Revista Maruí nº 0

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Edição #0 - Ano 1 Distribuição Gratuita Agosto de 2014

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Edição piloto de revista sobre a cena artístico-cultural capixaba protagonizada por grupos e iniciativas que atuam de maneira colaborativa. Com a prévia de algumas seções do projeto da publicação, a Revista Maruí nº 0 traz as dicas culturais de Alê Bertoli, Fepaschoal, Juliana Gama e Lívia Corbellari, apresenta o trabalho do ilustrador Kael Kasabian e traz um artigo da pesquisadora Renata Ribeiro sobre a problemática dos espaços públicos de arte de Vitória. A edição é encerrada com uma extensa entrevista com Rafael Miranda, o Feijão, militante dos Direitos Humanos e membro fundador do grupo de cultura afro-brasileira Kisile.

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Edição #0 - Ano 1Distribuição GratuitaA g o s t o d e 2 0 1 4

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2 - Revista Maruí #0

É possível perceber a presença da dinâmica colaborativa na atuação de diversas iniciativas culturais no território do Espírito Santo. Genericamente chamados de “coletivos”, essas experiências apresentam formas de organização distintas e se expressam por meio de inúmeras linguagens. Esses grupos têm instituído uma rede onde suas criações circulam, movimentando uma cena cultural própria por meio da oferta de produtos e serviços culturais. Diante dessa efervescência, a Revista Maruí surge para ser um espaço de visibilidade para essas produções.

A difusão cultural passa, necessariamente, pela circulação de conteúdos comunicacionais, pois é dessa forma para que os produtos artístico-culturais chegam a seus públicos e passam pelo crivo da crítica. Este veículo é uma aposta na descentralização da produção artístico-cultural e quer contribuir com o democratização dos bens culturais.

A Revista Maruí é também resultado do trabalho colaborativo, pois incorpora essa lógica de criação em todo o processo editorial. Nesta edição, apresentamos uma prévia das seções que fazem parte do projeto da publicação e contamos com a participação de nossos primeiros colaboradores.

Coletivo Maruí

EDITORIALEXPEDIENTE

Equipe Técnica:

Amanda Brommonschenkel

Carolina Ruas

Muriel Falcão

Paulo Gois

Paulo Prot

Thais Apolinário

O Coletivo Maruí realiza atividades culturais pautadas pela colaboratividade e com foco no protagonismo de outros coletivos e iniciativas artístico-culturais

capixabas.

facebook.com/[email protected]

Colaboradores:

Fepaschoal

Juliana Gama

Lívia Corbellari

Alê Bertoli

Renata Ribeiro

Kael Kasabian

Revista Maruí

Projeto Editorial – Paulo Gois Bastos (MTB/ES 2530)

Projeto Gráfico - Paulo Prot

RevistaMaruí edição nº 0

Edição - Carolina Ruas e Paulo Gois Bastos

Diagramação e Finalização - Paulo Prot

Fotografia - Amanda Brommonschenkel

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Revista Maruí #0 - 3

Colaboradores

Alê Bertoli é artista, educadora e integrante do Grupo Z de Teatro.

Amanda Brommonschenkel

ThaisApolinário

Carolina Ruas

PauloGois

MurielFalcão

PauloProt

Lívia Corbellari é jornalista cultural no Século Diário e colaboradora do programa de rádio Tardes Infinitas. Arrisca-se na crítica literária no blog livrosporlivia.com

Fepaschoal é compositor, músico, produtor e membro fundador do Expurgação, coletivo artístico orientado pelo princípio da colaboratividade.

Renata Ribeiro dos SantosÉ doutoranda de História da Universidade de Granada. Pesquisa arte contemporânea da América Latina.

Juliana Gama é estudante de jornalismo, cineclubista, moradora e articuladora cultural de Cariacica.

Kael Kasabian é a ilustrador autodidata com criações expostas em diferentes estados brasileiros e trabalhos veiculados em publicações de circulação nacional.

Coletivo Maruí

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4 - Revista Maruí #0 Alê Bertoli - PRATELEIRA

Mesas Falam e se Movem - Confraria de Teatro

A peça de teatro, escrita por Ricardo Inham e dirigida por Luiz Fernando Marques, fala do conflito de gerações a partir de histórias de mães e filhas. Aqui chamo atenção para a forma como o grupo se apropriou do espaço de encenação. Pelo fato de não estar necessariamente em um teatro, a peça abre a possibilidade de sensibilizar o espectador para um outro tipo de relação, que não aquela passiva da caixa fechada e escura. E essa interação me agrada, pois o espectador se percebe cúmplice, não de uma possível história ou fábula, mas sim do próprio artifício da encenação.

Pó de Ser Emoriô - Pó de Ser Emoriô

Quando conheci o grupo todo, o que me chamou a atenção foi perceber pessoas com características individuais tão marcantes e diferentes entre si. E como elas iam se incorporando ao processo na construção de algo onde tais facetas estejam tão entrelaçadas quanto diluídas na criação. Das ideias comuns e das ideias contraditórias. Da forma como cada um vivencia a música e a vida. Tudo misturado pra dar caldo. E tem dado! O primeiro álbum da banda traz em cada faixa a maturação desse trabalho, das escolhas que fizeram ao longo desses poucos e intensos anos, das parcerias e das referências. O CD é todo lindo! A capa, as faixas, os encaixes e suas sequências ao deixarmos o disco rolar. É pra ouvir do começo ao fim, nessa ordem. Redondinho!

Abrigo ao Sol - Emerson Evêncio

O curta-metragem Abrigo ao Sol fala de espera, solidão, despedida e encontro. A personagem é uma senhora interiorana, recém viúva que se vê as voltas em seus afazeres cotidianos, vivendo todos os dias os gestos construídos ao longo da vida. Porém, seu olhar evidencia a mudança, o encontro consigo mesma, o desejo rebrotado no peito. A direção é sensível, a fotografia é belíssima e a atriz impecável em cada ação. Nos revela um mergulho silencioso para a realização do desejo. Que não se percebe, mas que está aí, chegando, pulsando em nós.

MÚSICA

AUDIOVISUAL

TEATRO

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Revista Maruí #0 - 5PRATELEIRA - Fepaschoal

Pedal - Ramon Zagoto

Me identifiquei de cara com a série, porque eu também sou um ciclista que encara os obstáculos e riscos de uma cidade com, ainda, poucas políticas públicas eficientes para o incentivo do uso da bicicleta como meio de transporte. A série mostra, com sensibilidade e bom gosto, imagens e depoimentos de pessoas que optaram pelo uso da ‘magrelinha’ para locomoção própria na cidade de Vitória.

Grupo Z de Teatro

É difícil sair de um espetáculo do Grupo Z sem uma certa inquietação. Ver o grupo ali de pertinho, ouvir o som de cada gesto, sentir o cheiro e ficar um pouco hipnotizado por aqueles corpos em movimento é uma experiência sinestésica que me fez questionar o que é dança, o que é drama e o que é teatro. Um espetáculo em especial que mexeu comigo foi Isso não é flamengo.

Exposição “Jala” - Huemerson Leal

Huemerson é um dos artistas mais versáteis e geniais que eu conheço. Não é só por ser amigo dele que estou indicando-o. Ele é um ‘puta’ músico, baterista e percussionista, mas neste texto vou falar mais sobre o artista plástico. Huemerson recentemente mostrou seu trabalho na exposição Jala, realizada na sede do coletivo Underground do Underground. Nessa exposição pode-se apreciar pequenas gravuras feitas com canetas Posca que representam um universo rústico de pescadores, mestres de capoeira, agricultores e elementos da natureza com muita personalidade e traço único.

AUDIOVISUAL

TEATRO

ARTES PLÁSTICAS

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Gotas - Isabela Mariano

Um livrinho agradável de ler e, de tão pequeno, enquanto você espera o Transcol na fila do terminal, é possível ler ele inteiro. E por isso, li umas quatro ou cinco vezes, de tanto que passo pelos terminais. Em Gotas, poesias de Isabela Mariano, li instantes da vida que passam despercebidos e que só através da poesia é possível enxergar: ora é a autora expressando um sentimento pessoal, ora é uma indicação para levantarmos a cabeça e olhar o horizonte com outros olhos. Para quem publicou um livro aos 21 anos de idade, creio que muita coisa ainda pode vir da autora.

Aventura - Grupo Moxuara

O Grupo Moxuara está na estrada há 23 anos, e suas canções sempre falam de coisas positivas e nos fazem experimentar sentimentos bons, além de trazerem uma reflexão de como vivemos e tratamos o mundo e as pessoas que convivem conosco. Aventura, quarto álbum do grupo, conta com a participação de dois músicos bolivianos que engrandecem ainda mais o trabalho do Moxuara. Quem gosta de conhecer diferentes estilos musicais, vale a pena ouvir.

Sinal Vermelho – Cristina Margon e Naiara Bolzan

“O palco é a rua, o ingresso uma moeda, os expectadores, quem está passando”. Um excelente documentário sobre a Arte de rua na Grande Vitória. Sinal Vermelho, de Cristina Margon e Naiara Bolzan, nos apresenta a arte de rua através da visão do próprio artista. Nos leva a quebrar preconceitos em relação a esse tipo de arte e a refletir sobre o modo de vida desses artistas, que pensam um modo de viver o mundo bem diferente do nosso.

Juliana Gama - PRATELEIRA

AUDIOVISUAL

MÚSICA

LITERATURA

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Veneno Paraíso - João Chagas, Isabela Bimbatto e Ayla Lourenço

Veneno Paraíso é uma explosão de cores, rabiscos, formas, texturas e letras. Mas todo esse caos é organizado para contar a história de um casal peculiar que nos é apresentado antes do livro começar. A história em quadrinhos, que não é estruturada em quadros, obedece às próprias regras e extrapola a página formando verdadeiros painéis independentes. Os quadros se misturam e o texto é como um guia em primeira pessoa. Apesar de ser um pequeno episódio, as imagens são tão vivas que realmente passam a impressão de movimento, como num filme. A riqueza de detalhes lhe força a ficar muito tempo nas páginas, para observar cada nuance desse filme psicodélico – ou melhor, sonho psicodélico.

Inabitáveis - Ín pares Cia de dança

O corpo é o nosso objeto de prazer e dor, e toda essa fragilidade e força do corpo humano é exposta no espetáculo Inabitáveis. Nesse caso, o protagonista é o corpo masculino. Dois homens se entrelaçam e contam uma história de amor e/ou de desejo por meio da dança. A coreografia de Gil Mendes consegue colocar lado a lado a leveza e a violência, o medo e a paixão. Esses corpos às vezes se apresentam apenas como um objeto erótico e belo outras vezes demonstram todo o peso e a intensidade da relação entre dois homens. Nessa dança, os atores tiram a roupa no palco, mas queM sai nu e despido de preconceitos é a plateia.

My Magical Glowing Lens (EP) – Gabriela Deptulski

As lentes mágicas de Gabriela Deptulski convertem o som em imagem. Com uma voz sussurrada que se mistura aos chiados e uma guitarra distorcida, Gabriela consegue criar uma atmosfera etérea com as músicas do seu despretensioso projeto musical. My Magical Glowing Lens é uma “banda de uma mulher só”, como a própria realizadora define. As letras falam de vazio e de solidão, mas sem a angústia e a melancolia que, geralmente, esses temas carregam. Apesar das poucas faixas, o EP é um projeto intrigante e sedutor produzido com poucos recursos, mas muita criatividade.

PRATELEIRA - Lívia Corbellari

QUADRINHOS

MÚSICA

DANÇA

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Aos 28 anos e nascido em Santos (SP), Kael Kasabian, desenvolve trabalhos de ilustração desde 2005. Autodidata, aprendeu a desenhar com revistas e livros. Teve trabalhos expostos em Cuiabá (MT), São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG), já veiculou ilustrações na revista Zupi e foi o ilustrador do livro “A Estrela Mecânica”, de Tiago de Melo Andrade, publicado pela Editora Melhoramentos.

Uma característica das criações nos trabalhos de Kael é o detalhamento anatômico de corpos de pessoas ou de animais com muitas cores. “Anatomia sempre foi minha paixão, mas dava muito valor às cores. Ultimamente sinto que elas é que dão corpo à obra. Fazer o jogo de cores com o uso de anatomia, mesmo que distorcendo-a, acabou por ser minha atividade predileta”, explica o artista.

Sobre o seu processo de criação, Kael conta que após a primeira ideia é feito um esboço da ilustração: “depois, aquilo fica cozinhando na minha cabeça e na gaveta. Seleciono cores que acho que combinam, penso no tamanho que ficaria legal e na quantidade de referências que posso colocar, como símbolos, notícias, trechos de livros ou, simplesmente, sonhos. Mas boa parte é descartada quando já estou no meio da execução, aí fico livre pra fazer o que surge na hora sem ficar preso às om as ideias iniciais. Quando estou de boa, com a barriga cheia e feliz, dificilmente consigo desenhar”.

Kael mudou-se para Iuna (ES) no final de 2007, nas terras capixabas seus trabalhos fizeram parte da Casa Cor Vitória em 2011. Neste mês de agosto, ele abriu sua primeira exposição individual no Espírito Santo dentro da programação de inauguração da Libre - Casa Coletiva em Vitória.

Kael Kasabian

JANELA

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Cena 1: em 1977, Lando, nosso artista co-nhecido de ontem e de hoje, exibiu a obra Galeria de Gente. A tela era um espelho do recém inaugurado Centro de Artes Homero Massena: com seus frequentadores assíduos, o improviso na adequação do espaço. Impor-tante lembrar que a adequação da garagem para se tornar o Centro de Artes havia levado pelo menos dois anos. Se intitulava Centro de Artes porque deveria ampliar suas ativi-dades com uma sala de audiovisual, além da galeria de exposições e uma sala de acervo que abrigaria a coleção da Fundação de Cultura do Espírito Santo. Naquele dia, 31 de março, é inaugurada apenas a galeria, única parte do projeto que foi terminado. Já nem é pre-ciso explicar porque o nome mudou para Galeria Homero Massena nos anos posteriores.

Enquanto em outras cidades do país museus e galerias dedicados a produção de arte mo-derna e contemporânea se encontravam solidamente desenvolvidos neste período, em Vitória as incipientes políticas públicas destinadas à promoção e à difusão da arte (de qualquer período) se dissiparam. Depois da federalização da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em 1961, a criação de uma galeria de artes que veiculasse a produção contemporânea era ansiada pela

classe artística local. Alentada por promes-sas governamentais que não se cumpriram, a classe reivindicou um espaço mais adequado à exibição do que o foyer do Theatro Carlos Gomes, onde até então se realizavam as mostras. Pela tardança dessa inauguração o Estado se viu pressionado pela que havia se tornado a principal bandeira de luta das pes-soas relacionadas à cultura e às artes e assim nasceu, prematura e com alguns problemas de má formação, a Galeria Homero Massena.

No que pese a todos estes percalços, o espaço teve uma trajetória singular sendo atualmen-te o espaço mais consolidado e antigo dedica-do a promoção da arte realizada no Espírito Santo. Exibindo artistas de nível nacional e local, a galeria desenhou-se também como a plataforma principal de exibição da produção de arte jovem do Estado. Transcendendo como a vitrine do que se articulava dentro do Centro de Artes da Ufes.

Principalmente por iniciati-vas individuais e de coletivos de artistas, a galeria foi passo a passo se consolidando, am-pliando seu trabalho concei-tual e se profissionalizando como um espaço dedicado à exibição da arte contempo-rânea. Passou dos convites

para expor aos editais de seleção pública, ga-nhando em critério e qualidade das mostras. O espaço possui um extenso acervo da produ-ção de arte do Espírito Santo nas últimas três décadas. Coleção que gera grandes dúvidas quanto a sua utilidade e importância e, por isso mesmo, é uma excelente amostra das políticas públicas desprendidas a esta área.

Cena 2: O Museu de Arte do Espírito Santo (Maes) foi inaugurado em 1998, depois de um conturbado processo de instalação que se inicia em 1988, quando um grupo de artistas locais trabalharam voluntariamente para a

A lei do eterno recomeço

Texto: Renata Ribeiro

“O eterno recomeço sempre torna essa

existência inviável”

ARTIGO

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concepção do espaço. Em 1995, com o edifício parcialmente terminado – o que já começa a ser reiterativo – o museu é inaugurado. Não há orçamentos para terminar o espaço e dotá-lo dos equipamentos básicos para seu funciona-mento – falamos de portas e janelas -, além de não dispor de nenhuma peça de acervo.

Para resumir o conto: até o final do ano se-guinte à sua inauguração, o museu conti-nuava fechado e outra vez é o meio artístico local que sairá a cobrar respostas e soluções do governo do Estado. Pediam que ainda que demorasse, o espaço fosse inaugurado finalizado e com um quadro de profissio-nais completo e especiali-zado. As manifestações ou abaixo-assinados não fo-ram suficientes e o museu foi reinaugurado em 1998 em condições distantes das adequadas: faltava climati-zação, filtros de luz, alarmes e um acervo técnico para as obras. Faltava profissionais de segurança e não foi reali-zada nenhuma seleção para compor o quadro técnico do museu.

Assim, os primeiros anos do Maes foram dedicados a tratar de suprir essas carências básicas, preocupando-se pouco com temas conceituais que seriam desenvolvidos nos anos posteriores, ainda que superficialmen-te. Em que pese às dificuldades, o museu che-gou a alcançar logros realmente importan-tes, realizando exposições de artistas locais, nacionais e internacionais com trabalhos notórios realizados nas áreas educativas e de formação de público. Porém continua sendo um espaço expositivo carente da construção de um perfil identitário e onde a falta de linearidade no calendário, nos profissionais e nas propostas afetam sua concepção como um espaço sólido de difusão da arte.

Cena 3: O Cais das Artes surge com um espe-táculo na colocação de sua pedra inaugural, como o Guggenheim capixaba. O espaço que de uma vez por todas nos colocará no mapa de circulação das grandes exposições. Não se sabe bem o que vai ser exibido, que tipo de exposições, se terá acervo ou de onde virá esse acervo. Primeiro construímos e depois daremos a identidade. Mas bem, de uma suposta inauguração em 2011, passamos a 2012 com a obra embargada e notas na im-prensa, e agora vamos esperar a ver quando em nosso Cais será possível ancorar algo (que ainda não se sabe bem o que é).

Em loop: A lista de tropeços dos espaços expositivos ca-pixabas poderia seguir. As imagens se repetiriam mais ou menos sempre em uma mesma lógica de improviso, falta de políticas sérias e li-nearidade. Depois a classe artística protesta. Os espa-ços então devem amoldar-se e encontrar as gretas onde possam desenvolver seu tra-

balho sem grandes confrontos.

O que salta aos olhos é a falta de linearidade ou mesmo de uma política específica para a inserção da arte e dos artistas – os que são formados ou que produzem no Espírito Santo - em um cenário nacional mais amplo. Dê um nome de “artista capixaba” que está real-mente cômodo nesse cenário. Isto acontece, em parte, pela simples razão da carência de instituições capazes de se fazerem notar ou de se insinuarem em um diálogo cara a cara a nível nacional. Ou, de, ao menos, termos uma instituição que se mantenha, com uma prudente regularidade e coerência, de portas abertas para os programas expositivos de arte contemporânea. O eterno recomeço sempre torna essa existência inviável.

“Salta aos olhos a falta de linearidade ou de uma política

específica para a inserção da arte e dos artistas em um cenário nacional

mais amplo”

ARTIGO

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O acendedor de belezas

Em 2013, Rafael Nascimento Miranda, mais conhecido como Feijão, foi um dos prota-gonista de embaraços públicos do Governo do Espírito Santo diante da pouca eficá-cia de suas políticas sociais e de direitos humanos, manifestada no autoritarismo policial durante as manifestações daquele ano. Aos 34 anos, casado e pai de quatro filhos, três meninas e um menino, Feijão traz uma história de militância que se con-funde com a da própria da família, é crítico em relação à política institucionalizada e pensa o cotidiano enquanto importante espaço de transformação social.

Ele, juntamente com mais de 60 pessoas, foi detido durante um protesto em 19 de julho de 2013. Sob a acusação de Depreda-ção de Patrimônio Público e de Formação de Quadrilha, chegou a ser preso no Pre-sídio de Viana. Vítima do autoritarismo estatal, durante os quatro dias que ficou encarcerado, pode viver a já conhecida constatação de que a população carcerária brasileira é majoritariamente negra.

Em setembro de 2013, na abertura da III Conferência Estadual de Promoção de Igualdade Racial, Feijão, com o Alvará de Soltura na mão, expôs sobre a arbitrarie-dade de sua prisão e colocou o Governador do Estado Renato Casagrande, presente no evento, em uma situação vexatória diante do descompasso entre seu discurso e o respeito aos direitos humanos.

Cerca de dois meses depois, acontece um outro encontro com o Governador durante a entrega do Prêmio Estadual de Direitos

Humanos, reconhecimento concedido pelo Conselho Estadual de Direitos Hu-manos (CEDH). Contemplado com a pre-miação, Feijão se recusou a recebê-la das mãos do Governador e pediu que a entrega fosse feita por Gilmar Mendes, presidente do CEDH, expondo, novamente, a atuação do Governo ao constrangimento público.

“O prêmio foi uma indicação da sociedade civil, por isso, fizemos questão que a socie-dade civil nos entregasse e não o represen-tante do Estado. Aquele reconhecimento foi devido a visibilidade que as manifesta-ções geraram, portanto o prêmio não era meu, ele simbolizava todo um povo que durante séculos vão às ruas reivindicar, manifestar e lutar por direitos. São vários os companheiros que ainda estão respon-dendo a processos na justiça, inclusive eu, numa clara criminalização dos movi-mentos socias, ou seja, receber um prêmio de Direitos Humanos das mãos de quem viola esses direitos não condiz com que eu acredito. Era totalmente incoerente aceitar o prêmio das mãos do Governador ”.

Feijão também é membro fundador do Gru-po de Cultura Afro Kisile, iniciativa que, desde 1995, desenvolve atividades visando ao resgate e à valorização da cultura afro-brasileira . Palavra banta, Kisile significa “aquele que ainda não tem nome”. Essa não nominação também atende à perspectiva dos integrantes do grupo de não se institu-cionalizar formalmente, criando funções hierarquizadas e lutar por aqueles que ain-da não tem nome dentro dessa sociedade.

A militância começa em casa

Feijão é o segundo filho de uma família de quatro irmãos. Sua mãe, Dona Rosa tem 64 anos, foi professora, nascida no Morro do Romão, em Vitória, parou de lecionar

Texto: Paulo Gois BastosFotos: Amanda Brommonschenkel

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para cuidar dos filhos, mas esteve sempre envolvida com movimentos populares e de Direitos Humanos, principalmente através das ações das Pastorais da Igreja Católica. Já o pai, Seu Xexéu, aos 70 anos, sempre foi pescador tradicional de Jacaraípe e tem uma peixaria.

Feijão recorda que desde bebe , já acompa-nhava a mãe junto com os irmãos em ações de militância. “Na década de 1980, havia muitas ordens de despejo contra as ocupa-ções de sem teto, greves de trabalhadores e várias violações de Direitos Humanos que fizeram um grupo de pessoas a criarem uma entidade para defender esses direi-

tos, nascendo assim o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), e nossa mãe nos carregava para tudo e qualquer lado com ela. Nossa casa sempre foi muito frequentada, ao ponto de alguns a consi-derarem como um quilombo, o que real-mente faz sentido devido à diversidade de pessoas que lá frequentam, meu pai nunca conseguiu fazer comida pra pouca gente. Sempre fomos acostumados a viver nesse contexto de estar com muitas pessoas, tanto nas manifestações como em casa”.

A condução das tarefas domésticas eram divididas entre Feijão e seus irmãos se-guindo uma resolução prática e explícita do feminismo de sua mãe. “Minha mãe dizia que se tivesse uma filha, ela não iria

ser explorada nem maltratada por nós, filhos homens, pois não existia essa coisa de tarefa de mulher e que ela nos educou para sermos gente e não machos”.

Hoje, Feijão continua a atuar junto a mo-vimentos sociais e cuida dos dos filhos dividindo, de maneira igualitária, essa responsabilidade com sua esposa Galdene Santos, com a qual está junto há onze anos. “Fui formado em um contexto cercado de mulheres, elas me educaram politica e cul-turalmente. Elas sempre andaram e estive-ram do meu lado. Depois, fui presenteado com mais quatro mulheres, que são minha companheira e minhas três filhas, e com um menino que também está aprendendo a viver com elas e a eliminar o machismo que a sociedade impõe diariamente. Ele terá que aprender a não se colocar como superior nem dono de nenhuma mulher. O machismo é uma coisa tão introjetada no homem que, desde pequeno, aprende a se colocar como superior em relação à mulher e, quando estabelece um relacionamento, ainda trata a mulher como uma proprieda-de sua. A materialização desse sentimento de superioridade e de posse é o que causa a morte de muitas companheiras em sua luta pela liberdade. O mérito de dar essa entrevista é muito mais das mulheres que passaram pela minha vida, do que meu, pois elas me ensinaram e continuam a me ensinar. Os processos de lutas das mulheres são maiores que os de nós homens, porém nossas vozes são mais grossas, somos gran-des e fortes e, muitas vezes, não queremos largar o osso para que nossas companheiras sejam realmente as protagonistas”.

Família comunidade

Nascido e criado em Jacaraípe, na Serra, Feijão acompanhou de perto o rápida e desordenada expansão urbana da região,

ENTREVISTA

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a intensificação da violência e o fim da vida comunitária. Atualmente a região de Jacaraípe figura entre os lugares mais vio-lentos da Região Metropolitana da Grande Vitória, vitimizando principalmente os jo-vens negros. “A relação de vizinhança não é mais como antes, os muros cresceram e você vive a sua vida sozinho esta é opção da maioria dos moradores. Antes, a comu-nidade inteira cuidava da gente, tínhamos vários pais, mães e irmãos que também nos educaram. Hoje queremos viver apenas o nosso mundo, o das minhas questões individuais, questionamos a violência a todo momento, tentando nos proteger dela de todas as formas, porém não percebemos que, cada vez mais, nos afastamos cada do humano e atraímos a vio-lência para perto ”.

Com uma casa sempre mo-vimentada, Feijão convi-veu com outros “irmãos” temporários. “Alguns eram meninos em situação de rua ou que ne-cessitava de algum tipo de proteção que minha mãe acolhia. A nossa casa sempre foi e continua a ter as portas abertas para comunidade, era onde todos os meninos da comunidade iam brincar. Eu e meus ir-mãos fomos criados dentro desse contexto coletivo e comunitário”.

Para Feijão, o empoderamento das popu-lações das periferias passa pela afirmação da negritude e pela retomada desse ethos comunitário. “Eu sempre questionei essa ideia de que os jovens entram para o trá-fico devido à educação familiar. Isso é mentira e uma forma de culpabilizar uma mãe e uma família. Nunca atribuímos essa responsabilidade a um sistema de morte e muito menos a nós, todos passam a dizer que ela foi omissa na educação do fllho que ela perdeu. Olhamos o tráfico como grande mal da sociedade, mas estes jovens

o veem como trabalho. Não deixa de ser realmente um mal, mas quem serão os verdadeiros responsáveis por este mal? Não quero fazer apologia às drogas e ao tráfico, mas questionar a contradição des-se Estado. Dizemos que os jovens têm que arrumar um trabalho digno, mas o que é dignidade? É acordar às cinco da manhã para trabalhar na indústria ou no comer-cio, enfrentar oito horas de trabalho, sair exausto para, no outro dia, fazer isso de novo e, no final do mês, receber um salário que mal dá para pagar um aluguel? O tráfi-co de drogas é tanto um problema quanto o tráfico de empregos formais. Minha maior preocupação com o tráfico de drogas é o confronto gerado pela polícia entre os pró-

prios traficantes fazendo, muitas vezes, a comunidade sofrer pesadas consequên-cias. Este, ao meu ver, é um problema que se resolveria com a liberação das drogas. A droga gera dois proble-

mas para o Estado Brasileiro, um de saúde e outro de segurança publica. Atualmente, 70% dos jovens mortos em homicídios es-tavam, de alguma forma, envolvidos com as drogas e são, em sua maioria, negros. De uma maneira quase exclusiva, a droga é tratada como uma questão de segurança pública justificando os altos gastos do Es-tado nessa área. Eliminando o problema de segurança, o Estado pode investir mais em políticas de saúde e de educação”.

Afirmar-se negroUma das maiores disputas dos movimentos raciais acontece no campo do simbólico, pois é no imaginário que são perpetudos os esteriótipos racistas onde o negro nunca ocupa o papel de protagonista. É a partir da valorização de aspectos da cultura afro-brasileira que a identidade negra passa a

“Quem vai gostar de ser aquilo que

sempre foi tido como ruim?”

ENTREVISTA

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ser reconhecida. “O jovem não se vê como negro, assim como muitos velhos e crian-ças também não se veem como negros. Es-sas pessoas não têm culpa disso. Quem vai gostar de ser aquilo que sempre foi mos-trado como ruim? A história sempre apre-senta o negro como uma pessoa passiva, que não luta por sua liberdade, que aceitou ser escravo e que foi liberto por brancos. A escola continua a representar a África como o lugar da pobreza e da miséria, onde o negro é apresentado como uma coisa só, sem diferenças étnicas e culturais”.

dificulta a reconstrução de suas raízes. A identidade cultural é um instrumento para reivindicar direitos e políticas de reconhe-cimento. O negro precisa ter acesso à sua verdadeira história e o Estado Brasileiro tem um dívida com esse povo. Há uma histórica negação de direitos que nunca é assumida, por isso são muito importantes conquistas com a Lei nº 10.639, as cotas raciais entre outras ações, é revolucionar uma sociedade que insiste em não enxer-gar o racismo no Brasil”.

ENTREVISTA

Atuante desde 1995, o Grupo de Cultura Afro Kisile realiza ações que promovem a valorização da cultura afro-brasileira e o empoderamento comunitário.

Em grande parte, o êxito da luta racial se dá quando os sujeitos oprimidos por sua origem étnica passam a afirmar po-liticamente sua identidade. “Como vou culpabilizar o menino por ele não se con-siderar negro? Se, quando criança, ele foi chamado de macaco, de urubu e de um monte de apelidos pejorativos. Como ele vai se interessar pela história de seus an-cestrais e de suas raízes se a escola só fala do mundo europeu? Se nos é negado a consciência do nosso processo históri-co, ficamos perdidos no atual contexto. Veja, por exemplos outras culturas de imigrantes aqui no Estado, como a alemã e italiana. Eles têm a sua história e suas raízes, embora violadas em alguns mo-mentos da história, e assim conquistaram seus direitos. Os povos africanos foram arrancados de uma forma tão brutal o que

Feijão questiona a eficácia da institucio-nalização da políticas participativas: “não acho que devamos parar de lutar nesses espaços como conselhos e conferências. Sinceramente, na democracia liberal em que vivemos, não acredito que resultem em soluções, pois são instrumentos que servem para dizer que está sendo feito algo democrático, mas que, no fundo, esse instrumento não se faz valer na prática, pois é altamente banalizado pelos governos que engavetam as decisões coletivas para que sejam discutidas as mesmas coisas nas próximas reuniões ou conferencias. É claro que tivemos avanços, a luta de nossos ancestrais nunca foi em vão, mas não po-demos nos deixar enganar achando que já conseguimos nossa liberdade. A Lei Áurea até pode ser interpretada como um avanço, mas hoje se morre mais negros no Brasil

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do que no período escravocrata. Na escra-vidão, o negro não era considerado gente, era uma mercadoria. E o Senhor não queria “perder” sua mercadoria, pois ela gerava lucro. Não tomamos as mesmas chibatadas do passado, elas se modificaram. Enfrenta-mos mazelas ainda mais pesadas, vide os indicadores sociais e de violência do nosso Estado. Que tipo de violência é essa? Como essa violência é maquiada? O Estado está investindo para garantir que tipo de direi-tos? São perguntas que me faço cotidiana-mente quando vejo um formato de sistema, de educação e de política falidos. Culpa-se o povo por não saber votar e difunde-se a ideia que o povo tem o governo que merece, quando, na verdade, é o governo que não merece esse povo que trabalha, que cons-troi e que confia. Quando falo de governo, não estou falando de partidos ou de pessoas e sim de um modelo democracia construída para beneficiar empresas e não o povo. Não acredito na política institucional, mas acre-dito que temos que usar essas ferramentas conquistadas como forma de delatação para construir uma forma de governo realmente participativo e voltado para o povo”.

Sobre o Kisile

A ideia de criar o Kisile surgiu a partir de uma peça de teatro para a celebração natalina na comunidade Católica de Jaca-raípe em 1995. A iniciativa surgiu a partir de uma ideia do Frei Davi, um religioso negro da Ordem Franciscana. “Foi incen-tivado por minha mãe, queríamos uma espaço para discutirmos sobre cultura negra e negritude. Passamos nos reunir para conversarmos sobre essas questões, para celebrar e para tocarmos músicas, inicialmente só percussão. Com isso, pas-samos a receber convites para participar de eventos pra tocar em outros lugares com a música e a dança”.

Em 1999, o Kisile chegou a manter um curso pré-vestibular com professores vo-luntários voltado para jovens de periferia que funcionou por dois anos, o Educafro. Paralelo a isso, algumas mulheres do grupo passaram a se reunir para preparar e ven-der refeições vegetarianas preparados a partir aproveitamento de alimentos em al-moços comunitários. Esses almoços eram uma das formas de manter o pré-vestibular e de adquirir equipamentos para o grupo.

Hoje o Kisile conta com cerca de 30 pes-soas e tem buscado incentivar o empode-ramento comunitário e o fortalecimento da identidade negra. Ao longo dessas duas décadas, mesmo sem se institucionalizar formalmente, o grupo conseguiu ganhar respeito e legitimidade. “O nosso desejo de mudança, a nossa perspectiva de Direitos Humanos, de feminismo, tem como base a nossa vivência familiar, deixando certo que nosso conceito de família é totalmen-te comunitário. A nossa atuação busca um apagamento do próprio grupo para que a comunidade se desenvolva politicamente sem tutela”.

Sobre a perspectiva da formalização, Feijão tem clareza de suas implicações: “muitas vezes, as fonte de financiamento de projetos sociais limitam a liberdade de ação, cerceiam a construção coletiva e não estimulam a comunidade a criar suas próprias soluções. As coisas chegam para comunidade e não com a comunidade que é percebida como carente e incapaz de construir algo. Ouvi uma frase uma vez que carrego sempre comigo: ‘Belezas são coisas acesas por dentro, tristeza são be-lezas apagadas pelo sofrimento’. Acredito que é nossa missão acender essas belezas apagadas pelo racismo, pelo machismo, homofobia, intolerância religiosa e por outros preconceitos que tanto apagam as belezas humanas. Deixar a tristeza do-minar é matar a beleza de ser humano”.

ENTREVISTA

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