalmente indiferentes de per si constitui

um delito único, constituindo um estilo ou hábito de vida, de modo que há a

existência de um todo ilícito. Em outras palavras, embora a prática de um ato

apenas não seja típica, o conjunto de vários, praticados em conjunto, configurará

o crime.

Exemplos de crimes habituais previstos no Código Penal são a manutenção

de casa de prostituição (art. 229), o curandeirismo (art. 284) e o exercício ilegal

da medicina (art. 282).

Contudo, aqui nos interessa uma abordagem da habitualidade orientada à

aplicação da pena e reconhecimento de excludentes de ilicitude.

Assim, merece destaque o mandamento constitucional inserto no artigo 5º,

inciso LVII, da Carta Magna, reconhecendo o princípio da presunção de inocên-

cia ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em jul-

gado de sentença penal condenatória”.

De outro lado, o Código Penal, em seu artigo 63, define a reincidência nos se-

21 Comentários ao Código Penal - Vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 340.

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68 Revista Omnes - ANPR no 1

guintes termos: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime,

depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha

condenado por crime anterior.”

Conforme esclarece Rogério Greco, “o mencionado artigo refere-se a três fa-

tos indispensáveis à caracterização da reincidência: 1º) prática de crime ante-

rior; 2º) trânsito em julgado da sentença condenatória; 3º) prática de novo crime,

após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”22

Da conjugação de todos estes elementos verifica-se que, em se tratando de ga-

rantias constitucionais, direito penal e matéria processual penal, a análise dessa

questão exige especial cuidado do aplicador do direito para que não acabe por

transgredir a garantia do status libertatis do indivíduo.

Ressalvamos que assim como todos os demais direitos e garantias funda-

mentais, a presunção de inocência não é absoluta, até mesmo porque não é dado

ao indivíduo escudar-se na Carta Magna para a prática de condutas ilícitas. Logo,

a prática de uma conduta proibida por lei pressupõe a violação de um bem jurí-

dico e, sendo penalmente tipificada, justificará, caso comprovada, mediante o

devido processo legal com todas as garantias que lhe são inerentes, a punição

do seu autor, que será considerado culpado pelo delito que praticou (o princípio

da presunção de inocência convive aí harmonicamente com a definição de crime

por meio de lei, acompanhada de aplicação de sanção – artigo 5º, incisos XXXIX

e LVII, da CRFB/88).

No aspecto prático do processo penal e da aplicação da lei penal relacionados

ao reconhecimento da habitualidade criminosa, deve-se destacar que o princípio

22 Ob. Cit., p. 571.

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69Revista Omnes - ANPR no 1

constitucional da presunção de inocência veda a valoração negativa do compor-

tamento delitivo habitual retratado pelos antecedentes criminais, quando não

exista condenação penal anterior com trânsito em julgado. Desse modo, apesar

de constatado que determinada pessoa parece fazer do crime um meio de vida, se

não tiver contra si uma condenação penal anterior já transitada em julgado, seus

antecedentes não poderão ser valorados em seu prejuízo (isso para fins de dosi-

metria de pena, mas não de reconhecimento de uma excludente, que a precede).

Trata-se de circunstância eminentemente subjetiva.

Em que pesem alguns entendimentos em sentido contrário, após um

longo tempo de debate, tal questão encaminha-se para a pacificação na

jurisprudência,em razão do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Fede-

ral na qualidade de Corte Constitucional:

[...] O princípio constitucional da não culpabilidade, inscrito no art.

5º, LVII, da Carta Política, não permite que se formule, contra o réu,

juízo negativo de maus antecedentes fundado na mera instauração

de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos

penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações cri-

minais ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação

da pena quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois

somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da

coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao

sentenciado23.

Ainda sobre o tema, a Corte Suprema assentou:

A MERA EXISTÊNCIA DE INVESTIGAÇÕES POLICIAIS (OU DE PRO-

23 HC 106.157/SP, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 15/03/2011, DJe-100: publicado em 27.05.2011.

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70 Revista Omnes - ANPR no 1

CESSOS PENAIS EM ANDAMENTO) NÃO BASTA, SÓ POR SI, PARA

JUSTIFICAR O RECONHECIMENTO DE QUE O RÉU NÃO POSSUI

BONS ANTECEDENTES. - A só existência de inquéritos policiais ou

de processos penais, quer em andamento, quer arquivados, desde que

ausente condenação penal irrecorrível - além de não permitir que, com

base neles, se formule qualquer juízo de maus antecedentes -, também

não pode autorizar, na dosimetria da pena, o agravamento do “status

poenalis” do réu, nem dar suporte legitimador à privação cautelar da li-

berdade do indiciado ou do acusado, sob pena de transgressão ao pos-

tulado constitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5º, inciso

LVII, da Lei Fundamental da República24.

De outro lado, a reincidência na forma prevista na legislação penal pode e

deve ser considerada para fins de valoração da ação e da culpabilidade do agente.

Não há dúvidas de que se trata de circunstância subjetiva e pessoal, tal como de-

finida pelo Código Penal em seu artigo 63. No entanto, a sua aplicação remete a

critério objetivo previamente definido em lei – artigos 61, inciso I; 63 e 64, todos

do Código Penal, não estando sujeita a análises discricionárias, interpretações

doutrinárias ou jurisprudenciais que estabeleçam outros critérios.

A própria lei penal veda, implicitamente, a elaboração de juízo subjetivo e de

valor acerca da reincidência, pois uma vez presente na forma prevista em lei, é

obrigatório o seu reconhecimento, ou seja, o reconhecimento de que determi-

nada pessoa voltou a delinquir, mesmo após ter sido condenada pela prática de

24 HC 84687/MS, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 26/10/2004, DJ 27/10/2006, p. 63

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71Revista Omnes - ANPR no 1

infração penal anterior.

Conforme ponderou a Ministra Carmem Lúcia ao apreciar o tema:

“Assim, se a pessoa tiver sido condenada por sentença transitada em

julgado, excluídos os crimes militares e os políticos, no Brasil ou em

outro país e, após essa data, cometer novo crime antes de decorrido o

prazo de cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena

e a infração posterior, ela será considerada reincidente na segunda in-

fração penal. Portanto, trata-se de critério que, embora subjetivo, deve

ser excepcionado da regra da objetividade para ser levado em conside-

ração, a fim de se averiguar a aplicação do princípio da insignificân-

cia, já que remete ao critério objetivo da reprovabilidade do comporta-

mento. Ao contrário de outros, como os maus antecedentes, não está

sujeito a interpretações doutrinárias e jurisprudenciais ou a análises

discricionárias, uma vez que devidamente abalizado pela lei em todos

os seus aspectos. Dessa forma, somente cabe ao julgador fazer a sub-

sunção do histórico criminal do acusado à norma penal para, assim,

identificar se ele é reincidente ou não.”(STF, HC 107.674/MG, Relatora

Ministra Carmem Lúcia, 1ª Turma, julgado em 30.08.2011).

6. A relação entre o princípio da insignificância e a habitualidade criminosa

A aplicação do princípio da insignificância frente à habitualidade criminosa

ainda não foi pacificada pelo Poder Judiciário, havendo posições divergentes so-

bre seu reconhecimento nessa situação. Há entendimento que afasta qualquer

valoração de ordem subjetiva para a aplicação do princípio da insignificância,

havendo de outro lado, também, entendimentos que consideram pressupostos

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72 Revista Omnes - ANPR no 1

subjetivos do agente como forma de aplicar tal excludente.

Assim, para melhor distinção das situações em questão, e a fim de estabelecer-

mos uma relação entre o princípio da insignificância e a habitualidade criminosa,

mostra-se fundamental a distinção entre as seguintes situações, vez que impor-

tam em conclusões distintas quanto à incidência da excludente de tipicidade:

6.1 O réu é reincidente, já possui condenação anterior e

volta a cometer um delito de natureza semelhante ou não ao

primeiro, sendo este segundo fato objeto de avaliação quanto à

possibilidade de aplicação do princípio da insignificância:

Nesta hipótese, o Supremo Tribunal Federal tem, com acerto, reiteradamente

afastado a incidência do princípio da insignificância, ao argumento de que o réu

reincidente apresenta comportamento reprovável (a opção livre de retornar ao

cometimento de ilícito, após ter sofrido condenação criminal), justificando-se,

assim, o afastamento da excludente de bagatela.

Aqui não são feitos maiores questionamentos, pois o afastamento da insigni-

ficância estaria baseado em um critério objetivo (existência de condenação penal

anterior transitada em julgado), o qual importaria no não atendimento de um

dos requisitos exigido pelo Supremo Tribunal Federal para fins de aplicação da

insignificância (reduzido grau de periculosidade do agente).

Assim pontuou o Ministro Marco Aurélio em excerto de voto lançado no ha-

beas corpus 108.696/MS:

“Não se pode, simplesmente, deixar de aplicar pena. Por isso, tenho

encarado com rigor maior a defesa quanto à insignificância e, no caso

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73Revista Omnes - ANPR no 1

concreto, seria o paciente quase que “useiro e vezeiro” na prática de

crime contra o patrimônio.” (STF, HC 108.696/MS, Relator Ministro

Dias Toffoli, 1ª Turma, 06.09.2011).

No mesmo sentido, decisões das 1ª e 2ª Turmas:

“EMENTA: haBeaS CorPUS. PENAL. TENTATIVA DE FURTO. ALE-

GAÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA:

INVIABILIDADE. REINCIDÊNCIA. 1. A tipicidade penal não pode

ser percebida como o trivial exercício de adequação do fato concre-

to à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a confi-

guração da tipicidade, é necessária análise materialmente valorativa

das circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocor-

rência de alguma lesão grave, contundente e penalmente relevante

do bem jurídico tutelado. 2. O princípio da insignificância reduz o

âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequên-

cia, torna atípico o fato na seara penal, apesar de haver lesão a bem

juridicamente tutelado pela norma penal. 3. Para a incidência do

princípio da insignificância, devem ser relevados o valor do objeto

do crime e os aspectos objetivos do fato, tais como a mínima ofen-

sividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social

da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a

inexpressividade da lesão jurídica causada. 4. A reincidência, apesar

de tratar-se de critério subjetivo, remete a critério objetivo e deve ser

excepcionada da regra para análise do princípio da insignificância, já

que não está sujeita a interpretações doutrinárias e jurisprudenciais

ou a análises discricionárias. O criminoso reincidente, como é o caso

do ora Paciente, apresenta comportamento reprovável, e sua condu-

ta deve ser considerada materialmente típica. 5. Ordem denegada.

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(HC 107674, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, jul-

gado em 30/08/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 13-

09-2011 PUBLIC 14-09-2011).

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRU-

MENTO. MATÉRIA CRIMINAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONA-

MENTO DA MATÉRIA CONSTITUCIONAL. REEXAME DE FATOS

E PROVAS. SÚMULA 279. HIPÓTESE DE CONCESSÃO DE haBeaS

CorPUS DE OFÍCIO. INVIABILIDADE. FURTO. INCIDÊNCIA DO

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REINCIDÊNCIA COMPRO-

VADA. Ausência de prequestionamento. Questão não ventilada no

acórdão recorrido e que não foi suscitada em embargos de declara-

ção. Óbice previsto pelos enunciados das Súmulas 282 e 356/STF.

As razões recursais trazem questões constitucionais cuja análise

implica reexame dos fatos e provas que fundamentaram as con-

clusões da decisão recorrida, o que é vedado pela Súmula 279 desta

Corte. Reconhecida a reincidência, a reprovabilidade do compor-

tamento do agente é significativamente agravada, sendo suficiente

para inviabilizar a incidência do princípio da insignificância. Pre-

cedentes. Ausência dos requisitos para a concessão da ordem de ha-

beas corpus de ofício. Agravo regimental a que se nega provimento.”

(AI 600500 AgR, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Tur-

ma, julgado em 24/05/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-

06-2011 EMENT VOL-02538-02 PP-00258)

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75Revista Omnes - ANPR no 1

6.2 O réu não é reincidente, mas responde ou já respondeu

inquéritos ou ações penais pela prática de delitos similares,

com a possível aplicação anterior da insignificância e/ou

arquivamento/absolvição:

Aqui temos uma questão que demanda amadurecimento. É o caso em que

o indivíduo já tenha figurado como réu em processo penal, ou que já tenha res-

pondido a inquérito, mas que tais procedimentos não tenham resultado em con-

denação (houve arquivamento, prescrição, ou mesmo absolvição da imputação

diante da aplicação do princípio da insignificância, uma vez que sua primeira

conduta não chegou a ser materialmente típica em razão do reconhecido desva-

lor do resultado – a lesão causada ao bem jurídico não foi significante a ponto de

acionar a tutela penal em sua defesa –). Posteriormente, esse mesmo indivíduo

vem a praticar nova ou novas condutas delituosas que, individualmente conside-

radas, não seriam penalmente relevantes.

De acordo com a legislação, não se está diante de reincidente em razão de sua

absolvição anterior pela exclusão da ilicitude da conduta, porque reconhecida a

insignificância.

Orientando-se pelo critério objetivo, que veda valorações subjetivas para re-

conhecimento e aplicação do princípio da insignificância, seria o caso de reco-

nhecer novamente a inexistência de tipicidade material em razão do ínfimo pre-

juízo causado pelo resultado da ação formalmente típica.

Nesse ponto, importante destacar a orientação há algum tempo firmada pelo

Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as circunstâncias de caráter emi-

nentemente pessoal não interfeririam no reconhecimento do delito de bagatela,

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76 Revista Omnes - ANPR no 1

que estaria relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto, e

não com a pessoa do acusado: HC 132.206/MG, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE

MUSSI, DJe de 15/12/2009; HC 154.115/MG, 5.ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ,

DJe de 12/04/2010; HC 120.972/MS, 6.ª Turma, Rel. Min. NILSON NAVES, DJe

de 23/11/2009; HC 129.340/SP, Rel. Min. CELSO LIMONGI (Desembargador

convocado do TJ/SP), DJe de 14/12/2009; REsp 827.960/PR, Rel. Min. FELIX

FISCHER, DJ de 18/12/2006.

Se de um lado, o indivíduo tivesse o direito de ser absolvido diante do reco-

nhecimento do princípio da insignificância dada a ausência de tipicidade mate-

rial, de outro lado, a prática reiterada de ações delituosas não poderia se utilizar

das balizas teóricas do minimalismo penal para escudar a impunidade, median-

te aplicação da referida causa supra legal de exclusão da ilicitude.

Os princípios que regem um Estado Democrático de Direito - que tendem a

reduzir ao máximo a interferência do Direito Penal - não podem servir como pas-

saporte, carta branca ou autorização genérica para a prática de condutas típicas.

O abuso, sob qualquer feição, não deve ser tolerado, ainda mais quando afronta

o interesse público. E como já dito, não existem direitos absolutos, nem pode o

indivíduo desvirtuar a aplicação de tal excludente para legitimar reiteração da

conduta delituosa calcada na certeza da impunidade.

A aplicação do princípio da irrelevância penal do fato nessa hipótese pode aca-

bar cedendo espaço para a perpetuação da impunidade e descrédito do Direito Pe-

nal e do próprio Estado, com o risco do surgimento de verdadeiro caos social.

Felizmente, um exame acurado dos mais recentes julgados proferidos pelo

Supremo Tribunal Federal, nos mostra que a Corte Maior encaminha-se nesse

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77Revista Omnes - ANPR no 1

sentido, reconhecendo que a insignificância não pode ser manipulada a ponto de

desvirtuar-se de seu propósito original.

Àqueles -que tentarem valer-se do princípio da insignificância para furtarem-

-se à aplicação da lei penal, reiterando no cometimento de pequenos delitos, os

quais, quando analisados em seu conjunto, evidenciam uma lesão significante

ao bem jurídico, - incorreriam certamente no abuso de direito.

A decisão proferida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal,

nos autos do habeas corpus n.º 107.067/DF, Relatora Ministra Carmen Lúcia, em

26.04.2011, é emblemática neste sentido, resultando unânime o entendimento

por afastar a incidência do princípio da insignificância no caso de um réu acusa-

do do cometimento do furto de um botijão de gás, considerando-se que o autor

em questão já fora anteriormente acusado de delito idêntico, tendo sido as inves-

tigações anteriores arquivadas pela aplicação da bagatela.

Os seguintes excertos do voto condutor, de lavra da Ministra Carmen Lúcia,

merecem transcrição:

“Dá-se, contudo, que o que se impõe anotar para a aplicação do prin-

cípio da insignificância não é simplesmente o valor material nem o

“perigo concreto relevante”, mas os valores ético-jurídicos aproveita-

dos pelo sistema penal para determinar se determinada conduta é, ou

não, típica para a configuração do delito. É o que descreve, dentre ou-

tros, José Henrique Guaracy: “o princípio da insignificância se ajusta à

equidade e à correta interpretação do direito. Por aquela acolhe-se um

sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em sociedade,

liberando-se o agente cuja ação, por sua inexpressividade, não chega

a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal”(Princípio da

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78 Revista Omnes - ANPR no 1

Insignificância. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 37).

...O agente contumaz, mesmo que pratique fatos típicos de peque-

na monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse

praticado condutas irrelevantes, pois delitos considerados ínfimos,

quando analisados soladamente, mas relevantes, quando em conjun-

to, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida.

O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e

legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que

desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito

penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrá-

rios à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devi-

do à sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem

se submeter ao direito penal.

11. De se ressaltar, por derradeiro, o que consignado pela Procura-

doria-Geral da República em seu parecer: “(...) A ordem não merece

ser concedida. O princípio da insignificância, que não se encontra

agasalhado em nosso Direito Positivo, surgiu como instrumento de

interpretação restritiva do Direito Penal, com base nos postulados

da fragmentalidade e da intervenção mínima do Estado em matéria

penal, sendo reservado aos casos em que o conteúdo do injusto é tão

irrelevante que a reprimenda, ainda que no mínimo legal, se afigura

desproporcional.

Do exame dos autos, é possível concluir pela mínima ofensividade

da conduta do Paciente, que deixou de empregar violência ou grave

ameaça na prática delituosa. Todavia, não se pode deixar de obser-

var, no que tange ao grau de periculosidade social na ação criminosa,

que a conduta do paciente não está isenta de consequências sociais,

bem como familiares. Isso porque, há informações nos autos de que

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79Revista Omnes - ANPR no 1

o paciente é usuário de substância entorpecente, praticando pequenos

delitos em razão do vício ou mesmo dos problemas mentais que o aco-

mete (fls. 19/20, instrução). A Vara Criminal que manteve os termos

da sentença penal, noticiou que ‘Gilvan pratica certos delitos para sa-

ciar seu vício ou mesmo por contra do problema mental que possui,

contando já com diversas incidências’. Destaca que há pouco tempo

haviam sido arquivados dois inquéritos policiais justamente com fun-

damento no princípio da insignificância. ‘Ademais, não se sabe por

qual motivo, mas Gilvan possui algum fascínio por botijões de gás,

talvez porque saiba que conseguirá vendê-lo para terceiros para saciar

alguma vontade interior’ (fls. 19/20, instrução).

Não bastasse isso, não se pode considerar inexpressiva a lesão jurídica

causada, pois, dentro do contexto sócio-econômico existente à época

do delito, o montante subtraído – R$ 120,00 (cem reais) – equivalia a

quase 30% (trinta por cento) do valor do salário mínimo vigente à data

dos fatos (R$ 415,00 – quatrocentos e quinze reais, no ano de 2008).

Nessa esteira, nota-se que a quantia objeto do furto pode ser conside-

rada pequena, mas não chega a ser inexpressiva ou irrelevante a ponto

de autorizar a não aplicação de qualquer sanção penal.

A propósito, importante consignar trecho de julgamento do Resp

556.653/MG da lavra do eminente ministro Arnaldo Esteves Lima:

‘Nesse aspecto, valho-me mais uma vez dos fundamentos registrados

pelo Min. Felix Fischer, no julgamento do habeas corpus já mencionado,

oportunidade em que acompanhei o seu voto, ao final, vencedor, para

quem:

Asseverar-se que devem ser penalmente toleradas subtrações de ob-

jetos de valor não ínfimo (de pequeno, porém, não ínfimo, valor) por

pessoas, comparativamente (considerando-se a nossa realidade),

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80 Revista Omnes - ANPR no 1

de classe privilegiada, tomando-se como referencial um – no feito –

questionável desvalor do resultado medido circunstancialmente pelo

julgador, data venia, é de difícil aceitação em qualquer grau de conheci-

mento, dado o manifesto desvio, aí, da finalidade das normas penais.

Não se pode confundir eventual reduzido juízo de censura penal (v.g.

Tipo privilegiado previsto na lei) com aceitação ou tolerância do que,

primu ictu oculi , não pode ser aceito ou tolerado. Se, aliás, o descrito

na imputatio facti devesse, ex hypothesis , merecer aprovação (pela via da

adequação social) ou tolerância da coletividade pela suposta mínima

gravidade (pela via da insignificância), a prática de furtos de pequenos

objetos em supermercados teria que ser considerada, mormente para

integrantes das classes privilegiadas, como uma espécie de hobby (o

furto seria penalmente típico, por assim dizer, conforme a ‘perigosi-

dade social’ decorrente da classe social a que pertencesse o agente...).

Tudo isto, tornando o prejuízo, mesmo reiterado, obrigatoriamente,

suportável pelo sujeito passivo, porquanto pela sistemática legal em

vigor, inexistiria (afora o art. 155 do CP), proteção jurídica viável (ou,

até, teoricamente pertinente) contra tal agir. Vale, todavia, destacar

que não se deve, evidentemente, confundir essa situação com aquela

em que se discute a possível configuração de justificativa, ex vi , v.g.

, art. 24 do Código Penal. Tem mais! É lamentavelmente, inolvidável

que os pobres e até os que se encontram em situação de miséria, não

poucas vezes, são, por igual, vítimas de furto. Se já não bastasse o re-

ferencial, na prática estranho para pequeno valor (considerado um sa-

lário-mínimo, ou seja, tudo o que normalmente, um pobre tem, para

efeito do § 2º do art. 155 do CP), o princípio da insignificância, sob óti-

ca elitista, levaria uma grande parte da população a ficar sem proteção

penal no que se refere aos furtos (de certo, deveriam, então, reclamar

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81Revista Omnes - ANPR no 1

nos juizados cíveis...).’ 1. (g.n.)

Como se vê, encontra-se inafastável a necessidade de diferenciar o re-

duzido juízo de censura penal com a tolerância do que não pode ser

aceito, sob pena de comprometimento das regras de convívio social.

Nesse passo, valor ínfimo ou desprezível e pequeno valor são conceitos

distintos que merecem tratamento de seu desvalor na esfera penal de

maneira diferenciada, especialmente se considerarmos as subtrações

havidas entre particulares às vezes em condições patrimoniais não tão

distantes. Ressalta-se que nos delitos de furto a legislação penal tem

flexibilidade suficiente para dar resposta adequada às dimensões do

fato imputado, sem o risco de tornar-se excessivamente severa.

Na hipótese, a medida de segurança imposta ao paciente, foi bem me-

dida, donde se extrai que o Direito Penal não é insensível às variáveis

que cercam o fato delituoso, ensejando uma equânime e apropriada

resposta penal, a qual normalmente apresenta algum teor educativo,

intimidador e mesmo prenunciador de outras consequência mais gra-

ves, caso insista o réu em delinquir. Conclui-se, portanto, que, in casu,

a conduta não se mostra irrelevante, não havendo se falar na atipicida-

de pelo princípio da bagatela.”

A prática de condutas reiteradas, de forma habitual, pelo infrator da norma

penal, deve ser objetivamente valorada sob o ponto de vista de sua repercussão

social, pois a partir do momento em que se mostra reprovável, não é possível

aceitar a complacência do Estado para com este comportamento. E essa parece

ser a tônica que o entendimento apresentado pela Suprema Corte vem trilhando:

EMENTA: PENAL. haBeaS CorPUS. PACIENTE PROCESSADO PELO

CRIME DE FURTO SIMPLES. ABSOLVIÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNI-

FICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. PERICULOSIDADE DO AGENTE.

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82 Revista Omnes - ANPR no 1

FURTO INSIGNIFICANTE. FURTO PRIVILEGIADO. DISTINÇÃO.

ORDEM DENEGADA. I – A aplicação do princípio da insignificância

de modo a tornar a conduta atípica exige, além da pequena expres-

são econômica dos bens que foram objeto de subtração, um reduzido

grau de reprovabilidade da conduta do agente. II – Embora o paciente

não seja tecnicamente reincidente, tem personalidade voltada para a

prática de crimes contra o patrimônio, o que impede o atendimento

de um dos requisitos exigidos por esta Corte para a configuração do

princípio da insignificância, qual seja, a ausência de periculosidade

do agente. III – Na espécie, a aplicação do referido instituto poderia

significar um verdadeiro estímulo à prática destes pequenos furtos,

já bastante comuns nos dias atuais, o que contribuiria para aumen-

tar, ainda mais, o clima de insegurança hoje vivido pela coletividade.

IV – Convém distinguir, ainda, a figura do furto insignificante da-

quele de pequeno valor. O primeiro, como é cediço, autoriza o reco-

nhecimento da atipicidade da conduta, ante a aplicação do princípio

da insignificância. Já no que tange à coisa de pequeno valor, criou

o legislador a causa de diminuição referente ao furto privilegiado,

prevista no art. 155, § 2º, do Código Penal. V – Ordem denegada.

(HC 107138, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira

Turma, julgado em 26/04/2011, DJe-102 DIVULG 27-05-2011 PUBLIC

30-05-2011)

Este último caso enquadra-se perfeitamente na problemática aqui exposta,

pois do corpo do acórdão colhe-se que o paciente não era tecnicamente reinci-

dente (não possuindo condenações anteriores), porém respondia a diversos ou-

tros processos penais pela prática de crimes contra o patrimônio, já entendo in-

clusive sido beneficiado anteriormente pelo instituto da suspensão condicional

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83Revista Omnes - ANPR no 1

do processo, nos termos do art. 89 da Lei n.º 9.099/1995.

Ao abraçar tal entendimento, a Suprema Corte aponta para uma mudança de

orientação que se mostra mais adequada à nova ordem constitucional e aos pos-

tulados de um Direito Penal orientado pela fragmentariedade e intervenção mí-

nima. Outro ponto que reforçou essa perspectiva foi o reconhecimento e adoção

do conceito de tipicidade material na análise do princípio da insignificância ou

bagatela como critério objetivo de definição de suas condições de aplicabilidade,

como causa supra legal de exclusão da tipicidade.

O Superior Tribunal de Justiça, a partir do recente entendimento que a Supre-

ma Corte vem acenando, passou a rever sua posição sobre o assunto e acena com

uma mudança de sua orientação, como se colhe dos seguintes julgados:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. FURTO. reS

FUrtivae DE PEQUENO VALOR (DUAS BARRAS DE CANO PVC PARA

ESGOTO AVALIADAS EM R$ 82,00). APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA

INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE. ESPECIAL REPROVABILIDADE

DA CONDUTA DO AGENTE. HABITUALIDADE DELITIVA. OUTROS

CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO: SUSPENSÃO CONDICIONAL DO

PROCESSO E AÇÃO PENAL EM CURSO. PRECEDENTES DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES DESTA TURMA.

1. Na hipótese dos autos, a despeito do reduzido valor da res furtivae - no

caso (duas barras de cano PVC, avaliadas em R$ 82,00) -, não ocorre o

desinteresse estatal à repressão do delito praticado pelo ora Recorren-

te - habitual na prática de delitos, uma vez que constatada a suspensão

condicional em outras duas ações penais: uma contra o patrimônio e

outra por incorrer em delito previsto na antiga lei antidrogas (Lei nº

6.368/76), além de outra ação em curso pelo suposto cometimento de

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delito contra o patrimônio.

2. Conforme decidido pela Suprema Corte, “[o] princípio da insigni-

ficância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes

condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ín-

fimas, isoladas, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se jus-

tiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo

que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade,

perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito pe-

nal” (STF, HC 102.088/RS, 1.ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe

de 21/05/2010).

3. De fato, ainda que não exista em desfavor do Agente sentença con-

denatória com trânsito em julgado, o que configuraria a reincidência,

a lei seria inócua se fosse tolerada a habitual prática criminosa ou, até

mesmo, o cometimento do mesmo delito, seguidas vezes, em frações

que, isoladamente, não superassem certo valor tido por insignificante,

mas o excedesse na soma. Por conseguinte, a desconsideração dessas

circunstâncias implicaria em verdadeiro incentivo ao descumprimento

da norma legal, mormente para aqueles que fazem da criminalidade um

meio de vida. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e desta Turma.

4. Conclui-se que o pequeno valor da vantagem patrimonial ilícita não

se traduz, automaticamente, no reconhecimento do crime de bagatela.

5. Agravo regimental desprovido.25

haBeaS CorPUS. PENAL. FURTO QUALIFICADO. CONDENAÇÃO.

SUBTRAÇÃO DE BEM DE PEQUENO VALOR. RESTITUIÇÃO À VÍTI-

MA. IRRELEVÂNCIA. CONDUTA DE EFETIVA OFENSIVIDADE PARA

O DIREITO PENAL. REITERAÇÃO DELITIVA. PRINCÍPIO DA INSIG-

25 AgRg no REsp 1201178/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Quinta Turma, julgado em 15/09/2011, DJe 10/10/2011

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85Revista Omnes - ANPR no 1

NIFICÂNCIA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGA-

DA.

1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio

da insignificância tem como vetores a mínima ofensividade da condu-

ta, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de repro-

vabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica

provocada.

2. Hipótese de furto de 27 kg de fios de cobre, no qual não se obser-

va a irrelevância da conduta, tendo em vista a contumácia delitiva do

agente, situação que demonstra a sua efetiva periculosidade social,

exigindo-se a atuação por parte do Estado.

3. O comportamento versado nos autos se amolda tanto a tipicida-

de formal e subjetiva, quanto a tipicidade material, que consiste na

relevância penal da ação, visto que restou destacado que o furto em

questão não representa fato isolado na vida do paciente, impondo-se,

portanto, a incidência da norma penal de modo a coibir a reiteração

criminosa, evitando-se, assim, que pequenos crimes patrimoniais se-

jam adotados como meio de vida.

4. habeas corpus denegado.26

O risco concreto da reiteração delitiva, a propósito, é usado inclusive como

fundamento pacífico por nossa Corte Maior como justificador de uma custódia

cautelar (HC 98437, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julga-

do em 13/10/2009, DJe-081 DIVULG 06-05-2010 PUBLIC 07-05-2010 EMENT VOL-

26 HC 182754/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, julgado em 19/05/2011, DJe 27/05/2011

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86 Revista Omnes - ANPR no 1

02400-03 PP-00519)27. É dizer, tanto procura-se evitar a reiteração de delitos, que

este é um argumento suficiente, segundo o próprio STF, de forma unânime, para

a custódia preventiva de quem é acusado do cometimento de um crime (enquan-

to responde à acusação). Veja-se que não há prova de novo cometimento de ilíci-

to; há apenas o risco concreto de que isso ocorra, o que desde já se quer evitar,

determinando-se a prisão preventiva do acusado.

7. Conclusões

A finalidade primordial do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos

mais relevantes e necessários para a sobrevivência da sociedade, mediante a

proibição de uma conduta e a consequente cominação, aplicação e execução de

pena àqueles que agirem contrariamente à norma jurídica penalmente tipifica-

da. Significa dizer, que a missão do Direito Penal nessa perspectiva objetiva a

tutela apenas dos bens jurídicos mais relevantes e necessários à vida em socie-

dade (intervenção mínima), destacando-se o seu caráter fragmentário no sen-

tido de intervir apenas nos casos dos ataques mais graves aos bens jurídicos de

27 “haBeaS CorPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACIENTE PROCESSA-DO PELA INFRAÇÃO DOS ARTS. 288, CaPUt, E 334, CaPUt, DO CÓDIGO PENAL (FORMAÇÃO DE QUADRILHA E DESCAMINHO). 1. PLEITO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGA-ÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. LIMINAR INDEFERIDA NO SU-PERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. JULGAMENTO DEFINITIVO DO HABEAS IMPETRADO NA-QUELE TRIBUNAL: PREJUÍZO DO PRESENTE haBeaS CorPUS NESTA PARTE. 2. PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. MOTIVAÇÃO IDÔNEA. 1. A decisão do Superior Tribunal de Justiça ora questionada, é monocrática e tem natureza precária, desprovida, portanto, de conteúdo de-finitivo. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite o conhecimento de habeas corpus quando os fundamentos ainda não foram apreciados definitivamente pelo órgão judiciário apontado como coator. Superveniência do julgamento definitivo do habeas corpus no Superior Tri-bunal de Justiça. Prejuízo da presente impetração nesta parte. 2. Prisão preventiva do Paciente. É pacífico o entendimento deste Supremo Tribunal no sentido de que a possibilidade objetiva de reiteração criminosa constitui motivação idônea para fixação da custódia cautelar. 3. habeas cor-pus, denegado.”

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maior importância (ultima ratio).

A seleção dos bens jurídicos penais pelo legislador infraconstitucional deve

buscar seu fundamento sempre na Constituição Federal, pois em seus meandros

estão definidos os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito,

elencando-se valores tais como a liberdade, a segurança, o bem-estar social, a

igualdade, a vida, a propriedade privada, o meio ambiente, entre outros.

Esse fundamento teórico traz consigo dois importantes aspectos da pena

como meio de punição das condutas penalmente relevantes: a pena deve sem-

pre ter (e manter) seu caráter preventivo (ao punir um infrator na norma penal,

exerce efeito preventivo de modo a evitar que outros venham a delinquir) e re-

tributivo (a pena como meio de punição/reitribuição do Direito Penal para o

infrator da norma).

Todo esse conjunto de princípios objetiva garantir efetividade ao Direito Pe-

nal na sua missão de tutelar os valores e bens jurídicos mais importantes para a

sociedade, evitando que a norma penal acabe esvaziada de conteúdo e aplicação

prática.

O próprio sistema penal prevê causas excludentes da tipicidade, da antijuri-

dicidade e da própria punibilidade como forma de reconhecer que determinadas

condutas em certas situações não podem ser consideradas violadoras na norma

penal. O princípio da insignificância, apesar de não estar expressamente previs-

to em lei, é amplamente aceito pelo Poder Judiciário e pela doutrina como causa

supralegal de exclusão da tipicidade.

Sua aplicabilidade nos casos concretos vem sendo paulatinamente amadu-

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recida pelos Tribunais Pátrios, que no exercício da atividade jurisdicional, vêm

definindo os critérios para seu reconhecimento, bem como a sua incidência ou

não diante de situações que poderiam autorizar o reconhecimento da excluden-

te, mas que na prática exigem um exame apurado do julgador.

A aplicação do princípio da insignificância ao criminoso habitual (reinciden-

te ou não) é um desses temas debatidos pelo Poder Judiciário e que ainda não foi

totalmente pacificado, exigindo uma reflexão maior para analisarmos o seu real

alcance e conformidade com o ordenamento jurídico.

Embora existam divergências nas decisões dos tribunais pátrios, o Supremo

Tribunal Federal vem delineando tal questão de modo a não esvaziar totalmente

o objetivo da norma penal, mas também de forma a não ocupar o aplicador do

Direito com condutas que não sejam juridicamente relevantes quando se trata de

Direito Penal.

O princípio da insignificância ou bagatela como causa excludente da tipicida-

de deve ser aplicado quando se verifica que uma conduta em tese delituosa não é

materialmente típica, especialmente quando na prática se verifica a existência de

mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social da ação, um

reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e uma lesão jurídica

inexpressiva.

O reconhecimento da insignificância mostra-se compatível com a tutela

constitucional da liberdade das pessoas, reforçando a natureza fragmentária e

de intervenção mínima do Direito Penal.

De outro lado, a aplicação de tal princípio não deve incentivar a prática de

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89Revista Omnes - ANPR no 1

pequenas condutas criminosas como forma de esquivar-se da aplicação da lei

penal. Especial atenção damos aqui àqueles que se dedicam à atividade crimi-

nosa fazendo dela seu meio de vida, mediante a reiteração das condutas penal-

mente tipificadas.

Esse, inclusive, vem apontando como o entendimento a ser firmado pelo Su-

premo Tribunal Federal na análise dessa questão, já tendo afirmado que

“o princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar

constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas

ínfimas, isoladas, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no

caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignifican-

tes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica

de bagatela e devem se submeter ao direito penal” (STF, HC 102.088/RS, 1.ª

Turma, Rel. Min.CÁRMEN LÚCIA, DJe de 21/05/2010).

Os crimes envolvendo bens e valores tutelados penalmente, quando pratica-

dos como verdadeiro meio de vida (habitualidade), não podem ser considerados

ínfimos de modo a configurar um indiferente penal, pois a falta de repressão a

tais condutas pode representar verdadeiro estímulo à prática de delitos que tra-

riam lesividade significativa ao bem jurídico tutelado pela norma penal.

Não se pode desvirtuar um instituto criado para balizar o entendimento do

julgador quanto à concretização da tipicidade material de um ilícito e transfor-

má-lo em guardião do infrator contumaz, sob pena de travestirmos um princí-

pio colhido do garantismo em uma via de mão única: apenas como mecanismo

de proteção dos direitos individuais do acusado, em detrimento do direito à

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90 Revista Omnes - ANPR no 1

segurança de toda a coletividade de cidadãos28.

Deve-se ter presente que o sistema penal existe, entre uma série de fatores,

como meio desmotivador do cometimento de ilícitos. O sistema não pode con-

sentir com a reiteração; pelo contrário, deve sempre procurar evitá-la, pois o fim

primeiro e último do Direito Penal é a garantia da convivência pacífica dos mem-

bros de uma comunidade.

Permitir que o princípio da insignificância seja aplicado quando, pelos ele-

mentos encartados no processo, há comprovação da reiteração delitiva, é assen-

tir com a impunidade. E é imperioso que não confundamos os institutos: rotular

determinada pessoa de “criminosa” porque, a título de exemplo, veste-se mal,

tem um andar sorrateiro, mora em determinada região, dedica-se à vadiagem (já

revogamos o tipo), e outras impressões pessoais (e aí, sim, subjetivas) do julga-

dor em face do acusado, seria uma equivocada aplicação de superada doutrina

que endossa a existência de um criminoso por tendência. Ao revés, amparar-se

em dados concretos existentes nos autos (denúncias, procedimentos criminais,

inquéritos e processos em andamento) para, ressalte-se, apenas afastar a inci-

28 “...Em síntese, do garantismo penal integral decorre a necessidade de proteção de bens jurídi-cos (individuais e também coletivos) e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos inves-tigados e/ou processados. Integralmente aplicado, o garantismo impõe que sejam observados rigidamente não só os direitos fundamentais (individuais e coletivos), mas também os deveres fundamentais (do Estado e dos cidadãos), previstos na Constituição. O Estado não pode agir desproporcionalmente: deve evitar excessos e, ao mesmo tempo, não incorrer em deficiências na proteção de todos os bens jurídicos, princípios, valores e interesses que possuam dignidade constitucional, sempre acorrendo à proporcionalidade quando necessária a restrição de algum deles. Qualquer pretensão à prevalência indiscriminada apenas de direitos fundamentais indivi-duais implica – ao menos para nós – uma teoria que denominamos de garantismo penal hiper-bólico monocular: evidencia-se desproporcionalmente (hiperbólico) e de forma isolada (mono-cular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, o que, como visto, não é e nunca foi o propósito único do garantismo penal integral.” Excerto ex-traído do texto O QUE É GARANTISMO PENAL (INTEGRAL)?, de autoria do Procurador Regio-nal da República Douglas Fischer, disponível em http://www.metajus.com.br/textos--nacionais/O_que_e%20garantismo_penal_Douglas_Fischer.doc, acesso em 04.11.2011.

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91Revista Omnes - ANPR no 1

dência de uma causa supra legal de exclusão da tipicidade (a reiteração não fará,

por si só, prova de materialidade, de autoria, de dolo, não representará aumento

de pena – tampouco será considerada como antecedente – tudo deverá ser pro-

vado no feito) é estabelecer, segundo entendemos, a correta interação entre o

postulado da bagatela e a habitualidade criminosa.

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92 Revista Omnes - ANPR no 1

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95Revista Omnes - ANPR no 1

hABITuALIDADE E BAGATELA:

equívocos na interpretação dos institutos da

culpablidade de autor e de fato.

anderson lodetti Cunha de oliveira1

1Introdução

2Culpabilidade de Autor

3Culpabilidade de Fato/Ato

4Reiteração criminosa e bagatela

1 Procurador da República em Santa Catarina - Mestre em Direito pela UFSC

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96 Revista Omnes - ANPR no 1

1. Introdução

O presente artigo visa a demonstrar que o princípio da insignificância é in-

compatível com a reiteração criminosa, especialmente a habitualidade. Motiva a

elaboração deste trabalho o fato do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribu-

nal de Justiça e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região estarem consolidando

jurisprudência no sentido que a reiteração criminosa é compatível com a baga-

tela.

A análise dos julgados desses Tribunais revela que há um erro de premissa da

qual partem: todos eles entendem que a consideração da reiteração criminosa/

habitualidade é aspecto subjetivo, incompatível com a culpabilidade de fato.

Demonstrar-se-á justamente o oposto. A reiteração criminosa e a habitualidade

não são aspectos subjetivos, mas sim objetivos. Ainda, considerá-los para afastar

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97Revista Omnes - ANPR no 1

a insignificância não tem nenhuma relação com adoção da culpabilidade de autor.

2. Culpabilidade de autor

Convencionou-se chamar de culpabilidade de autor todas as interpretações

penais que levam em conta os fundamentos da pena da Escola Positiva Italiana

(Cesare Lombroso, Rafaelle Garofalo e Enrico Ferri), da Escola Dogmática Ale-

mã (Franz Von Liszt), da Defesa Social (Adolph Prins e Filipo Grammatica) e da

Nova Defesa Social (Marc Ancel).

O principal fundamento da pena dessas Escolas Penais é a função preventiva

especial, ou seja, a ressocialização. Tem por base a idéia de que o criminoso é um

ser diferente, dotado de personalidade distorcida, com inclinação para a prática

do mal (o crime).

A responsabilidade moral dos liberais é substituída pela responsabilidade le-

gal ou social. Na responsabilidade moral, o criminoso responde por conhecer a

lei, por poder agir conforme a mesma e, no entanto, descumpri-la. Na respon-

sabilidade legal, o delinquente, por ser determinado à prática do crime, não po-

deria ser punido pela inexistente capacidade de escolha entre o bem e o mal. Ele

recebe sanção penal porque, e simplesmente porque, não tem uma personalida-

de compatível com o estágio social geral da época em que vive, o que o faz um ser

inassimilável no seio social e, por conseguinte, contrário à lei dessa sociedade1.

Fiel a sua matriz antropológica a Escola Positiva italiana vai colocar o cri-

minoso no centro do Direito Penal e vai buscar as causas de sua personalidade

1 FERRI, Enrico. FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1999, p. 128.

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98 Revista Omnes - ANPR no 1

perigosa. Como o crime e o criminoso existem na natureza, basta achar o que

lhes é comum e quais as causas da criminalidade para poder adequar a sanção

penal à personalidade. “Tanto na justiça penal como na vida social, o crime tem

toda a eloquência e importância do fato realizado e é a revelação concreta de uma

personalidade perigosa.”2

A Escola Positiva funda o Direito Penal do autor, e o fato criminoso passa a

ser um mero índice de periculosidade. A pena deve adequar-se não à lesão cau-

sada pelo delito, como faziam os liberais, pois a forma aritmética de pena é um

absurdo, semelhante ao médico que está com a receita pronta antes de ver o pa-

ciente.3 A pena é necessária para fazer cessar a temibilidade4 do delinquente,

seja pela eliminação, seja pelo tratamento. A pena, segundo Rafaelle Garófalo,

é, então, “remédio para a doença; assim como o médico não questiona da justiça

da doença ou quanto o doente podia tê-la evitado, o juiz não deve questionar da

justiça da anormalidade.”5

A pena deixa de ser uma intimidação para os que pensam em violar o pacto

e passa a ser, então, um ato de defesa social do organismo social contra a célula

daninha. E, assim como o corpo se defende sem questionar a justiça ou injustiça

da eliminação, a sociedade deve se defender do criminoso, dentro da lógica da

natureza.

O livre-arbítrio dos liberais (Carrara, Beccaria, Feuerbach etc) fez com que a

2 Ibidem, p. 291.

3 Ibidem, p.313.

4 GAROFALO, Rafaelle. Criminologia. Campinas: Peritas, 1997, p.207.

5 Ibidem, p. 212.

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99Revista Omnes - ANPR no 1

justiça criminal perdesse o controle da criminalidade e o juiz acabasse com fic-

ções que só beneficiavam o delinquente. Por isso, Enrico Ferri vai defender que

“no julgamento, mais que em qualquer outra função da justiça penal, o homem

delinquente é o verdadeiro protagonista, que está vivo e falando diante do juiz,

o qual, por sua vez, não pode deixar de se preocupar em saber se ele é um indiví-

duo mais ou menos perverso e perigoso.”6 Os positivistas repudiam a pena fixa,

pois o único fim da pena é a readaptação, sendo inadmissível“um dia a mais ou a

menos sem essa transformação do delinquente.”7

A passagem do Direito Penal do fato para o Direito Penal do autor faz Enrico

Ferri dizer que “o delinquente tem que ser punido não tanto por aquilo que tem

feito, mas por aquilo que é.”8 E, para se manter coerente com sua teoria, defende

que se aplique o perdão àquele que cometeu um homicídio ou um parricídio, mas

que não é delinquente (ou seja, perigoso), pois a pena para ele de nada adianta-

ria. E, pelo contrário, que fique preso por longos anos, se necessário, aquele que

cometeu o mais leve dos delitos, se for um delinquente, ou seja, mostrar pericu-

losidade, pois necessita de tratamento.9

O termo “periculosidade” foi cunhado por Enrico Ferri10, que simplesmente

achou sê-lo mais adequado que a “temibilidade” de Rafael Garófalo11. No entan-

6 FERRI, 1999, p. 329.

7 Ibidem, p. 315.

8 Ibidem, p. 273.

9 Ibidem, p. 316.

10 Ibidem, p. 271.

11 GAROFALO, 1997, p. 207

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100 Revista Omnes - ANPR no 1

to, o conteúdo da periculosidade é o mesmo da temibilidade. Periculosidade é

a tendência a voltar a delinquir. Assim, os criminosos habituais e reincidentes

são os mais perigosos, justamente por revelarem maior tendência sintomática

ao crime. Segundo Enrico Ferri, a periculosidade criminal traz consigo o perigo

de recidiva.12

A periculosidade, como inclinação para o crime e sintoma de uma anormali-

dade que é prejudicial à sociedade, dando-lhe o direito de defesa, é a base de todo

o sistema positivo do Direito Penal.

O fim da justiça penal é defender a sociedade dos delinquentes perigosos.

A pena é uma forma de tratamento para a periculosidade e deve, portanto, ser

individualizada e executada conforme a sintomatologia do perigo. O crime não

passa de “índice da personalidade mais ou menos perigosa do seu autor.”13 E a

execução da pena deve ser um tratamento higiênico, disciplinar e educativo da

personalidade.14 Conclui Ferri, “a nova justiça penal que se preocupa sobretu-

do de lhe precisar (do delinquente) a personalidade individual, familiar e social,

para lhe graduar a periculosidade e, portanto, a corrigibilidade ou readaptabi-

lidade à vida normal.”15 Von Hentig resume a função da pena positiva com uma

metáfora: a pena deve formar homens para se “encaixarem como pedras bem

12 FERRI, 1999, p. 280

13 Ibidem, p. 146.

14 Ibidem, p. 202.

15 Ibidem, p. 309.

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101Revista Omnes - ANPR no 1

quadradas e regularmente dispostas na pirâmide social.”16

O Tecnicismo Jurídico do alemão Franz Von Liszt e do belga Adolph Prins

somente floreou com outros nomes os institutos lombrosianos. O tecnicismo

jurídico vai ganhar força na Alemanha, em fins do século XIX, com a teoria de

ciências integradas de Franz Von Liszt que não admitia o reducionismo socioló-

gico dos positivistas, que queriam reduzir o Direito Penal à sociologia criminal

no combate à criminalidade.17 Segundo Liszt, “só pela união e mútua influência

do Direito Penal e da política criminal completa-se a ideia de ciência do Direito

Penal. Criá-las, desenvolvê-las, transmiti-las é a missão do criminalista, não é

missão do médico, sociólogo, do estaticista.”18

Os conhecimentos da antropologia criminal não são desprezados por Franz

von Liszt que, pelo contrário, considera que a defesa social seria incompleta sem

os conhecimentos da criminologia, pois somente o conhecimento do delinquen-

te permite a adequada individualização da reprimenda penal. Por isso, o autor,

que também propõe uma divisão dos tipos delinquenciais19, defende que a ideia

16 HENTIG apud FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Madri: Trotta, 1989, p.313.

17 Essa postura radical dos positivistas somente pode ser atribuída a Cesare Lombroso e Rafael Garófalo. Enrico Ferri, apesar de cair no mesmo reducionismo em seus primeiros escritos, com o “Princípios de Direito Criminal” acaba defendendo um modelo de integração entre Direito Pe-nal e sociologia criminal nos mesmos moldes dos tecnicistas.

18 LISZT, Franz von. Direito Penal Alemão. Trad. José Hygino Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguet & cia, 1899, p. 105.

19 Para Franz von Liszt havia os delinquentes habituais (ou incorrigíveis), os corrigíveis e os oca-sionais. No mesmo modo que Enrico Ferri, os ocasionais existem por eliminação dos anteriores. Ou seja, caso alguém que não se encaixe nos estereótipos criminosos (pobre, analfabeto, desem-pregado, alcoólico, vadio, etc) venha a cometer um crime, será considerado ocasional, pois pre-cisa de uma pena para ser ressocializado, uma vez que já interioriza e vive conforme os valores capitalistas hegemônicos. Ver: LISZT, Franz von. La Idea del fin en el derecho penal.” Trad. Car-los Peréz del Valle. Granada: Editorial Comares, 1995, p. 84-91.

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102 Revista Omnes - ANPR no 1

de finalidade determina a extensão e a natureza da pena, com relação ao que se

deseja do delinquente no futuro.20

Adolfo Prins, depois de acusar os clássicos de “se lançarem na abstração e

pairarem no vácuo”21, vai defender o Direito Penal com duplo aspecto: 1) como

conjunto de disposições legais que regulam o direito de punir; e 2) como ciên-

cia social de defesa social, quando recebe o nome de criminologia ou sociologia

criminal22. A função da justiça penal é proteger a boa ordem, através da defesa

social que, segundo o autor, já revelou a conexão entre miséria-crime-doença-

-degeneração.23 E, assim como Liszt24 e os positivistas, diz que a defesa preven-

tiva deve priorizar o proletariado, onde há terreno próprio à vagabundagem e à

criminalidade.25

Retomando a tipologia criminal de Enrico Ferri, Adolfo Prins vai defender a

pena indeterminada, pois esta permite que a mesma seja adaptada à periculosi-

20 LISZT, 1899, p.102.

21 PRINS, Adolfo. Ciência Penal e Direito Positivo. Lisboa: A. M. Teixeira, 1915, p. 12.

22 Ibidem, p. 13.

23 Ibidem, p. 40.

24 “A luta contra a delinquencia habitual exige, igualmente, um conhecimento minucioso do que hoje carecemos. Trata-se somente de uma das conexões – ainda muito perigosa e significativa – da cadeia de casos de enfermidade social que se costuma designar, sinteticamente, com a deno-minação proletariado: mendigos e vagabundos, alcoólicos e pessoas de ambos os sexos que exer-cem a prostituição; fraudadores e pessoas do submundo no mais amplo sentido da palavra; degenerados espirituais e corporais. Todos eles formam o exército dos inimigos por princípio de ordem social, em cujo estado maior figura o delinquente habitual.” (LISZT, 1995, p. 84)

25 PRINS, 1915, p. 34. Adolfo Prins também vai dizer, após um breve histórico do crime, que hoje em dia o mesmo está restrito às “classes criminosas”. Também cita Gustave Le Bon, que vai cha-mar a juventude excedente no mercado de trabalho de “resíduo inutilizável”.

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103Revista Omnes - ANPR no 1

dade pessoal26 e o tempo de prisão seja o necessário para a ressocialização do de-

linquente 27. O autor advoga pela tese da extrema severidade contra o reincidente,

o qual mostra maior perversidade e tendências criminosas mais acentuadas.28

Esse modelo de divisão metodológica só confirmou o que já vinha ocorrendo

desde a Escola Positivista. A interpretação da lei partindo da personalidade e da

periculosidade do criminoso29, garantindo-se assim uma melhor defesa social.

Ao mesmo tempo, um falso sistema era programado normativamente – pois

continuava em vigor a legalidade e o processo penal – para dar a ideia de que o

poder não agia de forma arbitrária. Diga-se falso, justamente pelo fato de que

as agências oficiais (polícia, Ministério Público, juiz e penitenciária) vão aplicar

a lei de forma seletiva e desigual, priorizando a criminalização, a suspeita e as

longas penas para o criminalizado com as características de “perigoso”.

A Defesa Social e Nova Defesa Social também partem do mesmo pressupos-

to: a pena tem que atingir o delinquente, considerando suas características e

personalidade. O termo Defesa Social foi cunhado pela primeira vez por Adolfo

Prins, no início do século XX, na União Internacional de Direito Penal, fundada

com Franz Von Liszt e Van Hamel.30A identificação de um momento específico

desse movimento ou de suas características específicas é muito difícil. Isso por-

26 Ibidem, p. 137.

27 Ibidem, p. 310.

28 Ibidem, p. 302.

29 FERRI já escrevia que os juízes estavam, apesar das críticas dos clássicos, adotando as posturas da Escola Positiva e interpretavam a lei conforme a pessoa do delinquente. Desde a formação de um juízo de culpa até a aplicação da pena. (FERRI, 1999, p. 116).

30ANCEL, Marc. A Nova Defesa Social: um movimento de política criminal humanista. 2ed. Trad. Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 87.

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104 Revista Omnes - ANPR no 1

que a Defesa Social de Filippo Grammatica, que realmente apresenta novidades

para a justiça penal (abolição do crime, da pena, da responsabilidade penal), é

considerada como teoria radical e que não pertence à Nova Defesa Social. Esta,

tendo como principal nome o de Marc Ancel, é que teve mais sucesso e fez mais

seguidores pelo mundo – inclusive, o Código Penal e a lei de execução penal pá-

trios são frutos diretos de sua influência – não parece, no entanto, ter alguma

característica diferente do positivismo do final do século XIX.31

O movimento da Defesa Social surge depois da Segunda Guerra Mundial,

por dois motivos principais: o primeiro foi a inadmissibilidade de qualquer tese

racista ou eugênica depois do holocausto. Como disse Eugenio Raúl Zaffaroni,

Adolph Hitler causou espantos na Europa pela sua perversidade. No entanto,

esqueceram-se de que o ditador alemão não inventou as teses racistas, que já

vinham sendo aplicadas há muito contra os latino-americanos e os africanos.32

O holocausto foi fruto das teses criminológicas spencerianas e lombrosianas,

inventadas longe e muito antes do Reich.

O segundo motivo foi a incapacidade do tecnicismo de evitar sistemas penais

totalitários e desumanos, o que fez surgir a necessidade de que o jurista novamen-

te voltasse os seus olhos para a política criminal como informadora do Direito

Penal. Voltou-se à necessidade de uma fundamentação a partir de um ponto de

vista externo para a aplicação da lei penal. Esses dois motivos foram os principais

impulsores da mudança nas teorias penais, passando da idéia de ressocialização-

31Eugenio Raúl Zaffaroni fala em “contraditório sistema de defesa social”, que nunca conseguiu definir-se de modo adequado, principalmente em sua tentativa de diferenciação do positivismo do século anterior.( ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximación desde um margen. Bogotá: Ed. Temis, 1988, p.241).

32 Ibidem, p. 66.

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105Revista Omnes - ANPR no 1

-terapêutica e da melhora da raça humana, para um modelo mais “humanitário”.

O primeiro Congresso do Movimento de Defesa Social foi realizado em San

Remo, em 1947, ou seja, logo após o fim da guerra e do início dos Estados de

Bem-Estar na Europa e nos Estados Unidos. Os dois fundamentos básicos do

movimento são, segundo Marc Ancel: 1) contato íntimo entre ciências crimino-

lógicas e penitenciária; 2) respeito incondicional aos direitos humanos e à digni-

dade humana.33 O nome de Nova Defesa Social somente vai ganhar corpo após o

Congresso de Bellagio, em 1963, quando há unanimidade em torno da corrente

moderada, excluindo as idéias de Filippo Grammatica.34

A nova defesa social vai centrar toda a sua atividade defensivista na persona-

lidade do criminoso. Grammatica, falando da importância em avaliar a persona-

lidade do indivíduo e medir sua anti-socialidade, para aplicar a melhor medida

de defesa, assevera que, “ao tender o sistema, como temos visto, não a julgar o

fato, senão a dar um juízo de valor do indivíduo e sendo este concebido como

um fenômeno psicológico, é evidente que todo o sistema acaba por tomar como

ponto de apoio o mesmo elemento psicológico.”35 É a mesma posição de Marc

Ancel, que ressalta que “a atitude de Defesa Social pretende adotar em relação

ao delinquente exige, em primeiro lugar, se leve em consideração a sua própria

33 ANCEL, 1979, p. 119.

34 A diferença marcante entre a Defesa Social de GRAMMATICA e a Nova Defesa Social, de AN-CEL, é a questão da lei. Para o primeiro deveria se acabar com o Direito Penal, o crime e a respon-sabilidade, uma vez que a medida de defesa social visa somente condicionar o indivíduo que agiu contra a norma. Se há condutas ou indivíduos desajustados, sobre eles deve-se aplicar técnicas de “normalização” e correção. ANCEL vai defender a permanência do Direito Penal, com a condição de que este se utilize dos avanços da criminologia e da penologia, para poder melhor readaptar o delinquente. Neste trabalho será utilizada a expressão nova defesa social para se referir tanto à posição de ANCEL quanto de GRAMMATICA.

35 GRAMMATICA, Filippo. Princípios de defensa social. Madri: Maribel, 1974, p. 157.

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106 Revista Omnes - ANPR no 1

personalidade, através do estudo sistemático levado a efeito segundo métodos e

perspectivas científicas.”36

Não seria necessário ir mais longe para demonstrar como a Nova Defesa So-

cial não tem nada de novo. Com razão Giuseppe Bettiol observou que este movi-

mento não passa de um positivismo atrasado e renovado.37 Basta analisar várias

passagens de Marc Ancel para perceber que tanto o fundamento da pena – res-

socialização do indivíduo – como o seu método de dosimetria são exatamente

iguais ao positivismo. Quando o autor elenca os três postulados da política cri-

minal da Nova Defesa há uma incrível semelhança com as teses de Enrico Ferri

e Adolfo Prins.

Então, a culpabilidade de autor é a relevância máxima à pessoa que cometeu

o crime, seu modo de vida, seus antecedentes, sua raça (se é que raça existe),

sexo, sua condição econômica e social. O fato crime é só o indicativo de que deve

se aplicar a pena, mas a que esta visa é atingir a pessoa humana criminalizada,

independente da gravidade do fato. Marc Ancel repete todas as fórmulas positi-

vistas (só excluindo as raças degeneradas) e dá ênfase à culpabilidade de autor.

Esta é típica da consideração de características pessoais e sociais do autor,

para reprovar-lhe coisa estranha ao fato. A intenção da culpabilidade do autor é

punir os que apresentam sintomas inclinados ao delito. Conforme Anabela Mi-

randa Rodrigues, “o fato não seria mais do que o pretexto necessário para dar

início, perante o agente, a um juízo de culpa sem limites.”38 A culpabilidade de

36 ANCEL, 1979, p. 281.

37 BETTIOL apud Ibidem, p. 128.

38 RODRIGUES, Anabela Miranda apud BARROS, Carmen Silva de Moraes. Individuali-zação da Pena na Execução Penal. São Paulo: RT, 2001, p. 83.

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107Revista Omnes - ANPR no 1

autor é a busca, segundo Carmen Silvia de Moraes Barros, no autor, da sua afini-

dade com o crime, em um verdadeiro “juízo moral sobre o autor.”39

Um dos maiores expoentes do Direito Penal pátrio na segunda metade do

século XX, Roberto Lyra, era defensor ferrenho das teses positivistas e utilizava

a culpabilidade de autor, aludindo à essencialidade de apreciação da periculosi-

dade, nos mesmos moldes de Enrico Ferri, tendo no centro a personalidade.40

Segundo o autor, “a apreciação da personalidade do homem, para bem afeiçoar-

-lhe a sanção, está ao alcance da experiência comum e obedece aos critérios habi-

tuais.” Para tanto, propõe a utilização da tabela de Mendelssohn, muito útil para

avaliar a personalidade, pois discrimina:

1) família do acusado (ascendentes até o décimo grau, colaterais até

o quarto grau, sob aspecto sociológico, psicopatológico, antropoló-

gico, criminológico e médico-legal); 2) vida do criminoso até a épo-

ca da acusação (generalidade); 3) regime educativo no lar (relações

entre os pais, entre o criminoso e seus irmãos e o tratamento dado

ao criminoso em comparação com os outros filhos); 4) estado físico,

estado psíquico, relações sociais, relações do criminoso com sua mu-

lher, relações do criminoso com seus filhos e pais, atos antissociais;

5) sexualidade (evolução psicopatológica sexual infantil – puberdade,

adolescência e maturidade; senilidade, etc).41

Roberto Lyra conclui que a personalidade não precisa ser avaliada por ne-

39 BARROS, Carmen Silva de Moraes. Individualização da Pena na Execução Penal. São Paulo: RT, 2001,p. 83.

40 LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal: art. 28-74. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v.2., p. 210.

41 Ibidem, p. 212.

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108 Revista Omnes - ANPR no 1

nhuma perícia psiquiátrica, pois o que conta é a “conduta como cidadão, filho,

pai, esposo, companheiro, amigo, profissional, como sócio de centros culturais,

beneficentes, recreativos, esportivos, mundanos etc.”42

Fácil perceber que a culpabilidade de autor é ainda a base da aplicação das

penas nesse país, bastando uma leitura de vários doutrinadores (Aníbal Bruno43,

Magalhães Noronha44, Basileu Garcia45 e Bento Faria46), do art. 59 do Código Pe-

nal, que insiste nos antecedentes, conduta social e personalidade do agente e

da jurisprudência desde a o início da República. Ainda se pune com maior rigor

aquele que repete uma ação sem lesividade significante e deixa-se com uma pena

muito baixa – no Brasil a malfadada rotina da pena mínima – aquele que comete

crimes de enorme gravidade, pelo simples fato de ele não apresentar anteceden-

tes. Os antecedentes, em vez da lesão causada pelo fato criminoso, ainda são a

base da aplicação da pena pelo Judiciário, sendo raras as exceções.

A explicação para essa consideração é um second code, ou código não-escrito,

que, segundo Alessandro Baratta, faz com que o juiz espere um comportamento

conforme a lei do não estereotipado, ou seja, do não pobre nem marginalizado

42 Ibidem, p. 213.

43 BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Tomo 3, Forense: Rio de Janeiro, 1967, p. 291

44 NORONHA, Magalhães. Direito Penal. 3ed. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 1, p. 287.

45 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4ed. São Paulo: Max Limonad, 1969, v.1, Tomo 2, p. 469.

46 FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro: art. 42-120. Rio de Janeiro: Record, 1961, v.3, p. 7.

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109Revista Omnes - ANPR no 1

e, pelo contrário, veja a necessidade de ressocialização para o estereotipado.47

Em verdade, a idéia do criminoso ocasional de Ferri ainda está muito presen-

te na prática forense nacional. Os criminosos do colarinho branco, os servidores

públicos corruptos e grandes empresários, quando condenados, recebem penas

mínimas ou muito próximas da mínima porque não estão dentro do estereóti-

po de “criminoso” que permanece desde a Escola Positiva Italiana. O Judiciário

tende a enxergá-los como não perigosos e, em consequência, em aplica-lhes uma

pena branda.48

3. Culpabilidade de Fato/Ato

A culpabilidade de autor, por visar mais a pessoa do que o fato, sempre serviu

a ditaduras, regimes autoritários, práticas racistas e eugênicas, porque as carac-

terísticas e o modo de vida do grupo/classe indesejado sempre foi motivo para

majorar a pena. Por isso ela é incompatível com o Estado de Direito e jamais

poderá fundamentar pena alguma.

Conforme Luigi Ferrajoli, essas posturas

(…) têm aberto caminho – nos piores casos – às muito mais nefastas

doutrinas abertamente antiformalistas, que têm constituído a base

dos ordenamentos penais totalitários. Refiro-me, diante de tudo, à

doutrina penal nazi do “tipo de autor” (tätertip) que identifica o des-

47 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal.” Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 178.

48 Tanto que quando o juiz Fausto De Sanctis utilizou os termos positivistas, comuns e cotidianos nas varas penais deste país (personalidade desviada, inclinação ao crime, inescrupuloso, etc), ao banqueiro Daniel Dantas, houve revolta de muitos advogados e de empresários. Ou seja, esses termos podem ser utilizados diariamente para os estereotipados, mas jamais para os criminosos do colarinho branco!

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110 Revista Omnes - ANPR no 1

vio punível antes que (ou mais que) através das figuras normativas dos

delitos (o homicídio, o furto, o ato de subversão), através das figuras

normativas dos réus (o homicida, o ladrão, o subversivo), dando re-

levância aos delitos somente enquanto “sintomas” de personalidades

antissociais, desleais ou criminais a interpretar ou “intuir”, como dis-

se o art. 2 do código penal nazi, sobre a base do “sentimento são do

povo.49

Conforme Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, o Direito Penal de autor “supõe

que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais

pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e,

por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico;

para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso.”50

Já a culpabilidade de fato não passa por elementos da personalidade para ava-

liar o grau de pena a ser imposto, partindo-se da ideia de proporção da pena com

relação ao grau de lesão ao bem jurídico, à gravidade do fato, e à capacidade do

agente se comportar conforme a norma penal.

A culpabilidade de fato retoma as idéias dos liberais (Carrara, Beccaria, a de-

nominada Escola Clássica do Direito Penal), onde a personalidade, periculosida-

de e temibilidade são temas totalmente alheios. Segundo Beccaria, o criminoso

é normal, pois o seu sentimento egoísta (de satisfação de interesses próprios em

detrimento da coletividade) está presente em todos os seres humanos.51 Por isso,

49 FERRAJOLI, 1989, p. 376.

50 BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raul, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I. 3ªed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 131.

51 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 2000,

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111Revista Omnes - ANPR no 1

a função da pena é reprovar, retribuir, o fato praticado, na exata proporção do

dano social causado.52

Só a culpabilidade de fato é compatível com o princípio da igualdade, na me-

dida em que somente são puníveis fatos exteriores, não qualidades ou condições

pessoais. É garantia de Estados democráticos que o cidadão somente seja res-

ponsabilizado por fatos exteriores que praticou voluntariamente. Segundo Fer-

rajoli:

Há uma conexão evidente entre natureza retributiva da pena e sua fun-

ção de prevenção geral dos delitos: a ameaça legal da retribuição legal

pode prevenir somente a comissão de fatos delitivos, não a subsistên-

cia de condições pessoais ou de status como são a periculosidade ou a

capacidade de delinquir ou outras similares; e, por outra parte, a pena

exerce uma função preventiva intimidatória sobre tudo se aflige ao que

“mereceu.53

A culpabilidade de fato é a reprovação penal pelo fato. Consideram-se as cir-

cunstâncias na qual ocorreu o fato para se infligir a pena. Conforme Zaffaroni e

Pierangeli, “na culpabilidade de ato, entende-se que o que se reprova ao homem

é a sua ação, na medida da possibilidade de autodeterminação que teve no caso

concreto.”54

No Direito Penal de ato se “concebe o delito como um conflito que produz

p. 67.

52 Ibidem, p. 67.

53 FERRAJOLI, 1989, p. 368.

54ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro.

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112 Revista Omnes - ANPR no 1

uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como decisão autônoma de

um ente responsável (pessoa) que pode ser censurado e, por conseguinte, a quem

pode ser retribuído o mal na medida de sua culpabilidade (ou seja, autonomia de

vontade com que atuou).55

Maria Lúcia Karam defende abertamente a culpabilidade de fato:

Vinculando-se à dignidade da pessoa humana – fundamento da República,

consagrado no art.1, III da CF – o princípio da culpabilidade, como culpabilidade

pelo fato realizado, deriva do próprio princípio da legalidade, que traz na ne-

cessidade de prévia e determinada descrição do fato punível o significado subs-

tancial de possibilitar o conhecimento da proibição de uma conduta, de forma a

autorizar a exigibilidade de sua não realização.56

A culpabilidade de fato também pode ser chamada de culpabilidade de ato.

Ambas as designações são fiéis àquilo que é a base do instituto: a punição por um

ato ou um fato externo, típico e culpável. Ou seja, completa impossibilidade de

punição por uma forma de ser (sexo, raça, questões físicas, nacionalidade etc),

pensar (comunista, capitalista, budista, católico etc) ou viver (condição homos-

sexual, solteiro, hábitos mais simples etc).

Na culpabilidade de ato não se questiona a classe social, os hábitos fami-

liares, a situação pessoal (desempregado, analfabeto, alcoólatra, etc) do agente,

suas inclinações (trabalhador, vadio, preguiçoso etc), para aferir se deve haver a

2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 608.

55 BATISTA, ZAFFARONI, et alli, 2003, p. 133.

56 KARAM, Maria Lúcia. Aplicação da pena: por uma nova atuação da justiça criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, n. 6, p. 117-132, abr/jun 1994, p. 124.

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113Revista Omnes - ANPR no 1

incidência da norma penal e, em havendo, qual a quantidade de pena a ser apli-

cada.

Na culpabilidade de ato, se questiona qual o grau de autodeterminação do

agente no momento de sua prática. Quanto maiores as chances de não praticar o

ato, mais culpável é o agente. Quanto menores as chances de não praticar o ato,

menos culpável é o agente. Então, a culpabilidade é determinada pelo grau de

exigibilidade de conduta conforme as normas penais.

Por que a culpabilidade de autor é tão mais utilizada (e foi tão difundida) nos

últimos dois séculos? A resposta está nos jogos de poder por trás da norma pe-

nal. Pela culpabilidade de autor, um mendigo que furta um bem de pouco valor

recebe pena alta, porque suas condições pessoais e atitudes de vida são reprová-

veis (não trabalha, não busca o auto-sustento, não aceita as normas sociais da

boa convivência, tem características próximas dos subdesenvolvidos etc). Se for

reincidente, a pena alcança patamares ainda mais elevados (afinal, demonstrou

periculosidade e desprezo para com a ordem jurídica). Pela mesma culpabilidade

de autor, quando um empresário sonega milhões, um político pratica uma frau-

de em licitação, a sua pena é baixa. Afinal, é pessoa idônea, reconhecida no meio

social, de família e conduta de vida exemplares. O crime foi um equívoco na sua

vida. Para esses, Ferri tinha a famosa categoria do “criminoso ocasional”.

Pela culpabilidade de ato a situação seria exatamente a inversa. O mendigo

tem menos capacidade de autodeterminação, porque sua capacidade de respeitar

o patrimônio alheio, diante da situação de privação que vive, é pequena. Enquan-

to que o empresário ou o político, por terem condições econômicas favoráveis e

já gozarem dos luxos da vida, são altamente culpáveis, na medida em que come-

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teram o ato criminoso com ampla margem de capacidade para não cometê-lo.

Então, como o Direito Penal foi utilizado – e ainda o é em sua maior parte –

para manter a ordem social capitalista, controlando a massa de desempregados,

despreparados e excluídos do sistema produtivo, a culpabilidade de autor sempre

foi a teoria preferida.57 Somente no caminhar para a construção de uma verda-

deira república, onde os privilégios e os resquícios de sentimentos de nobreza e

superioridade – ainda nutridos por parte da elite econômica e política – sejam

superados, é que será possível um Direito Penal de fato, no qual cada um res-

ponda pelo que fez e pelas sua culpabilidade (ou seja, capacidade de ter agido

conforme a norma).

4. Reiteração criminosa e bagatela

Atualmente os Tribunais pátrios estão divididos quanto à possibilidade de

aplicação da bagatela (princípio da insignificância) aos casos em que haja rei-

teração da prática criminosa ou habitualidade. Antes da Questão de Ordem em

Agravo de Instrumento n.º 559.904-1, do Supremo Tribunal Federal, raras eram

57 Para melhor se aprofundar na finalidade de controle social do sistema penal em sociedades capitalistas, que sempre priorizou a criminalização dos pobres e excluídos do mercado: BARAT-TA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal.” Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997. CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei 7429, de 1/6/86. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. CHRIS-TIE, Nils. A indústria do controle do crime. Trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998. DU-ARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e Racismo. Curitiba: Juruá, 2002. KIRCHEIMER, Otto e RUSCHE, Georg. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. TAYLOR, Ian, WALTON, Paul e YOUNG, Jock. La nueva criminología: una contribuición a una teoría social de la conducta desviada” Buenos Aires: Amorrortu. 1977. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, Freitas Bastos, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximación desde um margen. Bogotá: Ed. Temis, 1988. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. In: PIERANGELI, José Henrique (org). Direito Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, v.4. ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991

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115Revista Omnes - ANPR no 1

as decisões que aplicavam a bagatela nos casos de reiteração. Depois desse pre-

cedente, a realidade se alterou, sendo comum a aplicação da bagatela ainda que o

agente tenha praticado reiteradas vezes a mesma conduta, contra o mesmo bem

jurídico.

Na Questão de Ordem citada, que teve por relator o Ministro Sepúlveda Per-

tence, ficou consignado que a bagatela só deve ser aferida com relação a aspectos

objetivos, sendo a reiteração um aspecto subjetivo e, portanto, irrelevante para

se afastar a insignificância penal. O Supremo Tribunal Federal, em verdade, quis

adotar a teoria da culpabilidade de ato. Tanto que no voto, Sua Excelência é um

tanto enfático: “ocorre que o princípio da insignificância não tem nada a ver com

a bondade ou maldade do sujeito. É um problema tipicamente objetivo.” Após,

seguiram-se outras decisões do próprio Supremo Tribunal Federal aduzindo que

a reiteração e a habitualidade, por serem aspectos subjetivos, não afastam a inci-

dência da bagatela (RE 536486 / RS; RE 514531 / RS; HC 94502/RS).

Como o Supremo Tribunal Federal anda em uma crise institucional visível,

não conseguindo sequer dar uma orientação mínima de consolidação juris-

prudencial em várias questões que julga nos últimos, alterando entendimentos

como se fossem palpites na mesa de bar, com relação à habitualidade e a bagatela

a situação não foi diferente. Nos últimos meses, vários ministros mudaram de

orientação e começaram a entender que a habitualidade exclui, sim, a bagate-

la ( HC 100367, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011; AI 600500 AgR, Se-

gunda Turma, julgado em 24/05/2011; hC 107067, Primeira Turma, julgado em

26/04/2011; hC 107138, Primeira Turma, julgado em 26/04/2011).

No Superior Tribunal de Justiça a tese de que a reiteração afasta a insignifi-

cância também foi predominante ( HC 82226/SC; HC 63419/RS; HC 45153/SC;

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116 Revista Omnes - ANPR no 1

HC 66316/RS; HC 61134/PR; HC 44986/RS). Depois foi vencida (AgRg no Ag

1316517 / PR; HC 34827 / RS) e, atualmente, surgem novos julgados aduzindo que

a habitualidade exclui a bagatela (REsp 1241696/PR, julgado em 21/06/2011, DJe

28/06/201; REsp 1234716/PR, julgado em 21/06/2011, DJe 28/06/2011)

No Tribunal Regional Federal da 4ª Região há jurisprudência consolidada,

considerando a habitualidade como aspecto subjetivo, portanto, incapaz de afas-

tar a incidência do princípio da insignificância.58

Em todos os julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Supre-

mo Tribunal Federal que aceitam a bagatela, mesmo quando há reiteração de

conduta criminosa, há referência expressa à tese de que “circunstâncias mera-

mente subjetivas não afastam a bagatela”. Ou seja, os Tribunais estariam rejei-

tando a culpabilidade de autor, exigindo que elementos fáticos sejam os únicos

considerados na apreciação da tipicidade da conduta.

Ocorre que na reiteração criminosa, ou habitualidade contra o mesmo bem

jurídico, não há circunstâncias subjetivas, muito menos culpabilidade de autor.

Não são circunstâncias pessoais do réu que afastam a aplicação da insignificân-

cia nos casos de reiteração. Não se está negando a aplicação da insignificância

porque o réu é “perigoso”, tem “personalidade voltada ao crime”, apresenta pro-

58 TRF4, ACR 2007.71.07.005967-5, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 25/03/2009; TRF4, ACR 2005.70.02.007646-0, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 03/09/2008; TRF4, RSE 2007.71.17.000493-3, Oitava Turma, Relator Artur César de Souza, D.E. 11/07/2007; TRF4, EINACR 2003.71.03.001094-3, Quarta Seção, Relatora p/ Acórdão Maria de Fátima Freitas Labarrère, D.E. 28/03/2007; TRF4, ACR 2007.70.05.002807-5, Oitava Turma, Rela-tor João Pedro Gebran Neto, D.E. 08/07/2009; TRF4, EINACR 2003.71.03.001094-3, Quarta Seção, Relatora p/ Acórdão Maria de Fátima Freitas Labarrère, D.E. 28/03/2007.

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117Revista Omnes - ANPR no 1

blemas de conduta social ou familiar, é homossexual, apresenta condenação cri-

minal anterior ou é reincidente. Nenhum desses elementos subjetivos, típicos de

culpabilidade de autor, é considerado para afastar a insignificância.

A reiteração criminosa/habitualidade é elemento objetivo, empiricamente ve-

rificável, consistente na prática de fatos criminosos anteriores contra o mesmo

bem jurídico. Esses fatos típicos anteriores não indicam que o agente seja peri-

goso, temível, dessocializado ou qualquer coisa que relembre as teorias defensi-

vistas. Simplesmente apontam que o agente está agredindo o mesmo bem jurídi-

co repetidas vezes, o que majora a sua lesão objetiva e faz surgir a necessidade da

tutela penal. Ou seja, são levadas em conta ações típicas do agente, que causam

maior agressão ao bem jurídico tutelado, para se afastar a insignificância.

A continuidade repetida de ações insignificantes soma-se, sim, devendo ser

considerada para evitar a incidência do instituto despenalizador, sob pena de se

autorizar uma lesão considerável ao bem jurídico, ainda que de forma fraciona-

da. Qual a diferença de lesão causada por aquele que traz consigo, de uma só vez,

em descaminho, mercadorias que deixaram de recolher impostos no valor de R$

20.000,00 e aquele que trouxe consigo as mesmas mercadorias, em 10 viagens,

deixando de recolher o mesmo valor de impostos? Nenhuma diferença. Ambos

lesionaram o bem jurídico da mesma forma, apenas utilizando meios diferen-

tes. No entanto, adotar a tese de que a reiteração não afasta a bagatela resultaria

no absurdo de condenar o primeiro sujeito e considerar a conduta do segundo

atípica.

O que interessa para a aplicação da insignificância é a incapacidade da con-

duta lesionar o bem jurídico tutelado. O princípio da insignificância tem a fina-

lidade de excluir a incidência da norma penal incriminadora, porque, segundo a

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118 Revista Omnes - ANPR no 1

doutrina, a tutela penal seria desnecessária no caso concreto. Veja que a insigni-

ficância é excepcional e deve ser justificada.

Não há como aplicá-lo quando, no caso concreto, se demonstra que o agente

vem, pelas suas condutas, agredindo o bem jurídico tutelado repetidas vezes,

causando uma lesão que não é insignificante. Porque nesses casos há necessida-

de da tutela penal, uma vez que o bem jurídico está sofrendo lesão significativa.

Manter a insignificância nesses casos redunda em uma abolitio criminis das mais

terríveis, que não leva em conta o bem tutelado, mas sim a forma pela qual foi

ofendido o bem jurídico. O resultado danoso não seria mais o objeto de tutela

penal, mas sim a forma como se chegou a esse resultado. Se este ocorreu em

uma só ação, incide a tutela penal. Se houve várias ações, com o mesmo resultado

final, a tutela penal é afastada!

Interessante é que o próprio Supremo Tribunal Federal, através da Súmula

723, impede a suspensão condicional do processo em caso de continuidade deli-

tiva quando a pena mínima, decorrente do aumento, é superior a um ano. O que

está dizendo o STF, por outros meios? Que as várias condutas do réu lesionaram

de forma maior o mesmo bem jurídico tutelado, não tendo direito à suspensão.

Se o réu pratica o crime só uma vez, terá o direito (pois menor a lesão). Se for

acusado de praticar várias vezes, é porque a repetição indica maior lesividade,

não tendo direito ao benefício. Raciocínio semelhante foi utilizado pelo Superior

Tribunal de Justiça, ao editar a súmula 243.

Então, o que se está defendendo é que se há condutas típicas reiteradas, há

fatos praticados pelo agente. Como são fatos, são aspectos objetivos, não sub-

jetivos como estão decidindo o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Regional

Federal da 4ª Região. A existência de fatos típicos reiterados contra o mesmo

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119Revista Omnes - ANPR no 1

bem jurídico é uma circunstância objetiva que indica maior lesão, jamais poden-

do ser tratada como insignificante pelo Judiciário.

Situação diversa é a existência de fatos típicos praticados contra outros bens

jurídicos. Se o agente tem uma condenação por lesão corporal, outra por furto

e foi denunciado por um descaminho com tributos iludidos no valor insignifi-

cante, não se pode negar a aplicação da bagatela. Por quê? Porque se houver ne-

gativa da bagatela será pelo fundamento de que os antecedentes demonstram

maior “periculosidade”, “perversidade” ou “temibilidade” do agente. Percebe-se

que, nesse caso, foi necessário recorrer a uma qualificação negativa-arbitrária

do agente para culpá-lo, não pelo ato, mas pelos significado dos antecedentes.

Quando há lesão ao mesmo bem jurídico, a situação é diversa. Tanto que

essa é a base do crime continuado previsto no art. 71 do Código Penal. E veja

que o crime continuado no nosso Direito Penal rege-se por aspectos mera-

mente objetivos, sem necessidade de unidade de dolo. Basta a reiteração da

conduta criminosa, contra o mesmo bem jurídico, com as demais condições

do art. 71 do Código Penal, para que se reconheça a continuidade delitiva.59

Bem, se prevalecer e se consolidar a tese de que a reiteração criminosa é

aspecto subjetivo, de culpabilidade de autor, o crime continuado deixará de

existir para a maioria dos casos. O empregado que se apropria indevidamente

de R$ 30,00 por dia e, no final do mês se apropriou de mais de R$ 600,00, terá

cometido uma série de fatos atípicos reiterados, insuscetíveis de punição. O

empresário que deixar de repassar à Previdência o que recolhe dos emprega-

dos, se deixar de repassar menos de R$ 10.000,00 (dez mil reais, patamar da

59 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 596.

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120 Revista Omnes - ANPR no 1

insignificância dos crimes tributários definido pelo STF) por mês, ainda que

ao final do ano tenha deixado de repassar mais de R$ 100.000,00 (cem mil

reais) terá cometido vários delitos insignificantes, sendo a reiteração mero in-

dicativo de culpabilidade de autor, segundo a recente jurisprudência.

Alguns podem perguntar: mas valorar as condutas anteriores para afastar

a bagatela não é dar valor aos antecedentes, típico da culpabilidade de au-

tor60? Não, pois os antecedentes visam a agravar a pena imposta a um cidadão

em decorrência de outros processos em andamento ou com coisa julgada. Se

houver o aumento de pena, um dia que seja, em razão dos antecedentes, a ré

não estará recebendo pena pelo seu crime atual, mas sim por outros crimes,

dos quais já foi condenada (logo, já cumpriu ou irá cumprir a pena), absolvida

(logo, não pode receber pena jamais) ou em andamento (do qual é presumi-

da inocente). Nos antecedentes, cada um dos processos representa um crime

com lesividade própria, que está sendo processado e terá sua própria pena.

Por isso é uma aberração aumentar a pena em um processo devido à existên-

cia de outros, que serão punidos de acordo com a culpabilidade em cada um

dos casos.

No caso da reiteração para afastar a bagatela, as condutas anteriores não

estão sendo consideradas para se aplicar pena. Pelo contrário, são condutas

que, se não tivessem sido repetidas, jamais originariam penas, pois seriam in-

significantes. As condutas anteriores estão sendo consideradas porque soma-

ram-se e causaram uma lesão significante no bem jurídico tutelado. E se há

lesão significante, não se pode aplicar um princípio que exclui a tutela penal

60 Sempre conveniente lembrar que todos os tribunais nacionais aplicam a culpabilidade de au-tor, pois todos valoram antecedentes, conduta social e personalidade. É contraditório que utili-zem argumentos de culpabilidade de fato quando tratam da aplicação da bagatela.

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quando há insignificância!

E, enquanto os antecedentes se baseiam na ideia de periculosidade (quan-

to mais antecedentes, mais “inclinado ao crime”), típico da culpabilidade de

autor, na repetição de lesão contra o mesmo bem jurídico não se está asse-

verando que o agente é perigoso, inclinado ao crime ou jargões parecidos.

Apenas se está constatando a existência de atos, portanto, aspectos objetivos,

que deixaram de ser insignificantes. Portanto, a reiteração criminosa indica,

por meio de fatos praticados pelo próprio agente, maior lesividade ao bem

jurídico tutelado, exigindo a reprovação penal para a sua tutela.

A insignificância é um instituto despenalizador incompatível com lesão sig-

nificativa ao bem jurídico, que sempre ocorrerá quando houver reiterados ata-

ques ao mesmo. Há que se lembrar que o princípio da insignificância é uma ex-

ceção à regra da tipicidade. Em regra, todos os fatos descritos nos tipos penais

são típicos, merecendo a tutela penal. O princípio da insignificância surgiu na

dogmática para evitar aberrações desproporcionais. Foi Claus Roxin que, na dé-

cada de 70, cunhou os traços essenciais do princípio da bagatela, ao asseverar

que muitas vezes é necessária uma interpretação a partir da política criminal

para definir contornos de uma resposta penal de forma proporcional e razoá-

vel.61 Segundo o penalista, o que justifica a exclusão da tipicidade nos casos de

bagatela é a falta de lesão ao bem jurídico, que ocorre no caso concreto, apesar da

conduta ser formalmente descrita no tipo penal.62

No mesmo sentido Cezar Roberto Bitencourt assevera que para o Direito Pe-

61 ROXIN, Claus. Política Criminal e sistema jurídico penal. São Paulo: Renovar, 2000, p. 25/6.

62 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte gerenal. 2ªed. Trad. Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madri: Editora Civitas, 1997, p. 296.

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nal há que existir uma lesão minimamente significativa ao bem jurídico, pois “é

imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se

pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal.”63

O princípio da bagatela determina a exclusão da tipificação de condutas por

exceção, quando configurada a desproporção entre a norma penal e o compor-

tamento do agente. Não é o princípio adequado a ser aplicado no caso de agente

que reiteradamente atenta contra o mesmo bem jurídico, só que de forma parce-

lada e intercalada. Porque nesses casos, a norma proibitiva tem que prevalecer e

a reprovação aos atos criminosos do autor tem que existir, sob pena de se trans-

formar o princípio da bagatela em meio de bloqueio da tutela penal.

A tutela penal continua sendo necessária sempre para a proteção do bem ju-

rídico eleito pelo legislador. Permitir que reiteradas condutas lesivas ao mesmo

bem jurídico sejam imunes à tutela penal é permitir que o criminoso atue de

forma habitual, programada e altamente danosa ao bem jurídico de forma lícita

(afinal, a bagatela exclui a tipicidade). E não se pode aduzir que há licitude no

agir daquele que causa grande lesão a um bem jurídico pelo só fato de fazê-lo de

forma segmentada e parcial, apesar de reiterada e habitual.

O que era para ser princípio a evitar a desproporção da incidência da norma

penal virou, em princípio, contra os interesses sociais e em prejuízo da tutela pe-

nal. Afastar a insignificância nos casos de reiteração não tem nenhuma relação

com culpabilidade de autor, mas mera inadequação do instituto descriminaliza-

dor com uma situação na qual fatos indicam que o bem jurídico merece a tutela

63 BITENCOURT, op. cit., p. 21.

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penal e a punição será extremamente necessária e proporcional.

5. Conclusões

O Direito Penal de autor é resultado de toda uma construção teórica que se

iniciou no século XIX, com a Escola Positiva Italiana e vige até os tempos atuais.

A maior parte da doutrina nacional, a legislação penal e a jurisprudência repe-

tem as velhas fórmulas positivistas há mais de um século, considerando antece-

dentes a conduta social e elementos da personalidade para definir a aplicação da

pena.

A culpabilidade de autor dá primazia às características pessoais do autor do

delito, que são mais importantes que a própria lesão causada pelo crime pratica-

do. A classe social, situação econômica, raça, sexo, hábitos familiares e outras

características pessoais são a base para a dosimetria da pena.

A culpabilidade de fato resgata a ideia de proporcionalidade entre pena e fato

praticado. Desde os liberais, antes do positivismo, defendia-se a ideia de que a

pena deveria ser proporcional à lesão social praticada. Para a culpabilidade de

fato não são relevantes características pessoais do autor; apenas a lesão social e

a capacidade de respeitar a norma penal. Quanto maior a capacidade do agente

cumprir a norma penal, mais culpável é sua ação criminosa.

O Supremo Tribunal Federal, seguido pelo Superior Tribunal de Justiça e o

Tribunal Regional Federal da 4ª Região, está consolidando uma jurisprudência

que reconhece a aplicação do princípio da bagatela/insignificância mesmo em

casos de reiteração criminosa ou habitualidade. O fundamento seria a aplicação

da culpabilidade de fato, o que levaria a considerar a reiteração e a habitualidade

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como “aspectos subjetivos”.

Há um erro na interpretação de que a reiteração criminosa contra o mesmo

bem jurídico representa aspecto subjetivo, típico da culpabilidade de autor. Na

verdade, a reiteração contra o mesmo bem jurídico é um aspecto objetivo que in-

dica a prática de lesão significante ao bem jurídico tutelado, fazendo necessária

a tutela penal.

A aplicação da sanção penal aos que reiteram prática criminosa contra o mes-

mo bem jurídico não tem nenhuma relação com a culpabilidade de autor, uma

vez que não se está considerando aspectos relativos à classe social, sexo, raça,

conduta social, família, etc. Pelo contrário, a reiteração criminosa é um aspecto

fático, portanto objetivo, que indica a lesão significativa e exige a tutela penal.

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