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nº 7

Transcript of Revista Leandro Karnal

  • Prepare a pipoca! J vai comear a

    sesso de gestos bondosos no cinema

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    | sumrio |

    Camila Morgado d a dica: curtindo

    a dor de cotovelo que se pode cur-la

    58Neste m de ano, que tal um bate-volta

    para a Califrnia com Marina Person?

    J chegou o Natal! No faz mal, no

    faz mal, o Drops no est nada mal!

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    Da azeitona ao banquete completo,

    h muito mais na mesa a compartilhar

    48Entre metforas e guras, a literatura

    infantil d um banho de ensinamentos

    Uma conversa com Leandro Karnal

    muito alm de qualquer utopia

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    NOSSA CAPAFido Nesti

    44

    Os estudiosos conrmam: quando se trata

    de generosidade, dando que se recebe

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  • A FRICA DE FORTIERNo m do sculo 19, o fotgrafo francs Edmond Fortier (1862-1928), morando no Senegal, vivia da produo de retratos que tivessem apelo comercial e que pudessem ser transformados no que se tornava moda absoluta do perodo: os cartes-postais ilustrados. Fortier aproveitava que os navios que rumavam para a Amrica do Sul faziam escala na capital senegalesa, Dakar, para vender os cartes aos turistas em sua pequena loja. Mas o fotgrafo no cou restrito cidade que habitava e circulou mais de 5 mil quilmetros pelo interior do continente africa-no, produzindo cerca de 4 mil imagens, que constituem um patrimnio histrico e cultural da regio. Embora no to conhecido como deve-ria, Fortier alvo h muitos anos dos estudos da historiadora brasileira Daniela Moreau, cuja pesquisa sobre o trabalho do artista francs d origem exposio Edmond Fortier Viagem a Timbuktu, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em So Paulo, at 25 de janeiro, e a um livro homnimo. (Gustavo Ranieri)

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    IMORTAL

    No dia de Natal, estreia nos cinemas brasileiros o

    documentrio Eu sou Ingrid Bergman, em que o diretor Stig

    Bjorkman oferece uma viso intimista de sua conterrnea, considerada uma das maiores

    atrizes do cinema mundial, a partir de material indito envolvendo a atriz que participou de lmes como Casablanca, Quando fala o corao, Por quem os sinos

    dobram, entre outros. Entrevistas, cartas, dirios e imagens

    realizadas por ela compem a atmosfera da realizao, que

    homenageia Ingrid no ano de seu centenrio de nascimento.

    (Lucas Rolfsen)

    PRECONCEITO PARA QUEM?Quase um ano aps o atentado redao do jornal francs Charlie Hebdo, est sendo lanado Carta aos escroques da islamofobia que fazem o jogo dos racistas, manifesto pstumo escrito pelo diretor do peridico, Stphane Charbonnier, ou Charb, como era conhecido. Nele, o jornalista traz reflexes sobre a luta antirracista e o preconceito em torno de uma religio, ou o engrandecimen-to da mesma. O manifesto foi nalizado dois dias antes do ataque ao peridico, no qual o diretor foi assassinado. (Renata Vomero)

  • 9SEMPRE CHANEL

    No nal dos anos 1940, o fotgrafo italiano Willy Rizzo estabele-

    ceu uma proximidade muito grande com a clebre estilista francesa

    Coco Chanel (1883-1971), o que lhe permitia circular livremente por

    seu ateli, desles e outros momentos mais reservados da criadora.

    Agora, no livro Chanel por Willy Rizzo, 181 fotograas, das quais

    muitas inditas, do um testemunho da intimidade e do trabalho

    da estilista, mostrando-a tanto descontrada como absolutamente

    concentrada em sua criao. O projeto tem curadoria do brasileiro

    Danniel Rangel e da viva do fotgrafo, Dominique Rizzo. (GR)

    Mereceu pajelana de dez lideranas indgenas ia-nommis a inaugurao, no final do ms passado, do segundo maior pavilho do Instituto Inhotim (Bru-madinho, MG), dedicado fotgrafa Claudia Andujar. Aos 84 anos, a artista avaliou a ocasio como a festa de toda uma vida: Signica entrar para a eternidade com o meu trabalho dos ianommis e tornar possvel para gente do mundo inteiro conhecer um pouco do modo de vida e dos saberes dessa etnia. A artista se empenha h cinco anos, junto ao curador Rodrigo Mou-ra, para concretizar essa espcie de templo de guarda de parte signicativa de sua obra. So 1.600 metros quadrados e 400 fotograas tomadas entre 1970 e 2010 na Amaznia brasileira, mais de uma centena delas inditas. No ambiente, ser exibido continua-mente o documentrio A estrangeira, produzido por Inhotim e dirigido por Moura. O ttulo do lme alude nacionalidade sua de Claudia, que se naturalizou bra-sileira nos anos 1960, porm jamais perdeu o sotaque.A galeria est cercada por estudado paisagis-mo, que funciona quase como cortina viva. A edificao a 19 em carter permanente nes-sa instituio, j visitada por mais de dois mi-lhes de pessoas em nove anos de existncia.

    Inhotim abriu, ainda, duas grandes mostras tempo-rrias (at o segundo semestre de 2017). Em galpo de 1.500 metros quadrados, o sul-africano William Kentridge exibe a arte politizada de I Am Not Me, The Horse Is Not Mine (Eu no sou eu, o cavalo no meu), enquanto Do objeto para o mundo Coleo Inhotim rene trabalhos de artistas brasileiros e internacionais para contar a histria da formao do grande acer-vo de obras mveis do instituto. (Alvaro Machado)

    OS OLHARES DE ANDUJAR

    Que o mundo est carente de gentileza, todos j sabemos: sentimos falta dela no nibus, no trabalho, no metr, em casa, no restaurante... Foi pensando nisso que um grupo de amigos criou o aplicativo KindMe. Nele, voc se conecta a seus amigos e consegue mandar para eles sugestes de ges-tos que podem mudar o dia de algum, criando assim uma grande corrente de gentilezas. O aplicativo est disponvel para IOS, Android e Windows Phone. (RV)

    VAI UMA GENTILEZA, A?

  • 10

    MATRIZES DA DORO fotgrafo e documentarista brasileiro Gabriel Chaim acompanha os conitos na Sria desde 2013 e traz para a paulistana Zipper Galeria, at o dia 16 de janeiro, um pouco dos impactos que sente em suas rotineiras esta-dias no pas. A guerra civil, que j fez mais de 200 mil vtimas fatais, o tema da exposio Filhos da guerra: O custo humanitrio de um conito ignorado. So nove fotograas em grande dimenso (1,5 m x 2,25 m) e um vdeo feito por meio de drones, mostrando o embate em meio aos olhares de crianas, mulheres e algozes. (LR) FO

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    O pintor francs Jean-Baptiste Debret (1768-1848) fez parte do movimento conhecido como Misso Artstica Francesa e retratou, entre 1816 e 1831, a cidade brasileira do Rio de Janeiro em transio: o lugar deixava de ser colnia e tornava-se capital brasileira e do reino de Portugal. A Cidade Maravilhosa aparece em 120 obras originais, que trazem as transformaes sociais do perodo e a rotina dos seus habitantes. Tudo isso poder ser visto gratuitamente na exposio O Rio de Janeiro de Debret, em cartaz no Centro Cultural Correios, em So Paulo, at 25 de janeiro. (LR)

    VIDAS EM MOVIMENTO

    | drops | ESTE FILME VOC DEVE VER, JOVEM PADAWAN!Star Wars O despertar da fora o Episdio VII da saga criada na dcada de 1970 por George Lucas. O prximo captulo da to aclamada srie, dirigida por J. J. Abrams e com estreia marcada para o dia 17 nos cinemas, se passa cerca de 30 anos aps o m de O retorno de Jedi, e conta com trs novos heris: Finn (John Boyega), Rey (Daisy Ridley) e Poe Dameron (Oscar Isaac), alm do vilo Kylo Ren (Adam Driver). H certa apreenso em torno do lanamento deste lme, j que muitos fanticos pela saga dizem que os episdios I, II e III no foram to bons quanto os primeiros lanados. E a, ser que a dupla George Lucas, agora como consultor criativo, e J. J. Abrams surpreendero os fs de Star Wars? (Carina Matuda)

  • 12

    ISSO QUE VIVER HERMNIO, 80 ANOS, de vrios artistas

    Canes que marcaram a trajetria de 60 anos de carreira do poeta, compositor e letrista carioca so justa homenagem ao talento

    de uma pessoa que estabeleceu parcerias com importantes nomes da msica popular brasileira. A compilao de gravaes feitas durante dcadas dedicadas ao ofcio oferece o panorama de uma carreira slida, trazendo gente do calibre de Maria Bethnia, Chico Buarque, Alcione, Nara Leo, entre outros que do voz s ideias de Hermnio Bello de Carvalho. (Lucas Rolfsen)

    EXPERIMENTAMOS E GOSTAMOS

    OLHOS DA JUSTIA, de Billy Ray

    O cinema argentino est dando cria em Hollywood. Olhos da Justia a verso americana de O segredo

    dos seus olhos, suspense que levou o Oscar de melhor lme estrangeiro de 2009. Feito por Juan

    Jos Campanella, ele um dos produtores desta nova criao que tem roteiro e direo rme de Billy Ray. Chiwetel Ejiofor, de 12 anos de escravido, o

    detetive que, h anos, tenta esclarecer o estupro e o assassinato da jovem lha de sua colega na polcia. Personagem amarga de Julia Roberts em atuao seca. O glamour ca por conta de Nicole Kidman

    como a chefe de departamento. (Alfredo Sternheim)

    EM TRS ATOS, de Lucia Murat com delicadeza e profundidade que Lucia Murat

    explora e investiga a velhice neste lme que mistura co e documentrio. Dividido em trs atos: o corpo, a

    morte e a despedida, o longa mistura textos e entrevistas de Simone de Beauvoir com as interpretaes das atrizes Nathlia

    Timberg e Andra Beltro e das bailarinas Angel Vianna e Maria Alice Poppe. A sensibilidade e a delicadeza so o pano

    de fundo para a honestidade que Simone coloca em suas reexes a respeito do envelhecimento e da morte.

    Um comovente retrato de ns mesmos. (Renata Vomero)

    JOO & MARIA, de Neil Gaiman

    e Lorenzo Mattotti

    Difcil encontrar quem nunca tenha lido ou ouvido a histria de Joo e

    Maria. Fbula transmitida oralmente pela Europa e impressa em livro

    pela primeira vez no m do sculo 17, pelo francs Charles Perrault,

    com o nome de O pequeno polegar, a histria ganhou em mais de trs sculos variadas

    adaptaes, sendo transportada no somente para a literatura,

    como tambm para teatro, cinema e artes plsticas. A partir das impactantes ilustraes de

    Lorenzo Mattotti, o escritor Neil Gaiman d desta vez sua cara ao texto, mantendo-se bem prximo do conto tradicional, cativando novos pequenos leitores, mas igualmente expondo com sutileza

    o mago da dor dos pais que preferem abandonar seus lhos na oresta para no os ver morrendo de fome

    durante a recesso provocada pela guerra. (Gustavo Ranieri)

    Joo e Maria no se importavam se a me s vezes parecia amarga e tinha a lngua aada e se

    o pai s vezes cava cabisbaixo e ansioso para deixar a casinha onde moravam.

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    O GAROTO, de Sapphire

    Voc provavelmente se comoveu com o enredo do

    lme Preciosa Uma histria de esperana, adaptado

    do romance homnimo de Sapphire. A sequncia da

    histria traz o lho de 9 anos de Precious. Abdul Jones acaba de perder a me e se v indefeso jogado em

    um mundo violento. Ele, ento, aprende a se defender pagando na mesma moeda.

    A histria pesada e, novamente, no apresenta

    um cotidiano pobre com romantismo, mas sim nu e cru, do jeito que . Assim

    como Precious, Abdul tambm encontra

    sua redeno, recorrendo arte da dana. (RV)

    Meus sonhos so meus, sonho eles com

    meus olhos abertos. Quando fecho os

    olhos meus sonhos pertencem ao bicho-

    papo, o diabo.

    PREM QUASE LINDO, de Alexandre Sorriso e Danilo Moraes

    Documentrio que registra a importante trajetria do grupo Premeditando o breque, com entrevistas

    raras e imagens de arquivo que contextualizam a banda como parte integrante do movimento

    paulistano de vanguarda dos anos 1980, ao lado de nomes como Arrigo Barnab e Itamar Assumpo.

    O espectador conduzido atravs de canes e depoimentos de personalidades, mesclados a

    falas do Prem que ajudam a entender as razes de uma esttica original. (LR)

    CERRADO EM QUADRINHOS, de Alves

    Com acidez e bom humor, o cartunista mineiro rene leveza e seriedade para falar sobre a preservao

    do Cerrado, bioma amplamente degradado pela atividade humana. Sua formao em Geograa contribui para uma narrativa consistente, apresentada a cada quadro, que complementada por seu trao marcante e colorido. Conscientizar e aproximar as pessoas de uma realidade nunca demais. (LR)

    O Tamandu-Bandeira tem uma viso muito pouco desenvolvida. Podemos imaginar que isso, de certa forma, uma vantagem... Assim, ele no se entristece ao ver a destruio implacvel do Cerrado...

    A COLINA ESCARLATE, de Nancy Holder

    Para aqueles que esto acostumados s histrias de fantasmas e j no se impressionam com pouco, admito: provavelmente no farei parte da sua turma nem hoje, nem nunca! No me entenda mal. Simplesmente me apaixonei pelo livro, adaptado do roteiro de A colina escarlate, que assinado por Guillermo Del Toro e Matthew Robbins. Agora, sobre no se impressionar... Se voc tambm no faz parte desse grupo, acredite em mim quando eu digo: virei assdua frequentadora de cafs, parques e quaisquer outros lugares onde estivesse rodeada de gente, porque ler sozinha em casa antes de dormir? Nem morta! (Camila Azenha)

    Gritos de dor agudos, horrendos vieram do banheiro. Sem hesitar um segundo, Edith correu para a porta e a escancarou. Absolutamente vazio, breu, nada, e ento...

    GILGONGO! OU, A LTIMA TRANSMISSO DA RDIO DUCHER, de Bid ou Balde

    Os gachos do Bid ou Balde nunca deixam a desejar quando se trata de irreverncia e, desta vez, no

    foi diferente. Em seu oitavo trabalho, a banda no abandona o costumeiro bom humor nas contagiantes

    canes e surge com uma nova faceta: agora, o f acompanha o lbum como se estivesse ouvindo

    a ltima transmisso da imaginria Rdio Ducher, com vinhetas, comentrios e comerciais includos. (RV)

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    A AM-BI-

    GUI-DA-DE DO

    EU E

    DAS VIR-TU-

    DES

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    O que , de fato, generosidade, essa virtude to desejada e to confundida em seu conceito? Para os valores atuais, uma questo de solidariedade so-cial, pensamento sustentvel e combate ao precon-ceito. So valores deste momento que nem sempre existiram. So nossos desejos de um mundo me-lhor dentro da viso deste mundo melhor. Miro em um mundo sem preconceito, mas todas as socie-dades humanas, sem exceo, das indgenas s ur-banas do sculo 21, foram preconceituosas. Todas foram, de alguma forma, etnocntricas e centra-das. Desejo uma sociedade sem preconceitos e luto por isto, mas estamos muito distantes deste ideal.

    Mas quais so as maiores diculdades de fazer dessa virtude algo concreto? Preconceito confe-re identidade. Como diz Sartre, quem inventou o judeu foi o antissemita. Quem inventou o Ter-ceiro Mundo foram os intelectuais do Primeiro. A primeira diculdade elaborar identidade sem excluso. A segunda uma educao virtuosa, contrria ao preconceito. A terceira a punio do preconceito nas formas da lei. Coero e consenso de mos dadas para superar racismo, misoginia, homofobia, demofobia etc. Mas uma estrada e estamos s no comeo.

    Sua resposta me remeteu ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando o Imprio Otomano derrotado foi partilhado, sem critrios muito estabelecidos, entre Frana e Inglaterra. No houve por parte de ambos os pases uma ateno com quem habitava esse imenso territrio, assim como em compreender e resguardar suas identi-dades e diferenas. Mas, se olhamos o hoje, ve-mos um mundo ainda muito fragmentado, com Estados querendo independncia, como a Cata-lunha, por exemplo. Assim, de que maneira voc enxerga a elaborao dessa identidade, como elabor-la sem excluir algum? Os exemplos que voc citou dizem respeito a um forte elemento da identidade, que o nacionalismo. O nacionalismo uma inveno, mas tem seu momento mais chave no sculo 19. E, no sculo 20, atravs da Primeira Guerra e da Segunda, o nacionalismo volta tona tambm. Como voc lembrou, a diviso do lega-do do Imprio Otomano, um dos quatro imprios eliminados pela Grande Guerra de 1914 a 1918, a guerra que mais eliminou imprios na histria, so elementos que foram articialmente tratados, porque os interesses ingleses e franceses no leva-vam em conta identidades locais, interesses que,

    | entrevista | leandro karnal

  • 17rev is tadacul tura.com.br

    no Oriente Mdio no s tanto quanto ao na-cionalismo, mas quanto identidade religiosa ou tradio histrica, por meio de um xeique ou de um califa e assim por diante. Aquelas fronteiras que [o ento primeiro-ministro do Reino Unido Winston] Churchill dizia como a Transjordnia, parte da Jordnia, que foram traadas numa tarde de sol em Londres, essas fronteiras como os belgas zeram entre Ruanda e Burundi, montando etnias problemticas como ttsis e hutus; essas frontei-ras, elas so artificiais, mas na verdade as fron-teiras e as identidades de pases europeus como voc citou, a Catalunha tambm so articiais. De que forma isso? A Frana uma juno de povos que no se amavam muito, nem tinham a mesma lngua, at h pouco tempo. A Sua tem quatro lnguas. A Espanha tem, pelo menos, cin-co focos de identidade muito forte, como bascos, como catals, como andaluzes etc. e que no tm uma proximidade nem cultural nem uma identida-de lingustica. Na verdade, pode ser um pas muito pequeno e articial como a Blgica, que pensa em se separar. E pode ser um pas gigantesco e tambm recente como o Canad, que pensa em se separar. Em todos esses casos, nacionalismos e regionalis-mos desagregam unies, porque essas identidades locais europeias, ou de outros lugares, articiais ou no, so elementos com que as comunidades se identicam e a estes elementos de nacionalismo se somam elementos mais graves ainda de religio ou de acusaes de que uma parte est explorando a outra. Ou seja, estamos sempre transferindo para os outros os nossos problemas. Estamos sempre constituindo identidades excludentes. E a tem um desao a que ns nunca conseguimos responder: como que eu posso ser islmico se eu no tiver ao meu redor catlicos e judeus, como que posso ser heterossexual sem homossexuais, como posso ser brasileiro sem argentinos? Ou seja, como posso es-tabelecer um elemento unicador em um universo em que toda ao de dizer quem sou signica di-zer quem eu no sou, aquilo que eu gosto impli-ca aquilo que no gosto. No somos uma espcie acostumada a viver em grandes grupos. Estabele-cemos identidades muito locais, muito provinciais, muito de aldeia. E, s vezes, elas so projetadas para a nao.

    E se nunca conseguimos responder corretamente a este desao, voc acredita em alguma propos-ta, em algo que nos tire desse lugar? Acredito na

    educao, uma educao cosmopolita. Acredito na proposta de Gandhi de abrir as janelas para o mundo, mas que a sua casa continue indiana, que a ideia do Gandhi: Minha casa indiana, mas eu abro as janelas para o mundo inteiro. Acredi-to na valorizao da minha identidade local, mas sem sufocar e sem xenofobia com a identidade dos outros. Mas isso um exerccio muito complexo. A maior parte das pessoas se sente atacada se ela for religiosa e encontrar um ateu, e a maior parte dos ateus se sente catequista, porque decide que, sendo ateu, tem que passar adiante essa ideia e abrir os olhos dos religiosos. Este um ouroboros, uma serpente que come a prpria cauda. Ns temos uma diculdade enorme de lidar com a diferen-a. E uma facilidade enorme de excluir, estabele-cer preconceito, estabelecer muros e guetos. Essa uma tradio histrica muito forte entre ns.

    Por conseguinte, imagino que seja demais utpi-co pensar e almejar generosidade frente ao atual momento que o mundo atravessa. Generosidade um conceito histrico. Quer dizer que, em cada momento e em cada lugar, foi interpretada de um jeito. Era generoso para a elite inglesa aprisionar trabalhadores em workhouses no sculo 19, uma espcie de fbricas-priso. Os ingleses vitorianos achavam que assim ensinariam um ofcio aos tra-balhadores. Os nazistas consideravam til e racio-nal eliminar os portadores de decincias mentais, as primeiras vtimas do extermnio nazista. A In-quisio tinha por lema Misericrdia e Justia. Hoje, temos valores que falam de ao social, va-

    NS TEMOS UMA DIFICULDADE ENORME DE LIDAR COM A DIFERENA. E UMA FACILIDADE ENORME DE EXCLUIR, ESTABELECER PRECONCEITO, ESTABELECER MUROS E GUETOS.

  • lorizao da natureza, combate ao preconceito etc. Esses valores at podem ser utpicos, mas a utopia, desde que foi inventada por omas Morus (1478-1535), serve para melhorar o presente. Utopia per-mite avanar rumo ao horizonte; no, exatamente, construir um mundo utpico. Utopia uma estra-da, no um destino. A utopia estabelece uma esp-cie de meta a partir da qual eu reformo a realidade. Quando omas Morus inventou essa palavra, no sculo 16, o neologismo grego do no lugar [uto-pus], ele queria criticar a Inglaterra em que vivia. Quando [Michel de] Montaigne, nos seus escritos, fala sobre os canibais brasileiros no captulo 31,

    do Livro I de Os ensaios , ele usa os canibais ut-picos para criticar a sociedade francesa do seu mo-mento. Ento, utopia sempre uma maneira de eu estabelecer um futuro perfeito contra o presente imperfeito. Como a realidade d menos do que de-sejo e como o horizonte se alarga medida que a gente deseja mais, utopia tem essa funo didtico--pedaggico-poltica, por isso a importncia dela.

    Historicamente, errado pensar que quando o ser humano era nmade, caador-coletor, ele era mais generoso do que se comparado ao perodo posterior como sedentrio, praticando a agricul-tura e formando ento as primeiras aldeias, vilas e cidades? Como disse, generosidade um valor histrico. De algumas formas, vivemos um mundo menos violento do que h 60 anos ou h 5 mil. H mortes, mas elas causam mais impacto e protestos. Todos os crimes de rua no Brasil no chegam a ser um dia normal na Batalha de Stalingrado, entre 1942 e 1943. As cidades domesticaram parte dos instintos, e isto pode produzir cultura formal e for-mas mais elaboradas de violncia.

    Mas, em sua opinio histrica, j fomos predomi-nantemente generosos ou sempre estivemos longe disso? Se usarmos o exemplo da generosidade como a entendemos hoje, estamos num perodo melhor do que no sculo 15, por exemplo. Sosticamos nossos meios materiais para sermos genocidas. Mas veja, os nazistas tornaram a morte uma indstria sistemtica. Porm, quando os soviticos avanaram, os alemes destruram parte dos campos de morte. Eles sabiam que aquilo era um crime de guerra e queriam destruir provas. Os assrios mataram muito e sem nenhuma tentativa de esconder. A violncia era exemplar, p-blica e tinha funo no imprio assrio. Matamos mais hoje por recursos materiais mais elaborados, mas temos uma conscincia maior de alguns valores. Turcos, hoje, negam a morte de armnios na Primeira Guerra. No sculo 15, turcos e cristos empalavam--se mutuamente nos Blcs, publicamente, e nenhum dos dois lados, islmico ou cristo, tinha escrpulo de exibir sua violncia. Pelo contrrio, orgulhavam--se dela. Hoje, somos obrigados a uma virtude p-blica, estados, instituies e pessoas. A bomba at-mica mata muito rapidamente muita gente. Imagine a bomba atmica nas mos de Nero ou Calgula, de tila ou de Carlos Magno.

    Como voc observa o marketing pessoal e em-presarial tentando se camuflar com exemplos

    | entrevista | leandro karnal

  • 19rev is tadacul tura.com.br

    dessa virtude? Hoje, a virtude traz lucro. Ser ecolo-gicamente responsvel e socialmente engajado au-menta o valor das aes. Assim, virtude e interesse esto presentes. Hoje, virtude agrega valor marca.

    Mas possvel a formao de um ser generoso em meio a uma sociedade to massicada pelo consumo? Para muita gente, o consumo um va-lor virtuoso, pois gera emprego e faz circular ri-quezas. A virtude relacionada ou no ao consumo um conceito interessante. O principal benefcio que pessoas mais pobres querem no igualdade social ou combate ao racismo, mas o poder de tam-bm consumir. O desejo de consumir uma meta forte para quase todas as pessoas. Sociedades que consumiam pouco, como as socialistas, no foram mais virtuosas. Sociedades que consomem muito, como a norte-americana, no so mais virtuosas. Porm, passamos a separar consumo e virtude por uma inuncia provvel de certo platonismo e de certo moralismo ou cristo ou socialista.

    Podemos dizer que maior igualdade sociocultu-ral facilitaria a existncia de atitudes generosas? Sem dvida, o cidado inserido em uma socieda-de com pouca diferenciao econmica, inserido em uma sociedade onde haja muito pouco a in-vejar do outro e a diferena seja pouco relevante, ele tem menos capacidade de destruio de um grande centro onde desconhecidos tm diferenas enormes. Pessoas que esto inseridas em um meio onde voc possa conhecer as pessoas, deveriam, a rigor, estabelecer um ponto mais prximo ou um ponto de maior dilogo e assim por diante. Isto verdade e, ao mesmo tempo, ns temos excees notveis de sociedades equilibradas, com pouca

    desigualdade, dentrodas quais, de repente, aparece um louco, um ser violento. importante lembrar que a violncia era maior no passado do que hoje. Mas o que mudou? Foi muito mais o meio de exercer essa violncia. A chance do assassinato era maior h 50 anos ou 70 anos do que ela hoje. A morte de crianas, a convivncia com os horrores; tudo isso, de alguma forma em alguns setores, no todos melhorou. Ns estamos em uma so-ciedade que tende a cobrar mais tolerncia, menos preconceito e ser mais dura com as expresses da violncia. que eu acho que como toda a espcie humana, e ao longo da sua histria, ns somos violentos. Violncias de comunidades indgenas contra comunidades indgenas, violncia de ho-mens brancos contra comunidades indgenas, violncia de religies entre si, violncias dentro da prpria religio, violncias entre grupos anta-gnicos sociais, violncias ligadas desigualdade aprofundada pelo capitalismo, violncias dentro de sociedades socialistas e assim por diante. Quer dizer, a igualdade do socialismo, por exemplo, ou a desigualdade do capitalismo no gerou socie-dades mais harmnicas ou mais felizes. Agora, a concepo da bondade tem a ver com a construo de uma ideia tanto religiosa quanto moral, como o pacto social, que muito complicado. muito complicado eu transformar as pessoas em mutua-mente capazes de conviver. E tem dado errado na maior parte das vezes.

    Voc disse que a bondade tem a ver com a cons-truo de uma ideia religiosa e moral. Assim sendo, estendo essa pergunta generosidade e demais virtudes. So elas tambm um produto

    A RELIGIO NO NADA EM SI. E NO TEM NADA A VER COM CARTER. A ASSOCIAO ENTRE CARTER E RELIGIO UM ESFORO DOS RELIGIOSOS. H PESSOAS RELIGIOSAS DE EXCELENTE CARTER E H PESSOAS RELIGIOSAS QUE SO COMPLETOS FILHOS DA PUTA EM QUALQUER ASPECTO DA EXPRESSO.

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    | entrevista | leandro karnal

    da religio? A virtude foi estabelecida junto com as religies, mas no apenas por elas. Aristteles deniu tica sem apelo aos deuses. Considerando as prticas religiosas na histria, a pergunta correta seria se possvel ser religioso e virtuoso ao mes-mo tempo. Mas, sem dvida, a ideia de um cdigo moral e um Deus que pune ou premia uma ideia forte e tem funcionado como base de um mundo no qual sempre foi difcil regular as especicidades do indivduo em relao a si e ao todo social.

    Ento, fao aqui a pergunta que voc acha a mais correta: possvel ser religioso e virtuoso ao mesmo tempo? possvel, porque a religio um signo aberto. Sempre dou o exemplo em sala de aula, na Unicamp, que o movimento pela refor-ma agrria, o MST, nasceu em sacristias de igreja e na obra de Dom Toms Balduno, da Pastoral da Terra. O movimento da TFP [Sociedade Brasilei-ra de Defesa da Tradio, Famlia e Propriedade], inimigo mortal da reforma agrria, nasceu tambm na sacristia de igrejas. possvel que a religio faa pessoas lutarem pela justia social e possvel que a religio seja um poderoso elemento de justicao das injustias sociais. Religio um signo aberto. Algumas pessoas so equilibradas porque so reli-giosas, e outras so desequilibradas porque so reli-giosas. A religio no nada em si. E no tem nada a ver com carter. A associao entre carter e reli-gio um esforo dos religiosos. H pessoas religio-sas de excelente carter e h pessoas religiosas que so completos lhos da puta em qualquer aspecto da expresso. Isto no produz algo. Agora, acho que a moral mais fcil de ensinar a moral religiosa. Do ponto de vista behaviorista da psicologia compor-tamental, a religio o elemento mais fcil de ser ensinado como moral, especialmente em um pri-meiro estgio. Agora, o mundo religioso um mun-do violento, e o mundo ateu um mundo violento.

    impossvel destacarmos esse princpio vio-lento do ser humano sem falarmos aqui dos recentes ataques em Paris perpetrados por extremistas ligados ao Estado Islmico. Voc enxerga qualquer possibilidade de alterarmos para melhor a congurao mundial de direi-tos e respeitos universais humanos sem um dilogo com tais extremistas? Acho que h um grau de preconceito de radicalismo, que talvez seja comum a alguns fundamentalistas do Estado Islmico, comum a alguns nazistas, comum a al-gumas personagens deste naipe, que no so pos-

    sveis para estabelecer um dilogo, porque todo o ser deles obtm toda a energia vital e toda a sua identidade do dio. No creio que sejam pessoas capacitadas para um dilogo. No creio que um fundamentalista, lder do Estado Islmico, ou um clssico nazista, ou qualquer outra personagem assim seja capacitada para um dilogo. H um grupo, que talvez at pertena ao Estado islmi-co, que mais aberto, talvez, ao dilogo. Mas o lder fundamentalista, este no existe sem o dio, sem a morte, sem a violncia. Ele no tem outra maneira de existir. Ento, acredito na combina-o de duas coisas: coero contra os agressores, contra brbaros que no aceitam a existncia de outros, sejam esses quais forem, e consenso, que dado pela educao, pelo estmulo ao debate, ao senso crtico, pela igualdade social maior, pelo m da misria e da fome e assim por diante. Mas acho, de novo, que deve ser a minoria que faz um barulho enorme; mas a minoria. O indiv-duo violento nas suas convices uma minoria. Existe uma grande massa que no violenta nas suas convices e esta, sim, pode ser trabalhada pela educao, pode ser trabalhada pelo debate, pode ser trabalhada por estmulos ao contradit-rio para poder conviver com a diferena de uma tolerncia ativa, o que signica que eu rejeito a intolerncia, mas rejeito tambm a tolerncia passiva, aquela que diz: no tenho nada contra X e Y, desde que no sentem ao meu lado. Isso tolerncia passiva. A tolerncia ativa, que o meu desejo e que a minha utopia, o dia que eu entender que a diferena no me enfraquece, mas me fortalece. E eu no ser o padro do mundo, alm de ser uma alegria para o mundo e uma feli-cidade, faz com que eu possa ver as questes sob pontos de vista distintos.

    Para encerrar, Leandro, seja pela viso do his-toriador seja de um indivduo comum apenas, voc acredita que teremos um mundo mais ge-neroso? Um dos axiomas, um dos princpios mais fundamentais da histria, que ela feita por homens; ela no feita por foras extra-huma-nas. Isso signica que tudo o que ns temos hoje pode ser transformado para melhor ou para pior. Mas, se ns lembrarmos que h 20 anos ningum usava cinto de segurana, e que a juno de dois elementos, coero e consenso, transformou por completo a relao do brasileiro com o cinto de segurana multas mais educao no trnsito ; se ns lembrarmos que h 50 anos nenhum de ns

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    pensava na questo da gua e que hoje quase todas as crianas, nas escolas, tm uma conscincia h-drica muito maior do que havia na minha infncia, signica que as pessoas podem ser transformadas para melhor ou para pior. Ento, estabeleo como princpio possvel, armativa categrica, que sim: possvel transformar o mundo para um mundo melhor, menos injusto, menos preconceituoso, que se livre de todas as suas mazelas, como o ra-cismo, a misoginia, a homofobia, a demofobia ou quaisquer outros problemas. Ns podemos lutar por um mundo melhor. Isso possvel e exequ-vel. Porm, se isso vai acontecer, vai depender de uma resposta muito relevante dada por mim, por voc, por quem est lendo esta entrevista ou por quaisquer outras pessoas que possam agir a esse respeito. Mas no h foras externas aos homens. A sociedade do futuro ser o que ns zermos, e isto possvel melhorar. c

    A TOLERNCIA ATIVA, QUE O MEU DESEJO E QUE A MINHA UTOPIA,

    O DIA QUE EU ENTENDER QUE A DIFERENA NO ME ENFRAQUECE, MAS ME FORTALECE.

    E EU NO SER O PADRO DO MUNDO FAZ COM QUE EU POSSA VER AS QUESTES

    SOB PONTOS DE VISTA DISTINTOS.

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    DOAR A QUEM DOER

    | comportamento |

  • CONCEITO QUE FLUTUA NA FRONTEIRA ENTRE GENTILEZA,

    SACRIFCIO E OPORTUNISMO, O QUE DE FATO SER GENEROSO?

    P O R M A U R I C I O D U A R T E I L U S T R A E S B E R N A R D O F R A N A

    Em um dia como qualquer outro em sua vida, a di-retora artstica Renata Quintella resolveu sair pelas ruas de So Pau-lo abordando pessoas aleatoriamente com a se-guinte pergunta: O que eu posso fazer por voc agora? Passada a surpre-sa inicial dos transeun-

    tes, naquele dia, ela carregou sacolas, organizou uma festa relmpago de aniversrio, empurrou uma carro-a, entre outras coisas. Tudo sem pedir nada em troca. A ao acabou se tornando um projeto denominado A nossa Jornada, que continua ajudando pessoas.

    Em sua concepo, sua atitude se enquadra exata-mente no conceito de generosidade. Generosidade o maior sentimento que existe. Porque nele moram a gratido, o amor, o respeito, a alegria e a esperana. compartilhar o que voc tem, na certeza de que nada lhe faltar. Ser generoso ser conectado com a sua alma. Ser gentil pode ser momentneo, pode ser um tipo de simpatia. Toda pessoa generosa gentil, mas nem toda pessoa gentil generosa, de ne.

    Ao associar generosidade e gentileza, Quintella entra naquela zona cinzenta que determina o que realmente generosidade. possvel que exista um ato totalmente descompromissado? Que rgua capaz de medir a bondade do ser humano? Para Robert Suss-man, professor de antropologia da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, autor do livro Ori-gens da cooperao e do altrusmo, no existe genero-sidade inata no ser humano e, por isso, ela to difcil de ser de nida de um modo preciso ou padronizado. Essas ideias e conceitos fazem parte de nossa sociali-zao. Os seres humanos aprendem a se comportar de

    acordo com sua cultura. Como a pessoa age depende de sua experincia de aprendizado em sociedade, diz.

    Esse ponto de vista tambm defendido pelo bilogo Michael Wade, que pesquisa evoluo e comportamento na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, e publicou diversos estudos sobre altrusmo e generosidade. De acordo com ele, o am-biente define o modo como voc ajuda seu vizinho, e isso varia de sociedade para sociedade. H uma variao, mesmo em sociedades ou em espcies muito parecidas. Apesar disso, provavelmente, exis-tem fatores genticos que influenciam tambm. Em um ambiente de estresse social, por exemplo, sabe-mos que o coletivo consegue adquirir mais recursos para solucionar problemas, explica.

    Segundo Dulce Critelli, professora de Filosofia da PUC-SP, doutora em Psicologia da Educao e terapeuta existencial, um indivduo generoso quando oferece a uma outra pessoa ou a alguma co-munidade de pessoas algo que elas precisam, mas sem esperar nada em troca. H nesse ato uma doa-o de algo pessoal, algo que se tem e o outro no. Algum pode ser generoso com o dinheiro que pos-sui, ou com o seu tempo, generoso com suas ideias, seu afeto, a camisa do corpo. Algum sempre atento necessidade do outro e que se doa para colaborar generoso, afirma ela, que tambm fundadora e coordenadora do Existentia Centro de Orienta-o e Estudos da Condio Humana.

    A viso de que a generosidade s funciona se for isenta de qualquer inteno posterior , segundo al-guns especialistas, discutvel. O irlands Nigel Barber, professor da Birmingham-Southern College, nos Es-tados Unidos, nome de peso na biopsicologia e autor de Bondade em um mundo cruel: as origens do altrus-mo, estuda o tema e o aborda com frequncia em seus artigos para jornais. De acordo com ele, se uma cafe-

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  • 26

    | sociedade |

    AS LUZES QUE SE ACENDEM L

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    Evaldo, por exemplo, foi um dos pioneiros da TV brasileira. Na dcada de 1950, quando foram realizadas as primeiras transmisses do veculo no Brasil, ele integrava a equipe da TV Rio. Comecei como redator no jornalismo, mas z de tudo na televiso, conta. No auge da carreira, trabalhou como gerente de produo de programas que marcaram poca, como as novelas Roda de fogo (1986) e Vale tudo (1988), da Rede Globo, alm do humorstico TV Pirata, da mesma emissora, entre o nal dos anos 1980 e comeo da dcada seguinte.

    No meio do caminho, ele trabalhou ainda no canal de Silvio Santos, o SBT, na TV Tupi e na Rede Bandeirantes. Nesta ltima, foi supervisor do ento jovem narrador Galvo Bueno, que dava ainda os primeiros passos na prosso.

    Para residir no Retiro, que ocupa um terreno de quase 14 mil metros qua-drados, necessrio ter atuado prossionalmente e predominantemente como artista. Logo na entrada, o busto do ator Leopoldo Fres, fundador do espao em 1918, demarca a primeira casa que abrigou a instituio, inspirada na fran-cesa Association de secours mutuel des artistes dramatiques. Ao redor dessa residncia principal, onde hoje funciona o espao do brech, h dezenas de ca-sas individuais, dispostas em ruas com nomes que homenageiam artistas, como a atriz Nair Bello e a vedete Nlia Paula, que contriburam com a instituio.

    Foi em meio a uma dessas ruas que fotografamos Evaldo para esta reportagem. Foi a primeira vez que ele posou e se deixou fotografar de corpo inteiro depois daquele acidente, ocorrido s vsperas de ele completar 35 anos. O Retiro dos Ar-tistas , assim, um lugar capaz de mudar a vida das pessoas que chegam a ele. Para alguns, a mudana comea fazendo as pazes com o passado.

    ARMANDO GARCIA, ATOR, 90 ANOS HOJE DIA DE TEATRO

    A passos lentos e com ajuda de uma ben-gala, Armando caminha em direo ao teatro Iracema de Alencar, que funciona dentro do Retiro. Ele chega com mais de uma hora de antecedncia para o espetculo. Frequente-mente, os residentes veem peas l mesmo ou so convidados para teatros externos. Arman-do comparece a todos esses eventos. Nem sei qual vai ser a pea hoje, mas quando soube que teria teatro, me programei para vir. Sou apaixonado por isso!

    Desde jovem, Armando queria atuar. O pai, mdico, no via a profisso com bons olhos. Aos 33 anos, ele estreava Seis persona-gens procura de um autor, ao lado de Tnia Carrero e Paulo Autran, no Teatro Mesbla, em 1959. Pai e lho passaram seis meses sem se falar, tudo por causa do teatro. At que, um dia, o doutor foi assistir ao filho em cena e no perdeu mais nenhuma pea com ele.

    O ator de 90 anos, que fez carreira nos palcos e participou de vrias novelas na TV Globo, mora h trs anos no local, desde que saiu, por vontade prpria, do apartamento que dividia com o lho e a nora no Flamengo, na zona sul do Rio, onde se sentia sozinho. O lho hoje telefona todos os dias e o visita.

    Armando recebe tambm seus amigos das artes cnicas, como os atores Nathlia Tim-berg, Rosamaria Murtinho e Mauro Mendon-a. Srgio Brito e talo Rossi eram tambm muito prximos. Os amigos no deixam de comparecer s festas de aniversrio, comemo-radas l. No ano passado, pedi a eles que, em vez de me darem um presente, zessem uma doao ao Retiro.

    | sociedade |

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    | sociedade |

    ELOI FERNANDES, ARTISTA CIRCENSE, 78 ANOS RESPEITVEL BIOGRAFIA

    Toda a sua vida esteve ligada ao mundo cir-cense. O espetculo comeou na noite de 14 de abril de 1937, quando Eloi Fernandes veio ao mundo, em uma das barracas do Circo-Teatro ABC, no estado do Maranho. O pai, dono do circo, era ventrloquo e ensinou aos oito lhos todas as artes que dominava: manejo de bone-cos, contorcionismo, trapzio, mgica, malaba-rismo e a tcnica aramista, de caminhar sobre um arame.

    Foi no circo que ele ganhou a vida, viajou pelo Brasil inteiro com a trupe e conheceu di-versos pases da Amrica Latina. Recebeu dois nomes: Galeguinho, para o palhao; e Don Fernando, para o ilusionista. Foi tambm no circo que conheceu Marta. Ela era mais artista do que eu. Enquanto eu fazia a apresentao, ela se movia em volta de mim. O chamariz do nmero era ela, recorda, destacando a beleza da mulher. Com a bailarina uruguaia, conviveu quase 30 anos e formou uma famlia.

    Foi tambm no circo que ele vivenciou a morte. Seu lho mais novo, Dolliney, morreu durante um nmero de trapzio. Eu e a me dele no queramos que ele fosse trapezista. Foi a nica arte que no ensinei aos meus lhos. Mas ele era to teimoso que aprendeu. Um dia, caiu no meio do picadeiro e bateu a cabea. Fi-cou dias no hospital, mas no sobreviveu.

    Os residentes podem sair livremente da instituio para passear ou fazer qualquer ati-vidade. Exceto aqueles com diculdade de lo-comoo ou algum tipo de demncia. Eloi no pode mais sair desacompanhado. J ca vrias vezes sozinho. Numa delas, tinha ido tomar uma cerveja no bar aqui do lado. Fui parar no hospital mostra uma cicatriz no lado direito da cabea. Com a ajuda de uma bengala, ele caminha muito devagar. No dou mais conta de fazer um nmero sequer. No sei nem mais me vestir de palhao, lamenta.

    Quando chegaram no Retiro, ele e a mu-lher dividiram uma das casas do terreno. Aps a morte dela, Eloi foi transferido para o am-bulatrio. Hoje, passa a maior parte do tempo sozinho, conversa pouco e ca pensativo em-baixo da lona circense localizada na frente do terreno.

    ISE DE BELLI, ARTISTA PLSTICA, 80 ANOSMESTRE NA ARTE DE SORRIR

    Ela ri diante da minha reao aps revelar sua idade. No acredito que voc tem 80 anos!, deixo escapar. Acho que [a aparncia jovial] por eu ser assim, como sou, responde a artista plstica olhando diretamente nos meus olhos antes de disparar uma gargalhada.

    Ise de Belli tem as unhas pintadas de vinho, veste uma saia preta na altura dos joelhos e uma blusa da mesma cor, ligeiramente decotada. Entre as mulheres residentes que aguardam a abertura do teatro, a nica de salto. Algumas, com diculdade para andar, so levadas em cadeira de rodas e usam aquela bata de enfermaria que mais parece um pijama.

    Voltamos ao local no dia seguinte primeira visita e encontramos Ise com ou-tro tom nas unhas. Tenho uma caixa cheia de esmaltes. Quando me d vontade, escolho um e pinto. Por causa do Alzheimer, que compromete sua memria re-cente, ela se esquece de coisas sobre as quais falou minutos atrs e repete algumas informaes na conversa. Teve quatro lhos de seu nico casamento. Ficou viva com menos de 40 anos e no quis mais namorar. Uma das lhas mora na Barra da Tijuca; a outra, em Copacabana; e um dos lhos, nos Estados Unidos. O nico momento da conversa em que os seus olhos se entristecem quando se lembra do outro lho, Augusto, que morreu assassinado aps se envolver com drogas.

    Formada pela Escola Nacional de Belas Artes, ligada Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela se dedicou pintura de telas e tambm de roupas. Vendeu quadros na feira hippie da praia de Ipanema, uma das mais famosas da cidade. Agora, estou pintando blusinhas, conta ela, que deu incio atividade graas ao estmulo das lhas.

    Ise no demonstra apego s prprias obras. Pergunto por que no seu quarto no tem nenhum quadro seu. Alguns artistas se apegam ao que zeram, mas no sou assim. Gosto que quem com o que pintei. sinal de que gostaram. E posso fa-zer outras pinturas, no preciso car com elas pra mim. Ela mesma deu um toque de primavera ao guarda-roupa, que pertence ao Retiro, colando ores e borboletas recortadas de revistas no mvel. c

  • Um grande paradoxo

    | cincia |

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    P O R R E N A T O M E N D E S I L U S T R A O M A U R I C I O P L A N E L

    Para o socilogo, pro-fessor e pesquisador da Universidade de Notre Dame, em Indiana, nos EUA, Christian Smith, a generosidade para-doxal. Ele diz que, na medida em que uma pessoa doa algum tipo de recurso que possui, tambm recebe algo

    em troca. Ou seja, ao doar para outras pessoas tem-po, afeto, disponibilidade emocional, encorajamento, energia ou dinheiro, de maneira genuna e desinteres-sada, voc no perde nada; pelo contrrio, voc ganha algo, como bem-estar, felicidade e prosperidade. Em entrevista Revista da Cultura, o especialista arma: Isso no somente ensinamento losco ou religio-so: um fato sociolgico. Simples? Nem tanto.

    Quando se submete qualquer tema ao escrutnio da cincia, ele cresce em complexidade. Foram neces-srios seis anos e US$ 5 milhes de investimento da Fundao John Templeton para que o projeto Cin-cia da generosidade colhesse seus primeiros frutos, entre eles, o livro e Paradox of Generosity Giving We Receive, Grasping We Lose, que Smith escreveu em coautoria com a sociloga e pesquisadora Hilary Davidson. A generosidade tem sido usualmente estu-dada como uma questo da tica, da teologia ou da losoa. Ns a abordamos de forma emprica, cient-ca, utilizando as ferramentas das cincias sociais para entender melhor as fontes, as manifestaes e as con-sequncias da generosidade. Todas essas perspectivas so complementares. A maior parte da pesquisa j foi realizada e os dados, coletados, mas ainda existem v-

    rios estudiosos envolvidos em seus projetos, que esto escrevendo e publicando resultados, explica Smith.

    O pesquisador conta que as obras sobre tal virtu-de se concentram em quem generoso e no por qu, ou ento nos efeitos da generosidade sobre as pessoas que a recebem. Os dados mais relevantes para o es-tudo as evidncias empricas surgiram de uma pesquisa quantitativa com questionrios aplicados a 2 mil norte-americanos adultos em 2010. Esses dados entregaram a Smith e equipe informaes pessoais, comportamentais, religiosas e sociais sobre os entre-vistados. A partir dessa amostra com representao nacional, foram identicadas 40 pessoas que seriam alvo de longas e aprofundadas entrevistas qualitativas, fundamentalmente a respeito de experincias ligadas generosidade.

    Tal virtude foi mensurada em suas diferentes ma-nifestaes: doao voluntria de dinheiro e trabalho, expresso de generosidade nas relaes com a famlia e em comunidade com vizinhos e amigos , doao de rgos e sangue, doao governamental s instituies sem ns lucrativos e emprstimo de bens. Entre outras concluses, eis algumas certezas do estudo: a relao entre generosidade e bem-estar forte e consistente e isso vlido para as diversas formas dessa virtude e suas consequncias; alguns mecanismos causais iden-ticados na pesquisa explicam de que forma atitudes generosas inuenciam os tipos de resultados de bem--estar pessoal, se valendo de cinco fatores para medi-o: felicidade, sade, sentido de vida, impedimento depresso e interesse pelo crescimento pessoal.

    O estudo revelou que o nmero de pessoas muito felizes 7% maior entre os entrevistados que fazem vo-luntariado, quando comparados com os no volunt-rios; no intervalo de um ano, o grupo de entrevistados

    FRUTO DE US$ 5 MILHES DE INVESTIMENTO DA FUNDAO JOHN TEMPLETON, O PROJETO NORTE-AMERICANO CINCIA DA GENEROSIDADE LEVANTA UMA PERGUNTA INCMODA: ESTAMOS DISPOSTOS A FAZER SACRIFCIOS PELO BEM COMUM?

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    voluntrios 13% mais propenso a estar saudvel, do que aqueles que no se voluntariam; o nmero de vo-luntrios que armaram ter um forte sentido de vida 8% maior do que os no voluntrios.

    Smith acredita que, se alguma pesquisa do gne-ro fosse realizada no Brasil, os resultados seriam os mesmos, uma vez que, embora as culturas sejam di-ferentes em vrios aspectos, todos so seres humanos, independentemente do lugar onde estejam.

    DE PAIS PARA FILHOSA iniciativa nanciou outros projetos de pesqui-

    sa ligados generosidade em reas como psicologia, sociologia, economia e cincia poltica. Mark Ottoni--Wilhelm, professor de economia da Universidade de Indiana, a Lilly Family School of Philanthropy, investi-ga as origens da generosidade nas crianas. Em entre-vista, ele contou ter descoberto em suas pesquisas que a maneira mais efetiva de inuenciar os pequenos para que sejam generosos por meio das conversas que os pais tm com seus lhos. Em um de seus proje-tos, foram coletados dados de 903 crianas norte-ame-ricanas, sobre seus comportamentos ligados doao, quer em congregaes religiosas, quer s instituies de caridade. Essas informaes foram colhidas em dois momentos, quando os jovens tinham 11 anos e quan-do tinham 16 anos, em mdia.

    Durante o perodo desse estudo, observou-se um aumento de 18% de crianas classificadas como generosas entre aquelas que conversam com seus pais sobre tal virtude.

    ALTRUSMO BRASILEIROO altrusmo a principal motivao para as doa-

    es de sangue no Brasil. Em 2008, Ester Sabino, m-dica e professora da Faculdade de Medicina da Univer-sidade de So Paulo (USP), principal investigadora do National Institute of Health (NIH), dos Estados Uni-dos, junto com pesquisadores de outras disciplinas, concorreu a nanciamento no mbito do projeto Cin-cia da generosidade. Embora no tenham conseguido aquele apoio, as pesquisas realizadas pela professora sobre temas relacionados motivao de doadores de sangue e riscos de transmisso de agentes infecciosos tm crescido com investimentos do NIH.

    Ora, se os especialistas no soubessem as razes que movem os indivduos a doar sangue, os hemo-centros entrariam em colapso. Sem dados empricos, as campanhas de conscientizao seriam inecazes. Mesmo que as pessoas doem sangue porque tambm querem saber sobre a sua sade, ou porque respondem a demanda de campanhas de TV, rdio e pedidos por telefone, o que as leva a doar o fato de querer ajudar algum, salienta Sabino.

    Em uma das pesquisas de que a professora da USP participou, foram preenchidos 7.635 questionrios por doadores de trs grandes hemocentros brasileiros. Desse total, 43,5% representam doadores com alto grau de altrusmo e 41,7% doadores que responderam a um apelo direto para doao. Diversos outros tes-tes realizados no exterior conrmaram uma tendn-cia global em que o altrusmo a principal motivao para os doadores de sangue.

    | cincia |

    BREVES COMENTRIOS SOBRE O LIVRO THE PARADOX OF GENEROSITY GIVING WE RECEIVE, GRASPING WE LOSE

    Embora no exista uma traduo do livro para o portugus, a leitura em ingls uda e de fcil compreenso. De interesse geral, os dados apresentados, como grcos e entrevistas em profundidade, satisfazem os cticos. A narrativa foi construda de maneira inteligente para agradar leigos e especialistas. As 17 pginas nais do livro, contendo somente referncias, servem como ponte entre o leitor especialista ou acadmico, e o contedo mais detalhado e tcnico da pesquisa. Os grcos que surgem em dois dos captulos so um suporte ao texto, de uma maneira intuitiva, sem que as imagens e nmeros cansem o leitor. A ilustrao de uma rvore na capa do livro, com as mos abertas representando as folhas, tima!

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    CULTURA SUSTENTVEL No livro Perspectiva tica e generosidade, de Lu-

    ciene R. P. Tognetta, pedagoga e pesquisadora da Unicamp/Unesp, apresentada uma problemtica atual que envolve moral e tica, com objetivo de compreender como as aes humanas podem ser generosas. Ao citar dois filsofos franceses, Com-te-Sponville e Luc Ferry, Tognetta regressa a uma condio primordial do humano ligada generosi-dade: o ser humano busca as virtudes por sua pr-pria natureza.

    nesse sentido que percebemos a existncia de uma necessidade coletiva latente, sobretudo entre os habitantes dos grandes centros urbanos, de hu-manizao nas relaes e de contato consigo mes-mo. O desejo de transformar a maneira como se est na vida, como se enxerga os semelhantes e o ambiente em que se est inserido faz com que uma parte das populaes queira ser generosa e menos reativa. Entender o paradoxo da generosidade simples: no promover as mudanas internas que sabemos serem necessrias.

    No sentido aristotlico e tocquevilliano, a pr-tica da generosidade torna-se um modo de vida, um mapa orientador. Para aqueles que querem mu-dar em direo generosidade, Christian Smith fala sobre ser necessrio o confronto com as questes existenciais profundas em cada um. Essas transfor-maes passam por decises difceis, como aprender novas rotinas, atitudes e hbitos. E, claro, encarar obstculos que inevitavelmente iro surgir, de ordem mental, emocional e at financeira por que no?

    Um dos aspectos mais intrigantes que o livro The Paradox of Generosity Giving We Receive, Grasping We Lose apresenta ao leitor parte das concluses dos pesquisadores Smith e Hilary a ideia de que a generosidade, ao mesmo tempo que emerge, tambm constri um estilo de vida culturalmente sustentvel, dentro do qual as pes-soas vivem margem da escassez e da abundncia, da apatia e da ao, da ansiedade e da paz. dessa dimenso culturalmente sustentvel da existncia, individual e coletiva, que surge uma pergunta in-cmoda: Ns estamos dispostos a fazer sacrifcios pelo bem comum?. c

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    P O R A L F R E D O S T E R N H E I M

    FREQUENTE EM FILMES ESTRANGEIROS, O GESTO GENEROSO TAMBM MOVIMENTA A HISTRIA DO LONGA-METRAGEM BRASILEIRO TUDO QUE APRENDEMOS JUNTOS, CUJA HISTRIA AMBIENTADA NA MTICA ORQUESTRA DE HELIPOLIS

    DERRUBANDO MUROS E CONSTRUINDO PONTES

    | cinema |

  • | sade |

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    | literatura |

  • Uma rvore que d folhas para um menino brincar. Ela tambm oferece mas e som-bra. A criana cresce e esquece, por algum tempo, a rvore. Esta, porm, que ama o menino incondicionalmente, o espera. Ele retorna e pede mais coisas. A rvore, gentil e sem pedir nada em troca, forne-ce... Esta a histria de A rvore genero-sa, do norte-americano Shel Silverstein

    (1930-1999), um clssico da literatura mundial. Lanado no Brasil com traduo do escritor brasileiro Fernando Sabino (1923-2004), trata-se de uma tpica obra da literatura infantil que busca transmitir valores, como cidadania, responsabilida-de social, cuidados com o meio ambiente e, segundo o prprio ttulo indica, generosidade. E o melhor: sem taxar moralmente o que o bem ou o que o mal, ao estilo dos primeiros regis-tros escritos da literatura para as crianas, datados do sculo 17.

    Editora do segmento infantojuvenil da recm extinta Co-sac Naify, Vanessa Gonalves acredita que Silverstein consegue transformar em histrias delicadas e tocantes sentimentos que so difceis de explicar. Por justamente no ter um juzo de va-lor embutido no texto e nas ilustraes, ela ressalta, a leitura de livros como A rvore generosa transformadora para qualquer pessoa, adulta ou criana.

    Segundo a gerente de produo editorial da Zahar, Ana Ta-vares, para que o livro seja tocante, necessrio seguir algumas regras. Transmitir valores ou conhecimento ser inerente ao bom livro, se feito de forma inteligente, sem articialismos, moralismo, maniquesmo ou simplicaes, diz ela. preciso valorizar o as-pecto literrio e a experincia esttica em primeiro lugar.

    45P O R A L A N D E F A R I A

    SEM DITAR REGRAS OU FUNCIONAR COMO UM MANUAL, A LITERATURA INFANTIL AMPLIA SEU PAPEL

    COMO TRANSMISSOR DE VALORES HUMANOS

    PALAVRAS E ILUSTRAES

    CHEIAS DE VALORES

    Na pgina ao lado, colagem de Marta Pina para A democracia pode ser assim; nesta, ilustrao de Marina Papi para O leo lsofo, Seram e outros bichosIM

    AG

    EN

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    O artista plstico e tambm escritor Vik Muniz concorda com Tavares. E vai alm: A criana e at mesmo ns, adultos, aprende-mos pouco com o sermo. Em seu livro Melchior, o mais melhor, o artista procura mostrar aos leitores mais jovens que no vale a pena se destacar em todas as atividades que desempenham. Muniz revela que se inspirou em seu lho mais velho, hoje com 25 anos de idade, para escrever este que seu primeiro livro infantil. Ilus-trado pela cantora Adriana Calcanhotto, a histria tem como pro-tagonista um garoto que deseja ser o melhor danarino da festa, o melhor jogador de futebol, o aluno mais inteligente da classe e por a vai. Eu me separei da me do meu lho muito cedo e acho que aquilo foi um pouco traumtico para ele. Ento, em todos os momentos em que ns nos encontrvamos, ele tentava me impres-sionar e mostrar tudo o que fazia. Foi a que pensei nessa ideia de que ser melhor em tudo no vale a pena. O importante interagir com o mundo.

    Para Pedro Bandeira, um dos principais nomes da literatura in-fantojuvenil brasileira, os livros tm de abordar os sentimentos hu-manos. Um de seus ltimos lanamentos, A contadora de histrias, apresenta uma turma de alunos que se entristece ao notar a ausncia da faxineira da escola onde estudam. O motivo? Dona Dalva, alm de cuidar da limpeza do local, os encanta com suas narrativas. No entanto, j idosa, ela corre o risco de no voltar escola por no ter mais foras para o trabalho pesado. Os alunos, ento, organizam-se e comeam a realizar uma srie de atividades que visam melhoria do colgio e, por consequncia, a diminuio dos afazeres de dona Dalva.

    Procuro utilizar metforas e guras para falar dos grandes te-mas da construo da personalidade, como o fez Shakespeare. Por que suas peas so encenadas at hoje? Porque ele jamais preten-deu ensinar coisa nenhuma. Ele simplesmente aborda os grandes sentimentos humanos, como o amor, o cime, a ambio desme-dida, a cobia, a solido, o dio, a vingana, o envelhecimento, a ingratido..., diz Bandeira.

    MUNDO AO REDORA jornalista Bia Reis, responsvel pelo blog Estante de letri-

    nhas, no enxerga na literatura infantil a obrigatoriedade de trans-mitir valores. Em sua opinio, em primeiro lugar, ela precisa ofere-cer um prazer esttico: da as ilustraes ou at mesmo inovaes no design que permitem um contato fsico diferente com o livro. Depois, diz a jornalista, a histria ou os desenhos nas pginas ou nos tablets tendem a despertar a sensibilidade do leitor.

    Idealizador e produtor do projeto Biblioteca Estante Livre, que instala em praas de comunidades do interior do Esprito Santo estantes com centenas de livros, Vitor de Azevedo Lopes conta que as histrias que mais chamam a ateno da crianada mora-dora desses locais so as infantis, com ilustraes grandes e que se relacionam de alguma forma com a comunidade.

    Em As perguntas de Lusa, a escritora Patricia Engel Secco se debrua sobre as dvidas da pr-adolescente Lusa (ou Luluca ou Lulu Gatu-Puru para os mais ntimos), que no entende o motivo de sua av car assustada com duas crianas de rua na porta de

    | literatura |

    Ilustrao de Rafael Anton para Perguntas de Lusa

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    P O R I S A D O R A G R E S PA N

    I L U S T R A E S V E R I D I A N A S C A R P E L L I

    UM DOS PILARES DA CIVILIZAO, O ALIMENTO E O ATO DE COZINH-LO

    E OFEREC-LO AOS OUTROS REFORA GESTOS DE UNIO E TROCA

    COMIDA NO S

    COMIDA

    | gastronomia |

    Quando perguntamos a algum qual o seu pra-to preferido ou a sua re-feio inesquecvel, no raro, ouvimos como res-posta algo do gnero: O pudim da minha av, O ovo frito com arroz da minha me, Um es- paguete que comi na mi-

    nha lua de mel, O bolo do primeiro aniversrio do meu lho. Para alm de satisfazer as necessidades vitais de nutrio, o alimento ocupa um lugar espe-cial em nossa memria afetiva porque nos remete ao conforto, ao carinho, a algo que nos acolhe e nos faz sentir parte de algum lugar. Comer e alimentar o ou-tro se relacionam com a nossa histria, aquilo que somos e de onde viemos.

    Compartilhar o alimento, dividir o po nosso de cada dia algo que nos acompanha desde os tem-pos pr-histricos, quando passamos a dominar a agricultura e abandonamos o modo de vida nma-de. Transformar algo cru em cozido, j disse o an-troplogo Claude Lvi-Strauss, permitiu ao homem constituir-se em sociedade.

    Milhares de anos se passaram desde ento. Em-bora tenha recebido diferentes signicados ao longo do tempo, ainda hoje o costume ancestral da partilha permanece. Inmeras decises polticas so tomadas ao redor de uma mesa. Todos os dias, negcios so fechados durante uma refeio. Quantas discusses acaloradas acontecem em um almoo de famlia? na comensalidade que se manifestam os vnculos sociais, a noo de pertencimento e a identidade cultural de um povo. O historiador francs Jean-Marc Albert, em seu livro s mesas do poder Dos banquetes gregos ao Eliseu, arma que o ato de compartilhar o alimento cria, determina e refora a coeso, a conana e a con-vivncia em torno de um grupo.

    A reciprocidade uma lei bsica do funcionamen-to das sociedades. ela que vincula pessoas e insti-tuies, que nos identica e nos torna sociais. Eu me uno ao outro propondo uma troca: preciso doar para receber algo que cria um vnculo entre ns. Se no for o outro, a gente no se reconhece e no h reciprocida-de, explica o socilogo Carlos Alberto Dria.

    Esse princpio constitui o tecido social mesmo nas culturas que so regidas pela tica do mercado. As trocas mercantis so dominantes em nossa sociedade. Mas isso no signica que todas as trocas sigam essa lgica. O Natal e as comemoraes de aniversrio so exemplos nesse sentido. A reciprocidade que se ali-

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    | gastronomia |

    menta de afeto e de anidades no mercantis sempre existe em algum nvel, porque necessrio criar vn-culos, arma Dria.

    CELEBRAO E PRIVAOO alimento como smbolo da generosidade em seu

    signicado mais amplo a disposio de abdicar do interesse prprio em prol do interesse coletivo ou do outro permeia toda a nossa existncia. O banquete, ainda hoje, um elemento importante nas celebraes: do casamento aos funerais, preciso haver repartio generosa de alimentos como smbolo da comunho.

    A civilizao crist, explica o professor do depar-tamento de Histria da Universidade de So Paulo (USP), Henrique Soares Carneiro, tem toda uma concepo do amor no sentido grego da gape, do amor que se doa, incondicional. A gape tambm uma forma de celebrao do alimento e simboliza o acesso obra divina.

    Segundo o presidente da Associao Cultural Israe-lita de Braslia (Acib), Hermano Wrobel, para o judas-mo, tudo o que h na Terra foi doado por Deus. Por isso, sempre h uma bno antes da refeio. Desta forma, estamos pedindo permisso para ter acesso a esse proveito. Esse o fundamento do nosso processo alimentar. Ele conta que a cultura judaica est muito ligada terra, por isso, a maior parte das celebraes refere-se a uma atividade agrcola. Tudo isso tam-bm se conecta alimentao. Ns brincamos que, para os judeus, tudo acaba em volta de uma mesa, diz.

    Paradoxalmente, a generosidade tambm ex-pressa pela negao. Em inmeros rituais religiosos, o mais comum haver algo que envolve um elemento de autossacrifcio, o jejum ou a eliminao volunt-ria de algum alimento, ainda que temporariamente. No candombl, por exemplo, os chamados lhos de santo no podem comer, em sua vida cotidiana, os mesmos alimentos oferecidos ao seu orix. Mas, no espao do sagrado, nos terreiros, o consumo desses mesmos alimentos torna-se obrigatrio. Comer o que o orix come sustentar a sacralidade do corpo e re-forar a identidade perante o orix.

    O vegetarianismo, que hoje reflete uma questo tica ligada ao respeito vida dos animais, outro modo de autoprivao que constitui uma forma de ge-nerosidade. Mesmo no mbito da cultura hindusta, onde tambm existe essa prtica, h a ideia de que esse ato generoso, pois signica a no ingesto de um se-melhante, que pode at representar almas reencarna-das da prpria espcie, pontua o professor Carneiro.

    IDENTIDADE E AFETOPara o presidente da Associao Brasiliense dos Prossionais e Estudan-

    tes de Gastronomia e professor de Histria da Gastronomia do Instituto de Educao Superior de Braslia, Estevo Santoro, a alimentao e a gastrono-mia tambm signicam generosidade. Nesse sentido, esto ligadas ao cari-nho, ao se preocupar com o outro. no conseguir olhar para o seu prximo e perceber que ele est passando fome. o ato de dividir entre os nossos ami-gos, a nossa famlia e os nossos conhecidos aquilo que cozinhamos para eles.

    A ideia do alimento como algo que deve ser partilhado est presente at em situaes de tragdias, como nas catstrofes naturais. Nesses mo-mentos, a primeira forma de solidariedade universal coletar e oferecer alimentos, porque isso que permite a sobrevivncia. Est presente, in-clusive, no ato aparentemente banal de passar horas preparando algo para agradar algum de quem se gosta.

    Na opinio de Carlos Alberto Dria, h duas maneiras de cozinhar para algum: a primeira produzir algo que tem um valor de uso e pelo qual, em troca, se recebe uma quantia em dinheiro. A segunda a produo que se traduz nas relaes face a face, entre os pares, ou seja, nas relaes que no so mediadas pelo dinheiro. Quando cozinhamos para algum, nos preocupamos com as preferncias, com as necessidades e com as fantasias daquela pessoa. Buscamos a seduo. Muitas vezes, depositamos na ali-mentao a esperana de encantamento do mundo, afirma o socilogo. O cozinheiro, por outro lado, tem a expectativa de que o alimento cumpra essa funo do prazer, da alegria. A generosidade se d nessa relao: se eu fao pensando em voc, isso generoso. c

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    Generosidade talvez seja um dos princpios norteadores que nos fizeram chegar at aqui, vivendo em sociedades e grupos cada vez maiores e mais complexos. Mas, alm

    de ela no ser uma prerrogativa exclusi-vamente nossa, humana, parece que anda rareando cada vez mais entre nossos pares nos dias que encerram o ano de 2015.

    Como explicar um ataque brbaro de fundamentalistas a uma das principais ci-dades do mundo, Paris? Como entender o mar de lama que arrasou rios, vilarejos e provocou uma das piores catstrofes ambientais da histria do Brasil? Como tolerar a persistente violncia contra mu-lheres, que atravessa os sculos em nossa terra? Como justicar o desejo de se man-ter a todo custo no poder, que faz com que muitos dos nossos partidos e polticos en-vergonhem diariamente a populao?

    Ser generoso ter um olhar mais amplo, que enxerga mais longe e supera eventuais diferenas e diculdades. con-seguir ter empatia, se colocar no lugar do outro, entendendo seu sofrimento e suas necessidades. poder, sem abrir mo de crenas e princpios, ajudar quem precisa. conseguir romper as amarras egostas e narcisistas que nos fazem focar apenas em nossas prprias questes. estar aberto para mudar o tempo todo, se reinventar, medida que o mundo assim exigir. poder ajudar e permitir que sejamos ajudados.

    Durante muito tempo, se imaginou que altrusmo, bondade e generosidade eram atributos quase exclusivamente hu-manos. O tempo, as pesquisas e as imagens nos mostram que muitos animais tambm agem para ajudar outros da mesma espcie e, muitas vezes, at de espcies distintas. Mas, sem dvida alguma, somos os que mais se valeram dessa possibilidade para construir arranjos comunitrios cada vez mais intricados e sosticados.

    Infelizmente, apesar do amplo uso que zemos da generosidade em nossa evoluo, estamos devendo muito nesse quesito, tan-to para o mundo como para ns mesmos! Sendo a espcie que controla e impacta com mais fora a Terra, precisamos ter mais cui-dado com o habitat que nos cerca, nem que isso signique abrir mo, em alguma exten-so, de prerrogativas e de confortos. Sem isso, podemos estar inviabilizando a vida das prximas geraes, humanas ou no.

    Sem reavaliar a relao que temos com o poder e o mau hbito de tentar limitar o que os outros so e podem fazer, impondo um sistema de crenas que imobilize os de-mais, vamos tornando a coexistncia cada vez mais difcil por aqui. Criamos hostili-

    dades, disputas, dio e guerras! Abrimos mo da capacidade de cuidar do outro, de abrir espaos, de criar redes de colabora-o e de solidariedade. Vamos perdendo nossa humanidade e nos tornando mais monstruosos!

    Ser bom por qu? Ser generoso para qu? Porque, se cada um de ns no mu-dar e no conseguir fazer sua parte, o teci-do social que vai se constituindo ca cada vez mais frgil, mais fcil de ser rompido. E, quando isso acontece, talvez tudo o que foi feito pelos nossos antepassados para que a gente chegasse at aqui vai perdendo a razo e o sentido. A humanidade, o mun-do e as pessoas vo deixando de ser. uma perda para todos! c

    JAIRO BOUER APROVEITA A LTIMA EDIO DA REVISTA DESTE ANO PARA DESEJAR UM 2016 CHEIO DE BONDADE, AMOR E GENEROSIDADE PARA TODOS. ISSO!

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    OLHARES ENGAJADOS

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    P O R A D R I A N A P A I V A

    F O T O S C H I C O M A X

    E M A R C E L O L O N D O O

    OS CAMINHOS QUE CONDUZIRAM DOIS FOTGRAFOS, O BRASILEIRO CHICO MAX E O COLOMBIANO MARCELO LONDOO, A RETRATAR IMIGRANTES PARA OS QUAIS AS MOS DA AJUDA FORAM ESTENDIDAS

    De um lado, o fotojornalista Marcelo Lon-doo, 38 anos, colombiano de Bogot, forma-do em Histria e Cinema e com vrios anos de-dicados a tem-

    ticas sociais. Do outro, o paulistano Chico Max, 44 anos, diretor de arte com forma-o em Psicologia e uma longa carreira em fotograa editorial. Por mais dspares que possam parecer as trajetrias desses fot-grafos, em vrios pontos, elas convergem.

    Justo quando a crise migratria atin-ge os nveis mais alarmantes, obrigando o mundo a repensar estratgias para li-dar com seus efeitos, o trabalho de ambos encontra uma nova vocao: dar suporte a campanhas de esclarecimento sobre a situao dos refugiados e imigrantes que chegam ao Brasil, deixando para trs dra-mas como a guerra e a pobreza extrema.FO

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    PRIPLOS POR BOAS CAUSASLondoo, que atualmente se divide entre Lisboa, onde conclui

    um mestrado e de onde conversou, via Skype, com a Revista da Cultura e o Rio de Janeiro, cidade que escolheu para xar resi-dncia, j vinha passando longos perodos no Brasil desde 2009. Aqui, cobriu a movimentao em torno de grandes eventos, como a Copa do Mundo, as manifestaes que tomaram as ruas do pas, em junho de 2013, e, mais recentemente, fotografou o avano da hansenase no estado de Pernambuco. Trabalho que, realizado para a Netherlands Leprosy Relief (NLR), fundao holandesa voltada ao combate da doena, acabou por render-lhe um prmio da ONG alem Transparncia Internacional. Viajamos pelo in-terior do estado durante sete dias. Eles precisavam de fotograas para uma campanha, na Holanda, e fui fazer. Foi uma experincia muito, muito forte, relembra o colombiano.

    Exatamente por esse seu comprometimento com temas de cunho social que, em setembro deste ano, a Critas Arquidioce-sana do Rio de Janeiro decidiu solicitar os prstimos do fotgrafo para documentar a rotina dos cidados estrangeiros acolhidos pela Casa de Apoio a Refugiados, mantida nas dependncias da Igreja Matriz de So Joo Batista, em Botafogo, zona sul carioca.

    Precisvamos de algum que tivesse um olhar mais sens-vel, a m de chamar a ateno das pessoas para o problema dos refugiados no Brasil, mas tambm para fazer uma campanha de arrecadao de doaes para o abrigo e falar sobre alguns casos, de modo a obter ajuda para eles, conta Diogo Flix, assessor de informao da Critas RJ. Estvamos em uma semana de muita ateno da mdia brasileira e at da estrangeira sobre os re-fugiados no pas, em geral, e no Rio em particular, acrescenta, aludindo comoo mundial causada pela tragdia de Abdullah Kurdi, srio de origem curda, que, alguns dias antes, perdera toda a famlia em um naufrgio durante tentativa de travessia entre a Turquia e a Grcia.

    quela altura, o abrigo, coordenado pelo padre Alex Coelho, com o apoio do Acnur (Alto Comissariado da ONU para os Re-fugiados) e do Conare (Comit Nacional para os Refugiados), r-go vinculado ao Ministrio da Justia, recebia 16 pessoas, entre elas, nove srios, uma me e a lha nigerianas e uma famlia de russos de origem armnia, que chegou ao pas fugindo da guerra na Ucrnia. De l para c, essa congurao alterou-se um pou-co, com a chegada de refugiados de outras nacionalidades. H 19 pessoas na casa hoje, sendo oito srios, relata Diogo.

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    DESCONSTRUINDO ESTIGMASEntusiasmado com a receptividade exposio Somos todos

    imigrantes, que apresentou no Museu da Imagem e do Som (MIS), na capital paulista, no incio do ms passado, em iniciativa que teve parceria com a Misso Paz e apoio da Secretaria de Cultura e da Assessoria Especial para Assuntos Internacionais do Governo de So Paulo, o fotgrafo Chico Max agora se prepara para tam-bm lev-la a Portugal, o que est programado para ocorrer nas primeiras semanas de 2016. Antes, a mostra fotogrca se torna-r itinerante, passando pela Assembleia Legislativa e por outros pontos da capital paulista, como o Tribunal de Justia e algumas estaes de metr.

    Embora So Paulo tenha sido erguida com a colaborao de-cisiva de imigrantes e nutra o orgulho de oferecer oportunidades a todos que ali aportam, a cidade tambm tem um lado indisfar-avelmente avesso convivncia com as diferenas. Percepo que Chico Max corrobora ao narrar um episdio que, ocorrido h alguns meses, ele destaca como o catalisador dos esforos que redundaram na realizao da mostra. O fotgrafo conta que ti-nha acabado de sair de um restaurante peruano, na regio central, quando, bem perto dali, avistou dezenas de haitianos reunidos em uma espcie de celebrao. Ao mesmo tempo que a curiosi-dade tpica da prosso o impelia a aproximar-se e a se misturar

    ao grupo, ele observava, com surpresa, as reaes ostensivas dos passantes. As pessoas brancas em sua maioria tomavam um susto, faziam cara de medo e desviavam, lembra. E no tinha ne-nhuma evidncia de perigo ali, muito pelo contrrio. O clima era muito bom, de superastral. A que me liguei: olha s o preconceito acontecendo na minha frente.

    Entre testemunhar as cenas de intolerncia explcita e tomar conhecimento de situaes estarrecedoras relacionadas queles imigrantes, o fotgrafo levou o tempo exato de chegar em casa e sentar-se diante do computador. Entrei no Google Imagens e digitei: haitianos em So Paulo. No apareceu nenhuma foto dig-na; 99,9% das fotos, digamos assim, eram de haitianos em situa-o vexatria ou envolvidos em problemas. De uma constatao a outra, Chico no demorou a chegar a uma srie de reportagens sobre a Misso Paz, organizao ligada Igreja Catlica, destinada a acolher e prestar atendimento a migrantes, imigrantes e refu-giados. Ao conhecer o trabalho conduzido ali pelo padre Paolo Parise, imediatamente ocorreu-lhe que sua experincia como fot-grafo poderia ajudar a reverter a imagem desses forasteiros como indivduos deslocados. A dignidade que ele se frustrara ao procu-rar, naquela pesquisa pela internet, meses atrs, ele faria questo de deixar impressa nos retratos dos homens, mulheres e crianas, vindos do Haiti e de outros oito pases. c

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  • CIA. HIATO DE TEATRO Tenho adorado tudo o que essa companhia paulistana faz. O trabalho de Leonardo Moreira e seus atores me impressiona muito. Destaque para O jardim e Fico.

    SO MIGUEL DO GOSTOSO (RN) Acabei de voltar desse lugar mgico, que no conhecia. Existe l a Mostra de Cinema de Gostoso, que est em sua terceira edio. Ento, de dia tem diverso garantida para quem se aventurar no Kitesurf ou Windsurf ou s quiser pegar uma praia. De noite, uma tela gigante, ao ar livre, na areia, com lmes que ainda nem entraram em cartaz no Brasil. Incrvel!

    DCADA DE 80, BRASIL. ESTELA UMA JOVEM QUE VIVE OS DRAMAS T-

    PICOS DA ADOLESCNCIA. O MUNDO SE ABRE DIANTE DE SEUS OLHOS E

    ELA S CONSEGUE PENSAR EM IR PARA A CALIFRNIA, ONDE VIVE SEU TIO

    CARLOS, MAS SEUS PLANOS SO DESFEITOS QUANDO ELE DECIDE VOL-

    TAR PARA O BRASIL. FRACO, MAGRO E DOENTE: AIDS. ESSA A HISTRIA

    DO FILME CALIFRNIA, PRIMEIRO LONGA DE FICO DE MARINA PERSON,

    QUE TRAZ NO ELENCO CAIO BLAT, PAULO MIKLOS E VIRGINIA CAVENDISH,

    ALM DOS JOVENS CLARA GALLO E CAIO HOROWICZ. ERA UM PAS QUE

    SE ABRIA POLITICAMENTE DEPOIS DE 20 ANOS DE DITADURA, ONDE FLO-

    RESCIA O ROCK BRASILEIRO E CUJA GERAO TEVE AS PRIMEIRAS EXPE-

    RINCIAS SEXUAIS EXATAMENTE QUANDO A AIDS FOI DESCOBERTA. PARA

    MIM, ERA MUITO IMPORTANTE QUE ESSA QUESTO ESTIVESSE PRESENTE

    NO FILME. APESAR DE MARINA TER VIVIDO A ADOLESCNCIA MOSTRADA

    NO LONGA, ELA GARANTE QUE NO SE TRATA DE UM RETRATO DE SUA

    HISTRIA PESSOAL. NO UM FILME AUTOBIOGRFICO, MAS TEM MUI-

    TOS ELEMENTOS AUTOBIOGRFICOS. MUITAS SITUAES QUE ESTO NO

    FILME ACONTECERAM COMIGO OU COM PESSOAS PRXIMAS A MIM... MAS

    A ESTELA A MINHA CARA, N? ISSO NO FOI DE CASO PENSADO. (RV)

    VINICIUS CALDERONIUm multiartista. Msico supertalentoso! Ele faz parte da banda 5 a Seco e tambm tem um trabalho solo muito consistente. Adoro todos os discos dele. E, como se no bastasse, ainda autor e diretor de teatro! Sou superf de suas peas No nem nada, que vi quatro vezes, e rr, que vi duas vezes.

    JOHNNY HOOKER Um cantor, compositor e performer incrvel. Sou apaixonada pelo Johnny, vou a todos os seus shows! O disco de estreia Vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito sensacional. Se tiver um show de Johnny perto de voc, no perca!

    GAROTA, EU VOU PRA CALIFRNIA!

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    BOI NEON, DE GABRIEL MASCAROFilme lindo, que ganhou o prmio

    principal no Festival de Cinema do Rio. Uma viagem ao mundo das vaquejadas

    com Juliano Cazarr inspirado. Alis, destaque para todo o elenco, Maeve

    Jinkings e a pequena Alyne Santana.

    | preferidas | marina person