Revista Philipéia # Número 03 (09/2013)

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03#SETEMBRO/2013 Revista Philipéia Crítica, por Romero Venâncio; Conto, por Tiago do Rosário Silva; Filosofia & Sociologia, por Ana Monique Moura; Poema, por Wécio P. A. Éros & Ágape, por Patativa Moog; Poéticas da pobreza, por Jomar Ricardo Silva; Observatório, por Beano Regenhaux.

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03#SETEMBRO/2013

Revista Philipéia

Crítica, por Romero Venâncio;

Conto, por Tiago do Rosário

Silva; Filosofia & Sociologia, por Ana

Monique Moura; Poema, por

Wécio P. A. Éros & Ágape, por Patativa Moog;

Poéticas da pobreza, por Jomar Ricardo

Silva; Observatório,

por Beano Regenhaux.

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Nº3 – ANO 01

ISSN: 23183101

Corpo Editorial:

Ana Monique Moura – Edição e Redação

Wênio Pinheiro de Araújo – Edição

Beano Regenhaux – Redação

Jomar Ricardo Silva – Redação

Patativa Moog – Redação

Romero Venâncio – Redação

Colaboradores especiais desta edição:

Tiago do Rosário Silva

Wécio Pinheiro Araújo

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CRÍTICA

A ARTE DE PERDER NÃO É NENHUM MISTÉRIO…

OU NOTAS SOBRE “FLORES RARAS”

Romero Venâncio*

Nunca fui muito fã das produções do “clã Barreto”. O tipo e a forma de abordagem

cinematográfica dos “Barretos” não me interessa em quase nada. Digo isto para indicar certo

distanciamento ou até desconhecimento mais detalhado da obra de Bruno Barreto. Vi o mais

recente trabalho do Bruno Barreto “Flores raras” e sem medo de errar, o colocaria na categoria

de filme bom no universo atual do cinema brasileiro.

O filme é uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”, pois trata da relação amorosa

feliz-tormentosa de Lota Macedo (arquiteta autodidata) e Elizabeth Bishop (poeta americana)

no Brasil e numa pequena cena nos EUA onde a brasileira foi praticamente para morrer (se

matando, na verdade) em 1967. Percebe-se sem muito esforço que, graças à competência das

atrizes (Miranda Otto e Glória Pires), o cineasta conduz bem o drama amoroso em marcantes

momentos líricos. A Lota vivida por Glória Pires é uma mulher forte e meio “sargentona” na

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condução da vida dela e das outras pessoas (o que não deixa de ser uma ironia com a

fragilidade dela na solidão), já a Elizabeth Bishop é uma figura frágil, temperamental e com

potencial suicida clara desde as primeiras cenas. Há ainda um personagem que merece

destaque pela relevância na história brasileira dos anos 60, trata-se do jornalista e politico

Carlos Lacerda (Marcelo Airoldi). Aqui, o diretor “peca” grande na reconstituição histórica.

Apresenta um Lacerda erudito e poliglota, mas em nada aparece o que realmente foi a figura

na vida politica: ardiloso, conservador moralista e apoiador de primeira hora da ditadura de

1964 (sendo um dos que clamaram pelo golpe contra o fantasma do comunismo). Sabemos

que pagou caro por isso. A própria ditadura o isolou e caçou seus direitos políticos (isto

aparece de maneira sutil no filme em uma única cena). No mais, fica claro uma direção segura

e sem julgamentos morais inúteis num filme como esse. A história do amor de Lota e Bishop

tinha todos os caracteres de um filme desde sempre. Uma relação homossexual numa época

de forte preconceito com tal relação; Um amor entre uma brasileira e uma americana (esta,

poeta de destaque e premiada) e duas personalidades muito conflitantes e diferentes em quase

tudo.

O filme merece dois destaques da minha parte. O primeiro liga-se a esse atual momento da

história politica brasileira, de Comissão da Verdade e de luta contra a homofobia; um momento

em que temos uma figura bizarra numa comissão de direitos humanos da camarada dos

deputados que mais promove retirada de direitos de homossexuais do que ser fiel ao nome da

comissão, já um feito que chama a atenção. A película trata com uma “naturalidade’ necessária

a relação de amor de Lota/Bishop a ponto de vermos ali uma espécie de “conflito universal” de

quem ama, independente de ser hetero ou homossexual a relação. As contradições amorosas

não escapam a ninguém… Paixão, fragilidade, bebedeiras, raivas destruidoras ou gestos de

carinho de nos fazer ir as lágrimas. Nesse sentido, trata-se de um filme “educativo” e antenado

com o que tem de mais avançado no mundo contemporâneo em termos de relações

afetivas.Uma outra coisa que me chamou a atenção foi a cena em que Lota (no inicio do

relacionamento e tomada por encanto) dinamita surpreendentemente uma pedreira para

projetar/fazer uma casa para Bishop manter sua inspiração de poeta e continuar sua produção

poética. São lindos os olhos das atrizes. Uma, Bishop, feliz pela dedicação e sensibilidade da

rude Lota… A outra, Lota mais feliz ainda pela felicidade da poeta (Bishop). Isso demostra uma

situação comum quando se ama e que na maioria das vezes passa despercebida: há uma rara

felicidade de quem ama em ver a outra pessoa no seu encanto de felicidade, é como “o seu

desejo é o meu desejo”. Ver o outro feliz, me faz feliz…Tudo isso acontece no filme sem

pieguismos tolos bem comum na dramaturgia brasileira televisiva. Vale o filme essa cena. Em

muito me lembrou uma frase da escritora Hilda Hilst: “Como se um rio grosso encharcasse os

juncos e eles mergulhassem no espírito das águas, como se tudo, luta repouso de mim se

entranhasse, como se a pedra fosse minha própria alma viva.”

*Professor de Filosofia da UFS.

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CONTO

RUA 19

Tiago do Rosário Silva*

Este momento de recordação do vazio que o preencheu durante tantos anos o fizera sofrer.

Parou, estar dentro de si era incômodo, parecia um remédio que não pode curar, preferiu sair.

Foi quando decidiu fazer as malas. Nela colocou tudo, dos trapos aos objetos valiosos, a

confusão estava feita. Quais objetos eram valiosos? Tantos anos se passaram que os valores

cambiaram quase que por completo. Sorrateiramente foi reorganizando as coisas na mala. A

as pessoas no cômodo ao lado talvez percebessem sua intenção.

Cada objeto. Uma lembrança. Pequenos. Grandes. Momentos diversos revividos em memória.

A saudade que sentia, o impulsionava nessa nova busca. Mas não percebia que estava a

buscar algo, como se fugisse, e levava tudo consigo. Parece difícil sair de si. Ele não via que

estava condenado a sua própria companhia. Se nada levasse na mala, ainda assim levaria a si

mesmo, consigo…

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Foi assim que decidiu nada levar, seria mais rápido se fosse a sua própria bagagem. Todos

aqueles livros que o fizeram por dias inteiros não estar em casa, não podiam ser levados em

matéria, mas não podiam ser deixados sem memória. Não havia como apagar.

Continuou. Planejava ficar pro jantar, seria bom mais uma vez poder olhar na cara de todos.

Seus rostos não eram opacos em sua lembrança. Porém, mais uma vez a olhá-los, poderia

refazer todos os contornos, e guardar de modo a não mais esquecer. O que faria depois com

tudo isso não sabia. Sabia apenas que podia levá-los, era como se não quisesse deixá-los.

Como se também quisesse a eles deixar a última lembrança de si. Seria doce, mas decidido.

Não se deixaria abrandar por um olhar de través de sua tia. Ela que há meio século espera

para viver. Não seria também a sua sina. Não deixaria seu destino ser o futuro. Traria o futuro

para seu destino. E ali mesmo iniciaria uma nova fase. Nova até certo ponto; lembrara que

tinha muitos trapos, e que se algo começasse a construir não jogaria fora os retalhos. Eles

ainda serviriam cada um ao seu modo.

Ouviu seu nome… –já vou! Não foi. Percebeu que era a hora. A mala por fazer, resolveu ir com

o que estava pronto. Não sairia se o vissem. Não estava preso ali, sua casa não era prisão de

si mesmo. Mas se a olhasse, se a visse, estaria prezo a seu olhar fixante. Ela saberia. Não

diria nada, mas o prenderia. Seria como se ele se tivesse entregado.

Mirou da janela, ninguém passava na rua àquela hora, ninguém que pudesse gritar; viu que

naquele momento passava somente o barbeiro aposentado, que trabalhara décadas ali perto

na esquina. Já não via nada. Num assalto ao seu minúsculo cubículo foi cegado pela própria

navalha. Não tiveram pena. Caído no chão, sangrou o suficiente para não poder ver o púrpura

do seu próprio sangue. Dalí em diante, apenas a mísera aposentadoria o mantinha.

Foi assim, desceu a janela, silenciosa e velozmente. Passou pelo cachorro, andou alguns

metros. Falou com o barbeiro como se estivesse surpreso em vê-lo. Disse que o admirava.

Pediu um abraço. Seguiu pela Rua 19. Não se ouviu falar mais dele.

*Professor de Filosofia do IFAL.

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FILOSOFIA & SOCIOLOGIA

VIDA MUSICAL E FESTIVAIS DE MÚSICA:

NOTAS CRíTICAS REGADAS A UMA ENTREGA CíNICA

Ana Monique Moura*

Estamos lidando mais uma vez com aqueles terríveis diagnósticos gerais que encantam os estetas mas

são fúteis para os espíritos práticos?

Peter Sloterdijk

O que seria vida musical? A definição sobre o que pode ser a vivência efetiva da música se

mostra bastante delicada, desde as obras de Platão. Em verdade, ela guarda algo de perigoso,

no melhor e no pior sentido disso, como já havia pensado o filósofo grego, ou, como queiram

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os cristãos, ela guarda algo de demoníaco. Não é por acaso que Platão tentou execrar a

música sensual da sua pensada República, nem que a Igreja tenha proibido instrumentos

durante boa parte da Idade Média, que a nossa ditadura tenha proibido músicas de Serge

Gainsbourg, ou mesmo que agora, no ato desesperado do que Weber chamava por

neoevangelismo, as igrejas revelem sua luta desesperada contra música ao transformar suas

antigas melodias tidas como sacras em melodias, assim dizem, do mundo, como um ato de,

assim dizem, “descer ao inferno para atrair fiéis”.

Pedro Chaters – Chente II

A música é perigosa porque ela, como nenhuma outra arte, é capaz de penetrar e compor, me

permitam as metáforas, o pulso e a epiderme existenciais. A música precisa de técnica, mas

pode existir também sem ela em muitos casos. Para estarmos certos de que vemos uma

pintura não o fazemos enquanto tomamos banho simultaneamente, isso pode até ocorrer, mas

em ocasiões raríssimas. Para observar uma escultura, ocorre o mesmo, e assim por diante.

Mas, com a música, nós dormimos, tomamos banho, dentre outras coisas, com uma

flexibilidade e possibilidade maiores, mais efetivas. Contudo, para Theodor Adorno, em

“Introdução à sociologia da música”, isso se mostra um grande problema. Significa que aqui a

música ocupa um mero lugar de pano de fundo e sua grande capacidade ontológica é anulada,

afogada pelo cotidiano. Sim, talvez ele tenha razão, mas por outro lado isso pode comprovar a

potencialidade da propagação da música que outras artes não conseguem ter. A música não

necessita do “estar consciente de”. E onde reside sua grande potência estética, nasce seu

grande perigo. Quero falar deste perigo dentro dos festivais de música que insuflam em nós um

conceito de vida musical.

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A natureza dos festivais de música

O show vem trazer o músico como a celebridade. Trata-se da troca da obra pelo autor, o

mesmo que acontece com o cinema de Hollywood e suas celebridades, um mal já muito bem

refletido por Walter Benjamim. No caso da vida musical contemporânea, o palco deixa de ser

uma estratégia para que todo o público possa ver a apresentação musical como uma

simbologia de culto? Eu diria que não. Ainda, a fonte que produz a música é considerada

quase imaterial e todo o público estende suas mãos ao grupo para que possam sentir o tato de

algum dos seus integrantes e com isso saírem dali renovados como que por alguma

experiência semelhante à mística.

Os festivais de música vem trazer essa característica à tona. Aliado a isso está o

comercialismo. A música agregada ao mercado é a fonte de tais festivais, não importa se

pagos ou gratuitos, a demanda é hiper mercadológica, claramente.

Dentro deste fato, que em verdade é um elemento estruturador, tais festivais vem enrijecer

ainda mais a fundação de comportamentos tipificados de acordo com determinadas

expressividades musicais. Unido a isto vem a apelação para que tais “formações” de

comportamento se elevem a uma categoria ideológica para o mercado musical. Por fim, por

mais que a música atual tente propor a musicalidade como um conjunto de experiências

diferentes de som em uma unidade audível, em verdade, no terreno social, o que ocorre é uma

segregação cultural velada.

Um exemplo. Se um órgão de prefeitura, ou algo que receba as verbas do Fundo Nacional de

Incentivo à Cultura, organiza um festival de música experimental ele o faz mediante um recurso

determinado de lugar para um determinado público preparado e, ao mesmo tempo, sendo

constantemente preparado do ponto de vista ideológico. E, no entanto, tal manifestação se

lança como plenamente pública e não privada. Há uma frase de Adorno que pode bem ilustrar

o que tento explicar aqui: “A vida musical é uma mera aparência da vida. Por meio de sua

integração social, a música foi corroída por dentro. A seriedade, desdenhada pela música de

entretenimento, foi deixada inteiramente de lado pela integração.” Forma-se com a soma de

variados festivais de música, um mosaico de rebanhos cuja vida musical é integrada a uma

expressividade típica a cada um.

Música, cibercultura e sociedade do espetáculo

Com o surgimento da “economia criativa”, a qual, aqui, prefiro chamar de “economia virtual”

isso se mostra até mais forte. Micro festivais de música se espalham pelas cidades pequenas

ou grandes e convocam na realização da música não mais o modelo antigo das relações

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econômicas que um apreciador de música tinha com o que escutava, já que agora a moeda é

mais do que nunca tanto mais abstrata. O ouvinte não “compra” mais a obra, mas paga pelo

show. Com mais firmeza, o espetáculo permanece quisto, no sentido já pensado pelo clássico

de Guy Debord.

Isto significa que o aspecto material da obra, o CD, é pouco consumido e aqui vencem ainda

mais fetichismos atuais, por exemplo, com discos, dentro de um sentido de riqueza material

sob outra roupagem. A música, e isso foi muito bem pensado por Hegel em seus Cursos de

Estética, não se dispõe materialmente como a pintura e a escultura, dispõe tão só dos corpos

ou instrumentos que podem revelar o seu tempo musical. Contudo, consumir música ainda

assim se revela como um consumo material, que se liga à aquisição de algo intangível. A

cibercultura disponibiliza as obras, no geral para downloads gratuitos, e o que invoca a

apreciação do público é o imaginário que ali se insufla em relação à possibilidade de uma

apreciação musical ao vivo, enquanto o acervo das obras se revela metafísico. A “Ideia da

coisa” aqui é então plena realidade, no sentido hegeliano do termo e, nos shows, o orgânico se

revela também algo imaterial, contudo, fetichizado, mistificado. A este cenário problemático da

musicalidade eu tomaria como uma proposta de saída a exigência de um ouvido

neometafísicofeita por Peter Sloterdijk em “Mobilização Copernicana e Desarmamento

Ptolomaico”, na qual o filósofo perpassa por uma espécie de filosofia musicológica do que

entendemos por cultura pós-moderna. É preciso que elaboremos um novo modo de escutar os

fragmentos sonoros e por demais significativos dentro do que esta coisa chamada vida musical

tem a nos dizer. Mas não me demorarei nessas elucubrações, não nesse texto.

Ademais, a economia virtual proporciona o significado do show como muito mais interessante

do que pagar por um CD, já que a música aí reproduzida pode ser apreciada através da

cibercultura em seu acervo incomensurável de trabalhos musicais à disposição.

Há quem diga que a saída dos músicos da subordinação às gravadoras para uma espécie de

liberdade no campo virtual tornou a distância entre palco e público praticamente inexistente.

Essa ideia é rejeitável. Nem se tornaram menos escravos por saírem da subordinação às

gravadoras – um exemplo corrente no Brasil para isso tem sido o que algumas bandas

realizam com o ambíguo grupo Fora do Eixo – nem ocorre distância entre público e palco. O

fluxo de shows aumenta exponencialmente com o fluxo de circulação do material musical na

internet e, com isso, os shows ainda que se tornem mais corriqueiros, movimentam um

processo de fetichismo em relação ao artista na medida em que ainda ele permanece como

uma figura pouco orgânica, já que subsiste tanto mais em um trabalho virtual que material.

Os festivais, portanto, ao passo em que exibem o “ao vivo” não conseguem, contudo, ser

orgânicos, ou ainda, estar de fato presentes, fomentam, pelo contrário, a relação com o

conceito fetichizado do que seja músico, e, o que é pior, atiram ao fogo o que poderia significar

uma experiência estética com a música.

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Vida musical e apreciação estética

Festival é arena de entretenimento. É música à sua frente, porém música de fundo para o que

você pode vivenciar ali, em frente ao palco. Desde a cerveja que patrocina o festival e que você

paga por ela porque lhe falta outras opções até ao simples, gratuito e não limpo banheiro

químico que você precisa utilizar para compensar sua fisiologia na festa.

No nordeste, acabamos de ter o Festival de Jazz em Pipa e a proposta percorre o que até aqui

vem sendo dito. O deslumbre rasteiro do público segue em especial ao fetichismo que se criou

em relação ao Jazz. Muitos vão, inclusive os que não entendem o que significa jazz. Ali não se

escuta música, se contempla o fetichismo criado. Ouviram dizer que Stanley Jordan tocaria na

noite de sábado… aqui vem a alienação com o “internacional” também. Uma manifestação de

comportamento totalmente manipulada e manipulável, multiplicada dentro do fetiche do

brasileiro com a american culture.

A apreciação estética aqui é cega ou inexistente, está antes ligada aomerchandising feita do

músico do que de fato com a apreciação de seu trabalho. Não faço a crítica fatalista de Adorno,

e acredito que há boas chaves numa experiência em festivais desse porte, contudo, fica muito

claro que a algazarra do entretenimento vem sufocando o conceito ou a urgência de uma

experiência propriamente musical, de escuta mesmo.

Comentaram que o Festival MIMO de Olinda trouxe como um de seus slogans para o show de

Nouvelle Vague o seguinte: “A banda que vem arrastando descolados no mundo inteiro”. Em

verdade, os chamados “descolados” é uma criação conceitual do próprio festivail. Os

“descolados” não existem antes do festival. Esses descolados são postos como reais e

condicionadores, mas em verdade são mentirosos e condicionados pela cultura do

hipermercado musical que é sustentáculo final do festival. A partir da mentira lançada o real se

realiza aqui. Os descolados, em verdade, são um rebanho ignorante, séquitos de tendências, e

que presenciam o espetáculo porque foram atraídos por uma propaganda também ignorante e

formadora de tendências. E isso vale para qualquer outra nomenclatura ou proposta publicitária

de arrecadação de rebanhos em qualquer outra iniciativa de evento musical. O que seria isso?

Seria uma experiência estética? Talvez não. Ela vem sendo afundada por um projeto de vida

musical que adentra nos espaços e pós-espaços não mais mercadológicos, mas também

existenciais. Aqui o existencial se liga ao hiper mercadológico, e um diagnóstico para isso se

chama apenas crise.

O filósofo Christoph Türcke propõe em “Sociedade Excitada” que pensemos umtrivium de

pilares de vício ou, melhor dizendo, das válvulas de escape, como os seguintes: cinema,

religião e álcool. Mas talvez ele tenha sido injusto em não considerar um pilar outro gigantesco

que é a música. Ademais, o vício é repetição e a repetição aliena. O lugar da vida musical está

aí, nessa repetição, nesses refrãos sonoros, comportamento, de manipulação. Porém, e lanço

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o cinismo que aprendi a dizer a partir dos festivais: Que venham mais festivais e mais

rebanhos. O perigo da música é apreciável e pode ser transgressor também, se apreciado com

um ouvido musical. O “evento” não é mais “eventual”, e sim padrão, ordem, necessidade. Ao

cabo, o que importa à ovelha constituir-se em rebanho se ela não aceita seguir sozinha?

Celebremos! Por outro lado, deixo-vos com uma frase de Adorno capaz de suscitar melhor o

que venho refletindo até agora: “A música realiza-se na vida musical, mas a vida musical

contradiz a música”.

* Doutoranda em Filosofia pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia (UFPE-UFPB-UFRN)

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POEMA

VONTADE DE TOMAR CAFÉ

Agarro a fumaça e sento ao lado de Rimbaud

Ele beija meu rosto meio enviesado e começamos

a fumar o sagrado ósculo de Dionísio

A língua cresce e toco uma estrela no seu leito de morte

Meu ouvido sente o fétido hálito de Deus

Ele não fala francês. Fala mentiras, muitas…

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Declara-me a absurda verticalização da Via-Láctea

e pede, pelo amor de Deus, que eu lhe mate,

e eu: concedo-lhe a morte beijando-lhe a ponta da língua.

Não resisto, sorvo a língua divina que pinta-me de amarelo.

E retomo a conversa com Rimbaud tomado em êxtase sagrado.

Então descemos pelo inventado septuagésimo anel de Netuno.

Do breu Absoluto no meio do Absoluto vem subindo Dante.

Ele nos olha pelos ombros, com desdém, nos ignora como um funcionário público.

Virgílio mais embaixo lamenta a eternidade e trocamos uma palavra sobre as solidões.

O Diabo, desempregado, necrófilo, belo, em queda livre abusa do cadáver branquíssimo de Deus e chora.

Na esquina mais a frente paramos pra tomar um café.

Escrevo uns versos e Rimbaud rasga todos, cospe em mim.

Eu choro e ele bebe minhas lágrimas. Eu reescrevo e rasgo.

Passo a língua no olho direito de Rimbaud e prometo morrer também.

Wécio P. A.

Poeta e professor do departamento de Serviço Social da UFPB.

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Éros e Ágape

A CARNAVALIZAÇÃO DOS SENTIDOS

Sabine Groschup

Patativa Moog*

Homens incomuns, doutrinas, festas, ritos, livros e lugares sagrados… Esperança, Desejo e…

uma falta. A fé religiosa, bem como as doutrinas político-históricas, qualquer uma, é toda e

completamente construída sobre tais fundamentos – que apontam para um ou vários

fundamentos, incluindo a falta. A ideia de uma “medida áurea”, uma referência sobre a qual as

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coisas possam ser sentadas ou medidas como “isto é melhor que aquilo” ou “isto é pior que

aquilo”, etc.

Quando Hemingway afirma que “o amor é infinitamente mais duradouro do que o ódio”1, não é

de outra afecção que fala senão do amor romântico, reafirmando o seu status ideal, sem

considerar as tantas “barreiras” (ou freios) psicológicas que nos foram dadas pela natura, e

sem as quais abraçaríamos a barbárie, celebrando-a em favor do nosso desejo, da sua

realização. Há, claro, a “força do contrário”; isto é, do desejo do meu querer que esbarra

no querer do Outro, mais forte que eu, que não posso enfrentá-lo, e ao qual me submeto – não

por alguma ética ou alguma moral, mas pelo próprio instinto de preservação. Sem a agência do

intelecto, é coisa comum de ser observada no mundo natural. Aos que têm o intelecto, não. O

perdedor ganhou, em sua memória sentimental (ou orgulhosa), a lembrança da conquista

malfadada. Por sua feiura, sua fraqueza, sua debilidade… e há sempre alguma. É preciso, em

favor da sanidade da mente e do corpo, encontrar um novo objeto a ser conquistado. Novo

desejo. O objeto antigo, agora, parece distante; e o antigo desejo, já, transforma-se em

repulsa, ou amizade funcional: “Olá! Como vai? Adeus.” A moça era linda e inteligente, mas

tinha um defeito terrível: não gostava de mim. Como não consigo me odiar – por não ser o que

desejo que ela deseje –, odeio-a, por amor a mim, por amor de mim.

Acontece que a lembrança é, às vezes, uma “lembrança encobridora” (Deckerinnerung), um

“lembrar-se de esquecer”, inconsciente. Algo que se faz, agora, tem a função de apagar o que

foi feito, e que não foi bom – mas eu nem percebo isso, simplesmente faço, em obediência a

um comando mental que existe em favor da minha saúde. “Portanto, se quero viver, devo

esquecer…” Algo assim, como é dito por Roland Barthes em sua aula inaugural, como

professor na cadeira de semiologia literária, no Collége de France.2

Mais que a lembrança, o esquecimento é tão necessário quanto o comer, o respirar, o beber…

O “duradouro”, porém – em nossa memória sentimental, na perspectiva romântica ou realista –,

permanece. O “duradouro” é a lembrança esquecida daquilo que me fez ser como sou, e está

relacionado ao próprio Eu que se lembra, que se esquece; que se lembra de esquecer, que se

lembra de lembrar; este Eu do qual não posso, nunca, escapar… a não ser com o suicídio: a

única questão filosófica realmente séria: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o

suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta

fundamental da filosofia.3” E, no poema de Emily Dickinson:

Ourself behind ourself, concealed –

Should startle most –

Assassin hid in our Apartment

Be Horror’s least.4

A questão – da fuga do Eu, desfavorável a mim, por minha “sorte ruim” e sua memória

renitente – é colocada por Camus, de cara, logo no início de O mito de Sísifo (1942); é a

primeira frase do primeiro parágrafo. Mais adiante, falando dos “muros absurdos”:

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Os grandes sentimentos levam consigo o seu universo, esplêndido ou miserável.

Iluminam com sua paixão um mundo exclusivo, onde eles encontram seuambiente. Há um

universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade. Um universo significa uma

metafísica e uma atitude de espírito. O que é verdade para sentimentos já especializados, será

ainda mais para emoções cuja base é tão indeterminada, ao mesmo tempo tão confusas e tão

“certas”, tão distantes e tão “presentes” quanto aquelas que a beleza nos oferece ou que o

absurdo suscita.5

Grandes sentimentos tem a ver, inescapavelmente, com o Eu, e com a sua fé napossibilidade

de… um feliz “mais adiante”. Quando não há esperanças (ou um motivo pelo qual a vida valha

a pena), a extinção do Eu aparece como remédio (e corresponde, não por acaso, à “salvação”,

no budismo… mas sem a hipótese do suicídio). Em Émile Durkheim, os suicídios são de três

tipos: egoísta, altruísta e anômico6. Todos eles, no final, são reações do Eu (consciente) contra

o Eu (às vezes inconsciente), contra a sua condição no Mundo. O louco não comete suicídio

sem algum lampejo consciente do Eu, na razão – embora o senso comum julgue isso ao

contrário. E quando isso não é assim, é o acidente; como a criança que não vê o perigo, e se

lança ao abismo.

Quando Seymour, o personagem mais querido de J. D. Salinger, mete uma bala em sua

própria cabeça, no final de “Um dia ideal para os peixes-banana”, não há – e essa é a parte

mais feliz do conto – um motivo aparente; ele que, antes, parecia tão feliz, brincando e

conversando alegremente, na praia, com a pequenina Sybil Carpenter. Em Seymour, Salinger,

parece, realiza o que, em vida, nunca ousou: o suicídio. Salinger morreu com 91 anos, “de

causas naturais”, em 28 de janeiro de 2010, em sua casa, em New Hampshire, EUA. Noutro

conto, “Para Esmé, com amor e sordidez”, Salinger é, muito claramente, o soldado que

conversa com a garota:

– Você tem um senso de humor muito apurado, não é? – falou, suspirosa. – Papai dizia que eu

não tinha nem um pouco de senso de humor. Que eu estava despreparada para enfrentar a

vida porque não tinha senso de humor.

Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não acreditar que o senso de humor tivesse

qualquer utilidade numa hora de aperto.

– Papai disse que tinha.

Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um contra-argumento, por isso resolvi bater

rapidamente em retirada.7

O amor é “amor de nada ou de algo” (de um indivíduo por outro, ou por um objeto; do fiel para

com o seu deus, ou à sua Ideia), e “é de consigo ter sempre o bem”, como Sócrates afirma,

repetindo Diotima8. O amor é a afirmação da fé daquele que ama, e sua confissão objetiva na

subjetividade da vontade: o Eu voltado para si.

– Ama o amante o que é belo; que é que ele ama?

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– Tê-lo consigo – respondi-lhe.

– Mas essa resposta – dizia-me ela – ainda requer uma pergunta desse tipo: Que terá aquele

que ficar com o que belo?

– Absolutamente – expliquei-lhe – eu não podia mais responder-lhe de pronto essa pergunta.

– Mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a questão e, usando o bom em vez do

belo, perguntasse: Vamos, Sócrates, ama o amante o que é bom; o que é que ele ama?

– Tê-lo consigo – respondi-lhe.9

As declarações de amor ou confissões afetivas sobre o Outro, sobre o tanto queeu gosto dele,

têm o fito de mantê-lo enquanto objeto de deleite do meu próprio Eu. No “eu te amo” há,

intrinsecamente (e inconscientemente): “amo você não por você mesma, mas porque me amo,

e encontro em ti o que me satisfez.” Ou seja: a beleza do corpo (propaganda da saúde, para a

geração de indivíduos igualmente bonitos e saudáveis), e da alma: empatia, aspirações

correspondentes, et cetera. “Não é o que é seu, penso, que cada um estima? A não ser que se

chame o bem de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois nada mais há que amem os homens

senão o bem [deles mesmos]”10. E, antes: “o Amor é amor pelo belo.11” E, depois: “Por isso,

quando do belo se aproxima o que está em concepção, aclama-se, e de júbilo transborda, e dá

à luz e gera; quando porém é do feio que se aproxima, sombrio e aflito contrai-se, afasta-se,

recolhe-se e não gera, mas, retendo o que concebeu, penosamente o carrega. [...] [O amor é]

da geração e da parturição no belo.12” O amor desinteressado – o Eu esquecido de si –

é ágape, isto é: idealismo. Isto é: nada é. E é: delírio febril da razão, ou metafísica teológica.

Na Vontade, a beleza do corpo é saúde, garantia de geração saudável – Eros. A valoração do

feio – que está relacionado à administração salvífica da graça, nadoctrina christiana – é, em

Nietzsche, atraso do progresso da espécie, e seu declínio – ágape. Daí a crítica de Nietzsche

ao programa cristão, em O anticristo. Maldição ao cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das

Christentum), de 1888:

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal

aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das

naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como

enganosos, comotentações os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a

corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando

ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!13

No amor romântico, como na teologia clássica, “‘Fé’ significa não querer saber o que é

verdadeiro”14, pois a fé não duvida, mas aceita, pela mesma fé. “Onde está o sábio? [...] Onde

está o raciocinador deste século? Acaso Deus não tornou louca a sabedoria deste mundo?15”

Pela fé, a razão e o realismo são rebaixados, em favor do idealismo… e da carnavalização dos

sentidos.

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NOTAS:

1 HEMINGWAY, Ernest. Vida. In: HOTCHNER, A. E. (Ed.). A boa vida segundo Hemingway.

São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 120.

2 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 46. O texto de Barthes, naturalmente,

não tem a mesma intenção que o meu – embora não seja dissonante. Aproprio-me do mesmo

na intenção de ilustrar o que eu mesmo digo, como licença poética.

3 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 19.

4 “O ‘eu’, por trás de nós oculto, / É muito mais assustador, / E um assassino escondido em

nosso quarto, / Dentre os horrores, é o menor.” (DICKINSON, Emily. Poemas escolhidos. Porto

Alegre: L&PM, 2007. p. 57. [Col. L&PM Pocket, 436]).

5 CAMUS, 2010, p. 25.

6 DURKHEIM, Émile. O suicídio. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

7 SALINGER, J. D. Para Esmé, com amor e sordidez. In: _____. Nove histórias. 3. ed. Rio de

Janeiro: Editora do Autor, [s.d.], p. 86.

8 O banquete, 206 a. PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril

Cultural, 1983. p. 37. (Col. Os Pensadores).

9 O banquete, 204 d-e.

10 O banquete, 206 a.

11 O banquete, 204 b.

12 O banquete, 206 d-c.

13 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 12 (§ 5).

14 NIETZSCHE, 2007, p. 63 (§ 52).

15 Romanos, 1, 20 (TEB). Em grego, o substantivo συζητητής também pode ser traduzido

como “debatedor”, “questionador”, “inquiridor”, “perguntador”… Enfim, συζητητής é aquele que,

de algo e sobre algo, pergunta, duvida, quer saber; isto é: não aceita somente pela fé. E esse é

o motivo da crítica do apóstolo.

* Professor de Filosofia da UEPB.

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OBSERVATÓRIO

ICONOCLASTIA & MARCHA DAS VADIAS

Beano Regenhaux*

Fotografia: Bem Hopper

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Basicamente, a existência humana subsiste na tensão em superar ou mimetizar os ídolos.

Sendo que todos os milagres e feitos atribuídos aos ídolos correspondem a uma superação

das condições do real dado. Mas a tensão maior emerge quando sujeitos tentam derrubar um

ídolo acionando o argumento da intervenção da mão humana, ou seja, quando o ícone,

representando o ídolo, é uma instância construída e mediadora. Essa é uma implicância

protestante, patente em Robertson Smith, por exemplo, quando este separa superstição,

crendice da verdadeira religião cristã, ao associar a crença na imagem com um estágio mágico

e atrasado da “magia dos católicos’’, dos primitivos e pagãos, e a fé em Deus, o acesso

transcendental à divindade, a uma condição imediata e interna do indivíduo. A despeito das

discussões sobre a diferença entre religião e magia, presente em autores tributários de

Robertson Smith, como Durkheim e Frazer[1] a necessidade de se comprovar a eficácia de um

rito, de deslegitimá-lo, é um leitmotiv que se repete ad infinitum e ad nauseam nas mais

consagradas tradições etnocêntricas do ocidente.

Uma situação que gerou burburinho e evoca tais questões é a Marcha das Vadiasdo Rio de

Janeiro, ocorrida em 27 de Julho deste ano, evento paralelo ao católico, Jornada Mundial da

Juventude. Um grupo da marcha provocou alarde ao quebrar imagens sacras e ao utilizar um

crucifixo como dildo. Seguindo as formulações de Bruno Latour no livro Reflexão sobre o

cultomoderno dos deuses fe(i)tiches ou no ensaio O que é iconoclastia? Ou, há um mundo

além das guerras de imagem?, percebo a recorrência desses motes de discussão, em que é

concedido o estatuto de crença ao outro, denunciando a confecção de outro mito pelos

enunciadores (“os civilizados crêem que os primitivos acreditam em algo”), nascontradições da

herança apontadas por Pierre Bourdieu em texto homônimo ( “exemplo de conduta e exigência

de superação do pai/ mestre”), cuja figura edipiana é trazida à tona, o conflito armado entre

imitar e tomar o lugar do pai, ou nas dicotomias entre real e artificial, fato e feito, imediato e

mediado, enunciadas por Latour.

Essas imagens que me vem na cabeça, denotam a opacidade do pensamento mediado e, por

excelência, traduzem o conflito fundamental entre manipulação e manutenção constituintes da

atividade controladora do ser humano entre tradição e traição. Mas por que tantas dicotomias?

Talvez seja por ausência de tradução e transição. Apostasias e rupturas à parte, quando se

pratica um iconoclasmo, o intento é superar um ídolo e, simultaneamente, demonstrar sua

relevância no quão importante é a sua derrubada, para ipso facto absorver seu poder mágico,

revelar sua força interior como indivíduo e a defasagem da entidade exterior. Afirmar um credo

em detrimento de outro. Transferir um mito vivenciado para outro (artístico? científico?). É um

ato escatológico, um exorcismo. Sai de mim, este corpo não lhe pertence mais. Na marcha das

vadias, a conversão agenciada foi a da destruição do falus, do patriarcado, e a necessidade de

superar tal figura totêmica. Requerer uma imagem hermafrodita ou mais feminina. Ou quando

um pastor pentecostal chuta uma santa para garantir seu poder e convertê-lo em capital

(simbólico e econômico). Nem as divindades estão isentas das viradas históricas, dos cargo

cults, dos potlatches, das bricolages, dos sincretismos e dos niilismos. Muito pelo contrário, são

fatores de indução. Funcionam como bonecos e como pais/mestres.

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Pagar tributo aos ancestrais ou reproduzir uma lógica utilitária e profana na escala do sagrado,

que se processa ex opere operato com os santos, também são ilustrações da completa

impossibilidade de separação entre os planos já salientados entre transcendência e imanência,

sagrado e profano, feito e fato, e por aí vai. São planos diferentes que se entrecruzam o tempo

inteiro. Todo iconoclasmo é mágico, litúrgico, tabu e temporal. Uma ofensa e uma oferenda ao

mesmo tempo. E antes que me atribuam um elogio da dimensão institucional religiosa

ortodoxa, ou uma defesa da ineficácia do ritual do iconoclasmo, por este sempre incorrer e

resvalar para a legitimação das entidades, afirmo que tal ritual é tão ou mais necessário que

qualquer estrutura religiosa consolidada. Freud e a pós-modernidade já cansaram de ostentar o

quanto o eu é descontínuo, ou que os bonifrates precisam dos ventríloquos e vice-versa. São

recursos expressivos que se tomam e se revelam.

*Mestrando em Antropologia pela UFPB.

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POÉTICAS DA POBREZA

BAUDELAIRE E OS POBRES NO BRASIL

Jomar Ricardo Silva*

O poema de Charles Baudelaire (1821-1867), “Os olhos dos pobres”, do livro Pequenos poemas em prosa, é

um flagrante das contradições do progresso na cidade moderna. A cena se passa na esquina

de um boulevard parisiense. No final do dia, em que haviam passados juntos e jurados que

mente e alma seriam comum a um e a outro, um casal senta-se no café. A novidade da

construção ressaltava-se pelos detritos que ainda faziam entulho no canto da calçada, mas já

mostrando seus esplendores. No momento em que admiravam as luzes, fumegantes das

tochas, a iluminar a brancura das paredes cintiladas com o ouro das molduras de pinturas,

enredando “a história e mitologia postas a serviço da glutonaria,” uma aparição viria marcar a

diferença de pensamento entre ambos.

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Na frente dos dois, “na calçada, estava plantado um homem de bem, de uns quarenta anos, de

rosto cansado, barba grisalha, tendo numa das mãos um menino e sobre o outro braço um

pequeno ser, ainda muito frágil para andar. [...] Todos em farrapos. Esses três rostos estavam

extremamente sérios e seus seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual

admiração, mas, naturalmente, com as nuances devidas às idades.”

Cada qual emitiu uma expressão com seus olhos. Os do pai diziam: “Que beleza! Que beleza!

Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo fora posto nessas paredes”. Os olhos do menino

refletiam uma exclamação: “Que beleza! Que beleza! Mas é uma casa onde só podem entrar

pessoas que não são como nós!”. Enquanto os olhos do menor externavam apenas uma

alegria estúpida e profunda.

Logo, a má consciência burguesa do homem veio à tona em forma de comoção e autocensura.

“Não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado

por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede”. E, em seguida, lhe veio uma

decepção, quando, ao procurar os olhos da mulher para ler a mesma interpretação que tinha

feito na família de olhos, ouviu outra posição. Demonstrando ojeriza pelo que via, disse: “Não

suporto essa gente com seus olhos arregalados como as portas das cocheiras! Será que você

poderia pedir ao maître do café para afastá-los daqui”. A solidez das promessas de amor e de

união desvaneceu e transformou-se em sentimento contrário, naquele instante : “Ah! Você quer

saber por que eu a odeio hoje?”

Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, faz uma refinada interpretação do

poema contextualizado a partir das reformas do prefeito Georges Eugène Haussmann,

empossado por Napoleão III. Eles cuidaram de dotar a cidade de um sistema circulatório

urbano, com ruas largas que permitissem a circulação de pedestres em linha reta de um

extremo a outro. À medida que dotavam a cidade de condições para o crescimento de lojas

comerciais, destruíam as habitações miseráveis. O crítico literário nova-iorquino observa que

as transformações físicas e sociais que tiraram os pobres da visão dos habitantes urbanos,

trouxeram por contradição, diretamente os pobres à vista de cada um.

No Brasil, a modernidade é povoada por entrechoques – de avanços materiais de um lado,

com grandes níveis de pobreza, do outro, – que deixam sem condições de sobrevivência a

maioria da população. O século XIX foi marcado, em sua segunda metade, pela abolição da

escravatura, eclosão do regime republicano e imigração. Nessas mudanças efetivadas, os

pobres sempre foram uma preocupação do Estado e das elites, que os consideravam uma

ameaça iminente.

Pobre é sinônimo de perigo. Foi desta forma que Sidney Chalhoub em Cidade febril retoma as

representações que a sociedade fazia dele: “Assim é que a noção de que a pobreza de um

indivíduo era de fato suficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes

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conseqüências para a história subsequente de nosso país”. Até hoje determinados grupos

sociais se sentem incomodados com os pobres que pedem esmolas nas calçadas, nos

semáforos, nas portas dos bancos, nas casas. E na tentativa frustrada de se eliminar a

pobreza, fazem como a senhora do poema de Baudelaire, realiza o esforço de tirá-los da vista,

fazendo campanha de conscientização para que as pessoas não dêem esmolas. As cidades,

assim pensam eles, poderão ficar higienizadas, livres desse espetáculo deprimente. Mas não

se enganem, terão sempre “olhos de pobres” a lhes espreitarem, por trás de sua fobia.

*Sociólogo e professor da UEPB

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Arquivo: Acervo Fotográfico Humberto Nóbrega / 1981 – Avenida General Osório

Arquivo: Acervo do Museu Walfredo Rodriguez / 1908 – Praça 1817

Arquivo: Acerco da Família Stuckert / 1935 – Praia de Tambaú

Arquivo: Acervo Fotográfico Humberto Nóbrega / 1912 – Praça Barão Rio Branco

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Arquivo: Acervo do Museu Walfredo Rodriguez / 1903 – Rua Duque de Caxias

Arquivo: Acervo do Museu Walfredo Rodriguez / 1919 – Rua Duque de Caxias

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