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Revista Latino-Americana de História Vol. 3, nº. 11 Setembro de 2014 © by PPGH-UNISINOS Página38 Capitães, comendadores, negociantes: A primeira geração de charqueadores de Pelotas e a sua elite (1790-1835) Jonas Moreira Vargas * RESUMO: Ao longo das primeiras décadas do século XIX, o município de Pelotas tornou-se o principal produtor de charque do Império do Brasil, atraindo um grande número de investidores que, além de montarem um importante núcleo fabril, tornaram-se a elite mais rica do extremo sul. O presente artigo analisa como um pequeno grupo entre estes primeiros charqueadores ocupou o topo da hierarquia social local distinguindo-se dos demais empresários. Os mesmos concentravam recursos materiais e imateriais diversos, com destaque para as comendas honoríficas, as patentes de oficias de milícias, além da sua capacidade em atuar no comércio marítimo. Outra característica importante do grupo foram os seus estreitos vínculos de parentesco. Palavras-chave: Elites Comércio atlântico Colonial tardio ABSTRACT: Throughout the first decades of the nineteenth century, the city of Pelotas has become the leading producer of beef jerky Empire of Brazil, attracting a large number of investors who, in addition to putting up a major manufacturing center, became the richest elite extreme south. This article examines how a small group among these early charqueadores occupied the top of the local social hierarchy distinguishing itself from other entrepreneurs. They focused many material and immaterial resources, highlighting the honorific commendations, patents militia officers, in addition to its ability to act in maritime trade. Another important feature of the group were their close ties of kinship. Keywords: Elites Atlantic trade Late colonial O charque ou carne-seca foi um importante alimento na dieta dos escravos das plantations e das populações livres pobres do Brasil. Durante boa parte do século XVIII ele era fabricado, principalmente, no norte da colônia. No entanto, como consequência das duras secas que afetaram as capitanias do Piauí e do Ceará, entre as décadas de 1770 e 1790, a freguesia de São Francisco de Paula (que, em 1835, passou a ser chamada de Pelotas) tornou- * Doutor em História Social (PPGHIS-UFRJ); Pós-doutorando (Bolsista PNPD-Capes) do PPG-História da UFRGS.

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“Capitães, comendadores, negociantes”:

A primeira geração de charqueadores de Pelotas e a sua elite (1790-1835)

Jonas Moreira Vargas*

RESUMO: Ao longo das primeiras décadas do século XIX, o município de Pelotas tornou-se

o principal produtor de charque do Império do Brasil, atraindo um grande número de

investidores que, além de montarem um importante núcleo fabril, tornaram-se a elite mais rica

do extremo sul. O presente artigo analisa como um pequeno grupo entre estes primeiros

charqueadores ocupou o topo da hierarquia social local distinguindo-se dos demais

empresários. Os mesmos concentravam recursos materiais e imateriais diversos, com destaque

para as comendas honoríficas, as patentes de oficias de milícias, além da sua capacidade em

atuar no comércio marítimo. Outra característica importante do grupo foram os seus estreitos

vínculos de parentesco.

Palavras-chave: Elites – Comércio atlântico – Colonial tardio

ABSTRACT: Throughout the first decades of the nineteenth century, the city of Pelotas has

become the leading producer of beef jerky Empire of Brazil, attracting a large number of

investors who, in addition to putting up a major manufacturing center, became the richest elite

extreme south. This article examines how a small group among these early charqueadores

occupied the top of the local social hierarchy distinguishing itself from other entrepreneurs.

They focused many material and immaterial resources, highlighting the honorific

commendations, patents militia officers, in addition to its ability to act in maritime trade.

Another important feature of the group were their close ties of kinship.

Keywords: Elites – Atlantic trade – Late colonial

O charque ou carne-seca foi um importante alimento na dieta dos escravos das

plantations e das populações livres pobres do Brasil. Durante boa parte do século XVIII ele

era fabricado, principalmente, no norte da colônia. No entanto, como consequência das duras

secas que afetaram as capitanias do Piauí e do Ceará, entre as décadas de 1770 e 1790, a

freguesia de São Francisco de Paula (que, em 1835, passou a ser chamada de Pelotas) tornou-

* Doutor em História Social (PPGHIS-UFRJ); Pós-doutorando (Bolsista PNPD-Capes) do PPG-História da

UFRGS.

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se a principal produtora de charque da América portuguesa vindo a abastecer parte dos

mercados antes atendidos por aquelas duas regiões. Se em 1787 as exportações rio-grandenses

do produto totalizaram 117 mil arrobas, em 1793 elas ultrapassaram as 400 mil e, em 1797 as

500 mil arrobas.Na década de 1800, a capitania exportou uma média anual de 820 mil

arrobas, das quais maisda metade tiveram como destino Salvador e Recife (OSÓRIO,

2007).Conforme Caio Prado Júnior, ao comentar a intensa produção do charque rio-grandense

no período, “excluído o rush do ouro, não se assistiraainda na colônia a tamanho

desdobramento de atividades” (PRADO JR, 1977, p. 103).

Tal fenômeno foi fruto do investimento de comerciantes que viram no declínio

econômico cearense/piauiense uma oportunidade de novos negócios. O Rio Grande do Sul

ainda era uma jovem capitania, com vastas pastagens povoadas por poucos homens e muitos

bovinos. Além disso, Pelotas ficava bastante próxima do porto de Rio Grande, onde a

produção podia ser rapidamente escoada. As primeiras “oficinas” devem ter sido instaladas na

década de 1780, apresentando uma grande precariedade. Mas na virada do século, é provável

que a maior envergadura dos negócios tenham possibilitado os comerciantes de importarem

mais escravos africanos, dando início a um importante crescimento daquela economia e

atraindo um notável número de pessoas de diferentes lugares. Se em 1822 havia 18

charqueadas nas margens do arroio Pelotas e do rio São Gonçalo, em 1835 existiam

aproximadamente 35 estabelecimentos. O presente artigo busca demonstrar como um pequeno

grupo de empresários alçou-se à condição de elite entre os charqueadores a partir da

concentração de alguns recursos materiais e imateriais caros àquela sociedade.

Pelotas: uma cidade negra

Nos primeiros anos de funcionamento das charqueadas, Pelotas não era nada mais do

que um mero povoado sob a jurisdição da vila de Rio Grande. No entanto, no início do século

XIX, as margens dos rios São Gonçalo e Pelotas já estavam pontilhadas por galpões de

charquear rodeados de ranchos, estâncias e vendas de beira de estrada. Nas primeiras

estatísticas do início do século XIX, organizadas em 1805, já era possível perceber que aquela

aldeia havia crescido, contribuindo para que a freguesia de Rio Grande, da qual ela fazia

parte, compusesse quase ¼ da população total da capitania.1 Esta freguesia reunia 10.168

1Ofício de 30.09.1806. AHU-ACL-CU-019, Cx. 11, Doc. 669 (Projeto Resgate). A capitania era composta por

14 freguesias. Sua população total era de 41.023 pessoas, das quais 13.800 eram escravos e 2.502 libertos.

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habitantes, dos quais 3.295 eram escravos, 351 eram libertos e 57 eram índios. A população

classificada como branca reunia 3.497 homens e 3.008 mulheres, totalizando 64% das

pessoas.2 Não é possível saber o percentual de moradores livres e escravos que pertenciam

tanto à vila de Rio Grande quanto ao povoado que viria a ser Pelotas, mas é muito provável

que uma parte considerável daquela escravaria (ela somava 23,9 % dos cativos de toda a

capitania) estivesse trabalhando nas charqueadas.3

Em 1814, tem-se a primeira estimativa tratando exclusivamente da população de

Pelotas – elevada à condição de freguesia cerca de dois anos antes. Na ocasião, a localidade

apresentou 1.226 escravos numa população de 2.419 habitantes, ou seja, 50,7% da população

era cativa. Contudo, quase 20 anosdepois, este contingente quase quintuplicou atingindo

5.623 escravos, que perfaziam 51,7% dos recenseados no ano de 1833. Portanto, as décadas

de 1810 e 1820 apresentaram uma intensa entrada de africanos destinados principalmente ao

trabalho nas charqueadas. Este fluxo de cativos, não apenas para Pelotas como também para a

capitania, acompanhou os ritmos do tráfico atlântico no porto do Rio de Janeiro, cuja entrada

de navios negreiros acentuou-se bastante entre 1809 e 1825 (FLORENTINO, 2010).4Às

vésperas da Guerra dos Farrapos (1835-1845) cerca de 36% da população pelotense foi

classificada como branca, o que revela a marca da escravidão na sociedade local.5

Além de terem sido montadas numa época de intenso fluxo de escravos para a

América portuguesa, as charqueadas pelotenses, em sua fase de arranque inicial, puderam

contar com outros fatores socioeconômicos. Com a vinda da família real para a colônia e a

consequente política expansionista levada a cabo durante o período joanino, os vastos campos

da Banda Oriental foram alvo de investidas militares, na qual muitos rio-grandenses

estebeleceram-se com estâncias de criação e alguns milhões de cabeças de gado vacum foram

saqueadas e deslocadas para as charqueadaspelotenses, favorecendo os negócios com o

charque.De acordo com Saint-Hilaire, até o início da década de 1820 cerca de 1 milhão de

bovinos haviam sido saqueados (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 107-108). No entanto,

escrevendo uma década depois, Arsene Isabelle considerou que o total do gado trazido da

2 Os recém-nascidos somavam 556 e os mortos 183. Ambos os grupos não foram contabilizados entre o “Total

da Povoação”. 3 Os escravos estavam divididos em 125 pardos, 94 pardas, 2.280 pretos e 796 pretas. Os libertos em 127 pardos,

131 pardas, 31 pretos e 62 pretas. 4No período de expansão do tráfico (1809-1824), Berute verificou um índice de 95% de africanos importados,

sendo 19% ladinos (BERUTE, 2006, p. 51). 5 Para maiores detalhes ver VARGAS (2013).

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Banda Oriental para o Rio Grande do Sul havia alcançado a cifra de 4 milhões de reses

(ISABELLE, 2006, p. 187-188). Não é difícil imaginar que nestes anos as tropas de novilhos

saqueadas baratearam imensamente os custos de produção, propiciando o mencionado boom

da economia charqueadora que marcou o período considerado. Portanto, tratava-se de um

contexto no qual a mão de obra, as pastagens e o gado eram comprados a baixos preços e,

muitas vezes, os dois últimos também eram adquiridos por formas não mercantis.6

Assim como em todas as regiões do Brasil, boa parte da população cativa de Pelotas

estava concentrada nas mãos de poucos senhores que formavam parte considerável da elite

local. Contabilizando o número de escravos arrolados nos inventários post-mortem do

município entre 1800 e 1835, verifiquei que os proprietários com 50 ou mais cativos, apesar

de representarem somente 5,4% dos inventariados, eram donos de 33,6% dos escravos. A

partir da Tabela 1 também é possível perceber que mais de 40% dos donos de escravos em

Pelotas eram proprietários de pequenos plantéis (de 1 a 4 cativos). Portanto, assim como em

outras regiões do Brasil, apesar da concentração verificada, a posse de cativos estava

disseminada por todos os setores da sociedade.

Tabela 1 – Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários

post-mortem (1800-1835)

Plantéis Inventários

N. %

Escravos

N. %

1 a 4 77 41,1 184 7,4

5 a 19 78 41,7 743 29,6

20 a 49 22 11,8 738 29,4

50 a 99 07 3,8 447 17,8

Mais de 100 03 1,6 397 15,8

Total 187 100,0 2.509 100,0

Fonte: a partir de PESSI (2010).

A posse de cativos pode servir como ponto de partida para definir a primeira elite

charqueadora em Pelotas. Sabe-se que o tamanho do plantel de escravos no espaço agrário

brasileiro do oitocentos estava bastante relacionado com a posição dos seus proprietários nas

hierarquias socioeconômicas locais (LUNA; KLEIN, 2005, p. 138). Dos 20 maiores

escravistas pelotenses inventariados entre 1800 e 1835 (possuidores de 35 ou mais cativos)

6 Para uma análise mais aprofundada deste mencionado período ver VARGAS (2013).

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pelo menos 15 eram proprietários de charqueada. A média de escravos por

charqueador(localizada nos inventários post-mortem entre 1810 e 1835) era pouco mais de 60,

sendo que alguns proprietários possuíam mais de 150 escravos. Analisando um grande

número de inventários post-mortem em toda a capitania entre 1765 e 1825, Helen Osório

percebeu que a elite econômica era predominantemente formada pelos comerciantes-

charqueadores, ou seja, ao lado de alguns estancieiros, eles eram os maiores escravistas da

região sul. Contudo, este grupo estava hierarquizado internamente e para se compreender

melhor os fatores que ajudavam a definir a posição socioeconômica destes proprietários é

necessário atentar para outras questões.

A primeira geração de charqueadores pelotenses e a sua elite

Como Helen Osório já demonstrou, a elite mercantil estabelecida em Rio Grande, no

último quarto do setecentos, era proveniente de diferentes lugares do Império português.

Além disso, muitos deles inverteram seus ganhos mercantis na montagem das primeiras

charqueadas da região (OSÓRIO, 2007). Neste sentido, não causa surpresa que boa parte dos

charqueadores desta primeira geração possuía origens semelhantes. Pesquisando em

diferentes fontes foi possível verificar a presença de pelo menos 62 charqueadores em Pelotas

entre os anos 1790 e 1835.7Localizei a informação da naturalidade dos mesmos para 48 deles

(77,5%).8 Destes, 23 eram nascidos na América portuguesa, 22 em Portugal, 2 na Colônia de

Sacramento e 1 na Espanha. Dos luso-brasileiros, 3 eram mineiros, sendo um de Diamantina e

outro de Mariana, 2 eram do Rio de Janeiro e 1 era de Recife. Os demais eram nascidos na

capitania sul-rio-grandense. Entre os reinóis, a metade era formada por minhotos,3 vieram de

Lisboa e 2 de Coimbra.Apenas 1charqueador era proveniente das Ilhas. A predominância dos

minhotos num grupo com forte caráter mercantil foi comum na época, como atestaram outros

autores.9 Portanto, eram homens de diferentes locais do Império português e um nascido na

7 A listagem foi elaborada a partir de uma relação de charqueadores descrita por João Simões Lopes Neto nos

anos 1920 e reproduzida por MARQUES (1987, p. 99-102). A partir dela busquei complementar a lista

localizando todos os proprietários que possuíam charqueadas em seus inventários post-mortem (abertos somente

em Pelotas). Acrescentei outros nomes a partir das contribuições de outros autores, como GUTIERREZ (1993),

OSÓRIO (2007) eARRIADA (1994). Muitos tiveram seu patrimônio inventariado somente depois de 1835 e

outros não tiveram seus bens inventariados. É provável que tenham havido mais charqueadores, pois as primeiras

fábricas eram muito rudimentares, podendo serem construídas e desmanchadas com poucos custos. Para maiores

detalhes ver VARGAS (2013). 8As informações foram coletadas nos testamentos, em genealogias e publicações relacionadas à história de

Pelotas (VARGAS, 2013). 9 Ver, por exemplo, PEDREIRA (1995), ALMEIDA (2001) e OSÓRIO (2007).

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Espanha. Trata-se de um perfil um tanto distinto dos saladeiristas de Montevideu e Buenos

Aires, uma vez que nenhum estrangeiro de língua inglesa ou francesa foi proprietário de uma

charqueada pelotense no período, algo muito comum entre os empresáriosdas duas cidades

platinas (VARGAS, 2013).

A diversidade de locais de procedência e as suas respectivas redes de relações para

com agentes de fora da capitania foram fundamentais na montagem do complexo charqueador

escravista em Pelotas. A inserção dos charqueadores em tais redes mercantisviabilizava um

melhor acesso ao tráfico atlântico, ao comércio marítimo, aos espaços de poder político e

redes de informações e favores, de amplo ou curto alcance, dependendo dos indivíduos com

quem os mesmos vinculavam-se. Neste sentido, o fato de um complexo fabril escravista ter

sido montado por comerciantes de diferentes localidades é revelador do nível de interação

social e de conexão mercantil em que os mesmos estavam inseridos. Em suma, o complexo

charqueador em Pelotas, assim como no Prata, foi resultado do investimento particular de

alguns negociantes imperiais – na definição de João Fragoso (2002) – com capitais

financeiros e relacionais suficientes para tal intento.10

Como já foi dito, dos 20 maiores escravistas pelotenses inventariados entre 1800 e

1835 pelo menos 15 eram proprietários de charqueada. Estes 15 charqueadores, apesar de

comporem somente 8% dos inventariados, concentravam 41% dos escravos e apresentaram

um plantel médio de 69 cativos. Dentre os mesmos, José da Costa Santos foi o maior

proprietário com 172 escravos e José Pinto Martins o menor com 35.Além disso, as fortunas

de alguns ultrapassavam os 50 contos de réis, que, no período, era uma faixa de riqueza

considerável e comparável à boa parte dos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro – a

elite econômica do Brasil no período (VARGAS, 2013).

O fato de muitos deles serem originários de outras regiões e de atuarem como

comerciantes os colocava no interior de uma ampla rede de relações sociais e mercantis com

importante significado naquele contexto local. Portanto, apesar de compartilharem dos valores

escravistas, monárquicos e católicos do Império português, estes primeiros charqueadores

traziam conhecimentos, padrões culturais e experiências distintas para o interior da

comunidade pelotense. Um exemplo disso pode ser dado na trajetória do charqueador José

Pinto Martins. Natural do Porto, José era filho de um cavador de poços pertencente a uma

10 Helen Osório percebeu que boa parte dos agentes que compunham as primeiras gerações de comerciantes no

Rio Grande eram formadas por mercadores oriundos do Rio Janeiro (OSÓRIO, 2007).

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família de lavradores da freguesia de Mexomil, no Porto. Migrou para o Ceará, onde, na

companhia de outros 3 irmãos, encabeçou os negócios de charque e comércio em Aracati por

muitos anos (VIEIRA JR, 2009).11

Nos fins da década de 1780, Pinto Martins encontrava-se

como negociante em Recife, e menos de 10 anos depois, já estava em Pelotas, fabricando

charque. Mesmo residindo no sul do Brasil por mais de 30 anos, suas redes de relações

pessoais com o nordeste mantiveram-se vivas. Em seu testamento, Pinto Martins deixou

200$000 para a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Pernambuco, da qual ele

fazia parte, pedindo para que fossem rezadas “missas pelas almas dos falecidos irmãos

terceiros da dita ordem”. Isto demonstra que, além das conexões mercantis com Recife, Pinto

Martins continuou mantendo relações de caráter pessoal e afetivo na mesma cidade, para onde

havia recentemente remetido um brigue carregado de charque, conforme uma conta no seu

próprio inventário.12

Outro caso pode ser dado na trajetória de Domingos José de Almeida. Nascido em

Diamantina, na capitania das Minas Gerais, Domingos encontrava-se realizando negócios na

Corte, quando partiu para o Rio Grande onde planejara comprar uma tropa de mulas.

Chegando no sul, acabou ficando por aquelas terras.13

Por meio do matrimônio inseriu-se

numa das famílias de charqueadores mais poderosas de Pelotas, ondeele próprio erigiu uma

charqueada próxima à fábrica do seu sogro. De acordo com Carla Menegat, quando

Domingos foi vereador na Câmara de Pelotas, usava exemplos da administração municipal

em Minas Gerais para defender suas propostas (MENEGAT, 2010). Outro caso pode ser dado

na trajetória do espanhol Domingos Rodrigues que, uma vez estabelecido em Pelotas, ergueu

sua charqueada e alcançou riqueza e prestígio notáveis. Seus dois filhos, nascidos no Rio

Grande do Sul, dividiram-se entre os negócios no Uruguai e no Rio de Janeiro (VARGAS,

2013).

Pelo fato do Rio ser o principal porto da América portuguesa, os olhares e projetos

destes comerciantes e charqueadores rio-grandenses estavam sempre atentos aos seus fluxos

mercantis (OSÓRIO, 2007; BERUTE, 2011). Com a vinda da família real, em 1808, e o

estabelecimento da Corte na mesma cidade, esta proeminência tomou proporções políticas e

11 Habilitação de Familiares, maço. 157, doc. 1267. Direção Geral de Arquivos. Torre do Tombo (Lisboa). 12 Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, Rio Grande, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1832

(APERS). 13 Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão, Pelotas, 07.12.1859. Anais

do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, p. 154.

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administrativas ainda maiores. Os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro atuavam em

setores-chave da economia colonial, como a exportação de açúcar e café, o abastecimento de

alimentos e o tráfico atlântico, entre outros. Como o Rio Grande do Sul não participava

diretamente do comércio com os portos da África e, até 1808, nem com outros portos do

Atlântico norte, os charqueadores tiveram que estabelecer relações mercantis com agentes

externos ao porto sulino. Neste sentido, a formação de circuitos mercantis eivados de relações

sociais, de clientelas e redes de reciprocidade entre agentes de diferentes regiões foi comum

na época e tornou-se fundamental para o funcionamento do mercado colonial e o

desenvolvimento das próprias elites coloniais no interior do Império português (FRAGOSO;

FLORENTINO, 2001).

Pode-se dizer que ao se estabelecerem na extremadura da América portuguesa, os

comerciantes e charqueadores buscavam reproduzir o mesmo comportamento das suas regiões

de origem, além de investir o capital mercantil na produção, mas sem deixar de desprender-se

das práticas e conexões mercantis externas. No entanto, nem todos os charqueadores eram

comerciantes e somente uma minoria conseguia atuar em ambos os ramos de atividades com

sucesso. Uma análise mais profunda das atividades econômicas realizadas pelos

charqueadores desta primeira geração revela uma significativa presença de alguns deles no

alto comércio. Pesquisando os inventários post-mortem dos 62 charqueadores atuantes na

época, elenquei somente aqueles que tiveram seus bens avaliados antes de 1850, totalizando

28 documentos. Destes 28, pelo menos 7 possuíam embarcações de longo curso, como

sumacas, bergantins e brigues (alguns em sociedade com outros comerciantes) (VARGAS,

2013).

Contudo, os inventários post-mortem não são suficientes para dar conta deste tipo de

pesquisa, pois, muitas vezes, os charqueadores faleciam numa idade mais avançada de suas

vidas, quando já haviam abandonado as atividades mercantis, buscando uma condição

econômica mais segura – algo comum entre os comerciantes da época (FRAGOSO, 1998).

Portanto, é necessário buscar mais vestígios da sua atuação mercantil em outras fontes. Nas

escrituras públicas de compra e venda realizadas em Rio Grande entre 1808 e 1845, por

exemplo, 7 charqueadores aparecem negociando embarcações marítimas (alguns mais de uma

vez e 5 deles não são os mesmos que localizei nos inventários), indicando que atuavam no

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comércio marítimo.14

Cruzando os nomes dos charqueadores com o rol de comerciantes da

capitania, organizado por Manoel Magalhães do seu Almanackda Vila de Porto Alegre de

1808, percebe-se que 16 deles estavam presentes na listagem (MAGALHÃES, 1980).

Rastreando os nomes de todos os charqueadores nos livros de matrículas da Real Junta de

Comércio da Corte, entre 1808 e 1835, também foi possível verificar a presença de 10 deles

entre os matriculados como “negociantes de grosso trato” nas praças mercantis do Rio Grande

do Sul.15

Cruzando todas estas listagens (os inventariados com embarcações, os que

negociaram-nas a partir das escrituras, os listados no Almanack e os matriculados na Corte), é

possível considerar que, dos 62 charqueadores desta primeira geração, um grupo entorno de

21 charqueadores (33,8%), pode ser analisado de uma forma distinta dos demais no que se

refere as suas atividades mercantis, pois tiveram uma relação mais próxima com o comércio

marítimo de longo curso, seja atuando diretamente nestas atividades por meio de suas

embarcações, seja atuando na exportação e importação consignada a partir dos armazéns do

porto de Rio Grande. O fato de atuarem no comércio está por trás da sua posição superior na

hierarquia social, uma vez que era o capital mercantil que viabilizava a montagem do

complexo charqueador. Além do mais, ao carregarem a carne-seca dos charqueadores menos

ricos e intermediarem a importação de escravos, mercadorias diversas e sal, eles

potencializavam ainda mais a sua capacidade de obter lucros através do comércio(VARGAS,

2013).16

Tal atividade comercial foi fundamental para definir posições no interior desta

hierarquia social local.Conforme Berute (2011), que pesquisou profundamente o corpo

mercantil rio-grandense na primeira metade do oitocentos, os negociantes de grosso trato da

capitania atuavam em diferentes setores do alto comércio. Analisando as listagens elaboradas

pelo autor, também localizei alguns charqueadores pelotenses entre os membros daquela elite

mercantil, atuando principalmente na importação de sal e de escravos e na exportação de

gêneros como o charque e os couros. Com exceção de alguns poucos, a grande maioria dos

14 Livros de notas do 2º Tabelionato de Rio Grande (1808 a 1850) - APERS. Agradeço a Gabriel Berute tanto

pela busca nominal em seu Banco de Dados quanto pelo fornecimento destas informações. 15Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio,

Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3). Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. 16 O índice de 33,8% está ligeiramente acima do que identifiquei em minha Tese de Doutorado, pois, para o

presente artigo, incorporei os dados do Almanack de 1808. Este aumento reforça ainda mais o meu argumento no

que diz respeito ao notável vínculo dos charqueadores pelotenses com as atividades mercantis marítimas, o que

se refletia noconsiderável patrimônio dos mesmos (VARGAS, 2013, capítulo 3).

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charqueadores, caso o quisesse, não possuía cabedais para atuar no tráfico atlântico

diretamente com a África. Portanto, o papel dos rio-grandenses estava reservado à

consignação e revenda dos cativos a partir do porto de Rio Grande.

Examinando os dados fornecidos por Berute foi possível perceber que pelo menos 24

dos 62 charqueadores envolveram-se nesta rede mercantil registrando escravos nos livros de

siza como compradores e vendedores. No total, estes indivíduos registraram 286 cativos entre

1812 e 1822.17

Um exemplo desde comércio de consignação pode ser dado no caso do

charqueador Miguel da Cunha Pereira. Conforme Berute (2011, p. 91-92), em janeiro de

1815, ele foi consignatário de duas embarcações vindas do Rio de Janeiro. O bergantim Águia

Volante lhe trouxe 26 escravos, 6.000 tijolos de barro e 2.000 telhas e a sumaca Boa Fé, 10

escravos e 18.000 tijolos de barro. No mês seguinte, o charqueador José da Costa Santos foi

consignatário da carga da sumaca Estrela, vinda do Rio com 81 escravos, 30 sacas com arroz,

48 sacos de açúcar, 600 alqueires de sal, entre outras mercadorias. Estas duas transações de

cativos não foram registrados nos livros de siza, o que indica que a participação dos

charqueadores como intermediários nesse comércio era muito maior, visto o reduzido período

abarcado pelos mencionados livros e os sub-registros desta fonte.

Além disso, segundo Berute (2011), Miguel da Cunha Pereira também negociou

escravos com o interior da capitania, entre os anos de 1813 e 1819. Portanto, é provável que

fizesse parte de uma rede de atravessadores constituída desde a chegada dos escravos nos

portos do Rio, Recife e Salvador até a sua negociação em Pelotas e nos municípios do interior

e que os charqueadores envolvidos com o comércio marítimo de mercadorias estivessem

inseridos no interior destas mesmas cadeias de relações.18

Além disso, apesar de a maioria ter

recebido cativos por meio de consignações, alguns charqueadores parecem ter trazido

escravos nas viagens de retorno dos seus próprios navios, quando do desembarque de charque

nos portos do Rio, Bahia e Pernambuco. Em 1839, Domingos José de Almeida, por exemplo,

teve o seu Brigue Leal apreendido “por ser encontrado com pretos africanos a bordo para o

comércio de escravos” (MONQUELAT, 2009, p. 52).

17 Códice da Fazenda (F-69). Sizas de Escravos. Rio Grande: 1812-1822 (AHRS). Agradeço novamente a Berute

pela busca e transcrição referentes a este Códice. Dos 24 charqueadores, 11 foram registrados como vendedores.

No entanto, conforme Berute, não fica claro se os compradores vieram a ser os proprietários dos cativos ou se os

revenderiam. A hipótese da revenda é bastante plausível, sobretudo nos casos onde se comprava uma grande leva

de escravos, como a realizada pelo charqueador José da Costa Santos que, em 26 de novembro de 1819, registrou

138 cativos no livro de sizas. 18 Sobre o tráfico atlântico e os traficantes ver FLORENTINO(1997), RODRIGUES (2005), GOMES;

CARVALHO (2010), FERREIRA (2001, p. 341-378), ALENCASTRO (2000), BERUTE (2006).

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Entre os importadores de sal, além do mencionado José da Costa Santos, foram

localizados na listagem de Berute (2011), Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco

dos Anjos e João Simões Lopes.19

Certamente o número devia ser maior, embora não devesse

envolver muitos outros charqueadores além do pequeno grupo citado até aqui. Estes mesmos

comerciantes também deviam estar envolvidos com as exportações de charque, visto que era

comum os mesmos navios que descarregavam sal retornarem com os produtos das

charqueadas (SILVEIRA, 2006).20

Estas conexões mercantis também podem ser medidas a

partir na análise das procurações passadas em Rio Grande. Pesquisando tais documentos,

entre 1811 e 1850, Berute verificou que, em Rio Grande, foram passadas 7.745 procurações

pra 2.181 pessoas diferentes. Separando somente os outorgantes que eram comerciantes

(1.519 procurações ou 17,8% do grupo) ele constatou que o Rio de Janeiro concentrava

21,2% das mesmas, enquanto Santa Catarina, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão

somavam 20,6% delas. Portugal foi o destino de 5,5% das procurações e o Uruguai 0,8%

delas. Um dos 10 agentes acionados em Portugal pelo comerciante Mateus da Cunha Telles

foi Manuel Souza Freire & Cia, “um dos mais importantes negociantes e contratadores de

Lisboa”.21

Poucos charqueadores devem ter se aventurado em viagens mais longas. Talvez o

Comendador Antônio José de Oliveira Castro tenha sido o que maior sucesso obteve nestas

empreitadas. Matriculado como negociante de grosso trato na Corte desde 1816, ele foi o

único charqueador que esteve presente em todas as listagens organizadas por Berute (2011).

Em 1848, por ocasião da morte de sua esposa, o advogado de Castro justificou a demora da

avaliação dos bens do casal: “como é notório, tem a casa do suplicante muitas e diversas

transações, cuja liquidação depende de notícias e informações de vários pontos não só do

Império, mas ainda da Europa, para onde dirige seus navios”. Tendo em vista o volume de

negócios que praticava, não causa surpresa que a avaliação dos seus bens, em 1848,

19 A listagem dos importadores de sal realizada pelo autor teve como base registros entre 1804 e 1815 e de 1834

a 1851. 20 Os dados de exportação de charque e couro elencados por Berute são posteriores a 1830. Neles aparecem

alguns charqueadores, mas os mesmos fogem do período de análise deste artigo. 21 Souza Freire “mantinha comércio regular com o Brasil. Sua firma era autora de diversos processos de

cobranças de dívidas apresentadas ao Juízo da Índia e Mina, em Lisboa. Em geral, tinham origem em fretes e

mercadorias (entre outras, açúcar, algodão, trigo, couros, tabaco, cacau e aguardente), transportadas por ele de

praças como Maranhão, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Participava igualmente do tráfico negreiro „entre

Angola e mais portos permitidos na Costa da África com qualquer porto do Brasil‟, conforme declarou, em 1821.

Neste sentido, chama atenção suas transações envolvendo tabaco e aguardente, mercadorias largamente

utilizadas na aquisição de escravos” (BERUTE, 2011, p. 242-243).

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apresentava o maior patrimônio e plantel de escravos de Pelotas na primeira metade do

oitocentos – prova de que o capital mercantil estruturava e organizava o capital produtivo, ou

seja, as bases do complexo charqueador escravista pelotense.22

O comerciante Mateus da Cunha Teles e o charqueador Antônio José de Oliveira

Castro, respectivamente com 45 e 28 procurações passadas, estavam entre os 10 maiores

outorgantes registrados nos livros de notas de Rio Grande analisados por Berute (2011, p.

239). Os maiores procuradores de Cunha Telles no Rio eram os irmãos João José da Cunha e

Francisco José da Cunha. Este último, que também era Cavaleiro da Ordem de Cristo, era

cunhado de Cunha Telles e por aí já é possível perceber que no interior destas redes mercantis

os laços de parentesco eram notórios. Como diversos autores demonstraram, tais vínculos

parentais funcionavam como facilitadores e colocavam importantes famílias no centro de

circuítos comerciais de longa distância.23

Neste sentido,Berute (2006, p. 143) verificou a

presença de rio-grandenses que, matriculados como negociantes de grosso trato no Rio,

remetiam escravos para o Rio Grande do Sul. Um destes agentes foi o capitão Antônio Soares

de Paiva, que também teve uma charqueada, mas destacou-se por ser “negociante de grosso

trato no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e contratador dos dízimos das carnes e couros

do Rio Grande durante vários anos”. Enviando seus navios para o Rio e o nordeste, o capitão

também teve sociedade na arrematação de contratos com importantes comerciantes cariocas

(CARVALHO, 1937, p. 128; OSÓRIO, 2007, p. 323).

Portanto, as margens do Atlântico foram um cenário de intensos fluxos não apenas de

mercadorias, como também de mercadores. Tais movimentos não se davam apenas na direção

do extremo sul, mas, também, no seu sentido oposto. Com relação a isto, Afonso Graça Filho

observou que durante as décadas de 1830 e 1840, o alto comércio de abastecimento na Corte

teve seus principais agentes substituídos por um novo grupo de comerciantes. Segundo o

autor, alguns eram rio-grandenses que migraram para o Rio atraídos por este rentável

comércio, como Militão Máximo de Souza, J. J. Cunha Teles e outros. Como notou Graça

Filho, Jean Batiste Debret teria percebido o início deste processo quando escreveu sobre quem

eram estes novos comerciantes de carne seca na Corte: “todos parentes de correspondentes

dos charqueadores, recebem diretamente sua mercadoria nas embarcações que aportam no Rio

22 Inventário de Francisca Alexandrina de Castro, n. 293, m. 21, 1848, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria

(APERS). 23Ver, por exemplo, RODRÍGUEZ (2005, p. 185-230), KICZA (1986), SOCOLOW (1991), SAMPAIO (2007,

p. 225-264), PEDREIRA (1995), OSÓRIO (2007), FRAGOSO; FLORENTINO (2001).

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de Janeiro, pretexto de que abusam às vezes para aumentar o preço desse gênero quando

ocorrem atrasos nas entregas” (GRAÇA FILHO, 1992, p. 91, 129). O próprio Irineu

Evangelista de Souza, posteriormente Visconde de Mauá, foi um dos jovens rio-grandenses

que migraram para a Corte neste período, estabelecendo-se como caixeiro de João Pereira de

Almeida – um dos maiores comerciantes de grosso trato do Rio.24

Portanto, tais migrações não representavam uma ruptura com os seus locais de origem.

Comerciantes rio-grandenses que migravam para o Rio ou o nordeste não se desconectavam

de suas redes de relações anteriores e os “forasteiros” que se instalavam em Pelotas pareciam

fazer o mesmo.25

O pertencimento às redes mercantis nas quais os comerciantes de grosso

trato cariocas estavam inseridos trazia benefícios diversos aos charqueadores, pois, quando

bem manejadas, elas potencializavam a sua posição de elite nas hierarquias sociais locais.

Neste sentido, proponho que as margens do Atlântico sul, sobretudo nas suas cidades

portuárias, sejam vistas também como um espaço de interação social entre negociantes

imperiais, repletas de redes mercantis com conexões as mais diversas, compostas por parentes

e parceiros comerciais26

, e não somente como um espaço de competição entre negociantes de

diferentes praças, onde o papel das mais ricas era apenas subordinar as menos ricas aos

desígnios do acúmulo do capital.

Um exemplo disto pode ser dado na trajetória de Antônio Francisco dos Anjos.

Natural da Colônia de Sacramento, ele deve ter migrado para o Rio Grande após a expulsão

dos portugueses daquela localidade, em 1777. Nos anos 1790, instalado em Pelotas, já é

possível encontrá-lo, juntamente com outros proprietários, realizando requerimentos à Coroa.

Com o tempo, o charqueador tornou-se capitão-mor da localidade. Em 1808, necessitando de

um atestado para ter um requerimento aprovado pela Corte do Rio de Janeiro, Anjos recebeu

o auxílio de um grupo de senhores de grande respeito no Império português:

24 Sobre Mauá e o próprio Militão Máximo de Souza ver GUIMARÃES (1997). 25 Em 1827, o charqueador José da Costa Santos, natural da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro, legou em testamento bens para parentes residentes no Rio, mencionando que perdoava a dívida do seu irmão

Serafim para com ele (Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes,

1827 (APERS)). 26 Neste sentido, conforme Fragoso, “era extremamente difícil para uma casa comercial setecentista manter uma

rede de comércio que envolvesse distantes regiões e diferentes produtos – como era o caso do tráfico atlântico de

escravos – sem o recurso, as relações de reciprocidade que podia, inclusive, chegar a casamentos entre famílias

de sócios. As famílias Velho, Carneiro Leão e Pereira de Almeida – residentes no Rio de Janeiro, majoritárias no

comércio de africanos e nas exportações para Portugal, em princípios do oitocentos – mantinham irmãos, primos

e/ou genros em Lisboa e em outras cidades do além-mar.Ao mesmo tempo, o império aparece como espaço de

circulação de famílias empresariais, a exemplo da experiência dos Loureiro, portugueses com estadias e negócios

no Brasil e na Índia” (FRAGOSO, 2002, p. 113-114).

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Nós abaixo assinados, comerciantes desta Praça atestamos, e o

juraremos se necessário for, em como o Capitão Antônio Francisco

dos Anjos morador no Rio Grande é um dos principais negociantes

daquela Vila, aonde faz umas grandes charqueadas, e faz navegar um

grande número de couros e carnes, não só para esta capital, mas

também para a Bahia e Pernambuco. Rio de Janeiro. [rasurado] de

novembro de 1808. [Assinado] João Gomes Barroso, Amaro Velho da

Silva, Elias Antônio Lopes, Manoel Velho da Silva, Amaro Velho da

Silva Sobrinho, Fernando Carneiro Leão, Antônio Gomes Barroso,

Joaquim Antônio Martins.27

Os sobrenomes Carneiro Leão, Gomes Barroso e Velho da Silva eram conhecidos e

respeitados por qualquer comerciante marítimo do Atlântico sul. Tratavam-se de homens

envolvidos no tráfico negreiro e na exportação de açúcar e que estavam inseridos em redes

mercantis de longo alcance (FRAGOSO; FLORENTINO, 2001). Portanto, o capitão-mor

Antônio Francisco dos Anjos era reconhecido como membro da elite local tanto pelos seus

pares como pelos grandes comerciantes do Rio. Ser reconhecido e tratado como o “cacique”

de sua aldeia (ou um dos líderes da mesma) era fundamental para o homem que quisesse

ocupar o topo da elite de um lugar e manter tal posição.28

Contudo, como em qualquer elite local e regional, Antônio Francisco não estava

sozinho e plenamente acomodado com relação a sua posição. Em 1815, o visitador D. José da

Silva Coutinho considerou que os homens mais ricos da pequena freguesia eram Domingos de

Castro Antiqueira, Domingos Rodrigues, Antônio Francisco dos Anjos, José Tomas da Silva,

Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José Gonçalves Chaves, Joaquim José

da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos e Agostinho Nunes (MENEGAT,

2009, p. 64). Com exceção do último, os demais eram todos charqueadores. Além disso,

Domingos Rodrigues, Domingos Antiqueira e José R. Barcellos estavam entre os cinco mais

ricos charqueadores com fortuna inventariada na primeira metade do XIX, o que confere

credibilidade ao relato do Bispo (VARGAS, 2013). Todos estes charqueadores atuavam no

comércio marítimo e tinham condições de disputar influência e o poder local com Antônio

Francisco dos Anjos. Mas o fato dele ser Capitão-mor da localidade revela uma importante

27 Seção de Manuscritos. Documentos Biográfios (Antônio Francisco dos Anjos) – Biblioteca Nacional do Rio

de Janeiro. 28 Às vezes estas relações mercantis podiam transformar-se em relações de amizade ou até de compadrio, como

no caso de Manuel Fernandes Vieira, importante comerciante e estancieiro rio-grandense que tornou-se

compadre de Anacleto Elias da Fonseca, um dos mais importante comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro

(HAMEISTER, 2006, p. 165-166).

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distinção social que ajuda a definir melhor esta elite entre os charqueadores da primeira

geração.

Prestígio e poder nas mãos da “grande família”

O reconhecimento da autonomia política e do papel das elites locais no governo de

seus povos constituía-se num traço estrutural do Império português.29

E desta dinâmica surgiu

uma prática de distribuição de mercês régias, comendas honoríficas e distinções que

denotavam a posição social dos seus portadores – ainda vigentes no início do oitocentos.30

Dos 62 charqueadores, por exemplo, pelo menos 12 receberam a patente de capitão, 2 a de

tenente e 1 a de coronel31

– dentre os quais estavam muitos dos mais atuantes no comércio

marítimo – e outros 6 possuíam comendas honoríficas.Capitães e comendadores geralmente

eram homens de prestígio social e poder de mando e, por este motivo, exerciam uma notável

influência na comunidade local. Uma vez que a participação nos mercados regionais e as

concessões de crédito eram atividades eivadas por relações pessoais, é possível imaginar,

como demonstrou Tiago Gil (2009), o grau de influência que estes charqueadores-capitães

exerciam em tais operações. Estudando o comércio de tropas entre Viamão, Curitiba e

Sorocaba, o autor considerou:

“Em primeiro lugar, deve-se ter em conta a importância dos

oficiais, especialmente os capitães, na economia local, como agentes

econômicos diretos, comandando negócios, criações de animais,

lavouras, lavras de minérios, dentre outras atividades que constituíam

a base da economia regional. É certo que era uma economia

relativamente pobre, secomparada, por exemplo, com os negócios

desenvolvidos na Praça do Rio de Janeiro na mesma época. Mas

eramestes capitães locais, à exemplo dos capitães e coronéis Carneiro

Leão e Gomes Barroso, que comandavam a dinâmica econômica. No

caso da rota das tropas, os capitães eram os senhores daquela pobre

economia, como os do Rio de Janeiro eram de grossa aventura” (GIL,

2009, p. 227).

Neste sentido, seria um equívoco analítico buscar definir a primeira elite charqueadora

somente através dos critérios mercantis mencionados anteriormente. Por este motivo, decidi

incorporar no grupo de elite aqui estudado aqueles charqueadores que foram identificados em

29 Como demonstraram BOXER (2002);FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA (2001); MONTEIRO (2005). 30São muitas as pesquisas que evidenciam estas práticas na América portuguesa. Ver, por exemplo, GOMES

(2010); STUMPF (2009). 31 Sobre a organização das milícias e tropas militares no Império português ver GOMES (2010).

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algum documento com uma comenda honorífica ou patente de oficial de milícias. Portanto,

somando todos os charqueadores que atuavam no comércio marítimo de longo curso (21) com

os que possuíam patentes de oficial(15) e comendas honoríficas(6) tem-se 27 charqueadores

(muitos acumulavam o grosso comércio com a comenda ou a patente). Se havia uma elite na

primeira geração de charqueadores ela era formada por estes proprietários que compunham

43,5% do grupo. Certamente, entre estes últimos, alguns eram mais influentes do que outros,

pois concentravam mais riqueza, poder e prestígio social. Eram homens como Antônio

Francisco dos Anjos, Antônio José Gonçalves Chaves, José da Costa Santos, Domingos

Rodrigues, Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José de Oliveira Castro, os irmãos

Cipriano e Boaventura Rodrigues Barcellos, entre outros. Eles estavam entre os maiores

escravistas do grupo e os mais ricos não apenas de Pelotas, como da província inteira,

eatuavam no comércio marítimo e na intermediação de compra e venda de escravos, entre

outras mercadorias.

No entanto, quando se deixa de examinar somente os indivíduos e se busca verificar os

graus de parentesco entre os charqueadores aqui analisados é possível verificar que a elite

dentro da elite estava fortemente aparentada, formando um núcleo que além dos vínculos

sociais com comerciantes de fora da província também possuía laços de parentesco com os

próprios charqueadores.32

Dos 27 charqueadores que ocupavam o topo da hierarquia no

interior do grupo, somente 7 deles não possuíamvínculos de parentesco (consanguíneo,

compadrio ou matrimonial (com familiares)) com os demais membros desta elite. Ou seja,

quase 75% do grupo era parente de outro membro do próprio grupo. Em contrapartida,

aqueles outros 35 charqueadores que não pertenciam ao seleto grupo de capitães,

comendadores e negociantes de grosso trato, estava mais “desconectado” (sem vínculos

parentais) com os demais charqueadores. Pelo menos 22 destes 35 charqueadores não

apresentaram conexão parental com o grupo de elite (os 27 charqueadores). Mas 17 deles não

tinham laços parentais nem mesmo com os demais charqueadores que estavam fora do grupo

de elite. Portanto, os charqueadores que não compunham a elite aqui estudada estavam mais

isolados em termos de parentesco se comparados com aqueles 27 charqueadores que

ocupavam o topo da hierarquia social. Neste sentido, a concentração de recursos materiais e

32 Para esta análise foram utilizados os registros paroquias de casamento e batismo de Pelotas entre 1812-1825

(Arquivo do Bispado de Pelotas), inventários post-mortem e tesamentos de charqueadores, além de diversas

genealogias dos mesmos. Para maiores detalhes ver VARGAS (2013).

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imateriais era acompanhada por uma concentração de vínculos parentais, forjando uma

espécie de grande família que ocupava o estrato superior do grupo (VARGAS, 2013).

É possível verificar a importância de tais vínculos oferecendo exemplos deste

comportamento social. O prestígio social e a riqueza do capitão Antônio Soares de Paiva, por

exemplo, possibilitaram bons casamentos aos seus filhos. Um deles contraiu matrimônio com

uma filha do charqueador Domingos de Castro Antiqueira. Apesar da esposa de Antiqueira ter

falecido em 1829, o inventário dos bens do casal foi aberto somente em 1840. Segundo o seu

advogado: “não pode o suplicante proceder prontamente nos termos do respectivo inventário,

em razão de estar embaraçado com a liquidação de grandes contas que tinha em diferentes

praças do Império, de cujo resultado dependia a fatura do mesmo inventário”.33

Estes

negócios devem ter sido importantes e certamente estavam na base da fortuna deste

charqueador.Em 1852, em seu testamento, Antiqueira, que agora já assinava como Visconde

de Jaguari, mandou rezar mil missas no Rio de Janeiro “por atenção daquelas pessoas com

quem tratei negócios”.34

As procurações que ele passou em 1832, deixam claro quem eram

alguns dos seus parceiros comerciais no interior da província, no Rio e em Pernambuco. No

entanto, um dos mais importantes estava na Bahia.35

Natural do Rio Grande, Antônio Pedroso

de Albuquerque estabeleceu-se definitivamente em Salvador por conta da Revolta dos

Farrapos. Conforme Pierre Verger (1981, p. 45), Albuquerque foi um dos comerciantes mais

ricos da Bahia. Atuou no tráfico atlântico no nordeste e no Rio de Janeiro (FLORENTINO,

2010, p. 203), tendo sido proprietário de 20 navios. Carregava charque para o nordeste e não

causa surpresa que tenha continuado mantendo relações mercantis com sua terra natal, onde

sua família possuía importante prestígio em Rio Pardo.36

Outro exemplo pode ser dado a partir do casamento do filho do Capitão-mor Antônio

Francisco dos Anjos e da rede parental estabelecida a partir de então.Antônio Rafael casou-se

com a filha do capitão João Francisco Vieira Braga, o pai. O filho homônimo de Vieira Braga,

que também foi charqueador durante um período curto de tempo e veio a tornar-se o Conde de

Piratini, casou-se com a filha do capitão Domingos Rodrigues – o charqueador mais rico do

33 Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS). 34 Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS). 35 Procurações, 1º Tabelionato de Pelotas, Fundo 48, Livro 1, 19v (APERS). 36Sobre a sua família em Rio Pardo ver LAYTANO (1979).Um dos seus irmãos, Manoel Pedroso de

Albuquerque, era procurador de Antiqueira em Rio Pardo, para onde o charqueador devia remeter escravos e

mercadorias diversas.

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período colonial.37

Assim como os charqueadores Antiqueira, Vieira Braga, Antônio

Francisco dos Anjos e outros, o capitão Domingos Rodrigues também mantinha negócios

diretamente com outros portos do Brasil. Quando faleceu, em 1819, os inventariantes

esperavam uma embarcação sua retornar de Recife. Nesta ocasião, sua viúva remeteu

procurações para Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, a fim de resolver os trâmites de seu

inventário. Destaque para os procuradores no Rio que eram João Rodrigues Ribas e o tenente

Miguel Ferreira Gomes.38

O primeiro era o seu próprio filho primogênito que estava atuando

como negociante no Rio, onde investiu no comércio negreiro, conforme a listagem de

traficantes organizada por Florentino (2010, p. 256). O segundo dispensa comentários.

Comerciante de grosso trato no Rio, Ferreira Gomes concentrou grande parte dos

carregamentos de charque remetidos para o Rio de Janeiro no período (FRAGOSO;

FLORENTINO, 2001, p. 200).

A presença das relações familiares entre estes empresários algumas vezes tomava

formas mais encorpadas. Os irmãos Rodrigues Barcellos, por exemplo, formavam uma

verdadeira empresa familiar. Boaventura, Bernardino, Inácio, José e Cipriano, cada um deles,

possuía a sua charqueada, acumulando um grande número de escravos e propriedades em

Pelotas. Com o tempo foram agregando, como genros ou compadres, outros comerciantes

vindos “de fora” que acabaram se tornando charqueadores, como Domingos José de Almeida

e Antônio José Gonçalves Chaves, por exemplo. Uma outra família com notável influência

em Pelotas era os Silveira, primeiros habitantes da localidade e proprietários das sesmarias na

qual o município foi erigido. Tendo se constituído na elite da capitania na segunda metade do

século XVIII (HAMEISTER, 2006), as suas herdeiras na segunda e terceira geração

contraíram matrimônio com importantes comerciantes que vieram a se tornar charqueadores,

como Joaquim José de Assumpção, João Simões Lopes, Antônio José de Oliveira Castro, José

Antônio Moreira e Baltazar Gomes Vianna, por exemplo. Em suas terras, o português José

Pinto Martins veio a se arranchar, tendo erguido a sua charqueada – uma das primeiras da

localidade (VARGAS, 2013).

Tornar-se um membro destas famílias de prestígio podia oferecer diferentes vantagens

aos iniciantes. Num mercado repleto de relações pessoais, podia-se conseguir sal,

37 O filho de um charqueador deixou escrito sobre Pelotas no final do setecentos: “Em toda a região, apenas se

destacava da uniforme chateza o sobrado de Domingos Rodrigues, velha construção de 1784, contemporânea dos

primórdios do distrito” (ARRIADA, 1995, p. 94). 38 Inventário de Domingues Rodrigues, n. 32, m. 2, Pelotas, cartório de Órfãos e Provedoria, 1818 (APERS).

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mantimentos e escravos por preços mais acessíveis, um acesso mais qualificado ao porto de

Rio Grande, fretes baratos, crédito na praça, além de proteção política em conjunturas

adversas ou apoio em litígios agrários, entre outros. Ultrapassando o espaço familiar, ao

pertencer às redes mercantis nas quais os ricos charqueadores ocupavam um espaço notável,

também era possível obter um melhor acesso a informações referentes aos mercados dos

couros, charque, sebo e sal.Portanto, pertencer à família de um rico charqueador ou

estabelecer algum vínculo parental com o mesmo podia trazer enormes ganhos para um jovem

investidor. Em contrapartida, era interessante aos charqueadores da elite restringir o mercado

matrimonial de suas filhas aos comerciantes que agregassem tais fatores à empresa familiar.

Isto explica a apreciável endogamia que mencionei anteriormente e que caracterizava o

diminuto grupo que ocupava o topo desta hierarquia socioeconômica. Quando duas famílias

ricas e de prestígio acabavam unindo seus filhos e filhas por casamento ou batizando os filhos

dos outros, estes ganhos podiam ser potencializados, favorecendo, assim, a reprodução social

da desigualdade na distribuição de recursos materiais e imateriais que caracterizava aquele

universo.

Considerações finais

Portanto, este pequeno grupo de charqueadores, capitães e comendadores, além de

atuar no comércio marítimo, apresentava um importante grau de parentesco entre si e estava

muito bem relacionado com grandes comerciantes de outros portos brasileiros. O historiador

interessado em definir melhor os diferentes estratos e cadeias de interação social entre o

espaço econômico agrário centrado em comunidades locais e os espaços de poder e comércio

mais centrais não pode tratar de forma homogênea as elites de um município, de uma

capitania ou de uma província. Este pequeno grupo de charqueadores que atuava no comércio

marítimo não possuía seu olhar voltado exclusivamente para o âmbito local. Por

estabelecerem conexões com a sociedade exterior e serem reconhecidos como a elite da

localidade tanto por comerciantes quanto por autoridades administrativas externas a sua

aldeia, eles se legitimavam enquanto elite local e regional e, em termos analíticos, não podem

ser tratados como os demais membros de sua comunidade. Desnecessário dizer que a inserção

dos charqueadores mais ricos e prestigiosos nestas redes mercantis os favoreciam econômica

e politicamente e isto ajudava a reproduzir a sua posição de elite na localidade, assim como a

de seus familiares. Portanto, Pelotas, desde os seus primórdios, já apresentava uma riqueza,

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