Revista NHUrb

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Revista do Núcleo de Habitação e Urbanismo

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  • Revista da Defensoria Pblica

    EDio EsPEcial DEHabitao E URbanismo

  • 3sumrio

    aPREsEntao

    i Cidades no Brasil: Neo Desenvolvimentismo ou Crescimento Perifrico Predatrio Erminia maricato.............................................................................................................................8

    ii Abandono e Arrecadao de Imveis Urbanos na Perspectiva da Poltica urbana Fernando G. bruno Filho...............................................................................................................31

    iii reas de Risco Ocupadas por Assentamentos Informais: Conflito entre Enfrentamento de Riscos Ambientais e Afirmao do Direito Moradia - Julia azevedo moretti..........................................57

    iV O Acesso a Terra, Desafio Efetivao do Direito Moradia no Brasil Lucia maria moraes e marcelo Dayrell Vivas..............................................................................82

    V Exigncia do Adequado Aproveitamento do Solo Urbano pelo Emprego dos Instrumentos Indutores da Funo Social: Dever Fundamental do Poder Pblico Municipal - A Interpretao do Pargrafo 4.o do Artifo 182 da Constituio da Repblica [ Mutao Constitucional?] allan Ramalho Ferreira.................................................................................................................97

    Vi Relao do Estado com Populao Atingida por Intervenes Pblicas - Um Necessrio choque de confiana - ana arantes Rodrigues.......................................................................................111

    Vii Aes de Destituio do Poder Familiar e sua Relao com a Ausncia de Moradia Adequada leonice Fazola de Quadros.........................................................................................................126

    Viii Desconstruindo Certezas, Construindo Novos Caminhos: Atuao Interdisciplinar e Defesa de Direitos Coletivos em Habitao - marilene alberini........................................................................141

    iX Habitar A Cidade do Neoliberalismo: Necessidade de Repensar a Efetividade dos Instrumentos Urbansticos Luz do Direito Moradia e Vice-Versa - Rafael lessa V. de s menezes ..................155

    X A Judicializao dos Assentamentos Irregulares: Reflexes Necessrias sabrina nasser de carvalho.........................................................................................................169

    Xi As Determinaes da Base Fundiria no Processo de Estudo da Favela Jardim Jaqueline tatiana Zamoner..........................................................................................................................183

    Xii Diretrizes para a Segurana da Posse dos Pobres Urbanos - Raquel Rolnik..............................196

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  • 5aPREsEntao

    com o orgulho que o Ncleo de Habitao e Urbanismo da Defenso-ria Pblica apresenta sua 1 Revista de Direito Urbanstico, com o objetivo de contribuir na discusso acerca de temas relevantes em torno dessa temtica.

    Trata-se de uma revista organizada por um rgo que tem como fun-o primordial a atuao jurdica em defesa do direito moradia e ci-dade da populao historicamente excluda de So Paulo. Por outro lado, acreditamos que o direito um instrumento que possui todas as limita-es inerentes a qualquer instrumento, e que somente com a conjuno de esforos e saberes poderemos construir uma cidade menos desigual e na qual as diferenas convivam de forma harmnica.

    Por isso, a partir do convite a defensores(as), agentes, parceiros(as) da Instituio e estudiosos(as) ou militantes da rea, buscamos unir nessa revista diversas searas do conhecimento relacionados temtica do direi-to cidade e moradia, como urbanismo, sociologia e assistncia social. Alis, a importncia da interdisciplinaridade para atuao nessa seara tema de um dos artigos aqui apresentados.

    Como resultado, passamos pela anlise da conjuntura econmica e poltica que nos trouxe s cidades tal como as conhecemos hoje, avalian-do o impacto dessa realidade no s na convivncia coletiva no espao urbano, mas tambm na vida ntima das pessoas, em razo, por exemplo, das implicaes que a falta de uma moradia digna possui na seara do direito de famlia.

    Alm disso, aprofundamos o debate acerca da dificuldade no acesso terra e de alguns instrumentos disposio dos gestores pblicos para transformao desse cenrio, especialmente aqueles indutores da fun-o social da propriedade, j que a fruio ilimitada desse direito tido como fator de excluso territorial e ampliao da desigualdade social na cidade.

    Debruamo-nos tambm sobre alguns temas espinhosos, buscando formas mais corajosas e eficazes do mundo jurdico lidar com a questo das reas de risco, bem como, a partir de casos concretos, analisamos a

  • 6dificuldade da implementao de polticas pblicas de habitao diante da falta de confiana da populao no Poder Pblico.

    Discutimos, ainda, a problemtica dos assentamentos irregulares, tan-to a partir do enfoque do devido processo legal e dos direitos dos mo-radores nos processos de regularizao desses assentamentos, como a partir do exemplo concreto da experincia, ainda em curso no Ncleo de Habitao e Urbanismo da Defensora Pblica, de regularizao fundiria do Jd. Jaqueline.

    Por fim, fechando a revista, trazemos o Relatrio Sobre Segurana na Posse dos Pobres Urbanos, apresentado ao Conselho de Direitos Huma-nos da ONU ao final do mandato de Raquel Rolnik como Relatora Especial para o Direito Moradia adequada. Trata-se de importante documento, que traz diretrizes fundamentais a serem observadas na garantia da pos-se daqueles que vivem em situaes irregulares do ponto de vista jurdico (enorme parcela da populao), sem o que no se pode falar em moradia digna, nem em possibilidade de acesso cidade.

    Esperamos, assim, poder contribuir para a formao de um caldo de conhecimento - produzido tanto a partir do estudo, sob a perspectiva de diversas reas do conhecimento, como da experincia prtica na atuao concreta nessa temtica que ajude a nos aproximar cada vez mais de uma cidade efetivamente justa e equilibrada.

    Boa leitura!

    Ncleo Especializado de Habitao e Urbanismo da DPE-SP

  • 7EXPEDiEntE nclEoCoordenadora

    Ana Arantes Rodrigues

    Coordenadoras AuxiliaresAna Carvalho Ferreira Bueno de Moraes

    Sabrina Nasser de Carvalho

    Agente - UrbanistaTatiana Zamoner

    OficiaisEdivaldo Batista Oliveira Junior

    Eveline Portela Biriba de Almeida

    Estagirios(as)Carmen Brasolin (direito)

    Bruna Diniz (direito)Bruno Pereira (administrativo)

    Defensores(as) Pblicos(as) integrantes Alexandra Pinheiro de Castro

    Allan Ramalho FerreiraAngela de Lima PieroniCarolina Nunes Pannain

    Fabiana Julia Oliveira ResendeFelipe Amorim Principessa

    Felipe Hotz de Macedo CunhaFernando Catache Borian

    Lucas Akira Pascoto NishikawaLuiza Lins Veloso

    Marina Costa Craveiro PeixotoMarina Neves de Campos MelloPedro Pereira dos Santos PeresRafael Negreiro Dantas de Lima

  • 8i. ciDaDEs no bRasil: nEo DEsEnVolVimEntismo oU cREscimEnto PERiFRico PREDatRio

    Erminia Maricato1

    1. Introduo cidades globais no contexto do capitalismo perifrico

    Pas subdesenvolvido, pas do sul, dependente, perifrico, semi-peri-frico, em desenvolvimento, emergente, so algumas das classificaes, que foram atribudas condio do Brasil, dependendo, inclusive, da fi-liao ideolgica ou acadmica de quem as atribui. A sigla BRICS expressa o prestgio que alguns pases, e entre eles o Brasil, passaram a gozar a partir de um determinado momento, no incio do sculo XXI, marcado pela mudana na geo-poltica mundial. Um pas que servia de piada para estrangeiros e brasileiros, torna-se um player internacional e modelo, segundo a mdia do mainstream, para a inovao produtiva, gesto de polticas sociais e at para poltica urbana.

    A nova fase de internacionalizao dos capitais e dos mercados ga-nhou o glamouroso nome de globalizao e acompanhando a tendncia algumas cidades foram cunhadas como globais.

    A globalizao nada mais do que uma etapa especfica do velho pro-cesso de internacionalizao do capital (CHESNAIS, 1996). Em 1945 Caio Prado Junior, primeiro historiador marxista brasileiro, afirmava que no mundo contemporneo no h mais histria econmica de cada pas, mas a histria da humanidade.

    Ele no ignorou as especificidades do pas quando escreveu Histria econmica do Brasil tanto que destacou a herana colonial portuguesa, a escravido resistente, a desigualdade persistente, o papel ambguo dos homens brancos na sociedade escravocrata, a dominncia da monocultu-ra de exportao, como heranas que contriburam para o travamento do

    1 Urbanista e professora titular da USP. Ex-coordenadora do Curso de Ps Graduao (1998-2003) e Integrante do Conselho de Pesquisa da USP. Foi Secretaria de Habitao e Desenvolvimen-to Urbano do Municpio de So Paulo (1989-1992) e Ministra Adjunta do Ministrio das Cidades (2003-2005).

  • 9desenvolvimento do pas. Mas em cada uma dessas caractersticas espe-cficas Caio Prado via tambm a predominncia da presena internacional (PRADO JR, 1972).

    Essas lembranas pretendem apenas trazer para o comeo desse texto alguns conceitos que a globalizao sufocou durante um certo perodo. Estamos nos referindo s teorias sobre desenvolvimento/subdesenvolvi-mento que se seguiram ao esforo da CEPAL- Comisso Econmica para Amrica Latina e Caribe, para explicar o atraso econmico das sociedades latino americanas, em meados do sculo XX, e que hoje voltam a ocupar os estudiosos no Brasil. Apesar de criticada em sua viso dualista a CEPAL constituiu, nesse perodo, um momento de produo terica inovador e independente sobre a condio dos pases latino americanos na diviso do poder mundial.

    Constatada a situao do subdesenvolvimento, ocuparam-se, os for-muladores da CEPAL, em traar estratgias de desenvolvimento as quais geraram as propostas de industrializao (tardia) por substituio de im-portaes, poltica conhecida por desenvolvimentismo.

    No se trata, neste texto sobre cidades, de discutir se existiria uma sa-da nacional para superar as condies atrasadas dos pases latino-ame-ricanos em relao condio dos pases centrais do capitalismo e se essa sada deveria seguir os passos daquela industrializao. Trata-se de reafirmar a heterogeneidade estrutural que nos separa (e que nos une). Longe de desaparecer, essa relao se mantm e at se aprofunda, espe-cialmente nas cidades, com a globalizao como vamos ver.

    Percebemos uma certa dificuldade em usar as classificaes desenvol-vido e subdesenvolvido, j que no somos nem um nem outro, mas recu-samos a concepo etapista presente no conceito em desenvolvimento. Vamos reafirmar a manuteno da leitura dialtica entre setores desen-volvidos (ou neo-desenvolvidos) e setores atrasados (ou neo atrasados) para explicar a realidade interna e externa de pases como o Brasil no con-texto mundial revolucionado pelo avano tecnolgico das comunicaes e pela mudana geopoltica.

    Precedendo os estudos da Cepal ou por vezes seguindo o caminho aberto por ela, estudiosos brasileiros, weberianos e marxistas, estudaram a condio estrutural do Brasil no capitalismo perifrico que muito nos ajuda a entender as cidades.

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    Desigual e combinado, ruptura e continuidade, modernizao do atra-so, modernizao conservadora, capitalismo travado, so algumas das definies que explicam o paradoxo evidenciado por um processo que se moderniza alimentando-se de formas atrasadas, e, frequentemente, no capitalistas, strictu senso. As cidades so evidencias notveis dessa construo terica e nelas, o melhor exemplo talvez seja a construo da moradia (e parte das cidades) pelos prprios moradores (trabalhadores de baixa renda), aos poucos, durante seus horrios de folga, ao longo de muitos anos, ignorando toda e qualquer legislao urbanstica, em reas ocupadas ilegalmente.

    Francisco de Oliveira forneceu a chave explicativa para a gigantesca prtica da autoconstruo da moradia ilegal (uma espcie de produo domstica) pelos trabalhadores ou pela populao mais pobre de um modo geral. Ela est no rebaixamento do custo da fora de trabalho, que ocupa seus fins de semana (horrios de descanso) na construo da casa (OLIVEIRA, 1972).

    Essa prtica contribuiu para a acumulao capitalista durante todo perodo de industrializao no Brasil, particularmente de 1940 a 1980 quando o pas cresceu a taxas aproximadas de 7% ao ano e o processo de urbanizao cresceu 5,5% ao ano (IBGE). industrializao com baixos salrios correspondeu a urbanizao com baixos salrios. (MARICATO, 1976, 1979, 1996).

    O exemplo revela que uma certa modernizao e um certo desenvol-vimento (industrializao de capital intensiva, produo de bens dur-veis) dependeram de um modo pr-moderno, ou mesmo pr-capitalista (a autoconstruo da casa) de produo de uma parte da cidade. Essa imbricao foi (e ainda ) fundamental para o processo de acumulao capitalista nacional e internacional. Ela se aplicou perfeitamente pro-duo das cidades que receberam a indstria automobilstica a partir de 1950 Volkswagen, Chrysler, Mercedes Benz e se aplica hoje nas cida-des que podemos chamar de globais.

    A tabela abaixo mostra que mais de 80% dos domiclios em favelas (aglomerados subnormais contabilizadas pelo IBGE, e praticamente um tero do dficit habitacional, estavam nas principais metrpoles brasilei-ras de acordo com o Censo de 2000 (IBGE Instituto Brasileiro de Geo-grafia e Estatstica).

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    A populao moradora de favelas cresceu mais do que a populao total ou do que a populao urbana nos ltimos 30 anos, isto , de 1980 a 2010 (IBGE).

    A terra urbana (assim como a terra rural) ocupa um lugar central nessa sociedade. O poder social, econmico e poltico sempre esteve associado deteno de patrimnio seja sob a forma de escravos (at 1850) seja sob a forma de terras ou imveis (de 1850 em diante). Essa marca pa-trimonialismo se refere tambm privatizao do aparelho de Estado tratado como coisa pessoal. O patrimonialismo est ligado desigualda-de social histrica, notvel e persistente que marca cada poro da vida no Brasil. E essas caractersticas, por outro lado, esto ligadas ao processo de exportao da riqueza excedente para os pases centrais do capitalismo. Celso Furtado mencionou vrias vezes em seus trabalhos o convvio da exportao da riqueza excedente com uma estreita elite nacional consu-midora de produtos de luxo. Esse quadro forneceria as caractersticas de um mercado, por assim dizer, travado (FURTADO, 2008).

    Recente relatrio da ONU HABITAT Estado de las Ciudades de Amri-ca Latina y el Caribe 2012 mostra que o Brasil, a sexta economia do mun-do, mantm uma das piores distribuies de renda no continente mesmo aps os avanos, nesse sentido, verificados nos governos do Presidente Lula. So mais desiguais do que o Brasil, na Amrica Latina, apenas os pases Guatemala, Honduras e Colmbia. Essa marca, a da desigualdade, est presente em qualquer ngulo pelo qual se olha o pas e, portanto, tambm nas cidades.

    Evidentemente para esse capitalismo funcionar como parte da di-viso internacional do trabalho, os trabalhadores urbanos integrados ao processo produtivo, mas excludos de grande parte dos benefcios que o mercado de consumo assegura e especialmente excludos da cidade, so submetidos a uma poderosa mquina ideolgica quando no pode ser simplesmente repressora. Alm da poderosa mquina miditica a genera-lizao do dbito poltico, o favor como mediao universal, so relaes que explicam muito a cidade e uma sui generis forma de cidadania no Brasil: Direitos para alguns, modernizao para alguns, cidade para alguns (CASTRO e SILVA, 1997).

    No sendo o caso de desenvolver aqui essas ideias, vamos resumir as caractersticas histricas da metrpole no capitalismo perifrico da se-guinte forma:

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    1) A persistente ilegalidade fundiria e imobiliria forma a periferia urbana que frequentemente se configura como um depsito de pesso-as em reas no servidas ou precariamente servidas pela infraestrutura urbana e que no conta tambm com equipamentos sociais pblicos e privados. Em algumas capitais de Estados, os domiclios ilegais so mais numerosos do que os domiclios legais revelando que a exceo mais regra do que exceo e a regra mais exceo do que regra. So os casos das capitais dos estados do norte e nordeste (Manaus, Belm, So Luiz, Fortaleza, Teresina, Recife, Macei, Natal). Entretanto, mesmo nas cida-des importantes do sul, do sudeste e do leste, a poro urbana ilegal varia entre 15%, nos municpios centrais de regies metropolitanas (So Paulo, Curitiba), 25% (Belo Horizonte, Porto Alegre) ou mais de 30% (Salvador, Rio de Janeiro).

    2) Ligada a esse fato est a falta de controle do Estado sobre o uso e a ocupao do solo urbano, em uma parte da cidade e exatamente aquela de residncia da populao pobre. Impedidos de ocupar a cidade formal (ou do mercado) a populao pobre ocupa as reas que sobram ou que no interessam ao mercado imobilirio. Grande parte dessas reas ambientalmente frgil (mangues, dunas, matas preservadas por lei, rea de Proteo de Mananciais, reas de Proteo Permanente, Parques Na-cionais e Estaduais, encostas de morros). Alm da agresso ambiental esto presentes os riscos de desmoronamentos que a cada temporada de chuvas so responsveis por acidentes com mortes.

    3) Tambm como varivel compondo esse quadro est o mercado resi-dencial restrito, ou seja, mercado capitalista formal, legal ou como quei-ram chamar, para uma pequena parcela da populao.A esse mercado de luxo ou especulativo, notadamente fundirio/ren-tista, corresponde um patamar produtivo baixo e intensa explorao da mo de obra.

    4) As leis avanadas e detalhadas e o prestgio dos Planos Urbansti-cos contrastam com a fragilidade operacional do Estado. Leis e planos que no se aplicam ou so aplicados para uma parte da cidade (leia-se, de acordo com as circunstncias) revelam a importncia da retrica, dos discursos e a desimportncia da realidade urbana quando se refere a de-terminadas classes sociais. O poderoso aparato jurdico e burocrtico do Estado no Brasil contrasta com as frgeis esferas operacionais fazendo lembrar um Elegara, ou seja, elefante com ps de gara.

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    O poder est nos gabinetes incluindo melhores salrios, mais recursos, mais equipamentos.

    A aplicao da legislao urbana tem um papel estratgico nas rela-es sociais marcando os excludos com a condio de ilegalidade. Leis e planos, isto , a formalizao do uso do solo acarreta a expulso. Os pobres no cabem na cidade legal. Diversas teses e mestrados sobre a cidade de Curitiba revelam esse fato.

    5) A universalizao do favor, o clientelismo, a privatizao da esfera pblica mediam as relaes sociais e se aplicam inclusive nas relaes entre o executivo, o legislativo e o judicirio. Essa flexibilizao se com-bina, contraditoriamente, a uma notvel burocratizao resultante de procedimentos exagerados e legislao detalhista. Elaborar planos fcil. O difcil implement-los nesse contexto.

    Vamos tratar dos impactos trazidos pela globalizao a essa cidade no contexto especfico da sociedade brasileira que para alguns est vivendo um neo-desenvolvimentismo, para outros um desenvolvimentismo de esquerda ou social desenvolvimentismo. Apesar do aumento da capaci-dade de consumo nas faixas de baixa renda e do boom do mercado imo-bilirio residencial, os padres perifricos de urbanizao se reproduzem (incluindo a nova ocorrncia do loteamento fechado), agravando o pre-sente e comprometendo o futuro da cidade global perifrica.

    2. Metrpoles brasileiras e a globalizao neoliberal

    As mudanas que acompanharam a reestruturao capitalista interna-cional impactaram fortemente o territrio brasileiro dando novos rumos para as dinmicas demogrfica, social, econmica e territorial (portanto tambm rural, urbana e ambiental).

    Os grandes conglomerados transnacionais principais motores da globalizao envolvidos com a produo/explorao e exportao de commodities como gros, carne, celulose, minrios e etanol, lograram reorientar a secular ocupao urbana que se manteve, aps o sculo XVII at poucas dcadas atrs, prxima ao litoral. A interiorizao das cidades acompanhou a estruturao de um poderoso setor de agrobusiness de corte capitalista, tecnologicamente avanado e isso mudou o cenrio de muitas regies alm de mudar tambm a relao entre elas.

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    Contrariando tendncia anterior, o censo de 1980 j apontava que as metrpoles passavam a crescer menos do que as cidades de porte mdio (entre 100.000 e 500.000 habitantes) e dentre as metrpoles cresceram mais as do norte e do centro-oeste. Aps 2,5 dcadas desse modelo, o Brasil se divide ao meio, em 2000, como mostram os levantamentos co-ordenados pela profa. Tania Bacelar, incorporando ao sudeste e ao sul, regies tradicionalmente mais ricas e desenvolvidas, o centro-oeste, ter-ritrio ocupado pelo agronegcio.

    Apesar da persistncia de forte desigualdade, todas as regies brasilei-ras cresceram mais do que o sudeste (que mantm o epicentro industrial e ps-industrial do Brasil) o que implica numa diminuio da desigualda-de regional. O VTI- Valor da Produo Industrial do Estado de So Paulo cai, de 80,7% em 1970 para 61,8% em 2005, em relao ao conjunto do pas.

    A regio metropolitana de So Paulo era responsvel, em 1970 por 61,8% do VTI brasileiro e em 2005 passa a 43,5%, embora a cidade conti-nue a manter sua hegemonia no territrio brasileiro.

    O espraiamento das metrpoles pelas regies fica evidenciado por meio das novas estratgias de localizao e logstica de setores produ-tivos e comerciais, atividades industriais inovadoras, ampliao dos ser-vios vinculados comunicao, finanas e educao, arranjos urbanos regionais ligados produo para exportao, e especialmente, os con-domnios ou loteamentos fechados que passam a disputar as terras da periferia urbana com a populao de baixa renda.

    No cabe qualquer dvida sobre o forte efeito negativo que a globali-zao, dominada pelo iderio neoliberal, imps, com a anuncia das eli-tes nacionais, s metrpoles brasileiras, nas dcadas de 80 e 90.

    As principais causas dessa tendncia, j tratada em vasta bibliografia, se deveram queda brusca do crescimento econmico com aumento do desemprego e retrao do investimento pblico em polticas sociais. A sistematizao das propostas contidas no Consenso de Washington mos-tra a fora de tal dominao poltica que consegue impor, a uma socieda-de desigual, em parceria com as elites locais, aes que seguem um cami-nho contrrio ao interesse e necessidades da maior parte da populao (CANO, 1995; TAVARES e FIORI, 1997) As trs polticas pblicas urbanas

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    estruturais (ligadas produo do ambiente construdo) transporte, ha-bitao e saneamento foram ignoradas ou tiveram um rumo errtico, com baixo investimento, por mais de 20 anos.

    Os precrios times de funcionrios pblicos existentes no Estado bra-sileiro e as instituies, que se formaram, estavam em runas, quando investimentos foram retomados em 2003 na gesto do presidente Lula (MARICATO, 2011b)

    Talvez, o indicador que mais evidencia o que podemos chamar de tra-gdia urbana a taxa de homicdios, que cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010. Em 1980, a mdia de assassinatos no pas era de 13,9 mor-tes para cada 100 mil habitantes, em 2010 passou para 49,9.

    Certamente essa ocorrncia no se deveu apenas a esses fatores e nem se limita s cidades brasileiras. No possvel abordar um assunto to estudado em poucas palavras. Mas no h dvida de que ela compe o quadro de abandono do Estado provedor. Ainda que tratemos do pro-vedor na periferia capitalista onde a previdncia no era universal assim como a sade ou a habitao. O tema da violncia cujas origens esto na sociedade escravista que formalmente resistiu at 1888, se transformou numa das principais marcas das cidades brasileiras.

    Nem todos os indicadores sociais so negativos no processo de urba-nizao concomitante ao processo de industrializao que se deu no de-correr do sculo XX e mais exatamente a partir de 1930. A mortalidade infantil, a expectativa de vida, o nvel de escolaridade, o acesso gua tratada, a coleta do lixo a taxa de fertilidade feminina, apresentam uma evoluo positiva a partir de 1940 at nossos dias exatamente devido mudana de vida com a urbanizao. (IBGE, 2008).

    No entanto o estudo de cada caso revela as mesmas contradies que encontramos na macro-escala. Apenas para dar um exemplo da lgica que orienta esses servios, lembremos que aproximadamente 20% dos domiclios no esto ligados rede de esgotos na Regio Metropolitana de So Paulo.

    Boa parte dos esgotos produzidos lanada pelas redes nos rios que cortam a metrpole. No entanto h duas estaes de tratamento de efluentes com capacidade ociosa na Regio Metropolitana (a do ABC e a

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    de Barueri), uma delas construda h mais de 20 anos. de conhecimento geral que as obras relativas s redes de esgotos no tm visibilidade e, portanto no interessa aos governos providenci-las.

    3. Nas dcadas perdidas: luta social pela cidade democrtica

    Aps um longo perodo de crescimento, sem distribuio de renda, (1940 a 1980) a economia brasileira entra em declnio pressionada pela crise fiscal.

    Movendo-se contra a corrente mundial de enfraquecimento dos parti-dos de esquerda, do declnio do crescimento econmico e da retrao do Estado provedor, o Brasil dos anos 80 mostrava um quadro contrastante. Enquanto a economia mostrava uma queda acentuada, ao mesmo tempo em que lutavam contra o governo ditatorial movimentos sociais e ope-rrios elaboravam plataformas para a mudana polticas com propostas programticas. Na dcada de 80 foram criados novos partidos como o PT, outros partidos de esquerda saram da clandestinidade como, por exem-plo, o PC do B Partido Comunista do Brasil e o PCB Partido Comunista Brasileiro. As lutas operrias e sindicais lograram a construo da CUT Central nica dos Trabalhadores, e os nascentes movimentos sociais urbanos uma novidade na cena poltica brasileira, pelo menos nessa escala criaram a CMP Central de Movimentos Populares.

    Um vigoroso Movimento Social pela Reforma Urbana recuperou as propostas elaboradas na dcada de 1960, no contexto das lutas revolu-cionrias latino-americanas. Tratava-se de construir a ponte com uma agenda que a ditadura havia interrompido a partir de 1964. Na dcada de 1960 o Brasil tinha 44,67% da populao nas cidades (censos IBGE). Em 1980 j eram 67,59%. Houve um acrscimo de cerca de 50 milhes de pessoas nas cidades e os problemas urbanos se aprofundaram. Esse movimento reunia entidades profissionais (arquitetos e urbanistas, en-genheiros, advogados, assistentes sociais), entidades sindicais (urbani-trios, sanitaristas, setor de transportes), lideranas de movimentos so-ciais, ONGs, pesquisadores, professores, intelectuais, entre outros. Por sua influncia foram criadas comisses parlamentares e foram eleitos prefeitos, vereadores e deputados.

    No que se refere ao destino das cidades, na agitada cena poltica esta-vam presentes: a) as mobilizaes sociais, os sindicatos e os partidos pol-

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    ticos, b) a produo acadmica que passa a desvendar a cidade real (com diagnsticos sobre as estratgias de reproduo dessa fora de trabalho de baixos salrios) desmontando as construes simblicas e ideolgicas dominantes sobre as cidades e c) governos municipais inovadores que experimentaram novas agendas com programas sociais, econmica e po-liticamente includentes e participativos.

    Durante o regime de exceo (1964-1985) os prefeitos das capitais eram indicados pelos governadores que eram indicados pelo Presidente da Repblica que eram indicados pelas Foras Armadas.

    Portanto as experimentaes de gesto local democrtica se davam nos demais municpios onde havia eleio direta para prefeito. Entre os urbanistas ganhou importncia nessa fase as experincias de Diadema, municpio operrio da Regio Metropolitana de So Paulo, com suas pro-postas de incluso social e urbana elaboradas em contexto de forte luta social.

    Aps 1985, quando a eleio direta retorna s capitais, ganha desta-que a inovadora experincia do Oramento Participativo em Porto Alegre. Em So Paulo, duas mulheres foram eleitas com um intervalo entre elas Luiza Erundina (1989-1992) e Marta Suplicy (2001 e 2004) para governar a cidade mais importante do pas.

    Propostas originais podem ser encontradas nas reas de habitao, as-sistncia social, transporte coletivo, cultura entre outras. Muitas outras cidades tambm apresentaram novidades que extravasam o espao des-se paper: Recife, Belo Horizonte, Fortaleza, Belm, Aracaju, entre outras.

    Os governos municipais que inauguraram gestes inovadoras, autode-nominada de democrtica e popular priorizavam a inverso de priori-dades na discusso do oramento pblico e a participao social em to-dos os nveis. Os governos do PT foram to bem sucedidos que passaram a se diferenciar sob a marca do modo petista de governar. As propostas eram criativas e efetivas, respondendo com originalidade os problemas colocados pela realidade local. Nesse sentido os projetos arquitetnicos, urbansticos e legais, relacionados ao passivo urbano (cidade ilegal, au-to-construda, e precariamente urbanizada) ganha importncia, pois sem-pre foi ignorado pelo urbanismo do main stream. Por isso, os programas de governo se dividiam entre os que buscavam recuperar a cidade ilegal

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    consolidada (onde no houvesse obstculo ambiental para isso) e a pro-duo de novas moradias e novas reas urbanas.

    Os principais programas relacionados poltica urbana eram os se-guintes:

    a) Em relao ao passivo urbano.Grande parte das cidades, que era extremamente precria, invisvel para os cartes postais e por vezes, at mesmo para os mapas das secreta-rias de planejamento, exigia interveno urgente na busca de melhorias habitacionais, urbanas, paisagsticas, de saneamento, de drenagem e ambientais. A urgncia se refere eliminao de risco de vida devido a enchentes, desmoronamentos, epidemias, insalubridade, dificuldade de mobilidade. Assegurar boas condies de saneamento, drenagem, retira-da de lixo, iluminao, circulao viria ou de pedestre, limpeza urbana, e instalar tambm alguns equipamentos pblicos (sade e educao) sem remover a maior parte da populao que tinha apego sua casa e ao bairro, exigia planos detalhados.

    O programa mais importante nessa linha de interveno foi o de urba-nizao de favelas ou recuperao de reas degradadas. Foram muitas as experincias em todo o Brasil que contriburam para buscar uma normati-zao para obras que apresentam muitas particularidades. Praticamente cada caso um caso que exige projeto especfico definindo os domiclios a serem removidos (e evidentemente a soluo para estas famlias deve-ria ser providenciada com antecedncia) devido passagem das redes de gua, esgoto, drenagem e circulao viria e de pedestre. Outros motivos tambm geram necessidade de remoo em tais obras como a proteo e recuperao ambiental.

    Completando essas obras que se destinavam a levar cidade para re-as degradadas e sem urbanizao estavam os programas pelos quais os movimentos sociais haviam lutado muito como a regularizao urbans-tica e jurdica.

    Os cortios nas reas centrais tambm constituam um passivo social que exigiam ateno. Estudos haviam mostrado que a renda de aluguis em cmodos estreitos e insalubres resultava maior do que nas condies do aluguel formal (KOHARA, 1999). Alm de fazer exigncias sobre as condies de higiene e segurana, as prefeituras garantiram assistncia

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    jurdica gratuita para a populao pobre. Esse programa inspirou uma lei municipal N. 10.928/2001 que pretendia forar donos de cortios imple-mentar melhorias nos imveis.

    Essa assistncia jurdica tambm se dedicava defesa contra o despejo e a buscar novas formas de posse de imveis que se encontrassem em reas pblicas.

    Uma das iniciativas mais importantes que buscava dar mais qualidade para a vida de crianas e adolescentes nos bairros pobres foi a construo e operao de CEUs (Centros Educacionais Unificados). Tratava-se de criar um edifcio de destacada qualidade arquitetnica, bem equipado, que oferecia cursos regulares, cinema, ginstica, artes plsticas, programas teatrais e musicais, inditos nos bairros pobres. Incluiu-se no centro dos bairros perifricos um pedao de um universo discrepante em relao ao entorno precrio.

    b) Em relao produo de novos espaos na cidadeA produo de novos espaos urbanos e habitacionais visava, nessa pers-pectiva de justia social, dar alternativas habitacionais para minimizar o crescimento ou adensamento das favelas existentes ou formao de no-vas. Propiciar novas oportunidades para a insero dos pobres nas cida-des abrindo um caminho novo para a construo da cidade democrtica.

    Reforma ou construo, individual ou coletiva com assistncia tc-nica gratuita de engenheiros e arquitetos com especial ateno para a participao social desde a escolha do terreno, elaborao de projeto e construo de moradias, foi um caminho muito profcuo seguido pelos movimentos sociais e Escritrios de Assistncia Tcnica. A verba destina-da assistncia tcnica que prestava assessoria s entidades sociais or-ganizadas deveria estar includa no oramento da obra. A criao dessas ONGs ou pequenas empresas foi o caminho usado por jovens arquitetos, engenheiros e advogados que no queriam trabalhar para o mercado de luxo ou mercado formal da moradia em So Paulo e demais capitais. Toda uma gerao de arquitetos se formou (e continua se formando) com essa prtica, buscando garantir a implementao do direito arquitetura e do direito cidade.

    A construo por mutiro foi motivo de muitos debates entre arquite-tos e depois entre arquitetos e a populao organizada que, inicialmente,

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    preferia construir por mutires para dominar o processo de produo, controlar a qualidade do que era produzido e aprofundar a organizao social.

    Vrias prefeituras tambm investiram na instalao de Usinas de pr fabricao de peas de argamassa armada visando a urbanizao de no-vas reas ou complementao de reas precariamente urbanizadas. As peas eram utilizadas tambm na construo de equipamentos pblicos. Na rea de drenagem engenheiros, gelogos e ambientalistas que passa-ram a ocupar cargos nas prefeituras utilizaram novas tcnicas para urba-nizao de crregos a cu aberto (corrigindo a engenharia que durante dcadas contribuiu para o tamponamento de crregos e impermeabiliza-o em fundo de vales com avenidas asfaltadas) que tinham a finalidade paisagstica, mas acima de tudo ambiental.

    c) Em relao legislao urbanaForam elaborador e aprovados novos instrumentos legais que buscavam remeter responsabilidade do mercado responder por parcela da produ-o da moradia social ou responder pelo custo da urbanizao de reno-vaes de reas nobres.

    Foram eles: Operao Urbana visando a recuperao de reas que pu-dessem financiar a moradia social, Zonas Especiais nas quais uma das partes do empreendimento (privado) deveria ser destinada a moradia so-cial, Zonas Especiais voltadas para a urbanizao ou regularizao da mo-radia autoconstruda, impostos progressivos e novos cadastros imobili-rios visando arrecadao com justia social, novas regras para o projeto arquitetnico visando ampliar o direito arquitetura e especialmente buscava-se aplicar alguma punio ao imvel considerado ocioso, com mais razo, se estivesse servido de infraestrutura urbana. Nos projetos de urbanizao de favelas diversos estudos buscavam definir padres ur-bansticos adaptados a uma situao de ocupao sinuosa e espontnea muito diferente dos padres ortogonais modernistas, de ruas largas da cidade formal. Algumas dessas propostas integravam Planos Diretores ou legislao complementar que pretendiam reorientar o crescimento da ci-dade desigual garantindo o objetivo de nossa busca obsessiva: a funo social da propriedade, ou seja, a subordinao da propriedade ao interes-se social e o controle do Estado sobre o uso do solo.

    A inexperincia inicial daqueles que alimentavam a utopia de cons-

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    truir uma cidade mais democrtica obrigou muitos ativistas a refletir so-bre as limitaes e a consequente adaptao que deveria ser feita nas propostas.

    Os conflitos dirios vinham dos movimentos sociais que cobravam mais agilidade da parte do governo e tambm de adversrios que podiam fazer parte da Cmara Municipal, do Judicirio quase sempre conserva-dor, mas, em especial e de modo generalizado, da mdia do main stream, que atuou como partido poltico representando a elite do pas.

    Com o passar do tempo, durante as dcadas de 80 e 90, pesquisadores, professores universitrios e profissionais de diversas reas, socialmente engajados, criaram o que podemos chamar de Nova Escola de Urbanis-mo. Se antes esses agentes eram crticos do Estado e das polticas pbli-cas, a partir da conquista das novas prefeituras, e com o crescimento dos partidos de esquerda, notadamente do PT, eles foram se apropriando de parcelas do aparelho de Estado nos executivos, nos parlamentos e com menos importncia, at mesmo do judicirio. Novos programas, novas prticas, novas leis, novos projetos, novos procedimentos, sempre com participao social, permitiram o desenvolvimento tambm de quadros tcnicos e de know-how sobre como perseguir maior qualidade e justia urbana. As travas da macroeconomia estavam colocadas como obstcu-los a serem resolvidos no futuro.

    Essa dinmica poltica que inclua trs frentes- produo acadmica, movimentos sociais e prefeituras democrticas avanaram conquistan-do importantes marcos institucionais alm da eleio do Presidente da Repblica em 2002.

    Dentre eles destacam-se: a) um conjunto de leis que, a partir da Cons-tituio Federal de 1988, aporta instrumentos jurdicos voltados para a justia urbana, sendo o Estatuto da Cidade a mais importante delas; b) um conjunto de entidades, como o Ministrio das Cidades (2003) e as secretarias nacionais de habitao, mobilidade urbana, saneamento am-biental e programas urbanos, que retomava a questo urbana agora de forma democrtica; e c) consolidao de espaos dirigidos participa-o direta das lideranas sindicais, profissionais, acadmicas e populares como as Conferncias Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007) e Conse-lho Nacional das Cidades (2004).

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    4. A retomada do investimento pblico: neodesenvolvimen-tismo?

    Para garantir a posse, caso fosse eleito, Lula firmou, em 2002, um compromisso com as foras do mercado financeiro que impuseram uma limitao ao seu governo. O comeo do governo foi marcado pela afirma-o do iderio neoliberal que por outro lado estava presente nas rotinas da mquina pblica. As poucas brechas se deram na forma de gastos fo-cados na extrema pobreza, como, alis, era orientao do BIRD Banco Mundial. J em 2003 decidiu-se aplicar recursos onerosos no saneamento bsico, seguindo outra regra do receiturio do BIRD, ou seja, a de retorno dos recursos investidos (cost recovery) apesar dos protestos da equipe de profissionais ativistas que ocupavam o Ministrio das Cidades.

    Mas as rgidas regras do FMI Fundo Monetrio Internacional- no eram as nicas que impediam realizar o interesse social na execuo or-amentria. De outro lado estava o tradicional clientelismo que impunha aplicao pulverizada de recursos pelo territrio brasileiro em troca do apoio parlamentar nas votaes do Congresso. Como planejar nesse con-texto? Isso no impediu que todos os Ministrios que tinham orientao progressista ou de esquerda fossem tomados por uma febril elaborao de planos. Tratava-se de retomar o papel planejador, regulador e promo-tor do Estado.

    Com o passar do tempo, parte do iderio neoliberal foi abandonado. Isso tem incio com a entrada de Dilma Rousseff na Casa Civil e a substi-tuio do Ministro da Fazenda, Antonio Palocci por Guido Mantega.

    No h dvida de que as polticas sociais fizeram diferena na vida de milhes de brasileiros. Os principais programas sociais do governo Lula que tiveram continuidade na gesto de Dilma Rousseff foram: Bolsa Fa-mlia, Crdito Consignado, Programa Universidade para todos ProUni (bolsa de estudo em universidades privadas trocadas por impostos), Pro-grama de Fortalecimento da Agricultura Familiar- Pronaf e Programa Luz para Todos. Garantiu-se um aumento real do salrio mnimo (de cerca 55%, entre 2003 e 2011, conforme DIEESE).

    Alm desses programas o crescimento da economia e do emprego, propiciado por condies de troca internacional, trouxeram alguma pers-pectiva de esperana de dias melhores.

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    Ao invs de reforar explicaes que veem, no aumento da renda de uma grande camada, a emergncia de uma nova classe mdia, Marcio Pochmann classifica como um reforo das camadas que se encontram na base da pirmide social. Estes aumentaram sua participao relativa na renda que estava abaixo de 27% para 46,3% entre 1995 e 2009. Os classificados em condio de pobreza diminuram sua representao de 37,2% para 7,2% nesse mesmo perodo. Parte dessa populao que migrou da condio de pobreza para a base da pirmide empregou-se na construo civil (POCHMANN, 2012).

    O Ministrio das Cidades comeou por seguir a orientao do Projeto Moradia elaborado com a coordenao de Lula em 2001. A tese central do Projeto era a seguinte: ampliar o mercado residencial privado para abranger a classe mdia (considerando as mudanas necessrias para isso) para que o Estado se ocupe das camadas de baixa renda com aloca-o de subsdios.

    Uma proposta relativa aos recursos financeiros necessrios para im-pactar o dficit habitacional e outra que tratava da reforma fundiria permitiram elaborar um projeto acompanhado de oramento e crono-grama. Polticas setoriais de transporte e saneamento complementavam o quadro de propostas. Como quase 1/3 do dficit habitacional brasileiro est nas metrpoles estas foram consideradas prioridade para o Projeto Moradia.

    Para viabilizar a ampliao do mercado residencial em direo classe mdia foram propostos ao Congresso Nacional alguns projetos de lei so-bre a atividade empresarial e tomadas algumas medidas reguladoras do financiamento cujos fundos principais foram os mesmos utilizados pela significativa atividade de construo residencial havida durante os gover-nos militares (especialmente entre 1970 e 1980): SBPE- Sistema Brasileiro de Poupana e Emprstimo (um sistema de poupana privada) e o FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Servio, gerido pelo Estado em parceria com entidades de trabalhadores (um sistema de poupana compulsria que servia tambm como fundo desemprego para trabalhadores formais).

    A retomada dos investimentos comeou lentamente, freada pelas tra-vas neo liberais que proibiam gastos sociais, ainda que os recursos no fossem exatamente pblicos mas a partir de 2007 o governo federal lan-ou o programa PAC Programa de Acelerao do Crescimento e em 2009 lanou o Programa MCMV Minha Casa Minha Vida. Com o primeiro a

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    atividade de construo pesada comea a decolar e com o segundo a construo residencial que decola.

    5. Megaeventos: Copa e Olimpadas

    O Brasil foi escolhido para sediar a Copa do mundo de 2014 e as Olim-padas de 2016 (Rio de Janeiro). Depois de escolhido como emergente o pas est qualificado para sofrer o ataque dos capitais que acompanham os megaeventos. Sero acrescentados mais alguns graus na febre que acompanha o atual boom imobilirio. Seguindo a trajetria dos pases que sediam esses grandes eventos, a mquina do crescimento posta a funcionar buscando legitimar, com o urbanismo do espetculo, gastos pouco explicveis para um pas que ainda tem enorme precariedade na rea da sade, da educao, do saneamento e dos transportes coletivos.

    Muitos exemplos poderiam ser dados sobre a truculncia com que as grandes obras expulsam moradores das redondezas para viabilizar um processo de expanso mobiliria e de construo de um pedao do cen-rio urbano global.

    Boa parte dessas grandes obras resta subutilizadas aps abocanhar um significativo naco dos cofres pblicos em sua construo.

    A dinmica que acompanha os megaeventos articula, de um modo geral, os arquitetos do star system, como nomeia Otlia Arantes, legis-ladores que acertam um conjunto de regras de exceo para satisfazer as exigncias das agencias internacionais esportivas ou culturais, gover-nos de diversos nveis que investem em obras visando a visibilidade e o retorno financeiro sob a forma de apoio futura campanha eleitoral, e empresas privadas locais e internacionais. A bibliografia repete a receita dessa nova frente de acumulao de determinados capitais analisando casos de diferentes pases.

    6. O imprio do automvel. Transporte coletivo em runas.

    Aps muitos anos de ausncia de investimentos nos transportes co-letivos (de 1980 at 2009, aproximadamente), com algumas excees, a condio de mobilidade nas cidades tornou-se um dos maiores proble-mas sociais e urbanos. importante dar alguns dados para qualificar esse quadro de inacreditvel irracionalidade para a mobilidade social, mas de efetiva racionalidade para certos capitais.

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    O tempo mdio das viagens em So Paulo era de 2:42 h. Para 1/3 da populao esse tempo de mais de 3 hs. Para 1/5 so mais de 4 horas, ou seja, uma parte da vida vivida nos transportes, seja ele um carro de luxo ou ento o que mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana, num nibus ou trem superlotado.

    Estresse, transtornos de ansiedade, depresso, so doenas que aco-metem 29,6% da populao de So Paulo segundo pesquisa do Ncleo de Epidemiologia Psiquitrica da USP.

    Dentre cidades de 24 pases pesquisados, So Paulo a cidade que apresenta o maior comprometimento da populao e parte importante dessas mazelas atribuda ao trfego de veculos.

    Os congestionamentos de trfego nessa cidade, onde circulam 5,2 mi-lhes de automveis, chegam a atingir 295 km de vias.

    A velocidade media dos automveis em So Paulo, entre 17:00 h e 20:00 h em junho de 2012 foi de 7,6 km/h, ou seja, quase a velocidade de caminhada a p. Durante a manh a velocidade passa a ser de 20,6 km/h, ou seja, de uma bicicleta.

    Todas as cidades de porte mdio e grande esto apresentando conges-tionamentos devido avalanche de automveis que entram nelas a cada dia. O consumo incentivado pelos subsdios dados pelo governo Federal e alguns governos estaduais para a compra de automveis.

    Em 2001 o nmero de automveis em 12 metrpoles brasileiras era de 11,5 milhes e em 2011 era de 20,5 milhes. Nesse mesmo perodo e nessas mesmas cidades o nmero de motos passou de 4,5 milhes para 18,3 milhes. Em diversas metrpoles o nmero de automveis dobrou nesse perodo.

    O governo brasileiro deixou de recolher impostos no valor de R$ 26 bi-lhes desde o final de 2008 (nesse mesmo perodo foram criados 27.753 empregos) e US$ 14 bilhes (quase o mesmo montante dos subsdios) foram enviados ao exterior, para as matrizes das empresas que esto no Brasil aliviando a crise que estas estavam vivendo na Europa e Estados Unidos.

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    Sabemos todos que, em todo mundo, mesmo cidades que contam com boa rede de transporte apresentam congestionamentos de trfego devido ao conforto e ao fetiche representado pelo automvel.

    Mas preciso conhecer os impactos econmicos, ambientais e na sa-de que esse modo de transporte implica nas cidades brasileiras para com-preender e passar perplexidade inevitvel.

    Comparado com os transportes coletivos, os automveis so respon-sveis por 83% dos acidentes e 76% da poluio.

    Segundo o Ministrio da Sade, nos ltimos 5 anos morreram em aci-dentes de trnsito 110 pessoas por dia e aproximadamente 1.000 ficaram feridas. Quase o dobro do nmero de pessoas mortas em acidentes de trnsito fica com algum grau de deficincia. Em So Paulo, no ano de 2011 morreram em acidentes de trnsito 1365 pessoas sendo que 45,2% (617) foram atropeladas o que revela a insegurana de pedestres. Desses acidentes ainda, 512 vitimaram motociclistas. A moto foi a forma encon-trada para driblar os congestionamentos e fazer entregas rapidamente. Raramente esses chamados motoboys respeitam regras de trnsito pois a rapidez sua vantagem competitiva.

    A tabela abaixo, retirada do Relatrio Geral de Mobilidade Urbana 2010 da ANTP Associao Nacional de Transportes Pblicos traz dados sobre o modo das viagens nas 438 cidades brasileiras com mais de 60.000 habitantes. O dado que mais chama ateno o nmero de viagens a p, ou seja, pelo menos em um tero dos moradores das cidades com mais de 1 milho de habitantes. Esse dado no indica que as cidades atingiram o equilbrio de aproximar casa, trabalho, estudo e demais equipamen-tos e servios urbanos que demandam viagens dirias. Ao contrrio, nas periferias metropolitanas raramente h bons equipamentos de sade, abastecimento, educao, cultura, esporte, etc. E como o transporte ruim e caro os moradores, em especial os jovens, vivem o destino do exlio na periferia, como cunhou Milton Santos (SANTOS, 1990). Nunca demais lembrar que pobreza e imobilidade receita para a violncia.

    Em que pese a ainda baixa participao dos automveis no nmero de viagens e o estmulo dado ao seu consumo, falta lembrar que as obras virias ganham prioridade sobre, por exemplo, as obras de saneamento, nos oramentos municipais. De fato elas tm mais visibilidade e prestgio acabando por influenciar os votos nas eleies.

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    O impacto da poluio do ar promovida por tal condio de mobili-dade sobre a sade vem sendo estudado pelo professor da USP, Paulo Saldiva e sua equipe.

    Vamos reproduzir suas prprias palavras:De acordo com a OMS, os elevados nveis de poluio na cidade de

    So Paulo so responsveis pela reduo da expectativa de vida em cerca de um ano e meio. Os trs motivos que encabeam a lista so: cncer de pulmo e vias areas superiores; infarto agudo do miocrdio e arritmias; e bronquite crnica e asma. Estima-se que a cada 10 microgramas de poluio retiradas do ar h um aumento de oito meses na expectativa de vida ().

    Aproximadamente 12% das internaes respiratrias em So Paulo so atribuveis poluio do ar. Um em cada dez infartos do miocrdio so o produto da associao entre trfego e poluio. Os nveis atuais de poluio do ar respondem por 4 mil mortes prematuras ao ano na cidade de So Paulo. Trata-se, portanto, de um tema de sade pblica.

    Poderamos citar outros impactos negativos que a mobilidade basea-da no automvel acarreta para a qualidade de vida em qualquer cidade como impermeabilizao do solo, espraiamento da urbanizao ou ou-tras mazelas que ocuparam longas horas em seminrios acadmicos ou profissionais. Muito papel com anlises crticas e muitas propostas foram elaboradas para melhorar esse quadro, mas essa prioridade indiscutvel que dada ao automvel na matriz urbana no est afirmada em ne-nhum documento, discurso ou plano, no Brasil. Ao contrrio, todos os anos as autoridades comemoram o Dia Mundial sem Carro (22 de se-tembro) com a repetidas nfases sobre a importncia da bicicleta e da caminhada para a sade.

    7. Concluso: rumo tragdia urbana. Crescimentoinsustentvel.

    Numa das vezes que retornou ao Brasil vindo do exlio imposto pela ditadura militar, Celso Furtado encontrou, no incio dos anos 80, um pas que estava sob o impacto da crise fiscal.

    A desigualdade se aprofundara apesar do alto crescimento econmico das dcadas anteriores agravando a pesada herana histrica. Com a luci-

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    dez de um brilhante analista e a generosidade de quem se comprometia com a ao, julgou necessria uma atitude de preveno em relao ao cenrio que via se desenrolar sua frente. Destacou que a subordinao aos bancos e ao FMI nos conduziria recesso e ao desemprego espe-cialmente no que se referia ao tratamento da Dvida Externa (FURTADO, 1983). Infelizmente sua premonio se confirmou e o Brasil viveu a d-cada perdida (ou dcadas perdidas) que acarretou muito sofrimento na vida de uma parcela da populao do pas. Sua convico, muito repetida, era de que o pas deveria fazer reformas estruturais, especialmente com a distribuio dos ativos, terra (reforma agrria) e educao.

    Acompanhando a histria das cidades brasileiras por 40 anos e conhe-cendo as foras que orientam sua forte dinmica de crescimento, atual-mente, poderamos repetir Celso Furtado.

    Sendo mais especficos, j que tratamos de cidades, podemos afirmar que sem reforma urbana (leia-se reforma fundiria e imobiliria) no ha-ver desenvolvimento mas apenas crescimento com reproduo da forte desigualdade social e profunda predao ambiental. Distribuio de ren-da importante, mas no garante a distribuio de cidade, ou seja, o direito cidade. O que est em jogo a apropriao das rendas de loca-lizao e os pobres, quando prximos, deprimem o valor dos imveis por isso so empurrados, em grande parte, para fora das reas urbanizadas consolidadas. O que est em jogo quem manda nas cidades.

    Distribuio de renda e diminuio de impostos sobre determinados produtos como o automvel pode incentivar o consumo, garantir empre-gos, mas no garantir cidades melhores e mais igualitrias. A ampliao da propriedade do automvel para todos no vai levar sonhada liberda-de individual, mas atravancar nossa mobilidade (LUDD, 2004). Os pobres com automveis continuaro na ilegalidade, sem o direito cidade. Os jovens nas favelas tero computadores, MP3 ou qualquer gadget se-melhante, mas no tero casas dignas, saudveis e seguras. Como lem-bra Francisco de Oliveira, na globalizao, o informal ao mesmo tempo, trabalhador e mercado de consumo para as transnacionais (OLIVEIRA, 2003).

    Temos leis festejadas no mundo todo, temos Planos Diretores em to-das as cidades com mais de 20.000 habitantes com instrumentos jurdi-cos inovadores, temos conhecimento tcnico, temos experincia acumu-

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    lada, mas nossas cidades esto piorando A lgica dominante da atual mquina de crescimento que insufla nossas cidades no , como sa-bemos, a da racionalidade social ou ambiental, mas sim formada pelos interesses dominantes que lideram os demais: do capital imobilirio, das empreiteiras de construo pesada e das indstrias automobilsticas em simbiose com o financiamento de campanhas eleitorais.

    Durante muitos anos trabalhamos na elaborao de propostas de pol-ticas pblicas para as cidades sem deixar de conhecer as limitaes dadas pelo estgio do capitalismo contemporneo na periferia latino-americana ou no resto do mundo.

    Tratava-se apenas de minimizar desigualdades por meio de reformas sustentadas por ampla movimentao social e sustentao partidria. Re-conhecer que depois de muitas conquistas institucionais nossas cidades esto piorando e que fomos atropelados pela voracidade do boom imo-bilirio, em sua verso perifrica, difcil, mas necessrio.

    Durante o V Frum Urbano Mundial FUM (Rio de Janeiro, maro de 2010), Peter Marcuse lembrou, com sua voz calma e pausada, que nem tudo que fazemos est subordinado ao mercado. H muito de trabalho voluntrio ou de ao livre, espontnea, quando cuidamos das crianas, ou dos mais velhos, quando nos encontramos com os amigos, quando praticamos esporte, quando fazemos amor

    Sem dvida, Peter estava querendo quebrar o clima de desesperan-a numa reunio que pretendia fazer um balano do impacto da poltica neoliberal nas cidades e nas sociedades mundiais entre o final do sculo XX e comeo do sculo XXI. A concluso sobre a ampliao do domnio do fetichismo da mercadoria e da derrota das ideologias de esquerda, ou mesmo social-democratas, parecia inevitvel, mas a poesia cobrou o lugar da esperana.

    A considerao aos mais jovens exige esforos em duas direes: a) que sejam informados da experincia que vivemos em perseguio uto-pia da cidade mais justa num determinado contexto histrico e geogrfico e b) que busquemos uma pista que nos conduza sada do subterrneo a que nossas cidades foram confinadas.

    Para garantir uma metrpole mais democrtica, mais solidria e mais sustentvel no Brasil, preciso levar em considerao a centralidade da

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    questo da terra urbana e garantir, entre muitas outras iniciativas previs-tas nas plataformas da Reforma Urbana: a) a aplicao do instrumento legal da funo social da propriedade previsto no Estatuto da Cidade b) o controle pblico sobre a propriedade e o uso da terra e dos imveis (conforme competncia legal constitucional), e c) tomar os transportes coletivos e transporte no motorizado como prioridade da matriz de mo-bilidade urbana.

    Trata-se de uma reforma possvel que depende da correlao de foras pois o quadro jurdico/institucional e a experincia tcnico/administrati-va j existem.

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    ii. abanDono E aRREcaDao DE imVEis URbanos na PERsPEctiVa Da Poltica URbana1

    Fernando G. Bruno Filho2

    RESUMO: O instituto do abandono, j presente na legislao civil brasi-leira h dcadas enquanto forma de extino da propriedade, passou por mudanas substanciais quando do advento da Lei 10.406/2002, facilitan-do ao intrprete a identificao de seus pressupostos no caso concreto. A par disso, os novos sentidos que vm adquirindo o princpio da funo social da propriedade, especialmente daquela imvel urbana, podem en-sejar a que polticas pblicas no mbito local considerem o uso do institu-to na implementao de seus objetivos.

    PALAVRAS-CHAVE: Abandono. Direito Civil. Direito urbanstico.

    1. Introduo

    O direito de propriedade, em especial quanto aos bens imveis, tem passado por mudanas estruturais nas ultimas dcadas, tanto no que tange sua normatizao quanto, principalmente, sua aplicabilidade nos quadros das polticas pblicas. Com efeito, tradicionalmente enca-rado como relao entre particulares (ou proprietrios reciprocamen-te considerados), o que se constata uma publicizao desse direito, na perspectiva dos impactos econmicos e sociais que seu uso nocivo ou abusivo pode causar em sistemas complexos como, por exemplo, as grandes cidades brasileiras. No momento oportuno (item 3, infra), po-deremos comentar rapidamente alguns dos aspectos relevantes dessa nova dinmica; entretanto fica patente a qualquer observador uma cer-ta nuana poltica neste processo. Ou seja, h mais agentes (individuais, como pesquisadores, cientistas sociais e gestores pblicos, ou coletivos como universidades, ONGs e instituies privadas ou rgos igualmente

    1 Trabalho publicado originalmente na Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanstico, v. 42, jun//jul. de 2012. Aqui, porm, o mesmo passou por reviso e atualizao, inclusive quanto s concluses.2 Mestre (PUCSP) e doutor (USP) em Direito do Estado, professor da Faculdade de Direito da Universidade So Judas (SP), e Diretor do Departamento de Controle da Funo Social da Pro-priedade (Prefeitura de So Paulo). Foi titular do Conselho das Cidades, segmento poder pblico municipal (2005-2008).

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    pblicos) se debruando criticamente sobre a configurao do direito de propriedade, o que, por si s induz formao de um caldo de cultura que impele a novos olhares e possibilidades renovadas para as questes jurdicas a ele relacionadas. Guardadas as devidas propores, um fen-meno semelhante sociedade aberta dos intrpretes da Constituio, conforme preconizada por Peter Hberle, onde tcnica e realidade social se somam na tarefa de interpretao do direito.

    Este o caso do instituto do abandono, ponto central de nossos estu-dos neste momento.

    Com efeito, tal figura est presente no direito privado brasileiro desde h muito, como decorrncia lgica do conceito de posse (exteriorizao por excelncia do direito de propriedade) entre ns adotado, na esteira da teoria objetiva defendida por Rudolf von Ihering e que serviu de linha mestra ao Cdigo de 1916. Nesta linha de pensamento, nas palavras de Carlos Roberto Gonalves, a posse

    ...se revela na maneira como o proprietrio age em face da coisa, tendo em vista sua funo econmica. Tem posse quem se comporta como dono, e nesse comportamento j est includo o animus. O elemento psquico no se situa na inteno do dono, mas to-somente na vontade de agir como habitualmente o faz o proprietrio (affectio tenendi), independentemente de querer ser dono (animus domini).A conduta de dono pode ser analisada objetivamente, sem a necessidade de pesquisar-se a inteno do agente.(itlico no original).3

    Em suma, as teorias sobre a posse (e a propriedade) sempre exigiram que se considerasse a hiptese de o dono no mais desejar s-lo, dadas variadas circunstncias. Normatizar o abandono, como sempre o fez o direito civil, uma necessidade do sistema, mais do que uma opo. Sua eficcia social, ou aplicabilidade concreta, entretanto, sempre foi pfia, qui incua. Nossa pesquisa mostrou que o interesse pelo abandono se resumiu sempre doutrina, e ainda assim de maneira superficial.

    Mais recentemente, entretanto, e em certos crculos polticos e cien-tficos, o abandono passou a ser objeto de interesse, e por razes mais prticas. Com efeito, tem-se buscado testar sua utilidade no mbito das polticas pblicas municipais, quer por questes estticas e de segurana

    3 Direito Civil brasileiro, p. 32.

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    (combate degradao urbana), quer como forma de aquisio de im-veis para implantao de equipamentos pblicos ou comunitrios. Para esse revival colaboraram tanto (i) a manuteno do instituto no atual c-digo civil (Lei 10.246/02), acrescido de novos elementos a princpio con-cebidos para sua maior aplicabilidade, como veremos adiante, quanto (ii) o amadurecimento do conceito de funo social da propriedade imvel urbana, para alm das limitaes urbansticas e especialmente no com-bate ao no-uso com finalidades especulativas.

    No deixa de ser irnico, em certa medida, imaginar que o direito pri-vado, ramo do qual a poltica urbana tanto se afastou nos ltimos anos, esteja sendo agora novamente considerado elemento para seu planeja-mento e execuo.

    De qualquer forma, cabe-nos delinear ainda que brevemente os tra-os fundamentais do instituto do abandono, na perspectiva dinmica de transformao do conceito de propriedade imvel urbana, a fim de verificar a possibilidade de sua apropriao pelas polticas pblicas, es-pecialmente aquelas desenvolvidas pelos municpios. E, neste processo, verificar com cuidado os procedimentos a serem adotados para a arre-cadao destes bens pela municipalidade, aps sua caracterizao como vagos (sem dono).

    2. Abandono no direito civil

    I) Como j comentado anteriormente, o instituto do abandono no novidade no direito civil brasileiro. Ao contrrio, j estava presente no Cdigo Civil de 1916, elencado como forma extintiva da propriedade, e comentado, sempre en passant, pela grande maioria dos doutrinadores. Assim, dispunha aquele diploma legal, hoje revogado:

    Art. 589. Alm das causas de extino consideradas neste Cdigo, tambm se perde a propriedade imvel:I - pela alienao;II - pela renncia;III - pelo abandono;IV - pelo perecimento do imvel. 1o Nos dois primeiros casos deste artigo, os efeitos da perda do domnio sero subordinados a transcrio do ttulo transmissivo, ou do ato renunciativo, no registro do lugar do imvel.

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    2o O imvel abandonado arrecadar-se- como bem vago e passar ao dom-nio do Estado, do Territrio ou do Distrito Federal se se achar nas respectivas circunscries; a)10 (dez) anos depois, quando se tratar de imvel localizado em zona urbana;b) 3 (trs) anos depois, quando se tratar de imvel localizado em zona rural.

    A redao do pargrafo 2 bem posterior promulgao do Cdigo, dada que fora pela Lei 6969/81, a qual na verdade trata da implemen-tao da reforma agrria. A redao antiga, porm, irrelevante para a anlise que ora desenvolvemos.

    II) De plano, cabe separar renncia de abandono. No obstante outras diferenas intrnsecas a cada um deles, basta observar que, para a primeira, exige-se manifestao expressa, alm de formalidades estipu-ladas pelo 1 do dispositivo transcrito. J o abandono, por outro lado, deve ser inferido da conduta do proprietrio.

    Assim, longe de ser apenas uma descrio devida ao rigor cientfico, justamente na determinao dos fatos e indcios que levem a concluir, categoricamente, a inteno do abandono (na doutrina conhecida como derrelio, ou ainda animus derelinquendi) que se coloca uma ques-to central: quais os atos, ou omisses, do proprietrio que podem ser erigidos como indicadores seguros do estado de abandono do imvel? O simples no uso, sem edificao ou afetao a qualquer atividade, como agricultura, moradia, indstria ou comrcio? A ausncia de limpeza e manuteno adequada, ou o estado de runa? Declaraes feitas pelo proprietrio, mesmo sem as formalidades da renncia?

    III) A doutrina tradicional, e anterior Lei 10.246, se mostrava extre-mamente rigorosa quanto tipificao do abandono. Washington de Bar-ros Monteiro, por exemplo4, chega mesmo a afirmar que este no se pre-sume, o que nos faz perguntar o que restaria como indicador da inteno do proprietrio, sem que se ingresse na renncia, a qual exige elementos formais, como comentamos. O eminente autor, na mesma linha adota-da posteriormente por Silvio Venosa5, tambm comenta que o simples (sic) no-uso e a negligncia no trato da propriedade tambm no so suficientes para caracterizar o abandono. Por seu turno, Caio Mrio da Silva Pereira ainda mais peremptrio quando afirma que

    4 Curso..., p.605 Direito civil, p. 166.

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    Uma pessoa pode na verdade deixar de exercer qualquer ato em relao coi-sa, sem perda do domnio. Temos dito e repetido que o no uso uma forma de sua utilizao. A casa pode permanecer fechada, o terreno inculto, e nem por isso o dono deixa de s-lo.Para que se d o abandono do imvel, como causa da perda do direito, mister se faa acompanhar da inteno abdicativa.6

    IV) Denota-se facilmente, portanto, uma proteo exacerbada ao di-reito de propriedade. Na verdade, muitos doutrinadores procuram trazer baila alguns exemplos de situaes que levariam o proprietrio a decidir pelo abandono (por exemplo um excesso de nus financeiros ou mesmo urbansticos), o que marginal em relao ao verdadeiro problema: bus-car sinais externos de uma atitude restrita ndole, ou situao psicol-gica do proprietrio (vontade de abandonar).

    Entretanto, a par de concepes polticas de propriedade absoluta, herdadas do liberalismo e que comentaremos mais adiante, esse rigor em admitir (na verdade em no admitir) que o proprietrio possa, efeti-vamente, desejar romper sua ligao com a propriedade se afigura igual-mente como uma decorrncia lgica do sistema de direito privado, onde no se aceita7 propriedade sem dono, e o fim dessa relao semprerecebida, por este mesmo sistema, como uma exceo ou uma atitude extremada.

    V) To excepcional o abandono, que dele decorre obrigatoriamente a nomeao de um pretenso novo dono. E, de fato, como se depreende do 2 supra transcrito, este seria a administrao pblica. Nesta relao obrigatria, Pontes de Miranda8 foi quem observou, de maneira original, que a caracterizao do abandono se daria apenas e to-somente aps a arrecadao pelo poder pblico ( poca apenas os Estados); em outras palavras, antes ter-se-ia apenas indcios da disposio do proprietrio em romper com o liame que o unia propriedade. Tais indcios, entretanto, seriam suficientes para proceder-se arrecadao, gerando um direito expectativo por parte da administrao, muito longe, portanto de co-locar o abandono como forma de aquisio da propriedade. Ressalta o

    6 Instituies.. p. 1447 Vide as anotaes introdutrias, acerca da influncia da teoria objetiva propugnada por Ihering. Entretanto, nota-se que os mesmos autores no so to enfticos quando se trata do abandono de bens mveis. Ao contrrio, nesta situaes sempre se colocam enunciados como o uso normal ou as convenes sociais para se afirmar que sim, possvel presumir, com razovel segurana, a inteno do proprietrio de despojar-se dessa condio.8 Tratado..., p. 131-138.

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    autor, entretanto, que esta expectativa suficiente para erigir o Estado condio de possuidor, mesmo que temporrio, com todas as prerrogati-vas da oriundas. Com efeito, anota que

    Se, ao ser arrecadado, no imvel se encontra possuidor prprio, ou impr-prio, de ser-lhe respeitada a posse, segundo os princpios; aps a arrecadao, qualquer tomada de posse contra o direito, porque a arrecadao significou tomada de posse pelo Estado, posse imediata no-prpria.9

    Mais adiante, voltaremos a debater no s as premissas para a arre-cadao como, sobretudo, as vicissitudes que podem se abater sobre o imvel arrecadado, motivadas pelo proprietrio ou por terceiros.

    2.1. As mudanas normativas: a redao do art. 1276 da Lei 10.246/02.

    VI) Na vigncia do revogado Cdigo Civil de 1916, o instituto do aban-dono quedou-se totalmente inaplicvel. Tal se deve, como observamos, a variados fatores somados, quais sejam (i) a lgica da propriedade abso-luta, (ii) a dificuldade estrutural de aferir o nimo de abandono por parte do proprietrio e tambm (iii) o desinteresse da administrao pblica na arrecadao do bem, posto o longo prazo necessrio assuno do domnio em seu benefcio.

    Este no um fenmeno assim to raro. So incontveis os dispositi-vos legais, alguns de relevncia evidente, que permaneceram vrios anos no limbo da aplicabilidade e da eficcia social. No campo da poltica urba-na, podemos lembrar, dentre outros, das regras que estabelecem limites interferncia em APPs (reas de proteo permanente, estatudas pela Lei 4771/65 e hoje pela Lei 12651/2012) margem dos crregos, solene-mente ignoradas durante pelo menos duas dcadas pela administrao pblica quando do licenciamento de obras ou atividades.

    VII) Com a promulgao da Lei 10.246/2002, substituindo o antigo C-digo Civil, o abandono permaneceu, porm revigorado com dispositivos que, a priori, poderiam torn-lo mais aplicvel:

    Art. 1.275. Alm das causas consideradas neste Cdigo, perde-se a propriedade:I - por alienao;

    9 Idem, p. 135.

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    II - pela renncia;III - por abandono;IV - por perecimento da coisa;V - por desapropriao.Pargrafo nico. Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da propriedade imvel sero subordinados ao registro do ttulo transmissivo ou do ato renuncia-tivo no Registro de Imveis.Art. 1.276. O imvel urbano que o proprietrio abandonar, com a inteno de no mais o conservar em seu patrimnio, e que se no encontrar na posse de outrem, poder ser arrecadado, como bem vago, e passar, trs anos depois, propriedade do Municpio ou do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscries. 1o O imvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstncias, poder ser arrecadado, como bem vago, e passar, trs anos depois, proprieda-de da Unio, onde quer que ele se localize. 2o Presumir-se- de modo absoluto a inteno a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietrio de satisfazer os nus fiscais.

    Destacamos, mediante grifos na transcrio acima, os pontos de inovao trazidos pelo novo marco legal. Num primeiro olhar, fica fcil conceber a hiptese que tais alteraes buscariam tornar o instituto do abandono mais claro e direcionado, mediante;

    a) o tratamento privilegiado ao imvel urbano, enquanto regra da ocorrncia do abandono;

    b) a afirmao do nimo do proprietrio em no mais conservar o im-vel em seu patrimnio, afastando portanto situaes transitrias ou epi-sdicas;

    c) a proteo posse exercida por terceiros, de qualquer modalidade, como j aventado por Pontes de Miranda na lio supra comentada;

    d) a diminuio do prazo para assuno do domnio pelo poder pbli-co, desta feita o Municpio, de dez para meros trs anos; mas, acima de tudo,

    e) A insero de uma regra de presuno absoluta (conforme 2), ao menos no sentido de permitir com relativa segurana o incio do processo de arrecadao.

    VIII) As mudanas trazidas no foram suficientes para aplacar as di-ficuldades na investigao da inteno de abandono. Os autores que atualizaram suas obras aps o advento no novo Cdigo Civil insistem em desconsiderar o no-uso como elemento de caracterizao do abandono,

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    bem como ainda afastam a presuno pela simples negligncia do pro-prietrio10. Marco Aurlio S. Viana, quando muito, admite essa possibili-dade quando afirma que

    difcil precisar a inteno quando se trata de imvel. O simples fato de uma pessoa fechar sua casa no implica em abandono. Somente com a concorrncia de atos inequvocos que indiquem a inteno de no continuar como dono que podemos falar em abandono.11

    No se pode esquecer ainda da diminuio do prazo para o direito expectativo comentado por Pontes de Miranda, agora de trs anos. Com efeito, a regra anterior, de dez anos, se afigurava como um verdadeiro limbo jurdico, a desencorajar qualquer ao mais contundente por parte do poder pblico.

    2.2. A presuno absoluta do 2

    IX) Entretanto, h a questo do 2.No resta dvida de que esta ultima condio releva em importncia, vez que, como anotado acima, sempre houve um primeiro e decisivo obst-culo a superar: a inferncia, no campo ftico, do nimo de abandonar, o qual, por sua vez, ensejaria a arrecadao. primeira vista, portan-to, o dispositivo destacado seria um indicador mais objetivo da inteno do proprietrio, dando maior segurana jurdica propositura da arre-cadao, pelo menos. Determinar a ocorrncia do abandono depende-ria doravante de dois fatores, que se somam, quais sejam, (i) a cessao dos atos de posse, o que no constava na norma do Cdigo revogado e deveria ser tambm extraido pelo intrprete, de maneira preliminar, e (ii) a presuno absoluta em si, representada pelo inadimplemento fiscal como elemento objetivo.

    X) Verificar a cessao dos atos de posse est muito mais ao alcance do intrprete do que perquirir a inteno do abandono pelo propriet-rio. Lembremo-nos de que o nosso direito civil abraa a chamada teoria objetiva, a qual encara a posse como a exteriorizao ou visibilidade da propriedade, no contexto de seu aproveitamento ou destinao scio-econmica. Maria Helena Diniz12 resgata certos exemplos criados pelo

    10 Alm dos citados anteriormente, Carlos Roberto Gonalves (Direito civil..., p.307).11 Comentrios..., p. 25312 Curso..., p. 37

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    prprio Ihering: se encontrarmos num bosque um feixe de lenha devida-mente amarrado, est evidente, devido condio da prpria coisa, que ele est sob a posse de algum e que no podemos nos apossar dele sem cometermos um furto; diferentemente ocorre, se nos depararmos com um mao de cigarros tombado, que denuncia abandono ou perda por que no ali seu lugar adequado, onde cumpre sua destinao econmi-ca. Ou ainda, agora nas palavras da prpria autora

    Caracteriza-se a posse como a exteriorizao da conduta de quem procede como normalmente age o dono. O possuidor , portanto, o que tem o pleno exerccio de fato dos poderes constitutivos de propriedade ou somente de alguns deles, como no caso dos direitos reais sobre coisa alheia, como o usufruto, a servido, etc.13

    Na mesma linha, e de forma ainda mais detalhada, anota Silvio Venosa

    Se a sociedade no pode prescindir da aparncia para sua sobrevivncia, o di-reito no pode se furtar de proteger estados de aparncia, sob determinadas condies, porque se busca, em sntese, a adequao social. Sempre que o es-tado de aparncia for juridicamente relevante, existiro normas ou princpios gerais de direito a resguard-lo. No , no entanto, a aparncia superficial que deve ser protegida, mas aquela exteriorizada com relevncia social e conseqen-temente jurdica.(...) Desse modo, a doutrina tradicional enuncia ser a posse relao de fato entre a pessoa e a coisa. A ns parece mais acertado afirmar que a posse trata de estado de aparncia juridicamente relevante, ou seja, estado de fato protegido pelo direito.14

    XI) Em suma, se o imvel no ocupado mas igualmente o proprie-trio a ele no deu qualquer outra destinao (locao, comodato, etc.) relevante, e da mesma forma no promove a manuteno que se espe-ra de um dono que deseja, minimamente, a integridade do bem, pode-se ao menos concluir pela existncia de uma fundada suspeita quanto ocorrncia do abandono. Neste contexto, os atos de posse, comumente aceitos pelo senso comum, deixaram de ocorrer em carter permanen-te,e a partir do ultimo deles pode-se somar ao nosso objeto de anlise (a conduta do proprietrio) uma presuno absoluta (o inadimplemento fiscal), que ser adiante comentada.

    13 Idem, p. 39.14 Direito civil... 7 edio, p. 25-27.

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    XII) De fato, o que maior interesse tem causado entre pesquisadores foi a estipulao de uma regra de presuno absoluta para, note-se bem, a inteno de abandonar o imvel, aplicvel aps a cessao dos atos de posse, estes comentados acima. A operar tal presuno, estaria o fato do proprietrio (ou algum em seu nome) deixar de satisfazer os nus fiscais incidentes sobre o imvel.

    Os nus fiscais so representados pelas obrigaes tributrias que tm o proprietrio como sujeito passivo. Portanto, se trata de adimplir tanto o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) quanto as taxas (gua ou limpeza) e eventuais contribuies de melhoria lanadas. No obstante, a presuno no se opera na situao em que o lanamento ou o crdito tributrio esto sendo discutidos, por iniciativa do proprietrio, na esfera administrativa ou judiciria, mesmo porque, nesta situao, ele ainda se porta como dono, exercendo atitudes que se espera de quem pretende continuar na posse.

    XIII) As presunes so tema relacionados prova, no mbito da teoria geral do processo. Com efeito, constituem silogismos que se desenvol-vem na atividade do intrprete da norma jurdica, no sentido de atribuir a ocorrncia de um fato a partir de indcios, ou seja, circunstncias que conduzem convico de que este ocorreu, ao contrrio das chamadas provas diretas (testemunhas, documentos, etc.), onde o fato descrito em sua integridade.

    Por vezes, o legislador pode se antecipar ao intrprete e estabelecer situaes de presuno legal, construindo ele prprio tal silogismo e vinculando a atividade do intrprete, especialmente do juiz. Em suma, as presunes legais dispensam do nus da prova aqueles que dela se aproveitam. Tais presunes, por sua vez, podem ser condicionais, mistas (ambas admitindo prova em contrrio, respectivamente de maneira am-pla ou restrita) e absolutas, quando ento, nas palavras de Moacir Amaral dos Santos15, por ela o juiz se conforma quanto verdade do fato presu-mido, mesmo que se convena do contrrio.

    XIV) O enunciado do 2 no deixou de causar comoo, tanto entre aqueles que vislumbraram a um abertura para a aplicabilidade efetiva do instituto, inclusive como forma de aquisio de bens por parte do po-

    15 Primeiras linhas... p. 510

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    der pblico, quanto daqueles que enxergaram um potencial uso abusivo, ou forma de exao fiscal para alm do aceitvel em face dos princpios constitucionais pertinentes16.

    Razo no assiste a nenhuma das duas correntes, haja vista que o ina-dimplemento fiscal (repita-se, de impostos, taxas e contribuies relacio-nados ao bem) e a presuno absoluta que dele decorre so subseqen-tes a uma outra condio: a constatao de que no pratica o proprietrio atos que exteriorizem sua posse. Sem que esta ocorra, aquela no pode ser alegada.

    2.3. O abandono em proveito do proprietrio (ou de outro particular).

    XV) Na introduo, j anotvamos o desinteresse e mesmo a ineficcia social do instituto do abandono, o que poderia dar a impresso de que os tribunais dele no tiveram que tratar. Em raras ocasies, entretanto, isso efetivamente ocorreu, e com a presena de um fator digno de nota: a alegao de que no os atos de posse no mais ocorriam partindo do pro-prietrio ou do ocupante do imvel, de forma incidental, a fim de atender pretenses mais mediatas de uns ou de outros.

    XVI) Ento, podemos nos deparar com a alegao do abandono como (i) argumento do ru em uma execuo fiscal motivada pela inadimpln-cia de tributos sobre a propriedade imvel urbana17, ou (ii) ainda pelo ru, para se eximir de obrigaes outras, como manuteno ou limpeza18, e por fim (iii) forma de deslegitimar o autor em ao reivindicatria ou possessria, quando da ocupao por terceiros19. evidncia, em tais si-

    16 Maria Helena Diniz (Curso.. p. 182) faz referncia ao Enunciado 243 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Justia Federal em Janeiro de 2003, o qual explicita que o uso da presuno tratada no pode contrariar a proibio de confisco, estampada no artigo 150, IV, da Constituio Federal. Consideramos essa preocupao exagerada, pois h um momento anterior (atos de posse) e um outro, posterior (eventual arrependimento por parte do proprietrio, no decorrer da ao de arrecadao) suficientes para elidir esta condio como nica a caracterizar o abandono.17 TJSP, Ac. 2013.0000308808, Rel. Des. Nuncio Theophilo Neto, j. 23/05/2013, onde o aban-dono no foi reconhecido.18 TJSP, Ac. 2012.0000100985, Rel. Des. Torres de Carvalho, j. 01/03/2012, aqui com acolhi-mento da ocorrncia do abandono, e Ac. 2012.0000609842, Rel. Des. Ruy Alberto Leme Carvalhei-ro, j. 08/11/2012.19 TJSP, Ac. 02432651, Rel. Des. Joo Carlos Garcia, j.23/06/2009, Ac. 20130000726020, Rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, j. 11/11/2013, e Ac. 2013000029763, Rel. Des. Sandra Galhar-do Esteves, j. 22/05/2013, em todos com acatamento da incidncia do abandono.

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    tuaes no se debate de forma aprofundada a arrecadao, mas sim- o que no deixa de ser instrutivo- as condutas do proprietrio que levaram ao abandono.

    3. Abandono e poltica urbana: as mudanas no conceito de funo social da propriedade imvel urbana.

    XVII) s mudanas havida nas regras pertinentes ao abandono, soma-se uma outra, de carter principiolgico, porm to ou mais relevante a nosso estudo: a posio adquirida pela propriedade imvel urbana nas grandes cidades brasileiras e um novo conceito de funo social.

    Com efeito, fica fcil perceber, pelas manifestaes dos autores acima comentados, a proeminncia do sentido de propriedade absoluta, que grassou ao longo de todo sculo dezenove e na maior parte do sculo vinte na poltica, na cultura e no direito. Ou seja, a dificuldade em se aceitar critrios objetivos para a caracterizao do abandono guarda rela-o estreita com uma viso histrica do direito de propriedade; tal viso, por sua vez, passou (e ainda vem passando) por mudanas impulsiona-das pelo novo contexto social, de graves problemas urbanos a exigirem igualmente uma nova postura por parte do Estado, na forma de polticas pblicas amplas e permanentes. A herana privatista, entretanto, ainda repercute fortemente no pensamento e na prtica institucional.

    XVIII) A proteo ao exerccio do direito de propriedade foi recepcio-nada sob aquele perfil, individual e privatista, pelo ordenamento cons-titucional brasileiro de 1891 e pelo Cdigo Civil revogado. No entanto, acompanhando a evoluo do Estado liberal para o Estado social, pro-gressivamente os ordenamentos dos diversos pases (em sede constitu-cional ou no) acabaram relativizando esse direito. No caso brasileiro, o marco deste processo a Constituio de 1934 (que j vedava a possibi-lidade de uso nocivo da propriedade contra o interesse social ou coleti-vo, conforme seu artigo 113, 17), at chegarmos concepo atual, em que a Constituio Federal alberga a exigncia de cumprimento da funo social da propriedade em diversos preceptivos, mas com trs locus bem definidos.

    O primeiro, no artigo 5, incisos XXII e XXIII, o qual estabelece o direito de propriedade como um direito fundamental, dele fazendo parte integrante a observncia da funo social. Ambos, direito e funo, da

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    maneira como inseridos no texto constitucional, so indivisveis. O segun-do, que conota a relevncia econmica da propriedade enquanto bem de produo ou potencial geradora de riqueza, est no artigo 170, III, onde a funo social da propriedade arrolada como princpio geral da atividade econmica. O terceiro, por fim, determina maiores critrios ao exerccio da titulariedade de duas especficas modalidades de propriedade, quais sejam, a imobiliria urbana (artigo 182, 2) e a imobiliria rural (artigos 184 e 186).

    XIX) Pela exigidade do espao, no nos possvel mergulhar o quan-to gostaramos no contedo da funo social da propriedade, espe-cialmente daquela imobiliria urbana. Resta-nos apenas comentar que a expresso funo, na perspectiva jurdica, adquire o sentido de poder condicionado, voltado a uma finalidade. E, se atribuvel, tambm exi-gvel. Portanto, ao contrrio da faculdade de usar, gozar e dispor do bem, como se traduzia o direito de propriedade na concepo liberal, correto o entendimento de que se trata de uma obrigao ao exerccio desses atributos em certa direo.

    Ao contrrio das limitaes ao direito de propriedade, aceitas desde sempre, a funo social da propriedade no comporta uma gradao ou a diminuio, aqui e acol, de atributos da relao entre o proprietrio e seu bem. Um imvel no atinge mais ou menos a funo social. Ou a conduta de seu proprietrio, ao exercer suas faculdades individuais, est voltada funo social, ou no est. Portanto, no se trata de confron-tar interesses (entre proprietrios ou destes com o coletivo), mas sim de moldar alguns (os privados) a outros (os pblicos). Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld

    Sempre se aceitou normalmente a imposio de obrigao de fazer ao pro-prietrio, como condio para o exerccio do direito de propriedade.(...) Do que nunca se cogitou, porque incompatvel com a propriedade individualista, foi da imposio da obrigao de utilizar o imvel, isto obrigao de exercer o direito em benefcio de um interesse social20.

    Como bem anotado por Jos Afonso da Silva21, a funo social da pro-priedade introduz nuanas socializantes a um elemento essencial do ca-pitalismo liberal, que a proteo da propriedade em face do Estado. Isto

    20 Temas..., p. 11.21 Direito urbanstico..., p. 65.

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    ocorre, queremos crer, menos por fatores ideolgicos (ou tanto quanto estes) mas tambm por uma necessidade funcional da prpria evoluo e sobrevivncia do capitalismo, na medida em que incompatvel e incon-cebvel com o atual estgio da sociedade urbana uma forma diferente de garantir o exerccio individual do direito de propriedade.

    XX) Temos portanto que de qualquer modalidade de propriedade (tan-gvel ou intangvel, mvel ou imvel, etc.) pode-se exigir o cumprimento de sua funo social. Alis, no o outro o fundamento das chamadas quebra de patente22 de medicamentos de relevante interesse, ou das propostas de flexibilizao dos direitos autorais dos herdeiros, hoje em debate no Congresso Nacional. O fato de a propriedade imvel urbana e rural receber um tratamento detalhado no plano constitucional apenas pela relevncia estratgica que estas adquirem em polticas pblicas im-periosas, respectivamente a poltica urbana e a reforma agrria.

    XXI) A estipulao do cumprimento da funo social da propriedade imvel urbana deve levar em conta as peculiaridades e condies espec-ficas da cidade onde aquela est inserida. No foi outra a razo para que fosse atribuda ao Municpio a competncia para dar-lhe os contornos mais detalhados, como preceitua o j citado artigo 182 da Constituio federal, verbis:

    Art. 182. A poltica de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Pblico municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. 1 - O plano diretor, aprovado pela Cmara Municipal, obrigatrio para ci-dades com mais de vinte mil habitantes, o instrumento bsico da poltica de desenvolvimento e de expanso urbana. 2 - A propriedade urbana cumpre sua funo social quando atende s exign-cias fundamentais de ordenao da cidade expressas no plano diretor. 3 - As desapropriaes de imveis urbanos sero feitas com prvia e justa indenizao em dinheiro. 4 - facultado ao Poder Pblico municipal, mediante lei especfica para rea includa no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietrio do solo urbano no edificado, subutilizado ou no utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificao compulsrios;

    22 Na verdade, o licenciamento compulsrio para fabricao em territrio nacional, como es-tipulado no Decreto federal 6107/2007.

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    II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tem-po;III - desapropriao com pagamento mediante ttulos da dvida pblica de emis-so previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de at dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenizao e os juros legais.

    XXII) Dentre inmeros outros aspectos, chama a ateno no artigo 182 justamente sua parte final, onde se estipula que o no-uso (em sentido amplo) pode ensejar tambm (inciso III) o esgotamento da propriedade, mediante a chamada desapropriao-sano. Muito a grosso modo, te-mos tanto quanto no abandono uma conduta omissiva l a cessao dos atos de posse, aqui o no-uso- por parte do proprietrio, acarre-tando a extino do direito, e sua atribuio posterior ao poder pblico local. Se estes institutos se relacionam, e como, o que pretendemos abordar a seguir.

    3.1. Abandono e parcelamento, edificao e utilizao compulsrios.

    XXIII) Como se depreende, mesmo que deixando a cargo dos munic-pios a estipulao concreta do cumprimento (ou no da funo social), a Constituio Federal cuidou de erigir a um patamar diferenciado deter-minada conduta como sobremaneira perniciosa e passvel de sanes: o no-uso ou a no-edificao, conforme estipulado no 4.

    Isso no denota que cumprir a funo social da propriedade imvel urbana signifique simplesmente parcelar, edificar o