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Uma breve história do tempo presente sobre o comércio informal em Santa
Maria. Daniela Possebon*
Resumo: Este artigo busca escrever uma breve história do comércio e dos comerciantes
informais de Santa Maria – Rio Grande do Sul do tempo presente, através do resgate de
memória, utilizando para isto a fonte oral, comparando estes relatos com os documentos
oficiais, como leis, notícias de jornais locais, da imprensa da Prefeitura de Santa Maria e da
Câmara Municipal de Vereadores. O tempo histórico abordado compreende o final dos anos
1980, período da intensificação do número de ambulantes na cidade, passando pelos anos
1990, quando da criação e consolidação do camelódromo, até os tempos atuais, momento em
que ocorreu a remoção e a transferência dos camelôs, ambulantes e artesãos das ruas para o
Shopping Popular Independência focando-se nos períodos de transição física e nas políticas
construídas nestes períodos para estes sujeitos. O texto também procura analisar o contexto
internacional socioeconômico que influenciou diretamente estes acontecimentos, além das
particularidades locais para, além de contextualizar e entender a formação deste mercado de
trabalho, exemplificar que o trabalho não se encontra no fim, mas em uma nova forma de ser.
Palavras-Chave: Trabalho. Comércio informal. Memória.
Abstract: This article searchs to write one brief history of the commerce and the informal
traders of Saint Maria - Rio Grande do Sul of the present time, through the memory rescue,
using for this the verbal source, comparing these stories with official documents, as laws,
notice of local periodicals, the press of the City hall of Saint Maria and the City council of
Councilmen. The boarded historical time understands the end of years 1980, period of the
intensification of the number of ambulant in the city, passing per years 1990, when of the
creation and consolidation of place of sales of the ambulant commerce, until the current times,
moment where it occurred the removal and the transference of the peddlers, ambulant and
craftsmen of the streets for the Popular Shopping Independence focando itself in the periods
of physical transistion and the politics constructed in these periods for these citizens. The text
also looks for to analyze the social and economic international context that influenced these
* Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Acadêmica do Aperfeiçoamento em Gestão de Políticas Públicas para Gênero e Raça da UFSM. Endereço Eletrônico para contato: <[email protected]>.
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events directly, beyond the local particularitities for, beyond to point out and understanding
the formation of this market of work, to show that the work if does not find in the end, but in
a new form of being.
Keywords: Work. Informal Commerce. Memory.
Porque não só a vida dos santos e dos
mártires, mas também as histórias dos
noviços, com seus medos e suas fraquezas,
podiam servir de ensinamento.
(Michel Foucault)
Estudar o processo de expansão da informalidade é, também, estudar a história do
presente e suas questões sociais. É estudar a redefinição do trabalho, a “crise do emprego”, o
desemprego estrutural1, embora este crescimento ainda seja deixado em segundo plano pelo
poder público e, conseqüentemente, pelas políticas públicas, além das pesquisas históricas e
acadêmicas em geral no Brasil.
Segundo Cacciamali (1994), o termo “setor informal” origina-se por meio de estudos
realizados pela OIT, iniciados em 1969 e é utilizado principalmente para “denominar formas
heterogêneas de produção e de trabalho não usuais às empresas tipicamente capitalistas”
(Ibid., p. 217).2 A autora, define a economia informal como “atividades, trabalhos e rendas
realizadas desconsiderando regras expressas em lei ou em procedimentos usuais”. O termo
informal engloba “a análise de um processo de mudanças estruturais em andamento na
sociedade e na economia que incorre na reorganização das relações de produção, das formas
de inserção dos trabalhadores na produção, dos processos de trabalho e de instituições” (Ibid.,
p. 163). O mercado informal se desenvolve principalmente a partir do desemprego, neste
sentido, de acordo com a autora (2000, p. 153), “reflete as dificuldades que as organizações,
os indivíduos e o coletivo social vêm enfrentando para superar, com as regras legais vigentes
1 Mészáros (2009, p. 22) explica que o desemprego estrutural vai além da idéia de exército de reserva de Marx, sendo que hoje a questão do desemprego foi significativamente alterada para pior. Completa o autor: “Ele já não é limitado a um ‘exército de reserva’ à espera de ser ativado e trazido para o quadro da expansão produtiva do capital, como aconteceu durante a fase de ascensão do sistema, por vezes numa extensão prodigiosa. Agora a grave realidade do desumanizante desemprego assumiu um caráter crônico, reconhecido até mesmo pelos defensores mais acríticos do capital como ‘desemprego estrutural’”. 2 Aqui, uso o conceito de “tipicamente capitalistas” em referência a uma visível separação das relações de capital-trabalho e também, em conseqüência disso, a separação das funções da produção das da administração.
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ou os procedimentos-padrão, as mudanças estruturais econômicas, políticas e sociais em
andamento”. Assim, a economia informal, por um lado, responde a demandas legítimas e
encaminha possíveis soluções no âmbito da nova ordem econômica e social; por outro lado;
constitui focos de tensões e de desigualdades sociais, pois a falta e vagueza de regras legais
ou consensuais, num ambiente intensivo em competitividade causam grande incerteza.
A respeito do ingresso no mercado de trabalho informal, para Malaguti (2000, p. 90-
91), segundo as pesquisas do IBGE, ao contrário do comumente difundido por órgãos como a
Agência de Apoio ao Pequeno Empreendedor e Pequeno Empresário (SEBRAE), constata-se
que o “sonho” de tornar-se um trabalhador “por conta própria” ou pequeno empresário não
exprime um desejo real dos trabalhadores, mas sim, a possibilidade de escapar do desemprego
ou dos salários degradados. Numa mesma linha, Antunes (2002) expõe uma tendência de
subproletarização do trabalho, onde haveria um aumento de formas de trabalho precário,
parcial, temporário, subcontratado, terceirizado, informal, entre outras. Quem antes era
empregado, passa a ser, compulsoriamente, empreendedor e micro/pequeno empresário,
porém, realizando as mesmas necessidades do capital sob nova roupagem. No caso aqui a ser
estudado, sendo dono da mercadoria, mas não do local de trabalho nem de sua administração.
Também é de Malaguti a diferenciação conceitual utilizada entre “informalidade” e
“setor informal”, sendo o primeiro um conceito maior que o segundo, inclusive, englobando-
o. Para o autor (2000, p. 99), o setor informal expressa apenas um aspecto da informalidade,
mas sem esgotá-lo, afinal, numerosos casos de informalidade podem ser observados nos
setores chamados formais.
Estudar o comércio informal é também problematizar os fenômenos que atingem o
mundo do trabalho hoje e suas raízes: a reestruturação na produção e a redefinição do trabalho
e suas questões sociais. A delimitação temporal justifica-se em que a partir das duas últimas
décadas do século XX, pôde se verificar grandes mudanças no metabolismo social do capital
criando profundas transformações no mundo do trabalho dos países capitalistas. Essas
variadas transformações inserem-se e desenvolvem-se nas relações de trabalho e de produção
do capital, extrapolando o clássico universo fabril, atingindo setores relacionados à educação,
saúde, serviços, e, o objeto deste estudo: o comércio. Com a abertura econômica iniciada em
1990, de acordo com Malaguti (2000, p. 65), há uma movimentação dos trabalhadores para o
setor dos serviços. Vemos, através dos jornais, relatos, etc., o número de ambulantes se
intensificarem nos anos 1980 e realmente “estourar” nos anos 1990, vivendo nos anos 2000
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tentativas de estabilização do crescimento através da intensificação do emprego formal e das
medidas de controle e fiscalização.
Segundo Pochmann (In. ANTUNES, 2006, p. 59-60), o desemprego em massa no
Brasil é uma realidade dos anos 1990, quando o país viveu a mais grave crise de emprego
regular da sua história. Para o autor, isso se deve a presença em larga escala do desemprego
em quase todos os segmentos sociais, a desestruturação do mercado do trabalho reduzindo os
postos de trabalho formais e, por fim, a destruição dos postos de trabalho de melhor qualidade
sem compensação nos empregos criados. É uma época marcada pela expansão das formas de
inserção em ocupações de baixa produtividade, informais e condições precárias de trabalho.
Neste quadro, “a maioria das vagas abertas no mercado de trabalho não tem sido de
assalariados, mas de ocupações sem remuneração, por conta própria, autônomo, trabalho
independente, de cooperativa, entre outras” 3 (Ibid., p. 61).
Esse processo ocasionou que no início do século XXI o Brasil apresentava, segundo
Schartzman (2004, p. 136), cerca da metade da população economicamente ativa no setor
informal, ou seja, sem contratos legais de trabalho e sem proteção da legislação social. O caso
brasileiro chegou a servir de referência em estudos internacionais sobre a precarização e
informalização crescente do emprego. Segundo o autor (Ibid., p. 136-137), os dados
brasileiros da proporção crescente de pessoas trabalhando por conta própria e ajudando suas
famílias sem nenhuma remuneração cresceu e serviu de evidência para o que Therborn
descreveu como sendo a “brasilização” do trabalho, um futuro sombrio que ele projetou para
as economias avançadas se elas não retomassem uma política ativa pró-emprego: uma
combinação de um largo segmento de pessoas subempregadas, vivendo de trabalhos precários
na economia informal e por vezes ilegal; um setor menor e minguante de empregados estáveis
em empregos públicos e em grandes empresas; e um segmento menor e altamente lucrativo de
empresários e administradores de alto nível.
Em contramão ao período anterior, segundo o IBGE, entre 2004 e 2009, o número
total de brasileiros empregados formalmente cresceu e a parcela dos empregados com carteira
de trabalho assinada aumentou. Um fator de destaque que contribuiu para o crescimento do
número de pessoas com carteira assinada foi a formalização dos trabalhadores domésticos.
Através destes índices, podemos ver que, embora o trabalho formal tenha crescido nos
3 De acordo com o mesmo autor, vale lembrar que as ocupações por conta própria podem ser de inserção moderna, como o trabalho autônomo para grandes empresas. Mas, no Brasil, o trabalho por conta própria que mais se expande é o de condições e remunerações mais precárias.
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últimos anos, ele cresce na maioria em áreas – mesmo regularizadas – precarizadas,
flexibilizadas, de jornadas de meio turno, de trabalho improdutivo e de trabalho físico, o que
não garante – em grande parte das vezes – perspectivas de melhora, especialização ou a auto-
estima do trabalhador. Entendemos que nos últimos anos o trabalho formal no país vem
crescendo, mas principalmente nas áreas mais precarizadas e de difícil fiscalização: a
doméstica4 e a rural.
O trabalho informal tem sido bastante expressivo na economia e nas relações sociais
nas últimas décadas. No entanto, o Brasil ainda tem uma pesquisa limitada sobre o assunto se
comparada à pesquisa européia ou dos demais países da América Latina. Além do mais, se a
pesquisa no Brasil já é pequena, entre os historiadores, ela é menor ainda. Praticamente,
apenas a sociologia e a economia têm se ocupado de estudar este crescente e expressivo
fenômeno.
Os objetivos desta pesquisa são, dentre outros, ajudar a suprir a necessidade de dados
que a pesquisa sobre a informalidade no Brasil apresenta5; dar voz aos excluídos, os
comerciantes informais de Santa Maria, os quais não tiveram sua História relatada ainda e
aqui puderam participar diretamente nesta síntese e; também objetiva, contribuir num campo
tão pouco explorado pelos historiadores, mas tão importante para a compreensão do mundo
do trabalho: o trabalho informal.
Os historiadores e pesquisadores do mundo do trabalho podem e devem contribuir no
estudo de um ramo de trabalho que ocupa cerca de cinqüenta por cento dos trabalhadores
brasileiros e tende a crescer. Com a contribuição dos métodos utilizados pela historiografia, o
setor pode ser retirado da invisibilidade histórica, resgatando memórias e contribuindo assim
no desenvolvimento de políticas públicas, reconhecimento e auxiliando futuros estudos.
Afinal, a ausência de informações mais completas nas estatísticas oficiais pode obscurecer a
natureza e o caráter desse conjunto de trabalhadores no processo de desenvolvimento
econômico, além de poderem conduzir a interpretações incorretas sobre a qualidade do
4 Prova disso é o que coloca Oliveira (apud Jungmann, 2009): “Como o ambiente em que trabalham é privado, não há como ter fiscalização para verificar as condições do local e como trabalham. [...] A carteira assinada foi a primeira conquista que nós alcançamos, há trinta e seis anos. No Brasil, há mais de 8 milhões de domésticas, mas apenas 2 milhões tem carteira assinada. Mesmo assim, há empregadores que assinam mas não que contribuem com a Previdência”. 5 A economista Maria Cristina Cacciamali (2000, p. 165) expressa que um dos principais problemas da pesquisa e das ações referentes à informalidade é a falta de dados disponíveis, por isso a importância das pesquisas que auxiliem nesta carência.
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desenvolvimento econômico atual. Com isso, e neste caso, os historiadores podem explorar as
possibilidades do conhecimento histórico na análise do presente e na construção do futuro.
Assim sendo, esta pesquisa visou levantar a memória, através principalmente da fonte
oral, e compará-la a dados oficiais (leis, notícias publicadas pela Prefeitura e pela Câmara
Municipal e reportagens de jornal local) e bibliográficos para, assim, escrever uma história do
comércio informal em Santa Maria. A temporalidade pesquisada compreende o final dos anos
1980 (crescimento do número de ambulantes que culmina na formação do camelódromo em
1991) até os dias atuais (quando os comerciantes informais são transferidos para o Shopping
Popular Independência) tendo foco nos momentos de transição física.
Os sujeitos6 históricos são atuantes e portadores de projetos diferenciados. O que
acontece hoje provém de uma série de injunções que é preciso descobrir e analisar. Estes
sujeitos foram, geralmente, até agora alvo de registros indiretos, principalmente, quando
quebram normas estabelecidas. A falta de fontes e a forma como as poucas fontes são
registradas já são um indicativo da problemática. Pensar além do que está sendo representado
e por que está sendo representado daquela forma é um desafio à historiografia.
A fonte oral se consolidou a partir dos anos 1960 na Europa (embora a partir de alguns
autores tenha tido seu marco inicial em 1948, nos Estados Unidos da América) e esta tem
atraído cada vez mais interessados, pois tem tomado um rumo de compromisso com a
democracia e a história social, além da vinculação com o momento presente.
Tedesco (2004, p. 27), afirma que a preocupação e a análise da memória sempre
estiveram presentes no campo social e das ciências humanas. Seguimos o autor:
O campo da memória envolve noções de temporalidades, lembrança, oralidades, subjetividades, factualidades, espacialidades, instrumentalidade objetal, etc. Suas técnicas e seus instrumentos analíticos e metodológicos é que não foram problematizados como estão sendo contemporaneamente. É nesse sentido que se manifesta, a partir da década de 1970, uma grande tendência da historiografia, mais voltada para o campo da cultura e do social e, mesmo, das ciências sociais em geral e da antropologia social, em adentrar para análises da memória, do cotidiano, não mais tanto de povos e agrupamentos societais tradicionais, mas das chamadas sociedades complexas em geral e da experiência de vida de grupos em espaço de mudanças socioculturais.
6 Tomamos por referência a concepção de Freire de sujeito (2001, p. 35) de que cognitivamente há a tendência de reduzir aspectos da realidade que se precisa ou se quer conhecer à dimensão de objeto. Porém, no conhecimento dos fatos humanos, os homens que queremos conhecer são sujeitos dos fatos, e, por conseguinte, não podem ser reduzidos à dimensão de objeto. Para ele, conhecimento e prática humana não podem ser tratados isoladamente: integram um mesmo movimento histórico.
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A fonte oral como técnica de recuperação do passado não vem para engessar os
demais métodos, mas para expandi-los. Combinados de forma auxiliar na horizontalidade da
escrita da História, sempre deixam o caminho aberto para os que quiserem posteriormente
contribuir, somar ou criticar, pois, assim, se escreve uma história que não tem um fim em si
mesmo. Quando buscamos a memória como fonte, queremos desenvolver a pesquisa para
além dos dados oficiais e transformar o que antes era apenas número e objeto, em sujeito.
Nenhuma análise ou interpretação sob qualquer ótica pode ser definitiva, no entanto
cada visão contribui, enriquece, se soma ao enorme quebra-cabeça que é escrever a história,
está errado quem imagina que algum estudo histórico está totalmente finalizado, completo,
cientificamente terminado. A memória vem para democratizar mais uma vez o debate
histórico, sendo um avanço do acúmulo cotidiano do sujeito entrevistado, contribuindo na
escrita da sua e de demais histórias. Além de tudo, a História Oral vem lembrar que os
historiadores devem seguidamente rever seus conceitos, teorias, posturas e o próprio
conhecimento que produzem.
Alguns críticos trazem o questionamento de que a História Oral é ideologicamente
tendenciosa, mas os documentos também têm tendências teóricas, mesmo que não explícitas
algumas vezes, pois nenhuma ação ou teoria consegue ser neutra. Como afirma Diehl (2006,
p. 18), “as narrativas históricas perderam muito de seu sentido original, as quais buscavam
orientar e legitimar projetos da sociedade”. Dessa forma, além de incorporar novos métodos,
o elenco de protagonistas da história também é novo ou recebe outros nomes: os invisíveis do
passado, as mulheres, os marginais, os comumente “sem voz”, os subalternos, etc. Tedesco
(2004, p. 28-29) esclarece mais sobre isso:
O interesse das ciências sociais pela memória deve-se ao reconhecimento da importância da dimensão temporal nos fenômenos humanos, na reflexão de que tanto a continuidade quanto a descontinuidade da vida em sociedade está implicada em mecanismos de lembrança e de esquecimentos, de seleção e de elaboração daquilo que o passado deixa para trás de si mesmo. [...] Os estudos de memória, especificamente, estão auxiliando tanto as análises acerca do vivido presente/cotidiano quanto de fatos e tempos passados; estão se apresentando, em sua maior parte, como uma forma de fazer o tempo passado se presentificar analítica e oralmente; de construção e reconstrução social de vividos; de entender formas e representações simbólicas históricas e educacionais; de entender tempos e espaços que necessitam de valores e significados culturais nem sempre em harmonia entre vividos e concebidos, expressos nas condições de existência passadas, atuais e projetivas.
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O historiador que utiliza a memória como fonte deve ter previamente a noção de que,
assim como qualquer documento, a memória é intencional, não é completa, tem vantagens e
desvantagens para o levantamento histórico. Como nos diz Tedesco (2004, p. 32-33):
Sabemos que muitos dos esquecimentos não são atribuídos aos problemas biológicos de memória, mas aos subjetivamente intencionais. As noções de interesse, de intencionalidade perceptiva, de funcionalidade, de possibilidade de livre escolha, de experiências prévias, [...] são muito caras à fenomenologia aplicada à memória em suas várias abordagens. Lidar com memória é mexer com gente, com interpretações presentificadas e, por que não dizer, intencionalizadas, com representações sociais e fatos históricos naturalizados e/ou pouco explicados em termos de origem, objetivo, intencionalidades, manifestas em condições de existência do passado, na atualidade e com intenções projetivas. [...] Sabemos que é comum, no processo histórico e social, a produção do esquecimento ou do silêncio alter/auto-imposto para ajustar o passado com as intenções e ressentimentos ainda conseqüentes do presente e das perspectivas futuras. [...] A memória coletiva pode ser induzida a esquecer e/ou não ser justiciada pela lembrança e por ações de ordem política, jurídica, criminais e ideológicas do tempo presente e não do tempo memorizado.
Segundo Vieira, Peixoto e Khoury (1989, p. 44), não é possível, no caso,
compartimentar o processo de investigação em partes estanques, pois o método, o marco
teórico, os documento oficiais e a memória são dialéticos. Sobre estas questões, as autoras
complementam:
O historiador que busca compreender e recuperar o movimento, a contradição, e que entende que esta compreensão é dada pela mútua determinação do sujeito que investiga e do objeto investigado, só pode entender por método o diálogo entre teoria e evidências. Isto implica que os procedimentos não sejam definidos a priori, ou externamente, mas sim no decorrer da pesquisa, fruto do próprio diálogo. [...] Numa postura diferente desta, na medida em que se acha que o procedimento do historiador é que garante a objetividade, há uma excessiva preocupação com a técnica. Esta passa a ser vista como tendo um sentido em si mesmo. [...] Subjacente a esta prática está uma idéia de neutralidade técnica, sem que se perceba que o desenvolvimento de uma determinada técnica está ligado a uma determinada concepção de história e de pesquisa7. No fundo, quando se pretende apelar para técnicas universais, se está generalizando uma determinada forma de pensar a história.
7 Uma herança positivista de preocupação com modelos de fichas, com normas universais para análise de registros e de documentos; que faz o “como fazer” obter um sentido muito grande se separando dos outros procedimentos.
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Trabalhar utilizando a recuperação da memória e pesquisar diretamente com pessoas,
em muitos casos, traz benefícios para os dois lados. Para os entrevistados, se constrói um
sentimento de identidade coletiva do grupo, um sentido de pertencimento dos indivíduos
ajudando o grupo a se conhecer ainda mais e nas próprias relações internas, também surte um
efeito de valorização do entrevistado. Além, é claro, por outro lado, por afirmar o princípio
básico da História Oral, que é trazer à sociedade a voz dos silenciados. Para o entrevistador
seja na entrevistas gravadas, ao distribuir formulários ou nas entrevistas anotadas no caderno
de campo é uma experiência muito rica de contato humano, conhecimento de vivências e
troca de idéias tanto para a pesquisa quanto para a vida.
Outros métodos também utilizados neste estudo foram a entrevista aberta e a entrevista
semi-estruturada. A entrevista aberta segundo Boni e Quaresma (2005, p. 74):
A técnica de entrevistas abertas atende principalmente finalidades exploratórias, é bastante utilizada para o detalhamento de questões e formulação mais precisas dos conceitos relacionados. Em relação a sua estruturação o entrevistador introduz o tema e o entrevistado tem liberdade para discorrer sobre o tema sugerido. É uma forma de poder explorar mais amplamente uma questão. As perguntas são respondidas dentro de uma conversação informal. A interferência do entrevistador deve ser a mínima possível, este deve assumir uma postura de ouvinte e apenas em caso de extrema necessidade, ou para evitar o término precoce da entrevista, pode interromper a fala do informante. A entrevista aberta é utilizada quando o pesquisador deseja obter o maior número possível de informações sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e também para obter um maior detalhamento do assunto em questão. Ela é utilizada geralmente na descrição de casos individuais, na compreensão de especificidades culturais para determinados grupos e para comparabilidade de diversos casos.
Também foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas através de questionários
respondidos junto ao entrevistado, ou respondendo dúvidas desse no momento da busca caso
o mesmo preferisse fazê-lo em casa, novamente de acordo com Boni e Quaresma (2005, p.
75-76):
As entrevistas semi-estruturadas combinam perguntas abertas e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. O pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas, mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. [...] Esse tipo de entrevista é muito utilizado quando se deseja delimitar o volume das informações, obtendo assim um direcionamento maior para o tema, intervindo a fim de que os objetivos sejam alcançados.
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A principal vantagem da entrevista aberta e também da semi-estruturada é que essas duas técnicas quase sempre produzem uma melhor amostra da população de interesse.
Esta pesquisa se propôs a ser “uma história” do comércio informal em Santa Maria e
não “a história” do comércio informal porque existem muitas histórias, haja vista que ela é
uma ciência de conhecimento cumulativo e em construção8. Segundo o historiador Ciro
Flamarion Cardoso (1981, p. 47), os cientistas hoje não buscam mais verdades absolutas, mas
sim contribuir na construção melhor adequada para trazer mais elementos relacionados às
pesquisas à tona.
Sabemos que a História é composta pela experiência humana e pela sua
narração/interpretação, sendo que a experiência pode ter um infinito de possibilidades que se
modificam através da investigação feita sobre ela, com as problemáticas e concepções que o
investigador tem no presente. Segundo Vieira, Peixoto e Khoury (1989, p. 30), o historiador
tem uma natureza comprometida com a história por ele produzida, pois sua postura e
experiência estarão presentes no seu trabalho – e essa bagagem histórica torna-se parte do
objeto de estudo. Por isso, o historiador também é fruto do seu tempo e responsável por como
utiliza sua pesquisa, “o conhecimento histórico é historicamente produzido”.
Por se tratar de experiências humanas, a história é um campo de possibilidades, de
classe e de luta, de necessidades, interesses e antagonismos (Vieira, Peixoto e Khoury, 1989,
p. 37). Assim, não se pretende, aqui, buscar na literatura algo que já estava determinado,
encaixando mecanicamente. Mas, combinar os processos de experiência dos sujeitos com a
teoria, a fim de que o pesquisador não se submeta apenas aos procedimentos do método ou
aos recursos da técnica. Também para que a ênfase não recaia no procedimento ao invés do
sujeito de estudo, mas seja, sim, uma problematização contínua, “dentro dessa postura, a
historiografia representaria esse acúmulo de conhecimento que está sendo buscado” (Ibid., p.
41).
O interesse do historiador pelo tema e o modo de abordá-lo depende da sua visão da
sociedade e de sua proposta de intervenção nela. A problematização é feita através da
bibliografia e da reflexão teórica, sempre dialogando com os sujeitos em questão e com os
saberes produzidos em suas experiências. Todos esses elementos fazem parte da construção
8 Para Vieira, Peixoto e Khoury, “Quando falamos que a história-conhecimento é construção queremos dizer que é uma representação do real e, como tal, parte do real e não o real em si mesmo. Nessa busca de compreensão do real, tanto está presente a reflexão do pesquisador quanto o próprio objeto” (1989, p. 44).
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histórica aqui realizada, pois são todos contribuintes para expressar uma versão e uma parcela
possível em um trabalho acadêmico, pois “o trabalho do historiador expressa uma reflexão
sobre diferentes práticas sociais em tempos diferenciados e, ao mesmo tempo, sobre a prática
acadêmica” (Ibid., p. 50).
Além de levantar uma História dos comerciantes e do comércio informal santa-
mariense, a pesquisa procurou também responder às seguintes hipóteses: a) As novas
estruturas do sociometabolismo do capital9 afetaram diretamente todo o trabalho dessas
pessoas: desde a forma de ingresso até os produtos que vendem e necessidades que suprem; b)
O trabalho ainda é o centro da vida destes trabalhadores; c) As iniciativas governamentais não
atendem completamente as necessidades do grupo e os mesmos não se sentem representados
ou suficientemente participantes nas mesmas; d) Pelo tempo que estes trabalhadores têm de
convivência, formaram uma Associação forte para discutir e pressionar por seus interesses
tanto dentro quanto fora do grupo; e) A transferência para o Shopping Popular piorou a
situação destes comerciantes; f) O comércio informal local tem grande parte das
características nacionais e internacionais, mas também características próprias de
entendimento específico.
De acordo com as entrevistas realizadas ao longo do primeiro semestre de 2011 com
os trabalhadores do Shopping Popular de Santa Maria, podemos corroborar – a partir deste
estudo de caso – que: o desemprego e a falta de outras oportunidades de emprego foi o que
levou a maioria a procurar a informalidade como forma de renda, ocupando essa parte do
excedente de oferta de trabalho urbana. Sintetizando estas entrevistas, podemos ver como
principais motivos da procura do comércio por conta própria: a diminuição dos empregos
assalariados e a ausência de políticas públicas compensatórias; oportunidade de ganhos
maiores àqueles dos empregos assalariados de média e baixa qualificação; expansão das
atividades de serviços; êxodo rural de pessoas com pouca especialização para empregos não
ligados ao campo; falta de ensino e ou especialização e com isso falta de oportunidades
diferentes de emprego; demissões e diminuição do emprego no setor público; em suma, esta
forma de trabalho é, na maioria das vezes, uma estratégia de sobrevivência para indivíduos
que apresentam dificuldades de reemprego ou de ingresso no mercado de trabalho formal.
9 Segundo István Mészáros (2002), o “sociometabolismo do capital” engloba o complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital. Este não se reduz apenas às suas dimensões econômicas, além disso, constitui-se num modo de dominação social e numa forma de organização da produção material. Assim, não há como separar o econômico e o político, ambos centrais para o exercício da dominação capitalista.
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Incerteza é um dos principais termos que podemos associar ao mercado do comércio
informal, pois ele geralmente vem do desemprego e está numa situação de dificuldade e
oscilações econômicas. Segundo Cacciamali (2000, p. 164), o trabalho informal, em geral,
tem algumas características: a vulnerabilidade, a insegurança tanto de trabalho quanto de
renda; muitas vezes, não há nenhuma regulamentação laboral e ou proteção social –
especialmente contra a demissão ou acidentes de trabalho; na maioria das vezes, é flexível e,
por isso, utilizado em múltiplas horas e funções; e geralmente traz menores salários.10
No mundo, mais de um bilhão de pessoas vivem a lógica do trabalho precarizado,
instável, temporário, terceirizado. Centenas de milhões destes são vítimas do desemprego
estrutural, ou seja, cada vez menos homens e mulheres trabalham, mas estes trabalham cada
vez mais e principalmente no Terceiro Mundo oscilam, em ritmo maior, entre a difícil busca
de emprego ou aceitando qualquer trabalho (ANTUNES, 2006, p. 01).
Pudemos até agora constatar que o comércio informal local tem grande parte das
características nacionais e internacionais, mas também características próprias de
entendimento específico. Pudemos confirmar uma série de características mundiais do
trabalho informal no comércio informal local, como o fato de o detentor do negócio exercer
simultaneamente as funções de patrão e empregado. Outros fatores somam-se a este: a
facilidade de ingresso; a origem e o subsídio próprio de recursos; a propriedade familiar do
negócio; a aquisição das qualificações profissionais a parte do sistema escolar de ensino; a
participação em mercados competitivos e não regulamentados pelo Estado, etc.
Pudemos ver também que o trabalho informal tem também algumas particularidades
em relação à maior parte dos demais trabalhos precarizados, como por exemplo, a
equivalência do número de homens e mulheres trabalhando. Também, pudemos confirmar a
hipótese de que as novas estruturas do sociometabolismo do capital afetaram diretamente todo
o trabalho dessas pessoas: desde a forma de ingresso até os produtos que vendem e
necessidades que suprem. Soma-se a isso que o trabalho ainda é o centro da vida destes
trabalhadores, bem como as iniciativas governamentais não têm atendido completamente as
10 Para Caciamalli, “essas características e forma de inserção não levam, entretanto, a que os trabalhadores por conta própria, inclusive em trabalhos com baixa produtividade, não possam auferir níveis de renda superiores aos recebidos por parcelas de assalariados, com registro e sem registro, que possuam características pessoais similares (idade, sexo, escolaridade, etc.). Além das diferenças de renda, provocadas pelos desempenhos e características dos diferentes ramos de atividade, não se pode deixar de observar conjuntos de trabalhadores por conta própria de baixa renda que, em virtude de suas habilidades e do mercado do qual participam (clientela e seu nível de renda), apropriam-se de rendimentos maiores do que se estivessem na condição de empregados”. (2000, p. 167-168)
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necessidades do setor, resultando que seus integrantes não se sentem representados ou
suficientemente participantes neste processo. As políticas públicas voltadas para este grupo de
trabalhadores atenuam sua situação, mas os mantém precarizados, tanto quanto a direitos
quanto a vivência do trabalho. Como exemplo, o horário de trabalho de mais de oito horas não
é obrigatório na constituição do Shopping, mas se torna obrigatório pela necessidade de
sustento da família, aluguel e manutenção da banca, ônibus, etc.
Nota-se que ao contrário do suposto, de que pelo tempo que estes trabalhadores têm de
convivência, teriam formado uma Associação forte para discutir e pressionar por seus
interesses, tanto dentro quanto fora do grupo, o que vimos na investigação contradiz esta
assertiva. Isto porque a definição do que os vendedores consideram como sendo ou não seu
interesse é bastante variada e fragmentada. Fragmentação essa que também nos leva a ver que
uma das hipóteses iniciais da pesquisa estava em parte correta e em parte equivocada. Na
verdade, certa para um andar e errada para outro, quando a transferência para o Shopping
Popular piorou a situação de parte dos comerciantes.
Além disso, pudemos ver o forte caráter político e eleitoral ligado aos comerciantes
informais. O caráter de ação política se expressa de várias formas: limpeza das ruas,
mobilidade para o camelódromo ou para o Shopping, etc., “agradar” aos empresários que
vêem os camelôs como concorrência ou desvalorização do espaço, pacificar os ambulantes e
parecer conciliador, o “melhor” para todos os lados.
Também notamos, a partir das noticias veiculadas pela imprensa eletrônica da
Prefeitura Municipal de Santa Maria que uma das falhas nos projetos envolvendo os
comerciantes informais locais é a tentativa de enquadrá-los no moldes pensados para Porto
Alegre. As situações são parecidas, o país é o mesmo, o estado é o mesmo, mas as cidades
têm suas peculiaridades no comércio e nos comerciantes. A troca de experiência com outro
projeto é enriquecedora. Mas a análise destes é apenas um dos pontos para a criação de um
bom projeto para a cidade, o qual deve contar com os relatos e opiniões das pessoas que
trabalham no setor, com os acréscimos de experiências e sugestões dos informais e artesãos
daqui. Por sua vez, o poder público, numa relação horizontal e aberta de construção de projeto
em todo o tempo e detalhes, com uma análise econômica e social voltada para a realidade
santa-mariense, poderia contribuir mais para a solução dos problemas no setor.
Vimos que o setor informal é inerente ao modo de produção capitalista, enquanto estes
trabalhadores, necessários ao processo de valorização do capital, tem sido tratados como
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problema. Sobretudo, um problema sem solução social e integradora, mas de solução que
mais votos tragam a interesses políticos conciliadores. Esperamos que as promessas de cursos
de capacitação e consultoria de vendas realmente se realizem, a fim de que os mesmos
possam estar mais perto da cidadania e da extensão de direitos que os projetos do poder
público lhes prometem e que as intervenções da Polícia Federal junto a estes no Shopping
Popular não mais aconteçam, mas sim diálogos e acordos pacíficos que beneficiem ambos os
lados.
Levantar momentos de transição e vivência deste setor e deste “mundo do trabalho”,
para que mais pessoas possam conhecer esta História e acompanhar e cobrar como esses fatos
virão a se desenrolar também faz parte da contribuição social de uma pesquisa acadêmica.
Pois, como um dos entrevistados disse: “a vida do comerciante de rua sempre foi uma luta,
decidida pelos grandes, tudo sempre foi imposto, não há negociação. Luta de criaturas que
passaram trabalho nas ruas e ainda passam, afinal, o trabalho em si é coisa real, acolhe, não
tem prós nem contras”.11
Referências Bibliográficas
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CACCIAMALI, M. C. Globalização e processo de informalidade. In. Revista Economia e Sociedade. Campinas: UNICAMP, jun. 2000.
__________. A economia informal vinte anos depois. Revista Indicadores Econômicos FEE, v. 21, n. 04, 1994. Disponível em: <http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/viewFile/626/871>. Acesso em abr. 2011.
CARDOSO, C. F. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981. DIEHL, A. A. Com o passado na cadeira de balanço: cultura, mentalidades e subjetividade. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2006.
11 As entrevistas gravadas, transcritas e assinadas estão sob tutela do Curso de História da Universidade Federal de Santa Maria disponíveis para pesquisa.
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TEDESCO, J. C. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração. Passo Fundo: UPF, 2004.
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Recebido em Setembro de 2011 Aprovado em Outubro de 2011