Revista Morashá

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ANO xXI 83 edição 2014 ABRIL

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Edição 83

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ANOxXI 83

edição

2014ABRIL

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ANO XXI - Abril 2014 - nº83

CAPAFRAGMENTO ESTILIZADO da HAGADÁ de Darmstadt final do século 15, alemanha

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Pessach celebra o êxodo dos Filhos de Israel do Egito, início do processo que levou à constituição do Povo Judeu como nação. Isso ocorreu 50 dias após a saída do Egito, quando D’us Se revelou no Monte Sinai – um evento singular lembrado e celebrado na festa de Shavuot.

Essas duas festas marcam eventos históricos extraordinários: as maravilhas e os milagres realizados por D’us no Egito, a abertura do Mar dos Juncos e, acima de tudo, a Revelação Divina perante milhões de pessoas.

A Torá relata tais eventos e ordena sua transmissão oral, de geração em geração, pois os assuntos de importância fundamental para um povo não podem ser relegados apenas aos livros, nem mesmo aos sagrados. Uma nação milenar tem a obrigação de celebrar seus grandes triunfos e lembrar suas maiores tragédias. Caso contrário, gerações futuras podem vir a questionar a veracidade ou a relevância de tais eventos.

Quase todos os meses o calendário judaico inclui datas em que celebramos festas ou lembramos eventos históricos. Os milagres de Chanucá e Purim, por exemplo, ocorreram há milênios, mas são celebrados ano após ano. De modo similar, o Templo de Jerusalém foi destruído dois mil anos atrás, mas ainda lamentamos a sua queda como se a tivéssemos presenciado.

Quanto mais importante o evento, mais empenho exige em sua correta transmissão para que nunca seja esquecido. Os mais importantes, na história judaica, foram o Êxodo e a Revelação Divina no Sinai. Marcaram o nascimento da Nação Judaica e são de tamanha importância que a Torá ordena que sejam lembrados não apenas em Pessach e Shavuot, mas em todos os dias do ano – manhã e noite, porque essa é a forma mais eficaz e confiável de preservar a memória de eventos passados.

A Torá insiste que o judaísmo seja transmitido de geração em geração. A geração de judeus liderada

Carta ao leitor

por Moshé, que presenciou os milagres no Egito e a Revelação Divina no Sinai, relatou tais eventos a seus filhos. Estes, por sua vez, transmitiram os relatos de seus pais, que constavam na Torá, a seus filhos. Assim se iniciou um processo de transmissão que ocorre até hoje. Portanto, não é apenas a Torá que preserva o judaísmo. É o próprio Povo Judeu.

A responsabilidade de preservar e fortalecer o judaísmo, ao difundi-lo e transmiti-lo às futuras gerações, não recai apenas sobre rabinos, professores e líderes comunitários. É uma responsabilidade compartilhada por todos nós. O Povo Judeu se originou de uma família – os filhos de Jacob, filho de Yitzhak, filho de Avraham. Passados mais de três mil anos, ainda somos uma grande família, constituída por milhões de pessoas que vivem em todos os continentes habitáveis do planeta.

A responsabilidade de preservar e fortalecer o judaísmo vale especialmente para os judeus da Diáspora, cujo judaísmo é ameaçado pelo antissemitismo e pela assimilação. Há 21 anos, a revista Morashá tem difundido o judaísmo no Brasil e em outros países de língua portuguesa.

Esta edição do Morashá, que, além do suplemento para o Seder, aborda assuntos relacionados a Pessach e Shavuot, entre outros, traz um novo design e uma nova diagramação. Esperamos que nossos leitores apreciem o novo design desta publicação, que almeja servir como um elo entre as gerações passadas, a presente e as futuras do Povo Judeu.

PESSACH CASHER V’SAMEACH!

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TANACH

história que a Hagadá transmite é relatada pelo segundo livro da Torá, Êxodo. O relato é bastante famoso: ao longo dos séculos, serviu como fonte de inspiração para milhões de pessoas, judeus e não judeus.

A história da escravidão e libertação do Povo Judeu toca a alma e gera grandes emoções – fascina e inspira. É uma lição sobre sofrimento e esperança, desafios e triunfos, milagres e maravilhas, heróis e vilões.

Seus protagonistas são famosos: Moshé Rabenu – o maior profeta e líder judeu de todos os tempos – e seu irmão e companheiro, Aharon – o primeiro Cohen Gadol, Sumo Sacerdote e pai de todos os Cohanim. Há na história muitos heróis anônimos: líderes judeus que sofreram para proteger e preservar o Povo de Israel no Egito.

Seus antagonistas são também lendários. O maior deles é o próprio rei do Egito, o Faraó. Mas ele não age sozinho. Conta com poderosos feiticeiros e astrólogos e com conselheiros que o auxiliam na execução de seus planos malévolos: a escravidão dos judeus e, posteriormente, o extermínio dos meninos e a assimilação das meninas.

O decreto de atirar os recém-nascidos judeus no Nilo se deve a uma previsão feita por esses astrólogos. Eles relataram a Faráo que nasceria um menino que

seria o libertador do Povo Judeu, mas que viria a falecer “por meio da água”.

Isso, de fato, ocorreu: a porção de Chukat, no quarto livro da Torá, Bamidbar - Números, relata o famoso incidente que selou a decisão do Eterno de que Moshé não entraria na Terra de Israel. A Torá conta que, com o falecimento de Miriam, D’us fez com que a Fonte de Miriam desaparecesse para que os Filhos de Israel percebessem que a milagrosa fonte da qual fluía água em abundância, e que os acompanhara, até então, em sua longa caminhada pelo deserto, havia sido provida por D’us, pelo mérito de Miriam.

Ao chegarem a Kadesh, no deserto de Zin, onde não há água, os Filhos de Israel, desesperados, clamam a Moshé. D’us então lhe ordena: “Toma o cajado e reúne a congregação, tu e Aaron, teu irmão, e falareis à rocha diante de seus olhos; e dará as suas águas, e tirareis para eles águas da rocha e dareis de beber à congregação e aos seus animais”. A Torá relata que Moshé tomou seu cajado e, com seu irmão Aaron, congregou o povo diante da pedra. “E Moshé levantou sua mão e feriu a rocha duas vezes com seu cajado, e saiu muita água, e a congregação e seus animais beberam”. Mas, a ordem que D’us dera a Moshé era que falasse com a pedra, não que nela batesse. Por ter violado tal ordem Divina, D’us decreta que ele e seu

As Três Heroínas de Pessach

O Seder de Pessach é o mais comemorado dos rituais judaicos.

A Hagadá lida nessa cerimônia relata o nascimento do Povo

de Israel: a escravidão no Egito, o decreto de genocídio

contra os recém-nascidos judeus de sexo masculino,

as pragas e os milagres. A libertação de nosso povo, que é

o tema central da festa de Pessach, ocorreu graças aos

heroísmo e coragem de três mulheres.

A

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irmão Aaron faleceriam no deserto, não tendo, pois, o mérito de adentrar a Terra Prometida.

Os astrólogos egípcios vislumbraram a consequência de tal incidente. Já que o calcanhar de Aquiles do grande salvador dos judeus era a água, aconselharam o Faraó a lançar todos os recém-nascidos judeus nas águas do Nilo. Essa seria a única forma de garantir a morte do líder judeu, cujo nascimento era iminente. Faraó seguiu o conselho de seus astrólogos e conselheiros. Moshé foi, de fato, jogado no Nilo, mas sobreviveu ao decreto de genocídio e foi o agente Divino responsável pela redenção do Povo Judeu.

Na realidade, o processo de redenção de nosso povo se iniciou antes do seu nascimento, por meio de três mulheres: Yocheved, Miriam e Bitia.

O Livro de Êxodo conta que duas parteiras judias se recusaram a acatar o decreto genocida do Faraó.

Segundo a Torá, “as parteiras temeram a D’us e não fizeram conforme o que o rei do Egito lhes dissera, e elas causaram com que os meninos vivessem” (Êxodo 1:17).

A Torá relata que as duas parteiras eram chamadas de Shifrá e Puá. O Talmud revela suas verdadeiras identidades: Yocheved, esposa de Amram, e sua filha Míriam, que, com apenas cinco anos, ajudava a mãe em seu trabalho. Conta o Midrash que, ao ouvir a ordem do Faraó de que todo menino hebreu recém-nascido devia ser jogado no Nilo, Míriam se revolta e diz: “Que rei mais malvado! Pobre de ti quando D’us for te punir”. Só a insistência de Yocheved em afirmar que Míriam era apenas uma criança salvou sua vida da fúria do rei do Egito.

Por “temer a D’us”, as parteiras não só desobedecem as ordens do rei como passam a acudir os recém-nascidos, alimentando-os e escondendo-os.

A Torá nos revela que D’us as recompensou por tal ato heroico de desobediência: “D’us construiu Casas para elas”. O Talmud explica que essas casas não foram habitações físicas, e sim, dinastias. Yocheved se tornou a mãe dos Cohanim e Levi’im e um dos descendentes de Miriam foi o Rei David, o maior monarca judeu (Sotá, 11b). Além disso, foram recompensadas por meio do nascimento de uma criança que mudaria a história do mundo. Por ter salvado os filhos de outras famílias judias, Yocheved deu à luz à maior alma que já veio ao mundo: Moshé Rabenu.

Mas o nascimento do maior profeta e líder judeu também se deve à sua irmã, Miriam. Quando o Faraó decretou que todo recém-nascido judeu seria atirado no Nilo, Yocheved e seu marido, Amram – líder do Povo Judeu à época –, se separaram, pois decidiram que era preferível não ter mais filhos a arriscar que Yocheved desse à luz a um menino, que seria

IluminUra da “seder hagadah shel pessach”, 1741, hamburgo. autor: yakov sofer ben yehudá leib SHAMASH DE BERLIM

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TANACHTANACH

Ensinam nossos Sábios: o maior de nossos profetas possuía vários nomes, inclusive aquele dado por seus pais quando nasceu, Tuvia. Mas, na Torá, D’us sempre o chama de Moshé – em reconhecimento à mulher que o salvou e criou. É interessante que o Livro das Crônicas se refere a Moshé como “ben Bitia” – filho de Bitia. Isso porque, apesar de não ter sido sua mãe biológica, a filha do grande vilão da história, salvou, educou e amou Moshé.

Em recompensa por seu heroísmo, ela foi imortalizada pela Torá. Não sabemos qual foi o nome dado a ela quando nasceu: a Torá a chama de Bitia, que significa “filha de D’us”, pois como ensina o Midrash: “D’us disse a ela: ‘Você adotou um filho e o chamou de Moshé, que significa ‘filho’ em egípcio. Eu farei o mesmo: Eu a adotarei e a chamarei de Minha filha’”.

Bitia foi a única egípcia a não ser atingida pelas Dez Pragas. Além disso, ela foi um dos pouquíssimos seres humanos a adentrarem o Mundo Vindouro sem ter falecido. Graças a seu heroísmo e generosidade, além de ser chamada de “filha de D’us” e ser considerada a mãe de nosso maior profeta, ela triunfou sobre o maior desafio da humanidade – a morte. Tal graça Divina não foi concedida nem mesmo a Moshé.

O que Yocheved, Miriam e Bitia nos ensinam

A palavra Torá advém de Hora’á – ensinamento. A Torá não é um livro de histórias, e sim, uma obra de autoria Divina que contém lições para todo o Povo Judeu, em todas as gerações. O heroísmo de Yocheved, Miriam e Bitia serve de exemplo para todos nós. A essas três grande mulheres, nós, o Povo

É notável que Bitia não estivesse só quando tomou essa decisão. Ela se encontrava na companhia de sua serva. Portanto, corria o risco de que seu ato se tornasse de conhecimento público, chegando aos ouvidos reais. Mas nem isso a fez titubear.

Após Bitia ter salvado Moshé do Nilo, ocorre algo extraordinário. Miriam, que havia profetizado que seu irmão seria o salvador dos judeus, permaneceu às margens do Nilo, observando a cesta onde se encontrava a criança. Miriam sabia que seu irmão não pereceria no Nilo. Quando ela vê que a filha de Faraó o recolhera, pergunta a Bitia: “Devo chamar uma mulher judia para amamentar a criança para você?”. “Vai”, responde Bitia. Miriam chama Yocheved e a mãe adotiva da criança diz à verdadeira mãe: “Leva esta criança e a amamenta para mim. Eu te pagarei por isso”.

Tal episódio evidencia a fé e coragem de Miriam. Ela nunca perdeu as esperanças de que seu irmão sobreviveria para salvar seu povo. Miriam tem a audácia de propor à própria filha de Faraó um plano para salvar um menino judeu. Ela sugere que Yocheved, a verdadeira mãe de Moshé, aja como se estivesse amamentando uma criança egípcia até que Bitia possa adotá-lo. Três mulheres – Yocheved, Miriam e Bitia – conspiram para salvar a vida de Moshé do decreto genocida de Faraó.

A Torá, então, nos conta que após o período de amamentação, Yocheved “o trouxe à filha do Faraó e ele foi para ela como filho...” (Êxodo, 2:10).Apesar das ordens do pai, o poderoso rei do Egito, Bitia adota a criança e a cria no próprio palácio do Faraó – o arqui-inimigo de nosso povo. E o cria como filho. É ela quem dá ao menino o nome de Moshé.

encontrando moshé. hagadá dourada, circa 1320, Espanha

morto no Nilo. Foi Miriam quem os convenceu do contrário, dizendo: “Pai, seu decreto é mais severo do que o do Faraó! Ele só decretou contra os meninos, seu decreto estende-se a todas as crianças, meninos e meninas”. Ela, que era uma profetiza, prometeu aos pais que eles teriam um filho que seria o salvador do Povo Judeu (Sotá, 12b-13a).

Mas há ainda uma terceira mulher responsável pela redenção de nosso povo. Seu nome: Bitia, a filha do Faraó. A Torá relata que, no dia em que Moshé foi posto em um cesto e jogado no Nilo, Bitia foi banhar-se no rio. Ela vê um cesto e um menino que se encontra nele, que chora. Apesar de estar ciente de que se trata de uma criança judia que havia sido lançada ao Nilo devido às ordens de seu pai, a princesa o salva. Relata a Torá: “Ela teve piedade dele e disse: ‘Este é um dos meninos hebreus’ ” (Êxodo 1:6).

Salvar a vida da criança significaria desobedecer a um decreto real. Isso é algo que se poderia esperar de um judeu, não de um egípcio – muito menos de um membro da família real – a própria filha de Faraó.

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Judeu, devemos nossa liberdade e todas as bênçãos que advieram dela – a Revelação no Monte Sinai, o recebimento da Torá e a Terra de Israel. Mas além de terem desempenhado um papel fundamental na história de nosso povo e da humanidade, essas três mulheres ensinaram lições que, decorridos mais de três milênios, continuam a reverberar. Elas nos ensinaram que mesmo quando há escuridão e maldade no mundo, cabe ao ser humano desafiá-las ao gerar luz e promover a bondade.

A coragem de Yocheved, Miriam e Bitia serve de argumento contra todos aqueles que alegaram ter feito o mal porque não lhes foi dado escolha – porque tinham a obrigação de seguir ordens. O ato de Bitia ao salvar Moshé Rabenu rechaça os argumentos apresentados pelos nazistas nos Julgamentos de Nuremberg.

Das três heroínas de Pessach, Bitia é quem nos ensina mais lições, entre elas, a de que não se deve julgar outros seres humanos por motivo

de nacionalidade, etnia ou religião. A salvação do Povo Judeu ocorreu por meio de uma mulher que, além de egípcia – membro do povo que nos escravizava e nos assassinava –, era a própria filha do líder antissemita da época. Foi a filha de um homem responsável por uma campanha de genocídio contra os judeus quem adotou, educou e protegeu nosso maior líder e profeta – aquele que não apenas liderou a libertação do Egito, mas trouxe a Torá dos Céus à Terra e conduziu nosso povo à nossa Pátria ancestral e eterna – Eretz Israel.

Há ainda outra lição a se aprender de Yocheved, Miriam e Bitia: a de que, cedo ou tarde, D’us recompensa abundantemente a bondade, a coragem e a generosidade. A Torá nos ensina que o Todo Poderoso tem grande afeto por aqueles que cumprem Sua vontade, apesar da oposição e das ameaças daqueles que desejam disseminar o mal e a escuridão pelo mundo. É nos momentos mais difíceis, de maior escuridão, que a luz brilha mais forte e que a bondade e a

canção de miriam, a profetisa - william gale, séc. 19

coragem se tornam mais aparentes.Pessach é a festa da liberdade. Ensina o judaísmo que o verdadeiro significado da liberdade é o livre arbítrio: o poder de escolher o bem e rejeitar o mal, independentemente de qualquer fator ou circunstância.

As três heroínas da história de Pessach não apenas corroboram o ensinamento de nossos Sábios de que a redenção de nosso povo ocorreu graças às mulheres, mas elas também personificam os temas da festa mais celebrada pelos Filhos de Israel: a liberdade, a desobediência ao mal, a coragem, a dignidade humana e a valorização da vida – temas universais e atemporais, que permeiam o judaísmo e que há mais de três milênios vêm influenciando a humanidade.

BIbliografia:

Rabi Sacks, Jonathan, Exodus: The Book of Redemption. Covenant & Conversation - A Weekly Reading of the Jewish Bible, Maggid Books & the Orthodox Union Rabi Munk, Elie,The Call of the Torah Rabi Weissman, Moshe,The Midrash Says

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Nossas grandes festas

história que leremos, a seguir, versa sobre Rabi Levi-Yitzhak de Berditchev, um dos maiores mestres do Movimento Chassídico. Logo após seu casamento, ele pediu permissão ao sogro para viajar a Mezeritch,

onde queria estudar com o líder dos Chassidim, o Rabi Dov Ber, conhecido como o Grande Maguid, o Grande Pregador. O sogro negou-lhe a permissão, mas o Rabi Levi-Yitzhak insistiu e perturbou-o até que ele cedeu, dando-lhe permissão de passar seis meses estudando em Mezeritch.

Rabi Levi-Yitzhak viaja, então, para estudar com o Grande Maguid. Ao voltar para casa, decorridos os seis meses, o sogro o recebe com um sorriso zombador. “Diga-me, Levi, o que foi que aprendeu em Mezeritch? O que aprendeu com aquelas pessoas estranhas – os Chassidim – que não pudesse ter aprendido aqui?”, perguntou. Rabi Levi-Yitzhak volta-se para o sogro e diz: “Agora sei que D’us existe”. Seu interlocutor fica chocado com a resposta. Agora ele sabe que D’us existe? Teria sua filha se casado com um ateu, um agnóstico?

O sogro chama, a seguir, uma mocinha que trabalhava em sua casa. Aponta para o céu, a grama, as árvores

e pergunta a ela: “Diga-me, como surgiu tudo isso?”. A garota responde, sem hesitar: “D’us o criou, claro!”. “Você está dizendo que D’us existe?”, perguntou. “Claro que D’us existe!”, ela disse, olhando-o como se ele tivesse perdido a razão.

Voltando-se para Rabi Levi-Yitzhak, o sogro diz: “Você está vendo, Levi? Ela não estudou em Mezeritch. Na verdade, ela nunca frequentou uma Yeshivá aqui na cidade, e ela sabe que D’us existe”. Rabi Levi Yitzhak volta-se para o sogro e, dessa vez, é ele quem sorri ao falar: “Você não entende... Ela diz que D’us existe. Eu sei que D’us existe”…

A Verdade, segundo o Judaísmo

Esse relato representa a própria definição de religião de acordo com o judaísmo. A religião não consiste em dizer ou acreditar em certos fatos – mas em saber certos fatos. Segundo o judaísmo, a religião é a busca da Verdade. Religião e Verdade são sinônimos. D’us e Verdade são sinônimos. A palavra hebraica para Verdade, Emet, é um dos nomes de D’us, e, como ensina o Talmud, é a própria chancela

A

conhecimento e fé

“Não esqueças as coisas que os teus olhos viram e para que

não saiam do teu coração todos os dias da tua vida; e as farás

conhecer aos teus filhos e aos filhos de teus filhos – no dia

em que estiveste diante do Eterno, teu D’us, em Horeb, quando

o Eterno me disse: ‘Junta-me o povo e o farei ouvir as Minhas

palavras, para aprender a temer-Me todos os dias em que viver

na terra, e para que as ensinem a seus filhos’”.

(Deuteronômio 4:9-10)

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Divina. A busca por D’us, portanto, é a busca pela Verdade.

Segundo o Talmud, a grafia em si da palavra Emet define o que realmente constitui a Verdade. Essa palavra hebraica é formada por três letras: Alef, Mem e Taf. Alef é a primeira letra do alfabeto hebraico, Mem é a letra do meio e Taf é a última. A grafia de Emet nos ensina que a Verdade precisa ser consistente: algo só é verdadeiro quando é consistentemente verdadeiro; quando seu início, seu meio e seu fim são verdadeiros. Algo que é uma meia-verdade, incoerente ou inconsistente, não é Verdade.

Muitos julgam que a religião e a Verdade são nitidamente opostas. Acreditam que a religião e o conhecimento são, em geral, contrários – que a religião exige que substituamos o conhecimento pela fé.

O judaísmo rejeita, categoricamente, essa visão. Proclama que D’us e Sua Torá – que é Sua Vontade e Sabedoria – são a Verdade Suprema, e que se encontrarmos uma contradição entre a Torá e a Ciência, isso se deve ao fato de termos uma compreensão errônea de uma das duas – ou de ambas.

Como veremos a seguir, a fé não significa o abandono da razão ou do conhecimento. O Talmud, espinha dorsal da Lei e tradição Judaicas, é quase inteiramente baseado no conhecimento e lógica. Rabi Shimon Bar Yochai, o grande místico e autor do Zohar, obra fundamental da Cabalá, que também foi um dos maiores Sábios do Talmud, defende a ideia de que há um motivo racional para as leis da Torá. O conceito de dogma, de fé cega, de aceitação do absurdo e do ilógico, é estranho ao judaísmo. É verdade que como

D’us e Sua Sabedoria são Infinitos, nós, criaturas finitas, jamais O entenderemos ou a Sua Torá por completo. Isso, no entanto, não significa que não entendamos nada acerca d’Ele ou de Sua Sabedoria. Fazendo uma analogia: há vários problemas na Matemática que não foram solucionados. Isso não significa que nada saibamos sobre essa ciência. Há uma diferença abismal entre não saber tudo e não saber nada.

Ser humano algum, nem mesmo Moshé Rabenu, pode entender plenamente D’us e Sua Vontade. Mas isso não significa que a Torá exige aceitação cega. Mesmo suas leis conhecidas como Chukim, popularmente definidas como as “leis não racionais”, não são dogmas. As Chukim não são ilógicas: simplesmente requerem um grande cabedal de conhecimento e sabedoria para serem compreendidas.

exodus. marc chagall, 1968

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Por exemplo, algumas pessoas creem que a proibição de comer carne e leite juntos seja ilógica – algo que pode ser aceito apenas através da fé. Mas para alguém que estudou o judaísmo em profundidade e compreende o funcionamento das Sefirot – e o que a carne e o leite representam – as razões para a proibição de comê-los juntos ficam muito claras. O mesmo se aplica a todos os mandamentos da Torá. Nada é absurdo ou ilógico, mas algumas leis requerem muita sabedoria e conhecimento para serem compreendidas.

Qual seria, então, o papel da fé no judaísmo? Sem dúvida, um papel central, mas não da maneira como o crê a maioria das pessoas. A palavra hebraica para fé, “Emuná” não significa fé cega – a suspensão da razão e da lógica. Essa palavra origina-se da raiz “Aman”, que significa basear-se seguramente ou confiar em algo. Segundo a Torá, Emuná significa acreditar naquilo que é de confiança. O motivo para a fé ter um papel central no judaísmo é por desempenhar um papel fundamental na vida. Quer o saibamos ou não, todos os seres humanos – até os mais céticos – utilizam a Emuná. Nós a empregamos todos os dias, em cada momento de nossa vida, consciente ou inconscientemente, ativa ou passivamente.

Exercemos uma medida de fé mesmo quando estamos em casa, sem fazer nada: temos fé que o teto não vá ruir e que o edifício não vá desmoronar-se, apesar de sabermos que coisas assim acontecem. Exercemos a fé quando viajamos de avião: acreditamos que a aeronave esteja funcionando adequadamente e que o piloto saiba o que está fazendo, apesar de não podermos garantir nenhuma das duas situações.

Também empregamos a fé quando lemos o jornal e acreditamos no que lemos, mesmo sabendo que os jornais são, geralmente, subjetivos e, ocasionalmente, contêm informações erradas. Exercemos a fé quando acreditamos no que nossos professores e livros de História nos ensinam.

O que sabemos é, em maior ou menor extensão, baseado em Emuná, porque não podemos ter certeza de nada. Sequer podemos ter certeza de que nosso mundo não é um mundo da fantasia, uma ilusão, como o creem os místicos orientais. Diante da inexistência da prova absoluta, temos que fazer uso da Emuná; temos que presumir muitas coisas e tentar buscar a verdade de forma honesta, o que significa ser intelectualmente honesto e consistente – sem empregar padrões morais duplos – dois pesos e duas medidas, ou utilizar argumentos emocionais para tentar silenciar os racionais.

Conhecimento, Fé e Falácias

Para discutir adequadamente o papel que o conhecimento e a fé desempenham no judaísmo, é necessário primeiro reconsiderar nossas definições de ambos os conceitos. A quase totalidade de nosso conhecimento se baseia em dois pontos: a probabilidade e a fé de que fatos históricos foram corroborados por fontes independentes antes de serem aceitos como verdadeiros. Quase todo o conhecimento científico se baseia em probabilidades – há poucos fenômenos, se é que existe algum, que sejam infalíveis.

Consideremos o seguinte cenário: um cassino é acusado

A festa de Shavuot

celebra a Revelação

Divina no Sinai e a

transmissão dos Dez

Mandamentos, que

são o núcleo dos 613

mandamentos da Torá.

Hagadá de pessach

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de adulterar a roleta, mas se nega veementemente a admiti-lo. A roleta é dividida em 37 segmentos, numerados de 0 a 36. Suponhamos que tenha girado 1.000 vezes e que sempre pare no mesmo número. Pode-se concluir daí que houve adulteração? Provavelmente – mas não há certeza. Estatisticamente, não é impossível que a roleta pare no mesmo número 1.000 vezes seguidas. Na verdade, pode-se fazer girar a roleta de agora até o infinito, e a mesma poderia sempre parar no mesmo número sem que estivesse adulterada. As chances de tal fato acontecer são infinitesimais, mas existem. Se afirmássemos saber que o cassino havia adulterado a roleta e o considerássemos responsável pela fraude, estaríamos empregando uma medida de fé – ou seja, apesar de não estarmos absolutamente seguros do que dizíamos, acreditávamos que a roleta estivesse adulterada em virtude de ser muito pequena a probabilidade de não o estar.

No entanto, há uma enorme diferença entre algo improvável e algo impossível. Uma chance em

um trilhão não é a mesma coisa que chance zero. No caso da roleta, não há chance alguma de que pare no número 40, simplesmente porque este não é um de seus números. Mas sempre há uma chance, por menor que seja, de que alguém possa fazê-la girar indefinidamente e ela sempre pare no mesmo número.

Como no exemplo acima, quase todo o conhecimento científico é calcado em probabilidades – em tentativa e erro. Qualquer cientista honesto e competente pode confirmar que as Ciências se baseiam em teorias – não em leis absolutas. A certeza absoluta não existe – nem mesmo no reino das “ciências exatas”. Exemplificando: A Ciência pode mostrar-nos, na teoria e na prática, a razão pela qual alguém que ande descalço sobre brasas de carvão incandescente queima os pés. Contudo, há pessoas que andam sobre brasas – o fenômeno religioso praticado em várias regiões do planeta, chamado de “Andar sobre fogo”– sem queimar nem ferir os pés.

Quando se trata de conhecimento acerca de eventos, como sabemos o que é ou não verdade? Como sabemos que Hiroshima sofreu um ataque nuclear durante a 2ª Guerra Mundial e que o Rio de Janeiro nunca foi atacado? Muitos de nós não tínhamos nascido nessa época; como saber, então, o que realmente aconteceu? Baseamo-nos no testemunho de terceiros. Quanto maior for a corroboração – quanto mais testemunhas independentes houver, reduzindo a possibilidade de conluio – mais disposição teremos para considerar o fato como verdadeiro. Nenhum de nós pode voltar no tempo ou estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Além do mais, não dispomos dos recursos nem do tempo para corroborar pessoalmente tudo o que nos conta a imprensa escrita ou falada. Usamos de boa-fé ao acreditar que as notícias transmitem a verdade porque há fontes independentes – jornalistas que trabalham em mídias concorrentes – que se beneficiariam se pudessem desacreditar a concorrência. Mesmo se vivêssemos em um regime

Leões segurando as tábuas da Lei. Marcus Charles Illions (1865-1949), Brooklyn, EUA

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Nossas grandes festas

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totalitário, com controle da mídia, os oponentes internos ou externos do governo deixariam vazar a verdade. Um governo pode mentir se assim o quiser, e pode controlar a imprensa e silenciar a oposição, mas não pode forçar seu povo a acreditar nas mentiras, nem, muito menos, a transmiti-las a seus filhos. O excelente romance político de George Orwell, 1984, descreve o quão difícil é, mesmo para a mais brutal das sociedades totalitárias, fazer lavagem cerebral em todo um povo. Como o disse, brilhantemente, Abraham Lincoln: “Você pode enganar uma pessoa por muito tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar a todas por todo o tempo”.

Um dia, a verdade vem à tona, especialmente se o assunto diz respeito a muitas pessoas. Fica relativamente fácil corroborar sua veracidade.

O que hoje é notícia, amanhã é história. Acreditamos que eventos históricos importantes, que envolveram um grande número de pessoas, realmente ocorreram porque há muitas testemunhas independentes que poderiam confirmar sua veracidade e deixar vazar a verdade, no caso de uma deturpação da realidade.

Quando alegamos saber algo, o que estamos realmente dizendo é que a probabilidade daquilo ser verdade é indubitável, está além de qualquer dúvida. Ser indubitável é o padrão de evidência exigido para validar uma condenação criminosa. Se alguém é acusado de ter cometido um crime por uma única testemunha, ele pode alegar que a testemunha está mentindo. Se houver mais testemunhas, ele pode alegar que estão conspirando

contra ele. Quando são milhares de testemunhas, a probabilidade de estarem enganadas no que viram ou estarem conspirando, é muito pequena – está praticamente além de qualquer dúvida.

Mentiras e tramas conspiratórias que envolvam milhões ou mesmo milhares de pessoas têm vida curta porque é enorme a possibilidade de vazamentos. Pois, como convencer milhares de pessoas a contar uma mesma história deturpada? Como convencer todas essas pessoas a nunca contar a verdade a ninguém – a nenhum amigo, nem a seus filhos ou netos? Os recentes escândalos envolvendo Edward Snowden e a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) evidenciam que basta um indivíduo vazar os segredos que envolvem um grande número de pessoas. Nas palavras do próprio Snowden: “… informar ao público o que é feito em seu nome e o que é feito contra eles”.

Quanto maior a mentira, a deturpação ou a conspiração, e quanto mais pessoas estiverem envolvidas, mais fácil será refutá-la.

Revelação Pública: a Base do Judaísmo

Muitos acreditam, erroneamente, que a fé judaica se baseia no Êxodo do Egito – nas pragas e na divisão do Mar dos Juncos. Eles talvez argumentem que se esses fenômenos pudessem ser racionalmente explicados, a veracidade do judaísmo seria questionada. Trata-se de uma concepção muito errada – não apenas porque a fé judaica ensina que D’us opera através das leis da natureza que Ele criou – mas porque, no que toca ao judaísmo, milagres e maravilhas pouco provam. As pragas e a divisão do mar serviram a um propósito

prático – libertar o Povo Judeu do Egito – mas não têm praticamente influência alguma em nossas crenças.

A Torá nos ensina que a fé judaica não é calcada em milagres. Quando D’us aparece, pela primeira vez, a Moshé, ordenando-lhe que volte ao Egito e informe ao Povo Judeu que Ele os libertará da escravidão, Ele lhe diz: “Porque estarei contigo, e isto será para ti o sinal de que Eu te enviei; depois de haveres tirado o povo do Egito, servireis a D’us sobre este monte” (Êxodo, 3-12)”. D’us informou a Moshé que o Povo Judeu acreditaria nele em virtude da revelação que ocorreria “na montanha”, o Monte Sinai, e não por causa dos milagres e maravilhas que a antecederiam.

Maimônides ensina que a verdadeira fé não pode basear-se em milagres porque sempre resta uma dúvida persistente de que tivessem sido inventados ou realizados por outro meio que não a intervenção Divina. Ele ainda explica que isso foi a base do temor de Moshé de que os judeus não acreditassem nele mesmo se ele realizasse milagres para provar que D’us o havia indicado como Seu agente. “E eles não me crerão”, Moshé responde a D’us, “nem ouvirão a minha voz, pois dirão, ‘Não apareceu a você o Eterno’” (Êxodo, 4:1). Moshé percebeu que nem mesmo a maior das maravilhas poderia induzir à crença perfeita. Para refutar esse medo, D’us lhe assegurou que a Nação Judaica vivenciaria uma Revelação Divina no Monte Sinai, removendo-lhes qualquer dúvida. A fé de Israel em Moshé e em sua profecia não se basearia, então, em fatos sobrenaturais, mas na experiência coletiva de milhões de pessoas no Monte Sinai, onde lhes ficaria indiscutivelmente

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claro que D’us falava com eles (Hil. Yesodei Ha’Torá, 8:2). Os milagres, independentemente de quão numerosos ou assombrosos, não podem ser fonte de crença para ninguém – não apenas porque seja controvertida a própria definição do que é um milagre – mas porque não apenas o verdadeiro profeta de D’us tem a capacidade de realizar atos sobrenaturais. Os feiticeiros do Faraó, que eram idólatras, conseguiram transformar cajados em serpentes e as águas do Egito em sangue. O profeta Bilaam, que era o mais malvado e depravado dos seres humanos, era um profeta tão poderoso quanto Moshé. A capacidade de prever o futuro ou de realizar milagres – milagres verdadeiros, não ilusões ópticas – prova apenas uma coisa: que quem os realiza possui um talento muito raro.

De fato, povos de quase todas as religiões realizaram milagres. Se os milagreiros comprovassem a validade de sua religião, teríamos que acreditar em quase todos elas, o que seria um absurdo teológico e lógico, pois a maioria delas é mutuamente exclusiva.

Acreditamos no judaísmo não por causa de Moshé, nem das pragas ou da divisão do mar, mas porque D’us, Ele Próprio, Se revelou perante 600.000 judeus e suas famílias, no Monte Sinai. A veracidade de um evento público testemunhado por milhões de pessoas é muito difícil de ser refutada. O judaísmo baseia-se em um evento público que envolveu uma miríade de pessoas, e não no carisma de um líder, poderes da fala, ou habilidades sobrenaturais. O judaísmo não se baseia no que seu maior líder vivenciou, mas no que toda a primeira geração de judeus vivenciou. Nós acreditamos no judaísmo não por acreditar em

Moshé, mas porque acreditamos no testemunho de milhões de judeus.

O grande astrônomo judeu americano, Carl Sagan, disse certa vez que, “Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias”. D’us optou por Se revelar ao Povo Judeu inteiro porque o testemunho de milhões de pessoas constitui evidência extraordinária que corrobora uma alegação extraordinária. A palavra de um homem – independentemente de quão sagrado ou poderoso seja – não constitui evidência extraordinária. Tampouco o é o testemunho de um pequeno grupo de pessoas. Ainda que sejam verdadeiras, sempre é

Miniatura que retrata Moshé recebendo as Tábuas da Lei. Museu Israel, Jerusalém

Acreditamos no

judaísmo não por causa

de Moshé, nem das

pragas ou da divisão do

mar, mas porque D’us,

Ele Próprio, Se revelou

perante 600.000 judeus

e suas famílias, no

Monte Sinai

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Nossas grandes festas

possível que estejam enganadas acerca do que viram. No entanto, é muito difícil que três milhões de pessoas fabriquem uma história ou que estejam erradas no que viram, ouviram e vivenciaram.

À luz do que vimos acima, podemos entender por que a Torá afirma categoricamente que somente após a Revelação no Sinai o Povo Judeu acreditaria em Moshé para todo o sempre. Antes do Sinai, alguém o poderia ter desmistificado como um feiticeiro que derrotara os feiticeiros do Faraó. Poderia argumentar que as pragas no Egito e mesmo a divisão do mar foram coincidências: aberrações estatísticas, que, como vimos acima, não constituem provas absolutas. Mas quando milhões de pessoas viram-se diante de D’us, não houve mais lugar para especulação ou para análise de probabilidades estatísticas. Mesmo os inimigos e adversários de Moshé, inclusive seu primo Korach, que tentou organizar

Dez Mandamentos entalhados em painel

de madeira, Inglaterra, início do séc. 19

bezerro de ouro, nunca tiveram a audácia de negar a veracidade da Revelação Divina no Sinai.

É muito difícil de crer que milhões de judeus tenham inventado a história da Revelação ou concordado em respeitá-la, sabendo que era uma falácia. É ainda mais difícil de acreditar que, fosse uma invenção, ninguém a tivesse desmascarado e revelado a verdade. Contudo, de fato não há prova absoluta que corrobore esta extraordinária alegação – assim como não há prova absoluta de nada. Pode-se sempre conjecturar que talvez o Povo Judeu tenha imaginado ou sonhado sobre a Revelação. Talvez tenham inventado a história e convencido outros milhões de pessoas, judeus ou não, sobre sua veracidade. Tudo é possível: às vezes, mesmo as mais improváveis teorias conspiratórias são comprovadas. É aí que entra em cena a Emuná – a fé verdadeira: quando optamos por acreditar porque há evidência

um golpe de estado, não puderam negar nem questionar a veracidade da Revelação Divina no Sinai.

Fosse a Torá um livro de mitos ou uma combinação de realidade e ficção, poderíamos talvez argumentar que a Revelação Divina no Sinai fosse um de seus relatos ficcionais. Mas os judeus sempre insistiram que os eventos relatados nos Cinco Livros da Torá devem ser levados ao pé da letra. Portanto, há apenas duas possibilidades reais do que possa ter acontecido no Sinai: ou foi uma Revelação Divina, como relata a Torá, ou uma conspiração de massa, envolvendo milhões de pessoas que fabricaram uma história, ou, no mínimo, concordaram em levar avante essa mentira, evitando, de alguma forma, que a verdade viesse à tona. Nenhuma dessas pessoas nem nenhum de seus filhos escreveu seu relato pessoal, contradizendo a Torá. Até mesmo os inimigos de Moshé, mesmo aqueles que adoraram o

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monte sinai

BIbliografia:

Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Epistemological Methodology in the Study of Religion - www.torahcafe.com Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, What is Faith? - www.torahcafe.com Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Did G-d really write the Torah? www.torahcafe.com The Stone Chumash - The Torah, Haftaros, and Five Megillos with a commentary from Rabbinic writings, Editada por Rabi Nosson Scherman, ed. Artscroll Mesorah

suficiente para fazê-lo, ainda que não haja certeza absoluta.

A Emuná que o judaísmo espera dos judeus é a mesma exigida pelos outros campos do conhecimento. Como o pilar do judaísmo foi um evento público que envolveu milhões de pessoas, trata-se de verdade histórica, não de fé cega. Isso significa que acreditar na Revelação Divina no Sinai e, portanto, na verdade do judaísmo, não é um ato de credulidade, mas sim de Emuná. A verdadeira fé, do tipo que o judaísmo espera de cada um dos judeus, é uma ponte pequena que liga a probabilidade à certeza. Precisamos da mesma porque, na verdade, não podemos ter 100% de certeza sobre nada.

Como na história sobre o Rabi Levi-Yitzhak de Berditchev, há uma diferença abismal entre dizer que D’us existe e saber que Ele existe.

O judaísmo não exige fé cega, mas não é justo exigir mais corroboração da Torá do que da História ou das Ciências.

O judaísmo é a busca da Verdade, e por isso se iniciou da forma em que tudo ocorreu: para que nossa conexão com D’us e Sua Torá não fossem produto da fé cega. D’us poderia ter-Se revelado apenas a Moshé Rabenu e aos judeus que mais o merecessem, mas Ele optou por revelar-Se a todos, desde o mais simples deles. Era a única maneira de assegurar que nossa fé em D’us e em Sua Torá não fossem calcadas nos ensinamentos de um indivíduo ou de um grupo de pessoas. Consequentemente, nós, judeus, não acreditamos em D’us por acreditar em Moshé, mas sim, acreditamos em Moshé por acreditar em D’us.

A festa de Shavuot celebra a Revelação Divina no Sinai e a transmissão dos Dez Mandamentos, que são o núcleo dos 613

mandamentos da Torá. Shavuot é o momento propício do ano para que todos os judeus fortaleçam sua conexão com D’us e Sua Torá, não por fé cega ou convenção social, mas porque há evidências avassaladoras que atestam a veracidade do evento mais extraordinário da História, ocorrido 50 dias após a libertação de nosso povo do Egito.

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alegação extraordinária de que D’us Se revelou aos seres humanos baseia-se em extraordinária evidência: o testemunho de uma geração inteira de judeus – cerca de 3 milhões de pessoas. A Torá registra o

evento, mas o Povo Judeu também transmitiu oralmente, de uma geração a outra, a noção de que, sete semanas após o Êxodo do Egito, D’us abertamente Se revelou aos Filhos de Israel e proclamou os Dez Mandamentos, que são o núcleo das 613 mitzvot do Judaísmo. Ano após ano, na festa de Shavuot, lembramo-nos e celebramos esse evento, o mais importante na história da humanidade.

Milhões de judeus deixaram o Egito, o que significa que houve milhões de testemunhas independentes para verificar ou negar o relato da Revelação Divina, especialmente durante as primeiras duas ou três gerações após o fato ter ocorrido. Para lançar dúvidas sobre o evento, bastaria que um grupo de judeus contasse a seus filhos que era uma inverdade o relato da Torá acerca de D’us se ter revelado a todos os judeus que deixaram o Egito. A Torá está ciente de que é muito difícil negar a veracidade histórica da Revelação Divina no Sinai e, corajosamente, oferece este desafio a todos os judeus: “Podes perguntar, pois, pelos dias passados que te precederam, desde o dia em que D’us criou o homem

sobre a terra... Se houve jamais uma coisa grande semelhante a esta, ou se ouviu coisa igual a ela? Se um povo ouviu a voz de D’us falar no meio do fogo, como ouviste tu e ficaste vivo?” (Deuteronômio, 4:32–33) A Revelação Divina no Sinai é o princípio fundamental do Judaísmo porque permitiu não apenas à geração conduzida por Moshé, mas também a todas as subsequentes gerações judias conhecerem, e não apenas acreditarem, que existe um D’us e que a Torá é a Sua Palavra e Vontade. Nós acreditamos em Moshé porque acreditamos em D’us – e não ao contrário. Essa distinção é da maior importância. O judaísmo não se originou com o homem. Nenhum dos três patriarcas – Avraham, Itzhak e Yaakov – nem Moshé e seu irmão Aaron, fundaram a fé judaica. O judaísmo começa e termina com D’us.

A Revelação no Sinai é o pilar do judaísmo porque fundamenta Moshé como porta-voz e agente Divino: um canal confiável para a transmissão da chancela Divina no mundo – a Vontade e a Sabedoria Divinas – que é a Torá. Não há erro maior acerca do judaísmo do que a crença de que Moshé escreveu a Torá ou de que ele é o criador da Lei Judaica. Ele foi o maior dentre os profetas e líderes judeus: trouxe a Torá dos Céus à Terra e a ensinou a nosso povo – por esse motivo, é chamada de a Torá de Moshé –,

a

OS FUNDAMENTOS DO JUDAÍSMO

“Rabi Yochanan ensinou: A maioria das leis da Torá é

fundamentada na transmissão oral e apenas a minoria nas

Escrituras. Pois está escrito: ‘Por meio da boca (palavras

transmitidas oralmente), Eu (o Eterno) fiz uma aliança contigo

e com Israel’ (Êxodo 34:27)”. Se a aliança de D’us com Israel foi

estabelecida por meio de leis que foram transmitidas oralmente,

isso significa que estas constituem a maioria da Torá”.

(Talmud Bavli, Gitin, 60b)

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mas não escreveu uma única letra da mesma. Moshé apenas transcreveu os Chamishei Chumshei Torá – os Cinco Livros da Torá. Foi o copista, não o autor. A Torá é a palavra de D’us, não a de qualquer profeta, nem mesmo do maior dos profetas de todos os tempos. A Revelação Divina no Sinai não apenas removeu todas as dúvidas sobre a Existência Divina e Seu interesse em Sua Criação. Também corroborou o fato de Moshé ser um profeta verdadeiro e fidedigno, e de que a Torá que ele trazia dos Céus ser um livro de autoria Divina, não humana.

A Autoria Divina da Torá

Nós, judeus, acreditamos na Torá devido à Revelação Divina no Sinai, mas também acreditamos na Revelação por causa da Torá. O evento e seus relatos escritos e orais se entrelaçam. Por um lado, a Revelação Divina evitou que o Povo Judeu duvidasse do papel de Moshé como profeta e agente de D’us e de atribuir a ele a autoria da Torá. Por outro, a Torá corrobora a veracidade da revelação explícita de D’us ao Povo Judeu. Ao afirmar que a Revelação ocorreu perante milhões de judeus, a Torá se expôs ao desafio. Vimos no artigo Judaísmo, Conhecimento e Fé que é praticamente impossível sustentar uma alegação de tal magnitude a menos que seja verdadeira; portanto, temos boas razões para crer que a Torá diz a verdade. Em outras palavras, a Revelação

Divina dá à Torá credibilidade como uma obra de Divina autoria, ao passo que a Torá registra e comprova a veracidade histórica do evento mais extraordinário na história humana.

O processo de transmissão da Torá ao Povo Judeu se iniciou após a Revelação Divina e a proclamação dos Dez Mandamentos. Ao longo da jornada de 40 anos no Sinai, D’us transmitiu a Torá a Moshé, letra por letra. Moshé as anotou, como um secretário o faria. Quando lemos a Torá, portanto, estamos ouvindo a Fala Divina. Por vezes, Ele fala na primeira pessoa e por vezes na terceira – como quando fala através de Moshé, particularmente no quinto livro da Torá –, mas é sempre Ele quem fala.

Além da Torá Escrita, D’us transmitiu a Moshé a Torá Oral. Ambas eram igualmente necessárias. Se D’us não lhe tivesse dado a Torá Escrita – se a tivesse transmitido apenas oralmente –, provavelmente sua transmissão não seria tão límpida e imaculada; acabaríamos por enfrentar versões diferentes devido à má compreensão e consequente transmissão errônea de Seus Mandamentos. Um documento escrito ajuda a evitar que isso ocorra. Ao mesmo tempo, um documento escrito, especialmente se contém conceitos e leis complexos, exige explicação oral, pois é comum entendermos e interpretarmos errado o que lemos. Em resumo, a Torá Escrita preserva a precisão

Shavuot. Óleo sobre tela, Moritz Daniel Oppenheim, 1880

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da Torá Oral, ao passo que a Torá Oral explica e elucida a Torá Escrita, evitando que esta seja mal-entendida e mal interpretada.

A Autoridade Suprema da Torá

Moshé foi o maior profeta judeu de todos os tempos. D’us e Moshé se comunicavam entre si como dois amigos, íntimos. Por isso foi possível a D’us transmitir a Torá, letra por letra, a Moshé enquanto estava desperto e plenamente consciente. Outros profetas tiveram visões ou receberam mensagens Divinas durante seu sono ou em estado alterado de consciência. Tiveram, pois, que descrever com suas próprias palavras o que viram ou ouviram. Nenhum profeta judeu, nem mesmo os Patriarcas, possuíram a visão profética clara e transparente de Moshé.

D’us transmitiu informações precisas a ele. Os Cinco Livros da Torá não são apenas mensagens Divinas, mas a fala Divina. Em contraste, as palavras gravadas no livro dos Profetas (Nevi’im) são mensagens Divinas, mas não são palavras literais de D’us. Isso significa que apesar de todo o Tanach (Torá, Nevi’im, Ketuvim – Torá, Profetas e Escritos) ser sagrado, não há comparação entre seus

primeiros cinco livros, a Torá, e os demais. Essa distinção tem importância capital. O judaísmo se inicia e termina com os Chamishei Chumshei Torá. É totalmente proibido extrair qualquer lei bíblica a partir dos Profetas ou dos Escritos. A única fonte de Lei Bíblica é a Torá. No judaísmo, os Profetas e os Escritos podem apenas prover um suporte e corroboração – uma Asmachtá – a uma lei da Torá. Nevi’im e Ketuvim são livros sagrados, mas não podem agregar, subtrair ou modificar qualquer verso ou lei dos Cinco Livros da Torá. Somente leis rabínicas, como os mandamentos de Purim (uma festividade rabínica) podem-se originar de Nevi’im e Ketuvim. Leis bíblicas, como as de Yom Kipur, Shabat, Cashrut, Tefilin, Mezuzá etc., são ditadas exclusivamente pela Torá. Se alguém quiser ousar e argumentar que um decreto rabínico é tão rigoroso quanto um bíblico, e que, portanto, não deveria haver distinção entre a Torá e o restante do Tanach, que esse alguém tente argumentar que não ouvir a Meguilat Esther em Purim é tão grave quanto não jejuar em Yom Kipur.

A regra essencial de que a Torá é o cerne do judaísmo é de grande relevância para o Povo Judeu. O fato de a Torá ser a primeira e a última palavra sobre o judaísmo tem profundas ramificações: significa que a fé judia não depende dos Nevi’im e dos Ketuvim. Nenhum profeta – nem Isaías, nem Jeremias nem Ezequiel – tinham autoridade de alterar a lei da Torá sob nenhum aspecto. Nenhum versículo do Livro dos Salmos pode ser usado para contradizer um versículo da Torá. Se algum profeta ousasse fazê-lo, seria considerado um falso profeta e acusado de pecado capital, ainda que suas profecias se realizassem, que realizasse milagres extraordinários e fosse carismático ou generoso. Os profetas não tinham autoridade alguma de modificar permanentemente a lei da Torá. Como os Cinco Livros da Torá foram escritos por D’us, nenhum ser humano, nem mesmo Moshé, poderia jamais revogar ou modificá-la de alguma forma.

Como vimos acima e no artigo Judaísmo, Conhecimento e Fé, a base do judaísmo é a Revelação Divina no Monte Sinai. D’us, em Sua Plenitude, fez-Se ver a cada um dos judeus da geração que deixou o Egito e lhes transmitiu os Dez Mandamentos, que são o núcleo dos 613 mandamentos da Torá. Se não tivesse havido essa Revelação – se Moshé ou os profetas posteriores tivessem escrito a Torá – seria possível argumentar que eles teriam autoridade para modificá-la. No entanto, como foi repetidamente mencionado acima, Moshé não escreveu a Torá – ele a transcreveu e a ensinou. D’us escreveu a Torá – em sua íntegra. Ele é o único Legislador da Lei

Moshé recebe as Tabuas da Lei, Marc CHagall, 1950-52

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nos desviar para outras fés. Além disso, como vimos acima, os versículos e passagens de Nevi’im e Ketuvim são irrelevantes para a Lei e prática judaicas. Sequer importa de que forma tais passagens são interpretadas, seja literalmente ou não.

Se, por exemplo, o profeta Isaías dissesse ao Povo Judeu que as leis de Cashrut já não mais se aplicavam, não apenas não lhe faríamos caso, como o levaríamos à Corte Suprema Judaica para ser julgado por ser um falso profeta. Na verdade, é interessante observar que esse profeta foi acusado por seu próprio neto, o rei Menashé, de ter feito declarações que contradiziam certos princípios da Torá. O profeta foi julgado, condenado à pena capital e brutalmente executado. Se as intenções do Rei em condenar seu avô eram maldosas e se as acusações eram infundadas não é relevante para nossa discussão. O que é digno de nota é que o maior profeta desde Moshé foijulgado e condenado à morte por ter feito declarações que alegadamente contradiziam certos princípios da Torá.

Não desejamos implicar que as palavras do profeta Isaías ou de qualquer genuíno profeta judeu contradiga a Torá, de alguma forma. De fato, o principal papel dos profetas era levar o Povo Judeu a fortalecer o seu cumprimento da Torá. Não é coincidência o fato de que o último dos profetas do Tanach, Malachi, conclua suas palavras proféticas com a seguinte mensagem Divina: “Recorda-te da Torá de Moshé, Meu servo” (Malachi 4:4).

Judeu algum deve tentar abraçar outra religião ou filiar-se a outro culto porque alguém realizou ou alegou ter realizado milagres e maravilhas. Ademais, todos os judeus devem estar cientes de que o judaísmo não pode ser ameaçado, de forma alguma, por interpretações de outros credos de passagens dos Nevi’im ou dos Ketuvim. As palavras de um ser humano jamais poderá ou terá precedência sobre as palavras de D’us, que constituem os Cinco Livros da Torá.

A Torá Oral

D’us ditou a Torá Escrita a Moshé e o ensinou como deveria lê-la e elucidá-la – e como cumprir seus mandamentos. Esse “Guia Divino à Torá Escrita”, transmitido a Moshé e ensinado subsequentemente ao Povo Judeu durante sua longa jornada no deserto, é conhecido como a Torá Oral.

A Torá Escrita original transmitida por D’us a Moshé foi uma longa sequência de letras sem divisão entre as

Judaica. Os Profetas e os Sábios são o poder judiciário, não o legislativo, do judaísmo. A própria Torá dá-lhes permissão de interpretar a Lei e mesmo de criar leis rabínicas que servem de proteção para que as leis bíblicas não sejam violadas. Contudo, nenhum ser humano, independentemente de seu grau de inteligência ou espiritualidade, pode criar, modificar ou revogar as leis da Torá. Além disso, qualquer lei rabínica precisa ter alguma base na lei bíblica.

Esse princípio fundamental do judaísmo é explicitamente declarado no quinto livro da Torá. Pois está escrito: “Se um profeta, ou um sonhador, se levantar no meio de ti e te der um sinal do céu ou um milagre da terra, e realizar-se o sinal ou o milagre de que te falou, e te disser: ‘Vamos atrás de outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los! ’ – não obedecerás às palavras daquele profeta ou daquele sonhador; porque o Eterno, vosso D’us, vos está testando para saber se amais o Eterno, vosso D’us, com todo vosso coração e com toda vossa alma. Após o Eterno, vosso D’us, andareis; a Ele temereis, Seus Mandamentos guardareis e a Sua Voz ouvireis; a Ele servireis e a Suas qualidades adotareis. E aquele profeta ou aquele sonhador será morto, porquanto pregou falsidade em Nome do Eterno, vosso D’us, que vos tirou da terra do Egito e que vos redimiu da casa de escravos, para vos desviar do caminho que o Eterno, vosso D’us, vos ordenou para andar nele; e eliminarás o mal do meio de ti” (Deuteronômio, 13:2-6).

Se alguém questionasse por que D’us daria poderes sobrenaturais a um ser humano que os usaria para se opor à Sua Vontade, a Torá prontamente dá a resposta: porque D’us está testando sua fé.

D’us nos fez saber por meio de Sua Torá que nenhum ser humano – tem a autoridade de modificar ou revogar a Lei Judaica. Um homem pode realizar os maiores milagres – pode prever com precisão o futuro e fazer do dia noite e da noite, dia. Mas mesmo assim estamos proibidos de segui-lo se ele pronunciar uma única palavra contra a Torá.

Durante milhares de anos, indivíduos, organizações e instituições religiosas tentaram converter os judeus, alegando serem profetas ou fazedores de milagres ou argumentando que certas leis da Torá já não se aplicavam. Geralmente citavam passagens de Nevi’im ou Ketuvim para tentar corroborar suas crenças. Tais discussões, no que concerne ao judaísmo, são fúteis, pois a própria Torá nos alerta acerca de milagreiros e profetas que tentam

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mesmas. O Talmud a descreve como “fogo negro escrito sobre fogo branco”. A Torá Oral explica como as letras da Escrita deviam ser divididas, pronunciadas e lidas. Sem ela, a Torá Escrita seria incompreensível – uma longa lista de letras hebraicas – compondo um código indecifrável.

Muitas das leis da Torá são muito complexas. Desde a Revelação no Sinai, inúmeros livros foram escritos sobre a mesma – mesmo a Torá Oral foi transcrita – mas, ainda assim, necessitamos de rabinos e professores para melhor entendê-la.

Mas não necessitamos de argumentos racionais para tentar provar a existência de uma Torá Oral. A Torá Escrita testemunha a existência de uma tradição oral, pois se fôssemos ler os Chamishei Chumshei Torá sem jamais ter praticado ou guardado os mandamentos judaicos, entenderíamos muito pouco dos mesmos. Por exemplo, quando lemos sobre a Matzá na Torá, sabemos a que se refere – apenas porque a quase totalidade dos judeus do mundo já o provaram ou viram. A Torá Escrita não nos diz como produzir a Matzá, como assegurar que

porta da arca sagrada, cravovie, séc. 17. JERUsalém, Hechal shlomo, museu wolfSON

não se torne Chametz, tampouco que devemos comê-la durante o Seder de Pessach. A Tora Oral é a única fonte desse conhecimento.

A Torá Escrita transborda de leis e mandamentos, mas não explica como cumpri-los. O Brit Milá, a circuncisão, é um dos pilares da fé judaica – até o menos observante dos judeus insiste em circuncidar seus filhos homens – mas, ainda assim, a Torá Escrita sequer menciona explicitamente em que órgão se pratica a circuncisão nem como. Yom Kipur, dia mais sagrado do ano, é outro pilar da fé judaica. A Torá Escrita diz que nos devemos afligir no Dia do Perdão, mas não nos diz como. Não diz, em parte alguma, que devemos jejuar. Como saber que nos afligirmos em Yom Kipur significa jejuar? Afligir-nos pode significar autoflagelo. Mas não é. Outro pilar do judaísmo é o cumprimento do Shabat, mas a Torá Escrita não nos diz o que podemos e o que não podemos fazer nesse dia sagrado. Já a Torá Oral, esta nos fornece não apenas os detalhes, mas as explicações básicas de como interpretar e executar os mandamentos transmitidos pela Torá Escrita.

A referência mais explícita feita pela Torá Escrita acerca da Oral é encontrada em um versículo referente à Shechitá – o abate casher de animais. Em nenhum lugar da Torá Escrita ou outro livro do Tanach consta uma explicação sobre como essa prática deve ser realizada. Apenas está escrito: “... poderás degolar do teu gado e do teu rebanho que o Eterno te deu, como te ordenei...” (Deuteronômio, 12:21).

Através da História Judaica, muitas pessoas, judias ou não, têm tentado negar a existência e autenticidade da Torá Oral. Já que, como vimos acima, a Revelação Divina no Sinai não pôde ser negada porque foi um evento público que envolveu milhões de pessoas, quem quisesse enfraquecer a existência ou o cumprimento do judaísmo, tinha como objetivo a Lei Oral. Quando uma nação ou uma organização tentavam extirpar o judaísmo, escolhiam como alvo o Talmud, núcleo da Torá Oral.

É fácil entender por que aqueles que desejavam extirpar o judaísmo sem sujar suas mãos baniam o estudo do Talmud. Se nós, judeus, não podemos estudar a Torá Oral, não podemos entender e seguir a Torá Escrita, e, assim, não podemos cumprir os mandamentos. Emet, a Verdade, como vimos no artigo já citado, é definida pela Torá como honestidade e consistência intelectual. Uma meia-verdade não é a Verdade.

LEGENDA

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Se alguém quer negar a existência e autenticidade da Torá Oral, terá que negá-la totalmente. Não poderá escolher aleatoriamente quais de suas leis atendem a seus propósitos. Quem a nega, não pode alegar que o principal mandamento de Yom Kipur é abster-se de comer e beber porque em nenhum lugar da Torá Escrita isso está ordenado. Não se pode negar a Torá Oral e tomar as quatro espécies em Sucot, porque em nenhum lugar da Torá Escrita suas identidades são reveladas. Finalmente, aquele que nega a Torá Oral não deveria sequer ler um Chumash ou um Sefer Torá, pois sem a Lei Oral não saberíamos como dividir as letras, o que dizer, então, de pronunciar suas palavras...

É importante observar, no entanto, que reconhecer a autenticidade e a autoridade da Torá Oral não significa que se alguém não segue todas as suas leis, não precisa se preocupar em seguir nenhuma delas. O que se espera de cada um dos judeus é honestidade e consistência intelectual: ou se aceita que a Torá Oral é tão Divina quanto a Escrita ou não. Não há outra opção. O que se espera do Povo Judeu, acima de tudo, é que preserve os fundamentos do judaísmo. O judaísmo autêntico é o reconhecimento de que D’us Se revelou no Monte Sinai e nos deu a Torá, de que a Torá é de Autoria Divina, e que a Torá Oral tem igual importância à Escrita.

Não surpreende que os judeus que não aceitaram ou não preservaram os princípios do judaísmo, acabaram por se assimilar. Ainda que acreditem em D’us, na Divina Revelação no Sinai e na Divindade da Torá Escrita, isso não é suficiente. É a Torá Oral que distingue o judaísmo das outras religiões, especialmente daquelas que adotaram o Tanach. Na ausência da Torá Oral, não pode haver um judaísmo real.

A Eternidade da Torá

No Talmud, vemos diferenças de opinião em assuntos da Lei Judaica, especialmente entre as Escolas de Hillel e Shammai. O Talmud declara que ambas as Escolas estão corretas em suas sentenças; ambas refletem as Palavras do D’us Vivo. Como poderiam ambas estar corretas? E se a Escola de Shammai também estava correta em seus veredictos, por que a Lei Judaica segue, em geral, os da Escola de Hillel?

É possível haver diferenças de opinião em questões da Lei da Torá porque assim como D’us possui tanto o Atributo de Misericórdia como o de Justiça, também a Torá, que é a Sua Vontade e Sabedoria, pode ser

aplicada de forma leniente ou severa. A Escola de Hillel representava a Misericórdia Divina – e por essa razão suas sentenças tendiam a ser mais lenientes. A Escola de Shammai, por outro lado, refletia a Justiça Divina – por isso a maioria de seus veredictos eram mais severos que os da Escola de Hillel.

Em geral, a Lei Judaica sentencia segundo a Escola de Hillel porque vivemos em um mundo imperfeito, onde a Presença Divina é quase sempre oculta. Somos seres humanos frágeis e necessitamos misericórdia e leniência. Neste mundo de tantos desafios, é bastante difícil seguir a lei da Torá mesmo segundo os veredictos da Escola de Hillel. Contudo, quando Mashiach vier e o mundo for aperfeiçoado, seguiremos as sentenças da Escola de Shammai – pois seremos, então, capazes de seguir a Torá de acordo a suas interpretações mais rígidas.

Isso significa que contrariamente ao que muitos pensam, a Torá não será revogada quando o Mashiach vier. De fato, como explicamos acima, nós a respeitaremos de uma maneira ainda mais rígida e completa. O conceito de uma “nova Torá”, tirado de um versículo de Isaías, não significa que a Torá do Sinai foi ou será revogada na Era Messiânica. Pois, como vimos acima, nenhum

Iluminura Moshé recebendo as Tabuas da Lei, Hagadá de Sarajevo, Catalonia, século 14

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NOSSAS GRANDES FESTASNOSSAS GRANDES FESTAS

profeta, nem mesmo Isaías, pôde mudar sequer um pingo na Torá. Ademais, a Torá Oral, que é uma parte indispensável para a compreensão da Torá Escrita, explica que na Era Messiânica iremos observar a Torá de acordo com Beit Shammai, a Escola de Shammai. Portanto, o conceito de uma “nova Torá” significa uma compreensão mais profunda dos ensinamentos da Torá e o cumprimento mais rígido de seus mandamentos.

A Torá não pode mudar porque é a Vontade e Sabedoria de um Ser Infinito e Perfeito, que vive acima e além do tempo e de qualquer outra limitação. Em determinados períodos no tempo, algumas das leis da Torá podem não se aplicar. Por exemplo, não podemos cumprir muitos de seus mandamentos na ausência do Templo Sagrado. Contudo, nenhum dos mandamentos foi ou jamais será permanentemente revogado.

A Cabalá ensina que a Torá é o projeto do mundo. Como ensina o Zohar, “D’us olhou na Torá e criou o mundo. O homem olha na Torá e o sustenta”. O Maharal de Praga, um dos maiores Sábios da história judaica, que ficou famoso por criar o Golem, perguntou, certa vez: “Por que o mundo está-se perdendo?”. E ele respondeu: “Porque a Torá foi abandonada”. E o que significa abandonar a Torá? Significa não reconhecer que é Divina e subestimá-la de alguma forma. O Talmud afirma enfaticamente que questionar a origem Divina de uma letra que seja ou de uma interpretação tradicionalmente aceita da Torá equivale a negar toda

a Torá (Sanhedrin 99a). O Talmud vai mais adiante. Ensina que aquele que nega que a Torá Oral foi outorgada por D’us a Moshé é alguém que despreza a palavra de D’us (ibid).

Como a Torá é o plano-mestre de D’us para o mundo, aquele que se empenha em fortalecê-la, fortalece o mundo. Ele ajuda a levar bênçãos, proteção, paz e prosperidade a toda a humanidade. Quem, por outro lado, enfraquece a Torá, faz exatamente o oposto. A festa de Shavuot, que ocorre sete semanas após Pessach, é a época mais propícia do ano para o Povo Judeu fortalecer a Torá através da renovação de seu compromisso de estudá-la e cumprir seus mandamentos. Fortalecemos a Torá e trazemos bênçãos Divinas e plenitude ao mundo preservando os fundamentos do judaísmo: o reconhecimento de que D’us Se revelou ao homem, de que a Torá é Divina e, portanto, eterna e imutável, e de que apoia-se em dois pilares: a Torá Escrita e a Torá Oral. São esses os princípios que definem o judaísmo autêntico.

BIbliografia:Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Judaism: Discourse - Questions and answers with Immanuel Schochet - www.youtube.com Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, What the world doesn´t know about the Messiah - The Logical Foundation of Judaism - www.youtube.com

SEFER TORÁ DA SINAGOGA BEIT YAACOV. SÃO PAULO

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PERSONALIDADE

m outubro de 1973, o Egito lançou uma bem sucedida ofensiva contra Israel, rompendo uma linha de defesa concebida depois da Guerra dos Seis Dias, junto ao canal de Suez, pelo general Bar Lev, então chefe do

Estado-Maior de Israel. Essa esteira de trincheiras e casamatas de concreto, que recebeu seu nome, tinha como finalidade garantir a presença israelense na Península do Sinai. Àquela altura, o general Sharon já havia sido transferido para a reserva, amargurado por não ter sido nomeado chefe do Estado-Maior conforme esperava. Por isso mesmo, permaneceu atuante na vida pública. Costumava declarar, em sucessivas palestras e entrevistas, que a dita Linha Bar Lev era inútil e contrariava duas sólidas doutrinas militares postas em prática pelo exército de Israel desde a fundação do Estado – o fator surpresa e, em eventual combate, a rápida mobilidade. Tanto assim que, certa ocasião, bem antes da Guerra do Yom Kipur, depois de inspecionar a Linha Bar Lev, Arik fixou um ponto na margem barrenta do outro lado do canal, com cerca de um metro de altura, e disse para si mesmo: “Se algum dia nós tivermos que atravessar tanques e tropas para o lado de lá, aquele será o lugar ideal”.

Na véspera de Yom Kipur do ano de 1973, Arik recebeu em sua casa, em Beersheva, a visita de um oficial da Inteligência do exército que lhe mostrou uma série de fotografias aéreas. As imagens revelavam uma compacta

formação de forças egípcias perto do canal de Suez. Arik percebeu de imediato que uma guerra estava para estourar. Moshe Dayan, ministro da Defesa, recomendou, sem maiores formalidades, que Sharon se reintegrasse ao comando da frente sul.

Quando os egípcios desfecharam seu ataque e dominaram a Linha Bar Lev, eliminando dezenas de soldados israelenses e fazendo mais de uma centena de prisioneiros, o comandante da região sul de Israel era o general Shmuel Gonen. Pouco experiente, faltou-lhe a capacidade para uma reação imediata. A iniciativa de Dayan de reconvocar Sharon provocou um conflito de egos e rivalidades, como costuma acontecer em qualquer corporação. Quando ele chegou ao posto de comando, ouviu o seguinte de Gonen: “Essa guerra terá o meu rótulo e não o seu”. Este desagradável entrevero não teve uma só testemunha. Foi-me narrado pelo próprio Arik.

Apegado à possível vulnerabilidade daquele ponto que havia avistado do lado egípcio, começou a traçar um ambicioso plano que consistia em atravessar o canal de Suez. A inusitada travessia, caso consumada, tinha três finalidades. Primeira: surpreender os egípcios e posicionar tropas e blindados na direção do Cairo. Segunda: dobrar à esquerda e seguir rumo à cidade de Suez para ocupá-la. Terceira: Israel ficaria na retaguarda

E

O LEGADO DE SHARON

O GENERAL ARIEL SHARON, SEMPRE CHAMADO DE ARIK,

DEIXOU UM LEGADO DEFINITIVO PARA O ESTADO DE ISRAEL:

SUA SOBREVIVÊNCIA. GRAÇAS À SUA ATUAÇÃO

NA GUERRA DO YOM KIPUR, O ESTADO JUDEU SE LIVROU DE

UMA CATÁSTROFE DE PROPORÇÕES INIMAGINÁVEIS.

POR ZEVI Ghivelder

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lugar assegurado no panteão de Israel por conta da decisiva batalha travada no transcurso daquela noite”.

Finda a Guerra do Yom Kipur, Sharon esperava, e com toda a razão, que dessa vez fosse nomeado chefe do Estado-Maior. Se isso tivesse acontecido, ele cumpriria um mandato de dois anos no desejado cargo, após os quais provavelmente se retiraria da vida pública. Entretanto, por causa das intrincadas injunções políticas ocorridas dentro do majoritário Partido Trabalhista, ele foi preterido e o posto coube a Mordechai (Motta) Gur, um dos mais destacados comandantes na Guerra dos Seis Dias. Fotografei logo depois do conflito, as inscrições feitas a cal nos tanques e blindados e os grafites existentes em muros de cidades israelenses nos quais se lia: “Arik, melech Israel (Arik, rei de Israel)”.

Com o manto, mas sem o poder da realeza, Arik recorreu a uma série de empréstimos bancários e comprou uma grande fazenda perto da cidade de Ashkelon, ao sul de Israel, tendo como vizinho o Kibutz Bror Chail, fundado por jovens brasileiros nos anos 50. Dedicou-se a atividades agrícolas dando prioridade para a plantação e exportação de melões ao mesmo tempo em que a política começava a se infiltrar em sua vida até então apenas dedicada à carreira militar. Ele sentia que tinha contas a acertar com o establishment.

Tal acerto resultou na formação do Partido Likud, liderado por Menachem Begin, que chegou ao poder nas eleições seguintes, devendo sua vitória em grande parte à popularidade de Arik, o número dois da lista do partido. Suas decepções por jamais ter sido chefe do Estado-Maior foram compensadas quando

conversando com ben gurion em visita a instalações militares de israel, 1971

conhecido por uma impetuosidade que muitas vezes beirava a insubordinação? A missão de dissuadir Sharon do projeto da ponte móvel competiu a Bar Lev. Foi tensa e dramática a discussão entre os dois. Arik confidenciou-me que, em dado momento, controlou-se para não agredir Bar Lev fisicamente tal a sua frustração somada à indignação. O assunto voltou à consideração de Elazar, ainda indeciso no tocante à imprevisível travessia do canal de Suez. Por fim, com mão forte, entrou em cena Moshe Dayan. Ele foi ao encontro de Sharon, inteirou-se do planejamento da ponte e conseguiu convencer o Estado-Maior de que, em face da destruição da Linha Bar Lev, da presença egípcia no Sinai e de outros tantos desdobramentos da guerra, as Forças de Defesa de Israel só teriam como alternativa arriscar uma incursão no território inimigo. (Ao norte, felizmente, o exército israelense conseguia conter a ofensiva da Síria nas colinas do Golan). Enfim, a ponte começou a ser construída na décima noite depois do início da guerra. Até então, a sobrevivência de Israel era sombria e imprevisível.

A implantação da ponte e a consequente travessia dos tanques e demais blindados israelenses, sob fogo egípcio incessante, foi a mais árdua e vitoriosa batalha travada pelo exército de Israel em toda a história do país. O jornalista David Landau, ex-editor do jornal Jerusalem Post e um dos mais ácidos críticos de Sharon ao longo dos anos, escreveu em um livro há pouco publicado: “O êxito na travessia se deve à audácia, à tenacidade e à devoção de Ariel Sharon por ações ofensivas. Sejam quais forem as controvérsias em torno de seu nome, ele tem um

do terceiro exército egípcio impedindo que este recuasse ou avançasse pelo Sinai, permanecendo, assim, estático em função do cerco ao qual estaria submetido. Em princípio parecia uma ideia estapafúrdia.

Como atravessar o canal? Sharon convocou engenheiros militares e lhes pediu que elaborassem a construção de uma ponte móvel que se apoiaria sobre boias a serem colocadas nas águas do canal.

Entretanto, um deslocamento de tamanha proporção e de sucesso duvidoso tinha que ser aprovado nas mais altas esferas de planejamento estratégico. O plano de Sharon começou a ser avaliado por um grupo de oficiais de altas patentes liderado por David Elazar, chefe do Estado-Maior, e Chaim Bar Lev, que, apesar de estar ocupando na ocasião o Ministério do Trabalho, voltara às fileiras do exército e tinha voz ativa, quase preponderante, nas decisões militares. Todos foram contra a pretensão de Arik. Mas, como levar a decisão a Sharon,

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Begin o nomeou ministro da Defesa. Encontrei-me com ele em Nova York, em 1982, durante uma visita oficial que fez aos Estados Unidos. Perguntou-me quando eu iria de novo a Israel. Disse que viajaria quando ali ocorresse algum evento importante. Respondeu-me com um tom de seriedade: “Então logo, logo, você virá”. Era a véspera da invasão do Líbano que Arik comandaria naquele ano, mas eu não tive a menor ideia de que ele estivesse se referindo a uma ação militar. A invasão do Líbano acabou se tornando um dos momentos mais cruciais e controvertidos de sua vida pessoal e de sua trajetória como soldado. Poucos sabem que muito antes da invasão, Arik tinha mantido encontros secretos com Bashir Gemayel, líder dos cristãos falangistas libaneses. Essa foi a estratégia que ambos desenvolveram: na ação militar, Arik expulsaria a OLP do Líbano, uma permanência que desestabilizava o país e confrontava o poder de Bashir. Assim, sem a presença de Arafat, Bashir assumiria o poder e o Líbano faria a paz definitiva

com Israel. A primeira parte do plano deu certo, obrigando Arafat a procurar abrigo na Tunísia. Na segunda parte, Bashir de fato subiu ao poder, no qual se manteve por apenas cinco dias: foi assassinado aos 35 anos de idade e substituído por Amin, seu irmão, incompetente e cético para incrementar os acordos anteriormente feitos por Bashir.

No enorme tumulto reinante no Líbano naquelas semanas, um grupo de falangistas, disposto a vingar-se dos muçulmanos por causa do massacre sofrido anos antes por seus correligionários na cidade de Zahle, invadiu no dia 16 de setembro os campos de refugiados de Sabra e Chatila e perpetrou assassinatos contra a sua população. A culpa pelos crimes recaiu sobre Sharon, acusado por não ter evitado que aquele massacre acontecesse. Tratava-se de um argumento subjetivo que logo contaminou a opinião pública mundial e, inclusive, estendeu-se à de Israel. Era, por absurdo, como se o próprio Arik tivesse dado a ordem para o ataque contra os refugiados.

Ariel Sharon no kotel, fevereiro de 2001

O massacre de Sabra e Chatila ganhou tamanha dimensão que o governo de Israel decidiu instituir uma comissão de inquérito para apurar aquele trágico acontecimento. A propósito, o famoso jornalista italiano Arrigo Levi escreveu no jornal La Stampa, de Turim: “É muito difícil apontar outra nação que, em tempo de guerra, se submeta a uma autocrítica tão severa e tão aberta”. A comissão foi presidida pelo juiz Itzhak Kahan, da Suprema Corte do país. Segundo o primeiro relatório da investigação, quando as tropas israelenses tomaram conhecimento do que havia acontecido, intervieram e obrigaram os falangistas cristãos a se retirarem dos campos de refugiados. Receberam, inclusive, manifestações de gratidão por parte da população muçulmana libanesa.

A opinião pública e a oposição ao Likud exigiram que a investigação fosse aprofundada. No final, a comissão atribuiu a Begin e a Sharon “um certo grau de responsabilidade” pelo massacre, estendendo o mesmo conceito ao general Raphael

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Eitan, chefe do Estado-Maior. Enquanto os demais indiciados permaneceram em suas funções, Sharon anunciou que, para a preservação de sua dignidade, renunciaria ao cargo de ministro da Defesa. Foi um exemplo, um legado para os homens públicos de quaisquer países.

Entretanto, muito mais do que o relatório final da comissão, o que de fato atingiu o brio de Sharon foi uma reportagem publicada pela revista semanal americana Time na qual se lia que, durante uma reunião com a família Gemayel, Arik tinha incitado os falangistas a promoverem o massacre nos campos de refugiados como vingança pelo assassinato de Bashir. Era uma difamação sem nenhum fundamento e da maior gravidade. Anos depois, ouvi o seguinte de Sharon: “Quando

eu soube do conteúdo da revista, o primeiro pensamento que me ocorreu, foi uma referência às infâmias contidas no livro apócrifo Protocolos dos Sábios de Sion, no qual os judeus são acusados de promoverem rituais de sangue.

A tal reportagem seguia o mesmo caminho, sujando minhas mãos com o sangue de inocentes”. O jornalista Uri Dan, já falecido, meu querido amigo e o mais leal escudeiro de Sharon por mais de 40 anos, contou-me que estava presente na reunião de Sharon com a família enlutada de Gemayel. Conforme seu relato, jamais houve, no dito encontro, a mais remota menção a um ato de vingança ou a um incitamento para o massacre dos refugiados. Sharon decidiu processar a revista Time, pedindo uma indenização

1. com o então ministro da defesa de israel Shimon Peres, no front israelo-egípcio, em ras sudar. fim da guerra de yom kipur 2. com a mulher lily e dois filhos, na margem ocidental. 3. com Dayan festejando a travessia do canal de suez, 10º dia da guerra de yom kipur, 1973

da ordem de US$ 50 milhões e que também lhe custou uma fortuna com despesas legais. O processo se alongou por três anos de forma passional e tumultuada, na corte de Nova York, tendo à frente o juiz Abraham Sofaer, por acaso judeu. David Halevy, correspondente da Time em Israel, foi chamado para testemunhar e acabou confessando que a informação que transmitira à direção da revista não provinha de uma fonte confiável.

Os jurados do caso concluíram que a revista era inocente, mas Sofaer, em sua sentença, optou por uma solução salomônica, ou seja, uma solução que atingia os dois lados da questão. Por um lado, julgou que Sharon de fato tinha sido difamado; por outro, julgou que a revista agira sem intenção de malícia. De qualquer maneira, ficou o legado de Sharon no sentido de que

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“A esquerda não faria nada; a direita muito menos. Se eu não fizesse, ninguém faria. E se eu fracassar nessa iniciativa, nunca mais alguém tentará coisa alguma”. Arik não fracassou, mas enfrentou uma feroz oposição interna, o que correspondia a uma contradição: em todas as pesquisas de opinião pública a população israelense afirmava com larga maioria que era a favor da paz. Pois justamente quando Sharon deu um passo concreto nesse sentido, sofreu os mais inflamados ataques e críticas. Com bom humor, disse a um amigo: ”Durante toda a minha vida achei que devia proteger os judeus. Agora vejo que tenho que me proteger deles...”.

Ariel Sharon partiu sem concretizar o projeto que mais ambicionava. Queria que as fronteiras de Israel estivessem totalmente definidas

tal sórdida acusação jamais tornaria a ser imputada a qualquer judeu em qualquer parte do mundo.Outro momento polêmico da trajetória de Ariel Sharon foi a sua visita, em setembro de 2000, ao Monte do Templo, onde se situa a mesquita de Al-Aksa, no lado de Jerusalém com predominância de população árabe. Cercado por seguranças e hostilizado por populares, Sharon ali permaneceu por 45 minutos. Houve um consenso na mídia internacional de que aquele passeio de Sharon configurava um intuito de provocação e, portanto, teria dado origem à segunda Intifada, ou seja, sucessivos atos de violência contra civis e militares israelenses. Foi uma conclusão longe da verdade. A Intifada já vinha sendo preparada há algum tempo e se solidificou quando Arafat manteve, em julho, uma negociação com Ehud Barak, então primeiro-ministro de Israel, mediada por Bill Clinton em Camp David. Os radicais palestinos temiam que Arafat ali fizesse concessões, que na verdade não fez, e programaram ações rebeldes que acabaram eclodindo meses mais tarde. Por seu lado, Arik assim justificou a ida ao Monte do Templo: “Jerusalém é a capital de Israel. Nenhum judeu pode ser impedido de caminhar quando e como quiser na capital de seu país”. Note-se que Sharon sempre usou muito mais o termo judeu do que a condição de israelense.

De todos os homens públicos de Israel que tive o privilégio de conhecer pessoalmente, nenhum deles avistou o povo judeu com a abrangência de Sharon. Ele não gostava da palavra diáspora e via e sentia o povo judeu como uma só nação, uma só entidade. Numa conversa com o diplomata americano

Sharon visita um mirante do exército em Tovlan, no vale do Jordão, janeiro de 2001

Elliot Abrams, especialista em assuntos do Oriente Médio, ele comentou: “Acima de tudo, sou um judeu e sinto que carrego nos meus ombros a responsabilidade pelo futuro do povo judeu. Não quero que o futuro do povo judeu dependa de ninguém, nem mesmo dos nossos melhores amigos”. Mais um momento polêmico e controverso em sua vida: a retirada de Gaza, quando era primeiro-ministro. Enquanto tantos outros líderes sempre disseram almejar a paz, ele passou da retórica para a realidade. A retirada unilateral de Israel de Gaza, em 2005, poderia causar-lhe enorme dano político no plano doméstico, já que a retirada implicava em desalojar daquela região centenas de famílias de israelenses. Sempre pragmático, Arik analisou a questão de Gaza da seguinte forma:

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ZEVI Ghivelder,ESCRITOR E JORNALISTA

quando deixasse o posto de primeiro-ministro. Segundo relato do mesmo Abrams, quando Sharon sofreu um leve derrame, no dia 18 de dezembro de 2005, recebeu um telefonema do presidente George W. Bush, ao qual disse: “Estou me sentindo bem. Vou repousar alguns dias e em seguida volto ao trabalho”. Bush respondeu: “Nós precisamos de você com saúde. Regule melhor suas horas de atividades. Preste atenção na comida, você precisa emagrecer”.

Qual o legado de Ariel Sharon para o povo de Israel e para o povo judeu? Não há um legado, há inúmeros legados, mas todos forjados na mesma natureza: a sua inabalável e constante defesa do Estado Judeu desde os primeiros passos na carreira militar e na vida política, sempre seguro de suas ações e sem temer objeções. Um exemplo eloquente: a certa altura, decidiu começar a construir um muro na fronteira

com a Cisjordânia. O mínimo que a mídia disse é que se tratava de uma réplica do muro de Berlim, um verdadeiro muro da vergonha. Arik nem ouviu. E o fato é que naquela região o tão contestado muro está contribuindo para diminuir o terrorismo em pelo menos 90%. Para quem imagina que o legado é um conceito abstrato, fui testemunha de seu legado concreto.

Transcrevo, a seguir, o que escrevi aqui na revista quando Arik adoeceu de vez em janeiro de 2006. Repito a essência do texto porque qualquer acréscimo seria supérfluo. Na terceira semana de outubro, dias depois do cessar-fogo, fui ao acampamento de Arik do outro lado do canal de Suez. Dali embarcamos num pequeno avião monomotor que nos levou até perto de sua casa, em Beersheva. Em seguida, rumamos para uma localidade próxima, Beeri, em cujo cemitério haveria uma cerimônia em homenagem aos militares mortos

durante o conflito. Eram cerca de 400 túmulos rodeados pelas famílias dos soldados, a maioria jovens entre 18 e 30 anos de idade. Por quanto tempo eu ainda viver, jamais esquecerei o som daquele Kadish (oração pelos mortos) coletivo, entoado por centenas de vozes soluçantes, enquanto Arik também chorava.

Na saída do cemitério, centenas de pessoas se atiraram ao seu encontro para abraçá-lo e cumprimentá-lo. Lembro bem de um judeu humilde, decerto de procedência oriental, aparentando uns sessenta e tantos anos, que parou à sua frente e disse: “Arik, a guerra levou meus dois filhos. Mas, se foi para o bem de Israel, que assim seja. Obrigado pela nossa salvação”.

1. com Tony Blair durante conferência em jerusalém, dez. 2004 2.com o então presidente George W. Bush em entrevista coletiva à imprensa no rancho de bush, Texas, 2005 3. com bill clinton, jerusalém, nov. 2005 4. em visita aos eua 5. com shimon peres, então vice primeiro ministro, knesset 6. filho Gilad Sharon, netos e nora no túmulo de sharon

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ATUALIDADES

presença comunitária remonta ao século I (EC), e a região representou abrigo para judeus que fugiam de pogroms da era czarista, foi palco de projetos agrícolas de treinamento para o movimento sionista

e serviu como pretexto para um dos momentos mais dramáticos do antissemitismo soviético. O ditador Josef Stalin fabricou a paranoia de que a Crimeia serviria para a criação de um separatismo judaico, com apoio do arqui-inimigo EUA.

A Crimeia se notabilizou ao longo da história por representar uma área estratégica. Trata-se de saída para o importante mar Negro, cujas águas banham o litoral de dois gigantes, russos e turcos. Czares e sultões travaram guerras para garantir também um território com solo cultivável. Em 1783, Catarina, a Grande, impôs o controle russo sobre a região, ao derrotar os rivais otomanos.

Sete décadas mais tarde, eclodiu a Guerra da Crimeia, responsável por envolver o sul da Rússia e se estender até os Bálcãs. Naquele conflito, o império russo tentou ampliar sua hegemonia avançando sobre o decadente poder otomano, mas teve de enfrentar reação responsável por unir britânicos, franceses, e italianos. O czar Nicolau I testemunhou o fracasso da empreitada militar, que se celebrizou como uma das primeiras “guerras modernas”, com uso intenso de estradas de ferro e telégrafos.

Apesar da derrota, que diversos historiadores classificam como o início da decadência dos czares que levaria à Revolução Bolchevique de 1917, o império russo manteve a península da Crimeia sob seu domínio. Na região de clima temperado, a presença judaica, registrada há quase vinte séculos, passou a aumentar depois de 1791, após a permissão czarista para o assentamento de judeus.

Os pogroms de 1881e 1882 em outras áreas do império russo impulsionaram a chegada de judeus à Crimeia, atraídos também pela perspectiva da região se transformar num polo para produção e exportação agrícola. A discriminação também era menos intensa do que em áreas do império russo, como Ucrânia ou Bielorrússia, cenário histórico de shttels, a aldeia judaica típica da Europa Oriental. A vida comunitária na península se intensifica a partir do final do século 19, com a organização de vida religiosa e cultural. Em 1897, contabilizavam-se lá mais de 28 mil judeus, cerca de 5% da população.

Nessa época, florescia o movimento sionista, que encontrou na Crimeia uma comunidade interessada em participar ativamente do sonho da reconstrução do Estado judeu. Um dos personagens mais importantes da história do sionismo, Joseph Trumpeldor, buscou aquelas terras às margens do Mar Negro para treinar jovens interessados em aprender técnicas agrícolas que seriam fundamentais para a criação das comunidades judaicas

A

A CRIMeIA e os judeus

Pivô de uma das crises internacionais mais relevantes das

últimas décadas, a península da Crimeia, anexada em março

pela Rússia após seis décadas de controle pela Ucrânia,

evoca diversos momentos importantes da história judaica.

POR JAIME SPITZCOVSKY

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Os líderes aliados: Winston Churchill (Inglaterra), Franklin Roosevelt (EUA) e Joseph Stalin (URSS). Yalta, Crimeia, 1945

na Terra de Israel, então dominada pelo império otomano. Trumpeldor, nascido na Rússia, morreu em 1920, na batalha pela defesa de Tel Hai, comunidade pioneira localizada na Galileia.Chamada muitas vezes de “parte da Nova Rússia”, por ter sido conquistada pelo império apenas no final do século 18, a Crimeia não escapou das turbulências e da violência que castigaram a região durante a guerra civil ocorrida após a revolução bolchevique de 1917. Comunistas liderados por Vladimir Lênin enfrentaram a resistência do antigo regime czarista, e a península do Mar Negro testemunhou algumas das batalhas mais sangrentas. Houve também significativo êxodo de população civil. Após ter chegado ao ápice demográfico, com 60 mil integrantes, a comunidade judaica viu seu tamanho se reduzir à metade, quando do conflito final entre vermelhos e brancos, em 1921.

O fim do enfrentamento representou um novo impulso para a presença judaica na Crimeia. A derrota dos

remanescentes do czarismo não significou estabilidade nos domínios bolcheviques, e muitos judeus do interior da Ucrânia buscaram refúgio na península meridional, à espera da consolidação do regime comunista ou na rota da aliá, aguardando a oportunidade de emigrar para a Terra de Israel. Entre 1922 e 1929, a parte norte da Crimeia abrigou três comunas judaicas.

A década de 1920 reservou momentos fundamentais para a história judaica na península. O norte-americano, agrônomo, Joseph Rosen, de origem judaica, propôs ao governo soviético que reassentasse judeus atingidos por pogroms em áreas da Ucrânia, no solo fértil e no clima mais ameno da Crimeia. O Joint, organização judaica de assistência humanitária, financiaria a empreitada.

O Kremlin aprovou a ideia. Imaginava ganhar assim reforço em bolsões de resistência anticomunista na Crimeia, onde os tártaros,

habitantes da região desde a invasão mongol no início da Idade Média, além de ucranianos e descendentes de alemães, ensaiavam movimentos nacionalistas e contrários ao poder soviético. O poderoso Politburo, órgão máximo de decisões do Partido Comunista da URSS, aprovou, em 1923, a criação da Região Autônoma Judaica da Crimeia. Meses depois, a cúpula bolchevique reviu a decisão e, para a “questão judaica”, optou por desenhar uma região na longínqua Birobidjan, próxima à Sibéria e à fronteira com a China.

A Crimeia, no entanto, não saiu do mapa do Joint. A organização angariou recursos junto a filantropos judeus, como Julius Rosenwald, empresário famoso por sua participação na história da Sears, Roebuck & Co., para viabilizar fazendas coletivas judaicas em solo soviético. O censo oficial de 1939 indicou mais de 65 mil judeus vivendo na península (quase 6% da população), dos quais 20 mil em colônias agrícolas.

Os nomes das iniciativas revelavam a riqueza linguística e diferentes influências ideológicas que conseguiram conviver em meio à agitação dos anos 1930. Havia Pobeda (vitória, em russo), Fraylebn (vida livre, em iídiche), e Yidendorf (vilarejo judaico, em iídiche), rótulos mais inspiradores para os judeus comunistas do que os nomes Achdut (unidade, em hebraico) e Herut (liberdade, em hebraico), certamente mais apreciados por aqueles que sonhavam em fazer aliá.

Professor da Universidade de Michigan, Jeffrey Veidlinger, lembrou, em texto recente publicado no site Tablet Magazine, que uma das canções em iídiche mais famosas do período soviético começa com

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o verso “A caminho de Sebastopol, não muito longe de Simferopol”, referências a duas das mais importantes cidades da Crimeia. A música celebra uma fazenda coletiva judaica na localidade de Dzhankoy e fala das “conquistas da sovietização”, além de destacar a transformação de judeus comerciantes em agricultores. A propaganda do Kremlin buscava alicerçar as bases de um regime imposto pelo stalinismo.

De Moscou, o ditador Josef Stalin preferia a opção de Birobidjan para a “questão judaica”. Mas, na Crimeia, os judeus comunistas não desistiam de trazer para a península a proposta de uma região em que ganhassem autonomia, ainda que debaixo do guarda-chuva vermelho.

Em 1941, para surpresa de Stalin, os nazistas invadiram a URSS, rompendo um pacto de não-agressão que havia sido assinado dois anos antes. Adolf Hitler desejava manter a frente oriental em silêncio, enquanto avançava sobre o oeste da Europa. O ditador soviético avaliou que poderia dividir com seu inimigo ideológico o espólio dos impérios britânico e

manteve restrições a seu retorno à península. Tais limites duraram até os últimos dias da União Soviética, que se desintegrou em 1991. No período stalinista, a Crimeia também esteve presente numa tragédia para o povo judeu. O capítulo começa quando o líder Salomon Mikhoels, do Comitê Judaico Antifascista, se reuniu com o chanceler soviético, Vyacheslav Molotov, para resgatar a ideia de criar uma região de autonomia judaica na Crimeia do pós-guerra. Mikhoels havia retornado de uma viagem aos Estados Unidos, onde, a mando de Stalin, esforçou-se para arrecadar fundos para o esforço de guerra do Kremlin.

Expoente do teatro iídiche, Mikhoels foi ao encontro com Molotov acompanhado do poeta Yitzik Fefer, integrante do Comitê Judaico Antifascista. Os dois saíram da reunião convencidos do apoio de Molotov à ideia, que tinha respaldo do Joint. Em seguida, enviaram a proposta por escrito a Josef Stalin.

Cometeram um equívoco trágico. O ditador soviético nutria a paranoia

francês. Interessados na agricultura da Ucrânia e no petróleo do Cáucaso, fundamentais para a estratégia bélica de Berlim, os hitleristas rasgaram o pacto e mergulharam no solo do império fundado por Lênin.

A aproximação da barbárie nazista levou judeus a buscarem refúgio em paragens no leste da URSS, chegando, por exemplo, ao Cazaquistão e ao Uzbequistão, na Ásia Central. Reorganizaram lá suas fazendas coletivas. Muitos retornaram ao front, para combater no Exército vermelho. Em 1944, os nazistas foram derrotados na península da Crimeia, depois do massacre de cerca de 40 mil judeus na península.

A vitória sobre o nazismo significou o início de uma nova etapa de atrocidades na região. O regime stalinista deportou 180 mil tártaros da Crimeia para a Ásia Central, acusados de colaborar com o invasor hitlerista. Na punição coletiva, calcula-se que quase 50% das vítimas morreram de fome e de doenças durante o deslocamento. Apenas em 1967, o Partido Comunista da URSS reabilitou a população punida, mas

Agricultores de uma comuna judaica na Crimeia celebram a pedra fundamental de uma nova escola. 1927

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ATUALIDADES

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de que poderiam ser espiões os soviéticos que haviam entrado em contato com o inimigo. Mikhoels se encaixava na categoria, devido à viagem aos EUA. Além disso, o popular ator e diretor havia ousado desenhar uma proposta para a “questão judaica” com o apoio da comunidade judaica norte-americana. Stalin, logo após a Segunda Guerra Mundial, manifestou a crença de que um conflito armado com os Estados Unidos seria inevitável e num futuro próximo. E, na visão stalinista, “os judeus conspirariam a favor do inimigo”.

Uma onda de antissemitismo varreu a URSS. Salomon Mikhoels foi assassinado em 12 de janeiro de 1948. Seu corpo foi colocado sob um carro, para simular atropelamento. A sanha stalinista prendeu o poeta Fefer. Foi executado em 1952, na prisão de Lubyanka, sede da NKVD, a antecessora da KGB.

Naquele 12 de agosto, que entrou para a história como a Noite dos Poetas Assassinados, foram também mortos mais doze intelectuais judeus, como Dovid Hofshteyn, Benjamin Zuskin, Peretz Markish e Leyb Kvitko. A perseguição seguiu com outra fabricação do stalinismo: o Complô dos Médicos. O Kremlin acusou diversos médicos, em sua maioria judeus, de tentar envenenar lideranças soviéticas. Stalin morreu em 5 de março de 1953, antes do final do julgamento-farsa.

Os acusados foram então libertados. No ano seguinte, Nikita Khruschev, successor de Stalin, transferiu o controle da Crimeia da Rússia para a Ucrânia. À época, pareceu uma mudança cosmética, já que o fim da União Soviética não despontava no horizonte. Ao contrário. O regime comunista parecia reforçar seu controle sobre os solos russo e ucraniano, vindo, a mão-de-ferro, de Moscou.

Porém, em 1991, a URSS se desintegrou, e o império criado por Lênin deu lugar a 15 países independentes, entre eles a Rússia, o maior de todos, e a Ucrânia. E, em março de 2014, o presidente Vladimir Putin, após a Ucrânia iniciar o afastamento da órbita de influência de Moscou, reanexou a península da Crimeia, sob o argumento de que 60% dos habitantes são russos e que “corrigia o erro histórico de Khruschev”. Atualmente, vivem na península cerca de 17 mil judeus. E que assistem, preocupados, às turbulências da região e às ameaças antissemitas.

Recentemente, antes da anexação russa, a sinagoga de Simferopol amanheceu pichada, com a inscrição “Morte aos judeus”. Putin afirmou que vai combater o antissemitismo e outras formas de intolerância na Crimeia. Importantíssimo acompanhar, com atenção, uma região com um histórico longo de guerras, tragédias e mortes.

JAIME SPTIZCOVSKY,foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.

Manifestações na Crimeia, 2014

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PERSONALIDADE

favor da abertura de mercados, Fischer possui ampla experiência em lidar com economias em crise. Seu grande conhecimento de Economia e sua inteligência rara lhe permitem destrinchar os assuntos mais

complexos. No seio da comunidade financeira mundial é respeitado tanto por seu trabalho acadêmico quanto por sua atuação na área de políticas econômicas. Como um dos principais economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI), ajudou a conduzir a economia global ao longo da crise financeira mundial de 1997-1998, que atingiu a Ásia, América Latina e Rússia. Posteriormente teve um alto cargo no Citigroup e, de 2005 a 2013 foi presidente do Banco de Israel, sendo considerado, no país, uma espécie de super-herói.

Calmo, cordial e objetivo, Fischer é cuidadoso e analítico em situações de crise, mas, sempre que lhe pareceu necessário, demonstrou a coragem de tomar decisões controversas e arriscadas. Apesar de seus extraordinários dons intelectuais, quem o conhece afirma que não é pretensioso, mas homem humilde, dono de uma capacidade singular de ouvir aqueles que não concordam com ele.

Ensinou durante muitos anos nas mais renomadas universidades e é respeitado e amado pelos seus ex-

alunos. Entre outras importantes instituições de ensino, foi professor e diretor do Departamento de Economia do MIT (Massachusetts Institute of Technology, Instituto de Tecnologia de Massachusetts), em Boston.

Detentor de dupla cidadania, americana e israelense, em janeiro deste ano de 2014 foi nomeado, pelo presidente Barack Obama, vice-presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos. Sua indicação deve ser confirmada pelo Senado. Segundo o presidente dos EUA, ele é “uma das mentes principais e mais experientes em política econômica, no mundo”. Se confirmado no cargo, Fischer substituirá Janet Yellen, atual presidente do Banco Central dos EUA. Trabalharão juntos para garantir a recuperação e o crescimento da economia americana.

Sionista confesso, tem uma profunda ligação com o Estado Judeu. Quando foi chamado a ajudar o país, fez aliá com a esposa Rhoda, com quem teve três filhos, e dedicou anos de sua vida a Israel.

Sua vida

Descendente de uma família lituana, Stanley Fischer nasceu em Zâmbia, em 1943. Passou sua infância em Mazabuka, uma cidade no nordeste da Rodésia – atual Zâmbia, onde sua família gerenciava uma loja de

A

STANLEY FISCHER: O PROFESSOR DOS PROFESSORES

Aos 70 anos, é considerado um dos mais importantes

presidentes de Bancos Centrais ainda atuantes no

sistema financeiro mundial. Seu currículo é extraordinário,

com uma longa lista de realizações acadêmicas e

profissionais. Economista brilhante, é um dos pais da

Nova Economia Keynesiana1.

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PERSONALIDADE

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produtos diversos. Era difícil a vida na África Central. A casa na qual cresceu, que ficava atrás da loja de seus pais, não tinha água corrente e a energia elétrica era pouca. Quando ele tinha 13 anos, os Fischer se mudaram para o sudeste da Rodésia, atual Zimbábue.

Fischer tornou-se membro ativo do movimento sionista juvenil Habonim e visitou Israel pela primeira vez em 1960, num programa de liderança juvenil. Estudou hebraico no Kibutz Magaan Michael. Para Fischer e Rhoda Keet, então sua namorada e com quem viria a se casar, a viagem marcou o início de um profundo comprometimento com Israel.

Fischer foi introduzido nas teorias de John Maynard Keynes2 durante um curso de Economia no ensino médio. Decidiu estudar essa ciência. Segundo ele, foi “fisgado” ao tomar conhecimento de que, durante a Grande Depressão de 1929, “o mundo como o conhecíamos quase desmoronou” e que foi salvo pelas ideias de Keynes.

Formação acadêmica

Fischer estudou na London School of Economics de 1962-1966, obtendo o bacharelado e o mestrado em Economia. Em seguida, estudou em Boston, no MIT, então na vanguarda do desenvolvimento de uma abordagem rigorosamente matemática da Macroeconomia. Obteve seu doutorado em 1969 e, no ano seguinte, começou a trabalhar como assistente do professor de Economia na Universidade de Chicago.

Interessante notar que, em sua carreira, Stanley Fischer transitou em ambos os lados das duas principais vertentes no campo da teoria econômica – ensinou na Universidade de Chicago, conhecida por sua defesa dos livres mercados e laissez-faire econômico, e no MIT, onde os acadêmicos defendiam a teoria econômica keynesiana e a da intervenção do Estado na economia.

Fischer retornou, em 1973, para o MIT como professor associado do Departamento de Economia. Em 1976, naturaliza-se americano. No ano seguinte, tornou-se professor de Economia. Foi professor visitante na Hoover Institution, em Stanford, e na Universidade Hebraica de Jerusalém. Durante duas décadas foi membro do Conselho de Governadores da Universidade Hebraica.

Considerado o professor dos professores, ao longo de sua carreira acadêmica ele moldou algumas das mais brilhantes mentes do universo econômico. Muitos de

2 Maynard Keynes (1883-1946), economista britânico de grande influência apoiava a intervenção do governo na economia e o aumento do consumo público para evitar o desemprego.

1 A nova economia keynesiana é uma corrente de pensamento econômico nascida nos anos 1980.

Binyamin Netanyahu (D) com o governador do Banco de Israel, Stanley Fischer

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2001. Seu mandato chegara ao fim sem que se tivesse concretizado sua aspiração de presidir a instituição.

No ano seguinte, aceitou a vice-presidência do Citigroup, sua primeira atuação no setor privado. Deixou a instituição em 2005 e, em maio daquele ano, tornou-se presidente do Banco de Israel, instituição semelhante ao Banco Central brasileiro. Ficou no cargo até 30 de junho de 2013.

Stanley Fisher em Israel

Desde a sua primeira visita ao país, em 1960, ele sempre teve uma profunda conexão com Israel, costumando visitar o país anualmente. Ele diz gostar das celebrações pelo Yom Haatzmaut, pois o que mais o toca é “o fato deste país existir!”.

Durante um ano lecionou na Universidade Hebraica de Jerusalém. No final da década de 1970 foi consultor do Banco de Israel e, como vimos acima, em 1985, um dos arquitetos do plano de estabilização da economia do país. Ao longo dos anos continuou prestando consultoria a autoridades israelenses, à distância. No final de 2005 recebeu a surpreendente oferta para assumir o cargo de presidente do Banco deIsrael. Houve quem estranhasse a oferta, pois Fischer não era israelense, mas apenas judeu.

A decisão de mudar para Israel não foi fácil, disse certa vez em uma entrevista a uma emissora do país. Seus três filhos e vários netos viviam nos EUA. Mas resolveu aceitar o convite e, em 2005, ele e a esposa fizeram aliá. Antes de emigrar para Israel, estudou hebraico, pois queria a certeza de possuir a fluência necessária para não ter que

A inflação despencou de 450% para 20% no decorrer de um ano. Segundo Peres, atual presidente de Israel, “Ninguém poderia ter-nos orientado melhor”.

De 1988 a 1990 foi economista-chefe do Banco Mundial. Lá teve a chance de trabalhar e lidar com um leque maior de políticas econômicas. Durante sua permanência à frente do Banco Mundial, concentrou-se na importância da criação de um ambiente macroeconômico estável e instituições financeiras sólidas como elementos-chave para atingir objetivos de longo prazo, como crescimento e desenvolvimento econômico. Por ter crescido numa região pobre do mundo, sempre se interessou pelo desenvolvimento econômico dos países.

Ao deixar o Banco Mundial, Fischer retornou ao MIT e à vida acadêmica e, em 1993, tornou-se diretor do Departamento de Economia da instituição. Deixou o cargo no ano seguinte, quando se tornou Vice Presidente do FMI, o segundo cargo em importânciana instituição. Ao longo dos sete anos seguintes, teve que lidar com as crises econômicas enfrentadas, entre outros, pelo México, Rússia, Argentina e Turquia, além de vários países da Ásia. No Brasil, teve uma atuação muito próxima ao então ministro da Fazenda, Pedro Malan e a equipe e ministério do governo de Fernando Henrique Cardoso, com grande influencia nas decisões sobre a politica econômica no país. Também esteve envolvido no aconselhamento às “economias em transição” – ou seja, as economias dos países do antigo bloco soviético – no tocante ao ritmo e tipo dereformas que deveriam implementar para a transição do comunismo ao capitalismo. Deixou o FMI em

seus alunos se transformaram em economistas proeminentes, chegando, alguns, a presidentes de vários bancos centrais. Entre seus alunos estão o ex-presidente do FED norte-americano, Ben Bernanke, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, o ex-presidente do Conselho Nacional de Economia na gestão de Barack Obama, Lawrence Summers, e Greg Mankiw, assessor econômico do ex-presidente George W. Bush, entre muitos outros. Bernanke sempre considerou Fischer, orientador de sua tese no MIT, um dos professores mais influentes que teve.

Ao longo de sua carreira Fischer publicou várias obras; entre elas: Macroeconomics, em parceria com Rudi Dornbusch, e Lectures in Macroeconomics, com Olivier Blanchard. Frequentemente usados como livros-texto em universidades americanas, as duas obras tiveram um papel-chave na mudança do estudo da Macroeconomia.

Formulador de políticas econômicas

Fischer começou a se envolver na política econômica em 1985. O então secretário de Estado dos EUA, George Shultz, o convidara para ajudar o governo israelense a lidar com uma inflação de três dígitos, reservas cambiais que minguavam e um lento crescimento econômico. Juntamente com seu colega Herbert Stein, Fischer conclui que os problemas econômicos israelenses eram o resultado de gastos excessivos do governo. Sugeriu cortes drásticos nas despesas governamentais, ressaltando que tal redução também diminuiria a dependência do país de ajuda externa. Shimon Peres, então Primeiro Ministro, seguiu as diretrizes de Fischer e a economia israelense melhorou drasticamente.

Binyamin Netanyahu (D) com o governador do Banco de Israel, Stanley Fischer

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utilizar o inglês para se expressar. Em Israel, tanto no exercício de sua função como em conversas privadas e entrevistas à imprensa, usou exclusivamente o hebraico.

A situação econômica que Fischer encontrou no país, em 2005, era bem melhor do que a vigente em 1985. A inflação era baixa e o país se recuperava de uma recessão. Quando, em outubro de 2008, estourou a crise mundial, Fischer cortou a taxa israelense de juros um dia antes de uma política similar ser adotada pelo FED, pelo Banco da Inglaterra e pelo Banco Central Europeu. Fischer se sobressaiu como dirigente máximo do Banco Central de Israel. São dele os créditos por ter salvado a economia do país durante a crise financeira global, pois a economia israelense praticamente se manteve estável durante o difícil período. Fischer guiou a economia do país através da crise, com pouco dano, enquanto os Estados Unidos e Europa se digladiavam na esteira dos problemas.

Ele adotou uma série de medidas para estimular a economia interna, em que se incluíam o enfraquecimento do shekel para manter a competitividade das exportações. Enquanto outros países ainda lutavam contra recessões profundas, Fischer elevou as taxas de juros em Israel em 2009, sinalizando ao mercado que o país já superara a crise. Sua atuação foi fundamental para que Israel fosse aceito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ainda em 2010, a Lei do Banco de Israel foi aprovada pelo Knesset.

Para Fischer, esta foi uma de suas principais realizações, pois essa lei aumentou a autonomia do Banco em determinar a política monetária ao passo em que diminuiu os poderes de seu presidente, criando um Comitê Monetário com sete membros.

Naquele ano, ele foi eleito pela revista Euromoney o “Presidente de Banco Central” do ano.

Sua gestão à frente do Banco não esteve livre de controvérsias. A principal queixa era a de que, para ajudar os exportadores israelenses, ele manteve o valor do shekel relativamente baixo, reduzindo as taxas de juros e comprando tantos dólares que as reservas de Israel chegaram à colossal soma de US$ 70 bilhões. Os investidores só conseguiam obter um retorno significativo nas aplicações em imóveis. Consequentemente, o preço dos imóveis disparou, tornando-os inacessíveis para a maioria da população israelense, principalmente os jovens.

Fischer anunciou que se afastaria da função em 30 de junho de 2013, dois anos antes do término de sua segunda gestão de cinco anos. Na ocasião o jornal Haaretz disse que marcava a partida de um “super-herói” que servira admiravelmente não apenas como Presidente do Banco Central, mas também, por vezes, como o “ministro não oficial do exterior da Economia de Israel. Era Fischer que acalmava os investidores estrangeiros, assegurando-lhes que a economia estava em boas mãos”.

Dirigentes de bancos centrais, devido à natureza de seu trabalho, em geral não são populares. Esse não é o caso de Fischer. Nenhum dos que o antecederam no cargo gozou do reconhecimento e total confiança que ele teve, nem do governo nem do público. Ele conta que quando corria na praia, em Israel, as pessoas o paravam para lhe dar conselhos de como se desincumbir à frente do Banco de Israel. Após renunciar, disse estar comovido pelo carinho dos israelenses, que, ao reconhecê-lo, costumavam agradecer-lhe pelos serviços prestados ao país.

Presidente Peres recebe relatório de 2012 do governador do Banco de Israel

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Ao término de sua gestão em Israel, ele se mudou para Nova York. Ao partir, revelou que sentiria falta do povo de Israel.

Sobre a paz

Para Fischer, os principais desafios econômicos de Israel são acelerar o crescimento e diminuir a pobreza. Enquanto esteve à frente do Banco, abordava a questão da paz com os palestinos e outros países árabes através de uma visão econômica. Como economista, ele acredita que Israel poderia beneficiar-se muito com a paz; que o país poderia ser um dos líderes da economia mundial se a paz fosse de fato estabelecida no Oriente Médio.

Em 2007 chegou a afirmar: “Com seu dinamismo e criatividade, a economia israelense poderia crescer muito mais rapidamente se conseguíssemos firmar a paz com nossos vizinhos. É claro que podemos crescer mesmo sem avançar

em relação à paz, mas, com a paz, em vez de ter um crescimento de 4% a.a., o país poderia crescer a taxas de 5% - 6%. E em uma ou duas décadas, Israel seria uma das economias mais avançadas do mundo”. Explica Fischer que Israel paga, de juros, cerca de duas vezes a média do que pagam os países da OCDE, devido aos prêmios de risco. Mesmo com um nível razoável de dívida, é um dos países que paga o mais alto prêmio de risco, no mundo, sobre seus títulos de dívida, em virtude da instabilidade geopolítica. A diferença equivale a um terço do orçamento da Defesa.

Apesar de que o percentual do PIB gasto com a Defesa ser o mais baixo em 50 anos, caindo de quase 30%, no início da década de 1970, a apenas 6% - mesmo assim, é o maior entrave no orçamento, ano após ano. Ele acrescenta que se Israel pudesse direcionar alguns pontos percentuais de seu PIB

a outras causas, a qualidade de vida poderia melhorar de forma significativa.

A serviço do povo judeu

Fischer é a prova de que um judeu pode chegar ao topo da sua carreira e ser um sionista fervoroso, sem perder o respeito e a admiração de seus colegas. Com seu exemplo, mostrou que um judeu pode servir o Estado de Israel e seu povo, mesmo tendo crescido e sido educado fora de Israel. Quando foi chamado para servir o Estado, Fischer utilizou toda sua experiência e anos de estudo e se dedicou, por oito anos, ao Estado de Israel. Abrindo mão de muito e, com total senso de dever, dedicou-se ao seu povo. Seu exemplo pode encorajar outros judeus, com carreiras bem-sucedidas e posições de destaque, a irem a Israel, por alguns anos, e enriquecerem o país com seu talento e suas realizações.

1. chanceler Angela Merkel, da alemanha, com Stanley Fischer, fev. 2011, 2. com o presidente do fed Ben Bernanke, 3. com a esposa, rhoda fischer, jan. 2005 4. com Christine Lagarde, diretora-gerente do fmi, abr. 2011

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PERSONALIDADE

rik, como é chamado no país, é o arquétipo do ideal sionista, do sabra, do agricultor-guerreiro, profundamente ligado à Terra de Israel. Lutou em todas as suas guerras sempre na frente da batalha. E, após entrar

na política, defendeu seu povo e sua Terra com igual coragem e determinação. Tendo ocupado praticamente todos os altos postos do governo, inclusive o de primeiro- ministro, em janeiro de 2006 sofreu um grave derrame do qual nunca se recuperaria.

Muitas vezes descrito como um “falcão” de linha-dura, suas ações e decisões, tanto militares quanto políticas, sempre foram guiadas por um único parâmetro – a segurança e sobrevivência de seu povo. Acreditava que o Povo Judeu, “tantas vezes vítima de injustiça e perseguições, deve ter um Estado em que pode ser independente e livre, sem medo de ninguém e igual a todos os outros”.

Mas é a imagem do guerreiro, do comandante destemido, do herói de guerra, que permanece na memória de toda uma geração de judeus que viu Israel lutar por sua sobrevivência. Para o próprio Sharon, como revela o título de sua autobiografia, Warrior1, ser um guerreiro de

Israel era o que mais almejava. É essa parte da vida de Sharon que pretendemos esboçar nessa matéria. O destemido “rebelde” do Tzahal, Forças de Defesa de Israel (FDI), considerado um dos maiores estrategistas militares do mundo, obteve vitórias espetaculares e sofreu derrotas, mas nunca seu espírito guerreiro se deixou abater, jamais deixando de crer que Israel sairia vitorioso.

Sua juventude

Arik nasceu Ariel Scheinerman, em 26 de fevereiro de 1928, no Moshav Kfar Malal, a 25 km de Tel Aviv. Seus pais – Samuel e Vera Scheinerman – haviam fugido da Rússia e desembarcado no porto de Tel Aviv em 1922.O sionismo e o amor a Eretz Israel corriam nas veias de Samuel, líder do Partido Poalei Zion e agrônomo recém-formado. Após a Revolução Russa de 1917, Samuel sabia que seria preso por suas atividades sionistas. Vera, mulher de uma imensa força interna, abandonou tudo para se casar e embarcar com ele para a então Palestina. Algum tempo após sua chegada, o casal filia-se ao Moshav que passaria a se chamar Kfar Malal. Lá nascem seus dois filhos, Dita e Ariel. Os primeiros tempos foram difíceis, mas o casal era persistente e dotado de uma vontade de ferro, duas qualidades que Arik vai incorporar.

a

arik: UM GUERREIRO DE ISRAEL

Em 11 de janeiro deste ano Israel perdeu um de seus grandes

líderes. Figura lendária e controvertida, Ariel Sharon

personifica, para muitos, o destino de Israel. Mesmo seus

adversários o comparam aos heróis bíblicos. De militar

a político, foi um defensor corajoso e intransigente da

segurança de Israel. A história de sua vida está intimamente

ligada à existência do Estado Judeu.

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PERSONALIDADE

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O futuro general cresce solitário, pois havia uma constante tensão entre seus pais e outros membros de Kfar Malal. Sendo todos eles sionistas trabalhistas que haviam ido a Eretz Israel para estabelecer uma sociedade socialista em seu Lar Nacional, não viam com bons olhos o individualismo de Samuel e Vera.

Em Kfar Malal a tensão era constante; os árabes haviam praticamente destruído o Moshav em 1921 e os judeus viviam sob a ameaça de um ataque. Mas, como relata Sharon, mesmo em 1936 quando começou a chamada Revolta Árabe, “Nunca percebi medo neles. Ninguém tinha uma dúvida sequer sobre seu direito àquela Terra. (...). Ninguém ia forçá-los a abandoná-la”. Arik cresce apreciando música e literatura russa, mas é um aluno medíocre; prefere trabalhar com o pai e sonha em um dia ser fazendeiro. Mas os pais querem que ele tenha uma boa educação e o enviam para o Liceu Geula, em Tel Aviv.

Na época, os olhos do Ishuv estavam voltados para a Europa e para a Alemanha nazista. Em

1941, cresce na então Palestina a ansiedade por uma possível invasão nazista e os conflitos entre árabes e judeus também se tornam ainda mais violentos. Com apenas 13 anos, Sharon já monta guarda no Moshav com um cassetete e um punhal, presente do pai no seu bar-mitzvá. Durante as noites de guarda solitária aprende a tomar decisões.

Sharon começou sua carreira militar no Gadná2. E, aos14 anos, se une à Haganá, que, prevendo a luta que os judeus teriam que enfrentar, intensifica os treinamentos. Arik torna-se instrutor, insiste em treinar os jovens a seu modo, autorizando ações que outros não permitiam, como, por exemplo, enviá-los em operações noturnas para patrulharem vizinhanças hostis. É nessa época que ele muda de sobrenome, adotando “Sharon”, o nome da planície ao norte de Tel Aviv.

Ele tinha 17 anos quando termina a 2ª Guerra Mundial. Apaixonado por uma judia romena, Margalit Zimmerman, “Gali”, estava ansioso para começar uma vida a dois;

ariel sharon

1 As citações utilizada nessa matéria foram tiradas de Warrior: an autobiography. A obra, de autoria do próprio Sharon e David Chanoff, foi publicada em 1989.

2 Gadná - programa militar israelen-se que prepara os jovens para o serviço militar nas FDI. Este serviço foi criado antes da fundação do Estado e passou a ser sus-tentado por lei em 1949.

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mas teria que esperar. Enquanto nas esferas políticas, os sionistas se mobilizam para estabelecer um Estado Judaico na então Palestina, os acontecimentos no Oriente Médio sinalizavam que, para estabelecer seu Lar Nacional, os judeus do Ishuv teriam que enfrentar os exércitos de seis países árabes.

Guerra da Independência

Israel nasceu à meia-noite do dia 15 de maio de 1948. Horas depois, foi atacado pelos exércitos do Egito, Arábia Saudita, Síria, Líbano, Iraque e Jordânia.

Quando a Guerra de Independência eclodiu, Sharon, então com apenas 19 anos, comandava um pelotão de 50 homens da Brigada Alexandroni, das recém-criadas FDI. Destemido e ousado, seus superiores sabiam que, apesar de jovem, possuía a presença física e as qualidades necessárias para liderar homens em combate.

Arik participa de inúmeros embates, mas o mais difícil e que lhe deixaria marcas profundas seria a batalha por Latrun. Essa colina estratégica controlava a estrada de Tel Aviv a Jerusalém e estava em mãos da Legião Árabe Jordaniana. Sitiados pelos jordanianos, os judeus na Cidade Velha de Jerusalém estavam sem água e alimentos. Para que um comboio de suprimentos conseguisse chegar até eles, a estrada precisava estar em mãos das FDI. Repetidamente atacado por Israel, Latrun tornou-se o campo de batalha mais sangrento da Guerra de Independência.

O pelotão de Sharon participou no primeiro ataque, em 26 de maio. Tudo deu errado. Seus homens foram apanhados em campo aberto. Uma

depressão no terreno lhes deu certa proteção contra o fogo jordaniano, mas a situação era crítica. “Todas as nossas forças tinham batido em retirada. Eu temia que os habitantes das aldeias árabes viessem matar os feridos, como era seu costume”.

Arik vê seu pelotão sendo dizimado e ele é gravemente ferido no ventre, mas consegue arrastar-se, com a ajuda de dois companheiros, até as linhas israelenses. É imediatamente levado para o hospital. Recuperado em alguns meses, volta à linha de frente. Em julho de 1949 é assinado um armistício entre Israel e seus inimigos.

Os erros cometidos em Latrun e a morte de seus homens deixam profundas marcas no futuro general: “Se ao menos, não tivéssemos sido abandonados... Se houvesse alguém lá para tomar a decisão”...

Muitas de suas atitudes futuras iriam ser moldadas pelas lições apreendidas em Latrun, principalmente a necessidade de sempre haver um oficial comandante no teatro de operações, capaz de tomar decisões de acordo com o desenrolar da situação. E a obrigação de que nenhum soldado de Israel, ferido ou aprisionado, seja deixado para trás. “Todo soldado deve saber que seus companheiros farão o humanamente possível para resgatá-lo.”

Na primavera de 1953, Sharon deixa o serviço ativo nas FDI e se casa com Gali. O casal se muda para Jerusalém e Sharon passa a estudar na Universidade Hebraica. Escolhe História do Oriente Médio. Pela primeira vez na vida sentiu-se feliz, deleitando-se com a experiência de ser apenas um jovem universitário. Mas, no verão de 1953, o dever o chama.

Sharon começou sua

carreira militar no

Gadná. E, aos 14 anos,

se une à Haganá que,

prevendo a luta que

os judeus teriam que

enfrentar, intensifica

os treinamentos.

na haganá

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Unidade 101

O terrorismo já se havia tornado um instrumento da política árabe, e fedayin vindos de Gaza e das áreas controladas pela Jordânia infiltravam-se pelas fronteiras de Israel, para atacar. Em 1951, 137 israelenses foram assassinados; em 1952, 162; e, em 1953, foram registrados mais de 3 mil ataques terroristas e 160 mortes. O Alto Comando das FDI decidiu então criar uma unidade especial antiterror – a 101, a primeira unidade de elite para operações especiais atrás das linhas inimigas.

Sharon foi convocado e aceita a incumbência, pois acreditava que Israel não podia aceitar que os ataques fossem “parte inevitável de nossas vidas”. Para ele, o Estado Judeu, com sua pequena população e recursos limitados, não podia criar um equilíbrio de poder que permitisse a coexistência com seus inimigos. A única alternativa era convencer os árabes de que qualquer agressão militar contra Israel lhes traria apenas humilhação e destruição. Era preciso criar nos árabes a “psicologia da derrota”: vencê-los tão arrasadoramente, a cada vez, até ficarem convictos de que jamais poderiam vencer. Sharon reuniu 45 jovens para executar operações rápidas de retaliação através da fronteira.

Treinou-os até o esgotamento e inculcou-lhes a confiança de que poderiam atuar onde quer que

fosse necessário, sob as mais adversas condições. Nos cinco meses em que atuou, a 101 se tornou uma lenda. Teve um impacto fundamental no esforço do país em sua luta contra o terrorismo, pois os israelenses provaram a seus inimigos, e aos amigos também, que eram capazes de encontrar os responsáveis pelos ataques e atingir alvos muito além das linhas inimigas. Nesse período, Arik se torna cada vez mais próximo de David Ben-Gurion, que tem grande admiração pelo jovem oficial.

Em 1954, Moshe Dayan, então chefe do Estado-Maior das FDI, integra a Unidade 101 a um grupo de paraquedistas, criando a 202. Sharon, ainda no comando, faz dela uma unidade de elite pronta para reagir de imediato e implementar com sucesso qualquer ação militar.

A Campanha do Suez

O ano de 1956 foi difícil para Israel, com a escalada militar egípcia e a intensificação das ações terroristas

originadas em Gaza e na Cisjordânia. Em julho, Gamal Abdel Nasser, que assumira a presidência do Egito em 1954, nacionaliza o Canal de Suez. Vendo seus interesses econômicos ameaçados, ingleses e franceses se unem a Israel para derrubar Nasser. Os três países elaboram um plano: Israel atacaria de surpresa o Egito e, quando suas tropas se aproximassem do Canal de Suez, ingleses e franceses fariam um “apelo” para cessar os combates. Contando com a recusa de Nasser, Inglaterra e França entrariam na guerra.

Sharon recebe um papel importante na execução do plano. Em 28 de outubro, paraquedistas de sua brigada saltam no lado oriental da Passagem de Mitla4, na parte oriental do Sinai. Liderando uma brigada de tanques, ele segue para lá para se unir aos paraquedistas e assegurar o controle da passagem. Em 24 horas derrotou os egípcios e chegou a Mitla. Pede a Dayan permissão para atacá-la, mas seu pedido é negado. Obtém, porém, permissão de enviar um pelotão de verificação, mas é alertado para não

4Mitla é uma passagem de 32 km no Sinai, entre as cordilheiras ao Norte e Sul, localizada a cerca de 50 km a leste de Suez. É famosa por ter sido o local de importantes batalhas entre as forças egípcias e israelenses em 1956, 1967 e 1973.

Ben gurion e sharon no front israelense, no canal de suez. guerra de atrito, 1971

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ser uma grande influência na vida de Sharon.

A carreira de Arik, que havia sido posta na “geladeira” após a Campanha do Sinai, volta a avançar quando, em 1963, Yitzhak Rabin se torna chefe do Estado-Maior das FDI. Após certa hesitação, Rabin ofereceu-lhe o cargo de chefe do Comando Norte. Quatro anos mais tarde, após se formar em Direito, Sharon é promovido a general, recebendo o comando de uma Divisão de Reserva de Blindados.

Guerra de 1967

Considera-se o dia 5 de junho de 1967 como sendo a data do início da Guerra dos Seis Dias. Mas, na realidade, ela se iniciara dois anos e meio antes, quando Israel colocou um ponto final no projeto árabe de desvio de dois afluentes do Rio Jordão – o Hasbani e o Banias. Nos anos seguintes cresce a tensão na região. A partir do Golã a artilharia síria bombardeia kibutzim e vilarejos e cresce o número de ataques terroristas

realizados pela OLP de Arafat com bases na Jordânia e no Líbano.

A situação torna-se ainda mais tensa no início de maio de 1967. Após receber informações falsas da União Soviética sobre uma concentração de forças israelenses nas fronteiras, Nasser concentra tropas no Sinai. E, no dia 21, proíbe todos os navios com destino ou provenientes de Israel de passarem pelo Estreito de Tiran. Para Jerusalém, é um ato de guerra. Àquela altura, já havia 100 mil soldados e mil tanques egípcios no Sinai. Israel mobiliza seus reservistas. E, um dia após o avanço egípcio, Sharon já estava com a sua Divisão no Neguev.

Pessimistas, Yitzhak Rabin, chefe de Estado-Maior, e o primeiro ministro Levi Eshkol hesitam em lançar uma operação preventiva. Mas, assim como outros generais, Sharon tinha total confiança na vitória. Ele sempre acreditou que a melhor forma de defesa era o ataque e, ao ser consultado por Eshkol, responde: “Esta guerra está sendo forçada sobre nós, e nossa situação está-se tornando mais perigosa a cada minuto... A única opção é atacar e, neste momento, somos capazes de derrotar todo o exército egípcio”.

Os dias de espera enchem o país de inquietação. No dia 1º de junho é formado um novo governo de União Nacional e Moshé Dayan é nomeado ministro da Defesa. No dia 4 é tomada a decisão de atacar preventivamente. No dia seguinte, dia 5 de junho de 1967, às 7h44min, 300 aviões israelenses atacam bases aéreas egípcias e sírias. Em três horas, os árabes perdem cerca de 80% de seus aviões. Em seguida, Israel ataca por terra.

Na Guerra dos Seis Dias, a mais decisiva campanha militar dos

iniciar um embate. Após adentrar a passagem, surpresos por intenso fogo egípcio, seus homens ficam presos. Sharon decide atacar e, em 24 horas, o inimigo é derrotado – mas 38 israelenses são mortos e muitos ficam feridos. Dayan fica furioso com Sharon. Para seus superiores, a atuação e obstinação de Arik nas batalhas beiravam a insubordinação.Entretanto, a Campanha do Suez se transformara em crise mundial e a ONU exige o imediato cessar-fogo. Pressionado pelos Estados Unidos, Israel concorda em sair do Sinai; não podia ficar isolado na arena internacional.

Logo após o término da guerra, em dezembro de 1956, Gali dá à luz a seu primeiro filho, Gur. Mas a felicidade do casal dura pouco. Em maio de 1962 Gali morre em um acidente de carro. Lily, sua irmã mais nova, vai morar com Sharon para cuidar do pequeno Gur, com quem era muito ligada. Um relacionamento estreito nasce entre Sharon e a cunhada. Acabam se casando e têm dois filhos, Omri e Gilad. Lily vai

primeiro ministro Menachem Begin e ministro Ariel Sharon, 1977

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tempos modernos, Sharon teve um papel crucial. Sua Divisão de Blindados avança no Sinai rapidamente, conquistando duas passagens-chave, Mitla e Gide. Sua missão era tomar a estrada que levava de Beersheva a Ismailia, mas para tanto precisaria tomar as bases egípcias de Abu Agheila e Kusseima. Os analistas militares de Israel e os estrategistas do mundo todo dão o crédito a Sharon por ter concebido e executado o mais espetacular plano de batalha da história militar israelense, a batalha noturna por Abu Agheila.

A batalha foi decisiva, pois, ao saber da queda de Abu Agheila, o Egito ordenou a retirada, em um único dia, das forças egípcias para a margem ocidental do Canal. No dia 8 de junho, a maior parte do Sinai já estava em mãos israelenses e a Divisão de Sharon foi a primeira a chegar ao Canal de Suez. Simultaneamente, outras forças israelenses haviam derrotado os exércitos da Jordânia e da Síria, conquistando toda Jerusalém e as Colinas do Golã. As FDI estavam a caminho de Damasco quando, no dia 10 de junho, entrou em vigor um cessar-fogo.

A rápida vitória deixou toda Israel eufórica. Mas para Sharon o sentimento durou pouco. Apenas quatro meses mais tarde, dia 4 de outubro, Rosh Hashaná daquele ano, a tragédia o atinge. Ele estava em casa enquanto seu primogênito, Gur, brincava com amigos do lado de fora. Sharon não sabia que estavam com um antigo rifle que ele recebera de presente. Um dos garotos apontou a arma para a cabeça de Gur e disparou. Ao ouvir o tiro Sharon correu e encontrou seu filho gravemente ferido. O menino morreu a caminho do hospital. Sharon

ficou desesperado. Ele escreveu: “Pela primeira vez na minha vida, eu me senti diante de algo que não conseguia superar, e ao qual não conseguiria sobreviver”.

A linha Bar-Lev

Logo após o término da Guerra dos Seis Dias, forças israelenses ao longo do Canal de Suez passam a ser alvo de ataques egípcios. Certo de que o Canal se tornaria uma frente de batalha ativa, Israel precisa traçar uma estratégia de defesa. Sharon e Bar-Lev, então chefe do Estado-Maior, apresentam soluções diferentes. O general Bar-Lev queria a construção, na margem oriental do Canal, de uma maciça parede de areia apoiada por outra de concreto e, imediatamente atrás, postos fortificados com guarnições. Estrategista nato, Sharon era totalmente contrário, pois acreditava que tal solução tornaria as posições de Israel alvos estáticos apenas a 300 metros das posições egípcias.

Acreditava que no caso de ataque os israelenses deveriam lutar em profundidade. Sua defesa deveria basear-se na linha natural das colinas e dunas que correm em paralelo ao canal, e, numa segunda linha a ser criada a cerca de 25 km do canal, que serviria de base para forças móveis que iriam circular ao longo do canal.Sharon abandona a reunião após qualificar a decisão de adotar a proposta de Bar-Lev de “perigosa e estúpida”. O chefe do Estado-Maior decide, então, afastá-lo.

Aturdido, ele precisa pensar no futuro. Quer continuar a servir a seu país e sente-se atraído pela política. Sharon sonda o terreno, não no Partido Trabalhista do qual faz parte praticamente todo o exército, mas no campo adversário, no partido nacionalista Herut de Menachem Begin. Mas, é tempo de eleições e os trabalhistas não querem perder um trunfo eleitoral como Sharon e fazem com que o exército volte atrás da decisão de afastá-lo.

A Guerra de Atrito

A chamada Guerra de Atrito entre Israel e Egito está no auge quando, em 1969, Sharon assume o Comando Sul. Israel não pode ficar parado diante dos ataques egípcios. Sharon decide instalar novos postos de observação, cria patrulhas que circulam ao longo do Canal, e intensifica também a ação do Tzahal e da aviação israelense, que já vinham efetuando ataques em território egípcio. O recado de Sharon para Nasser é claro: “Israel pode atacar os pontos vitais do Egito”.

Em agosto de 1970, após 17 meses de combates diários, entra em vigor um cessar-fogo. Passado um mês, morre Nasser. Anwar el-Sadat é o sucessor.

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a eclosão do conflito, perante as alarmantes notícias sobre a situação das forças israelenses no Canal e no Golã, Zeev Amit, melhor amigo e irmão de luta de Sharon, chega a lhe perguntar: “Como vamos sair dessa?” Sharon respondeu: “Nós vamos atravessar o Canal de Suez e a guerra terminará lá”.

A ousada travessia do Canal de Suez, por Sharon, em outubro de 1973, é bem conhecido por todos, mas algo precisa ser dito sobre seu impacto na Guerra do Yom Kipur. Não resta dúvida de que seus preparativos para um contra-ataque através do Canal do Suez, quando ainda era comandante geral do Comando Sul, sua habilidade intuitiva de rapidamente avaliar complexas situações militares e sua atitude determinada e confiante durante a guerra foram fundamentais para a vitória israelense.

Nessa matéria vamos apenas pincelar os acontecimentos da Guerra de Yom Kipur, pois, nas últimas duas edições, Morashá trouxe artigos

sobre o desenrolar dos eventos: os que antecederam a eclosão da guerra e sobre as duas frentes de batalha - Golã e Sinai.

Às 3h de domingo, 7 de outubro, viajando em uma pick-up emprestada, Sharon estava à caminho de sua quarta guerra no deserto. Antes de seguir viagem passara pelo quartel-general de sua Divisão, a 143ª Divisão Reserva de Blindados, para ordenar a todas as unidades que seguissem para o Sinai o mais rápido possível.

A mera presença física de Sharon tinha o poder de eletrizar, incutir confiança e respeito entre soldados e oficiais. Sempre na frente das batalhas, onde quer que fosse, os homens sob seu comando iam atrás dele, nas mais audaciosas batalhas da história militar de Israel. Apesar de não ser mais o comandante-geral, quando, após chegar a Refidim, a principal base no Sinai, Sharon entra na sala de guerra subterrânea, instintivamente, todos os presentes se levantaram como se ele, e não o general Gonen que o substituíra,

Sharon aproveita o cessar-fogo para voltar suas atenções à Faixa de Gaza e inicia uma verdadeira caçada a terroristas e à OLP de Arafat. Traça planos e prepara pontos de travessia ao longo da Linha Bar-Lev para que, em caso de uma ofensiva egípcia, Israel tivesse condições de, rapidamente, contra-atacar e atravessar o Canal.

Depois de 25 anos de uma fulgurante carreira militar, após ter-se tornado evidente que ele não iria ser indicado para o cargo de chefe do Estado-Maior, Sharon deixa a farda, passando para a reserva com a patente de general. É indicado comandante da 143ª Divisão Reserva de Blindados, apesar da oposição do então chefe do Estado-Maior, o general Elazar. Sharon contou com o apoio de Dayan, que acreditava que era melhor ter um general por demais agressivo do que um que não fosse agressivo o bastante. Um dia antes de seu desligamento, Sharon pede a Dayan que o deixe mais um ano como comandante do Comando Sul, dizendo-lhe que era grande a possibilidade de uma guerra com o Egito e que sua experiência em batalhas no Sinai não devia ser desprezada. Mas Dayan foi categórico: “Não haverá guerra no próximo ano”.

Nos três meses seguintes, Sharon entra na politica e é a força motora por trás da formação do novo partido de direita, o Likud, liderado por Begin. E, enquanto aguarda as eleições legislativas, realiza um velho sonho comprando uma fazenda abandonada no norte do Neguev.

Guerra de Yom Kipur

Às 14 horas do dia 6 de outubro de 1973, Yom Kipur, Egito e Síria atacam Israel. Algumas horas após

O então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, em 2005

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fosse o seu chefe supremo. Ao vê-lo, o próprio General Avraham Mendler, comandante da única Divisão de Blindados do Sinai, sente-se aliviado. Ao ouvir o relato de Mendler, Sharon se deu conta de que seus piores pesadelos se haviam concretizado. Os egípcios haviam conseguido penetrar rapidamente pelas trincheiras de areia e concreto da Linha Bar-Lev e já se encontravam a oito quilômetros a leste do canal. Israel sofrera pesadas baixas. Grande parte de seus tanques haviam sido atingidos.

Sharon sabia que o fator psicológico é fundamental na guerra. Era evidente que o desânimo e choque haviam tomado conta do Gabinete da Golda Meir e do Alto Comando. E, nos soldados, ele percebia que havia “não medo, mas perplexidade... Pela primeira vez em sua vida um exército israelense estava sendo obrigado a recuar e os soldados não conseguiam entender o que estava acontecendo”. Era vital contra-atacar com força total e alterar imediatamente o andamento da guerra e de suas perdas iniciais. Era vital as forças israelenses reassumirem a iniciativa. Era necessário devolver aos israelenses sua confiança na vitória e tirar dos egípcios o gosto do sucesso.

A esperança de mudar rapidamente o rumo da guerra foi por terra após o fracassado contra-ataque israelense realizado no dia seguinte, 8 de outubro, pela manhã. Sharon acreditava que era possível vencer os egípcios, mas precisaria de uma ação radical. Acreditava ainda que a única forma de garantir a derrota dos Segundo e Terceiro Exércitos egípcios era cruzar o Canal, e ele passa a pressionar incansavelmente o Alto Comando.

Ainda no dia 8 uma informação o anima. Homens de sua divisão haviam esbarrado sobre uma “fenda” entre o Segundo e o Terceiro Exércitos. A área permitiria sua divisão avançar até o Canal sem ter que abrir caminho através das cabeças-de-ponte egípcias. Por sorte, a “fenda “ chegava até o Forte Matsmed, onde Sharon, enquanto comandante-geral, preparara uma área para uma travessia do Canal. Conhecido como o “Pátio”, o local havia sido adequado para abrigar os equipamentos pesados e volumosos das pontes que seriam utilizadas para, a travessia.

Após Israel vencer a Batalha do Sinai, no dia 14 de outubro, o general Elazar deu o sinal verde para a travessia do Canal. A divisão de Sharon vai liderar a operação: tomar o Pátio, proteger o local e abrir as estradas de acesso até então em mãos egípcias para que as pontes necessárias para a travessia possam chegar até lá.

Na noite de 15 para 16 de outubro, enquanto brigadas de sua divisão travavam violentos embates para abrir as estradas, Sharon ordena ao coronel Dani Matt que atravesse com seus homens o Canal de Suez. Vendo que nem a ponte rolante pré-fabricada, idealizada para a travessia do Canal, nem as pontes de pontões chegariam a tempo, Sharon mandara trazer botes anfíbios.

À 1h35, já do lado egípcio do Canal, Matt transmite pelo rádio uma única palavra: “Acapulco”, o código para “sucesso”. Logo após, blindados da Divisão de Sharon juntam-se a eles para dar início a uma ousada operação militar para liberar os céus para a aviação israelense. Antes do amanhecer do dia 18, duas brigadas do general Adan estavam no lado

egípcio. Para o Alto Comando, a fase da guerra de sobrevivência já terminara para Israel.

Após a ponte rolante pré-fabricada, medindo 200 metros, ficar operacional nas primeiras horas do dia 19, a travessia toma novo ímpeto, pois as FDI decidiram deslocar para a África todas as forças de combate disponíveis. Depois de ter cruzado o Canal, a Divisão de Sharon dirigiu-se ao sul em paralelo à de Adan, para depois atacar ao norte. Ainda no dia 19, duas divisões dos generais Adan e Magen iniciam seu avanço para isolar o Terceiro Exército egípcio enquanto brigadas da Divisão de Sharon prosseguem para o norte, ao longo da margem ocidental do Canal, para isolar o Segundo Exército.

O resto da história é conhecido. Quando o cessar-fogo entrou em vigor, o Terceiro Exército estava cercado no Sinai pelas FDI. Uma importante realidade estratégica tinha sido imposta ao front egípcio, com implicações de longo alcance. Para Israel era uma reafirmação de força após o mais severo teste de sua história.

Ao término da guerra, enquanto Golda Meir e Moshe Dayan são alvos de uma série de acusações e vários generais são destituídos, Sharon é aclamado como herói e em todo Israel vê-se escrito em tanques e muros : “Arik, melech Israel (Arik, rei de Israel)”.

Após o término da Guerra, Sharon deixa o exército e lança sua carreira política. Nessa nova fase de sua vida terá que enfrentar novas lutas, conseguirá inúmeras vitórias e algumas derrotas. Vai ocupar praticamente todos os ministérios: em 1977 da Agricultura; de 1981 até 1983 da Defesa; em 1984 da

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Indústria e Comércio; de 1990 até 1992, da Construção e Habitação, e faz parte da comissão ministerial para Imigração e Integração dos novos imigrantes; em 1996, da Infraestrutura e, em 1998, das Relações Exteriores. Em fevereiro de 2001 Sharon torna-se primeiro ministro de Israel. Em 4 de janeiro de 2006, o então premiê sofre um grave derrame cerebral permanecendo em coma profundo até vir a falecer no dia 11 de janeiro de 2014, um Shabat, aos 85 anos de idade.

Um Guibor Israel – um herói dos Filhos de Israel

Ariel Sharon foi uma lenda viva, uma figura Bíblica moderna, um herói destemido sempre pronto a se levantar para proteger nosso povo de nossos inimigos. Mesmo seus mais ferrenhos oponentes concordam que era um comandante de campo excepcional – o melhor que Israel já teve, um estrategista nato, ousado

verdadeiro Guibor Israel – um herói dos Filhos de Israel. Um homem que não temia nada nem ninguém, um guerreiro que encarou a morte diversas vezes sem sequer piscar. Mas, acima de tudo, foi um judeu que amava seu povo. Shimon Peres, atual Presidente de Israel e amigo pessoal de Ariel Sharon, resumiu sua vida com as seguintes palavras: “Arik amava seu povo e seu povo o amava”.

Arik, que sua memória seja abençoada para sempre – você, que foi nosso maior general e o mais valente, temido e destemido filho do Povo de Israel.

e criativo, que inspirava suas tropas e podia interpretar uma batalha à medida que a mesma se desenvolvia.

Mas, Sharon não foi apenas um comandante militar. Foi um grande líder que deixou sua marca na história. Esteve envolvido em praticamente tudo de importante que ocorreu no Estado Judeu. Lutou as guerras, derrotou os inimigos, cultivou a terra, desenvolveu a agricultura, construiu casas, fechou acordos diplomáticos, traçou novas fronteiras e, finalmente, liderou o país. Nenhuma outra figura israelense fez tanto, por tanto tempo, pela Mediná.  E, como todo grande líder, tomou decisões difíceis – muitas delas polêmicas e impopulares. Mas mesmo seus maiores críticos e inimigos não têm como negar seu papel fundamental – seu heroísmo e brilhantismo – em defender o Povo e o Estado de Israel

A memória de Arik está gravada no coração de nosso povo. Ele foi um

ariel e lily sharon em casa, 1989

Bibliografia:

Sharon, Ariel e Chanoff, David, Warrior: An Autobiography, Kindle edition Dan,Uri, Ariel Sharon: An Intimate Portrait, Ed. Palgrave Macmillan, 2007 Eytan, Freddy, Sharon, o braço de ferro, Ed. Barcarolla Worth, Richard, Ariel Sharon (Major World Leaders), Kindle edition

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m Hamburgo, no campo de concentração de Neuengamme, 20 crianças judias e seus quatro cuidadores ainda estavam vivos. As crianças, 10 meninas e 10 meninos arrebanhados de Auschwitz, na Polônia, em novembro de 1944,

tinham entre 5 e 12 anos. Haviam sido escolhidas a dedo para serem submetidas a pseudo-experimentos médicos. O Dr. Kurt Heissmeyer, médico pneumologista integrante da SS, queria finalmente se tornar professor. Para tal, precisava apresentar sua tese. Depois que experimentos sigilosos com prisioneiros adultos não deram o resultado desejado, ele decidira requisitar 20 crianças para desenvolver sua vacina contra a tuberculose. O Dr. Heissmeyer fazia cortes histológicos no peito das crianças e, na incisão de 10 a 20 centímetros, inoculava bactérias vivas de TBC. Os meninos e meninas logo apresentavam um quadro febril e abscessos no lugar do corte. As glândulas linfáticas se inchavam fortemente, pois é nessa região que se concentram os anticorpos que protegem o organismo de infecções. Algumas semanas mais tarde, Heissmeyer mandava extirpar as glândulas embaixo das axilas. Verificava-se, a seguir, se nas glândulas havia-se desenvolvido algum tipo de material de defesa contra o TBC. Esses experimentos causavam muito sofrimento às crianças. Um dos procedimentos mais dolorosos era a introdução, pela boca e traqueia, de um tubo de borracha que ia até o pulmão. Por ele, o médico injetava (ou mandava injetar) meio copo de

E

AS 20 CRIANÇAS DE HAMBURGO

No dia 20 de abril de 1945 um decrépito Adolf Hitler completava

56 anos, no seu bunker em Berlim. O exército inglês estava

nas imediações de Hamburgo, os russos e americanos perto

de Berlim. A história seguiria seu rumo, para os nazistas havia

chegado a hora de queima de arquivos. Os especialistas da SS

encarregaram-se dessa urgente missão.

POR IRENE Gebhardt Freudenheim

bactérias de TBC para provocar tuberculose no pulmão.Georges-André Kohn, menino francês de 12 anos, ficou tão debilitado que a partir desse momento não conseguiu mais ficar em pé. Em começos de dezembro de 1944, as crianças estavam alojadas no barracão 4A da Enfermaria do Campo de Concentração de Neuengamme, de onde não podiam sair de modo algum. Ficavam sob os cuidados de dois prisioneiros holandeses, que haviam sido capturados por distribuir panfletos contra os invasores nazistas. Os dois, Anton Hölzel e Dirk Deutekorn (este, enfermeiro), em pouco tempo se converteram em pais substitutos para as pequenas vítimas. Eles tinham como obrigação não só cuidar das crianças, mas também de porquinhos-da-índia, instalados em gaiolas no mesmo barracão, nos quais Heissmeyer também realizava experimentos quando ia até Neuengamme – experimentos tão sem sentido quanto os realizados com seres humanos. Mais tarde, perante um Tribunal de Justiça britânico, em 1946, Heissmeyer declararia que, para ele, não havia qualquer diferença entre usar cobaias animais ou crianças judias em seus experimentos. Poucas semanas após sua chegada, em dezembro de 1944, todas as crianças estavam gravemente doentes. Anton e Dirk tentavam conseguir alimentos melhores para elas. No dia de Natal houve gestos significativos de solidariedade. Apesar da severa proibição de se aproximarem dos pequenos presos do barracão 4A,

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Petersen. Ele parou em frente à porta do barracão 4A. Eram 22 horas. O SS Dreimann havia ordenado aos cuidadores holandeses que acordassem e vestissem as crianças. Dois médicos franceses, também presos, Florence e Quenoille, foram chamados para ajudar nessas tarefas, com a finalidade de abreviar os “procedimentos”.

As crianças estavam cochilando, mas quando lhes foi dito que se reuniriam com seus pais, rapidamente se levantaram. Alvoroçados com a ideia do reencontro, os mais velhos se vestiram sozinhos. Porém, Georges-André estava tão fraco que os dois médicos tiveram que carregá-lo até o caminhão. Todos levaram seus pertences; os menores, seus toscos brinquedos. No caminhão já estavam seis prisioneiros de guerra russos, que também seriam executados nessa noite. Ninguém sabe seus nomes até hoje. Todos foram levados a um prédio que havia servido de escola, a uns

A escola no Bullenhuser Damm

vários prisioneiros foram visitar as crianças, levando presentes. Roupinhas confeccionadas com retalhos e trapos, carrinhos de madeira, arremedos de berços para bonecas. O menino polonês Marek James, de 6 anos, que era míope, até ganhara óculos. Infelizmente não serviram. No entanto, os ingleses estavam a cada dia mais perto de Hamburgo. Em 20 de abril de 1945 veio a ordem de Berlim: eliminar as crianças.

O Dr. Heissmeyer já não aparecera em Neuengamme desde o começo de março. No mesmo dia em que as crianças seriam assassinadas, 4.224 debilitados prisioneiros escandinavos, judeus e não judeus, foram resgatados do campo de concentração de Neuengamme, após longas negociações entre Himmler e o conde Folke Bernadotte. Após o último ônibus da Cruz Vermelha dinamarquesa partir de Neuengamme, chegou um caminhão cinza, completamente vedado, dirigido pelo SS Hans Friedrich dr. kurt Heissmeyer

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por Zevi Ghivelder

15 minutos de distância, no Bullenhuser Damm. Depois de um bombardeio, a escola passou a ser mais um centro de torturas da SS. Só que então, nesse 20 de abril de 1945, o local estava deserto. Os dois médicos franceses e os carinhosos cuidadores holandeses foram levados ao porão e enforcados. As crianças não tinham ideia do que ocorria e esperavam, ansiosamente, rever seus pais. De pronto entrou

um dos homens da SS e ordenou que tirassem a roupa, porque seriam vacinadas contra a febre tifóide. A fictícia vacina era na realidade uma injeção de morfina. Elas foram chamadas uma a uma. Depois de semi-anestesiadas, eram levadas para outro cubículo, onde as esperava a forca. Georges-André, o menino francês de 12 anos e o mais debilitado do grupo, foi o primeiro a ser carregado até lá. Vamos falar um pouco dele, porque sua história é a

1. Prisioneiros de guerra russos em trabalho de limpeza em Hamburgo 2. Georges-André Kohn 3. Ruchla Zylberberg

Estes são os nomes das 20 crianças assassinadas em 20 de abril de 1945, no Bullenhuser Damm, Hamburgo:

• Mania Altmann, 5 anos, polonesa • Leika Birnbaum, 12 anos, polonesa • Surcis Goldinger, 11 anos, polonesa• Riwka Herzberg, 7 anos, polonesa • Alexander Hornemann, 8 anos, holandês • Eduard Hornemann, 12 anos, holandês • Marek James, 6 anos, polonês • W. Junglieb, 12 anos, iugoslavo* • Lea Klygermann, 8 anos, polonesa • Georges-André Kohn, 12 anos, francês • Blumel Mekler, 11 anos, polonesa • Jacqueline Morgenstern, 12 anos, francesa • Eduard Reichenbaum, 10 anos, polonês • Sergio de Simone, 7 anos, italiano • Marek Steinbaum, 10 anos, polonês • H. Wassermann, 8 anos, polonesa* • Eleonora Witonska, 5 anos, polonesa • Roman Witonski, 7 anos, polonês • R. Zeller, 12 anos, polonês* • Ruchla Zylberberg, 10 anos, polonesa

* não se sabe seu primeiro nome

mais fácil de ser reconstruída. No dia 17 de agosto de 1944, uma semana antes da libertação de Paris, partia a última leva de deportados judeus franceses em um trem de Drancy, rumo a campos de concentração na Alemanha e Polônia. Eram seis vagões. Três deles continham armamentos (Flakgeschütze). No quarto viajavam agentes da Gestapo, com seu chefe, Alois Brunner, comandante das tropas de assalto da SS e chefe do Sonderkommando

1 2 3

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encarregado da deportação de judeus. No quinto, membros da Polícia Verde alemã que operava na França. No último vagão, que normalmente transportava gado, se acotovelavam de cócoras 51 judeus franceses. Entre eles, os sete membros da família Kohn. Armand Kohn era o diretor do maior hospital judaico da França, o hospital Rothschild de Paris. Ele sabia das constantes deportações e o nome Auschwitz lhe era familiar. Mas pensava que os judeus só seriam internados até o fim da guerra, não exterminados. Seu filho Philippe, de 18 anos, discordava e disse que decidira fugir. Rosemarie, a irmã de 22, decidiu acompanhar o irmão. Em vão o pai tentou convencer os seus a ficarem juntos, dizendo que só assim sobreviveriam.

O trem já estava rodando fazia três dias, quando, em 21 de agosto, às 2 da madrugada, os dois jovens conseguiram quebrar a grade da janelinha do vagão. Rosemarie pulou primeiro, machucando-se ao cair. Philippe caiu no trilho sem se ferir e correu para socorrer a irmã.

Os dois conseguiram esconder-se e sobreviveram. O resto da família ficou no trem: o Dr. Armand Kohn, sua esposa Suzanne, a filha Antoinette, de 19 anos, o caçula, Georges-André, de 12, e a avó, Marie-Jeanne, de 80. No dia 25 de agosto de 1944 o trem chegou ao campo de concentração de Buchenwald, próximo à cidade de Weimar, na Alemanha. Nesse lugar, foram todos separados brutalmente do pai. A mãe e Antoinette foram forçadas a seguir para Bergen-Belsen, a avó e o menino, para Auschwitz. A avó foi imediatamente enviada à câmara de gás. Georges-André foi poupado temporariamente. Havia um projeto especial esperando por ele; por ele e mais 19 crianças.

Bibliografia:Günther Schwarberg Der SS-ARZT und die Kinder vom Bullenhuser Damm (O Médico da SS e as Crianças do Bullenhuser Damm)

nota: Günther Schwarberg e sua colaboradora Barbara Hüsing dedicaram-se durante anos a pesquisar minuciosamente este caso, recebendo o Prêmio Anne-Frank-Preis em 1988

Irene Gebhardt Freudenheim, É pesquisadora de tópicos relacionados com o nazi-fascismo e o antissemitismo.

Em maio de 1946, durante o processo contra os principais criminosos de Neuengamme, Johann Framm, um SS subalterno, ao ser interrogado pelo oficial britânico Anton Walter Freud (neto de Sigmund Freud) declarou sobre a morte das pequenas vítimas: “As crianças tiveram que tirar a roupa num quarto no porão, depois foram levadas a outro, onde o Dr. Trzebinski lhes aplicou uma injeção para que dormissem. As que continuavam vivas foram transportadas para outra sala, e com uma corda no pescoço dependuradas na parede, como se fossem quadros. Pesavam tão pouco...”. Na mesma noite, os quatro verdugos ainda tiveram de encarar outra “missão”: enforcar mais de 20 prisioneiros de guerra russos. Citando o SS Frahm: «Às 6:00h da manhã todos os russos estavam mortos e eu, finalmente, fui dormir”. Uns poucos dentre os pais e mães destas crianças sobreviveram. A mãe do italianinho Sergio de Simone, de Nápoles, Gisela Perloff, sobrevivente de Auschwitz, somente em 1983, 37 anos depois do assassinato de seu filho, veio a saber como ele havia sido morto, aos 7 anos de idade. Rucza Witonski, de Radom, Polônia, mãe de Roman, de 6 anos, e de Eleonora, de 5, estava trabalhando no laboratório do infame Josef Mengele, em Auschwitz, na mesma hora em que seus filhos eram enviados de Auschwitz a Neuengamme, com os outros 18 meninos e meninas. Após a libertação, ela começou uma infrutífera busca pelos seus filhos, que se estendeu até 1982. Nesse ano ela recebeu a notícia, através da Cruz Vermelha francesa, de como e quando Roman e Eleonora haviam sido mortos.  O pai de Ruchle, Nison Zylberberg, sobreviveu à

guerra na União Soviética. Sua esposa Fajga e a filhinha Esther haviam sido enviadas diretamente à câmara de gás quando chegaram a Auschwitz. A irmã de Blumele Mekler, de 5 anos, Shifra, salvou-se porque a mãe gritou, desesperada, ao perceber que estavam sendo encurraladas: “Corre Shifra! Corre!”. Uma família polonesa a acolheu e escondeu. Pola Altman, mãe de Mania, de 5 anos, morreu em 1971, em Chicago, sem saber do destino de sua filha. Em 20 de abril de 1979, pela primeira vez, parentes das crianças assassinadas vieram de várias partes do mundo até o Bullenhuser Damm. Quando depositaram a coroa de flores com os dizeres “Amadas crianças, vocês não serão esquecidas”, haviam-se juntado a  eles dois mil moradores de Hamburgo. Em 20 de abril de 1985, 40 anos após a tragédia, nasceria um jardim de roseiras no lugar onde o martírio dos 20 inocentes havia terminado. O Memorial do Bullenhuser Damm converteu-se em um local de peregrinação e algumas ruas circundantes receberam os nomes das pequenas vítimas.

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ntusiasma a oportunidade de poder escrever sobre um conterrâneo admirável, que, através de suas crônicas e livros, influenciou toda

uma geração de escritores e continua influenciando até hoje.

Embora tenha nascido na capital gaúcha, a tradição judaica russa permaneceu viva em sua casa, mas, como seria de se esperar, o chá do Samovar, depois de algum tempo, começou a dividir o espaço com o chimarrão, assim como as lembranças que seus pais tinham do shtetl, na Rússia, começaram a ceder ou compartilhar o espaço com lembranças já adquiridas aqui, passando a dar espaço para o escritor que, com olhar multicultural, escrevia sobre temas brasileiros e judaicos com a mesma desenvoltura.

Um admirável porto-alegrense que, sem perder o sabor de suas raízes mais profundas, conseguiu escrever

Quando se pensa em literatura brasileira, nomes como Machado

de Assis, Castro Alves, José de Alencar, Mario de Andrade e mais

contemporâneos como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Vinícius

de Morais, Moacyr Scliar e tantos outros, imediatamente nos

surgem na memória. Todos indiscutivelmente grandes em sua

arte, mas nem todos foram honrados com uma cadeira na

Academia Brasileira de Letras. Não é à toa que os membros da

ABL são conhecidos como “Imortais”. Scliar é um deles.

E

Moacyr Scliar: Escritor,médico, judeu e gaúcho

sobre nosso povo e nossa gente, como o fez em seus livros O Exército de Um Homem Só, O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes e O Centauro no Jardim, sendo o último sobre o tema de suas raízes judaicas.

Escreveu com tal propriedade sobre os dois povos, suas alegrias e suas mazelas, que foi merecedor de se tornar o sétimo escritor a ocupar a cadeira de número 31 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo o mineiro Geraldo França. Tornou-se um “Imortal” (maneira com que nos referimos aos membros da Academia), mas talvez não seja esse um adjetivo que se acomode ao inquieto Scliar. “Saudoso” talvez defina melhor o sentimento que a ausência dele nos causa.

No entanto, que dizer sobre ele que de alguma forma ainda não tenha sido dito? Nas duas atividades que escolheu exercer durante a vida (medicina e literatura), foi mestre

e faltam adjetivos para fazer justiça à dedicação com que se entregou a ambas.

Na medicina formou-se médico sanitarista e fez pós-graduação em Israel. Foi Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública e professor do curso de Medicina e Comunidade da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Na literatura teve publicados mais de 70 livros traduzidos para 12 idiomas.

Entre as obras traduzidas está O Centauro no Jardim, livro que foi considerado pelo National Yiddish Book Center, nos Estados Unidos, um dos 100 melhores livros de temática judaica nos últimos 200 anos.

No Brasil fez jus a três Prêmios Jabuti, em 1988, 1993 e 2009. Nesse mesmo ano (2009) recebeu os prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Casa

por H. James Kutscka

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das Américas. Pensei, então, em apresentá-lo aos que, por desventura, não conheçam sua obra literária, usando suas próprias palavras: “Há um momento na vida de quem escreve em que os livros começam a correr atrás dos autores”. Esta frase foi dita por ele em um contexto muito diferente do qual a estou emprestando nesse artigo. Se levarmos em conta uma declaração de Judith Scliar (sua mulher) — “Moacyr escrevia muito, e escrevia rápido”.

Originais e recordações que cobrem o período de 1937 a 2011 poderão brevemente ser consultados pela internet. Mais de 8.600 páginas de manuscritos e datiloscritos do escritor que estão sob os cuidados da PUCRS, para serem adicionados ao arquivo. Na coleção de documentos que estão sendo digitalizados encontram-se bilhetes de aeroporto, recibos de postos de gasolina, folhas pautadas e blocos de nota. Qualquer

que seria impossível ter sido posto no papel, não fosse a veneração pela palavra escrita que condiciona os rumos do judaísmo.

Como não viveu os acontecimentos narrados, eles devem ter-lhe chegado ao conhecimento através de histórias contadas em casa e livros que ajudaram a manter vivas as tradições: “Para nós, ocidentais, o russo é um idioma difícil; poucas são as palavras que nesta língua conhecemos. Mas há um termo – ai, Rússia! – que foi incorporado ao vocabulário universal. Pogrom: a palavra evoca cossacos bêbados, enlouquecidos, invadindo aldeias, nos seus cavalos – e matando, violando, queimando, destruindo. Balta, 1882; Restov, 1883; Ekaterinoslav, 1883; Gomel, 1903…”. As terríveis notícias que nos chegam da Rússia, a espada suspensa sobre a cabeça de nosso povo…”, escreveu, em 1906, aquele que viria a ser o primeiro presidente de Israel, Chaim Weizmann.

1. NA INFÂNCIA 2. Casamento de Scliar com Judith Vivien Oliven, em 1965 3. O escritor, Judith, e seu filho, Roberto em Jerusalém

1 2 3

papel servia como suporte para grafar o que vinha da imaginação do autor. Esses documentos de seu dia a dia nos dão uma visão de um cérebro em constante ebulição e explicam a voracidade com que escrevia. Eram tantas histórias a serem contadas e tão pouco tempo para fazê-lo. Daí minha interpretação pessoal do texto sobre a história procurar o autor, que, no caso original, fora usada referindo-se a escritores que nos encontros de literatura o procuravam para presentear seus novos livros. Moacyr era um para-raios atingido constantemente por descargas de ideias e histórias. Era necessário escrevê-las antes que se perdessem entre tantas outras.

Minha intenção com este artigo é mostrar o homem por trás das letras, mas, até para isso, Scliar foi especial, pois podemos desvendá-lo em suas próprias palavras. De seu conto “Ai, Rússia, Rússia. Ai, Rússia”, tomo a liberdade de transcrever um trecho

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Os Scliar se estabeleceram em Porto Alegre, capital do estado daquela cidade onde os porcos comiam laranjas caídas do pé.

Em outra passagem do mesmo conto, ainda falando sobre a Rússia e os judeus, mostra a intimidade que tinha com o tema e com as letras para poder escrevê-lo com segurança, mesmo tendo nascido na capital gaúcha em um bairro de classe média onde a maior parte da comunidade judaica da cidade fora residir: o Bomfim.

“Uma luta que, diga-se de passagem, não envolveu violência. Não por parte dos judeus. Protesto, sim; mas não violência. A nostalgia do shtetl pesa, não é mesmo? E o resultado é uma forma de resistência à qual não falta o sentimento, e até mesmo o humor. O humor que satiriza um governo que não resolveu os problemas de seu povo, mas dá-se ao luxo de ser antissemita; como naquela história que conta da longa fila formada à porta de um supermercado, à espera da carne. Aparece o gerente e diz: ‘A carne vem vindo, mas não será suficiente para todos, de modo que os judeus podem ir embora’. Os judeus se vão. Meia hora depois, volta o gerente anunciando que a carne está chegando, mas não haverá para todos, de modo que os que não são membros do Partido podem se retirar. Vai-se um grande grupo. Finalmente, depois de meia hora, o gerente aparece, confessa que não há carne alguma e que os camaradas também podem ir. Ao que diz um membro do Partido a outro: ‘Você viu? Viu como os judeus têm privilégios?’

Este humor chegou a criar um personagem típico: Abram Rabinovich, sempre às voltas com o serviço secreto soviético. Que o encontra nos lugares mais imprevistos: por exemplo, no parque, onde ele está estudando hebraico num manual de bolso. O agente lhe diz

A espada suspensa sobre a cabeça do povo, que espada era essa? Não só a do bandido, era, também, a espada de czar: pois, para descarregar a crescente revolta popular, o governo não apenas tolerava os pogroms, como até os fomentava. “Numa clara manhã de abril do ano de 19… quando a estepe começara a reverdecer a entrada alegre da primavera, apareceram espalhados em Zagradowka, pequena e risonha aldeia russa, da província de Kersan, lindíssimos prospectos, com ilustrações coloridas, descrevendo a excelência do clima, a fertilidade da terra, a riqueza e a variedade da fauna, a beleza e exuberância da flora, dum vasto e longínquo país da América, denominado Brasil, onde uma empresa colonizadora israelita, intitulada “Jewish Colonization Association”, mais conhecida por JCA, proprietária duma grande área de terras duma fazenda chamada “Quatro Irmãos”, situada no município de Boa Vista do Erechim, Estado do Rio Grande do Sul, oferecia colônias, mediante vantajosas propostas, a quem se quisesse tornar lavrador.

Papai tinha pouca instrução; contudo, não duvidou do que diziam os anúncios.Possuía uma crença ilimitada na boa fé dos homens. Daí porque leu e releu, com crescente interesse, os folhetos de propaganda. E acabou entusiasmando-se vivamente com a descrição da nova terra. Sobretudo, com a ilustração colorida da capa.

A capa dos prospectos ostentava uma singela paisagem da vida rural brasileira. Sob um céu límpido e distante, dum azul muito doce, um lavrador, chapéu de abas 12 largas, camisa branca arremangada, empunhava, encurvado, as rabiças dum arado, puxado por uma junta de bois, revolvendo a terra virgem. Um pouco mais longe, no fundo, o ouro vegetal de extensos trigais maduros. Mais além, azulados pela distância, coqueiros, palmeiras e florestas misteriosas, e, no primeiro plano, destacando-se em cores vivas e fortes, um enorme pomar em que predominavam laranjeiras, a cuja sombra, porcos comiam lindas laranjas caídas no chão”.

À eficiência dessa peça de propaganda que caiu na mão de algumas pessoas na Rússia, a literatura brasileira deve a existência de um de seus maiores representantes. Essa é uma curiosidade que descobri quando de minhas pesquisas para esse texto, que achei não faria mal compartilhar com os leitores. Minha família é de Boa Vista do Erechim (que na língua dos índios Caingangue da região significa campo pequeno porque ficava na cordilheira da Serra Geral num espaço cercado de árvores). Talvez alguém que desconheço de meu passado tenha visto o mesmo folheto e vindo para Quatro Irmãos, na época uma próspera comunidade judaica quase bairro de Erechim, e, posteriormente, se estabelecido na cidade, na qual vivem até os dias de hoje.

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que tal é proibido, porque faz supor que a pessoa quer ir para Israel. Eu não quero ir para Israel, diz Rabinovich, estou-me preparando para ir para o céu, onde, como é sabido, só se fala hebraico. E se você for para o inferno, pergunta o agente. “Aí não tem problema, replica Rabinovich, porque russo eu já sei”.

Herdeiro desse humor judaico que até hoje faz sucesso em Hollywood ena TV, é dele a seguinte frase maravilhosamente iconoclasta: “Eu sou aquele cujo verdadeiro nome não pode ser pronunciado. Admito, contudo, ser chamado de Jeová”.

Em seu livro A Face Oculta, o humor vem envolto em seus conhecimentos médicos:“Esquecimento é quando a gente não sabe onde deixou a chave do carro. Alzheimer é quando a gente encontra a chave, mas não sabe para que serve”.

Certa ocasião, em Porto Alegre, em uma reunião de pais e mestres, foi interrogado durante uma palestra para a qual fora convidado por um dos participantes, se seu filho, na época com dois anos, viria a frequentar a mesma escola judaica que ele frequentara, respondeu:

“Eu gostaria que o meu filho tivesse acesso à cultura judaica, tanto por ela ser judaica como por ser cultura. Gostaria que ele tivesse o mesmo prazer e a emoção que eu sinto ao ler os contos de Scholem Aleichem, Mendele e Peretz; as histórias de Isaac Babel e Michael Gold; os livros de Bellow, Malamud, Bashevis Singer e Philip Roth. Gostaria que ele ficasse extasiado diante dos quadros de Chagall, que gostasse de música iídiche, das canções hebraicas, da dança de Israel. Gostaria, modestamente, que ele lesse o que eu escrevi e que sentisse o judaísmo nos meus próprios livros: gostaria disto, como pai e como judeu. Gostaria que o meu filho tivesse bagagem intelectual

sem ser pedante; que compreendesse que literatura, música e pintura devem tornar as pessoas melhores – não superiores – que sentir é tão importante como saber. Gostaria que ele aprendesse a chorar como só os judeus sabem chorar, e a rir como nós: aquele nosso meio sorriso, meio amargo, meio filosófico.

Gostaria que o meu filho não fosse um sectário: que não colocasse, em polos irremediavelmente opostos, judeus e árabes, israelitas e palestinos. Que soubesse que neste mundo há lugar para todos, é só uma questão de ajuste. Que soubesse que, de cada vez que há uma guerra, alguém lucra com isso.Não sei se é pedir demais em troca da mensalidade escolar. Mas, afinal, a educação tem uma componente de sonho enxertado na dura realidade quotidiana. E sonhar não é proibido”.No lugar de me limitar a tecer loas a Moacyr Scliar, optei por deixar que o leitor o conhecesse através de pequenos trechos de milhares que poderia haver selecionado de sua própria obra e, assim, despertar a curiosidade sobre o resto. Além dos óbvios livros, de suas crônicas, contos, peças teatrais e adaptações para o cinema, tanto de longa quanto de curta metragem.

Como diria um gaúcho verdadeiro: agora que puxei bastante brasa pro meu assado, não custa nada cuidar do assado dos outros.

Seria injusto não mencionar aqui outros judeus que influenciaram a nossa literatura de modo definitivo como:

Arnaldo Niskier, titular da cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras (a qual presidiu), com vasta obra dedicada à educação, ensaios históricos, literatura infanto-juvenil e obras didáticas. Seria um crime deixar de citar aqui uma parte de

Escritor toma posse como membro da Academia Brasileira de Letras

um ensaio seu que demonstra essa simbiose que sempre existiu entre escritores judeus e os grandes da literatura de nosso País.

Em Machado de Assis e os judeus, afirma, com orgulho: “Quem se debruça sobre a Torá, onde se concentra a doutrina judaica, adquire conhecimentos que representam verdadeiras pérolas de sabedoria”. Niskier é outro escritor que nunca esqueceu suas raízes judaicas e, através de sua obra, difundiu suas tradições e estreitou laços culturais entre o Brasil e Israel.

Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, naturalizada brasileira. Nome do mais alto respeito na literatura brasileira e mundial que inspirou muitas jovens de nosso País a se dedicarem à literatura. Chegou ao Brasil com um ano e dois meses para se tornar romancista,

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Tal cartomante lhe assegura um futuro feliz, que viria através de um estrangeiro loiro que ela encontraria ao sair de sua casa. Homem com quem casaria.

Não seria um romance de Clarice Lispector se assim acontecesse. Na verdade, a pobre Macabéa, ao sair da cartomante, é atropelada por uma Mercedes amarela guiada por um homem loiro, e cai morta no asfalto. Puro Clarice.

Dizia-se brasileira. De acordo com suas próprias palavras e referindo-se à sua terra Natal (Ucrânia): “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”. Não podemos esquecer também de Elisa Lispector, irmã de Clarice, autora que garantiu seu lugar na literatura de nosso País com uma escrita intimista, que explorava mais as dúvidas existenciais de seus personagens, desnudando suas fraquezas e agruras. Seu primeiro romance foi Além da Fronteira, de 1945, e abriu as portas para uma série de outros livros recheados de

lembranças de perseguições e fugas de um passado que se recusava (embora não inteiramente vivido ) a ser esquecido. O exílio é um tema recorrente em sua obra.

O Muro de Pedras, onde discorre sobre o existêncialismo é seu livro mais conhecido e louvado pela crítica. Foi merecedora dos prêmios José Lins do Rego (1963) e Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras (1964).

Seus primeiros contos foram publicados apenas em 1970 com o livro Sangue no Sol; voltou em 1977 com Inventário e O Tigre de Bengala, em 1985. Sua última coletânea de contos ganhou o prêmio Pen Clube, em 1986. Morreu em 1989, no Rio de Janeiro, onde vivia. Para finalizar, outro grande que também brotou para o mundo na distante Ucrânia: Pedro Bloch.Ele se criou no Brasil, onde mais tarde se naturalizou. Aqui se formou médico foniatra para depois exercer o jornalismo, ser compositor, poeta, dramaturgo e, ainda, encontrar tempo nos intervalos para escrever mais de cem livros.

Da mesma forma que Scliar, são todos expoentes das letras deste País, e orgulho tanto para a comunidade judaica, como para homens e mulheres interessados em cultura na nossa terra. Pessoas que influenciaram mentes, enriqueceram nossa literatura e ajudaram a erigir com letras a história de nossa nação e de seus antepassados.

escritora, contista, colunista, cronista e jornalista. Amiga de nomes como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Rubem Braga, Santiago Dantas e Samuel Wainer, acabou conhecida como “a grande bruxa da literatura brasileira” por seu costume de se vestir de preto. Referindo-se a ela e à importância de sua obra para a literatura brasileira, seu amigo Otto Lara Resende disse em tom de elogio: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria”.

Teve nove romances publicados, entre eles, A Hora da Estrela, que narra a história de uma moça cheia de esperanças, recém-chegada ao Rio de Janeiro, vinda do Nordeste (como ela própria, que veio do Recife). Depois de a personagem perder o namorada para uma amiga, filha de um açougueiro, que aos olhos do moço poderia lhe dar uma oportunidade de ascensão social, na sequência, Macabéa (esse era o nome da personagem principal) descobre estar com tuberculose (na época, uma quase sentença de morte)e procura uma cartomante para lhe ler a sorte.

scliar durante evento

H. James Kutsckaé publicitário, pintor e autor de inúmeros artigos e livros.

Meus agradecimentos à minha filha, a historiadora Kim Kutscka, pela revisão deste artigo.

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mavam-se profundamente, compartilhavam os mesmos valores e ideais e desfrutavam de um companheirismo fora do comum. Havia apenas algo que faltava em sua vida a dois para torná-la completa – um presente

de D’us, um filho. Mas o casal tinha certeza de que esta espera seria temporária.

Ano após ano eles aguardavam, pois a legião de médicos que haviam consultado garantira que não havia nada de errado com ambos e que, com certeza, teriam filhos. Conforme o tempo passava, era cada vez mais difícil para Minnie ver uma mãe empurrando, radiante, um carrinho de bebê pelas ruas, sem derramar uma lágrima. Um nó formava-se em sua garganta cada vez que ouvia o inconfundível choro de um recém-nascido. No passado, ela costumava parar diante das vitrines de lojas infantis acariciando, com os olhos, os delicados lacinhos nas roupas e acessórios. Agora, no entanto, quando passava em frente a uma dessas lojas, apressava o passo e seguia em frente.

Os Schwartz já estavam casados há 12 anos quando o patriarca da família, seu tio mais velho, inesperadamente, chamou Solomon para uma conversa. “Você sabe que uma das mais importantes mitzvot da Torá é o mandamento de pru urevu - frutificai e multiplicai-vos. Trazer filhos ao mundo não é apenas um prazer, mas uma obrigação. Somos os responsáveis pela perpetuação das espécies, pela perpetuação do Povo

Judeu. Se sua esposa é estéril há mais de dez anos, a Torá diz que você deve divorciar-se”.

“Não”, gritou Solomon, sem acreditar no que ouvia. “É a Lei”, afirmou duramente seu tio. “Não é possível que a Torá quisesse dissolver um casamento amoroso – com filhos ou sem filhos”. O tio, por sua vez, acrescentou: “Se você não acredita em mim, pergunte ao seu rabino... De qualquer maneira, eu já tomei a liberdade de falar com a Minnie e lhe explicar a situação. E ela é uma mulher de grande valor: concordou em não atrapalhar sua felicidade e cumprir os mandamentos. Ela não quer impedi-lo de ter filhos com outra mulher. Ela vai lhe conceder o divórcio sem qualquer problema ou discussão. Ela o ama e lhe deseja o melhor”.

“Quem é você para decidir o que é melhor para mim?”, Solomon perguntou, furioso. “Minha esposa Minnie, a quem amo. Ela é o melhor para mim. Ela é todo o meu mundo. Não vou me divorciar. Não acredito sequer que tal lei exista de fato. Provavelmente é você quem está inventando tudo isso”.

Posteriormente, no entanto, quando Solomon foi averiguar pessoalmente junto a um rabino que era seu amigo, ouviu as seguintes palavras: “Tal lei existe, de fato. Em outras épocas, as pessoas seguiam rigorosamente este mandamento. Atualmente, porém, os rabinos estão mais tolerantes em sua interpretação e a maioria não recomenda o divórcio. No seu caso, como Minnie e

A

A VERDADE SEMPRE LIBERTA

Solomon Schwarz tinha uma união muito feliz, ele e sua esposa

Minnie eram parceiros de verdade, apenas algo faltava para

completar sua felicidade, um filho. Entretanto de repente suas

vidas saíram de seu controle e tomaram um rumo inesperado.

PEQUENOS MILAGRES

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PEQUENOS MILAGRES

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você têm um lindo relacionamento e um amor especial, poucos o aconselhariam a tomar uma medida tão drástica. Esqueça a conversa com seu tio e siga com sua vida”.

Mas as coisas já haviam tomado tal rumo que não havia nada mais a fazer. A situação saíra de controle. Tendo sido convencida de que era a causa da infelicidade de seu marido e do drama das futuras gerações dos Schwartz, Minnie não permitiria que nada a detivesse e estava determinada a seguir em frente com o processo de divórcio.

Ao conversar com Solomon, ela disse, entre lágrimas: “Tenho sido egoísta durante todos esses anos. Com outra esposa você terá a chance de ter muitos filhos. Não posso ficar no seu caminho. Eu o amo demais para privá-lo desta bênção”. Quanto mais o marido argumentava, protestava e tentava fazê-la raciocinar, mais ela permanecia irredutível. Seu maior sacrifício, seu derradeiro ato de amor seria entregar seu amado marido para outra. Quando ele lhe entregou o guet (divórcio judaico), Solomon se ajoelhou desesperado e com o coração partido afirmou: “Eu amarei você para sempre”. Em resposta, ela sussurrou, condoída: “Eternamente”.

Duas semanas depois, ela lhe telefonou para contar que estava grávida. Em resposta, ele disse: “Vamos nos casar novamente. Tenho certeza que será permitido. Vou perguntar ao meu tio”. Quando o sobrinho lhe falou sobre as novidades, o patriarca deu a seguinte resposta: “Bem, sim, em casos normais o casal pode casar novamente... Mas, este não é um caso normal”.

Impaciente, Solomon perguntou: “O que você quer dizer com este não é um caso normal?”. O tio, então,

explicou-lhe: “Solomon, meu filho, você é um Cohen, pertencente à casta dos Sumos Sacerdotes que serviram no Templo. Um Cohen está sujeito a leis mais rigorosas do que os descendentes das outras tribos. Um Cohen, sinto muito em lhe dizer, não pode se casar com uma mulher divorciada. E Minnie, agora, pertence a este grupo”.

“Mas eu me divorciei dela, ela era minha esposa”, retrucou. “Tecnicamente, não faz diferença. Ainda assim, ela é uma mulher divorciada e você ainda é um Cohen. Não vejo como vocês podem se casar novamente”, afirmou o tio.

Solomon estava chocado. Minnie, seu grande amor, sua preciosa esposa, estava finalmente grávida e eles não poderiam se casar novamente? Não era possível, era? Infelizmente, todos os rabinos consultados sobre o tema concordavam com a informação dada pelo tio. Ele era um Cohen, ela era divorciada, não havia o que discutir.

“Não há nada que possa ser feito? Uma dispensa, uma anulação? Não há nenhuma filigrana legal que vocês possam encontrar para fazer com que a lei seja interpretada a meu favor?” Não havia brechas, todos respondiam com tristeza.

“Será que ninguém pode fazer nada?”, perguntou, alquebrado, no gabinete de estudo de um rabino, certo dia. O rabino teve vontade de lhe dizer que seu pedido era impossível. Que nenhum estudioso que seguisse a Halachá seria capaz de encontrar uma solução para ele. No entanto, ele se viu dizendo: “Por que você não vai se aconselhar com o Lubavitcher Rebe?”

O Lubavitcher Rebe era um sábio muito conceituado em Crown Heights, no Brooklyn. Tinha milhares de discípulos – seguidores e admiradores mundo afora, que acreditavam fervorosamente na inspiração Divina de sua sabedoria e inteligência, bem como nos pressentimentos e poderes de consolo e cura desse homem santo. Muitos afirmavam que ele realizava milagres e salvava vidas. Para uma multidão de pessoas, judeus e não judeus, ele era a última chance, a última parada, o último tribunal de apelação. Era pleno de amor e aceitava incondicionalmente cada judeu, independentemente de sua tendência religiosa. Não era raro que judeus seculares fizessem peregrinações até seu famoso endereço - 770 Eastern Parkway - e dali saíssem reconfortados.

Solomon Schwartz era observante o suficiente para desejar cumprir a lei, mas não era um Lubavitcher. Vivia na Califórnia e nunca tinha sido atingido pelo carisma do Rebe. Ainda assim, as histórias sobre ele corriam pelo país e ele já havia ouvido falar sobre os milagres do Rebe. Então, quando o último rabino que consultara lhe sugeriu que se consultasse com o Lubavitcher Rebe, sentiu que poderia ser uma opção. Disseram-lhe que o Rebe abria suas portas ao público aos domingos e que os interessados em uma consulta

lubavitcher rebe

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com ele eram recebidos de acordo com a ordem de chegada. Quando Solomon chegou ao Brooklyn, no domingo de manhã cedo, a fila de pessoas que esperavam para ver o Rebe era muito grande e espalhava-se como uma serpente ao redor da Eastern Parkway e pelas ruas próximas. Centenas de judeus de todas as correntes atraídos ao local em busca de seu milagre pessoal. Solomon não pregara o olho durante o vôo noturno de sábado à noite. Esperando na interminável fila, estava irritado e impaciente. Ainda faltavam horas para chegar a sua vez, mas consolava-se dizendo que talvez a espera valesse a pena.

Mas não valeu. Cinco horas haviam transcorrido quando finalmente chegou sua vez. Ele sussurrou sua triste história e a imposição da Halachá no ouvido atentos do Rebe. O que ele esperava ouvir daquele homem conhecido por seu brilhantismo e sabedoria era, quem sabe, algo inédito, quem sabe uma brecha na Halachá que pudesse libertá-lo. Ou, no mínimo, uma bênção que aliviasse o seu coração. Ao invés disso, o Rebe simplesmente analisou Solomon por uma fração de segundo, perfurando sua alma com uma ardente intensidade, e disse: “Vá falar com sua mãe”.

Atônito, Solomon gaguejou, entre frustrado e desesperado: “O quê???”. “Vá falar com sua mãe”, repetiu o Rebe. Foi aí que o rapaz estourou: “Eu viajei três mil milhas para o senhor me dizer para falar com minha mãe? Isto é tudo que o senhor tem para me dizer?”, falou já alterado, descrédito. Pela terceira vez, o Rebe repetiu: “Vá falar com sua mãe”, e fez sinal para que ele saísse.

Solomon andou pelas ruas de Crown Heights; era o desconsolo em pessoa.

Sentia-se enganado, traído. No final das contas, o Rebe não era um homem santo. Era um charlatão, um logro, uma fraude. “Vá falar com sua mãe”. Que espécie de conselho era esse? Ainda assim, ele parou para reconsiderar o que ouvira. Era interessante como o Rebe parecia estar certo de que ele tinha mãe e que ela ainda estava viva. E como sabia que ele não falava com ela há muito tempo?

Ao longo dos anos, infelizmente, eles haviam-se distanciado. Tinham tido muitas discussões que haviam desgastado seu relacionamento, e a reaproximação jamais ocorrera. Haviam-se passado meses desde a última vez que conversaram e ela desconhecia os últimos eventos graves que tinham ocorrido em sua vida: o divórcio, a gravidez de Minnie e sua busca frenética por uma brecha haláchica para que pudessem casar-se novamente.

“Vá falar com sua mãe”, dissera o Rebe. Solomon não sabia o que o sábio quisera dizer com essa mensagem enigmática, mas talvez fosse o momento de ver sua mãe, de qualquer maneira. Seu rosto se iluminou quando ela abriu a porta e o envolveu em um forte abraço. “Há quanto tempo”, ela chorou.

E por causa de tanta narishkeit - tanta besteira... Venha para a cozinha. Tenho café fresco e acabei de fazer folheados de queijo, ainda estão quentinhos! Onde está Minnie?”.

Então ele lhe contou tudo: a intervenção do patriarca da família, a insistência de Minnie em se divorciar para que ele pudesse ter filhos com outra mulher; a repentina alegria por causa da gravidez inesperada e a busca por uma brecha na Halachá. Finalizou aquela litania dizendo: “Mãe, você poderia imaginar tamanho problema?”.

Então, vagarosamente, sua mãe começou a falar, olhando fixamente em seus olhos: “Não há problema algum! Eu nunca consegui lhe contar antes, mas, chegou a hora de fazê-lo. É verdade que seu pai era um Cohen, portanto, naturalmente, você supôs que também fosse, pois passa de pai para filho. Mas você não é Cohen de fato e, portanto, está livre para se casar novamente com Minnie...O Rebe estava certo quando lhe disse para falar comigo...Sabe...você foi adotado”.

Extraído da coletânea Small Miracles for the Jewish Heart – Extraordinary Coincidences from Yesterday and Today, de Yitta Halberstam e Judith Leventhal

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m 1492, ano em que os judeus foram definitivamente expulsos da Espanha, Cristóvão Colombo desembarcava nas Índias Ocidentais. Sabe-se que havia conversos1 integrando essa expedição, assim como em outras que foram até

o Novo Mundo, muitas vezes até financiando tais viagens. Nas décadas seguintes, quando centenas de aventureiros espanhóis foram para as Américas, não houve um barco que não levasse consigo cristãos novos, como eram também chamados os conversos.

Eles também faziam parte da expedição de Hernán Cortés, que, em fevereiro de 1519, saiu de Cuba e desembarcou na ilha de Cozumel, situada perto da costa da Península de Iucatã, localizada no sudeste do território do atual México. Iucatã havia sido descoberta dois anos antes por uma expedição espanhola liderada por Francisco Hernández de Córdoba.

As notícias da existência de ouro em Iucatã eram um grande estímulo para os homens de Cortés. Para conquistar a região, eles não temem o enfrentamento com o Império Asteca, poder dominante da região, que atingira o apogeu sob o imperador Montezuma. Além de uma tecnologia militar superior – armas de ferro e aço e cavalos – uma casualidade ajudou os espanhóis a derrotar os temidos astecas. De acordo com antigos mitos, Quetzalcóatl, um de seus deuses, estava por regressar. Ao ser informado da chegada dos espanhóis,

Montezuma crê que Cortés era a personificação dessa divindade. Envia-lhe, então, presentes em ouro e prata de grande valor, o que iria atiçar ainda mais a cobiça espanhola.

Em novembro, Cortés chega a Tenochtitlan, capital do Império, localizada onde atualmente é a Cidade do México. Montezuma recebe-os amigavelmente, mas, dias depois, é feito prisioneiro. Ao se tornar evidente que estes não eram deuses, os astecas se revoltam. Montezuma acaba sendo morto e seu sucessor, Cuauhtémoc, resiste ferozmente aos invasores. Mas, em meados de 1521, após um longo sítio, as tropas de Cortés tomam Tenochtitlan. É o inicio do Período Colonial, que durou até 1810. Durante este período, o território do atual México fazia parte do vice-reinado da Nueva España, cuja capital era a Cidade do México. Incluía, também, as ilhas espanholas do Caribe, a América Central descendo até a Costa Rica, inclusive, e o sudoeste dos Estados Unidos.

A estrutura do império espanhol nas Américas tomou forma em 1533 e manteve sua estrutura até o final do século 18. Colônia de exploração, a economia da Nueva España era baseada na exploração das minas de prata e ouro, e o comércio estava sob rígido controle monopolista. A Igreja, rica e poderosa, dona de grandes extensões de terra, vai desempenhar um papel preponderante durante o Período Colonial.

E

judeus no méxico

Apesar da presença judaica no México datar dos primórdios

da conquista espanhola, no século 16, a atual comunidade

judaica data do final do século 19 e início do

século 20, quando chegaram ao país diferentes levas de

imigrantes judeus oriundos do Império Otomano e da Europa.

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Presença judaica

Em 1502, antes mesmo de o México ter sido descoberto, a Coroa Espanhola outorgara uma lei que fechava os domínios espanhóis nas Américas para os cristãos novos. De acordo com a lei, apenas cristãos velhos poderiam integrar-se às expedições. Eram, portanto, excluídos judeus, conversos, os que possuíam sangue judeu entre seus ancestrais e qualquer pessoa que tivesse sido processada pela Inquisição, bem como os mouros.

Mas, as notícias das riquezas das Américas, aliadas à possibilidade de viver longe da intolerância e do ódio e, principalmente, das garras da Inquisição, levaram milhares de

conversos a procurar meios para embarcar para o Novo Mundo.

Nem todos os conversos que vieram para o Novo Mundo mantinham-se fieis à fé de seus ancestrais, mas, mesmo os que haviam abraçado o cristianismo, eram visados pela Inquisição e não estavam a salvo. Reservava-se maior hostilidade aos chamados “judaizantes”, cristãos novos suspeitos de continuarem praticando o judaísmo em segredo, ou, pior ainda, de levar outros cristãos novos de volta ao judaísmo.

Como vimos acima, havia conversos na expedição de Cortés, que, em 1519, desembarcou em Cozumel. Sabe-se também que participaram ativamente do processo de ocupação e colonização das principais áreas da Nova Espanha. Em 1528, quatro deles foram acusados de serem “judaizantes”, dois foram queimados vivos.

No mesmo período, aumentou o número de cristãos novos que

se fixaram no território do atual México, vindos principalmente de Madri e Sevilha e de Portugal. Vinham como soldados, conquistadores e colonizadores. No ano de 1536 já havia comunidades de conversos em Tlaxcala e Mérida. Com o surgimento de novos centros de mineração, havia conversos, entre outros, em Taxco, Zacualpan, Zumpango del Rio, Espírito Santo e Tlalpujahua. No final do século 16, surgiram pequenos núcleos em Guadalajara, Puebla, Querétaro, Oaxaca e Michoacan, entre outras áreas. Sabe-se que, no início do século 17, havia pelo menos um grupo de conversos em cada cidade.

Sua ativa participação na vida econômica e comercial leva-os a prosperar, mantendo relações comerciais com conversos da Espanha, de Portugal, Inglaterra, Holanda e do Império Otomano. Mas, a sociedade colonial os via comantipatia e desprezo e a Inquisiçãoera uma ameaça constante em suavida. Os conversos mantinham

1 Na Espanha, após os pogroms de 1391 e até o Édito de expulsão de 1492, milhares de judeus foram obrigados, na ponta da espada, a renunciar à sua fé e abraçar o cristianismo. Ficam conhecidos como conversos, cristãos novos ou, pejorativamente, marranos. Na literatura judaica são chamados de anusim.

Sinagoga Abu Attie, Comunidade Maguen David

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estreitos laços entre si e procuravam casar seus filhos entre os membros do grupo. Apesar dos perigos, reuniam-se para rezar em quartos secretos, nas casas de líderes comunitários, que, muitas vezes, atuavam como rabinos.

A família Carvajal

A família Carvajal escreveu um capítulo importante na história dos judeus no México. Em 1579, o converso Don Luís de Carvajal y de la Cueva, El Viejo (o Velho) foi indicado pela Coroa espanhola como governador de um distrito no México. Como agradecimento por sua indicação, colonizou uma extensa área com recursos próprios. Denominou sua jurisdição de Nuevo Reino de Leon. O território incluía uma porção significativa do México atual, bem como partes do Texas e do Novo México. A Coroa deu-lhe a permissão de trazer da Espanha 100 famílias, a maioria delas de conversos. Uma década após seu estabelecimento, já eram uma comunidade significativa. Mas suas expectativas de conseguir escapar das perseguições foram frustradas, pois muitos deles, acusados de serem “judaizantes”, foram punidos. Outra figura importante foi Luis de Carvajal, El Mozo (o Jovem), neto de Luis de Carvajal y Cueva. A casa

onde ele e vários membros da família viviam, na Cidade do México, no bairro Santiago Tlatelco, era uma sinagoga e um lugar de refúgio. El Mozo foi preso pela Inquisição em duas ocasiões e morreu na fogueira em 8 de dezembro de 1596. Após sua última prisão, foi cruelmente torturado até denunciar 21 pessoas, incluindo sua família imediata, apesar de ter repudiado sua confissão, posteriormente. Deixou significativo material escrito, que ficou escondido nos arquivos da Inquisição Mexicana durante mais de 300 anos antes de serem liberados. Luis de Carvajal é reconhecido, hoje, como o primeiro autor judeu no Novo Mundo.

A inquisição no México

A Inquisição chegou às Índias Ocidentais por volta de 1519, exatamente quando Cortés iniciava a conquista do México. Em 1527, foram nomeados os primeiros bispos do México, com autorização para atuar como inquisidores. Um dos principais alvos da Inquisição eram os “judaizantes” – conversos que retornavam ao judaísmo. Assim como em todos os lugares onde atuavam, os inquisidores escolhiam um dia em que todos eram obrigados a assistir a uma

missa especial, e ali ouvir o “édito” da Inquisição que condenava, além do judaísmo, várias outras heresias. Os que se julgavam culpados de “contaminação” deviam apresentar-se e confessar dentro de um período estipulado, sem incorrer em penitências sérias. Eram obrigados, porém, a denunciar outros supostos culpados. Na verdade, esse era o requisito crucial para poder escapar sem nada mais severo que uma penitência. Os acusados podiam ficar encarcerados durante anos, sem ao menos saber a transgressão de que se dizia serem culpados, nem quem os denunciara. A prisão era invariavelmente seguida do imediato confisco de todos os seus pertences, desde a casa até as roupas, os pratos e panelas. Não foram poucas as vezes em que acusações eram fabricadas, visando obter os bens e propriedades do indivíduo, que jamais eram devolvidos, mesmo sendo o acusado inocentado.

A Inquisição estabeleceu seu próprio tribunal no México em 1570, na Cidade do México. A Igreja fazia do Auto-de-fé um grande espetáculo e a cidade se preparava como para uma festa, sendo convidados à cidade para a ocasião dignitários provinciais.O primeiro Auto-de-fé foi realizado quatro anos mais tarde. No dia 28 de fevereiro de 1574, era protestante a maioria dos 74 prisioneiros levados a julgamento. Estima-se que entre 1574 e 1603, mais de 115 conversos tenham sido condenados.

O ponto alto da Inquisição no México veio com o Grande Auto de 11 de abril de 1649. Anunciado de antemão por trombetas e tambores por todo o México, atraiu as multidões que começaram a chegar à Cidade do México duas semanas antes do acontecimento. No dia anterior ao “evento”, muitos

Navio com imigrantes judeus chega a Vera cruz, 1923

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espectadores chegaram à praça onde se realizaria o Auto-de-fé, permanecendo a noite toda para não perder os lugares ou a visão dos acontecimentos. No total, foram julgados e condenados 109 prisioneiros, dos quais apenas um não era cristão novo. Representavam “a maior parte do comércio do México”, pois os conversos dominavam o comércio entre a Espanha e suas colônias. Dos 109 prisioneiros, 13 foram sentenciados à estaca e 20 queimados em efígie – não estando de corpo presente. Desses 20, alguns haviam escapado da prisão, outros morreram sob tortura e dois deram fim à vida.

Os confiscos relacionados ao Grande Auto trouxeram aos cofres da Inquisição um total de três milhões de pesos. Essa quantia teria bastado para construir mais de 238 grandes prédios municipais. Entre 1646 e 1649, com seus confiscos a Inquisição obteve renda suficiente para se manter por 327 anos.

A incansável atuação da Inquisição e a violência dos Autos-de-fé semearam o medo entre os cristãos-novos e, gradativamente, as comunidades conversas foram desaparecendo. Já no século 18 há poucos indícios da presença judaica na região.

Século 19 – da Independência a 1900

A luta pela independência mexicana teve início em 1810 e prolongou-se até 1821. A guerra civil deixou o México destruído, sua economia arruinada e uma imensa dívida externa. Em 1823 nasce um novo país, independente: os Estados Unidos Mexicanos. A guerra da independência foi um dos episódios da longa e

sangrenta luta entre forças liberais e conservadoras que dominaram a história do país no século 19. Enquanto os conservadores queriam um governo de centro, eventualmente uma monarquia sob os Bourbon, em que Igreja e militares mantivessem seus poderes tradicionais, os liberais queriam um governo federalista e a limitação da influência da Igreja Católica e dos militares sobre o país. Para os liberais, o poder da Igreja era o maior entrave para qualquer avanço político ou econômico.

No decorrer do século 19, governos liberais são derrubados por forças militares conservadoras e vice-versa. O resultado foi um período de grande instabilidade política e caos econômico. A pobreza e as doenças tomaram conta do país. Na Europa, dizia-se que “no México, se não se morre de epidemia, morre-se por causa das guerras internas”.

Como foi mencionado acima, não havia praticamente judeus no país no final do século 18. As antigas comunidades de conversos haviam desaparecido e apenas uma dezena de judeus se aventurara a entrar no

país. Ademais, até 1860, quando o então presidente liberal Benito Juaréz instituiu a liberdade religiosa, o catolicismo era a única religião oficial do Estado. E ainda era grande o preconceito e desconfiança do povo em relação aos judeus, uma herança da Inquisição e do fato do México ser um país de grande devoção católica.

O número de judeus foi aumentando após o México fechar acordos comerciais com empresas europeias que pertenciam a judeus e alguns de seus representantes passarem a viver no país. Em 1861, já havia uma comunidade judaica organizada. Na ocasião, a mídia judaica londrina publicara que “100 famílias judias planejam construir uma sinagoga na Cidade do México”. Muitas, porém, acabam por deixar o país em decorrência da violência das revoltas e contrarrevoltas.

As lutas internas acabam com uma intervenção francesa e a formação do Segundo Império Mexicano. Em 1864, Maximiliano de Hamburgo torna-se imperador do México. Ele traz consigo 100 famílias judias da Bélgica, França, Áustria e Alsácia. Abastados e com estreitas ligações com a aristocracia, chegaram a cogitar a possibilidade de construir uma sinagoga, mas nada foi feito nesse sentido. Em 1867 as forças liberais derrubam o império e prendem Maximiliano, que é fuzilado em junho desse ano.

A maioria dos judeus deixa o México e, na década seguinte, a vida comunitária judaica quase desaparece. Em 1879 havia apenas 20 famílias na Cidade do México, a assimilação atingira níveis altíssimos e eram frequentes os casamentos mistos. Com a subida ao poder de Porfirio Diaz, em 1876, o país entra em um Golda Meir na Cidade do México

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período de estabilidade política e desenvolvimento econômico. Investidores estrangeiros passam a ver a nação como uma opção para seus negócios. Ainda era pequeno o número de judeus que vivia na Cidade do México, mas este foi crescendo com a chegada de correligionários europeus.

Entre os representantes de companhias estrangeiras que passaram a investir no país havia inúmeros judeus, ainda que não se identificassem abertamente como tal. Abastados, assimilados eram oriundos de vários países – França, Áustria, Alemanha, Itália, Bélgica, Estados Unidos e Canadá. Mas, apesar de não quererem se envolver em assuntos da comunidade judaica local, eles cooperaram economicamente em situações de crise, como na época dos pogroms de 1881, na Rússia.

Apesar do seu pequeno número, não foi desprezível a participação dos judeus na vida econômica e política do México, e grandes empreendimentos foram fundados nesse período por eles, entre os quais, o Palácio de Hierro e o Banco Nacional do México.

No início do século 20 começou a exploração petrolífera no país. Ainda que as concessões tenham sido entregues a companhias estrangeiras, a exploração levou o país a uma industrialização. Os judeus vão participar ativamente desse processo.

As bases da atual comunidade As bases da atual comunidade judaica mexicana foram criadas no final do século 19 e início do século 20, quando chegaram ao país diferentes levas de imigrantes judeus

chegaram, também, ao México, judeus dos Bálcãs e da Turquia. Paralelamente, os asquenazitas tentavam organizar uma vida comunitária. Em 1904, um grupo chamado “El Comité” organizou os serviços de Rosh Hashaná num Centro Maçônico. Quatro anos mais tarde é estabelecida a “Sociedad de Beneficencia Monte Sinai”. A criação dessa comunidade se deu, em grande parte, graças aos esforços do rabino Martin Zielonka, enviado ao México pela União Americana das Congregações Hebraicas. Essa organização decidira incentivar a formação de uma comunidade judaica para evitar a emigração ilegal de judeus para os Estados Unidos. A nova sociedade beneficente não teve vida longa. Entre outros, inúmeros asquenazitas deixaram o país quando eclodiu a Revolução Mexicana de 1910, considerada o acontecimento político e social mais importante do século 20 no México.

O conflito revolucionário resultou na diminuição da população judaica. Mas, apesar da violência e da falta de alimentos, os judeus oriundos do Império Otomano e da Rússia lá

oriundos do Império Otomano e da Europa. Durante o governo de Porfirio Diaz a imigração judaica era incentivada, pois era vista como muito positiva para a nação. A deterioração da qualidade de vida dos judeus no Império Turco-otomano, além das novas leis de alistamento obrigatório, levaram jovens judeus a deixarem seus países de origem para se estabelecer em terras com melhores condições econômicas.

Os primeiros judeus sírios vindos de Damasco e Alepo chegaram ao México em 1899. Eles vão ser os primeiros a tentar reconstruir sua vida no país, pois até então o México era visto como paragem transitória. Sem recursos financeiros, sem conhecer o país e nem falar o idioma, a maioria começou trabalhando como vendedores ambulantes, na esperança de conseguir os meios financeiros para mandar buscar toda a família. A comunidade judaica síria foi-se formando, pois, de modo geral, havia entre eles estreitos laços familiares. Tradicionalistas e religiosos, reuniam-se para as preces diárias e festas religiosas em casas particulares. Nesse mesmo período

uma das primeiras diretorias da unión sefaradi

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as novas disposições, são definidas novas relações de trabalho, mais humanizadas. É também reafirmada a liberdade religiosa e definida uma nítida separação entre Estado e Igreja. Esta última, assim como outras entidades religiosas, devia submeter-se às leis constitucionais.

A chegada de novos imigrantes

Em 1912, a população judaica do México era de 12 mil pessoas, aproximadamente, representando cerca de 0,1% da população mexicana que então somava 12 milhões. A imigração tanto sefaradita quanto asquenazita, principalmente da Europa Oriental, continuou nas primeiras décadas do século 20. Curiosamente, os primeiros imigrantes judeus da Europa Oriental chegaram em 1917, através dos EUA. Esse país entrara na 1ª Guerra Mundial e esses imigrantes não queriam servir no exército americano. Eram homens jovens que falavam russo e iídiche. Sionistas, fundaram na Cidade do México a primeira organização cultural judaica do país: a Associação Hebraica de Homens Jovens (em

inglês, YMHA), que funcionava como um clube e se dedicava à promoção da cultura e do esporte. A YMHA tornou-se um ponto de encontros sociais e auxílio econômico para os novos imigrantes asquenazitas.

A década de 1920

Esses anos foram decisivos para a consolidação da comunidade judaica local. Em 1921 o México passa a ser o segundo produtor mundial de petróleo e a nação está em franco processo de reconstrução econômica.

É, também, no início da década de 1920 que começa uma imigração maciça de judeus vindos de todas as partes do mundo, mas principalmente da Europa Central e Oriental. Somente no ano de 1920 chegaram aproximadamente 9 mil ashquenazim e 6 mil sefaradim, elevando o número de judeus no México ao total de 21 mil pessoas. A grande maioria estabeleceu-se na Cidade do México.Para muitos, o país era apenas uma escala em sua jornada rumo aos EUA. Mas, com o estabelecimento de cotas de imigração por parte das autoridades americanas, em

permaneceram. Além de não terem meios financeiros para voltar para suas cidades, não tinham para onde voltar. O que os esperava não era melhor do que a situação reinante. Em 1912 é, então, criada na Cidade do México a “Alianza Monte Sinai”, a AMS, por iniciativa de um judeu de Salônica, Isaac Capon. A nova entidade reuniria judeus de todas as nacionalidades. Uma das primeiras medidas tomadas foi o estabelecimento de um cemitério judaico. Graças ao bom relacionamento entre Jacobo Granat, um dos dirigentes da Alianza, com Francisco I. Madero, líder revolucionário que assumira a presidência mexicana, a AMS teve autorização para adquirir um terreno para o primeiro cemitério judaico do país.

Em 1918, compraram uma casa no centro da Cidade do México, que viria a ser a primeira sinagoga da comunidade judaica mexicana. O dia em que o presidente Venustiano Carranza assinou a autorização da nova sinagoga tornou-se uma data memorável, pois foi a primeira vez em que a comunidade judaica foi reconhecida por lei.

Apesar de altos e baixos, a AMS conseguiu manter-se unida por uma década, durante a qual a instituição realizava serviços religiosos e oferecia assistência aos novos imigrantes, incluindo aulas de hebraico, refeições casher e serviços de mohel. Havia, também, uma mikvê.

Após anos de lutas internas e penúria, os políticos mexicanos convenceram-se da necessidade de uma nova constituição. Ela vai ser outorgada em 1917. O objetivo era a independência econômica e o desenvolvimento do país. Entre

Casamento realizado na Sinagoga Rodfe Sedek

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1921, que se tornaram mais rígidas em 1924, grande contingente dessas famílias ficou no México. Para a comunidade asquenazita, a nova onda migratória foi muito significativa, pois até então mais da metade da população judaica era sefaradita.

Nessa década, a comunidade passou por uma reestruturação. As diferenças de língua, rituais religiosos e até hábitos do cotidiano, especialmente entre os que vinham da Europa e do Oriente Médio, levaram diferentes grupos ao estabelecimento de comunidades separadas. Cada uma ergueu suas sinagogas, mantendo casas de estudos, organizações beneficentes, escolas e até cemitérios individualizados. A separação dos ashquenazim da AMS se deu em 1922, quando este grupo decidiu realizar serviços religiosos independentes e criou a Nidje Israel (Consejo Comunitario Askenazi). Em 1924 foi a vez dos judeus da Turquia, Grécia e dos Bálcãs – que falavam o ladino – separarem-se da AMS, fundando a sua própria organização e associação de assistência social, a Fraternidad.

Em 1940 a Fraternidad, integrou-se à Buena Voluntad e ao movimento juvenil Unión y Progreso, criando a Unión Sefaradi. Judeus de Alepo também se separaram da AMS para criar o que é hoje a comunidade Magen David (antiga Sedaká u Marpé). Na realidade, mesmo antes da construção de sua primeira sinagoga, em 1931, a Rodfe Sedek, os judeus alepinos tinham seus próprios locais de reza, escolas e instituições beneficentes. A AMS passou a ser liderada pelos damascenos, que, em 1935, mudaram seu estatuto e seu nome, passando a ser conhecida como a comunidade Monte Sinai, que reunia os judeus de Damasco.

O sionismo sempre teve grande apelo entre os judeus mexicanos e, em 1925, foi criada a Federação Sionista. Mas, por não se sentirem confortáveis nas reuniões nas quais a língua predominante era o iídiche, os sefaraditas fundaram sua própria organização sionista, a Bnei Kedem.

A década de 1920 viu prosperarem os judeus do México e participarem ativamente no processo de desenvolvimento e industrialização do país. O Banco Mercantil, fundado pelos judeus, passou a financiar

a aquisição de máquinas para a indústria têxtil e outros segmentos, ajudando os judeus a abrirem seus próprios negócios. Em 1931 foi criada a Câmara Israelita de Indústria y Comércio com o objetivo de coordenar o esforço judaico para se organizar economicamente e representar a comunidade junto às autoridades.

Política imigratória e antissemitismo

No final da década, há uma mudança na política mexicana em relação à imigração, que até então mantivera uma postura aberta. Antes da Revolução Mexicana não havia praticamente uma regulamentação legal desta questão e, durante toda a década, o governo convidara os judeus a imigrarem para o México.

No final dos anos 1920, porém, a situação mudou. O nacionalismo ocupa um lugar central no projeto político de reconstrução nacional. Uma nova política migratória seletiva vai ser o resultado da busca de um desenvolvimento econômico autônomo e de um perfil populacional próprio. Esse perfil seria o resultado da homogeneização da

1. Comitée do Macabi, novembro de 1936 2. moshe dayan na Cidade do México

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população através da “mestiçagem”, entendida como fusão, assimilação e dissolução de grupos étnicos. Além de critérios, também o viés econômico passa a orientar a política migratória. A partir de 1927 o Congresso aprova uma nova legislação para a imigração baseada em critérios éticos-raciais, a capacidade de assimilação dos imigrantes e sua contribuição para o desenvolvimento do país.

Em 1936, a Lei Populacional estabelece diferentes cotas de imigração e elabora tabelas com restrições a determinados grupos de estrangeiros. Os grupos objeto de maior hostilidade foram os chineses e os judeus.

Apesar dos intensos esforços feitos pelos judeus locais e das pressões internacionais, os judeus alemães e austríacos que haviam fugido da Alemanha nazista tinham dificuldades para entrar no país, e o governo concedia apenas dez vistos

por ano para poloneses e romenos. Entre 1933 e 1945, o México recebeu apenas 1.850 judeus.

O suposto “interesse nacional” foi também utilizado internamente como estratégia discriminatória. Na década de 1930 há um aumento do antissemitismo, expresso através de ataques dos grupos fascistas locais, entre os quais, o “Camisas Doradas” e o Comitê Pró-Raça, que buscou expulsar do país os estrangeiros já residentes. Em maio de 1931, a população judaica fica chocada com a expulsão de 250 comerciantes judeus do mercado La Lagunilla. Determinados a resistir a tais situações, as inúmeras entidades judaicas mexicanas se unem para criar o Comité Central Israelita do México.

Segunda metade do século 20

Na segunda metade do século 20 a ascensão socioeconômica alçou

os judeus às esferas mais altas da sociedade mexicana. Novos ventos sopram, provocando uma mudança positiva definitiva no relacionamento entre as comunidades judaicas e o Estado, em 1992. Desde 1940 as relações entre Estado e Igreja baseavam-se no acordo segundo o qual o Governo não interferia nas questões da Igreja em troca do reconhecimento da Igreja da hegemonia sociopolítica do Estado. Esta equação aplicava-se em relação a qualquer grupo religioso. Os judeus haviam-se adaptado, registrando suas congregações e sinagogas como associações civis. Mas, com a reforma constitucional de 1992, há um reconhecimento legal das instituições religiosas e de suas atividades comunitárias.

A ligação entre os judeus do México e Israel sempre foi forte, mas, apesar dos esforços, não consegue mudar, em várias ocasiões, a política antissionista do governo mexicano. Na histórica votação das Nações

1. Casa da família Carvajal 2. Sinagoga Rodfe Sédek, congregação Maguen David 3. Sinagoga Rodfe Sédek, congregação Maguen David 4. Sinagoga Adat Israel, Consejo Comunitario Askenazi 5. Sinagoga Monte Sinai 6. Sinagoga Shaar HashamaimComunidade Unión Sefaradi

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Unidas que, em 29 de novembro de 1947, decidiu a Partilha da Palestina, o México se absteve. E só reconheceu o Estado de Israel em abril de 1952. Mas, o momento mais grave se deu em 1975, quando o então presidente do México, Luis Echeverria, propôs à Assembleia Geral das Nações Unidas que o sionismo fosse considerado uma forma de racismo. A Resolução acabou sendo aprovada e as relações diplomáticas entre Israel e o México ficaram tensas. O México mudou sua posição em 1992, quando o então presidente Carlos Salinas propôs e conseguiu a revogação da Resolução de 1975, na ONU.

Século 21

De acordo com dados publicados pelo World Jewish Congress, atualmente a comunidade judaica mexicana soma 40 mil a 50 mil membros, dos quais cerca de 37 mil vivem na Cidade do México. Há, também, comunidades em Guadalajara, Monterrey, Tijuana, Cancun e San Miguel. Diferentemente de outros países onde a percentagem de casamentos

mistos passou de 50%, no México apenas 6% dos casamentos são de judeus com não-judeus. Há cerca de 30 sinagogas na Cidade do México e número igual de locais menores para orações e estudos e cerca de 20 locais adicionais alugados para os serviços durante as Grandes Festas. Duas sinagogas são conservadoras e as demais, ortodoxas.

Cerca de 95% dos judeus na Cidade do México estão diretamente afiliados à alguma comunidade ou ao renomado Centro Desportivo Israelita (CDI). Cada comunidade fornece praticamente todos os serviços do ciclo de vida de seus membros – desde o nascimento ao falecimento. Isso abrange os âmbitos religioso, educacional, social, cultural e assistencial.

O Centro Desportivo Israelita (CDI), fundado em 1950, tem atualmente mais de 28 mil membros. Além de uma infraestrutura excelente para a prática de esportes, possui, também, uma galeria de arte, um teatro e um salão para eventos.

Ali é realizado, anualmente, o mais importante Festival de Dança e Música Judaica da América Latina.A rede judaica de educação conta com 16 escolas na Cidade do México. Segundo as estatísticas, mais de 90% das crianças judias estudam em estabelecimentos da comunidade, da pré-escola ao ensino médio.

Há, ainda, 16 movimentos juvenis com aproximadamente 2 mil membros, a maioria dos quais identificados com o Estado de Israel. Anualmente, milhares de jovens judeus mexicanos visitam o Estado Judeu através de programas organizados pelas escolas.

1. Sinagoga Rabi Yehuda Halevi, Unión Sefaradi. 2. Sinagoga Nidje israel, Consejo Comunitario Askenazi ortodoxo

BIbliografia:

Los Judios de Alepo em México, coordenação Liz Hamui de Halabe , ed. Maguen David Unikel-Fasja, Monica, Sinagogas de México Perez de Cohen, Rosalynda, Levy de Behar, Simonette , Bejarano de Goldberg, Sophie, Sefarad de ayer ou i manyana, Presencia Sefaradí em México Cincuenta Años del Centro Deportivo Israelita

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