Revista Metis

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MÉTIS: história & cultura LEAL, Jackson da Silva 185 O paradoxo na história do poder punitivo moderno: entre a pretensão sistematizadora e a manifestação usurpadora e totalitária Jackson da Silva Leal * The paradox in the history of modern power punitive: between the systematizing pretension and the expression totalitarian usurper Resumo: Analisa-se a questão da subtração do conflito por parte do Estado na modernidade burguesa ocidental. Assim, busca-se entender como se deu esse processo histórico de construção e, sobretudo, legitimação do Estado como grande guardião da ordem e principal ofendido nos casos de conflito e transgressão das regras estabelecidas pelo próprio paradigma de governabilidade liberal. Para isso se analisa contribuições específicas ao processo de construção deste paradigma societário e, em especial, a problemática da resolução de conflitos e do ius puniendi do Estado, como John Locke e Cesare Beccaria que, entre distanciamentos e aproximações, permitiram que fosse se estruturando o que se conhece contemporaneamente por Estado moderno burguês e punitivo. Frisa-se o esforço em tentar não atribuir significados à história, de forma arbitrária * Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel); advogado inscrito na OAB/RS; mestre em Política Social (UCPel); doutorando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista pesquisador CNPq; pesquisa na área de Sociedade, Sistema de Justiça e Controle Social, na perspectiva da Criminologia Crítica. Membro do projeto Universidade Sem Muros (UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). E-mail: [email protected] Abstract: In this paper we analyze the issue of subtraction of the conflict by the state in modern Western bourgeois. Thus, we seek to understand how was this historical process and, above all, legitimacy of the state as guardian of order and large main victim in cases of conflict and transgression of the rules established by the paradigm of liberal governance. For this we analyze specific contributions that are dear to the construction of this corporate paradigm and in particular the issue of conflict resolution and the ius puniendi the state, such as John Locke and Cesare Beccaria between distances and approaches that have enabled with that was being structured what is known contemporaneously by modern bourgeois state and punitive. Stresses up the effort in trying not to assign meanings the story so arbitrary and in light of contemporary modernity, but rather to

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Edição da Revista Metis do programa de pos-graduação em historia da universidade de caxias do sul, n. 26 v. 13 de 2014, contendo artigo de autoria de jackson Leal, intitulado "o paradoxo na historia do poder punitivo moderno: entre a pretensao sistematizadora e a manifestação usurpadora e totalitária.

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  • MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 185

    O paradoxo na histria do poder punitivo moderno:entre a pretenso sistematizadora e a manifestao

    usurpadora e totalitria

    Jackson da Silva Leal*

    The paradox in the history of modern power punitive: between thesystematizing pretension and the expression totalitarian usurper

    Resumo: Analisa-se a questo dasubtrao do conflito por parte do Estadona modernidade burguesa ocidental.Assim, busca-se entender como se deuesse processo histrico de construo e,sobretudo, legitimao do Estado comogrande guardio da ordem e principalofendido nos casos de conflito etransgresso das regras estabelecidas peloprprio paradigma de governabilidadeliberal. Para isso se analisa contribuiesespecficas ao processo de construodeste paradigma societrio e, em especial,a problemtica da resoluo de conflitose do ius puniendi do Estado, como JohnLocke e Cesare Beccaria que, entredistanciamentos e aproximaes,permitiram que fosse se estruturando oque se conhece contemporaneamente porEstado moderno burgus e punitivo.Frisa-se o esforo em tentar no atribuirsignificados histria, de forma arbitrria

    * Graduado em Direito pela Universidade Catlica de Pelotas (UCPel); advogado inscrito naOAB/RS; mestre em Poltica Social (UCPel); doutorando em Direito na Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC), bolsista pesquisador CNPq; pesquisa na rea de Sociedade, Sistemade Justia e Controle Social, na perspectiva da Criminologia Crtica. Membro do projetoUniversidade Sem Muros (UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos na Universidade doExtremo Sul Catarinense (Unesc). E-mail: [email protected]

    Abstract: In this paper we analyze theissue of subtraction of the conflict by thestate in modern Western bourgeois.Thus, we seek to understand how wasthis historical process and, above all,legitimacy of the state as guardian of orderand large main victim in cases of conflictand transgression of the rules establishedby the paradigm of liberal governance.For this we analyze specific contributionsthat are dear to the construction of thiscorporate paradigm and in particular theissue of conflict resolution and the iuspuniendi the state, such as John Lockeand Cesare Beccaria between distancesand approaches that have enabled withthat was being structured what is knowncontemporaneously by modernbourgeois state and punitive. Stresses upthe effort in trying not to assign meaningsthe story so arbitrary and in light ofcontemporary modernity, but rather to

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    IntroduoO presente trabalho prope-se analisar a questo moderna do

    monoplio da violncia legitimada pelo Direito, o que se denomina deius puniendi; sendo, sobretudo esta a forma que o Estado moderno seutiliza para resolver os conflitos, em oposio a uma suposta guerra detodos contra todos (vingana privada) e, tambm, estandardizando odiscurso humanitrio em face da suposta brutalidade do antigo regime ao menos esses so os argumentos legitimantes.

    Entretanto, a partir do momento em que se centraliza, no Estado,o que um resultado das instituies e dessa construo scio-histricamoderna, as estruturas de governabilidade, e incluso a resoluo dosconflitos a partir da ideia de punio/pena que se verifica uma totalsubtrao do conflito por parte do Estado, que passa a ser o grandeofendido em sua potestade, apresentando-se a infrao mais como umaofensa ao paradigma de organizao social baseada na legalidade, doque propriamente uma preocupao com o todo social, e com acomunidade politicamente organizada. A essa questo, em especfico, que se d ateno no presente trabalho.

    e luz da modernidade contempornea,mas sim, analisar a contemporaneidade esuas estruturas materiais e simblicas, apartir da herana e dos ensinamentospermitidos com o estudo histrico. Opresente trabalho se constri a partir deanlise eminentemente bibliogrfica,buscando-se agregar, com o arcabouoterico-emprico da criminologia crtica,com uma abordagem adensada doprocesso histrico em relao s questesque influenciam na conformao dasinstituies de poder punitivo, naperspectiva de compreender, desvelar edesconstru-las.

    Palavras-chave: poder de punir;modernidade burguesa; criminologiacrtica; confiscao do conflito;

    analyze the contemporary structures andtheir symbolic and material from thelegacy and teachings allowed to historicalstudy. This paper builds on analysiseminently literature, seeking to add, withthe theoretical and empirical critique ofcriminology, with a dense approach ofthe historical process regarding issues thatinfluence in shaping the institutionspunitive power in perspectiveunderstand, deconstruct and revealthem.

    Keywords: power to punish; bourgeoismodernity, critical criminology;confiscation of the conflict;

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    Em termos de organizao do trabalho, no primeiro ponto se analisao processo de formao do sistema penal como se o conhece atualmente.E isso passa por uma abordagem do contexto sociopoltico-jurdico, aofinal do antigo regime e princpio da modernidade quando da difusoinicial da filosofia liberal positivista e como vinha se constituindo ecorroendo o antigo regime, implodindo-o por dentro. Constituindoum rompimento (liberal-positivista) e uma total mudana societal, oque tem efeitos diretos na questo criminal e na resoluo de conflitos,que so totalmente expropriados dos direta e indiretamente envolvidos(ofensor-ofendido-comunidade). Muda tambm totalmente de foco,passando de uma ideia de justia (composio/restaurao) para umaideia de disciplina que se fazia necessria ao novo paradigma desociabilidade marcadamente classista (uma classe em processo dehegemonizao). E, como esse processo passa por um discurso estratgicode deslegitimao e desqualificao da estrutura anterior, qualificando-a como brutal e desumana, arvorando-se em um discurso humanizantepela tcnica (igualitarista).

    No segundo ponto, analisa-se de forma mais detida essa questo domonoplio da violncia e da transmutao da resoluo de conflitos e asdinmicas punitivas e disciplinadoras de uma massa de indivduos queprecisavam ser reeducados para a vida da fbrica (e depois da indstria)e da produo capitalista, incorporando no apenas a ideologia dotrabalho, mas tambm a nova hierarquia social e a condiosubalternizante atribuda/reservada a certos grupos/classes de indivduose a naturalidade (artificial) dessa estrutura.

    Um importante apontamento, e na linha proposta por Paolo Grossi(2010), no se pretende analisar o passado ou a histria luz daexperincia presente acumulada, o que seria uma verdadeira arbitrariedadee uma atribuio leviana de significados, mas, sim, compreender asestruturas presentes luz ou, a partir das experincias, dos ensinamentose da herana histrica.

    Assim, este trabalho se constri como abordagem eminentementebibliogrfica: partir de uma interface entre a criminologia e a histriado direito, mas especificamente trabalhando-se com histria do direito,em especial a filosofia liberal constituidora da modernidade e,principalmente, no que influncia da estrutura de poder punitivo; leiturade alguns e especiais clssicos que orientam essa filosofia, como CesareBeccaria (1764 [traduo e edio 2013]), como pai do direito penal

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    moderno, e John Locke e a filosofia liberal clssica; e, orientado porcontribuies de historiadores como Antonio Manuel Hespanha (2009;1993) e Paolo Grossi (2009; 10); ainda, a partir do acmulo tericoproporcionado pela Criminologia Crtica e sua leitura do sistema penalburgus, classista e sexista, em especial Dario Melossi e Massimo Pavarini(2006), Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004) e a histria daestrutura punitiva moderno-burgus.

    1 Resgate terico-contextual, e poltico ideolgico liberal e o poderpunitivo classista

    Prope-se a difcil tarefa de tentar reconstituir o mapa cognitivo e aestrutura material e simblica que transformaram o sistema penal nainstituio pretensa e falaciosamente resolutora de conflitos, e tambma priso como pena universal e generalizada. Assim, neste primeiro ponto,analisa-se o contexto sociopoltico-jurdico e ideolgico de matriz liberalque, discursivamente, se preconiza como racionalista e empirista, pautadopor um humanismo utilitarista, a fim de legitimar sua construo eestruturao institucional e poltica, em oposio frontal ao paradigmasocietal e organizativo do antigo regime, que passa-se a qualificar comobrutal e desumano.

    Inicia-se, em uma perspectiva periodizada, com a baixa Idade Mdia,que, a partir de Antonio Manuel Hespanha (1993), se pode dividir emdois momentos, como o prprio autor aponta a Idade Mdia pluralistae a Idade Mdia centralizadora/unificadora e seu poder punitivoexacerbado.

    Esse perodo em que Hespanha (1993) chama de Idade Mdiapluralista e que ajuda a desmitificar a ideia de guerra de todos contratodos, em que se funda a concepo de governabilidade centrada nafigura do Estado, e se produz a legitimao e necessidade do poderpunitivo de carter pblico e monopolista da violncia.

    Nesta linha, verifica-se que a inexistncia de uma estruturacentralizada de governabilidade se dava pela construo sociopoltica-cultural e jurdico-plural pautada pela ramificao de poder e orientadapela ideia de comunidade. Assim, a resoluo de conflitos se pautavapor esse iderio da recomposio social, e no pela manuteno ourestaurao de poder. No se fazendo comprovvel, para alm dosdiscursos retricos liberais, o apontamento da guerra de todos contra

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    todos e as acusaes de brutalidade ou incivilidade ideia que se vincula,eminentemente, estrutura societria liberal. Sobre a dinmica daspenas, no antigo regime, Rusche e Kirchheimer escrevem:

    Os diferentes sistemas penais e suas variaes esto intimamenterelacionados s fases do desenvolvimento econmico. Na Alta IdadeMdia no havia muito espao para um sistema de punio estatal.Tanto a lei do feudo quanto a pena pecuniria (penance) constituamessencialmente um direito que regulava as relaes entre os iguais emstatus e em bens. Pressupunham a existncia de terra suficiente paraatender ao crescimento constante da populao sem baixar o nvel devida. (2004, p. 23).

    Perodo que se estende at o sculo XVI, quando se iniciam osesforos de reconfigurao do antigo regime (em srio processo dedesgaste), acredita-se que a partir de um processo de corroso orquestradaa partir da dentro pela nascente filosofia liberal e sua classe. Assim,complementa Antonio Manuel Hespanha:

    Do ponto de vista dos sistemas regulativos e de resoluo de conflitos,esta extenso s periferias do paradigma legalista no se deixa, no entanto,descrever como um processo de harmnico progresso de uma situaode anomia, em que as relaes sociais seriam dominadas pelo caos epelo abuso, para uma outra de primado do direito. Na verdade, ecomo j vimos, o mundo perifrico era um mundo regulado, emborapor tecnologias disciplinares totalmente diferentes da lei,correspondentes s condies sociais a vigentes. A imposio do direitooficial, escrito e legislativo, significou, assim, uma estratgia de dissoluoda ordem perifrica e a sua substituio por mecanismos disciplinarescujas condies de eficincia ano estavam a verificados. Emcontrapartida, os mecanismos tradicionais de regulao e de composiodeixam de poder ser invocados perante os rgos do Estado. (HESPANHA,1993, p. 19).

    Nessa nova configurao, a que Hespanha denomina de Idade Mdiacentralizadora/unificadora, que, paralelamente, constitua todo umaparato cultural, ideolgico, poltico e social, como a produo do ensino,do iderio do trabalho, da centralizao do controle social e da Justia,

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    dos controles de polcia focalizando o monoplio do poder, do direitoe da poltica em mos do Estado no projeto de governabilidade liberal.

    Essa construo social se d a partir do discurso do jusnaturalismo,que se prope a subverter a ideia do teocentrismo; substituir a instituioreligiosa e colocar a figura do homem como centro do processo histrico,tendo na figura do Estado a instituio centralizadora do novo projetode governabilidade. O projeto jusnaturalista era pautado por um discursoque se sustentava em questes como a centralidade do Estado (na figurada monarquia e do rei), no obstante buscasse romper com a deificaoreligiosa, que ainda mantinha os privilgios e a diviso social porestamentos, os quais separavam e naturalizavam (artificiosamente) aorganizao social.

    Com a centralizao estatal comea a ser necessria uma srie deoutras instituies conexas e interdependentes, que proporcionam asustentabilidade deste paradigma de sociabilidade, como a escola (oensino e as universidades); a famlia, como importante instncia deideologizao; o direito, que passa a ser organizado em torno dainstituio legal, e resumido a aplicao e interpretao desta o queMichel Miaille (2005) chama de reduo do direito instncia judicial.E, tambm, na centralizao estatal do poder de punir e do monoplioda violncia, surgem as instncias policiais e a dinmica da punio quepreconiza mais a restaurao do poder do monarca e do status de podercentral, do que a estrutura social; quando, ento, a resoluo de conflitos que se faz totalmente expropriados dos direta e indiretamenteenvolvidos no conflito passa a infligir sofrimento e torna as penas umespetculo com funo de exemplaridade.

    O jusnaturalismo cumpriu importante funo nesse processohistrico, na esteira proposta por Michel Miaille (2005) de (a) ocultaoque diz respeito, em um primeiro ponto, (i) aos privilgios estamentaisexistentes no antigo regime, contra os quais a burguesia se insurge,exaltando a libertao desses (privilgios), que se faziam amarras para ocrescimento e que faziam dos estamentos privilegiados parasitasalimentados (luxuosamente) pela burguesia produtora, industriosa eem ascenso de poder; e em um segundo ponto (ii) esconder a passagemde uma estrutura organizada em estamentos baseados em um podersupra-humano de orientao declaradamente religiosa, para passar a umdiscurso naturalizante e universalista (com pretenses de igualdade eliberdade), mas que, na realidade, no informa a quem beneficia (a

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    ascendente burguesia como classe no poder). Como resume Miaille(2005, p. 273) sobre a nova estrutura de governabilidade que saiexclusivamente, mas tem como o epicentro e formatao mais acabadana Revoluo Francesa, o direito do homem egosta, da sociedadeburguesa fechada sobre seus interesses. Esquecendo os homens concretos,ele limita-se a proclamar princpios que no tem, excepto para aburguesia, qualquer espcie de realidade. Estrutura jurdica da qualresulta a institucionalidade de controle social, que se prope neutrapela tecnicidade (generalidade e abstrao), e que redunda em totaldistanciamento da realidade social desigual e opressora legitimando-se e naturalizando-a.

    E, ainda, como (b) arma de combate que se refere ao discursojusnaturalista, como sendo a articulao que visava subverter a ordemestamental do antigo regime (de privilgios), no qual a burguesia no seencontrava contemplada e que, atravs de uma estratgia naturalistaque se propunha como captao de uma realidade dada (os supostosdireitos naturais), contrapunha a ontologia de uma ordem definida pelosmitos-deuses, mas que, no fundo, segundo Miaille (2005), no passavada projeo de um novo paradigma de sociabilidade marcadamenteclassista e operacionalizado por argumentos (liberdade e igualdade),sobretudo de matiz ideolgico e utilitrios pauta liberal, na construode sua nova ordem burguesa capitalista.

    Paolo Grossi analisa esse processo de transformao societal, dairrupo da sociedade burguesa, ainda que se tenha constitudo pordentro, corroendo a antiga estrutura e que na passagem do medievalismopara a modernidade, atravs do discurso jusnaturalista, produz onascimento do indivduo atomizado e sujeito burgus individualista:

    Para essa acepo de individualista, Grossi escreve: a nova visoantropolgica que emerge j de um modo claro nas grandes disputasteolgico-filosficas do tardo sculo XIII e das primeiras dcadas dosculo XIV representa a tentativa de isolar o mundo e sobre o mundoum indivduo que encontrou a fora (ou assim ao menos presume) dese libertar de antigas prises; sujeito presunoso, que quer encontrarsomente no interior de si mesmo o modelo interpretador da realidadecsmica e social. (GROSSI, 2010, p. 60).

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    A partir de John Locke (1978), verifica-se que ele diferencia o estadode natureza da sociedade civil e poltica, pela constituio de umaorganizao oficializada e centralizada e erigida (operacionalizada), apartir da imprescindvel instituio da lei,1 como centro do Direito etendo no Poder Judicirio, a estrutura institucional nuclear. Estaincumbida da resoluo de conflitos e da proteo, mormente dapropriedade como o prprio autor refere, sendo esse direito (depropriedade) um direito no inato, mas natural, em que odesenvolvimento se faz como obrigao divina para a organizao e oaprimoramento social e comunitrio.

    Na mesma linha, se faz relevante a ideia de Locke, relativa propriedade privada, que se constitui a partir da ideia de trabalhohumano, que altera a coisa em estado natural, melhorando-a, e a partirde ento o agente modificante alcana o direito de propriedade sobre acoisa (e tambm sobre a terra) que, segundo o autor, sem as modificaese os aprimoramentos, no proporcionam o bem-estar a que esto aptase oferecidas em quantidade abundante na natureza. E ainda, a funode produzir e evoluir se constituiria como uma obrigao divina, impostapela ddiva da vida e da abundncia natural (em estado bruto)proporcionada pela divindade.

    Acrescenta-se, ainda, que na proposta de Locke (1978), apropriedade tambm encontra fundamento, na medida em que os bensexistem em quantidade e abundncia, que no seria prejuzo para qualqueroutro indivduo que, com a mesma diligncia e aplicao, no conseguiria.E assim, a propriedade da terra, da mesma forma, que se encontrampassvel de frutificao para qualquer homem que assim desejasse etrabalhasse para tanto. Se fazendo como um discurso profundamenteretrico, e quase como nefelibata, distante da realidade, de expropriaese pilhagens por parte dos grandes produtores e proprietrios de terras ede homens (escravos), que eram feitos mquinas bpedes de produoburguesa extenuante.

    John Locke fala sobre a sociedade poltica:

    Os que esto unidos em um corpo, tendo lei comum estabelecida ejudicatura para a qual apelar com autoridade para decidircontrovrsias e punir os ofensores, esto em sociedade civil um com osoutros; mas os que no tem essa apelao em comum, quero dizer,sobre a Terra, ainda se encontram no estado de natureza, sendo cada

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    um, onde no h outro, juiz para si e executor, e que constitui,conforme mostrei anteriormente, o estado perfeito de natureza. E poressa maneira a comunidade consegue, por meio de um poder julgador,estabelecer que castigo cabe s varias transgresses quando cometidasentre os membros dessa sociedade que o poder de fazer leis , bemcomo possui o poder de castigar qualquer dano praticado contraqualquer dos membros por algum que no pertence a ela que opoder de guerra e de paz , e tudo isso para preservao da propriedadede todos os membros dessa sociedade, tanto quanto possvel. (LOCKE,1978, p. 67).

    Assim, se estrutura tambm a concepo de igualdade de Locke, naqual, todos os indivduos seriam iguais, sendo resultado da aplicao decada um o sucesso individual, e o insucesso ocasionado pelo vcio, pelapreguia, pela ociosidade.

    Nesta linha, tendo-se o sistema penal como o grande protetor dapropriedade e esta como sendo o resultado do trabalho e do potencialhumano transformador. Diante disso, dos anseios de igualdade, em umasociedade em que a desigualdade resultado de patologias individuais,que devem ser definidos como crime, e assim combatidos seus autores.Escreve Cesare Beccaria:

    Impossvel evitar todas as desordens, no universal combate das paixeshumanas. Crescem elas na proporo geomtrica da populao e doentrelaamento dos interesses particulares, que no possvel dirigiremgeometricamente para a utilidade publica [...] por esse motivo, anecessidade de ampliar as penas vai sempre aumentando. [...] Essafora semelhante a da gravidade, que nos impele ao bem-estar, s serefreia, na medida dos obstculos que lhe so levantados. Os efeitosdesta fora so a confusa serie de aes humanas. Se estas de chocam ese ferem, umas com as outras, as penas, a que eu chamaria de obstculospolticos, impedem-lhe o efeito nocivo sem destruir a fora motriz, que a prpria sensibilidade inseparvel do homem. E o legislador comohbil arquiteto, cujo oficio e opor-se s diretrizes ruinosas da gravidadee pedir a colaborao das que contribuem para a firmeza do edifcio.(BECCARIA, 2013, p. 42).

    Assiste-se elevao do patrimnio e da propriedade privada (esta a categoria conceitual-chave para compreender o nascimento da

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    modernidade), como grande bem a ser tutelado e protegido pelanovssima construo institucional (organizada), definida como sistemapenal e sua muito prxima relao entre o delito que se manifesta comoao (delituosa) e como condio (de ser miservel) e, tambm como,faz a relao entre classe e a governabilidade burguesa em torno dopatrimnio como estrutura material e simblica fundante. Na mesmalinha escreve Domnico Losurdo, em sntese precisa reportando-se aJohn Locke:

    Repetidamente o Segundo Tratado faz referencia ao ndio selvagem (wildIndian), que ronda ameaador e letal nas florestas da Amrica ou nasflorestas virgens e incultos campos da Amrica [...] Alm do trabalho e dapropriedade privada, os ndios ignoravam tambm o dinheiro: de modoque eles resultam no apenas alheios civilizao, mas tambm noassociados ao resto da humanidade. Pelo seu prprio comportamento,tornam-se objeto de uma condenao que no deriva s dos homens:sem duvida, Deus prescreve o trabalho e a propriedade privada, nopode certamente querer o mundo por ele criado permanea para sempreinforme e inculto (LOSURDO, 2006, p. 36).

    Pode-se inferir que a instituio da nova estrutura do sistema penalvolta-se menos para a resoluo de conflitos (como o discurso gostariade fazer crer), a partir de uma pretenso humanizadora e garantidora, emais sobre a manuteno das relaes de poder, e em defesa do sistemae da sua estrutura jurdico-poltica e socioeconmica.

    Verifica-se que os sentidos primordiais atribudos proposta dosistema penal como maquina de resoluo de conflitos como formapreponderante e como pretensa empreitada humanizadora so ocultados,e pode ser apontados como - monopolizao do poder de punir e gerira pobreza e a desigualdade; produzir utilitariamente um processo dedocilizao da mo de obra de que tanto se necessitava; e, inculcar aideologia do trabalho sob a tica da sociabilidade e governabilidadeburgus capitalista. Assim escreve John Locke, sobre a lei da assistncia:

    A soluo mais eficaz que somos capazes de conceber para isso [...] quesejam construdas escolas a operarias em cada paroquia, s quais osfilhos de todos esse que pedem auxilio paroquia, acima de trs eabaixo de catorze anos de idade, enquanto viverem em casa com os paise no sejam tampouco empregados para seu sustento pela penso do

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    supervisor de pobres, sero obrigados a frequentar. Ser assim que ame se desembaraar de grande parte do incomodo de cuidar deles eprover-lhes a subsistncia em casa, tendo ento mais liberdade paratrabalhar; as crianas sero mantidas numa ordem muito melhor,recebero melhor subsistncia e desde a infncia se habituaro atrabalhar, coisa de extrema importncia para torna-las ajuizadas eindustriosas por toda a vida. (Locke, 2007, p. 236).

    A pobreza passa a ser vista como um delito2 no novo paradigma desociabilidade que se institui a partir da filosofia (pseudo) humanitrialiberal e, ainda, que nela se encontram planos para cada um dosindivduos que fazem parte dessa estrutura social, desde a criana principalmente quando resultado da unio de dois pobres infratores daordem burguesa , a mulher e o homem.

    A respeito da gesto dos miserveis/transgressores centralizada noEstado e, atravs do poder punitivo em meio a um discurso legitimantede matiz garantidora positiva e tcnica, e ainda a partir de um discurso/estratgia contextualizado com a nova ordem burguesa e que necessitavade corpos dceis e aptos ou pelo menos submissos ideia de trabalho,Cesare Beccaria propunha:

    Quem procura enriquecer a custa alheia deve ser privado dos prpriosbens, mas como habitualmente esse o delito da misria e do desespero,o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito de propriedade(direito terrvel e talvez desnecessrio) no deixou seno uma existnciade privaes; mas como as penas pecunirias aumentam o numero dosrus mais do que o numero dos delitos, pois que, ao atirar o po doscriminosos, acabam tirando-o tambm dos inocentes, a pena maisoportuna ser ento a nica forma de escravido que se pode chamarjusta, ou seja, a escravido temporria dos trabalhos e da pessoa aservio da sociedade comum, para ressarci-la, com a prpria e totaldependncia do injusto despotismo exercido sobre o pacto social.(BECCARIA, 2013, p. 83).

    Essa questo, que engloba em uma mesma discusso a retirada doconflito da comunidade e dos prprios envolvidos direta e indiretamente,sob o discurso da brutalidade e desregulamentao causadora dainsegurana, se processa a organizao de uma estrutura utilitria para o

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    novo projeto de governabilidade e sociabilidade e que entrelaa aassistncia social e o poder punitivo, no qual a miserabilidade umdelito e do qual apenas o sujeito individualizado responsvel,naturalizando a estrutura social burguesa-capitalista, o que objeto deanlise mais detida no prximo ponto.

    2 Da sistematizao decodificadora e pretensamente humanitria usurpao do conflito e controle dos indesejveis

    Neste ponto a anlise se centra especificamente na questo dasubtrao do conflito a partir do discurso da humanizao pela tcnicae como isso se traduz e processa como uma dinmica de controlecentralizado estatal de uma massa de indivduos indesejveis, que soobjeto de um processo de disciplinamento para o novo paradigma degovernabilidade voltada ao mercado capitalista, no qual eles s faziamparte, qui, como mo de obra barata.

    Nesta estrutura, como o discurso humanizante tinha de serdesqualificador das estruturas materiais e simblicas de resoluo deconflitos do modelo predecessor, e, ainda, como o tecnicismo-cientificista, ao qual resumido o direito (direito penal e polticacriminal-assistencial), orientados pela generalidade e abstrao (seletivas), funcional a esse processo de distanciamento dos indivduos e produzlegitimao para o prprio sistema que se prope neutro. Nesse sentido,escreve Cesare Beccaria como grande organizador da ideologia penalmoderno-burguesa:

    Eis o dogma poltico em que os povos deveriam acreditar e que ossupremos magistrados deveriam apregoar coma incorruptvel proteodas leis, dogma sagrado sem o qual no pode haver sociedade legitima,certa recompensa pelo sacrifcio, por parte dos homens, daquela aouniversal sobre todas as coisas, que comum a cada ser sensvel elimitada apenas pela prpria fora. (BECCARIA, 2013, p. 48).

    E, assim, como a mquina de assistncia-controle social,monopolizadora de conflitos que eram resultados da prpria estruturasocial , eram transformados em contingncia patolgica individualizada.

    Trabalha-se em uma perspectiva de que a constituio de umamaquinaria de controle-assistncia social se fazia como resultado do

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    contexto histrico em que esto inseridos, e assim orientados por estadinmica que os animava e justificava como afirma Miaille (2005),decorrem e servem ao modo de produo da vida social e material dasociedade burguesa. Para tanto, traz-se alguns elementos que demonstrama falcia do discurso desenvolvimentista, de humanizao e civilizaoda resoluo de conflitos, que se apresentam materialmente comodinmicas punitivas comprometidas com seu tempo e com a classe aqual essas dinmicas serviam e davam suporte de sustentabilidadematerial e simblica ao longo da histria moderna.

    Assim, apresenta-se o paradoxo das dinmicas punitivas modernas,entre as tantas incongruncias que apresenta, mas que, para efeito destetrabalho, se analisa a partir dos seguintes elementos: (a) os indivduossobre os quais se projeta a desigual distribuio dos bens negativos dapena; (b) a quantificao do sofrimento humano; (c) (de)formao corpoe esprito na nova estrutura social; (d) incapacidade tcnico-mecnicado direito reduzido e a sua funcionalidade legitimante-naturalizante.

    O primeiro elemento de anlise, os indivduos sobre os quais se projetao sistema penal, trata da desigual distribuio dos bens negativos (BARATTA,2011), que so os processos de criminalizao primria (tipificao) esecundria (punio), tendo em vista que o sistema penal, em sua acepomoderna, dirige-se, mormente, sobre determinados tipos de indivduose classes e tutela especialmente certos tipos de crimes (patrimnio).Como se verificou acima, passa-se de uma preocupao com a organizaocomunitria ofendida por uma transgresso, tutela de um bomfuncionamento do sistema e estrutura social, que elege e d primazia aofuncionamento do mercado e, no qual, a ofensa ao direito de propriedadeocupa a maior preocupao e merece a enftica resposta/represso.

    Nesta linha, como os bens positivos do sistema de sociabilidadecapitalista so desigualmente distribudos, e de acordo com ascaractersticas (eleitas como positivas) para distribuio, tais como:produtor, industrioso, honrado, proprietrio, homem, branco; tambmos efeitos da lei penal so distribudos de forma desigual, sendo portanto,uma distribuio desigual de bens negativos, e que se distribui, de acordocom os valores antagonistas do ethos burgus; como Vera Regina Pereirade Andrade formula, a criminalidade o exato oposto dos bens positivos(do privilegio). E, como tal, submetida a mecanismos de distribuioanlogos, porem em sentido inverso distribuio destes. (ANDRADE,2003, p. 278).

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    Indivduos esses que eram definidos como anormais, quando, emrealidade, eram constitutivos de uma classe, que no comps a construodo dogmtico contrato social e do paradigma de sociabilidade liberal,retoricamente igualitrio, e utilitariamente (pseudo)humanitrio. Assim,no poderia ser melhor descrito, do que por um dos entusiastas dessaconcepo.

    Os homens escravos so mais voluptuosos, mais libertinos e mais cruisdo que os homens livres. Estes meditam sobre as cincias e sobre osinteresses da nao, veem os grandes objetos, e os imitam, mas naqueles,satisfeitos com o dia presente, procuram, no tumulto da libertinagem,uma distrao para o aniquilamento em que se encontram. Afeitos incerteza em tudo, o xito dos seus crimes torna-se-lhes problemtico,favorecendo a paixo que os determina. Se a incerteza das leis incidesobre uma noo indolente pelo clima, mantem e aumenta a indolnciae a estupidez. (BECCARIA, 2013, p. 137).

    Neste sentido, verifica-se que o sistema volta-se contra essesindivduos, que so, assim como a burguesia, uma classe nova que sefazia antagonista no novo paradigma de sociabilidade, assim como elaprpria era no antigo regime, em relao aos estamentos nobres, e comoesse tratamento pautado pela igualdade e liberdade, to difundidosretoricamente, no alcanam esses indivduos que careciam dospressupostos bsicos da pertena ao mundo burgus, a humanidade ecivilidade o ethos burgus do proprietrio carecendo, assim, deinterveno forada do sistema que oferece o crcere, e o trabalho foradocomo processo de ensinamento da disciplina protestante e da filosofialiberal. Sendo o perodo de tempo de subtrao da liberdade a potencialporta de entrada no contrato social moderno-burgus, como escreveLosurdo: graas a este gigantesco universo concentrado, onde chega-sea ser internado sem ter cometido crime algum e sem ter controle algumda magistratura, ser possvel operar o milagre da transformao emdinheiro daquele material descartado. (LOSURDO, 2006, p. 86). EscrevemRusche e Kirchheimer sobre o pblico-alvo:

    A fora de trabalho que o Estado podia controlar melhor era compostapor pessoas que exercitam profisses ilegais, como mendigos eprostitutas, e tantas outras pessoas que estavam sujeitas sua supervisoe dependiam de sua assistncia por lei e por tradio, como vivas,

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    loucos e rfos. A histria da poltica pblica para mendigos e pobressomente pode ser compreendida se relacionamos a caridade com odireito penal. (2004, p. 58).

    A partir de ento, e por necessidade de uma justificativa legitimante,surge o iderio da ressocializao, da reeducao, que, em realidade, oprocesso de convencimento, pela imposio da sujeio, da condio desubalternidade do indivduo foradamente integrado ao novo mundoocidental regulado pelo contrato burgus. Esta espiritualidade novade ordem e de represso, [...] devia ser ensinada e inculcada desde ainfncia, mais particularmente na infncia. (MELOSSI; PAVARINI, 2006,p. 53).

    Complementam Dario Melossi e Massimo Pavarini, sobre o iderioda recuperao, ressocializao que se faz, sobretudo, utilitria para ofuncionamento e a manuteno da nova estrutura social:

    Os pobres, os jovens, as mulheres prostitutas enchem, no sculo XVII,as casa de correo. So eles as categorias sociais que devem ser educadasou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos bons costumes. Elesno devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde o inicio, indispensvel ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosapor novos valores, por novos instrumentos de submisso. A espadano pode ser usada contra as multides e o temor de que uma novasolidariedade, uma nova comunho surja para romper com o isolamentodas classes subalternas j, desde o incio, uma realidade concreta(MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 55).

    Outro ponto a quantificao do sofrimento humano. Demonstra-sea instituio do sistema penal em sua relao gregria com a caridadeestatal no processo de usurpao do conflito e na manuteno daestrutura social, que a passagem da resposta infrao como ofensa acomunidade. Passa-se a uma ideia de fato, definida como crime, que amanifestao de uma afronta ao poder Estatal (como imprio-monopliodo direito e da poltica restritos lei e participao classista). Esteato de insubordinao passa a ser respondido no corpo (no meramentefsico) mas social, que esse indivduo infrator representa; e estacorporificao do inimigo se presta a representar os valores burguesesque devem ser introjetados.

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    Em um perodo (mormente do sculo XVIII em diante) em que aliberdade e o capital eram os bens maiores exaltados (e tutelados) peloEstado burgus, e quando o tempo livre, assim como todas as coisaseram quantificadas pelo novo mercado capitalista, a pena passa a serquantificada em tempo de privao e, sobretudo, em tempo de trabalhoforado. Retirando desses pobres desgraados indivduos, pois,destitudos dos meios de produo e expropriados da propriedade privada,cuja nica propriedade que possuem a fora de trabalho a que podiam(no totalmente livre) colocar no mercado.

    A essncia da pena constituda, tambm no que diz respeito relaode trabalho, pela privao da liberdade, entendida sobretudo comoprivao da liberdade de poder contratar-se: o detido est sujeito a ummonoplio da oferta de trabalho, condio que torna a utilizao dafora de trabalho carcerria conveniente para o contratante [...] oconceito de trabalho representa a ligao necessria entre o contedoda instituio e a sua forma legal. O calculo, a medida de pena emtermos de valor-trabalho por unidade de tempo s se torna possvelquando a pena preenchida com esse significado, quando se trabalhaou quando se adestra para o trabalho (trabalho assalariado, trabalhocapitalista). (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 72, 91).

    Nesse sentido, em que o discurso da segurana jurdicaproporcionado e operacionalizado pela tcnica jurdica acabaria com aincerteza e o arbtrio das penas, e que conformaria e encerraria a culpanessa medida de tempo, dando assim um parmetro (genrico e abstrato)para a resposta ao crime, e a resoluo de conflitos que passam de umconflito intracomunitrio, para um conflito com o prprio Estado, que erigido no grande e principal atingido em seu Imprio.

    Nessa esteira ainda, verifica-se a funcionalidade dessa transformao,tendo em vista a necessidade de inculcao de uma ideologia (docilizaoe aceitao) e, ainda, de aproveitamento desse material humano que descartado da estrutura social e reutilizado atravs da potencializao eeficientizao das estruturas punitivo-caritativas, como extrativas de mais-valia, no somente econmica, mas tambm simblica. Sobre asmudanas relativas ao sistema penal, que acompanharam as mudanasdo paradigma de sociabilidade, na passagem do antigo regime e dofeudalismo para a modernidade capitalista e seu discurso

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    desenvolvimentista-humanista e caritativo-punitivo, Georg Rusche eOtto Kirchheimer escrevem:

    A essncia da casa de correo era uma combinao de princpios dascasas de assistncia aos pobres (poorhouse), oficinas de trabalho(workhouse) e instituies penais. Seu objetivo principal era transformara fora de trabalho dos indesejveis, tornando-a socialmente til. Atravsdo trabalho forado dentro da instituio, os prisioneiros adquiriamhbitos industriosos e, ao mesmo tempo, receberiam um treinamentoprofissional. Uma vez em liberdade, esperava-se, eles procurariam omercado de trabalho voluntariamente. (2004, p. 69).

    E, ainda, como o controle da nova classe trabalhadora, que era foradaao trabalho e produo, seno pela via (semi) livre aos mais baixossalrios e na mais extenuante carga-horria e sem direito organizaopor melhores condies de trabalho, visto como contrrio a paz burguesae era severamente reprimida. Ou ainda, pela via do trabalho forado nasworkhouses e das penas de confinamento, o que forava os indivduos atrabalharem pelos mais baixos salrios, forando ainda, o preo da mode obra (semi) livre, controlando o mercado e mantendo a lucratividadea partir de mais-valia pura, visto que os indivduos no podiam escolherentre trabalhar (se submeter), no trabalhar (mendigar) ou exercer outraatividade que se fazia deveras difcil, dada a monopolizao dasoportunidades restritas a produo fabril, monopolizadas por umreduzido numero de proprietrios empregadores.

    A questo do controle social e sua relao com o controle/produode mo de obra se faz de imensa importncia para compreender ofuncionamento e a instituio/transformao do poder punitivo namodernidade. Verifica-se que se pode dividir esse processo de construodo sistema penal, a (de)formao corpo e esprito na nova estrutura social a sua verso moderna como instituio-mquina burguesa , em doismomentos.

    Em um primeiro momento, (1) de extrao de mais-valia, quecompreende o final do antigo regime com as penas nas gals e adeportao, que foram de fundamental importncia para o processo decolonizao das terras incivilizadas, levando o labor e a industriosaideologia ocidental burguesa; e, no seu processo de transio para amodernidade, se estendendo at a revoluo industrial, que a partir do

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    discurso jusnaturalista exaltava os valores do trabalho forado para osindivduos no integrados filosofia liberal , e marcado por um perodode escassez de mo de obra, no qual o controle social, ou a politica social(poorlaws) e a filantropia/caridade estatal (exercida atravs das workhouses)cumpriram importante papel, alargando esse exrcito da nova classeoperria que nascia, desprovida dos meios de produo e alienado dosprodutos produzidos (dos quais no tinha acesso). Nessa linha, escrevemMelossi e Pavarini:

    Durante todo o sculo XVII e boa parte do XVIII, um dos problemasmais graves enfrentados pelo capital foi o da escassez de fora detrabalho, com o perigo continuamente subjacente do possvelaumento do nvel de salrios. O problema no se apresenta, contudo,com a mesma gravidade dos primeiros anos do sculo XVII, querporque j estava comeando a ocorrer um certo incrementodemogrfico, quer porque j estavam o processo de expulso e deapropriao dos estratos camponeses estavam em pleno andamento.No obstante, significativa a insistncia com que se pede o uso dotrabalho forado. O modo de produo capitalista necessita de umlongo perodo de tempo para terminar de destruir aquela capacidaderesidual de resistncia do proletariado, que tinha origem no velhomodo de produo. (2006, p. 61).

    Em um segundo momento, (2) como simblico-docilizadora,quando, no perodo de ouro do capitalismo, a partir da RevoluoIndustrial passou a serem necessrios menos corpos para o trabalho, emais espritos dceis para obedecer, se adequar a lgica e aceitar a suacondio dentro dessa estrutura social capitalista desigual. Assim, a penacomo medida de tempo de privao da liberdade, e como introjeo dadisciplina da nova ordem social sintetizada nos cdigos e nas normas dedireito, ou como denomina Melossi e Pavarini (2006) o proletrio comoproduto da mquina carcerria.

    Em resumo, trata-se de uma extrao de mais-valia, que no se fazmeramente como produto econmico (financeiro-pecunirio), mas simem um sentido econmico mais alargado, que insere a economia dapena e da estrutura social em uma anlise mais abrangente e quepermitem contextualizar as dinmicas punitivas como sendo o veculode dominao e subordinao da grande maioria ao sistema que se propecomo livre e igual, enquanto mantm o povo na condio de classe

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    oprimida ainda que de forma juridicamente oficial-legtima(legitimidade em uma acepo reduzida e restrita legalidade-oficialidadeestatal burguesa).

    A mais-valia assume um carter de produo de sentidosmacrossociolgicos, material e simblicos que preconizam a manutenoda estrutura social burguesa, desigualdade e opresso, operacionalizadasde dentro (e por dentro) do prprio sistema, que tem epicentro nainstituio do Estado moderno de carter eminentemente classista:

    Essas instituies se caracterizam por estar destinadas, pelo Estado dasociedade burguesa, gesto dos diversos momentos da formao,produo e reproduo do proletariado de fbrica. Elas representamum dos instrumentos essenciais da politica social do Estado, politicaque tem como meta garantir ao capital uma fora de trabalho que poratitudes morais, sade fsica, capacidade intelectual, conformidade sregras, hbito disciplina e obedincia etc. , possa facilmente seadaptar ao regime de vida na fabrica em seu conjunto e produzir,assim, a quota mxima de mais-valia passvel de ser extrada emdeterminadas circunstancias. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 73).

    Por ltimo, traz-se a anlise da estrutura institucional que permitiu/contribuiu com todo esse processo, que, para alm de ser um projetoeminentemente poltico, passa pela operacionalidade jurdica comoferramenta legitimante, por isso se inclui na anlise a incapacidade tcnico-mecnica do direito reduzido e a sua funcionalidade legitimante-naturalizante.

    Neste sentido, a partir do Poder Judicirio, como instituioespecialista no fazer Justia e a constituio dela como uma estrutura desmbolos e rituais de/para a aplicao da lei que contribui (constitui/constitudo) sobremaneira com esse processo, na medida em que foi apartir da ideia de Direito resumido aplicao da lei, como sendo amanifestao da segurana jurdica a aplicao da lei por uma entidadeneutra, alheia s partes (e aos interesses em disputa) que se chegaria auma determinao desinteressada e uma aplicao assptica (pura) doDireito Estatal. Essa ideia a que se faz questo de se contrapor, como emtudo na historicidade moderna, s dinmicas do antigo regime, que sepautava, intimamente, por decises jurdico-politicas, que tinham imensarelao com o poder central da monarquia e da religio e, portanto,no seriam neutras (impuras).

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    Nesta linha que a magistratura no direito estatal moderno deve sereduzir tcnica jurdica o que Michel Miaille denomina de instnciajudicial (2005), e a racionalidade formal como forma de produo deuma segurana jurdica nas relaes conflituais que se erigiria sobre ojulgamento neutro, e, assim, justo. Assim, analisando a questo dacentralizao e do processo de tecnicizao do poder disciplinador,Antnio Manuel Hespanha escreve:

    Tambm neste plano, a punio da violncia publica completa a garantiada nova ordem pblica Estatal, fundada, no j sobre a proteo nomeadamente contra actos de fora dos equilbrios sociaisespontneos, as sobre a existncia e impacto social de um aparelhoburocrtico e administrativo encarregado da disciplina da sociedade,agora civil. (Hespanha, 1993, p. 349).

    Operacionalmente, essa estrutura institucional, se arvora emconstruo jurdico-sociais que se fazem dogmas, a fim de inserirelementos polticos (despolitizados) na tcnica jurdica, e assim,privilegiar interesses da classe detentora do poder, elementos conceituais,que Domenico Losurdo (2006) chama de inteiro de caractersticassingulares, referindo-se concepes como bem comum; interesse pblico,bem da nao, salvao do povo, preservao da totalidade e se acrescentariasegurana pblica; que, em realidade, permitem a insero, nessadinmica de juridicidade que se pauta pela racionalidade tcnico-mecnico, dos elementos polticos de interesse da classe dominante aburguesia e suas necessidades de controle. Domenico Losurdo prope:

    O que aqui esta sendo to apaixonadamente invocado um inteiroque exige o sacrifcio no momentneo mas permanente da grandemaioria da populao, cuja condio tanto mais trgica pelo fato deque aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. [...] ocapital de felicidade humana fortemente acrescido pela presena depobres obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos.Os pobres merecem plenamente a prpria sorte por serem gestadores evagabundos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura eleschegassem a se emendar [...] todos menos idiotas, sabem que as classesinferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de serprodutivas. (LOSURDO, 2006, p. 101-102).

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    interessante trazer a contribuio da Thierry Pech e Fredric Gros(2001) em conjuno analtica que orientam a presente anlise econstruo terica sobre a juridicidade estatal centralizadora moderna,que tem sua operacioalidade como resultado de trs dinmicas paralelas:o (i) pacto humanitrio - a partir do qual se prope construir umaestrutura material e simblica que preconize os direitos humanos e orespeito a integridade (fsica e psquica) humana ou, em uma acepoBeccariana a maior felicidade com o menor sofrimento basta saberpara quem se dirige essa felicidade, e custa do sofrimento de quem(no parece ser uma pergunta que necessite ser respondida).

    Ainda o (ii) consenso processual, ou o que se poderia dizer aencampao jurdica do tecnicismo procedimental e formalista ou damecnica operacional, buscando a neutralidade e imparcialidade odescompromisso pela substncia - ou seja, em uma orientao Lockeana a construo desta estrutura neutra e imparcial (terceira no conflito)que tiraria a humanidade do Estado de Natureza, e permitiria ainaugurao da sociedade civil e politica.

    E, por ltimo, o apelo ao (iii) ethos do desempenho, quando osdiscursos anteriores se confrontam com a necessidade de segurana, quese resume/transmuta em atuao policial e judiciria cientfica e eficientee ainda com a mudana de indivduos ou, em uma orientaoautenticamente Benthamiana3, fazer com que esses indivduos e essesprocessos, revertam em alguma coisa de positiva para a sociedade,justificando-se com argumentos (pseudo) cientficos a necessidadepoltica envolta em sua capa de pretenso humanitria de mo deobra escravizadamente livre; e ainda, resumindo os indivduos quelanuance caracterstica que interessa ao sistema e que justifica/legitima asua interveno.

    Assim contribui Antonio Manuel Hespanha, sobre o reducionismoproporcionado pelas dinmicas tcnico-mecnicas de operacionalizaoda justia estatal liberal:

    Os sentidos implcitos desta sistemtica assim como a compreensodo direito penal que ela inculcava no devem ser ignorados.Aparentemente, ela levava a eufemizar as dimenses extra-judiciriasdo problema penal, arrumando-o entre as questes puramentetcnicas do processo. As relaes da questo penal com valorespolticos como as da defesa do Estado e da ordem publica, a dos

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    interesses em jogo , eminentes no critrio romano de ordenao,tendem a ser obliteradas, tornando-se objetos dificilmente arrumveisno seio do discurso penal. Por outro lado, esta arrumao processualistadas questes penais contribui para valorizar os aspectos intra-individuais os conflitos de interesses privados das questes criminais. (HESPANHA,1993, p. 333).

    Transforma-se os indivduos considerados criminosos (cujo maiorcrime a prpria existncia e condio social de classe) em monstros,inimigos, que precisam ser exorcizados, purificados, e ainda, que precisamdevolver a nao a eterna gratido por sua humanidade e esforosdispensados com a educao e trabalho.

    Nesta linha, a resoluo de conflitos e a restaurao do tecidocomunitrio deixa de ser a pauta da institucionalidade imbuda/detentora do monoplio da fora ou do ius puniendi, passando, ento,de uma instituio de justia para uma instituio disciplinar, projetando-se uma nova organizao social:

    No plano das ideias-guia da aco poltica, justia substitui-se adisciplina. A coroa vai pretender constituir-se em centro nico dopoder e da ordenao social, esvaziando os centros polticos perifricose pondo, com isto, fim constituio politica da monarquia pluralista[...] todo este programa poltico a que aqui cabe apenas fazer umareferencia genrica tem consequncias na politica penal, agora postadiretamente ao servio destes intentos disciplinadores da monarquia.Se, antes, a punio real cumpria uma funo quase exclusivamentesimblica, agora ela passa a desempenhar um papel normativo prtico.Ao punir, pretende-se, de facto, controlar os comportamentos, dirigir,instituir uma ordem social e castigar as violaes a esta ordem. Para isto,o direito penal da coroa tem que se converter num instrumento efectivo,funcionando eficazmente e sendo, por isso, crvel e temido (HESPANHA,1993, p. 321).

    A partir da estandardizao do discurso humanista e da adoo deum humanitarismo-garantista e de uma processualidade tcnicomecnica, produz-se o que Thierry Pech chama da utopia carceral, ou, abusca da neutralizao da pena que se apresenta como a (potencial)porta de entrada para o contrato e para a cidadania liberal dentro doslimites (aceitos) da subalternidade e de sua condio na estrutura social.

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    Neste intento de compreender e desvelar essa operacionalidadepunitiva que se faz a partir da pretensa racionalidade utilitrio-regulatria moderna que no se d apenas no plano macro esuperestrutural da epistemologia, mas que se procedimentaliza de formamuito concreta a partir das agncias estatais centralizadoras, interessantetrazer Antoine Garapon4 (1997) que contribui imensamente paracompreender o Poder Judicirio5 que uma figura central nesta estruturae como instituio historicamente determinada em um projeto deengenharia social e de um paradigma de sociabilidade opressora. Quetem nesta instituio a figura do rbitro dos antagonismos sociais,mantendo-os em nveis calculveis, por uma dinmica de clculo atuarialde riscos sociais e, sobretudo, sistmicos, em uma clara perspectiva deeficincia tecnolgica visando a manuteno ordeira do status quo.

    O autor resgata o processo histrico e tambm uma anlise tericaacerca das simbolizaes, estruturas conceituais com que trabalha e asquais sustentam o Poder Judicirio como figura centralizada e estatizadaresponsvel por uma suposta resoluo de conflitos de forma cientfica(mecnica) e pretensamente neutra. Antoine Garapon resume nosseguintes termos:

    O acusado ento esmagado pelo cerimonial concebido para o manterao abrigo da justia popular e a festa transforma-se numa ordem paramatar simblica, visto que a paixo popular demasiado forte e otemperamento dos juzes demasiado dbil. Nesse caso, dir-se-ia, doque que estamos a espera para pr fim a esses ritos to perigosos! Averdade que as emendas tentadas, quer se tratasse da justia informalou da intruso dos meios de comunicao social, mostraram ser maisnocivas do que o prprio soneto. (GARAPON, 1997, p. 20).

    Interessante notar como o sistema de resoluo de conflitos, oudiga-se mesmo de punio, utilizado no antigo regime (maisapropriadamente como castigo ou expiao) a que se atribui uma supostabrutalidade ou desumanidade encontrava-se intimamente vinculado aoseu paradigma societal e como decorrente (quase) lgico da sua estruturamaterial e simblica medieval; e que, a construo do sistema monistatecnicista e centralizado na figura do Estado e seu monoplio da forafsica e do poder de punir, que se apregoa como sendo o resultado daracionalidade e pretensamente neutra, se verifica a ntima vinculao ao

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    paradigma de sociabilidade e governabilidade do qual resultado apositividade burguesa do modus vivendi ocidental moderno a defesade seus interesses e a perpetuao de sua hegemonia de poder.

    Portanto, um sistema penal resultado do modo de produo davida material (MIAILLE, 2005) que se alterou no decorrer da prpriahistria (mantendo-se, estruturalmente, da mesma forma), para, quandonecessitava de mquinas bpedes de trabalho no mar (embarcaes) e,alm-mar nas colnias em seu processo de colonialismo que no seriarealizado sem a pena da deportao, do degredo e das gals, foi o quepermitiu efetivamente a colonizao e os indivduos expulsos eescravizados que levaram a ideologia liberal. Ainda, quando internamentenecessitou de mo de obra, encontrando elementos justificadores dasua interveno, impulsionando a sua dinmica societal at chegar aindustrializao. J na fase posterior a industrializao, quando no maisse fazia to necessrio a mo de obra, ao menos no um exercito tonumeroso, estrutura-se o controle social mais como dinmica simblicareafirmadora e internalizadora da ideologia liberal e do contrato social;sempre em uma relao gregria, simblica e procedimental, com aspolticas de assistncia social, na construo de indivduos,primeiramente hbeis e voltados para o trabalho, e depois, como mentesdceis afeitas a sua condio de subalternidade no novo paradigma desociabilidade e governabilidade que se constri como naturalizado.

    Consideraes finaisEm sede de consideraes finais, e no que as questes encerrem as

    possveis anlises que se faz possvel do processo histrico de construoda priso como forma de punio privilegiada e generalizada e todo seuaparato tcnico institucional e ideolgico, mas que ficam no limite doflego e objetivos do presente trabalho.

    Primeiramente, trazer o alerta de Antnio Manuel Hespanha (1993),sobre esse processo histrico, que no se deu de forma evolutiva, etampouco pacfica; mas sim permeada por constante tenso, e que sequercontem marcos estanques de princpios e encerramentos de perodos,de hegemonias e poderes que se criam e se esfacelam. Marcos que foramcriaes cientficas e principalmente com fins didticos; so, emrealidade, processos histricos que se permeiam, se entrecruzam,interinfluenciam-se. Assim, o processo de transio de poder e de todaa mudana na estrutura societria contou com grande resistncia das

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    estruturas estamentais do antigo regime, tambm, com o poderascendente e principalmente econmico da burguesia, e com a grandemassa de servos e posteriormente proletrios, que em significativamedida, foram utilizados como marcha de manobra pelas estratgias ecooptados pelo sedutor discurso liberal da igualdade e liberdade.

    Nesta linha que se prope neste trabalho uma postura crtico-reflexiva, um esforo terico e, sobretudo desvelador dos paradoxosproporcionados pela filosofia liberal e a sua dinmica deoperacionalizao.

    Paradoxos que se manifestam quando a filosofia liberal e seu projetosocietrio calcado no discurso da liberdade se constitui comoprodutora da liberdade de uns poucos (burguesia homem, branco eproprietrio), custa da privao a liberdade de muitos que sequertinham a possibilidade de ser (liberdade negativa), sem a interveno doEstado regulador, qui de fazer e participar seno pela via da condiopassiva do objeto de interveno, e escravizao da maioria queutilitariamente, e servindo ao todo com caractersticas singulares(LOSURDO, 2006) era submetida ao trabalho forado para o bem danao e interesse pblico.

    Assim como tambm, a igualdade, outro estandarte da luta contrao antigo regime, e na qual a grande massa pensava estar includa, edepositava suas esperanas de libertao, e atravs da qual, foi definidacomo incivilizada, anormal, preguiosa, orgistica, irracional, e por essavia justificada toda sorte (ou azar) de aes institucionais para docilizar,controlar e reeducar esse contingente de seres ignorantes, cujo nicoamparo se constitua na figura do Estado e sua caridade-punitiva.Discurso de igualdade, que somente serviu para desqualificar os privilgiosestamentais, nos quais a burguesia no pertencia, e constituir os prpriosprivilgios, assentados na propriedade como requisito fundamental epassar a projetar uma nova naturalidade (artificial) que legitimava aposse de uns seres por outros.

    Por ltimo, a contrariedade liberal em relao a uma supostabrutalidade do antigo regime no tratamento dos infratores, que semanifesta na substituio de uma alegao de arbtrio decisrio esubjetivista pelo imprio da lei e do encerramento da resoluo deconflitos no tecnicismo cientificista, operacionalizado por um PoderJudicirio eminentemente classista que resume os indivduos consideradosinfratores na condio de criminoso como nica dimenso (ao menos a

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    que importa para o funcionamento e legitimao do sistema e sua atuao)deste, transformado em objeto de interveno normalizadora.

    Ao fim e ao cabo, essas consideraes se prestam a reafirmar umentendimento do paradigma de sociabilidade e governabilidade liberalcomo um projeto de dominao, no qual o bem supremo capital e apropriedade privada e no entorno dos quais giram todas as instituiesmateriais e simblicas, desde o discurso humanitrio e da seguranajurdica at o Estado e o Poder judicirio, que, servem nada mais, quepara a manuteno da estrutura social, marcada pela desigualdade eopresso, que se fazem naturalizadas, ontologizadas. Subverte-se, assim,concepes de comunidade e solidariedade pela de produtividade,competitividade e eficincia, produzindo-se (pretenses) deautossuficincias e individualismos que permitem a negao do outro, aconstruo de inimigos pblicos; o que para os desforos de neutralizao,aniquilao e extermnio, so menos que um passo a mais no processoevolutivo.

    Sobre essas bases epistmicas materiais e simblicas pensa-seestar assentada a dinmica da resoluo de conflitos na modernidadeburguesa, e sua estrutura de desigualdade, permeada de perversosantagonismos e, assim, se perpetua o ciclo vicioso e violento da vinganaoficializada.

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    Notas

    1 Nesta linha tambm aponta Beccaria:eis o dogma poltico em que os povosdeveriam acreditar e que os supremosmagistrados deveriam apregoar com aincorruptvel proteo das leis, dogmasagrado sem o qual no pode haversociedade legitima, certa recompensa pelosacrifcio, por parte dos homens, daquelaao universal sobre todas as coisas, que comum a cada ser sensvel e limitada pelaprpria fora. (Beccaria, 2013, p. 48).

    2 Autor que no foi especificamentetratado no presente trabalho, e quenecessitaria de um espao prprio paraaprofundamento de suas contribuies,posturas e consequncias para opensamento criminolgico, e as estruturasinstitucionais de controle social a partirdo utilitarismo.

    3 Antoine Garapon na obra Bem Julgar:Ensaio sobre o ritual judicirio (1997)promove efetivamente uma dissecaodesta instituio, revelando suasentranhas operacionais, e, sobretudo oseu processo histrico de constituio eque se revelam em diversas questes

    contemporaneamente ainda existentes analisando especificamente questescomo: o espao judicirio; o tempojudicirio; a toga; os actores; o gesto; odiscurso; o ritual; o drama da Justia; aencenao do conflito [...] propondo,verdadeiramente, um desvelamento daidentidade, do legado, e tambm, docomprometimento de classe que marcamindelevelmente a atuao do PoderJudicirio.

    4 No obstante os esforos liberais para seoporem ao antigo regime v-se naconformao do Poder Judicirio, queseus membros eram indicados, epermaneciam submissos ao Rei(HESPANHA, 1993; 2005); enquanto quena modernidade, sob o comandoburgus, verifica-se que somentemembros da burguesia doutos, letrados,racionais, intelectual, humanistas ocupavam, no s os cargos damagistratura, como tambm de todos osaltos cargos pblicos; verificando-se quea direo social est submissa apenas aoutra classe de indivduos, mas que alogica, continua a mesma

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