Revista Política Externa - Vol. 22 nº2 Out/Nov/Dez 2013

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Revista Política Externa - Diplomacia e Democratização Vol. 22 nº 2 - Out/Nov/Dez 2013 Egito – Crônica de uma revolução em curso por Salem H. Nasser A onda de revoltas que tomariam de assalto o mundo árabe, da Tunísia ao Egito, à Líbia, ao Iêmen, ao Bahrein, à Síria e além, tem causas comuns aos vários processos revoltosos e semelhanças entre eles. O Novo Japão rumo a 2020 por Naoki Tanaka Desde que passou a ser governado por Shinzo Abe, em dezembro de 2012, o Japão entrou numa sequência de ambiciosas reformas econômicas e culturais com o objetivo de retomar o crescimento interrompido há quase duas décadas A estratégia petrolífera chinesa: o avanço da China nos países perimetrais por Felipe Santos O apetite chinês por petróleo e a reação dos países periféricos quanto às investidas chinesas têm alterado relativamente a dinâmica da geopolítica regional. Para onde vai a China sob a quinta geração por Clodoaldo Hugueney Filho No XVIII Congresso do Partido Comunista Chinês, no final de 2012, concluiu-se a transição entre a quarta geração, de Hu Jintao, e a quinta geração, liderada pelo novo secretário-geral então escolhido, Xi Jinping, que acumula também, como seu antecessor, a função de presidente da China. A Fifa não é fofa por Juca Kfouri O acrônimo Fifa foi presença constante nos protestos de junho que mudaram o Brasil. Impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014 e seu legado para o futebol brasileiro por Fernando Blumenschein e Diego Navarro A Copa do Mundo Fifa 2014 é parte dos megaeventos esportivos que o Brasil acolhe desde os Jogos Pan-Americanos de 2007. A região avançou; os acadêmicos americanos, não por Mariano E. Bertucci Estudos acadêmicos americanos sobre a relação entre Estados Unidos e América Latina costumam lidar com a questão do ponto de vista da política externa dos EUA para a região. Repensando as relações Estados Unidos/América Latina: trinta anos de transformações por Abraham Lowenthal O artigo compara o relacionamento entre os EUA e a América Latina de 30 anos atrás com o atual.

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Diplomacia e Democratização

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Revista Política Externa - Diplomacia e Democratização

Vol. 22 nº 2 - Out/Nov/Dez 2013

Egito – Crônica de uma revolução em curso por Salem H. NasserA onda de revoltas que tomariam de assalto o mundo árabe, da Tunísia ao Egito, à Líbia, ao Iêmen, ao Bahrein, à Síria e além, tem causas comuns aos vários processos revoltosos e semelhanças entre eles.

O Novo Japão rumo a 2020 por Naoki TanakaDesde que passou a ser governado por Shinzo Abe, em dezembro de 2012, o Japão entrou numa sequência de ambiciosas reformas econômicas e culturais com o objetivo de retomar o crescimento interrompido há quase duas décadas

A estratégia petrolífera chinesa: o avanço da China nos países perimetrais por Felipe SantosO apetite chinês por petróleo e a reação dos países periféricos quanto às investidas chinesas têm alterado relativamente a dinâmica da geopolítica regional.

Para onde vai a China sob a quinta geração por Clodoaldo Hugueney FilhoNo XVIII Congresso do Partido Comunista Chinês, no final de 2012, concluiu-se a transição entre a quarta geração, de Hu Jintao, e a quinta geração, liderada pelo novo secretário-geral então escolhido, Xi Jinping, que acumula também, como seu antecessor, a função de presidente da China.

A Fifa não é fofa por Juca KfouriO acrônimo Fifa foi presença constante nos protestos de junho que mudaram o Brasil.

Impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014 e seu legado para o futebol brasileiropor Fernando Blumenschein e Diego NavarroA Copa do Mundo Fifa 2014 é parte dos megaeventos esportivos que o Brasil acolhe desde os Jogos Pan-Americanos de 2007.

A região avançou; os acadêmicos americanos, não por Mariano E. BertucciEstudos acadêmicos americanos sobre a relação entre Estados Unidos e América Latina costumam lidar com a questão do ponto de vista da política externa dos EUA para a região.

Repensando as relações Estados Unidos/América Latina: trinta anos de transformaçõespor Abraham LowenthalO artigo compara o relacionamento entre os EUA e a América Latina de 30 anos atrás com o atual.

Falta ambição para Bali por Pedro de Camargo NetoNas últimas duas décadas, o Brasil tornou-se um líder agrícola.

Vamos renegociar o Mercosul? por José Botafogo GonçalvesO Mercosul que está aí não é o Mercosul que foi negociado pelo Tratado de Assunção.

“Eu vi o mundo” O princípio do multilateralismo nas gestões de política externa de Cardoso e de Lulapor Dawisson Belém LopesO artigo tem como principal argumento que as diversas maneiras pelas quais o princípio do multilateralismo foi apreendido e traduzido

Dinâmicas do processo decisório em política externa a partir de uma perspectiva cognitiva: o papel das imagens no caso da Política Externa Independente (1961-1964)por Fábio Albergaria de QueirozEste artigo tem como objetivo avaliar o papel de elementos cognitivos, mais especificamente o papel das imagens na criação e implementação da “Política Externa Independente”

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Seria a política externa brasileira um problema para o Itamaraty? por Gonçalo Mello MourãoO autor comenta, de um ponto de vista pessoal, o artigo de Sean Burges, de título inverso, publicado no volume 21, nº 3 desta revista (edição de jan./fev./mar. 2013 – “Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?”).

Diplomacia e democratização por Antonio de Aguiar PatriotaNa última década, a política externa brasileira tem sido capaz de se renovar e se antecipar às mudanças que estavam em curso na ordem internacional.

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Diplomacia e democratização

por Antonio de Aguiar Patriota em 01/09/2013

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Na última década, a política externa brasileira tem sido capaz de se renovar e se antecipar às mudanças que estavam em curso na ordem internacional. Essas transformações foram revelando, ao mesmo tempo, uma maior dispersão do poder global, bem como a inclusão de mais países em desenvolvimento no processo de tomada de decisão. A diplomacia brasileira conquistou mais espaço e a inserção participativa do Brasil no cenário internacional tem sido seguida por uma incorporação crescente da sociedade brasileira nos debates da política externa do país. Um processo de refinamento da relação entre democracia e diplomacia está em curso no Brasil hoje em dia.

In the last decade, Brazilian foreign policy has been able to renew itself and to anticipate to changes that were in course in the international order. Those transformations have been revealing, at one time, a larger dispersion of global power as well as more inclusion of developing countries into decision making processes. Brazilian diplomacy’s conquer of more space and Brazil’s more participative insertion in the international arena have been followed by a growing incorporation of the Brazilian society into the debates of the country’s foreign policy. A process of refinement of the relationship between democracy and diplomacy is in course in Brazil nowadays.

É possível afirmar que a política externa brasileira tem se renovado e se antecipado às mudanças de uma ordem internacional em constante transformação. Há uma década, seguindo as diretrizes e as linhas de ação indicadas pelo ex-presidente Lula, estabeleceu-se um conjunto de objetivos e de iniciativas que continua a estruturar a inserção internacional do Brasil. Essa plataforma de inserção compreende avanços nas mais diversas áreas de atuação da política externa brasileira, especialmente no reforço de parcerias tradicionais, na articulação de novas parcerias – em particular, no mundo em desenvolvimento – e na promoção do multilateralismo.

Em uma década na qual a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) identificaram que o maior dinamismo do comércio global deu-se entre países em desenvolvimento, o Brasil aprofundou a integração na América do Sul e aproximou-se de outras regiões do “Sul”, como a África e o Oriente Médio. Da mesma maneira, em um período em que se observou um processo de descongelamento do poder global, o Brasil associou-se com convicção a outros países que trabalham pela reforma da governança global e pela atualização de seus processos decisórios. São exemplos desse movimento iniciativas como o G20 comercial, na Organização Mundial do Comércio, e a crescente coordenação entre os BRICS e o G4, que defende a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O compromisso com a integração regional figura como prioridade da ação externa do Brasil e marca nossa inserção internacional. A atenção diferenciada a cada um dos países vizinhos tem ampliado as agendas bilaterais, fortalecendo a coesão em uma região que se distingue, cada vez mais, pelo crescimento com progresso social, democracia e paz. As ênfases na eliminação da desigualdade econômica, na inclusão social e na participação cidadã caracterizam o compromisso regional com a redução de assimetrias, com o fortalecimento da soberania e com a defesa da democracia. No âmbito do Mercosul, a integração tem permitido a ampliação dos fluxos do comércio, mas também maior diálogo político e integração social. A

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UNASUL, que está prestes a configurar espaço de livre comércio, tem enveredado por áreas de cooperação que vão de defesa e integração física à observação eleitoral. Por sua vez, a CELAC constitui espaço de concertação política e convergência dos mecanismos de integração na região, estabelecendo compromissos de ação conjunta para a promoção do desenvolvimento sustentável.

Nas últimas duas décadas, assistimos a aceleradas alterações na distribuição do poder econômico e geopolítico mundial. Esse período coincide com um processo de aproximação entre o Brasil e países que vêm despontando como polos emergentes de poder, como África do Sul, China, Índia, Rússia, Turquia, os países da ASEAN, entre outros. A formação de grupos como o IBAS, criado em 2003, e o BRICS, reunido em um mecanismo formal desde 2006, insere-se no quadro mais amplo de redesenho da arquitetura internacional. Esses mecanismos têm contribuído para unir as vozes de países crescentemente engajados na criação de uma ordem internacional mais representativa do século XXI, ao mesmo tempo em que se aprofunda sua coordenação em diferentes áreas, das questões econômicas e financeiras à promoção do desenvolvimento sustentável. No âmbito do BRICS, o Brasil trabalhou para que representantes de seus países se reunissem periodicamente, nas principais capitais diplomáticas do mundo, o que tem fortalecido o diálogo entre seus membros, de modo a englobar temas que vão além do econômico-financeiro, contexto no qual o termo “BRICS” fora inicialmente inserido.

Em uma década na qual o relacionamento com os países do Sul figurou como um dos elementos que mais singularizaram a ação internacional do Brasil, a criação de novas e efetivas parcerias com o mundo em desenvolvimento tem dotado a diplomacia brasileira de projeção verdadeiramente universal. Na América Latina, no Caribe e na África, o maior engajamento diplomático brasileiro tem rendido dividendos concretos em setores que não se restringem à ampliação do comércio e dos investimentos bilaterais. Da mesma maneira, o Oriente Médio, a Ásia e o Pacífico despontam como novos interlocutores em temas de paz e segurança, comércio e investimentos, promoção do multilateralismo, parceria para o desenvolvimento, entre outros.

Há quase três anos, o início de um período de efervescência no mundo árabe, com demonstrações de novas aspirações por maior participação política e melhores perspectivas de emprego e renda, com a defesa de liberdade de expressão e respeito aos direitos humanos, representou importante marco nas relações internacionais contemporâneas. De certa forma, o Brasil soube antecipar-se a essas constatações, antevendo a importância de se estabelecer contatos mais diretos e densos com o Oriente Médio e o Norte da África. A realização das Cúpulas América do Sul-África (ASA) e América do Sul-Países Árabes (ASPA), a inclusão do Brasil como país observador na Liga Árabe, em 2003, e na União Africana, em 2005, e o reconhecimento do Estado Palestino pelo Brasil, em dezembro de 2010, inscrevem-se nessa lógica. Mais recentemente, outras iniciativas inserem-se nesse mesmo espírito. A adesão do Brasil ao Tratado de Amizade e Cooperação da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), tornando-se Parceiro de Diálogo da organização em 2012, responde a um momento de crescente dinamismo na Ásia.

A maior aproximação em relação aos países do Sul não transcorre em prejuízo do aprofundamento das parcerias com os países do Norte. O Brasil tem feito esforços para a modernização de uma agenda de diálogo e de cooperação com os polos estabelecidos da economia global. As relações com os Estados Unidos, a Europa, o Japão, o Canadá e a Oceania têm sido atualizadas, com a inclusão de novos temas na agenda, sendo atribuída ênfase especial à educação, ciência, tecnologia e inovação.

Em 2007, o relacionamento Brasil-União Europeia foi alçado à condição de parceria estratégica, o que representou significativa elevação do nível de interlocução e ampliação das áreas de cooperação bilateral. A criação do Fórum de Altos Executivos com os Estados Unidos, em 2007, representou um dos mais bem-sucedidos mecanismos de cooperação que o Brasil mantém nessa matéria, o que tem dinamizado o contato

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entre as duas sociedades. Como resultados concretos, estão a abertura de novos Consulados dos Estados Unidos no Brasil e a facilitação do processo de emissão de vistos, por exemplo. O estabelecimento de um mecanismo formal para debater e desenvolver projetos de combate à discriminação social nas sociedades brasileira e norte-americana, por meio de plano de ação conjunta assinado em 2008, também foi iniciativa pioneira. Durante o governo Dilma Rousseff, os Estados Unidos converteram-se no maior receptor de estudantes brasileiros pelo Programa Ciência sem Fronteiras. Foi, também, assinado o Tratado de Cooperação Econômica e Comercial (TECA) em 2011, com ênfase em inovação. Os presidentes Dilma Rousseff e Barack Obama associaram-se na iniciativa da Parceria para Governo Aberto e restabeleceram diálogo entre os Ministérios da Defesa, interrompido desde a denúncia do acordo militar bilateral, em 1977. São temas que figurarão entre os principais itens da agenda da visita de Estado da presidenta Dilma a Washington, em outubro de 2013.

O engajamento com o multilateralismo em suas múltiplas vertentes figura como importante vetor da plataforma de inserção internacional do Brasil desenvolvida ao longo dos últimos dez anos. Nos âmbitos comercial, financeiro, ambiental, social e de paz e segurança, o Brasil tem buscado promover a democratização da ordem internacional, elevando a voz dos países em desenvolvimento nos grandes debates contemporâneos. Como fruto desse esforço, é possível afirmar que a política externa brasileira tem, atualmente, participação em todos os debates internacionais de cunho estratégico, da consolidação do conceito de desenvolvimento sustentável às considerações políticas associadas à proteção de civis em conflitos armados, das discussões sobre os impactos do câmbio no comércio internacional à reforma da governança econômica e política global.

A política externa do governo Dilma Rousseff foi construída sobre as bases sólidas que herdou do período 2003-2010. A plataforma de inserção do Brasil, forjada na última década, consolidou-se e atualizou-se no governo Dilma Rousseff. O aprofundamento da integração regional se tem feito acompanhar da ampliação e da dinamização das relações com um número cada vez maior de parceiros em matéria de comércio, investimentos, ciência, tecnologia e inovação. A contribuição ativa aos grandes debates políticos e conceituais tem sido acompanhada pelo alcance verdadeiramente universal da diplomacia brasileira.

Já não há quem questione a ideia de que a ordem internacional evolui em direção à multipolaridade. Embora ainda persistam reflexos da ordem unipolar precedente, não há dúvidas de que os últimos anos criaram condições para a consolidação de uma política externa brasileira de abrangência global. Desde 2003, foram criados 77 novos postos no exterior, 20 deles na África. Atualmente, o Ministério das Relações Exteriores conta com uma rede total de 227 postos. Em dezembro de 2011, o Brasil tornou-se um dos doze países do mundo que mantêm relações diplomáticas com todos os demais membros da Organização das Nações Unidas. Brasília desponta como uma das principais capitais diplomáticas do mundo em desenvolvimento, abrigando 133 Embaixadas residentes. Esse aumento tem gerado resultados concretos para o comércio exterior brasileiro, propiciando melhores condições para identificar oportunidades de comércio e investimentos, uma vez que também aumenta a capacidade de apoiar as empresas nacionais e outros atores da sociedade brasileira com interesses cada vez mais presentes no exterior. Nesse contexto, o comércio exterior brasileiro praticamente quadruplicou de 2003 a 2012, enquanto o comércio global cresceu menos de 140% no período. Os dividendos obtidos em decorrência dessa ampliação da presença global do Brasil envolvem, evidentemente, componente político importante, com inegáveis impactos sobre nossa projeção mundial.

De janeiro de 2011 a julho de 2013, a presidenta Dilma Rousseff fez 45 viagens ao exterior. No mesmo período, o Brasil recebeu 48 visitas de chefes de Estado e de governo estrangeiros. Como ministro das Relações Exteriores, até julho de 2013, participei de 181 atividades no exterior, entre visitas bilaterais,

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eventos multilaterais e acompanhamento da presidenta da República. Durante esses dois anos e meio, o Brasil foi visitado por chanceleres estrangeiros em 91 ocasiões.

Aproveitando essas mudanças quantitativas e qualitativas, a diplomacia brasileira tem contribuído para a escolha do Brasil e de cidadãos brasileiros para exercer funções de relevo em órgãos multilaterais. A vocação para o diálogo e a capacidade de angariar consensos, características estabelecidas da diplomacia brasileira, têm trazido crescente reconhecimento ao Brasil e a seus nacionais. A recente escolha do brasileiro Roberto Azevêdo para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, por exemplo, não seria possível sem essa interlocução sobre temas de comércio e desenvolvimento com todos os quadrantes do mundo, incluindo tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. A eleição do professor José Graziano da Silva para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) foi, de maneira reconhecida, reflexo da associação de seu nome aos programas na área de segurança alimentar realizados no Brasil. O número de brasileiros em importantes cargos internacionais tem crescido de maneira significativa. Desde 2011, os brasileiros Robério Oliveira Silva, Bráulio Ferreira de Souza Dias, Roberto Figueiredo Caldas e Paulo de Tarso Vannuchi, entre outros, foram eleitos ou designados para cargos em instituições multilaterais. No mesmo período, o Brasil foi eleito para seis comitês e conselhos de organizações internacionais. Essas eleições e designações não são uma finalidade em si. Elas reforçam a autoridade do Brasil em temas prioritários para nossa agenda internacional, abrindo novos canais de comunicação e de promoção de pautas pela via da cooperação.

Da mesma forma, o Itamaraty, nos últimos dois anos e meio, também tem sido capaz de antecipar-se a desafios internacionais por intermédio de uma ação que alia a preservação de conquistas já realizadas, a denúncia de assimetrias e a proposta de novos caminhos. De maneira propositiva, ampliaram-se os espaços de atuação e a capacidade de propor questões para os debates internacionais. Temas como o debate sobre segurança alimentar, o vínculo entre paz, segurança e desenvolvimento, a proteção de civis e a responsabilidade ao proteger são algumas das ideias que, recentemente projetadas pela diplomacia brasileira, têm ganhado crescente espaço nos debates de política externa. A ampliação do Mercosul, com a incorporação da Venezuela e da Bolívia como membros permanentes – esta última em processo de adesão – e de Guiana e Suriname como Estados associados, e a diversificação da agenda da UNASUL podem ser analisadas por essa perspectiva. Também é possível afirmar que a forma de responder aos desafios da atualidade de maneira célere e moderna reflete-se, igualmente, no crescente contato do Itamaraty com a sociedade civil.

Como política pública, a política externa deve representar, de maneira fidedigna, os interesses dos cidadãos brasileiros em prol do desenvolvimento e da paz, em sintonia com os anseios globais por um mundo mais justo e estável. O Brasil carrega, em sua política externa, os mesmos princípios, valores e prioridades que o mobilizam internamente, projetando-se no mundo de maneira aberta e plural, reflexo da abertura e da pluralidade da sociedade brasileira. A adoção de um modelo de desenvolvimento que traz como elemento central um crescimento sustentado, aliado à redução das desigualdades históricas, tem contribuído para maior inclusão em termos econômicos, sociais e de participação política. Com esse espírito, no plano internacional, o Brasil também tem buscado ampliar a participação dos países em desenvolvimento na definição de temas e agendas de interesse comum. A defesa da democracia é pleito comum de nossa sociedade, e uma política externa que represente os verdadeiros objetivos nacionais deve ser, de modo inescapável, crescentemente participativa.

Na década de 1980, a redemocratização abriu grandes possibilidades para a inserção internacional do Brasil. Foi superada a dificuldade, característica de período anterior, de discutir certos temas políticos com convicção e credibilidade no plano multilateral. A diversificação do diálogo deu-se não só no âmbito do

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processo decisório interno, mas também no ambiente internacional. Um dos objetivos deste artigo é dar visibilidade ao trabalho realizado pela diplomacia do Brasil, no atual governo, em direção a maior diálogo com a sociedade.

Em mesa de debate da Feira de Literatura Internacional de Paraty de 2013, o filósofo Vladimir Safatle afirmou, sabiamente, que “nós temos agora um tipo de demanda política que passa pela capacidade de ler o que aparece nas ruas. (…) Uma democracia é sempre uma democracia em invenção”. A verdadeira democracia exige do Estado uma atitude simultânea de receber as demandas da sociedade e empreender transformações positivas duradouras. Com essa perspectiva, a política externa brasileira se tem preocupado em trabalhar por um mundo cada vez mais inclusivo, mais democrático e mais participativo. Mas esse esforço será mais bem-sucedido na medida em que soubermos estabelecer, no plano interno, um padrão também inclusivo, democrático e participativo.

A ampliação do diálogo com a sociedade foi estimulada por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. As experiências da Comissão Nacional para a Rio+20, da Cúpula dos Povos, dos Diálogos sobre Sustentabilidade e da mobilização das mídias sociais buscaram na força popular o impulso à formulação das posições brasileiras. Com o fracasso de iniciativas anteriores de debates em temáticas ambientais e de desenvolvimento sustentável, o multilateralismo vinha de uma sequência de insucessos. A capacidade do Brasil em exercer liderança nesse tema permitiu a construção de consenso entre governos, e o contato amplo com a sociedade civil aumentou a credibilidade desses esforços.

Outras iniciativas pontuais também merecem ser citadas nesse contexto. O seminário “Lado a Lado: a Construção da Paz no Oriente Médio – um Papel para as Diásporas”, realizado em Brasília, em julho de 2013, reuniu representantes das diásporas judaica e árabe para dialogar sobre como a convivência harmoniosa pode lançar luz sobre maneiras de alcançar a paz no Oriente Médio. O seminário “Atuais Desafios à Paz e Segurança Internacional: a Necessidade de Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas”, organizado em Praia do Forte, em maio de 2013, representou a primeira experiência de discussão sobre o tema da reforma com acadêmicos, jornalistas, membros de ONGs, além de representantes governamentais, de maneira aberta e inclusiva. Frequentes e diversificados têm sido, também, os contatos com estudantes e com o meio acadêmico. Em palestra na Universidade Federal do ABC, em julho de 2013, recebi uma carta, assinada pelo Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI), que reivindica maior transparência e democracia na política externa brasileira. O momento não poderia ser mais oportuno. Na ocasião, defendi que, para continuar a desenvolver um olhar próprio sobre o que acontece no mundo, será importante que o governo brasileiro saiba captar expectativas da sociedade e facilitar o conhecimento e a compreensão sobre as opções de política externa. Esse esforço confere maior legitimidade e equilíbrio a nossas posições. Mais do que isso, permite extrair um novo elemento de socialização que comprova o acerto de abrir-se uma discussão sobre diplomacia a outros atores.

A relação entre democratização e política externa envolve, necessariamente, o uso de canais variados de contato direto com a população, e as mídias sociais cumprem importante papel nesse sentido. Estabelece-se, assim, um processo que envolve não somente a prestação de contas sobre o trabalho realizado pelo Itamaraty, mas também a coleta de comentários, sugestões e críticas a essa atuação, possibilitando a formulação de políticas públicas atentas à evolução dos anseios nacionais. A criação do canal Diplomacia Pública no Ministério das Relações Exteriores ampliou os espaços de interação, antes limitados ao contato com a imprensa e agora abertos a toda a sociedade. A comunicação do MRE passou, dessa maneira, a um estágio posterior de interação com o público, não apenas prestando contas e informando o que foi feito, mas também recebendo sugestões, críticas e comentários. A participação do Itamaraty nas mídias digitais

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tem sido reconhecida como uma das mais atuantes no mundo. A página do Ministério no Facebook já recebeu mais de 24 mil “curtidas”, nosso álbum no Flickr tem mais de 3.600 fotos, e nossos vídeos no YouTube já foram vistos mais de 800 mil vezes. O perfil do Ministério no Twitter, que conta com mais de 87 mil seguidores, está entre as 20 maiores contas relacionadas a temas de política externa em número de seguidores, de acordo com recente estudo publicado pelo Twiplomacy.Esses fatos fazem do Itamaraty referência em comunicação e interação social entre as principais chancelarias do mundo.

A diplomacia do governo Dilma caracteriza-se, também, por especial atenção ao setor empresarial. Já foram realizadas mais de 130 feiras de negócios no exterior e promovidas mais de 40 missões de investimento no Brasil. Nas viagens internacionais, a presidenta Dilma tem mantido contato pessoal com empresários. Essa abertura ao empresariado brasileiro e estrangeiro revela, ao mesmo tempo, a execução do papel governamental em duas frentes: o contato com a sociedade, para ouvir opiniões e demandas, e a transformação dessas perspectivas em realidades concretas. Com esse espírito, avaliando-se que o Mercosul figura como o principal mercado externo para manufaturados brasileiros e como importante ambiente econômico de investimentos que têm origem ou destino no Brasil, identificou-se a necessidade de ampliar os contatos econômicos entre as empresas de seus países membros. Em novembro de 2012, a presidenta Dilma Rousseff participou da XVIII Conferência Industrial Argentina, organizada pela União Industrial Argentina (UIA) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em Los Cardales, ocasião em que altas autoridades e empresários dos dois países examinaram a integração econômica bilateral como resposta aos desafios da inserção internacional no mundo contemporâneo. Por iniciativa da Presidência Pro Tempore brasileira, foi realizada a primeira edição do Fórum Empresarial do Mercosul em dezembro de 2012, atendendo a uma demanda concreta do empresariado nacional e dando impulso a um relacionamento mais próximo com os grupos empresariais de nossos sócios no bloco.

Durante minha gestão à frente do Ministério das Relações Exteriores, compareci regularmente a Audiências Públicas na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, ocasiões que me permitiram apresentar e prestar contas da condução da política externa brasileira aos representantes parlamentares, bem como ouvir uma pluralidade de reações ao trabalho efetuado. A coordenação com outros Ministérios e órgãos do Poder Executivo também tem rendido bons frutos. A interlocução com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, por exemplo, tem articulado interesses de política externa e experiências exitosas no âmbito interno. A criação da Divisão de Segurança Alimentar, Desenvolvimento e Paz no Itamaraty insere-se nessa perspectiva, bem como a organização da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, a realizar-se em outubro de 2013.

Em antecipação à carta que me foi dirigida em São Bernardo do Campo, o Ministério das Relações Exteriores vem trabalhando para aproximar a política externa dos cidadãos brasileiros. Desde o primeiro semestre de 2013, em coordenação com a Secretaria-Geral da Presidência da República, o Itamaraty vem trabalhando na criação de um foro consultivo de política externa. A ideia de comunicar-se com a sociedade civil não é necessariamente nova. No Mercosul, no âmbito das Reuniões Especializadas sobre Agricultura Familiar (REAF), a participação da sociedade civil tem ocorrido como exemplo de êxito, o que representa inspiração para a democratização em toda a agenda de integração regional. O Comitê de Segurança Alimentar da FAO também desenvolve iniciativas de interlocução e debate sobre medidas para garantir a segurança alimentar em nível mundial. O que é novo é o fato de tratar-se de um mecanismo permanente, estruturado, com funções consultivas e que terá comunicação de mão dupla: expor posições, esclarecer simplificações porventura disseminadas por veículos de comunicação em massa, bem como receber insumos, ouvir a sociedade, oxigenar os debates, trazer novas ideias e propostas.

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A geração atual constatará transformações substanciais na política internacional, como a ultrapassagem dos Estados Unidos pela China como a maior economia mundial, um tipo de mudança que não ocorria desde o século XIX, quando a economia dos Estados Unidos superou a do Reino Unido. A modificação do centro de poder econômico também será seguida de uma multipolarização cada vez maior do poder político, ampliando a capilaridade do sistema internacional. Os BRICS provavelmente adquirirão importância crescente na definição da agenda internacional, e os países em desenvolvimento representarão uma voz cada vez mais forte para a busca de seus objetivos comuns. Nesse contexto, a reformulação da ordem global terá consequências significativas para países como o Brasil, e estamos preparando-nos para essas transformações.

A conformação de um mundo cada vez mais multipolar abre enormes oportunidades de atuação para o Brasil. De maneira conjunta, surgem, também, novas responsabilidades. Como escreve Moisés Naím em The End of Power, os modos e os lugares de manifestação de poder e influência têm se diversificado. Em compasso com o descongelamento do poder internacional em direção à multipolaridade, observa-se também maior aspiração da sociedade civil à participação nos processos decisórios nacionais e internacionais. De certa forma, isso traz novas responsabilidades para os governos no plano doméstico e também para a comunidade internacional. Trata-se de adaptar nossos métodos de trabalho a um novo tempo, que desejamos cada vez mais democrático.

Com a redemocratização no plano interno, o Brasil passou a gozar de maior legitimidade para promover a democratização dos processos decisórios no plano internacional. Ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento da ação da democracia brasileira envolve uma abertura crescente do governo aos insumos da sociedade civil. Nesse espírito, o Itamaraty está adotando iniciativas específicas que apontam na direção de uma diplomacia mais aberta à interação com a sociedade. O Ministério das Relações Exteriores quer, agora, sistematizar essa interação de maneira permanente e institucional.

Assim como ocorre no plano doméstico, estou cada vez mais convencido de que a efetiva mobilização da opinião pública ao redor do mundo é fundamental para o equacionamento de certos impasses que perduram há décadas no cenário internacional, como aqueles associados à falta de legitimidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas, às dificuldades para a solução do conflito entre Israel e Palestina e à atenção aos interesses dos países em desenvolvimento no sistema multilateral de comércio, por exemplo. A maior participação das sociedades é fundamental para pressionar os governos ao redor do mundo a evoluir em direção aos grandes objetivos que nos unem como cidadãos. A diplomacia do diálogo transforma-se na verdadeira fonte de poder da política externa do Brasil neste início de século. Consultar a sociedade civil significa dotar a política externa de maior legitimidade, força e criatividade.

Notas

[1] Banco Mundial, 2013. ↑

[2] Selecionado para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio em maio de 2013. ↑

[3] Eleito para o cargo de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura em maio de 2011 ↑

[4] Eleito para o cargo de diretor-executivo da Organização Internacional do Café em setembro de 2011. ↑

[5] Designado para o cargo de secretário-executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica em janeiro de 2012. ↑

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[6] Eleito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos em junho de 2012. ↑

[7] Eleito para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em junho de 2013. ↑

[8] O Brasil foi eleito para: Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), em outubro de 2011; Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO); Conselho da Organização Marítima Internacional, em novembro de 2011; Conselho de Administração e o Conselho de Operações Postais da União Postal Universal, em outubro de 2012; Conselho de Direitos Humanos em novembro de 2012; Comitê Organizacional da Comissão de Construção da Paz das Nações Unidas em dezembro de 2012; ↑

[9] Twiplomacy Study 2013, disponível em http://twiplomacy.com/twiplomacy-study-2013/. ↑

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Seria a política externa brasileira um problema para o Itamaraty?

por Gonçalo Mello Mourão em 02/09/2013

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O autor comenta, de um ponto de vista pessoal, o artigo de Sean Burges, de título inverso, publicado no volume 21, nº 3 desta revista (edição de jan./fev./mar. 2013 – “Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?”).“Respondendo à pergunta inicial, creio poder dizer que essa política externa não é um problema para o Itamaraty, nem é um problema para o Brasil. E é para essa política externa que vai se abrindo, aos poucos, o cenário internacional”, diz o articulista. Para ele, o Itamaraty esteve na vanguarda em muitas formulações, entre elas, a abertura de Embaixadas residentes em todos os países das Américas e o processo de criação da CELAC e da Unasul; a realização das reuniões de cúpula com os países caribenhos; as cúpulas América Latina/África e América Latina/Países Árabes; o estabelecimento das 200 milhas de mar territorial; a criação do Tratado de Cooperação Amazônica; e a tentativa de facilitação do diálogo com o Irã.

This article is a commentary that reflects only the author’s own personal views about Sean Burges’ article published in volume 21, nº 3 of this journal under the title ”Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?” This author responds to the criticism made by Burges that Itamaraty has been little productive, too concerned with domestic policy issues, and isolationist.

As considerações a seguir pretendem comentar, de um ponto de vista estritamente pessoal, o interessantíssimo artigo do professor doutor Sean Burges, de título inverso, publicado no volume 21, nº 3 da revista Política Externa de jan./fev./mar. 2013 (”Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?”).

É alvissareiro que um professor, nos antípodas, se ocupe com os problemas e dificuldades da formulação e execução da política externa brasileira. Talvez, porém, essa mesma condição de antípoda lhe empane um pouco a perspectiva em seu enfoque. Antípoda, agora, não mais geográfico, mas teórico.

Já ao pretender ser “provocativo e incitar ao debate a respeito da política externa brasileira e o papel do Itamaraty em sua formulação e implementação” o artigo parece ser ingênuo ou perde perspectiva. Anos de discussão interna no Brasil, sobre o assunto, inclusive através desta revista Política Externa, onde seu artigo é publicado e que já se dedica, há mais de 20 anos, a esse e outros temas, fazem com que hoje não necessitemos mais de incitação para continuar a discuti-lo.

Talvez a própria frase inicial do artigo seja a mais clara afirmação do primeiro dos dois grandes equívocos que o constroem: “O Brasil ingressou no cenário internacional.” É uma afirmação respeitável, mas que, acredito, deforma a perspectiva que creio mais próxima da realidade, a de que é o cenário internacional que se abre para o Brasil. Será, talvez, devido a essa distorção, que grande parte da apreciação do professor Burges se mostrará equivocada.

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Por exemplo, já em seu segundo parágrafo, afirma o professor que o Brasil “vê-se em posição de ser mais um formulador que um seguidor de regras”. Ora, não é essa, claramente, a dicotomia que nos interessa, a nós, brasileiros: não seguir regras alheias não significa, necessariamente, ter a obrigação de formular novas. Significa, para nós, desde uma perspectiva mais igualitária das relações internacionais, buscar entendimentos para a formulação conjunta de novas regras. E não se trata, aqui, de uma postura Sul-Sul ou Sul-Norte, mas de uma postura globalizante: a responsabilidade pela formulação das regras e a capacidade de formulá-las é e deve ser de todos.

O outro equívoco que perpassa o artigo, naturalmente, é o que está subjacente à pergunta de seu título e à resposta positiva que lhe dá e que o autor formula, claramente, no final de seu segundo parágrafo: “o ponto forte da política externa brasileira – a instituição do Itamaraty e seu corpo hierático de diplomatas profissionais – talvez seja, no atual momento, sua grande fraqueza”.

Não é fácil para um diplomata profissional – o que quer que isso queira dizer – participar de uma discussão acadêmica a respeito do Itamaraty, ainda mais se for para defendê-lo, pois sempre tenderá a ser visto como corporativo e míope em sua perspicácia e hierostático – se me permitem o neologismo – em sua postura. Mas, como creio que tampouco seja fácil para o leitor – seja ele acadêmico ou não ler com absoluta isenção o que o diplomata tem a dizer sobre o assunto, espero contar com esforço de leitura semelhante ao esforço de isenção que procurei seguir nessas considerações: perdoe-me, portanto, o leitor, se comprometo sua inocência ou ingenuidade.

A robustez do Itamaraty, de acordo com o professor Burges, será responsável pela fraqueza da atual e da possível futura política externa do Brasil. Entre outras, porque, segundo o professor, a instituição padeceria, atualmente, de conservadorismo e incapacidade de inovação, assim como de “cautela defensiva e tendências burocráticas isolacionistas que se converteram na marca desse corpo diplomático”. Ou, por outras, não se abriria às sábias opiniões e conselhos acadêmicos ou de outras procedências.

A inatividade e a oclusão da poderosa instituição seriam, assim, os responsáveis diretos por vir o Brasil a perder a boa ocasião que o presente lhe oferece, de ter uma política externa, o que o Itamaraty não estaria sabendo aproveitar.

Esse segundo equívoco é plenamente amparado pelo primeiro, ou seja, a dificuldade em aceitar a possibilidade de que se pretenda fazer uma política externa seguindo parâmetros outros que não os determinados pelo cenário internacional em que se ingressa; a dificuldade em aceitar que o cenário internacional possa se abrir para novas propostas de paisagem.

Corolário dessa distorção, também, é a fútil cobrança, altamente contestável para um país como o Brasil, de que a política externa não seja, como requer e parece exigir o autor, “relegada à periferia da política interna”. O que quer dizer isso? Que a política interna, então, deve ser relegada à periferia da política externa? Que ambas devem ter o mesmo peso? É, na verdade, um falso problema.

O autor, ainda nos pródromos de seu artigo – e ainda que sem atribuí-la diretamente ao Itamaraty – diz que “a rígida estase da política externa brasileira contemporânea tem que ser reexaminada”. Não sei bem o que entender por “política externa brasileira contemporânea”: será a dos últimos dois anos?; a dos últimos 10 anos?; a dos últimos 20 anos?; será a dos últimos dois meses? De qualquer modo, é um equívoco: a política externa brasileira contemporânea – dos dois últimos meses ou dos últimos 20 anos – nunca esteve em “estase” ou em qualquer outro quadro clínico de estagnação. Terá circulado em baixa ou alta pressão, mas nunca paralisado. Exigir da política externa de um país a vibração constante de uma ativa taquicardia

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faz tanto mal quanto a um coração. Inclusive, e para usar uma expressão clássica do jargão profissional do diplomata, que talvez o autor conheça, há momentos, como dizia Talleyrand, em que é urgente esperar.

Mas o professor não quer esperar e nos exige uma vibração constante. Sobretudo agora, quando, entende ele, o Brasil deve agarrar uma oportunidade que se lhe oferece e o Itamaraty correria o risco de “se transformar em um obstáculo”, justamente “em um momento em que o sistema global passa por um período de rápidas mudanças”.

Nos meus poucos 30 e mais anos de carreira, muitas vezes li que “passamos por um momento de rápidas, grandes mudanças”. Mas o professor tem razão, o momento atual é de rápidas mudanças. Porém, o professor também sabe que há mudanças e mudanças. Uma intervenção no Iraque, no Afeganistão ou na Líbia, por exemplo, foram grandes mudanças, como as intervenções na América Central ou na Indochina; mas também não foram. Matar Bin Laden foi uma grande mudança, mas matar Toussaint Louverture também foi; foram e não foram. Foi tudo, ontologicamente, como dizem os hispânicos, más de lo mismo. Ademais, o professor sabe, também, que rápidas mudanças não significam, necessariamente, progresso – até, muitas vezes, pelo contrário: podem representar estagnação ou mesmo regressões. A Inglaterra fez corpo mole no auxílio aos republicanos espanhóis e agora quer, ansiosamente, vender armas aos rebeldes sírios: há progresso nesta rapidez? Como gostava de dizer um embaixador antigo, a urgência dos outros não é, necessariamente, a minha urgência.

Diz o professor, então, que “o sistema global passa por um período de rápidas mudanças” e corremos o risco – o Brasil e o Itamaraty – de não estar à altura daquelas transformações globais. Mas, o que é isso que o professor chama de “sistema global” que se transforma? Quais são essas “rápidas mudanças?” Será o sistema global que se transforma o do atual Conselho de Segurança? Serão rápidas mudanças as sucessivas negociações falidas conduzidas pelo Quarteto na Palestina? Será rápida mudança o mundo chamado desenvolvido querer eleger o candidato mexicano à OMC? Será sistema global o continuado boicote a Cuba e o comportamento singelo face a outros sistemas, igualmente ou mais comprometedores?

Sejam o que forem, as “rápidas mudanças” do professor estariam encontrando no Brasil aquelas nefastas “cautela defensiva e tendências burocráticas isolacionistas” que caracterizariam, atualmente, o Itamaraty. Assim, para o professor Burges – e é ele quem exemplifica – as posições brasileiras com relação à criação da Unasul e da CELAC, com relação à intervenção na Líbia e na Síria, com relação à questão Palestina e até mesmo com relação à sugestão de uma nova Responsabilidade ao Proteger seriam “cautela defensiva” e “tendência burocrática”.

É natural que pense assim, pois nem por um momento põe em questão o julgamento cínico, sobre a valorização da Responsabilidade ao Proteger, que ele próprio atribui àqueles que têm o que ele chama de “cálculos sérios sobre questões de poder” (“cálculos sérios?” o que é isto? é não levar a sério a Responsabilidade ao Proteger e se descuidar de algumas vidas humanas irrelevantes para aqueles mesmos “cálculos sérios?”); em nenhum momento se pergunta sobre a legitimidade escatológica das intervenções na Líbia ou na Síria; em nenhum momento se pergunta sobre a real validade do interminável e improfícuo percurso dos esforços internacionais para a obtenção da paz na Palestina; em nenhum momento considera o fato de que os demais países sul-americanos e não apenas o Brasil, estão igualmente engajados, uns mais outros menos, na construção da Unasul e da CELAC. É verdade que, talvez, não seja esse o escopo do artigo, que seria apenas um exercício de julgamento sobre o Itamaraty e a política externa brasileira; mas os posicionamentos do Brasil naquelas questões são peremptoriamente desqualificados no artigo, em nome de um cenário internacional congelado em torno de noções, cuja perversidade apenas tem concorrido para perenizar essa mesma perversidade. Não compactuar com aquela perversidade significa, para o autor, “cautela” e “burocracia” e, portanto, corroboraria um claro “não”, em resposta à pergunta

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que se faz de se a atual política externa é ou não importante para o Brasil. Não compactuar com aquela perversidade seria, então, para o professor, algo assim como um “cálculo pouco sério”?

É verdade, o autor considera, candidamente, que, em certo momento, a política externa foi “estrategicamente” importante para o Brasil. Mas quando? Quando – diz ele – por causa de um ou outro discurso presidencial nas Cúpulas da Terceira Via e em Davos, “instaurou-se nas capitais do Norte a opinião implícita de que o Brasil passara a ser um interlocutor viável na América do Sul”. Ou seja, foi importante para o Brasil porque, em um momento fortuito, foi importante para as “capitais do Norte”… Eis aí um julgamento, não geográfica, mas teoricamente antípoda.

E, assim, ao considerar, então, em seu artigo, que a força do Itamaraty faz a fraqueza da política externa do Brasil, será, mais uma vez, baseando-se em valores alheios que não questiona, que ele nos condenará. Deduz, então, que uma política externa como acredita ser a brasileira, que valoriza, invariavelmente, a preservação da soberania – sua e alheia – e a preservação da “autonomia do país, expressa em termos de multilateralismo, direitos humanos, democracia e desenvolvimento”, é uma política externa problemática, em seu entender, pois, entre outras considerações:

a) “os demais Estados importantes do sistema internacional, principalmente as potências econômicas e militares estabelecidas, veem-se desconcertadas” com ela;

b) “desconcertante para os de fora, é a tendência simultânea e quase idealista de afirmar a centralidade das normas do direito internacional”;

c) “desconcerta as capitais do Norte a para eles incompreensível atitude brasileira frente a situações como a do Irã”;

d) “a postura brasileira parece não entender que algumas questões são vistas como transcendendo os conceitos westfalianos de soberania, o que exige a reconsideração de atitudes voltadas para o cerceamento das iniciativas multilaterais”.

Caberia perguntar, a respeito de cada um desses exemplos:

a) quantos e quais são os “Estados importantes do sistema internacional” e para quem? Os Estados Unidos, a Rússia e a França, ou a Argentina, a Bolívia e Angola? E o que é o “sistema internacional”? Um Conselho de Segurança inoperante e a OTAN, ou uma Unasul e uma União Africana em construção? Se aquelas potências se veem desconcertadas, não se veem também desconcertados os países que são por elas feridos em suas soberanias?

b) desconcertante, para nós, é questionar a centralidade das normas de direito internacional, sobretudo quando este questionamento se faz em nome da razão da força de uma soberania autoritária, em detrimento de outras soberanias cuja única e singela razão é o direito internacional;

c) desconcerta, também, muitas outras capitais do mundo a dupla medida, no caso de “situações como a do Irã”, quando se trata de “situações como a de Israel”, por exemplo;

d) do mesmo modo, se poderia dizer que outras posturas não entendem que algumas questões só possam ser vistas westfalianamente e não possam ter outra solução a não ser no seio das iniciativas multilaterais.

O professor Burges parece não entender que a realidade internacional pode – e sobretudo deve – ser vista de vários modos e que não pode ser aceitável que a única visão correta e fecunda seja a dos “Estados

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importantes do sistema internacional, principalmente as potências econômicas e militares estabelecidas”, que ele parece entender, aliás, que se desconcertam com muita facilidade e frequência. Mas o que nos desconcerta são a facilidade e frequência com que se leem artigos repetindo assertivas perversas como: “o Brasil estaria se aproximando da posição australiana e canadense, que reivindica o pleno domínio do ciclo dos combustíveis nucleares, implicando o conhecimento de como construir rapidamente uma bomba, caso essa necessidade se apresente no futuro”.

Desconcerta, também, que o professor opine que o Brasil deva considerar assinar acordos que imponham limites à sua soberania, em nome do extraordinário princípio que ele declara: “Um enfoque um pouco mais realista do sistema internacional seria particularmente útil neste assunto” (grifo meu). Ora, como se sabe, o Brasil já é parte em diversos instrumentos internacionais com aquele viés; e aquele “realismo”, que nos é cobrado, é brandido em nome de uma determinada postura, para desqualificar outras posturas por supostamente irrealistas. É este enfoque “realista” do professor que permite, por exemplo – e a justifica – a ausência, sem dúvida injustificável, no Tribunal Penal Internacional de uma ou outra potência.

Desconcerta mais ainda, que o professor considere que o Brasil “vem mostrando tendências imperialistas” e aduza os exemplos: na Bolívia – quando, pelo contrário, o atual e o anterior governo brasileiros foram mesmo censurados por parcelas da opinião pública nacional por não terem mostrado aquelas tendências –; no patrulhamento anticontrabando da fronteira com o Paraguai – quando se sabe que são episódios frequentes, há anos, as incursões ocasionais tanto brasileiras como paraguaias, cá ou lá –; em pressões políticas a portas fechadas sobre a Venezuela e o Equador – negociação diplomática (“a portas fechadas”, censura o professor, como se todas as negociações diplomáticas se devessem fazer no cenáculo de um auditório universitário) é meramente pressão política? Francamente…

Finalmente, depois disso tudo, o autor já não mais nos desconcerta, quando encerra seu capítulo sobre nossa fraqueza dizendo, deslavadamente, no artigo, que “o problema é que tanta preocupação em manter uma fachada substantiva de respeito pela soberania prejudica o exercício do poder necessário às atividades de administração regional”. Ora, que direito temos nós de nos arvorar em administradores regionais, ou buscar aquele poder que o autor considera “necessário” para tanto e muito menos exercitá-lo? E, sobretudo, que direito tem o autor de se arvorar na empáfia de exigi-lo de nós?

Esta diferença em nossa postura é o que o professor Burges, embebido porventura de todos os conceitos de relações internacionais baseados em relações de domínio e opressão e não de parceria, não possa talvez entender. Escapa a ele, assim, todo o esforço de política externa que vem sendo realizado – e não só pelo Brasil – no sentido de desenvolver parcerias, no sentido de estabelecer semelhanças, no sentido de resgatar experiências comuns, no sentido de procurar mudar as relações de domínio e opressão nas relações internacionais.

Se o Itamaraty não esteve na vanguarda da formulação inicial de uma ou outra iniciativa de política externa do Brasil, como clama o professor – e, de resto, nenhum serviço diplomático em nenhum país do mundo o esteve sempre – o Itamaraty esteve, certamente, no fulcro de sua execução. E em muitas outras formulações, esteve, sim, na vanguarda. A abertura de Embaixadas residentes em todos os países das Américas e o processo de criação da CELAC e da Unasul; a abertura de Embaixadas residentes em quase todos os países da África; a realização das reuniões de cúpula com os países caribenhos; as cúpulas América Latina/África e América Latina/Países Árabes; a criação da Agência Brasileira de Cooperação; a luta pela reforma estrutural das Nações Unidas, inclusive do Conselho de Segurança e do Conselho de Direitos Humanos; o estabelecimento das 200 milhas de mar territorial; a criação do Tratado de Cooperação Amazônica; a tentativa de facilitação do diálogo com o Irã; a intensificação de cursos de treinamento de

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diplomatas estrangeiros de países em desenvolvimento; a modernização do sistema consular em apoio às comunidades brasileiras no exterior; a realização da Rio-92 e, posteriormente, da Rio+20; etc.

O professor Burges utiliza-se do engajamento mais intenso com a África, durante o governo Lula, para insinuar, candidamente, que o Itamaraty a ele se opôs, aduzindo o que diz ser o exemplo de alguns embaixadores que se teriam aposentado, para não compactuar com a nova política. Ora, se dois ou três embaixadores o fizeram – e o fizeram com muita dignidade e é grande o respeito por eles dentro e fora do Itamaraty – grande foi, também, o entusiasmo dos que dentro do Ministério das Relações Exteriores impulsionaram aquela política, voluntariando-se, inclusive, para ir servir nos novos postos que se abriam na África, na Ásia, na Europa e nas Américas.

Tudo isso vai frontalmente de encontro ao que afirma o professor sobre o Itamaraty, no sentido de que suas “estruturas e tradições burocráticas dominantes não são propícias à incorporação de inovações”.

Pois a verdade é que o Itamaraty conserva e inova.

Nem podia ser de outro modo. A política externa de um país tem a mesma condição paradoxal, com relação aos homens, que tem a História: nós vivemos no curto prazo de nossas vidas, a política externa vive nesse curto prazo mas, também, no longo prazo da vida e da história do país. Esse paradoxo talvez explique a impaciência generosa do professor Burges, ao recomendar que o Itamaraty “se adiante e assuma a frente”, para não correr o risco de “aferrar-se a sua posição defensiva e acabar correndo o risco de se ver marginalizado, à medida que outros ministérios e agências, sentindo-se frustrados, acabem por se distanciar e desenvolvam sua própria capacidade de política internacional independente”.

Pois isso, também, o Itamaraty vem fazendo. Estabeleceu escritórios regionais em oito Estados da Federação, estrutura nacional que em pouquíssimos outros serviços diplomáticos pode ser encontrada semelhante. Desenvolve, através da Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG, entre outros de seus organismos, relação estreita e fecunda com os mais de 50 cursos de Relações Internacionais existentes nas universidades de todo o país. Estabeleceu, através da mesma Fundação e do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais – IPRI, vasto programa de publicação de trabalhos sobre os aspectos mais variados das relações internacionais, produzidos por autores das mais variadas origens, brasileiros e estrangeiros e aferrados às mais variadas opiniões. Promove seminários e encontros setoriais sobre aspectos diversos das relações internacionais e da política externa, com a participação ampla da academia e da chamada sociedade civil, inclusive estrangeira. O ministro das Relações Exteriores talvez seja o mais assíduo frequentador de comissões do Congresso Nacional; e o porta-voz do ministro encontra-se, quotidianamente, com a imprensa, hábito não tão comum na grande maioria dos países. Mais de 50 diplomatas – inclusive mais de 10 embaixadores – estão lotados em outros órgãos da administração pública – federais, estaduais e municipais – contribuindo para estabelecer vínculos operativos entre aqueles órgãos e o Itamaraty.

O professor Burges é generoso e, com boas intenções, afirma, como vimos, que “a rígida estase da política externa brasileira contemporânea tem que ser reexaminada”. Talvez o professor possa, também, reexaminar seus conceitos sobre a política externa brasileira e o Itamaraty. Talvez possa pensar sobre a natureza das iniciativas de política externa conduzidas pelo Ministério, que não pretendem bombardear ninguém, nem exercer nenhuma espécie de domínio sobre quem quer que seja, nem fabricar bomba atômica, nem obrigar os outros a fazer isso ou aquilo em suas casas, nem entregar as relações internacionais ao poder discricionário de quem tenha o poder da força e não ao poder do direito, nem impor soluções sem negociação exaustiva. Iniciativas que pretendem estabelecer relações de parceria e

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cooperação nas relações internacionais e não manter o cenário atual que se orna de uma paisagem de dependência e domínio.

Respondendo à pergunta inicial, creio poder dizer que essa política externa não é um problema para o Itamaraty, nem é um problema para o Brasil. E é para essa política externa que vai se abrindo, aos poucos, o cenário internacional. Talvez não pela porta estreita cuja chave tranca as grandes potências ou pela porta grande da subserviência a elas e a seus parâmetros mas pelas outras portas, pelas muitas outras portas de quem em algum momento acredita que o poder da amizade e da construção de um mundo solidário é maior que o poder do interesse e do egoísmo. Porque o Brasil, como de resto todos os demais países, não é uma entidade amorfa e sem coluna, mas é o somatório de todos e cada um dos brasileiros. E nesse sentido o professor Burges tem razão, todos devem poder contribuir para a formulação da política externa. O cirurgião cardíaco deve ouvir o pneumólogo, o anestesista, o hematólogo e outros especialistas com muito cuidado, antes de operar; mas quem opera o coração com bisturi certeiro com algum sucesso, é ele, não o dentista.

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o papel das imagens no caso da Política Externa Independente (1961-1964) » Política Externa

Dinâmicas do processo decisório em política externa a partir de uma perspectiva cognitiva: o papel das imagens no caso da Política Externa Independente (1961-1964)

por Fábio Albergaria de Queiroz em 03/09/2013

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Este artigo tem como objetivo avaliar o papel de elementos cognitivos, mais especificamente o papel das imagens na criação e implementação da “Política Externa Independente” – PEI (1961-1964), um plano de ação que moldou a estratégia brasileira de inserção internacional em um contexto paradigmático, marcado por mudanças estruturais notáveis. Como resultado, o estudo concluiu que os processos de tomada de decisão da PEI foram profundamente vinculados a um conjunto de crenças, valores e imagens que os tomadores de decisão e formuladores de políticas levaram com eles, orientando e muitas vezes determinando a formação dos interesses nacionais.

This article aims at evaluating the role of cognitive elements, more specifically the role of images, at the establishment and implementation of the so-called “Independent Foreign Policy” – PEI (1961-1964), a plan of action that shaped the Brazilian strategy of international insertion in a paradigmatic context, marked by remarkable structural changes. As a result, this study concluded that PEI’s decision-making processes were deeply bound to a set of beliefs, values and images that the decision makers and policy makers actors carried with them, guiding and often determining the formation of the national interests.

Introdução

Comumente diz-se que a política externa de um país representa os interesses e objetivos deste ator, em suas diversas fases e faces, no plano internacional, perante outros Estados. Tendo como ponto de partida esta assertiva, o elemento central da análise sobre o tema recai, consequentemente, nas ações estatais e nos elementos condicionantes destas ações como, por exemplo, os estímulos oferecidos por seus homólogos na condução de sua política exterior (VERTZBERGER, 1990; VIGEVANI, 1995; OLIVEIRA, 2005).

Assim, objetivamente, a natureza definidora das ações no campo da política externa, de acordo com Wilhelmy (1988; p.148), tem como referência o conjunto de atividades políticas pelas quais cada Estado promove seus interesses perante os demais países. Contudo, a inegável complexidade e amplitude do escopo de ação destas unidades referencias levaram Russel (1990; p. 255) a uma definição mais abrangente – e coerente com o atual cenário global transnacional – para o que vem a ser política externa: a área particular da ação política dos governos, abrangendo três grandes dimensões: político-diplomática, militar-estratégica e econômica – e que se projeta no âmbito externo ante uma miríade de atores e instituições governamentais e não governamentais.

Logo, neste complexo cenário em que os destinos de seus atores se entrelaçam num contexto favorável a conexões das mais variadas ordens, tanto no plano bilateral como multilateral, surgem algumas questões

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paradigmáticas, dentre as quais: por que e como as decisões de política exterior são tomadas? Quais os limites explicativos de suas condicionantes domésticas e externas? As respostas para estas perguntas dependerão de uma série de variáveis de natureza diversa, que vão desde critérios materiais e objetivos até aqueles elementos ditos não tangíveis, localizados no campo das ideias.

Como exemplos destas variáveis podemos citar: capacidade militar e tecnológica; geografia; recursos naturais e humanos; o papel desempenhado por grupos de interesses e pelas burocracias domésticas especializadas; o processo de formação de identidades entre os Estados ou, em outras palavras, do conjunto de significados que estes atores atribuem a si próprios em relação aos outros em um dado contexto ou, ainda, o papel das ideias e crenças compartilhadas legitimando, restringindo, capacitando e/ou constituindo a ação dos tomadores de decisão.

É válido pontuar que por estar diretamente vinculada à consecução dos interesses vitais dos Estados desde sua gênese vestfaliana, quanto à política externa observa-se que a produção intelectual sobre o tema, em sua ampla maioria, dialoga com o quadro teórico do Realismo, onde o Estado, mais que o ator referencial deste sistema anárquico, é, também, para efeitos analíticos, um ator unitário, monolítico e maximizador de poder.

Na medida em que o estudo dos processos decisórios em política externa cresce em importância e se desenvolve, surgem novos enfoques que passam a questionar alguns destes pressupostos. Como dito, variáveis tais como o ambiente doméstico, limites de ordem cognitiva e o papel das burocracias e das culturas organizacionais passam a ser considerados fatores importantes e a resultante desta miscelânea característica do processo de tomada de decisões é o desenvolvimento de uma profusão de abordagens teóricas que nos oferecem lentes analíticas concorrentes e, por vezes, também complementares – a depender, claro, da maior ou menor interferência das variáveis consideradas – na explicação de padrões pelas quais as ações de política externa são tomadas.

Neste sentido, além do clássico modelo do ator racional – em que o Estado é visto como um ente unificado na formulação e implantação de sua política externa – o estudioso do tema disporá de amplos frameworks teóricos explicativos alternativos como as abordagens sociais e cognitivas, baseadas em crenças, valores e aspectos culturais (JERVIS, 1976; VERTZBERGER, 1990; GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993; LEGRO, 1996; ROHRLICH, 1987; HERZ, 1994); os modelos organizacionais e burocráticos (SNYDER e DIESING, 1977; ALLISON e HALPERIN, 1972; ALLISON e ZELIKOV, 1999; COHEN, 2004); o modelo interativo, baseado na teoria dos jogos de dois níveis (PUTNAM, 1988; MILNER, 1997; MILNER e ROSENDORF, 1997; PAHRE, 1997), dentre outros mais.

Partindo-se, então, da premissa básica de que a política externa de um Estado é, em geral, condicionada por uma interação contínua entre fatores internos e externos, autores como Lafer (1984) afirmam ser necessário levar em consideração o exame de duas dimensões distintas, porém complementares: as normas de funcionamento da ordem mundial em um dado momento e as modalidades específicas de inserção estatal na dinâmica de funcionamento deste sistema. Assim, considerando a validade desta premissa na tradição da política externa brasileira, pressupõe-se que a estrutura do sistema internacional, em termos de distribuição de poder, bem como as variações de ordem conjuntural, podem representar fatores de constrangimento e/ou pressão capazes de influenciar diretamente na escolha das opções de ação que definem os rumos da agenda externa do país (OLIVEIRA, 2005), o que nos leva a refletir acerca das perguntas ora levantadas quando aplicadas ao caso do Brasil.

Portanto, para verificar empiricamente por que e como as decisões de política exterior são tomadas, bem como quais seriam os limites explicativos de suas condicionantes, escolheu-se, como recorte temporal, o

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período compreendido entre 1961 e 1964, considerado, do ponto de vista da política exterior, emblemático e com profundas repercussões na configuração das relações internacionais brasileiras. Isso porque, conforme nos revela a análise historiográfica, a política externa brasileira constituiu-se, principalmente a partir dos anos 1960, em um instrumento atrelado ao projeto nacional de desenvolvimento, deslocando-se do tradicional eixo Leste/Oeste, marcado pelas disputas ideológicas da Guerra Fria, rumo a uma perspectiva mais universalista das relações internacionais, onde se destaca a emergência de uma percepção da importância do eixo Norte/Sul, notadamente marcada por uma conotação de ordem econômico-social.

Esta mudança perceptiva, por seu turno, forneceu as bases sobre as quais emergiu uma conscientização interna quanto ao estágio de subdesenvolvimento do país e sua necessária projeção em termos de política externa (SILVA, 1995; OLIVEIRA, 2005). Neste sentido, a política externa vigente durante o curto período de Jânio Quadros no poder (jan./1961-ago./1961), a chamada Política Externa Independente (PEI), que se estende de 1961 até 1964, ao fim do governo de João Goulart, será o objeto desta análise por ser a PEI, como aponta Silva (1995; 26), “o primeiro formato histórico de um novo paradigma de política externa, o primeiro a se impor, de fato, como alternativa ao americanismo vigente desde Rio Branco”.

As lentes conceituais que conduzem esta investigação são aquelas fornecidas pela chamada abordagem cognitiva, uma vez que, na complexa equação que dá forma ao processo decisório, aqui buscaremos analisar o papel das imagens – ou das estruturas de conhecimento subjetivas, como as define Boulding (1961) – como ordenadoras de preferências e guias de comportamento na condução de nosso objeto de estudo: a PEI.

Para cumprir tal objetivo, o artigo encontra-se estruturado em três partes. Em um primeiro momento, discorre-se sobre as principais características da abordagem cognitiva tendo, como base, uma breve revisão de parte da literatura pertinente. Na sequência, analisa-se o contexto histórico em que se instituiu a Política Externa Independente para que, por fim, se verifique o papel da abordagem cognitiva, mais especificamente das imagens, nos processos decisórios relativos à PEI.

Abordagem cognitiva e política externa

A aplicação da análise cognitiva como fator de explicação para o processo de tomada de decisão em política externa desenvolveu-se, sobremodo, a partir da década de 1950 como crítica à homogeneização dos atores internacionais feita pela literatura realista, naquele momento tida como o grande mainstream teórico no campo das relações internacionais.

Temos, então, como uma das medidas reativas à criticada ortodoxia presente nas premissas realistas, a abordagem cognitiva buscando, por meio de um conjunto de propostas analíticas: investigar os elementos subjetivos que influenciam o comportamento dos atores no processo decisório e, também, demonstrar que os mesmos não podem ser tratados como atores unitários ou homogêneos. Logo, os estudos precursores da abordagem cognitiva buscaram encontrar na mente humana a dimensão subjetiva de eventos singulares como os conflitos internacionais e, para tanto, se concentraram no estudo de personalidades patológicas e de sua influência nos rumos da política internacional colocando, então, sob os holofotes das Ciências Sociais, as dimensões psicológicas e culturais como guias das ações comportamentais dos tomadores de decisão (HERZ, 1994; 75-6).

Não tardou para que estes esforços transformassem a análise cognitiva – amplamente ancorada naquelas atividades mentais de processamento das informações do ambiente no qual estamos inseridos – em uma subárea no campo de estudo da política externa. Na “primeira geração” de estudiosos da análise cognitiva destacam-se as obras de autores como Harold e Margaret Sprout (1957) e Richard Snyder et al. (1962). O

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trabalho desenvolvido pelos Sprouts, por exemplo, estabeleceu a distinção entre o ambiente operacional – o cenário real, onde os fatos domésticos e externos estão acontecendo e, ao mesmo tempo, moldando as linhas de procedimento e conduta internacional – e o ambiente psicológico, este último integrado por imagens, ideias, valores, crenças e percepções. Eles propõem que fatores ambientais somente influenciam as ações decisórias que compõem a política externa do Estado na medida em que são percebidos e considerados no processo de concepção desta política. Como resultado deste esforço intelectual, o exame do ambiente psicológico sobre o sistema operacional assumiu crescente importância e tornou-se um lídimo objeto dos estudos de política externa.

O arcabouço conceitual elaborado pelos Sprouts consolidou-se como um importante marco teórico e seguiu influenciando os estudos que lhe sucederam. Michael Brecher et al. (1969), por exemplo, retomaram o conceito de ambiente psicológico em suas investigações sobre as variáveis subjetivas que contribuem para a compreensão do processo decisório e, também, sobre o poder de filtragem das imagens. Nesse sentido, apontaram que o ambiente operacional, formado por elementos externos (capacidade militar e econômica, estrutura política, grupos de interesse, elites competitivas etc.), indiscutivelmente afeta o resultado das decisões tomadas, porém, só depois de filtrado pelas imagens e atitudes daqueles que as tomam, o que reforça o papel das percepções destes atores como um elemento fundamental na análise da política externa de um Estado.

Em sua pesquisa sobre a política externa de Israel, Brecher (1972) avança significativamente em termos de inserção dos aspectos culturais no escopo dos processos decisórios em política externa. Como uma de suas contribuições, faz a distinção entre o que ele define como prisma atitudinal, a saber, a ideologia e as características de personalidade ou predisposições psicológicas da elite decisória, e as imagens do ambiente, por assim dizer, as percepções que, de acordo com sua tipologia, representam o mais importante input para a formação da política externa de um país.

O trabalho de Snyder et al. (1962) destaca-se como outra referência basilar neste campo de estudo e é considerado por muitos o ponto de partida no exame das variáveis cognitivas formadoras da política externa (HERZ, 1994; p. 76). Em Foreign Policy Decision Making: An Approach to the Study of International Politics, Snyder e seus colaboradores demonstram a validade explicativa das teorias behavioristas no estudo dos processos decisórios e, concomitantemente, a relevância das percepções dos tomadores de decisões neste processo.

Representando apenas uma pequena amostragem da literatura que se desenvolveu sobre o binômio política externa-análise cognitiva, vê-se que este emergente framework teórico-conceitual foi determinante para que, dali em diante, se irrompessem as fronteiras estabelecidas pela ótica dominante de que as decisões em política externa são uma resultante mecânica da ação de uma entidade racional unitária, o Estado. Paralelamente, a abordagem cognitiva adicionou novas clivagens, de ordem subjetiva, na análise da política externa ao apresentar-se, alternativamente, como uma perspectiva que a vê como resultado das percepções que têm da realidade os grupos ou indivíduos que tomam as decisões em nome do ente estatal (OLIVEIRA, 2005; 17).

Relevante para os propósitos deste artigo é, também, a contribuição de Ole Holsti (1969). Em The Belief System and National Images: A Case Study, Holsti discute o papel das imagens nacionais como importantes elementos organizadores de percepções na forma de guias de comportamento tendo, como referência, um cenário moldado, em boa medida, por variáveis de natureza subjetiva. Para o estudo do papel das imagens no processo decisório, Herz (1994) indica, ainda, as contribuições dos esquemas interpretativos propostos na obra de Shutz (1967). Em Common-Sense and Scientific Interpretation of Human Action, Shutz nos apresenta o ator decisório como um agente que traz para cada encontro um conhecimento armazenado

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(estabelecido por meio de crenças, valores e atitudes) que lhe permite tipificar outros atores de acordo com esquemas interpretativos ou road maps cognitivos.

Por fim, mas não menos relevante, um segundo passo na definição de imagens significativas para análise de política externa está no entendimento e reconhecimento da importância da cultura internacional para o estudo de elementos cognitivos na política externa. De acordo com esta abordagem, tão logo os valores internacionais sejam incorporados pelo quadro cognitivo de grupos nacionais, estes passam a fazer parte de sua cultura internacional. O conteúdo das imagens é, neste contexto, tanto parte integrante como fator de grande importância na sua definição (HERZ, 1994; p. 84).

Vê-se, portanto, que na medida em que os estudos sobre os impactos das variáveis subjetivas na política externa vão se tornando mais complexos e sofisticados, fica cada vez mais claro que as percepções dos policymakers antecedem o processo de tomada de decisão e estão ligadas a um conjunto de crenças, valores e imagens que os atores carregam consigo, orientando a condução da política externa.

Em suma, a literatura sobre o papel da análise cognitiva nas relações internacionais nos permite observar que as imagens, valores e mapas cognitivos, dentre outros elementos adotados por esta abordagem teórica, contribuem para formar um sistema de crenças que irá atuar, no processo decisório, como um filtro da realidade, permitindo aos tomadores de decisões selecionar e ordenar as informações em função de suas metas e preferências em meio a um sistema internacional complexo, dinâmico e anárquico. Não constitui, portanto, tarefa difícil entender o porquê de Renouvin e Duroselle (1967, p. 6) terem enfatizado que estudar as relações internacionais sem levar em conta fatores como as concepções pessoais do homem de Estado implicaria negligenciar um fator importante, por vezes essencial.

Logo, vê-se que a essência dos argumentos que fundamentam a análise cognitiva tem como uma de suas premissas basilares a assertiva de que as imagens construídas pelos agentes decisórios acerca de quem é e pode vir a ser o ente que representam e, também, as imagens que projetam dos demais atores atuantes no cenário internacional, desempenham uma importante função na condução do processo decisório na política exterior de um país. Portanto, reconhecida a potencial influência desta abordagem, a questão que se coloca é: em que medida ela ocorre e em que circunstâncias? Na busca de respostas, nos tópicos seguintes analisaremos a validade empírica dos argumentos cognitivos com relação ao papel de um de seus elementos constitutivos – as imagens – no caso da Política Externa Independente.

O cenário internacional nos anos 1960 e a PEI

O cenário internacional no fim dos anos 1950 e início dos anos 1960 é marcado por grande tensão. Vivia-se um período de incertezas e instabilidade, sob a ameaçadora sombra de uma hecatombe atômica que, da Revolução Cubana (1959), passando pela construção do muro de Berlim (1961), atingiria seu ápice no episódio da crise dos mísseis, em 1962, em Cuba, decorrente da decisão soviética de instalar na ilha caribenha lançadores de ogivas nucleares capazes de atingir a capital norte-americana, Washington, decorridos apenas quinze minutos do lançamento (MRE, 1995; 137; MAGNOLI, 1996).

A Guerra Fria inaugurou, assim, uma nova forma de equilíbrio, precisamente definida pelo conceito de equilíbrio do terror, traduzido, em sua perspectiva mais pessimista, pela teoria da Destruição Mútua Assegurada. A lógica do sistema internacional, marcada pela bipolarização do poder planetário, conduziu à emergência de um conflito ideológico que, nas palavras de Magnoli (1996; 47) “contrapunha uma democracia liberal associada à economia capitalista de mercado dos Estados Unidos a um sistema político unipartidário associado à economia estatizada e centralmente planificada da União Soviética”.

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Concomitantemente, as relações internacionais experimentaram um período de profundos rearranjos estruturais no que diz respeito ao surgimento de novos atores na scène mondiale, fruto do processo de descolonização da Ásia e da África que resultou na criação de dezenas de novos Estados que, ressalte-se, apesar de conquistada a independência política, permaneceram economicamente vulneráveis e dependentes. Sob a alcunha de Terceiro Mundo, estes novos países, juntamente com a América Latina, ficaram marcados exatamente por carregar o pesado fardo de manter profundos vínculos de dependência econômica, ou com os países capitalistas desenvolvidos (Primeiro Mundo) ou com países socialistas de economia planificada (Segundo Mundo).

As reações a estas mudanças paradigmáticas não tardaram em se fazer sentir no entorno estratégico imediato do Brasil. Na América Latina, sob os auspícios da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), foi formulada a Teoria da Dependência tendo, como expoentes, pensadores como Celso Furtado, Helio Jaguaribe, Oswaldo Sunkel, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto. De acordo com esta perspectiva, as assimetrias existentes entre a periferia, exportadora de produtos primários, e os países industrializados, centro do sistema econômico mundial, tinham origem, por um lado, na divisão internacional do trabalho – causada pela deterioração das relações de trocas, favorável aos países produtores de manufaturados de alto valor agregado – e, por outro, nas ações das elites dos países periféricos que, aliados aos interesses do capitalismo internacional, contribuíam para acentuar as externalidades negativas do subdesenvolvimento (CARDOSO e FALETTO; 1975, p. 115). Como consequência, criou-se um cenário de excessiva dependência em relação aos centros dinâmicos do capitalismo mundial tendo como principais vetores destas relações assimétricas:

as distorções geradas por uma balança comercial deficitária,

o afluxo de capitais e a elevação da taxa de juros internacionais e, também,

o crescente distanciamento no ritmo de desenvolvimento científico e tecnológico entre os países do centro e da periferia.

Logo, os esforços para superar este quadro de dependência estrutural, segundo o pensamento cepalino, deveria se basear em três estratégias:

industrialização por substituição de importações,

promoção de exportações de produtos industrializados e

mudanças nas instituições internacionais que resultassem no estabelecimento de uma nova ordem mundial, mais democrática e que, por conseguinte, desse maior atenção às necessidades dos países em desenvolvimento (CALDAS, 2000).

Foi neste contexto que o presidente Jânio Quadros, ao assumir o poder em 1961, buscou utilizar a política externa como um elemento de transformação do Brasil. As bases da Política Externa Independente (PEI) foram explicitadas em artigo assinado por Jânio e publicado em agosto de 1961, na revista Foreign Affairs, poucos dias antes de sua renúncia à Presidência. Com a PEI, o país se desloca da tradicional aliança com os Estados Unidos – como dito, uma característica da política externa brasileira desde o barão do Rio Branco – para uma estratégia de inserção internacional mais pragmática, marcada pela busca de associações com países do Terceiro Mundo, reflexo direto da aplicação dos corolários definidores da PEI: a autonomia e a universalização (MRE, 1995; p. 137; OLIVEIRA, 2005; p. 88-91).

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Conforme observa Lima (1994), a partir desta nova perspectiva as relações com os EUA passaram a ser concebidas não mais como um instrumento para aumentar o poder de barganha do país, mas como a consequência da própria ampliação deste poder, que deveria ser construído autonomamente pelo Brasil. Por conseguinte, este poder deveria resultar de uma ação externa global, considerando-se a possibilidade de novas alianças orientadas mais pelos interesses nacionais do que por um alinhamento político-ideológico. Desta maneira, retomando o que foi afirmado na introdução deste artigo, a PEI trouxe, como um de seus objetivos basilares, libertar a política externa brasileira da rigidez ideológica da Guerra Fria, deslocando-a para uma visão mais universalista das relações internacionais com destaque para a emergência do eixo Norte/Sul demonstrando, assim, consonância com um dos grandes legados da emblemática Conferência de Bandung.

A autonomia apregoada pela PEI não tardaria em materializar-se como ações de política externa. Durante a VII Reunião de Consulta da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em janeiro de 1962, a delegação brasileira, liderada por San Tiago Dantas, manifestou-se contrária à suspensão de Cuba da entidade, assim como às propostas norte-americanas de sanções econômicas e diplomáticas à ilha de Fidel Castro (OLIVEIRA, 2005; p. 99). Paralelamente, ocorrem conversas para o reatamento de relações com a URSS e demonstra-se simpatia pela entrada da República Popular da China na ONU.

À luz destes acontecimentos, os EUA, como esperado, não tardaram em demonstrar sua insatisfação com a aplicação da Política Externa Independente e, concomitantemente, com a postura brasileira, sentimento este que vinha se desenhando desde a Conferência Econômica Interamericana de Punta del Este, realizada em agosto de 1961. Na ocasião, a delegação de Cuba, chefiada por Ernesto Che Guevara, então presidente do Banco Central cubano, não subscreveu a Carta resultante do encontro que, em linhas gerais, apresentava as diretrizes de um programa de desenvolvimento para os países latino-americanos baseado na concessão de US$ 20 bilhões pelos EUA.

Em seu retorno a Cuba, Che Guevara passou por Brasília e ali recebeu, das mãos de Jânio Quadros, a condecoração da Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul. O episódio não desagradou apenas aos EUA, mas também, internamente, às forças conservadoras que haviam apoiado Jânio Quadros e que agora passavam a ver a PEI como uma ameaça a seus interesses, o que evidenciava que os constrangimentos político-ideológicos dos quais o país buscava manter distância ainda representavam um importante vetor condicionante das ações tanto no plano externo como doméstico (MRE, 1995; p. 138-140).

Em 7 de setembro de 1961, apenas duas semanas após a renúncia de Jânio Quadros, assume o poder João Goulart (1961-64) que prontamente reafirmou a continuidade da PEI como guia das ações externas do país, conforme confirmado no pronunciamento de seu chanceler, Affonso Arinos de Mello Franco (jul./1962-set./1962), durante a 16ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em 22 de setembro daquele ano.

Já ao final desse ano, como dito há pouco, Brasil e URSS têm suas relações reatadas,decisão esta que, apesar da conotação ideológica, teve como justificativa interesses econômicos e comerciais do país baseados, segundo Jânio Quadros, na busca de novos mercados não apenas na América Latina, mas também na Ásia, África e Oceania. Como é possível inferir-se dos fatos até aqui apresentados, a implantação da PEI trouxe, como resultado mais significativo, a construção de uma nova percepção do papel e da inserção do Brasil no cenário internacional.

Corroborando esta assertiva, Oliveira (2005; p. 104), ao comentar as consequências da PEI, argumenta que houve o estabelecimento de um temário tendo em vista fortalecer uma posição autônoma do Brasil no âmbito das relações internacionais e, também, uma proeminência da diplomacia econômica. Com isso, o

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país se opunha à divisão do mundo em zonas de influência automaticamente alinhadas às superpotências e, consequentemente, rejeitava o papel de uma potência regional subordinada.

Logo, as principais características da PEI podem ser, assim, resumidas:

diversificação das relações internacionais do Brasil com objetivos econômicos;

ênfase nas relações Norte/Sul e não mais no alinhamento tradicional baseado na divisão Leste/Oeste;

por conseguinte, atuação isenta de compromissos ideológicos;

busca de um maior protagonismo no processo decisório internacional; e

defesa dos princípios da autodeterminação dos povos e da não intervenção;

orientação anticolonialista e antirracista;

ação solidária em prol do desenvolvimento e do desarmamento (MRE, 1995, p. 139-140; OLIVEIRA, 2005; p. 105).

Finda esta síntese das principais características da PEI, faz-se na sequência, à guisa de conclusão, uma análise do papel das imagens na formulação e condução da Política Externa Independente. Para tanto, buscaremos delinear os mapas cognitivos originados das crenças compartilhadas pela elite decisória integrante da PEI, de forma que possamos, ao final, identificar algumas das percepções seletivas que agiram como guias das ações tomadas por estes agentes no contexto dos processos históricos que as geraram.

O papel das imagens na PEI

Retomando o que foi dito na introdução deste artigo, o estudo da Política Externa Independente é emblemático, dentre outros motivos, por se tratar do primeiro formato histórico de um novo paradigma das relações internacionais do Brasil, o lócus de decisão onde o americanismo vigente desde Rio Branco deu lugar à multilaterização das ações externas do país.

Durante a PEI buscou-se o alinhamento com uma agenda de assuntos que privilegiava temas como a descolonização, desarmamento, desenvolvimento nacional e autodeterminação dos povos, fatores estes que “expressavam a determinação do Brasil de suplantar as disjuntivas empobrecedoras da confrontação ideológica e assumir uma posição independente no cenário internacional” (MRE, 1995; 139). Nascia, então, uma nova “ideia de Brasil”, amparada na negação de fronteiras ideológicas e na ampliação de parcerias estratégicas.

Vê-se, portanto, que a assertiva de Brecher et al. (1969) de que a imagem que o país tem de si próprio e dos demais atores do cenário internacional é um elemento de grande relevância para a compreensão do processo decisório aplica-se comodamente à PEI, desde sua concepção até a sua efetiva implementação. Os fatos apresentados ao longo destas páginas nos permitem observar que, no caso da PEI, os elementos externos do ambiente operacional atuaram diretamente no resultado do processo decisório, entretanto, depois de filtrados pelas imagens dos tomadores de decisão que, por conseguinte, selecionaram e ordenaram as informações filtradas em função de metas e preferências evidenciando, outrossim, a seletividade como uma característica inerente às percepções.

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Nesse sentido, no contexto histórico em que a PEI foi formulada, a política externa do país internalizou em sua concepção uma projeção no mundo daquilo que o Brasil é: um país de dimensões continentais, multicultural e multirracial, que desejava preservar sua liberdade absoluta para tomar decisões. As palavras do ministro Affonso Arinos na abertura da XVI Sessão Ordinária da Assembleia Geral da ONU não deixam dúvidas quanto a esta nova percepção orientadora da política externa brasileira:

É (…) inevitável que países como o Brasil sejam levados a tomar posição independente no panorama mundial, no justo empenho de influir na atenuação das tensões, na solução das divergências e na conquista gradativa da paz. (…) O mundo não está somente dividido em Leste e Oeste. Esta separação ideológica faz esquecer a existência de outra divisão, não ideológica, mas econômico-social, que distancia o Hemisfério Norte do Hemisfério Sul. (…) O Brasil tem uma posição ideológica definida, mas procura sempre, nas suas relações internacionais, inspirar-se no dispositivo (…) da Carta de desenvolver entre as nações relações amistosas fundadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos dos povos e de seu direito de autodeterminação, e tomar todas as demais medidas necessárias para consolidar a paz no mundo. Em consequência, as diferenças ideológicas não impedirão, por si mesmas, que o Brasil mantenha relações com outros Estados. (MRE, 1995; p. 141-146).

É importante notar que há uma imagem, determinante na condução da PEI, de que o Brasil estaria condenado em decorrência de seu subdesenvolvimento, “a não ser que fosse adotada uma política emancipatória e revolucionária, que apontasse para a reforma das estruturas sociais vigentes” (DANTAS, 1964, apud SILVA, 1995; p. 28).

Logo, o Brasil, cônscio de seu papel e da necessidade de desenvolver-se para bem cumpri-lo, como previamente dito, estabeleceu os dois princípios basilares de sua política externa: a autonomia e a universalização de suas relações internacionais, o que levou muitos a afirmarem, pois, que a PEI nasceu como resultado da percepção de que o Brasil já não mais poderia limitar-se ao pan-americanismo. Esta percepção foi determinante ao atuar, simultaneamente, como um filtro da realidade na construção de imagens e um curso de ação – ligado a um conjunto de crenças e valores – precedente ao processo de tomada de decisões da PEI.

E foi a partir do despertar desta nova consciência – ressalte-se novamente, amparada nas formulações cepalinas que forneceram os substratos intelectuais para a construção de uma identidade comum, em particular para a América Latina e, em geral, para os países periféricos, conectando-os como uma unidade coletiva no plano internacional – que o Brasil buscou a associação com os países do Terceiro Mundo em detrimento de um alinhamento automático e apriorístico com os EUA. Assim, romper com os enquadramentos da Guerra Fria significou ao Brasil maior autonomia e liberdade de diálogo e desenvolvimento de suas relações internacionais (econômicas, sobretudo), independentemente das posturas ideológicas de seus interlocutores.E foi, assim, sob a influência deste mapa cognitivo construído no âmbito da PEI, que o Brasil agiu como uma força determinante para que fosse convocada a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), realizada em Genebra, em 1964. Ao encontro das premissas da PEI, dizia o argentino Raul Prebisch, então designado como secretário-geral da UNCTAD, que o comércio internacional deveria ser um instrumento de desenvolvimento dos países em desenvolvimento e era exatamente esta a proposta da UNCTAD: a criação de um sistema de preferências no qual os países em desenvolvimento tivessem acesso imediato e irrestrito ao mercado dos países desenvolvidos que, por outro lado, não poderiam exigir reciprocidade (QUEIROZ, 2012; p. 72).

Portanto, observa-se que a imagem que o Brasil teve de sua posição no cenário internacional conduziu os atores tomadores de decisão a conceberem a PEI baseada em uma forte crítica ao sistema bipolar da

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Guerra Fria enquanto elemento constrangedor das possibilidades do desenvolvimento nacional. Esta nova visão que o Brasil passava a ter de si mesmo, de um país autônomo em suas decisões, é, parafraseando Herz (1994), uma imagem que deriva, pois, de estruturas cognitivas geradas historicamente e que, ao mesmo tempo, estão em sua origem e são seus componentes.

O legado desta seleção contínua de estímulos identificada na PEI, baseada em atitudes, expectativas, necessidades e elementos culturais, construiu um quadro cognitivo amplo e consistente que consolidou uma imagem do país vis-à-vis à do sistema internacional vigente e que viria a ser o corolário das ações brasileiras em oposição ao que o chanceler João Augusto de Araújo Castro (ago./1963-mar./1964) chamou de “congelamento do poder mundial”, reafirmando, portanto, a posição do Brasil contra alinhamentos automáticos e a divisão do mundo em zonas de influência.

Considerações finais

O trabalho investigativo empreendido ao longo destas páginas permitiu verificar, com base na literatura analisada sobre a influência de fatores cognitivos no processo decisório em política externa, que a percepção antecede a tomada de decisões e está ligada a um conjunto de crenças, valores e imagens que os atores carregam consigo orientando e, muitas vezes, determinando suas ações neste processo em que a construção de identidades, ou imagens, vem a ser fator determinante na formação dos interesses nacionais.

Mais especificamente para os propósitos deste estudo, foi possível observar que as imagens, no contexto da Política Externa Independente, funcionaram como um guia de comportamento baseado em uma seleção contínua de estímulos relevantes para a compreensão do processo decisório, permitindo, então, que estes atores – dualmente formuladores e executores da política externa – selecionassem, em meio às complexas e multifacetadas nuances da ignescente conjuntura da época, as informações relevantes para a construção de metas e preferências orientadoras.

Dito isto, a análise empírica levou-nos à conclusão de que variáveis cognitivas, especificamente as imagens citadas, desempenharam papel de grande relevância na formulação da política externa brasileira, muitas vezes servindo como um filtro das informações consideradas prioritárias para a condução da Política Externa Independente. Consonante com este modus operandi, o resultado prático da PEI foi uma maior conscientização do Brasil quanto ao seu papel na arena decisória mundial, baseado em posturas autônomas e em relações diversificadas com atores de matizes distintas.

Cabe, no entanto, salientar que a abordagem cognitiva, embora importante, por si só, não é suficiente para explicar a PEI. Nesta direção, estudos complementares capazes de estabelecer pontes de diálogo com os aspectos cognitivos levantados, conduzidos a partir de outras abordagens, como o modelo do ator racional e o modelo burocrático, poderiam oferecer instrumentos investigativos valiosos para uma precisa visualização das linhas de ação condutoras do processo decisório durante o período analisado. Conforme observado ao longo deste estudo, mesmo que de forma não explícita, para uma compreensão mais ampla e acurada do quadro decisório que caracterizou a PEI faz-se necessária uma análise em que pesem tanto o papel das imagens como, também, o papel de variáveis objetivas como as relações de poder e os interesses dos atores envolvidos.

Dessa forma, concede-se, igualmente, o devido valor aos elementos materiais das relações internacionais (pois são eles que definem os limites das ações estatais assim como os custos relativos pela escolha de determinadas opções) sem, contudo, perder de vista a importância do significado atribuído pelos atores decisórios a essas forças determinantes. Podemos, então, inferir que as imagens não dizem respeito apenas

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ao ambiente social no qual estes atores interagem, mas também ao conteúdo de questões materiais e ao significado de poder que é constituído, principalmente, por ideias e contextos culturais onde as identidades tomam forma.

Assim sendo, reconhecendo, por exemplo, a validade da lógica construtivista wendtiana no caso da PEI, podemos assumir a premissa de que “material resources only acquire meaning for human action through the structure of shared knowledge in which they are embedded” (WENDT, 1995; p. 73) o que, consequentemente, nos leva ao silogismo de que os Estados não são verdades materiais puramente objetivas.

Por fim, cumpre enfatizar o quão relevante é entender a agência de burocracias especializadas no processo doméstico de formulação de política externa e construção de imagens e que, no caso em tela, consubstanciou-se, sobremodo, na figura do Ministério das Relações Exteriores, protagonista que desempenhou papel central na orientação estratégica de inserção internacional do Brasil, aspecto este que, apesar de sua inegável importância, foi pouco explorado neste artigo dados os limites investigativos previamente estabelecidos.

Assim, seja à guisa de reparação à lacuna deixada, ou como um start point para estudos complementares, cabe referenciar, com relação à atuação do Itamaraty durante este recorte temporal, a afirmação de Russel (1990, p. 259) de que a PEI foi um marco definidor da extensão do papel doravante desempenhado pelo Ministério das Relações Exteriores, uma vez que sua autonomia decisória, tanto na formulação como na implementação desta política, fortaleceu-se sobremaneira no período, fazendo da corporação diplomática, juntamente com o chefe do Poder Executivo, os atores centralizadores do processo de tomada de decisões.

Logo, a PEI, ao abrir espaço para a construção de um quadro cognitivo amparado em uma crescente articulação funcional do Itamaraty com segmentos-chave da estrutura organizacional doméstica, como as Forças Armadas e grupos empresariais, contribuiu significativamente para ratificar o papel central e decisivo do Itamaraty na formulação da política externa brasileira.

Notas

[1] Termo cunhado por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, enquanto ministro das Relações Exteriores de Jânio Quadros (set. /1961- jul. /1962). ↑

[2] Iniciado em 1946, com a independência das Filipinas, o processo de descolonização no pós-Segunda Guerra Mundial atingiu seu ápice com a libertação das colônias portuguesas na África, concluída em meados da década de 1970 com as independências de Guiné-Bissau (10/09/1974), São Tomé e Príncipe (12/06/1975), Cabo Verde (05/07/1975), Angola (11/11/1975) e Moçambique (25/06/1975).↑

[3] Cunhado pelo historiador francês Alfred Sauvy, o termo Terceiro Mundo foi utilizado pela primeira vez em 1952, em artigo de sua autoria publicado no periódico L’Observateur, para designar o grupo de países em desenvolvimento situados fora dos dois blocos de poder da Guerra Fria.↑

[4] Pouco depois, em dezembro de 1961, o artigo também foi publicado no nº 16 da Revista Brasileira de Política Internacional, na seção de Documentos.↑

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[5] A primeira iniciativa política dos países do Terceiro Mundo foi a realização de uma conferência que reafirmasse sua postura anti-imperialista e o posicionamento de equidistância com EUA e URSS. A Conferência de Bandung, realizada na Indonésia, em abril de 1955, propôs uma nova forma de polarização colocando em lados opostos os países ricos e industrializados do Norte e os países pobres e exportadores de produtos primários do Sul. Nesta concepção ideológica a confrontação Leste-Oeste cedia lugar à confrontação Norte-Sul. Posteriormente em Belgrado (1961) foi realizada uma nova conferência que resultou na fundação do Movimento dos Não Alinhados reafirmando as premissas político-ideológicas de Bandung. O Movimento voltou a se reunir no Cairo, em 1964, em Lusaca, em 1970, e em Argel, em 1973, para discutir as políticas terceiro-mundistas e as questões atinentes à economia mundial e aos interesses destes países como os preços dos produtos primários e os juros internacionais, enfim, fatores que constrangiam sua capacidade de barganha e contribuíam para acentuar as assimetrias existentes em relação aos seus homólogos do Norte. ↑

[6] Pouco depois, em outubro, ocorreu a crise dos foguetes em Cuba e o Brasil, diante do delicado cenário de crise que se apresentava, acompanhou a posição dos EUA e, na OEA, votou a favor do bloqueio de Cuba. ↑

[7] O rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e URSS aconteceu em outubro de 1947, após um período de intenso desgaste político entre os dois países. A situação vinha se arrastando desde o ano anterior, quando o governo Dutra lançou uma ferrenha campanha contra o Partido Comunista. O estopim deste entrevero veio após a publicação de um artigo pela imprensa soviética onde Dutra foi chamado, dentre outras coisas, de fascista, covarde, lacaio dos EUA e general do café.↑

[8] A UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development – foi convocada por meio da Resolução 917 da ONU. ↑

[9] Os EUA se opuseram radicalmente à ideia, pois alegavam que a proposta da UNCTAD e dos países em desenvolvimento (PEDs), contrários à cláusula do GATT da Nação mais Favorecida, criaria sérias distorções comerciais uma vez que, se levada a cabo, resultaria no controle das matérias-primas por parte dos PEDs e, consequentemente, no controle do sistema econômico dos países desenvolvidos.↑

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“Eu vi o mundo” O princípio do multilateralismo nas gestões de política externa de Cardoso e de Lula

por Dawisson Belém Lopes em 05/09/2013

comentários

O artigo tem como principal argumento que as diversas maneiras pelas quais o princípio do multilateralismo foi apreendido e traduzido, durante os mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, pelas elites brasileiras formuladoras de políticas, é uma poderosa metáfora para explicar como o Brasil está acostumado a conceber a sua presença no mundo e os seus papéis políticos vis-à-vis outros países em desenvolvimento e países desenvolvidos. Além disso, a questão do multilateralismo lança luz sobre os diferentes significados práticos que os formuladores brasileiros de políticas, sob Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, atribuem ao tão citado lema "democratização das relações internacionais".

This article has as a main argument that the diverse ways the principle of multilateralism has been seized and translated into policies during Cardoso’s and Lula da Silva’s presidential terms by the Brazilian policymaking elite is a powerful metaphor to explain how Brazil used to conceive of its presence in the world and its political roles vis-à-vis other developing countries and the developed ones. Moreover, the question of multilateralism sheds light on the different practical meanings Brazilian policymakers under Cardoso and Lula da Silva would ascribe to the oft-cited “democratization of international relations” motto. The conceptual relationship between “domestic” and “world-systemic” democracy also deserves some consideration in this article.

Desde a Presidência de José Sarney, no advento da Nova República, faz-se notória a instrumentalização da institucionalidade democrática doméstica em benefício da inserção internacional do Brasil. Em seu primeiro discurso no púlpito da ONU, em 1985, Sarney tratara de sublinhar nossas abonadoras características democráticas, como quem quisesse apresentar ao mundo o Brasil – renovado em suas fundações políticas – que debutava na cena internacional.

De lá para cá, reportam-se progressos no nível de integração do Brasil às principais instituições das relações internacionais. Diferentemente do que se passava nos anos do regime militar, o país voltou a ser interlocutor em arranjos multilaterais, aderiu a importantes regimes normativos e passou a pleitear maiores responsabilidades na gestão conjunta da ordem internacional. Gelson Fonseca Jr. (1998) entende que, na raiz dessa guinada de orientação da política externa brasileira (PEB), está o contexto da Guerra Fria, determinante para que o Brasil, durante a vigência de tal período, adotasse um modelo de inserção internacional por ele batizado de “autonomia pela distância”. Consistiu, segundo o autor, em um “não

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alinhamento específico”, que se aproximava das posições do Terceiro Mundo, mantendo lealdade a valores ocidentais (p. 361).

O mundo do pós-Guerra Fria proporcionou as condições para um novo balizamento da política exterior do Brasil. Com a fragmentação e dispersão das temáticas e os emergentes padrões de alinhamento e coalizões diplomáticas, abre-se “uma nova brecha para os países em desenvolvimento”

(Fonseca Jr., 1998, p. 365). Segundo o presidente Fernando Henrique Cardoso (2006), o país pôde, enfim, distanciar-se de uma “predisposição arcaica à não participação e à não submissão às regras de convivência internacional, estratégia que havia sido elaborada com requintes de sofisticação intelectual para nos defendermos dos efeitos da Guerra Fria” (p. 616-617). Cita como exemplos desse novo posicionamento nacional a ativa participação nas negociações referentes ao Protocolo de Kyoto, a assinatura tardia do Tratado de Não Proliferação Nuclear e o comprometimento com uma série de tratados internacionais de direitos humanos. Na sua autobiografia política, Cardoso (idem) chegou a admitir abertamente a influência exercida pela concepção de “autonomia pela participação” sobre a sua visão da PEB, tanto como ministro das Relações Exteriores (1992-1993) quanto como presidente da República (1995-2002). Abaixo, tal conceito será mais fielmente reproduzido, nas palavras do seu formulador:

A autonomia, hoje, não significa mais “distância” dos temas polêmicos para resguardar o país de alinhamentos indesejáveis. Ao contrário, a autonomia se traduz por “participação”, por um desejo de influenciar a agenda aberta com valores que exprimem tradição diplomática e capacidade de ver os rumos da ordem internacional com olhos próprios, com perspectivas originais. Perspectivas que correspondem à nossa complexidade nacional (Fonseca Jr., 1998, p. 368).

Vale chamar a atenção para o sentido que Fonseca Jr. (1998) imprime à noção de autonomia. Trata-se, segundo ele, da faculdade que cada Estado preserva de formular a sua norma de conduta nas relações internacionais. Todo Estado deveria, por suposto, ser capaz de pensar e executar a própria estratégia de projeção internacional, sem interferência de outros Estados, desde que em adequação à normatividade vigente entre as nações. À diplomacia brasileira, o autor reconheceu como principal recurso à mão, para efeito de projeção internacional do país, a histórica legitimidade para persuadir os demais atores, não com armas, mas com ideias. Tal legitimidade se desdobraria em duas dimensões: uma bilateral (cumprimento dos acordos bilaterais, pacifismo, etc.) e outra multilateral (propensão à negociação, compromisso com a ordem). Resumidamente, parafraseando a célebre citação atribuída a San Tiago Dantas, é como se na intangibilidade dos princípios residisse a nossa grande arma.

Sendo assim, tanto a volta à institucionalidade democrática quanto a promulgação da Constituição Federal de 1988 são marcos para a inflexão da PEB. Para um governo cioso por coerência entre o que se fazia internamente e o que se pregava internacionalmente, era imperioso ajustar os termos da inserção internacional do Brasil ao demandado pelo meio ambiente internacional. Donde, portanto, a adesão, sob a Presidência de Cardoso, aos regimes normativos de Não Proliferação Nuclear e de promoção e proteção de direitos humanos (de resto, mandamentos constitucionais, nos termos bastante explícitos do artigo 4.º da Constituição Federal de 1988).

O presidente Cardoso reconheceu o nexo entre a democratização das sociedades nacionais e a democratização das relações internacionais. A via multilateral, tão incensada nos seus anos de gestão de PEB, representava o caminho “progressista” pelo qual se obteriam “valores universais” tais como “a preservação da paz e da democracia” em cada país; no que respeita à ordem internacional, buscava-se maior transparência, institucionalização e “democratização crescente dos processos deliberativos nos órgãos internacionais” (Cardoso, 2006, p. 602). O multilateralismo era, por assim dizer, a projeção no nível

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sistêmico da democracia experimentada internamente, marcada pelo “aspecto multirracial” e pela “cultura sincrética de nosso povo” (idem, p. 603).

A tradição principista da PEB e a preocupação com a correspondência entre discurso e prática diplomática também invadem as reflexões de Celso Lafer (2009). Sob a alegação de, recentemente, nos anos de governo Lula da Silva, estar havendo ruptura com o histórico apartidarismo do Itamaraty, o professor e ex-chanceler do governo FHC alertou: “A dimensão de continuidade confere coerência à ação diplomática e contribui para a credibilidade da política externa do Estado” (p. A2). Mais uma vez, evocava-se o conceito de coerência e o entendimento de que o “crédito” brasileiro nas relações diplomáticas advinha da previsibilidade e da confiabilidade de seu tradicional padrão comportamental. Em Lafer, nossa autoridade para enunciar propostas a outros atores é transformada em um – talvez no principal – instrumento de PEB. Aspectos conjunturais, identificados com as necessidades de governos democraticamente eleitos, deveriam acomodar-se, a fim de legitimar-se, ao que é mais permanente na plurissecular trajetória internacional do Estado brasileiro.

Luiz Lampreia (1996) foi ainda mais explícito na proposição de uma correlação entre a inserção qualificada do Brasil no mundo e a adesão à normatividade do cânone ocidental. Viu na democratização do regime político, experimentada a partir de 1985, um “ativo patrimonial” conquistado pelo Estado brasileiro – isto é, um elemento que distinguia os países integrados à rede de relações internacionais modernas de países atrasados ou periféricos; um traço corroborador do progresso do país e um indicador de civilidade e de sofisticação institucional. Nas suas palavras:

Quer seu projeto nacional contemple uma vocação de hegemonia regional ou internacional (…), o Brasil sem dúvida está reunindo um bom potencial para dar um salto qualitativo tanto no seu desenvolvimento interno quanto na sua inserção internacional. Esse potencial é a resultante de diversos avanços que o país tem conseguido a partir da sua consolidação como uma democracia, uma sociedade majoritariamente urbana, uma economia industrial moderna e diversificada e com um grau crescente de interação com o mundo. (…) O primeiro desdobramento [da globalização] é a acentuação da homogeneização da vida internacional em torno das duas forças centrais da democracia e da liberdade econômica. É evidente que continuará havendo exceções a essa tendência, mas o provável é que elas se confinem cada vez mais à periferia do sistema internacional (Lampreia, 1996, p.41-43).

O expresso reconhecimento da força das ideias e das concepções morais nas relações internacionais do Brasil encontrou chão firme na teorização de Fonseca Jr. (1998) sobre o tema da legitimidade. Segundo o autor, definiram-se, após a Guerra Fria, tópicos que passaram a constituir o “corpo hegemônico das políticas legítimas”, correspondentes, em larga medida, ao discurso das potências ocidentais:

Os temas são bem conhecidos: democracia e direitos humanos, problemas humanitários, liberdade econômica e criação de condições iguais de competição, combate ao narcotráfico e ao crime organizado, a solução multilateral para crises regionais, defesa do meio ambiente, movimentos para institucionalizar, em organismos multilaterais, as propostas e teses nessas questões etc. São os temas que definem o espaço de proposição das potências e, consequentemente, um espaço de disputa entre interpretações (Fonseca Jr. 1998, p. 216-217, ênfases acrescentadas).

Para além das dinâmicas domésticas, a democracia liberal – e a sua extensão coerente no nível sistêmico, o multilateralismo – constituiu-se em ideia-força das relações internacionais hodiernas. É instigante perceber o apelo ideológico das formas democráticas em um mundo globalizado: travam-se guerras e intervenções militares pela deposição de tiranos, cujos países são agrupados em um hipotético “eixo do mal”; associam-se regimes não democráticos à megalomania bonapartista, ao culto ao terrorismo, à ganância nuclear ou à

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ineficiência econômica; impõem-se embargos e sanções de toda sorte às nações conduzidas por líderes autoritários. Ante o exposto, como não ser democrata em um mundo regido por “leis morais” liberais democráticas? Em prefácio à obra publicada em 2004, pouco depois de sua saída da Presidência da República, Cardoso arguiu, tendo por motivação as críticas que se fizeram ao modelo de inserção econômica internacional do Brasil durante o seu governo:

Os mais radicais dirão: façam como em Cuba, como a China anteriormente à abertura de sua economia aos fluxos financeiros e ao mercado internacional, ou, quem sabe agora, como a Malásia: isolem-se. Fácil dizer, difícil fazer e, pior, há que se pagar um preço não desejável… (Cardoso, 2004, p. XI).

Adalberto Cardoso (2003) desvelou uma importante característica da gestão presidencial de FHC – que, conforme entendo eu, é perfeitamente extensível à PEB daquele período. O autor chamou a política produzida sob Fernando Henrique Cardoso de “a arte do possível”, uma vez que, alegadamente, ela restringia-se “à otimização dos meios, em lugar de ser o momento da elaboração e negociação de projetos de sociedade” (p. 26). Os fins estavam postos pela globalização, ao que o presidente brasileiro se adaptava, mimetizando as ações bem-sucedidas – a estratégia do “mimetikós adaptativo” (idem, p. 26). Logo, a “arte do possível” compreendeu a adoção de uma lógica das adequações, em oposição à lógica das consequências.

Se admitida como pertinente ao campo de estudos da PEB a relação acima explorada, reveste-se de mais sentido a noção, introduzida por Alexandre Parola (2007), de “pragmatismo democrático”, no intuito de explicar a gestão da política exterior do Brasil sob os auspícios do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu chanceler Celso Amorim. Parola relata que, desde o discurso de posse, em 2003, Lula da Silva colocou em destaque e estabeleceu como bandeira de política externa do seu governo a democratização das relações internacionais. Por ser encarada como meta prioritária para as interações dos Estados, e não somente como regime político doméstico desejável, a democracia tornou-se ordenadora da diplomacia brasileira, servindo de plataforma para a elaboração de políticas no plano internacional. Essa mudança na condução da PEB, de alguns anos para cá, explica-se tentativamente da seguinte maneira: enquanto a democracia foi concebida como o destino para o qual todas as nações convergiriam, mais cedo ou mais tarde, ao tempo da Presidência de Cardoso, sob Lula da Silva ela se transformou em “argumento propositivo de crítica e reforma da ordem internacional” (Parola, 2007, p. 421).

Reconhecidamente, um dos mais importantes formuladores da concepção lulista de política externa foi o ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, para quem o objetivo principal de grandes países periféricos, tais como o Brasil, deveria ser participar das “estruturas hegemônicas” – isto é, das organizações intergovernamentais multilaterais – de forma “soberana e não subordinada”, promovendo redução da “vulnerabilidade diante da ação dessas estruturas” (Guimarães, 2007, p. 161). De certa maneira, os valores democráticos passaram a servir de alicerce pragmático para o pleito por mudanças nas instituições internacionais e a defesa do que fosse percebido, em face das contingências, como o interesse nacional. Em poucas palavras: o mimetismo dava vez a uma espécie de consequencialismo reformista.

Tratando do tema após a sua saída do governo, Lula da Silva fez comentário que ajuda a iluminar a sua visão acerca da natureza das relações internacionais – e do papel das instituições multilaterais no mundo contemporâneo:

Se você ler o meu discurso de posse, você vai descobrir que estava na minha cabeça a questão do multilateralismo, estava na minha cabeça a questão do fortalecimento da relação Sul-Sul, e estava na minha cabeça ter uma relação prioritária com o continente africano e com a América Latina (…), e por isso eu coloquei no meu discurso o compromisso do Brasil com o multilateralismo, com o continente africano e

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latino-americano – apesar de termos feito uma política muito abrangente e termos pensado em todo mundo (Lula da Silva, 2013).

A justaposição entre multilateralismo e cooperação Sul-Sul não é fortuita; como tampouco o é a menção a África e América Latina. Nessa operação discursiva, o ex-presidente da República descortina o entendimento de que as instituições internacionais deveriam ser postas a serviço da revisão do status quo vigente, de modo a resgatar os menos desenvolvidos – nomeadamente, os africanos e os latino-americanos – da condição periférica. A “democratização das relações internacionais” é, dentro de tal contexto simbólico, o outro nome para a bandeira da redução das desigualdades entre as nações. Celso Amorim também repisou o tema. Em discurso de homenagem a Rui Barbosa, numa reflexão sobre o atual papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a demanda brasileira pela expansão do seu número de membros, em novembro de 2007, o então chanceler formulou em abstrato sobre o multilateralismo e suas dificuldades:

Naturalmente é difícil conciliar o ideal democrático em sua forma mais pura, que inspirava o pensamento de Rui Barbosa, e a necessidade de um órgão com decisão rápida e eficaz em temas que exigem soluções muitas vezes em caráter de urgência, como são os da paz e da segurança internacionais. Não creio, honestamente, que haja respostas absolutas ou irrefutáveis para esta contradição intrínseca. O que podemos almejar no atual estágio da relação entre os Estados é um sistema que busque equilibrar da melhor forma critérios de representatividade e de eficácia (Amorim, 2008, p. 22-23, ênfase acrescentada).

Ao falar da tensão entre o interesse nacional – projetado a partir das instâncias oficiais – e os interesses privados ou setoriais, Amorim (2007) oferece insumo para reflexão. Evocando primeiramente Theodore Roosevelt, lembrou que Estados não têm amigos, têm interesses. Não obstante, admitiu a possibilidade de haver um equacionamento favorável entre o interesse nacional e a solidariedade, de modo que, no limite, a solidariedade (entendida aqui como a atenção ao interesse do “outro”) poderá corresponder ao autointeresse de longo prazo. Arrematou o raciocínio da seguinte maneira: nem sempre poderemos fazer tudo aquilo que consideramos justo. A gente faz – dentro daquilo que acha que é justo – aquilo que a gente pode. Há uma frase de [Blaise] Pascal muito interessante: “não se podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo”. Adaptando um pouquinho: nós procuramos fazer a justiça dentro daquilo que é possível. Eu posso, em teoria, achar que poderia fazer mais. Mas também tenho os meus limites, ditados, evidentemente, por interesses que existem por aí (Amorim, 2007). Em última análise, é esse o tipo de critério operacional de justiça que o multilateralismo frequentemente proporcionará: a solução de compromisso.

A ênfase no pragmatismo distancia a gestão da PEB de Lula/Amorim da retórica da legitimidade baseada na coerência interno/externo. O multilateralismo continua a ser propugnado, considerado o espelho da democracia doméstica na política internacional. Embora não se abandone a dimensão normativa (democracia como imperativo categórico contemporâneo), as instituições democráticas são antes valorizadas por nossa diplomacia como ferramental para criar constrangimentos políticos às potências, de modo que elas sejam obrigadas a tomar decisões transparentes, legítimas e representativas (Parola, 2007).

O processamento das muitas contradições entre a orientação pragmática e o apego a valores democráticos no encaminhamento da política externa brasileira não é tarefa banal. No que tange, por exemplo, ao multilateralismo, Filipe Nasser (2009) aclara:

A escolha pelo multilateralismo não está assentada somente na adesão incondicional a princípios de ação externa. Trata-se, sobretudo, do meio que o Brasil elegeu para projetar influência no plano internacional e fazer valer o que seus agentes diplomáticos definiram como interesse nacional. Pode parecer contraditória

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a ideia de que um Estado busca ampliar seu poder nacional por meio de participação em um arranjo multilateral – concebido originalmente para limitar o uso arbitrário do poder por parte dos Estados. Ocorre que a defesa do interesse nacional é necessariamente caudatária de uma leitura particular da visão de mundo da elite de política externa a respeito de quais são os interesses do país no mundo e do que se pode colher das relações internacionais para o país. (…) Para uma potência média, periférica e incapaz de impor suas vontades por força das armas ou pelo volume de seus capitais, o multilateralismo tem se afigurado como arena natural para que consiga projetar poder ou expressar sua autonomia em termos de política externa (Nasser, 2009, p. 126; 127).

Parece evidente ao autor da passagem a conjugação, por um lado, de cálculo racional, lastreado por discurso de fundo axiológico, do corpo diplomático nacional e, por outro, o diagnóstico de relativa impotência militar do Brasil no concerto internacional. Consciente de tais limitações materiais, o “pragmatismo democrático” buscou apropriar-se de fóruns internacionais multilaterais para projetar mensagens e imagens favoráveis ao país. Parola (2007) e Nasser (2009) arrolaram como loci preferenciais dessa intensa mobilização discursiva da PEB nos últimos anos: a Organização Mundial do Comércio (a partir da reunião interministerial de Cancun, em 2003, e da criação do G20 agrícola, herdeiro do grupo de Cairns), a Organização das Nações Unidas (vide o insistente pleito pela reforma de seu Conselho de Segurança e o incremento da participação do Brasil nas operações de paz da ONU), a Organização dos Estados Americanos (especialmente nas crises regionais que envolveram a Venezuela, o Equador e a Colômbia), o Mercado Comum do Cone Sul e, a partir de 2008, a União das Nações Sul-Americanas (criada em Brasília e concebida para ser o arrimo institucional da PEB regional).

Em que pesem as ambiguidades embutidas no conceito de “pragmatismo democrático” (ou nas práticas a ele associadas e por ele inspiradas), não se trata, decididamente, de um oximoro, tampouco de uma contradição insanável. A superação de pontos de estrangulamento lógico no discurso da PEB (coerência interna), ou entre o discurso e a prática estabelecida por seus agentes autorizados, passa pelo correto diagnóstico do problema, seguido de prescrição eficaz. É nesse sentido que, em reconhecimento explícito de haver conteúdos antitéticos na política externa executada pelo governo Lula da Silva, o ministro Amorim chegou a indicar, mais de uma vez, o método dialético como remédio para combater incongruências.

É bastante provável, contudo, que a PEB de Lula/Amorim não seja sintética, no rigor da expressão, e, sim, conciliadora da premissa racionalista (utilitarismo, custo/benefício, pragmatismo) com a dimensão axiológica (democracia como “imperativo categórico”) das relações internacionais. Aparentemente, ela apenas logrou “encaixar” duas perspectivas compatíveis entre si, apesar de não necessariamente coerentes, sem gerar inovação conceitual/teórica (no nível das definições primárias). A possibilidade de processamento dialético que concebemos (entre interesse nacional, pensado em termos de projeção de poder, e apego a valores democráticos) requereria o transcurso de um tempo histórico alargado, suficiente para que contradições emergissem, arestas fossem aplainadas, transformações essenciais acontecessem e, finalmente, a dita síntese se consumasse.

Cabe, para efeito de ilustração, trazer à baila uma radiografia conjuntural. Se há, certamente, pontos de contato diversos entre a doutrina da “autonomia pela participação” (Fonseca Jr., 1998) e a noção, bem menos sedimentada na literatura, de “pragmatismo democrático” (Parola, 2007), também existem descontinuidades que, ainda nos idos de 2004, pudemos detectar. Conforme registramos em texto publicado àquela época:

Com o ocaso da Guerra Fria, Gelson Fonseca Jr. chegou a contemplar uma nova atitude da diplomacia brasileira diante do mundo, (…) [marcada] pelo ímpeto participativo do país… na conformação da ordem [internacional]. No entanto, dificilmente será sustentável que o Brasil tenha alcançado [real] autonomia no

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período. Se aconteceu, o foi em nível bastante limitado. (…) A contribuição brasileira para o novo quadro político, se houve, não passou da marginalidade (Belém Lopes e Vellozo Jr., 2004, p. 339).

O argumento dos autores era de que a propalada “autonomia pela participação” não se convertera em uma efetiva influência do Brasil na configuração das relações internacionais após a Guerra Fria, tendo este permanecido fortemente influenciado por campos gravitacionais delimitados pelas potências – destacadamente, os Estados Unidos da América. Prenunciava-se o elemento distintivo da gestão da PEB sob Lula/Amorim: a tentativa pacífica de revisão da ordem internacional via participação nos grandes fóruns multilaterais, sob o moto da democratização das relações internacionais, que, com a devida maturação, autorizou a cunhagem do conceito de “pragmatismo democrático” por Alexandre Parola (2007).

Extrapolando a face conjuntural do assunto em tela, guiado pelos fatos e interpretações aqui colocados em apreciação, concluo que a evolução mutante da política externa, no decurso da Nova República brasileira e, mais particularmente, nas duas últimas décadas (sob as presidências de Cardoso, Lula da Silva e Rousseff), evidencia uma recombinação complexa e sutil de elementos conceituais – dificilmente apreensível ao observador menos atento –, a respeito da qual o tratamento concedido ao tema do multilateralismo na PEB é eloquente.

Notas

[1] Pontualmente, nos anos de Guerra Fria, o Brasil negou-se a pactuar com os articuladores da ordem internacional. Foi assim quando se deu a recusa de envio de homens para a Guerra da Coreia, em 1950, o rompimento com o Fundo Monetário Internacional, em 1958, e a não assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1968.↑

[2] Cabendo notar que, mesmo em tempo de ditadura militar, algumas instituições democráticas, embora inoperantes, foram formalmente mantidas. Além disso, malgrado o universalismo da PEB, conservou-se o foco no norte desenvolvido, o que contribuiu para a modernização e a consolidação industrial do país (Fonseca Jr., 1998, p. 361).↑

[3] Para coletânea de textos sobre política externa de San Tiago Dantas, cf. Lessa e Holanda (org.) (2009). ↑

[4] O conjunto de critérios que cacifam um eventual “salto qualitativo” do Brasil no mundo, em Lampreia (1996), inclui não apenas a consolidação democrática de um ângulo formal, mas a urbanização, a industrialização e a relativa extroversão do Estado/sociedade nos últimos tempos. Traz a inspiração das teorias da modernização, em voga nos anos 1960, tais como as de Rostow, The Stages of Economic Growth, a Non-Communist Manifesto, e Huntington, Political Order in Changing Societies.↑

[5] Tanto Fonseca Jr. (1998) quanto Cardoso (2006) são mais enfáticos nesse entendimento, pelo que atribuem à democracia a condição de “valor universal”. ↑

[6] Isso fica bem ilustrado não apenas no excerto do presidente Cardoso, acima reproduzido, mas também, e principalmente, nas passagens creditadas a Gelson Fonseca Jr. (1998) e Celso Lafer (2009). ↑

[7] Comentadores da PEB de Lula/Amorim não deixaram de apontar essas incoerências. Cito dois exemplos recentes: Magnoli (2009) chamou a atenção para o fato de que o abrigo concedido ao presidente hondurenho Manuel Zelaya, na Embaixada brasileira em Tegucigalpa, sob pretexto de defesa das

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instituições democráticas na América Latina, entraria em choque com o preceito constitucional da não ingerência em assuntos domésticos de outros Estados; Asano, Nader e Vieira (2009), por sua vez, condenaram a postura ambígua do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, especialmente nos casos que envolveram as violações de direitos humanos em países como Coreia do Norte e Sri Lanka, porque ofensiva ao compromisso firmado no artigo 4.º da CF/88.↑

[8] Sobre a lógica das imagens nas relações internacionais, ensina o professor Robert Jervis (1989): “Muitos fatores a respeito do Estado, que contribuem pesadamente para a formação de sua imagem, são permanentes ou semipermanentes e, portanto, estão além do controle de seus tomadores de decisão. A geografia e a história e, em larga medida, os sistemas político, econômico e social de um Estado, não podem ser manipulados (…). Enquanto os elementos básicos de uma imagem são difíceis de alterar, detalhes desta imagem, que podem influenciar fortemente a maneira como o receptor [da imagem] age, são mais suscetíveis à mudança” (p. 13; 15).↑

[9] Convém resgatar aqui o conceito de “espaço de proposição” de Fonseca Jr. (1998, p. 193; 195). Trata-se, em breves linhas, dos limites predeterminados pelas condições ideológicas e de poder de uma época, em cujo interior se legitimam as posições de políticaexterna.↑

[10] O método dialético implica, por definição, a superação das contradições entre dois elementos antitéticos quaisquer, o que gera, por conseguinte, um terceiro elemento sintético, ontologicamente distinto dos dois genitores. ↑

[11] Em livre exercício de paródia, em vez de autonomia pela participação, sugerimos rotular a PEB sob FHC de “participação pela adequação” (Belém Lopes e Vellozo Jr., 2004, p. 339).↑

[12] O conceito, que não merece um tratamento mais cuidadoso e sistemático por parte do autor, parece pretender um contraponto com o “pragmatismo responsável”, aplicável às gestões de PEB dos governos militares de Médici e Geisel.↑

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Vamos renegociar o Mercosul? » Política Externa

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Vamos renegociar o Mercosul?

por José Botafogo Gonçalves em 06/09/2013

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O Mercosul que está aí não é o Mercosul que foi negociado pelo Tratado de Assunção. O articulista diz que o povo brasileiro tem o direito de opinar se prefere o Mercosul de Assunção ou o Mercosul bolivariano. “O governo atual, tão a favor de consultas populares, deveria apoiar a iniciativa de uma renegociação do Tratado de Assunção. O mundo mudou muito de 1991 aos dias de hoje, assim como os quatro sócios do Mercosul. Acredito que o Brasil e seus vizinhos sul-americanos teriam muito a ganhar com o lançamento de uma rodada de negociações comerciais no subcontinente”. Muito se discute se o Brasil deve ter um papel protagônico na sua circunstância político-geográfica sul-americana ou se deve seguir sozinho no seu caminho do desenvolvimento econômico e social, optando por um isolacionismo ao sul do Equador. “Não tenho dúvidas de que a primeira opção é a melhor”, conclui.

Mercosur that is in place is not Mercosur which was negotiated by the Treaty of Asunción. Brazilian population has a say whether it prefers Asunción Mercosur or Bolivarian Mercosur. The current government, as in favor of popular consultations, should support the initiative of a renegotiation of the Treaty of Asunción. The world has changed a lot from 1991 to today, as well as the four Mercosur partners. I believe that Brazil and its South American neighbors have much to gain by launching a round of trade negotiations in the subcontinent. There is a debate whether Brazil should have a leading role in its political and geographical circumstances or must follow alone on the path of economic and social development, opting for isolationism south of the Equator. I have no doubt that the first option is the best

Desde 1991, quando o Brasil se juntou à Argentina, ao Paraguai e ao Uruguai para, em Assunção, propor a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), o país não concluiu, com sucesso, nenhuma nova e ambiciosa negociação de acordos internacionais de comércio. No plano mundial, a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio continua paralisada por visões bem distintas dos principais parceiros do comércio internacional. No plano hemisférico, a proposta norte-americana de criação de uma zona de livre comércio do Canadá à Patagônia fracassou por razões políticas, comerciais e econômicas que colocaram o Brasil e os Estados Unidos em posições antagônicas. No plano sul-americano, algum progresso moderado foi alcançado pelas negociações liberalizantes entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações, embora os resultados até agora obtidos pareçam indicar que tais acordos, parciais e implementados em velocidades diferentes, carecem de dinamismo na geração de mais comércio.

No plano político, os objetivos de integração regional vêm sofrendo reveses importantes nos últimos dez anos. Sob a liderança de Chávez, Venezuela, Bolívia e Equador, junto a alguns países centro-americanos e caribenhos, criaram a ALBA, onde instrumentos comerciais e econômicos se confrontam no espírito e na letra com aqueles ainda prevalecentes na Comunidade Andina de Nações. Esta, por sua vez, vem sofrendo com as divergências entre Colômbia e Venezuela, hoje um pouco atenuadas, e com a decisão de Chile, Peru e Colômbia de formarem, com o México, a Aliança do Pacífico com o objetivo de reorientar suas economias em direção ao dinâmico universo asiático. Em termos geopolíticos, as iniciativas bolivarianas caminham para uma exacerbação do velho conflito Norte-Sul entre países exploradores e países explorados, enquanto que a costa andina da América do Sul se vê atraída para dar as costas aos Andes e à Floresta Amazônica e olhar para a distante Ásia como o seu novo polo de atração. O Mercosul é a instituição que mais vem sofrendo com tais iniciativas centrífugas. O governo brasileiro, por iniciativa da dupla Lula/Amorim reforçou

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o discurso de integração sul-americana e apoiou a criação de um novo e ambicioso foro político sul-americano – UNASUL – com o objetivo específico de excluir os Estados Unidos de quaisquer iniciativas novas nas diversas áreas de cooperação regional.

Por outro lado, o Brasil abandonou totalmente a utilização das instituições do Mercosul como o foro adequado para a solução de controvérsias dentro do grupo. Quando se agravou a controvérsia entre a Argentina e o Uruguai em torno dos efeitos poluentes das papeleiras novas a se instalarem na margem esquerda do Rio Paraná, o Brasil, contra solicitações uruguaias, se recusou a considerar a controvérsia como de competência do Mercosul e preferiu defini-la como de caráter bilateral entre os dois sócios platinos. A partir desse momento fica claro que a chancelaria brasileira abriu mão de sua tradicional política de prestigiar órgãos regionais em troca de vantagens, reais ou imaginárias, de uma maior ênfase nos diálogos bilaterais com os seus vizinhos sul-americanos.

Apesar de sua aparente inconsistência, a lógica desta reviravolta diplomática era clara. Era preciso abrir espaços bilaterais para desenvolver as iniciativas de simpatia político-ideológica com a Venezuela, Bolívia e o Equador sem submetê-las aos controles, formais e materiais, das regras liberalizantes de movimentação de bens, serviços, capitais e pessoas, que são os fundamentos inspiracionais do Acordo de Assunção de 1991.

A bilateralização “à outrance” das relações sul-americanas explicam o nó em pingo d’água que foi dado pelo Brasil e Argentina, com apoio relutante do Uruguai, de admitir a Venezuela no Mercosul, mesmo a custo de se criar uma grave crise diplomática com o Paraguai, o mais frágil membro do clube dos quatro.

Como bem diz a sabedoria popular, não dá para assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. As inconsistências da diplomacia sul-hemisférica brasileira já se fazem sentir de forma gritante. A morte de Chávez na Venezuela impõe pesada hipoteca sobre os ideais bolivarianos de instalação na região de um socialismo do século XXI. As relações com a Bolívia continuam azedas e, nas últimas semanas, têm sido palco de um grande abalo na estrutura interna do Itamaraty, em função do episódio da fuga do senador Roger Pinto Molina para o Brasil. As relações comerciais com a Argentina se deterioram na medida em que se agrava a crise cambial e financeira do país vizinho. Uruguai e Paraguai voltam a namorar a ideia de negociar acordos comerciais com países de fora da zona, decepcionados que estão com o encolhimento das duas maiores economias da região. Uma pequena luz de esperança se acende em função das negociações atuais entre o Mercosul e a União Europeia. Para garantir sucesso em tão complicada negociação, o Itamaraty, em boa hora, está reutilizando o habilidoso estoque de “ambiguidade criativa”, em que a negociação com a União Europeia é feita pelo Mercosul, porém sua implementação será em velocidades diferentes e, bingo!, com a Venezuela de observadora.

Contra fatos, não há argumentos. Por iniciativa da diplomacia brasileira, com apoio oportunista da Argentina dos Kirchners, o Mercosul deixou de ser uma zona de livre comércio e uma união aduaneira, ambos imperfeitos. O Mercosul é hoje um clube político importante, que cobre a maioria do espaço físico e econômico da América do Sul, e simpatiza de maneira confusa com uma visão neobolivariana das relações hemisféricas.Felizmente, vivemos hoje no Brasil um regime democrático de direito, aberto a controvérsias e diferenças de opinião. A contrapartida da liberdade é o respeito aos contratos assinados como bem assinalou Lula na sua “Carta ao povo brasileiro”.

O Mercosul que está aí não é o Mercosul que foi negociado pelo Tratado de Assunção. Acho que o povo brasileiro tem o direito de opinar se prefere o Mercosul de Assunção ou o Mercosul bolivariano que aí está! O governo atual, tão a favor de consultas populares, deveria apoiar a iniciativa de uma renegociação do

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Tratado de Assunção. O mundo mudou muito de 1991 aos dias de hoje, assim como os quatro sócios do Mercosul. Qualquer que seja a preferência ideológica dos interlocutores públicos e privados do Mercosul no Brasil, forçoso é constatar que existe um desejo generalizado de que o Brasil saia do seu imobilismo negociador e defina uma nova política comercial que ajude o Brasil a se ajustar às oportunidades que se delineiam no mundo com a consolidação da China e da Ásia, em geral, como motores dinâmicos do comércio internacional, com a recuperação da economia americana, sobretudo no campo da inovação tecnológica, e com o provável, embora lento, desenvolver de um novo equilíbrio europeu entre a economia de mercado e o estado de bem-estar social.

Da minha parte, acredito que o Brasil e seus vizinhos sul-americanos teriam muito a ganhar com o lançamento de uma rodada de negociações comerciais no subcontinente com as seguintes características:

Objetivos comerciais: continuar com um programa de desgravação tarifária e redução de barreiras não tarifárias com a CAN, respeitadas as assimetrias entre os países de maior dimensão econômica e os países menores. Em vez de almejar o “livre comércio”, o acordo buscaria apenas alcançar “mais comércio”. O programa de desgravação tarifária deveria se associar a um programa paralelo de integração regional das cadeias produtivas. Os custos iniciais e inevitáveis da abertura comercial seriam compensados por ganhos a serem obtidos pela agregação de valor ao longo da cadeia produtiva com a regionalização dos insumos, matérias-primas e bens intermediários. O princípio de conteúdo local seria substituído pelo princípio do conteúdo regional. O produto final, obtido pela regionalização dos insumos ao longo da cadeia produtiva teria livre circulação no âmbito subcontinental e ganharia competitividade quando exportado para fora do subcontinente;

Objetivos econômicos: a integração regional de cadeias produtivas pressupõe um programa intergovernamental de convergência dos principais parâmetros macroeconômicos, sempre respeitadas as assimetrias entre partes grandes e pequenas. A eficácia da liberalização comercial e a convergência macroeconômica não se dão no abstrato. Ela pressupõe um ambiente setorial e microeconômico favorável aos investimentos produtivos, através do aumento dos investimentos e substanciais melhorias na infraestrutura subcontinental de energia, transporte e comunicação. Para tanto, seria revitalizado o programa IIRSA de infraestrutura, hoje administrado no âmbito da UNASUL junto com uma rodada de um acordo sub-regional de garantia recíproca de investimentos a fim de garantir segurança jurídica aos investidores regionais. No campo da infraestrutura, não bastaria acelerar os investimentos físicos. Será preciso complementá-los com um programa de convergência regional dos marcos regulatórios naqueles três campos, hoje basicamente definidos no âmbito interno da cada país;

Objetivos políticos: no caso do Brasil, a integração latino-americana não é uma opção de política governamental, mas sim um mandato constitucional, expresso no parágrafo único do artigo quatro da Constituição de 1988. Cabe à Presidência da República instruir o Itamaraty a propor um programa de iniciativas que deem substância aquele mandato constitucional.

O mandato constitucional brasileiro não necessariamente coincide com os objetivos políticos dos outros países da América do Sul. Não obstante, o Brasil, através do Itamaraty, tem uma longa história de negociações de acordos de cooperação nas mais diversas áreas da atividade humana. Entre eles, a título ilustrativo, trago à colação o Tratado de Cooperação Amazônica, hoje colocado em um nível baixo de prioridade. Não creio existir melhor foro para fortalecer a cooperação regional em matéria de meio ambiente, mudanças climáticas, sustentabilidade agrícola, preservação dos recursos naturais, combate ao crime organizado, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, do que o fornecido pelo Acordo de Cooperação Amazônica.

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Mesmo países distantes dos ecossistemas amazônicos, como Chile, Argentina e Uruguai só teriam a ganhar com uma elevação da prioridade dos objetivos do Tratado, por razões que dispensam maiores explicações.

Muito se discute se o Brasil deve ter um papel protagônico na sua circunstância político-geográfica sul-americana ou se deve seguir sozinho no seu caminho do desenvolvimento econômico e social, optando por um isolacionismo ao sul do Equador. Não tenho dúvidas de que a primeira opção é a melhor.

Falta ambição para Bali » Política Externa

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Falta ambição para Bali

por Pedro de Camargo Neto em 07/09/2013

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Nas últimas duas décadas, o Brasil tornou-se um líder agrícola. A posição de líder na exportação de inúmeras mercadorias foi seguida por liderança nas negociações na OMC. A criação do G20, que teve influência na reunião ministerial de Cancun, e os dois contenciosos vitoriosos do Brasil – o do açúcar e o do algodão – são o lado bem-sucedido dessa liderança.A reunião ministerial de Bali, em dezembro próximo, seria uma oportunidade para fortalecer a organização multilateral. A rodada de negociações, chamada Rodada do Desenvolvimento, em que a agricultura está no centro, novamente exigiria liderança do Brasil. Porém, isso não está acontecendo. Infelizmente, inexiste ambição do Brasil para a reunião de Bali.

In the last 2 decades Brazil became an agricultural leader. The position as export trade leader in innumerous commodities was followed by a trade negotiations leadership in the WTO forum. The creation of the Agriculture G20 group of countries with influence in the Cancun ministerial meeting and the two important agriculture export subsidies disputes are the successful side of this leadership. After the failure to obtain a minimum consensus in the so called mini ministerial meeting held in Geneva in July 2008 the Doha round stalled. The lack of interest of the world largest economy and trader has part responsibility. The US trade agenda is focused in regional agreements ignoring Doha. The Bali ministerial meeting next December would be an opportunity to strengthen the multilateral organization. A decision on still existing agriculture export subsidies, the easier understood distortion in world trade, would give political significance to the meeting. A round of negotiations called Development round where agriculture is in the center would again have required Brazil leadership. This does not happen. The election of the new Director General shows clearly it is possible to obtain success without the support of the developed countries. It requires ambition unfortunately this time nonexistent for the Bali meeting.

O intervalo entre o início da Rodada de negociações comerciais no âmbito do antigo Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), denominada Uruguai, e o da Rodada seguinte, Doha, em 2001, a primeira da Organização Mundial do Comércio (OMC), é de 15 anos. Nesse período, o setor agrícola do Brasil ganhou competitividade em virtude de significativos avanços estruturais. As exportações agrícolas cresceram, no período, cerca de 400%. Tornamo-nos os principais exportadores de açúcar, carne bovina e de aves, soja em grão e farelo, óleo e fumo. Já éramos os primeiros em café e suco de laranja. Iniciamos um processo que nos levará ao topo para leite, carne suína, milho e arroz. A liderança no comércio internacional tinha que ser acompanhada pela liderança política nos fóruns internacionais de comércio.

A participação do Brasil nas negociações agrícolas da Rodada Uruguai foi modesta.Historicamente, o Brasil sempre teve seu papel, resultado da qualidade de nossa diplomacia, nas negociações do antigo GATT. Porém, não era evidente a percepção de que o avanço na equidade do comércio agrícola, com redução das distorções, era importante para o desenvolvimento nacional. O Brasil participava levado pela vizinha Argentina, no grupo de países criado e liderado pela Austrália, denominado Cairns.

A Rodada Uruguai durou oito anos. Os resultados obtidos para o setor agrícola foram dois: o Acordo sobre Agricultura e o Acordo sobre Sanidade e Fitossanidade.

Embora, em Punta del Este, no lançamento da Rodada Uruguai, em 1986, os EUA tivessem o discurso da eliminação dos subsídios no setor agrícola, este foi abandonado no percurso. O resultado final foi basicamente consolidar o status quo nesse tema. O Brasil e demais países acabaram aceitando o consenso

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com a promessa de negociações futuras. O avanço que representou a Rodada foi a obtenção desses dois acordos importantes, que certamente dificultam retrocessos. A Rodada Uruguai produziu, porém, dois outros grandes acordos de enorme interesse para os países desenvolvidos. O Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), acordo sobre propriedade intelectual, e o General Agreement on Trade in Services (GATS), acordo sobre serviços. Ambos representam ganhos significativos para os países desenvolvidos. Longe aqui de não valorizar a questão da propriedade intelectual e a existência de regras multilaterais para serviços, mas é preciso registrar que os países em desenvolvimento obtiveram muito menos em agricultura.

O crescimento da participação do Brasil no comércio internacional agrícola destacou a necessidade de reduzir as iniquidades existentes nas regras multilaterais consolidadas na OMC. O setor privado passou a acompanhar as negociações, desenvolvendo posições e pressionando por prioridades. Na reunião ministerial da OMC em Cingapura, em 1996, estavam presentes dois representantes do setor privado agrícola. Na reunião de Seattle, em 1999, eram mais de 20 participantes. A posição de líder comercial veio acompanhada do crescimento de participação política.

Em 2001, era evidente que o Brasil não poderia mais ser apenas caudatário de posições levantadas pela Austrália e a Argentina no grupo de Cairns. A Austrália ficava cada vez mais próxima dos EUA, chegando depois a assinar um acordo de livre comércio com o governo norte-americano. A Argentina permanecia, infelizmente, com posicionamentos erráticos, resultado de políticas internas anacrônicas. O início do desenvolvimento dos dois contenciosos agrícolas em 2001 – do algodão com os EUA e do açúcar com a União Europeia (UE) – embutiam o interesse de passar a liderar o processo político das negociações agrícolas.O Brasil chegou em dezembro ao Qatar com estratégia e visão diferentes das que se esperava na nova Rodada. Sob o impacto do atentado terrorista às torres gêmeas de Nova York, houve consenso em torno da declaração que prometia para o setor agrícola:

a eliminação dos subsídios à exportação;

a redução dos subsídios de apoio interno;

a crescente abertura dos mercados agrícolas.

Em paralelo à aprovação formal dos dois contenciosos, internamente no Ministério da Agricultura se desenvolvia a visão de que a posição do Brasil extrapolava o grupo de Cairns. Este se tornara pequeno. Uma nova aliança era necessária para enfrentar uma negociação com mais de uma centena de países. A realização da reunião ministerial em Cancun, em 2003, consolidou o novo posicionamento do Brasil. As negociações emperravam, e, poucos meses antes da reunião no México, EUA e UE tentaram novamente a experiência que tinha tido sucesso na Rodada Uruguai, na chamada reunião de Blair House, quando produziram acordo bilateral que acabou sendo imposto a todos. Dessa vez a proposta bilateral teve efeito inverso, pois a diplomacia do Brasil, a partir de Genebra, iniciou contatos que culminaram com a criação do hoje chamado G20 agrícola, que teve sua primeira reunião entre ministros em Cancun.

O G20 tinha um grande denominador comum que era a eliminação total dos subsídios à exportação. Com a força desse ponto comum e a liderança do Brasil ficou claro, no México, que acordos bilaterais do tipo Blair House – que haviam decidido a Rodada anterior – não tinham mais espaço. De maneira paralela ao contencioso do Brasil, pois não eram partes formais, quatro países da África haviam se aglutinado em torno do que se chamou de Iniciativa do Algodão. Eles chegaram a Cancun mobilizados para eliminar a

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concorrência predatória no comércio internacional desse produto.A surpresa do G20 aturdiu os EUA e a UE, que imaginaram seu rápido esfacelamento.

Quando ficou evidente que existia clara coesão em torno do denominador comum dos subsídios à exportação, reforçada pela iniciativa africana, que contava com forte apoio de ONGs europeias, EUA e UE se viram extremamente pressionados. No momento em que o problema paralelo em torno dos temas colocados em pauta – na reunião de Cingapura – se agravou, a reunião foi abortada sem qualquer tipo de acordo e apresentada como fracasso.

Longe de ser fracasso, Cancun provocou importante transformação. Poucos meses depois, a UE se reuniu na Irlanda e informava estar preparada para aceitar a eliminação dos subsídios à exportação. Um dos pontos da declaração de Doha havia sido obtido. Faltavam os outros dois. O sucesso do G20 inebriou a diplomacia brasileira, que acelerou enorme roteiro de articulações. Longe de querer aqui criticar o desejo de se tornar força de relevo no campo internacional, nos parece, porém, que esqueceu que aquele grupo reunido em Cancun tinha um denominador comum que os unia fortemente.

Alianças são essenciais para avançar em negociações multilaterais, sendo essencial reconhecer com clareza o que as une. Com a inegável liderança carismática do presidente Lula, além do seu gosto por viagens ao exterior, o Brasil cresceu em seus posicionamentos internacionais. Nas negociações da Rodada Doha, colocada como principal – se não a única – frente de negociação comercial, infelizmente, o Brasil passou a obter fracassos.

Na reunião ministerial seguinte, realizada em Hong Kong, o Brasil chegou com forte posicionamento, pressionando por maior acesso aos mercados agrícolas dos países desenvolvidos. O confronto com a UE foi evidente. Após dias de debate, a reunião terminou com uma declaração que logrou pouco progresso em qualquer dos temas agrícolas. A UE, que já havia declarado estar disposta a, no fim da Rodada, eliminar seus subsídios à exportação, nada adiantou no tema acesso a mercados.

A negociação sobre a terceira frente da declaração de Doha, a questão dos subsídios agrícolas de apoio interno, tema que pressionaria os EUA, foi deixada de lado pelo Brasil e, portanto, pelo G20, sendo pouco debatida em Hong Kong. A forte mobilização dos países africanos na Iniciativa do Algodão conseguiu colocar em pauta o produto; porém, deixavam de relacionar, nos termos em negociação na Rodada, a questão das distorções no mercado internacional com os subsídios internos norte-americanos.

Esse posicionamento exigiria a liderança do Brasil, que optou em não utilizar a decisão do contencioso, já obtida naquela data, e a mobilização africana para avançar nessa terceira frente agrícola de Doha.

O fracasso na obtenção de declaração consensual, em Cancun, produziu avanço no posicionamento europeu sobre os subsídios à exportação. O suposto sucesso de Hong Kong, obtendo declaração consensual, não produziu qualquer avanço nos outros dois temas da Rodada, acesso a mercados e subsídios de apoio interno. O confronto é muitas vezes necessário para avançar. A UE compreendeu, em Cancun, que teria que mudar. Não só iria estar no foco das críticas em todas as próximas reuniões da Rodada Doha, como amplos setores da sociedade europeia também criticavam essa política de subsídios, vista como anacrônica. O passo em Hong Kong deveria ser atacar os subsídios norte-americanos, que, embora classificados como de apoio doméstico, têm importante efeito nas exportações daquele país.

A partir de Hong Kong, as reuniões se multiplicaram. G20, G5, G4, G20 com G33, reuniões e mais reuniões, nas quais o Brasil brilhou. Na última reunião do G4, realizada em Potsdam, ficou claro que o Brasil apreciava o destaque de ser um dos quatro, porém, não tinha a representatividade para estar lá sozinho. Os debates técnicos também ocorreram em paralelo e o presidente do Comitê de Agricultura foi

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produzindo rascunhos de possíveis declarações de avanços. As questões críticas ficavam para um confronto ministerial.

Em julho de 2008, realizou-se em Genebra uma reunião conhecida como miniministerial. Logo no início, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, apresentou um texto. Nele incluía seu entendimento do que seria um mínimo aceitável por todos. Na procura do consenso entre 152 países, é mais importante saber os pontos inaceitáveis, pois se sabe com antecedência que o desejado individualmente não será atingido.

A proposta de Lamy teve como primeiro apoiador o Brasil, e a Índia como primeiro opositor. O G20 fraturou-se na frente de todos. O texto de Lamy pouco pressionava os EUA na questão dos subsídios de apoio interno. Ao colocar como nível máximo de subsídios aos EUA valor pouco abaixo ao que a negociadora norte-americana havia oferecido ao chegar a Genebra, deixou o país muito confortável. A Índia vinha pressionando pela metade do valor proposto. Lamy se equivocara ao deixar os EUA menos infelizes do que os outros.O debate que seguiu centrou-se na proposta das chamadas salvaguardas especiais de interesse da Índia, em que o Brasil tem manifesta divergência. A Índia não se interessou em colocar que poderia trocar um sacrifício na sua ambição em salvaguardas por um avanço nos subsídios norte-americanos. Os EUA tampouco fizeram o inverso, até sabendo que o item seguinte da agenda de Genebra eram os subsídios ao algodão. O equívoco de Lamy não foi trabalhado pelo Brasil, até porque já o tinha aprovado e visto sua liderança se esvair.

A reunião de Genebra precisaria pressionar os EUA, mais pelo efeito político do que econômico. O Brasil somente manteria liderança para pressionar seus parceiros do G20 com uma proposta que pressionasse também os EUA. A ausência de sucesso na reunião ficou com a tentativa de culpar a Índia, cujo negociador parecia satisfeito em voltar a Delhi com esse rótulo.

Na sequência, a Rodada Doha perdeu momento, ficando cada dia mais evidente que dificilmente chegaria a um final. O Brasil passou a colocar nas reuniões seguintes a necessidade de os EUA avançarem na redução de subsídios de apoio interno – antes tarde do que nunca. O contencioso do algodão chegou ao final após todas as postergações possíveis, permanecendo os EUA impassíveis na necessidade de reduzir subsídios. Um acordo de compensação financeira, de valor significativo, após o Brasil ameaçar com represálias, inclusive em propriedade intelectual, foi assinado até que uma nova legislação altere os subsídios do algodão.

O EUA negociam ativamente acordos comerciais no âmbito do chamado TPP (Trans Pacific Partnership) e mais recentemente com a União Europeia no que seria um grande acordo transatlântico. A agenda comercial norte-americana é intensa. Em Genebra é, porém, o principal empecilho para avanço da Rodada Doha. Quer muito e cede pouco.

A reunião ministerial de Bali se aproxima e a ambição do Brasil parece muito limitada. Sequer a proposta bem-sucedida em Cancun, que motivou a criação do G20 agrícola, de eliminar finalmente os subsídios à exportação é apresentada. Este tema traria equidade das regras para a indústria de manufatura com as regras agrícolas. A aproximação das duas seria muito importante. É preciso preparar o fim desta discriminação.As negociações que antecedem Bali trabalham temas de facilitação de acesso a mercados, certamente interessantes, porém, estão longe de trazer a equidade que vem se tentando negociar desde Punta del Este, 25 anos atrás.

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É verdade que o G20 agrícola, através da liderança do Brasil, apresentou para Bali proposta de reduzir à metade os limites dos subsídios clássicos a exportação. Incluiu também interessante e inovadora regra para subsídios ao crédito para exportação, que consolidaria um dos expressivos ganhos do contencioso do algodão. Embora a proposta esteja no caminho correto, faltou ousadia ao tentar somente a metade do necessário. Mesmo essa aprovação, de metade, não ficou mais fácil. Metade pode ser mais difícil do que o todo.

O confronto é necessário para explicitar a iniquidade e obrigar a avançar. É preciso dar evidência aos pontos de entrave e seus responsáveis. Seria importante alguns avanços concretos para que a negociação não seja vista como uma farsa, em particular para os países em desenvolvimento.

A Rodada Doha tem no coração o tema agrícola. É chamada de Rodada do Desenvolvimento. É para ter a ambição de corrigir grandes iniquidades no comércio internacional. Subsídios à exportação agrícola, clássicos ou indiretos, são a iniquidade de mais simples compreensão, certamente não a única ou a maior. Nem mesmo a opinião pública dos países desenvolvidos apoia esta distorção. Seria o tema perfeito para dar sentido histórico à reunião de Bali e para o fortalecimento do multilateralismo, tão importante para o Brasil. A ambição que o Brasil demonstrou ao apresentar candidatura à diretor-geral da OMC, à revelia dos países desenvolvidos, não está presente nas propostas para Bali. O resultado eleitoral mostrou que é possível vencer. Antes de tudo, porém, é preciso tentar.

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Repensando as relações Estados Unidos/América Latina: trinta anos de transformações

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por Abraham Lowenthal em 08/09/2013

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O artigo compara o relacionamento entre os EUA e a América Latina de 30 anos atrás com o atual. Enquanto os Estados Unidos são hoje uma sociedade envelhecida, com menor poderio e influência mundial, os países da América Latina, que enfrentaram a Década Perdida dos anos 1980, evoluíram econômica e socialmente. Agora, corresponde aos EUA viver a sua Década Perdida. O desemprego, que teve um forte aumento em 2008-2009, vem cedendo de forma bastante lenta. A renda familiar caiu, ao mesmo tempo em que a concentração de renda se intensificou enormemente. Em termos gerais, a história da América Latina e do Caribe é mais positiva hoje do que há 30 anos. Os próximos anos podem ser auspiciosos para a cooperação interamericana, não devido à filantropia dos Estados Unidos, nem ao fato de Washington temer certas tendências regionais ou influências externas sobre a América Latina, mas porque as transformações ocorridas nas Américas, do Norte e do Sul, geram um potencial de sinergia e de oportunidades mútuas.

The article compares the relationship between the U.S. and Latin America 30 years ago to the present. While the United States is now an aging society, with less power and global influence, the countries of Latin America, which faced the Lost Decade of the 1980s, evolved economically and socially. Now, corresponds to the U.S. to live their Lost Decade. Unemployment, which had a strong increase in 2008-2009, has been losing very slowly. Family income fell, while the concentration of wealth has intensified greatly. Broadly speaking, the history of Latin America and the Caribbean is more positive today than 30 years ago. Authoritarian governments that held power in much of South America and Central America were, in most countries, replaced by government chosen in free elections. The next few years may be auspicious for inter-American cooperation, not because of philanthropy in the United States, nor the fact that Washington feared certain regional trends or external influences on Latin America, but because the changes occurred in the Americas, North and South, generate a potential for synergy and mutual opportunities.

Trinta anos atrás, a América Latina passava por uma violenta crise financeira e por uma profunda depressão econômica. As consequências de dívidas externas e déficits fiscais de proporções insustentáveis se faziam sentir. Em 1982 – o ano em que, pela primeira vez em 40 anos, a renda bruta latino-americana apresentou declínio – as instituições financeiras começavam a falhar e a pobreza e o desemprego aumentavam. A industrialização de substituição de importações e as economias estatistas, em grande medida, haviam esgotado seus benefícios. O que viria a ser conhecido como a Década Perdida havia começado.

Após muitos anos de relativa calma, os conflitos militares se disseminaram. O longo conflito entre a Argentina e o Reino Unido, que tinha como objeto as Ilhas Malvinas/Falklands produziu o primeiro choque militar de que se tem notícia entre um país latino-americano e um país externo ao hemisfério. Atritos intensos corroeram as relações entre Argentina, Chile, Peru e Equador, fazendo com que conflitos armados se transformassem em possibilidade real. As tensões de fronteira se acirraram entre Venezuela e Colômbia, Guatemala e Belize e Nicarágua e Colômbia.

As guerras civis da América Central, com o envolvimento crescente de nações externas ao istmo, incluindo Cuba e Estados Unidos, escalavam em violência e despertavam profunda preocupação. Os Estados Unidosengajaram-se em intervenções militares abertas e secretas na América Central, desrespeitando suas próprias leis e as regras do direito internacional. Regimes autoritários repressivos (principalmente na Argentina, no Chile e no Uruguai) cometiam violações sistemáticas dos direitos humanos e, nos Estados Unidos, o recém-empossado governo Reagan parecia fechar os olhos a esses abusos.

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Nos Estados Unidos, a imigração de latino-americanos se acelerava, mas, devido a dificuldades econômicas internas, eram muitos os que clamavam por políticas restritivas. Medidas adotadas pelo Federal Reserve para reverter a inflação norte-americana exacerbaram as pressões colocadas sobre a economia e o setor financeiro latino-americanos.

Os Estados Unidos contribuíram pesadamente para muitos dos problemas latino-americanos: dívida, comércio internacional, crescimento, pobreza, repressão e também para os violentos conflitos ocorridos na América Central. A posição adotada por Washington em relação a essas questões calcava-se principalmente no conceito de hemisfério Ocidental, ou seja, a ideia de que os países das Américas diferenciam-se do restante do mundo, guardando uma relação especial uns com os outros sob a liderança dos Estados Unidos, e também na ainda poderosa estrutura de rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética, a Guerra Fria. As autoridades norte-americanas reconheciam a enorme diversidade existente entre os mais de 30 países da América Latina e do Caribe, com suas diferentes dimensões, heranças coloniais, populações indígenas, fluxos de imigração, geografia, recursos naturais e relações com a economia mundial. Isso, entretanto, não os impedia de pensar a região em termos abrangentes, de ver os países latino-americanos e os Estados Unidos como tendo fortes interesses e perspectivas em comum, e de formular a cooperação interamericana com o objetivo principal de solucionar os problemas de alta prioridade para os Estados Unidos, sem levar em conta os interesses da América Latina e do Caribe.

O Diálogo Interamericano foi convocado em 1982 por pessoas que acreditavam que a postura adotada por Washington em relação à América Latina baseava-se em conceitos e prioridades equivocados e ultrapassados. Preocupava-nos profundamente o intenso foco colocado pelos Estados Unidos sobre a América Central, a falta de sensibilidade do governo dos Estados Unidos com relação às crescentes dificuldades econômicas que assolavam a América Latina e o retrocesso dos esforços norte-americanos visando à proteção dos direitos humanos fundamentais e à promoção da governança democrática. E nos perturbava o desgaste das comunicações interamericanas exemplificado na concordância tácita, se não explícita, de Washington em relação à decisão do governo militar da Argentina de invadir as Ilhas Malvinas/Falklands, seguido pelo apoio prestado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos à Grã-Bretanha em sua bem-sucedida campanha contra as forças argentinas. Nosso objetivo, ao convocar a reunião que levou ao primeiro relatório do Diálogo, foi o de promover um melhor intercâmbio e o aprofundamento da compreensão mútua, a fim de amenizar o impacto produzido pelos Estados Unidos no restante do hemisfério e de incentivar os governantes norte-americanos a atentar para os assuntos de interesse de ambas as partes – as questões prioritárias para Washington e as de importância para os demais países da região.

Era nossa expectativa que os latino-americanos tivessem interesse principalmente por questões regionais, nas quais concentramos nossas discussões interamericanas. Todos os participantes tinham plena consciência de que os Estados Unidos tinham interesses e políticas globais, aos quais suas políticas para a América Latina geralmente se subordinavam, mas era nosso desejo fazer que a agenda política dos Estados Unidos se afastasse de seu foco na Guerra Fria e passasse a dar maior atenção aos problemas em comum e às perspectivas de cooperação.

Hoje as coisas são muito diferentes. Não se trata apenas de a Guerra Fria ter chegado ao fim e a União Soviética ter deixado de existir. Movimentos políticos que, 30 anos atrás, seriam causa de intervenção direta pelos Estados Unidos, atualmente ocupam o poder em diversos países latino-americanos – Brasil, Uruguai, El Salvador e República Dominicana, por exemplo. Alguns deles praticam estreita cooperação com os Estados Unidos, cenário que poucos de nós poderiam sequer imaginar em 1982. Washington vem tentando se subtrair aos caríssimos engajamentos militares no Oriente Médio e na Ásia Ocidental, que

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ninguém poderia ter previsto 30 anos atrás, e enfrenta hoje graves ameaças partindo de adversários não estatais, que então eram inimagináveis. A preponderância dos Estados Unidos em termos globais entrou em declínio, e a antes estável e próspera União Europeia vem lutando contra persistentes dificuldades. A China surgiu como uma força participante, assertiva e poderosa no cenário mundial. Os países emergentes – Índia, Brasil, Coreia e outros – são grandes motores do crescimento econômico global.

As transformações nos Estados Unidos

Os Estados Unidos, também, mudaram muito. Sua economia vem, cada vez mais, abandonando o setor manufatureiro para se concentrar no de serviços, cuja produtividade é aumentada pelas revoluções nas tecnologias de comunicação. Sua população cresceu, principalmente com a absorção de números inéditos de imigrantes, e envelheceu, fazendo com que um número cada vez maior de cidadãos dependa dos programas de seguridade social e de saúde. As pessoas migraram para o sul e para o oeste, alterando a dinâmica política do país. Os imigrantes, a maioria deles provenientes do México, da América Central e do Caribe, não se restringem mais aos tradicionais pontos de entrada, dirigindo-se agora para outras cidades espalhadas pelos Estados Unidos. Esses imigrantes e seus descendentes têm hoje uma participação e um peso cada vez maior na política norte-americana e serão responsáveis por grande parte da expansão da força de trabalho até 2050.

Muitas dessas transformações foram positivas: inovações tecnológicas, maior igualdade de oportunidades para as mulheres e minorias étnicas, maior acesso ao ensino superior e a inúmeros bens de consumo, além do notável fortalecimento das universidades de pesquisa, que atraem talentos de todo o mundo. Quanto a outros aspectos, entretanto, esses anos foram marcados por deterioração. Desta vez, foram os Estados Unidos que tiveram uma Década Perdida. O desemprego teve um forte aumento em 2008-2009, e vem cedendo de forma bastante lenta. A renda familiar caiu, ao mesmo tempo em que a concentração de renda se intensificou enormemente. Em 1980, o 1% dos norte-americanos de renda mais alta concentravam 10% da renda nacional. Em 2007, esse mesmo 1% respondia por 30% da renda do país. Agora, são os Estados Unidos que têm níveis insustentáveis de endividamento, desequilíbrio fiscal maciço e políticas econômicas irresponsáveis, muitas vezes forçadas por interesses especiais e pela busca de vantagens na arena da política interna.

Com a queda da receita tributária e o aumento dos déficits, os serviços públicos norte-americanos não recebem financiamento suficiente, e sua tão alardeada infraestrutura vem se deteriorando. A qualidade do ensino primário e secundário decresceu em comparação a outros países industriais. Em termos de capacidade de leitura e de conhecimentos de ciências, os resultados dos estudantes norte-americanos situam-se na faixa média entre os países da OCDE, e os resultados em matemática estão bem abaixo da média.

Declínio econômico, desigualdade crescente, desgaste da coesão social e menor competitividade econômica contribuíram para acelerar a deterioração política. As cisões políticas e econômicas se exacerbaram, aprofundando o abismo entre as costas e o interior, o rural e o urbano, imigrantes e anti-imigrantes, religiosos e seculares e entre grupos de cidadãos de diferentes níveis de renda, gêneros, orientações sexuais e faixa etária. Com a consolidação das empresas de mídia e a fragmentação de seus mercados, essa polarização vem se exacerbando, uma vez que um grande número de cidadãos se vê exposto unicamente aos argumentos que confirmam suas próprias ideias. A retórica da confrontação substituiu o discurso cívico.

As instituições dos Estados Unidos, antes invejáveis, deixaram de funcionar. Instituições políticas de todos os tipos perderam credibilidade pública: o Congresso, o presidente, os partidos, os meios de comunicação e

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até mesmo os tribunais. Qualquer exame sério das relações entre os países do hemisfério, hoje em dia, tem que levar em conta as profundas dúvidas sobre a capacidade dos Estados Unidos de desenvolver e sustentar políticas corretas, tanto na esfera doméstica quanto na internacional.

O progresso da América Latina

Em termos gerais, a história da América Latina e do Caribe é mais positiva. Os governos autoritários que ocupavam o poder em grande parte da América do Sul e da América Central foram, na maioria dos países, substituídos por governos escolhidos em eleições livres. Isto posto, a natureza das coalizões que ocupam o poder e dos partidos de oposição varia muito, como variam também a qualidade dos poderes Judiciários e Legislativos, da mídia e das organizações da sociedade civil. As instituições estatais e as organizações não governamentais se desenvolveram e ganharam força, embora em ritmos diferentes e com características bastante diversas. As instituições políticas se tornaram mais participativas e representativas em diversos países, os governos militares e a impunidade generalizada são hoje menos comuns. Mas o controle institucional sobre os atos do poder Executivo viu-se gravemente enfraquecido em diversos países, e a exigência de prestação de contas ainda é prática rara em muitos deles.Dando continuidade a uma tendência já visível 30 anos atrás, os países latino-americanos se tornaram mais populosos, urbanizados, alfabetizados e modernos. As taxas de mortalidade infantil tiveram forte declínio, a expectativa de vida aumentou e o acesso a água potável, redes de esgoto, eletricidade e serviços de comunicação se expandiu. Foi alcançado um acesso amplo ao ensino primário e secundário, embora estes sejam de qualidade desigual e, de modo geral, continuem apresentando graves deficiências. O crescimento econômico, as transições demográficas e a mobilidade social geraram uma classe média significativamente maior que, em muitos países, vêm reconfigurando a economia, a sociedade e a política.

As transformações econômicas ocorridas na América Latina, principalmente nos últimos quinze anos, foram notáveis. Os anos 1980 foram muito difíceis. Na década de 1990, alguns países tiveram anos de bom crescimento, à medida que as políticas liberais de abertura de mercados se firmaram, embora os limites e a vulnerabilidade do enfoque do Consenso de Washington – liberalização, abertura para investimentos externos, privatização e desregulamentação – também se tornaram evidentes. Estados eficientes, instituições judiciárias sólidas e independentes e regulamentação eficaz são fatores necessários para o bom funcionamento dos mercados.

Um crescimento econômico impressionante verificou-se nos últimos dez anos, principalmente na América do Sul. No cerne desse crescimento encontrava-se uma agricultura modernizada, centrada em produtos de exportação tradicionais e não tradicionais; o desenvolvimento de nichos setoriais voltados para a nova economia mundial; forte desenvolvimento dos recursos naturais, particularmente por meio da atração de investimentos internacionais; investimentos significativos (embora ainda insuficientes) em infraestrutura; e a exportação de commodities, bens manufaturados e serviços pelas multilatinas, empresas multinacionais estabelecidas na América Latina que operam em todo o globo. Embora as exportações de alguns países ainda se limitem basicamente a bens primários destinados a alguns mercados específicos, outros países diversificaram suas exportações em termos de setores e destinos, com base em termos de troca bem mais vantajosos.

Embora esses avanços tenham gerado um dinamismo econômico que seria difícil imaginar 30 anos atrás, algumas sub-regiões continuam estagnadas e imersas em pobreza, e muitos países enfrentam gargalos causados por infraestrutura insuficiente, escassez de mão de obra qualificada e escolarizada, mercados restritos, falta de capacidade inovadora e a incapacidade de converter avanços tecnológicos em viabilidade comercial. Esses problemas, caso não enfrentados, colocarão em xeque a competitividade futura da região. Na América Latina, as profundas desigualdades de riqueza e de renda continuam existindo, embora um

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pouco atenuadas nos últimos anos (ao contrário dos Estados Unidos, onde essas desigualdades vêm se agravando). Uma distribuição mais ampla dos benefícios de um maior crescimento reduziu a pobreza extrema, o que foi alcançado, em grande medida, por programas sociais, aumentos dos salários mínimos e transferências condicionais de renda aos mais pobres.

A base dessas conquistas positivas foi o surgimento, em alguns países – Brasil, Chile, Colômbia e Peru, principalmente – de um alto grau de previsibilidade, ou seja, estabilidade nas expectativas quanto às regras do jogo e aos procedimentos necessários para a alteração dessas regras. A estabilidade de expectativas liberou energias criativas de todos os tipos – não apenas por parte dos investidores, externos e nacionais, mas também de estudantes, pais, organizações não governamentais e governos. A confiança na estrutura operacional facilita a tomada de decisões mais racionais e de longo prazo por todos. Passa assim a ser muito mais fácil superar o cortoplacismo – os enfoques de curto prazo – e construir políticas e instituições viáveis no longo prazo.

Decerto que nem todo o quadro é tão animador. Muitos dos países da América Latina e do Caribe continuam sofrendo de altos níveis de violência, embora esta não seja mais provocada por conflitos entre países ou por guerras civis internas. O que restou dos movimentos insurgentes no Peru e na Colômbia está, em sua maior parte, sob controle. A violência dos dias de hoje, responsável por um número de mortes comparável ao das provocadas pelas guerras civis, vem da criminalidade, tanto organizada quanto não organizada, da reação dos cartéis do crime aos esforços redobrados dos governos com o fim de destruir ou conter esses cartéis, e da incapacidade dos Estados mais fracos de proteger a segurança de seus cidadãos. Essa violência é particularmente alta na Venezuela, no México, no Brasil, ainda na Colômbia e em partes do Caribe. Longe de oferecer soluções práticas, os Estados Unidos são vistos como uma das causas do problema, em virtude da demanda interna por drogas, de sua insistência em criminalizar o tráfico de drogas (talvez tornando-o assim ainda mais violento) e de seu papel como fonte das armas canalizadas para o crime, os cartéis de drogas e as gangues de jovens da América Latina.

Embora os indicadores de igualdade tenham melhorado em muitos países da América Latina, a região continua sendo a mais injusta de todo o mundo. Os ganhos recentes em termos de distribuição de renda foram alcançados em um período de fartura. Se esses ganhos irão ou não sobreviver a um revés econômico, se e quando o boom das commodities vier a declinar, é uma questão incerta. Grandes segmentos da população – principalmente os povos indígenas, os afrodescendentes e os pobres das áreas rurais – continuam sofrendo grandes privações em muitos países. O apoio aos governos democráticos e às políticas voltadas para o mercado é sempre limitado e precário nos países onde as frustrações populares são intensas.

A América Latina em um novo mundo

Graças aos inegáveis (embora desigualmente distribuídos) avanços sociais políticos e econômicos alcançados pela América Latina nos últimos 30 anos, vários países da região são hoje atores importantes nas relações internacionais. O Brasil é o que mais se destaca, mas México, Chile, Colômbia, Argentina e Peru também deixaram de ocupar posição coadjuvante no cenário mundial, e o mesmo pode ser dito da Venezuela e de Cuba. Os países latino-americanos estão expandindo sua esfera de ação, em termos políticos e comerciais, na África, Ásia, Europa e no Oriente Médio, muitas vezes perseguindo interesses e políticas independentes ou até mesmo contrários às políticas e interesses dos Estados Unidos.

As nações latino-americanas, além disso, vêm construindo novas organizações regionais de natureza econômica e política sem a participação dos Estados Unidos. As iniciativas regionais e sub-regionais internas à América Latina – o Mercosul, a UNASUL e a CELAC – atraíram a atenção de muitos latino-

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americanos.A Organização dos Estados Americanos (OEA), a Cúpula das Américas e outras instituições pan-americanas foram enfraquecidas, sua missão e sua eficácia estão hoje em questão.

Há 30 anos, eram muitos os que, em Washington, se preocupavam com o envolvimento da União Soviética nas Américas, seus estreitos vínculos com Cuba, seu apoio aos sandinistas da Nicarágua, sua solidariedade com o FMNL de El Salvador e seus laços com os militares peruanos. Agora, a União Soviética deixou de existir e a presença da Rússia nas Américas é modesta e limitada.

A China, ao contrário, tinha pouca importância para a América Latina 30 anos atrás. Hoje, ela é o principal parceiro comercial de vários países sul-americanos, e o maior investidor e emprestador internacional para alguns deles. A presença da China no hemisfério Ocidental supera a que a antiga União Soviética, a Alemanha nazista ou qualquer outra potência extra-hemisférica algum dia chegou a ter, desde que os países da América Latina conseguiram sua independência. Alguns países latino-americanos também desenvolveram relações comerciais importantes com o Japão, a Coreia, a Índia e o Sudeste Asiático. As relações comerciais com a Europa continuam a ter importância, e ambas as partes têm interesse em intensificá-las.

O México e os vizinhos mais próximos dos Estados Unidos na América Central e no Caribe continuam a manter vínculos estreitos com o Estado norte-americano, principalmente em questões demográficas, de mercado de trabalho, comerciais, financeiras e culturais. O México, o segundo maior parceiro comercial dos Estados Unidos, envia para o norte 80% de suas exportações, e sua economia depende do turismo, das remessas e dos investimentos norte-americanos, e também dos retornos dos crescentes investimentos mexicanos nos Estados Unidos. Mais de 10% da força de trabalho mexicana trabalha nos Estados Unidos. Novos níveis de cooperação e de conflito em uma série de questões – questões intermésticas a meio caminho das políticas internacionais e internas, contendo facetas de ambas e causando impacto nos dois lados das fronteiras cada vez mais porosas – tornam particularmente difícil a administração dessas relações. As questões cruciais não são tópicos tradicionais de política externa, e sim saúde, educação, drogas, violência, questões legais e policiais, licenças de motorista, comunidades de aposentados, benefícios de seguro-saúde e muitas outras questões práticas.

Enquanto isso, as relações internacionais dos países da América do Sul são muito mais diversificadas em número e qualidade do que 30 anos atrás. Os sul-americanos, portanto, têm menor tendência a buscar enfoques interamericanos ao tratar de questões globais mais amplas.

Caminhos diferentes

A visão da América Latina como uma região coerente e cada vez mais unificada, que já de partida era problemática, ganhou reforço em inícios da década de 1990, quando era comum ver os países latino-americanos avançando em ritmos diferentes, mas no mesmo caminho e na mesma direção, tendo o Chile como líder.

Em anos mais recentes, contudo, ficou claro que os diferentes países da América Latina percorreram caminhos diversos. Há muitas variantes, mas uma distinção fundamental demarca dois grupos: os países da Alternativa Bolivariana e os demais.

Os países da Alternativa Bolivariana (Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e talvez Argentina) estão engajados em uma visão de desenvolvimento mais inclusiva e igualitária. A globalização e o capitalismo de mercado despertam profunda desconfiança, e sua preferência vai para a democracia plebiscitária, mais que para as instituições representativas liberais. A maioria dos demais países, inclusive alguns dos mais influentes entre eles, vêm tentando se ajustar à globalização e tirar partido das energias dinâmicas e dos

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substanciais recursos oferecidos pelo capitalismo global. Mas esses países tentam também contrabalançar os efeitos negativos do capitalismo em termos de igualdade e coesão social por meio de políticas redistributivas e de fortalecimento das instituições e mecanismos compensatórios de uma boa governança democrática.

Essa divisão em dois grupos, cada um deles reunindo países heterogêneos, é, na prática, mais imprecisa do que absolutamente nítida. Ambos encontram-se ainda em elaboração, e não há modelos ideológicos estabelecidos. Os países de ambos os grupos mesclam elementos pragmáticos e ideológicos. De modos diferentes, ambos buscam melhores termos de engajamento com o capital internacional e melhores termos de troca em suas relações econômicas com o resto do mundo. Os países desses grupos respondem de forma tática às pressões internas e às limitações e oportunidades internacionais, sem se adequar a gabaritos consistentes ou a dogmas rígidos. E todos esses países, pelo menos em parte, sofrem a influência das qualidades e circunstâncias pessoais de seus líderes, do legado de suas experiências históricas e de suas instituições divergentes.

Uma visão prospectiva

Após 30 anos de transformações, os Estados Unidos são hoje uma sociedade envelhecida, com menor poderio e influência mundial. O país necessita urgentemente investir em educação e em infraestrutura, restaurar a solvência fiscal, expandir suas exportações e revitalizar suas instituições políticas. Os Estados Unidos coexistem no hemisfério Ocidental com os países da América Latina e do Caribe que, de modo geral, vêm fortalecendo e diversificando suas economias, reforçando suas instituições, expandindo suas classes médias e se engajando ativamente em relações internacionais produtivas.

Os próximos anos podem ser auspiciosos para a cooperação interamericana, não devido à filantropia dos Estados Unidos, nem ao fato de Washington temer certas tendências regionais ou influências externas sobre a América Latina, mas porque as transformações ocorridas nas Américas, do Norte e do Sul, geram um potencial de sinergia e de oportunidades mútuas. Em questões que vão desde comércio internacional a energia, mudanças climáticas, saúde pública, ensino superior e desenvolvimento de infraestrutura, os próximos anos talvez venham a testemunhar um intercâmbio sem precedentes.Existe agora a oportunidade significativa de reformular uma das relações bilaterais mais importantes de todo o mundo: as relações entre o México e os Estados Unidos. A complementaridade das tendências demográficas, econômicas, sociais e políticas verificadas nos dois países talvez torne possível a construção de uma cooperação estreita e sustentável em uma ampla gama de questões: desenvolvimento de infraestrutura, produção de energia, ensino superior, saúde pública, migrações e mercado de trabalho, administração de fronteiras e segurança dos cidadãos. Novos conceitos e novas políticas, normas e instituições irão exigir uma nova mentalidade e atitudes diferentes de ambos os países.

Chegou também o momento de intensificar os esforços no sentido de incentivar a sinergia entre os Estados Unidos e o Brasil em uma ampla gama de questões não restritas ao nosso hemisfério: como lidar com as mudanças climáticas, como evitar e controlar as pandemias globais, conter a proliferação nuclear, fortalecer as instituições e os sistemas de governança global e reformar as regras e práticas internacionais sobre comércio, finanças, investimentos, propriedade intelectual e transferência de tecnologia. Há também imensas oportunidades de construir cooperação na esfera do ensino superior, com iniciativas que, com o tempo, viriam a gerar bons dividendos.

No presente estágio, os países da América Latina e do Caribe não são seguidores naturais da liderança norte-americana. Eles definem seus próprios interesses e forjam seus próprios enfoques. Políticas e atitudes presunçosas e impositiva dos Estados Unidos deixaram de funcionar. Instituições como a OEA, que

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se baseiam na ideia de uma harmonia fundamental unindo todas as Américas devem ser repensadas. O fortalecimento da OEA exige mais do que renovar equipes e reformular orçamentos e práticas administrativas. Para que esse fortalecimento venha a ocorrer, será necessário que os países da América Latina, os Estados Unidos e o Canadá examinem conjuntamente a questão de quais programas regionais concretos ou qual cooperação em arenas globais mais amplas de fato fazem sentido. Em termos mais gerais, esse é o desafio das relações interamericanas após trinta anos de transformações.

Tradução Patrícia Zimbres

Notas

[1] O Mercosul é um sistema de mercado comum do qual são membros plenos Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela; a Bolívia é membro em processo de adesão e Chile, Colômbia, Equador e Peru são membros associados. A UNASUL é a União de Nações Sul-Americanas, uma organização política e de segurança abrangendo 12 países sul-americanos, à qual é filiado o Conselho de Defesa Sul-Americano, responsável por questões de segurança. A CELAC, a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, inclui todos os países das Américas, com a exceção do Canadá e dos Estados Unidos.↑

[2] Este ensaio é uma adaptação da palestra proferida pelo autor no Fórum Sol M. Linowitz do Diálogo Interamericano, realizado em 8 de junho de 2012. ↑

[3] Para uma importante declaração sobre essas mudanças necessárias, ver Robert Pastor, The North American Idea (Oxford University Press, 2010). ↑

A região avançou; os acadêmicos americanos, não » Política Externa

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A região avançou; os acadêmicos americanos, não

por Mariano E. Bertucci em 09/09/2013

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Estudos acadêmicos americanos sobre a relação entre Estados Unidos e América Latina costumam lidar com a questão do ponto de vista da política externa dos EUA para a região. Dessa abordagem egocêntrica se originam erros profundos na compreensão do fato contemporâneo de que as nações latino-americanas têm grande latitude na formulação de suas políticas externas. Além disso, a maioria desses estudos falham em observar fatores urgentes e relevantes, tais como a cooperação internacional no domínio da energia, das drogas, da migração e do meio ambiente.

American academic studies about the relationship between the United States and Latin America usually deal with the issue from the perspective of the US foreign policy to the region. This self-centered approach originates deep mistakes in the understanding of the contemporary fact that Latin American nations do have large latitude in formulating their own foreign policies. Moreover, most of those studies fail in observing urgent and relevant factors such as international cooperation in energy, drugs, migration and environment.

O estudo do foco adotado e dos debates privilegiados pelos acadêmicos contribui para a compreensão de como as políticas são entendidas e debatidas na esfera pública, chegando, algumas vezes, a esclarecer os processos de sua formulação.

No entanto um exame mais atento dos estudos acadêmicos sobre as relações Estados Unidos/América Latina publicados das últimas três décadas, abrangendo 174 artigos submetidos à revisão por pares e 167 livros não editados, revela uma desconexão com muitos dos temas e realidades atuais da região.

As relações internacionais e outras áreas de investigação sobre temas globais, tais como economia política internacional e segurança são insuficientemente representadas nos estudos acadêmicos tratando do hemisfério ocidental.

A maior parte das pesquisas, ao contrário, trata de política externa. Mais de 94% das publicações acadêmicas sobre a região mencionadas acima poderiam ser qualificadas como análises de política externa, e não de temas mais atuais da teoria das relações internacionais ou da economia política internacional.

E, dentro dos estudos de política externa, é privilegiado, essencialmente, o estudo do processo de formulação da política externa dos Estados Unidos.

Praticamente todos (89%) os trabalhos contendo análises das relações Estados Unidos/América Latina tomam a política externa norte-americana como foco central de seu entendimento das questões Estados Unidos/América Latina.

Cerca da metade dos artigos e livros (51%) centram-se nas iniciativas da política externa norte-americana e nas reações dos Estados Unidos e dos países latino-americanos à política externa de seus parceiros hemisféricos.

E quase 40% dos trabalhos publicados analisam exclusivamente a política externa dos Estados Unidos com relação à América Latina.

Como consequência direta desse enfoque, quase nenhuma atenção vem sendo dada à economia política internacional e às questões de segurança, o que, por sua vez, levou a serem desconsiderados alguns dos temas de maior importância e de maior dificuldade da agenda política da atualidade, tais como tráfico de drogas, migrações, meio ambiente e cooperação na área da energia.

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Em razão da postura autocentrada da academia norte-americana, são relativamente poucos os artigos e livros que tratam da política externa dos países do Caribe, da América do Sul – inclusive, e principalmente, do Brasil – e até mesmo do México com relação aos Estados Unidos.

Consequentemente, verificam-se graves falhas em nossa compreensão do fato de que os Estados-nações das Américas têm grande latitude na formulação de suas próprias políticas, principalmente em uma região onde a influência norte-americana vem se tornando mais difusa.

Outras falhas referem-se às migrações e questões relacionadas às drogas e aos temas e desafios de segurança energética hoje enfrentados pelos Estados Unidos.

É bastante provável que esses problemas só possam ser enfrentados por meio de uma cooperação sustentada com países como o México e o Brasil. Entretanto, a política externa desses países com relação aos Estados Unidos não vem sendo suficientemente estudada.

Apenas 12,9% dos artigos e livros enfocam as relações Estados Unidos/México, e menos de 3% tratam da política externa mexicana com relação aos Estados Unidos. Da mesma forma, menos de 5% dos artigos e livros analisam as relações Estados Unidos/Brasil e apenas 2% examinam a política externa brasileira com relação ao “colosso do Norte”.

Essas falhas são de importância crítica. Toda e qualquer política externa informada deve se basear em uma compreensão dos pontos de vista de ambos os lados da mesa de negociações.

Entendimentos díspares

As deficiências – e até mesmo a parcialidade – das atuais pesquisas sobre as relações Estados Unidos/América Latina tornam-se ainda mais evidentes quando as publicações revistas por pares são comparadas às de acadêmicos estabelecidos na América Latina. Os acadêmicos estabelecidos nos Estados Unidos tratam das políticas externas latino-americanas em apenas 3,1% de suas publicações, e 87% desses trabalhos colocam os Estados Unidos no centro de suas análises. Ao mesmo tempo, as interações de política externa entre os Estados Unidos e a América Latina são tratadas em apenas 1/3 de suas publicações.

As implicações desse padrão são claras: ao lermos esse corpo de trabalhos, ficamos com a impressão de que o termo “relações Estados Unidos/América Latina” é usado como sinônimo de “políticas dos Estados Unidos”.

Essa distorção verificada nas pesquisas e na literatura especializada tem efeitos práticos e políticos. O mais importante deles é o de ter contribuído para a opinião convencional de que a melhor forma de entender as relações Estados Unidos/América Latina é entender, antes de tudo, o processo de formulação da política externa norte-americana. Essa postura, entretanto, produz uma imagem distorcida dos fatores que formaram o hemisfério em termos históricos e, o que é mais importante, continuam atuando nos dias de hoje.

É certo que a formulação de políticas não segue automaticamente as publicações acadêmicas. Mesmo assim, ideias formuladas com base em pesquisas acabam por ganhar influência graças ao trabalho de institutos de pesquisa, editoriais, revistas especializadas e outros canais. Os acadêmicos têm participação no governo – como consultores ou ocupantes de cargos – e os responsáveis pela formulação de políticas, em algum ponto de suas carreiras, sofreram a influência das pesquisas acadêmicas.

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É muito provável que a perspectiva autocêntrica que vem dominando a postura norte-americana com relação à América Latina há quase três décadas venha a gerar uma visão de mundo muito peculiar sobre os temas políticos em questão. A partir daí, é fácil chegar a uma concepção hegemônica das relações Estados Unidos/América Latina, principalmente porque continua a predominar nos círculos políticos um modelo político nunca confirmado, segundo o qual os Estados Unidos são o ator e os países latino-americanos, os objetos dependentes e indefesos.

As pesquisas conduzidas por acadêmicos estabelecidos na América Latina mostram um maior equilíbrio, embora não sejam menos provincianas que a de seus colegas norte-americanos. Em 71% dos estudos sobre as relações Estados Unidos/América Latina, os acadêmicos latino-americanos dão primazia às políticas de seus próprios países. Em cerca de metade dos trabalhos, eles tratam das interações externas entre Estados Unidos e América Latina, embora coloquem ênfase na política externa norte-americana para a região em 16% dos artigos.

Padrões semelhantes ficam evidentes quando comparamos a produção acadêmica dos Estados Unidos com a produção acadêmica da América Latina em questões de economia política internacional. A integração econômica e o regionalismo são abordados em menos de 10% dos artigos de autoria de acadêmicos estabelecidos nos Estados Unidos publicados em periódicos especializados.

Esse mesmo tópico, entretanto, é o tema de quase 40% dos artigos publicados nesse tipo de periódico por acadêmicos latino-americanos. Consequentemente, as iniciativas de integração (como, por exemplo, a Área de Livre Comércio das Américas, o Mercosul, as interações FTAA-Mercosul e a NAFTA), que desempenham papel central na formulação das políticas latino-americanas, são tratadas de forma sumária nas pesquisas e nos trabalhos acadêmicos provenientes dos Estados Unidos. A diferença – e suas implicações sobre as maneiras como os acadêmicos e os formuladores de políticas de ambas as margens do Rio Grande encaram o mundo e a região – irá se tornar cada vez mais marcante à medida que cresce a tendência à integração sub-regional por intermédio de instituições como a CELAC e a UNASUL.

Além disso, enquanto os debates latino-americanos sobre política externa a partir de inícios da década de 1990 centravam-se na convergência, os especialistas em Relações Internacionais privilegiavam o exame dos interesses específicos dos países e a tendência à divergência, salvo no caso de haver interesses em comum.

Apesar de os desdobramentos recentes nas áreas das migrações, da segurança energética e da violência associada às drogas confirmarem a natureza “interméstica” (ou seja, a interação das políticas internacionais e domésticas) das atuais relações Estados Unidos/América Latina, os padrões verificados nos trabalhos de pesquisa mostram a influência praticamente insignificante exercida pelo estoque de conhecimentos disponíveis aos formuladores de políticas.

Apenas 16% dos artigos e livros sobre as relações Estados Unidos/América Latina tratam do meio ambiente, das migrações ou das drogas. Além disso, alguns tópicos intermésticos, tais como remessas, fornecimento de energia e saúde pública são totalmente ignorados.

Um padrão semelhante fica evidente no que se refere ao exame do papel dos atores não governamentais nas relações Estados Unidos/América Latina. Empresas multinacionais, organizações religiosas e grupos de guerrilha são temas que, supostamente, exerceram impacto significativo nas questões hemisféricas. No entanto, apenas 6% dos trabalhos publicados sobre as relações entre os Estados Unidos e a América Latina deram atenção a esses atores não estatais, deixando que sua atuação nas questões hemisféricas fosse relegada à área das especulações.

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Ademais, a literatura especializada recente praticamente desconsidera as questões mais tradicionais de segurança, tais como a dissuasão de potências não hemisféricas e os riscos da proliferação nuclear e da guerra.

Superando a obsessão

Além das diferenças regionais em termos de perspectivas de pesquisa, os padrões encontrados nos estudos sobre as relações Estados Unidos/América Latina, em termos mais gerais, divergem também das tendências vigentes no campo mais amplo das relações internacionais, no qual as análises de política externa recebem atenção marginal se comparadas à economia política internacional, às questões de segurança e à teoria das relações internacionais.

Essas diferenças demonstram que pouco diálogo e poucas trocas intelectuais vêm ocorrendo entre os estudiosos das relações internacionais e os especialistas em relações Estados Unidos/América Latina. Para que essa situação seja sanada, será necessário que os acadêmicos da área das Relações Internacionais expliquem, testem e, quando necessário, desenvolvam novas teorias tratando das causas e dos interesses envolvidos nas prementes questões políticas hemisféricas.

Muitas dessas questões prestam-se também às análises quantitativas hoje preponderantes nas Relações Internacionais. Mensurações estatísticas podem contribuir para a avaliação dos níveis, graus e dimensões das assimetrias verificadas entre os países de ambas as margens do Rio Grande. A teoria dos jogos pode especificar os termos, as condições e o grau de conformidade (ou divergência) com os acertos multilaterais. E a álgebra bayesiana pode contribuir para a identificação das condições que promovem a cooperação ou a defecção. Mas tudo isso é mais simples na teoria do que na prática.

Até 2013, a Associação de Estudos Latino-Americanos (Latin American Studies Association – LASA) – a maior associação profissional de indivíduos e instituições dedicados ao estudo da América Latina – nunca possuiu uma seção de “Relações Internacionais” (embora, a partir de 2011, venha oferecendo um prêmio para o melhor livro publicado sobre assuntos internacionais e política externa da região). As oportunidades de financiamento para pesquisas sobre a política internacional do hemisfério são relativamente escassas, principalmente para jovens pesquisadores. Além disso, a atual hierarquia de prestígio no campo das relações internacionais não favorece a especialização em questões da região. Isso vale principalmente para os Estados Unidos e, cada vez mais, também para outros países.

Mesmo que alguns acadêmicos, individualmente, se disponham a um exame de consciência e passem a adotar em suas análises das relações Estados Unidos/América Latina a mentalidade, as ferramentas e os objetivos de pesquisa das Relações Internacionais, esses esforços provavelmente não serão suficientes para oferecer de forma sistemática, no estudo das questões interamericanas, um enfoque equilibrado e prático que leve em conta os temas das Relações Internacionais. Governos, institutos independentes de pesquisa, centros de pesquisa ligados a universidades e fundações de todo o hemisfério também devem participar, contribuindo para redefinir e construir novos apoios institucionais para a produção de pesquisas avaliadas por pares que tratem de temas relevantes para a formulação de políticas.

Um maior número de fundações, institutos de pesquisa e financiamentos também elevam a prioridade conferida à produção de pesquisas revisadas por pares que tratem das questões mais prementes que afetam o hemisfério. Na qualidade de principal instituição, a LASA tem que incentivar e apoiar a criação de uma seção dedicada às Relações Internacionais que possa reunir o trabalho de especialistas em Relações Internacionais, tanto os mais experientes quanto os mais jovens, em torno de uma agenda de pesquisa centrada na política das relações Estados Unidos/América Latina.

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Também os governos deveriam contribuir para o financiamento de formação acadêmica e pesquisa sobre essas questões nos principais programas de pesquisa em Relações Internacionais. A criação de um canal para a publicação de pesquisas teóricas e metodologicamente rigorosas revistas por pares sobre as questões intermésticas do tráfico de drogas, da segurança energética e do crime organizado, para citar apenas alguns exemplos de temas políticos candentes, seria uma adição importante ao número relativamente restrito de canais disponíveis para a publicação de pesquisas sobre a política e a economia do continente americano. Apenas se lançadas a partir de plataformas dessa natureza, pesquisas inovadoras poderão contribuir de forma sustentável para soluções formuladas de comum acordo para os problemas que afetam o hemisfério como um todo.

Tradução Patrícia Zimbres

Impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014 e seu legado para o futebol brasileiro » Política Externa

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Impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014 e seu legado para o futebol brasileiro

A Copa do Mundo Fifa 2014 é parte dos megaeventos esportivos que o Brasil acolhe desde os Jogos Pan-Americanos de 2007. Após a Copa do Mudo virão os Jogos Olímpicos Rio 2016. A Copa destaca-se, entre

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vários motivos, pela excelência do país, reconhecida internacionalmente na prática do futebol e porque várias cidades vão sediar alguns dos 64 jogos por 32 equipes nacionais. Este artigo trata principalmente dos impactos socioeconômicos da Copa do Mundo e do tipo de legado que pode deixar para o Brasil. Todo o investimento realizado em construção e reforma de estádios e infraestrutura relacionada se traduz diretamente em oferta para os clubes de futebol, de um lado, e de desafios de aprendizado em um novo patamar, de outro.

The 2014 Fifa World Cup is part of sports mega-events that Brazil has been hosting since the 2007 Pan American Games that will include the 2016 Rio Olympics. However, the Cup stands out because of, among several reasons, the internationally recognized excellence of the country in the practice of this this sport and because several cities will host some of the 64 games to be played by 32 national teams. This article deals mostly with analyses of the socioeconomic impacts of the Cup in Brazil and the kind of legacies that it may leave to the country.

Introdução

A Copa do Mundo Fifa 2014 insere-se em um ciclo de grandes eventos esportivos realizados no Brasil – iniciado pelos Jogos Pan-Americanos de 2007, e que continuará ainda com os Jogos Olímpicos de 2016 – e com isso em um ciclo de momentos de investimento, aprendizado, desafios e oportunidades. A Copa, contudo, se destaca neste contexto por diversas razões, tais como a sua presença em diversas cidades de todo o país e a relação direta com o futebol, atividade na qual o Brasil tem relevância internacional.

O Brasil tem uma experiência anterior na realização de uma Copa do Mundo, em 1950. Naquele evento, 13 seleções disputaram 22 jogos, com um público estimado de 1,04 milhão de espectadores. Desde então, os desafios e as oportunidades levantadas pela realização de uma Copa se elevaram substancialmente. A Copa do Mundo de 2014 seguirá o molde das últimas edições da competição, no qual participarão 32 seleções disputando um total de 64 jogos, sendo 48 jogos na primeira fase (de classificação por pontos), e 16 jogos na segunda fase (eliminatórias, incluindo oitavas e quartas de final, semifinais, disputa de terceiro lugar e final). A transmissão dos jogos ao vivo pela televisão, inexistente à época, hoje ocorre em escala global, multiplicando a plateia dos jogos, a visibilidade dos eventos e as oportunidades econômicas associadas, que vão desde o licenciamento de produtos até a própria promoção das cidades-sede no cenário global.

Verifica-se durante as fases de investimento e operacionalização do evento uma série de impactos sobre as diversas atividades da economia. Constroem-se ainda neste processo importantes legados, compostos em parte da infraestrutura que continua a ser utilizada, mas também de progresso no sentido da eficiência microeconômica, por meio dos procedimentos de aprendizado e das novas práticas que emergem em função da pressão evolutiva do evento.

Particularmente interessante neste contexto, por seus problemas, desafios e possibilidades, é o ambiente institucional, legal e econômico que cerca a atividade do futebol profissional.

Por um lado, o futebol profissional se revela continuamente como uma vocação nacional, amplamente reconhecida por outros países. Por outro, tem sido historicamente limitada a capacidade do futebol brasileiro para gerar impactos socioeconômicos para o país. Os clubes brasileiros têm notoriedade pela exportação de grandes jogadores, carência de infraestrutura física e frequentes crises financeiras. Neste aspecto, o futebol é um dos grandes depositários potenciais do legado da Copa do Mundo, o que incrementa sua relevância no contexto deste estudo.

Este artigo se propõe a consolidar algumas análises quantitativas e qualitativas referentes aos impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014. Investimentos, impactos e legado examina os tipos de

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legado que o evento pode deixar, examinando sua complementaridade com o próprio processo de investimento. Impactos econômicos da Copa investiga, em termos quantitativos, os impactos econômicos da Copa do Mundo através de metodologia baseada na Matriz Insumo-Produto, além de caracterizar em maior detalhe a questão do legado microeconômico, com impactos de médio a longo prazo sobre a eficiência da economia brasileira. O futebol no Brasil e a Copa 2014 aplica a metodologia de Matriz Insumo-Produto para avaliar o impacto econômico da atividade do futebol profissional, além de discutir como os legados microeconômicos e de infraestrutura interaragem com o futebol como atividade econômica.

Investimento, impactos e legado

O debate sobre os impactos dos grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo Fifa 2014 versa necessariamente sobre duas grandes questões, quais sejam:

O impacto dos investimentos e gastos operacionais necessários para a realização do evento; e

O legado que os eventos deixam para os países e cidades-sede após sua realização.

Dentro de uma visão tradicional da avaliação de impactos, estas duas grandes questões guardam pouca relação intrínseca. Assim, muitas vezes o imperativo de produzir um legado é apresentado como condicionante na formatação dos planos de investimento da fase de operacionalização de modo a garantir a persistência de impactos positivos, ou mesmo de justificar a realização dos eventos frente à sociedade. Por exemplo, o projeto dos grandes estádios pode estar condicionado à sua utilidade em eventos esportivos de menor porte e escopo local, além da modernização da infraestrutura urbana em aspectos tais como iluminação pública, saneamento e transporte. Esta relação encontra-se ilustrada no Quadro 1.

Muitas vezes existe, contudo, considerável complementaridade entre as questões da operacionalização e do legado. Diversos gargalos da economia brasileira nas suas matrizes de tecnologia, capital humano, conhecimento tácito acumulado e desenvolvimento institucional passam por uma intensa pressão evolutiva na presença de alvos e prazos bem definidos. Ao mesmo tempo, a superação destes desafios afeta as expectativas e reduz diversos fatores de incerteza que pesam sobre o investimento de forma geral, sobre a formulação de planos a longo prazo e sobre a visibilidade das sedes como cidades mundiais de grande relevância. Este conjunto de impactos é parte do legado microeconômico, pelos seus potenciais efeitos duradouros sobre a eficiência no funcionamento da economia (Quadro 2).

Impactos econômicos da Copa

Impactos econômicos estimados

A demanda adicional por bens e serviços gerada durante a preparação para a realização dos 64 jogos da Copa do Mundo Fifa 2014, bem como durante a operacionalização do evento, podem ser categorizadas para fins operacionais em três fontes:

Investimentos: atividades de formação de capital visando à Copa do Mundo Fifa 2014, incluindo atividades que seriam realizadas de qualquer forma, embora de forma mais reduzida ou em um período de tempo mais extenso;

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Operação do evento: atividades de preparação e gestão do evento, por parte do Local Organizing Committee e das equipes de segurança responsáveis; e

Consumo dos visitantes: atividades de compra de bens e serviços por parte dos turistas atraídos direta ou diretamente pela Copa do Mundo Fifa 2014.

A demanda adicional por bens e serviços gerada pela Copa do Mundo Fifa 2014 afeta de forma direta e indireta todos os setores da economia responsáveis por atendê-la. O impacto direto se dá na medida em que a construção de um estádio representa um aumento na produção do setor de construção civil, que se reflete na contratação de mão de obra adicional e no subsequente fluxo de renda da produção, que abrange desde os empregados, acionistas até o setor público. Os impactos indiretos, por sua vez, estão relacionados ao caráter interligado da economia, isto é, qualquer empresa, para produzir, precisa consumir insumos vindos de outros setores (quer sejam produtos físicos tais como equipamentos ou materiais de construção, ou serviços como eletricidade, seguros, etc.). Este é o denominado consumo intermediário. Assim, o aumento na produção dos setores diretamente demandados pela Copa exige que estes consumam uma quantidade maior de insumos (por exemplo, o setor de construção civil demandará mais vigas, oriundas do setor siderúrgico). Os produtores destes insumos, por sua vez, precisam aumentar também seu próprio consumo intermediário (as siderúrgicas precisarão consumir mais eletricidade), e assim sucessivamente. Vê-se assim que a Copa do Mundo gera uma cadeia potencialmente expressiva de impactos econômicos que, em conjunto, são denominados de impactos indiretos.

Existe outro canal análogo de interligações entre setores que gera uma cadeia de impactos semelhantes. Trata-se do consumo das famílias na medida em que a remuneração dos trabalhadores e acionistas de cada setor é convertida, parcial ou integralmente, na aquisição de bens e serviços para suas famílias, de forma que um acréscimo na produção causa um incremento no consumo destes bens e serviços. Assim, por exemplo, o salário de um operário envolvido na construção de um estádio pode contribuir para a aquisição de um automóvel novo, o que representa um incremento à demanda do setor automotivo, e assim sucessivamente. O conjunto das consequências causadas através do canal de consumo das famílias é chamado de impacto induzido, ou efeito-renda.

Para capturar a totalidade destes “efeitos multiplicadores”, a FGV desenvolveu um modelo de Insumo-Produto Estendido, baseado na Matriz Insumo-Produto (MIP) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este modelo representa a economia brasileira por meio de 55 atividades econômicas, 110 categorias de produtos e 10 perfis de renda/consumo da população, e permite estimar os impactos totais (diretos, indiretos e induzidos) das atividades relacionadas à Copa sobre a produção nacional, emprego, renda e arrecadação tributária.

Através da utilização do modelo de Insumo-Produto Estendido, estima-se que, além dos impactos de R$ 29,60 bilhões gerados diretamente, a Copa do Mundo Fifa 2014 gerará adicionalmente uma produção de R$ 112,79 bilhões através das cadeias de impactos indiretos e induzidos. No total, a economia brasileira produzirá R$ 142,39 bilhões adicionais no período 2010-2014, gerando 3,63 milhões de empregos-ano e R$ 63,48 bilhões de renda para a população. Esta produção também ocasionará uma arrecadação tributária adicional de R$ 58,96 bilhões, entre as esferas municipais, estaduais e federais.

Os setores mais beneficiados pela Copa do Mundo Fifa 2014 serão os de construção civil, alimentos e bebidas, serviços prestados às empresas, serviços públicos (eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza

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urbana), e serviços de informação. Em conjunto, estes setores devem ter sua produção aumentada em R$ 50,18 bilhões.

Legados potenciais

Entendidos de forma ampla, os impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014 têm diversas interpretações e estão condicionados a diversos fatores. Dependem de que o país consiga realizar os investimentos e ações necessárias a tempo de que o evento seja realizado de forma bem- sucedida. Depende também da capacidade de aproveitamento dos legados, transformando-os em bens perenes. Finalmente, depende de que sejam alcançados estes objetivos de forma economicamente eficiente, sem dispêndios excessivos ou má alocação de recursos públicos e privados.

Dentro deste framework, a análise de insumo-produto realizada neste estudo cumpre um papel importante, porém parcial. Ela permite estimar os impactos socioeconômicos duráveis de um conjunto bem definido de atividades e ações, valendo a hipótese de que tais atividades serão realizadas dentro dos parâmetros pressupostos. Desta forma, ela deve ser complementada por outras análises, quais sejam, a avaliação dos condicionantes para a boa realização do evento, o aproveitamento dos legados, a eficiência econômica das atividades, minimizando na medida do possível os gastos excessivos, desnecessários ou mal direcionados.

Neste sentido, destacam-se duas categorias importantes de condicionantes para que os impactos da realização da Copa conforme mensurados se concretizem como legado. O primeiro é uma condição de efetividade: as diversas necessidades de infraestrutura das cidades-sede devem ser atendidas a tempo, através de ações e investimentos nos setores público e privado. Algumas destas necessidades requerem ações específicas para a Copa, enquanto que outras podem ser atendidas no contexto de ações e atividades mais amplas.

O segundo condicionante se refere à eficiência na realização e utilização dos legados. Sem o planejamento e controle adequados, poderão ocorrer gastos excessivos ou desnecessários, além da alocação de verba para finalidades inadequadas. Mais ainda, sem um planejamento efetivo para a utilização pós-Copa da infraestrutura esportiva construída, corre-se o risco de grandes desperdícios de capital.

Para analisar estes aspectos é necessário fazer referência às experiências internacionais e brasileiras com megaeventos, bem como às realidades da gestão pública e economia urbana no Brasil. Entretanto, tais campos de estudo são pouco explorados e consolidados na literatura, tornando esta análise predominantemente exploratória.

Legado microeconômico

Além do legado direto derivado do aproveitamento continuado dos ativos construídos para o evento, a realização do evento traz um novo patamar de exigências em termos de prazos e padrões de qualidade para os diversos investimentos. O aprendizado institucional e técnico ao longo dos diversos agentes públicos e privados em função destas pressões evolutivas constitui um importante legado potencial sobre a eficiência microeconômica da economia brasileira.

O papel evolutivo da Copa do Mundo se dá principalmente através da exposição e amplificação das deficiências institucionais e fontes de risco, que já existem antes da realização dos projetos necessários para a realização do evento, mas que não alcançavam expressão suficiente para evidenciar-se ou provocar soluções. Neste sentido, a Copa do Mundo Fifa 2014 não só antecipa questões estruturais que seriam enfrentadas por uma grande economia em trajetória emergente como a brasileira, como concentra

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questões presentes que, por afetar de maneira difusa a um grande número de agentes, não se tornariam necessariamente agendas viáveis de reforma.

O peso simbólico da Copa do Mundo como projeto de interesse nacional e o compromisso forte e crível com datas preestabelecidas para o evento esportivo propriamente dito estabelecem condicionantes para a mobilização de uma massa crítica de recursos políticos e institucionais de maneira a prevalecer sobre certos aspectos que geram incertezas na formatação e planejamento de grandes projetos no país. Isto deve ser visto como um avanço no contraste com a execução de um projeto convencional, onde existem questões que desafiam o planejamento desde a atribuição de responsabilidades civis até a gestão da mão de obra sob as limitações da legislação trabalhista no Brasil.

Contudo, mesmo estas soluções temporárias e particulares implicam em um esforço de determinação dentro dos prazos relevantes, o que gera conhecimento tácito, não codificável, sobre as práticas de articulação institucional, aperfeiçoamento dos processos de formulação de políticas públicas e a coordenação de responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal do governo. Nas mesmas linhas, o setor privado sofre pressões sobre seus déficits de produtividade que se solucionam em parte através da adoção de tecnologias mais atualizadas e adequação a padrões e normas técnicas, mas também através da geração de conhecimento tácito.

Nota-se que, se por um lado, as complexidades específicas de um grande evento esportivo como a Copa do Mundo trazem parâmetros institucionais e tecnológicos específicos ao evento, por outro os processos de adaptação e operacionalização produzem como legado um know-how específico à realidade socioeconômica brasileira e local. Esta categoria de know-how, por não ser codificável ou explicitada, não pode ser comissionada como parte das atividades de P&D do governo e empresas, sendo contudo fundamental para minimizar as incertezas do processo de investimento presentes sobre as diversas atividades da economia como um todo.

Mais ainda, ao mesmo tempo em que apresenta desafios bem definidos como fonte de pressão evolutiva, grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo Fifa 2014 podem trazer novas externalidades ao próprio processo de adaptação ou aos seus resultados.

A adaptação das cidades-sede para o evento e sua grande exposição na mídia mundial durante o pico de interesse na Copa deixam um potencial legado urbanístico que se torna particularmente relevante em jogos geograficamente descentralizados como os que serão realizados no Brasil em 2014. Enquanto grandes cidades com larga experiência na realização de grandes eventos experimentam mais um momento de teste e evolução nos seus diversos processos públicos e privados, os centros regionais passam por um momento ímpar de exposição a novos desafios e acesso a novas oportunidades no que se refere à construção do conhecimento tácito, da evolução das suas políticas urbanas – em aspectos tão variados quanto mobilidade, segurança pública e sustentabilidade – e na divulgação do seu potencial para o Brasil e para o mundo.

Dentro do processo de aprendizado, emergem em muitos casos novos paradigmas e objetivos que não faziam parte do conjunto de condicionantes prévios. Um caso lapidar é o da iniciativa Green Goal na Alemanha em 2006, que trouxe métricas ambientais como targets complementares para a realização daquele evento. Produto, entre outros fatores, do “urbanismo verde” alemão que procura conciliar a preservação das florestas naturais remanescentes com o desenvolvimento das cidades, a iniciativa Green Goal é um produto da interação entre as metas da realização da Copa e o ambiente institucional e social nas quais estas se concretizarão.

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Deve-se notar, em todos estes casos, que as soluções que emergem da pressão evolutiva representada por um evento de grande porte como a Copa devem ser consideradas como o resultado de respostas específicas a desafios concretos, o que pode trazer divergências sobre seu impacto sobre o panorama socioeconômico mais amplo. Ao concentrar e focar problemas que não se encontravam em primeiro plano precisamente por ocorrerem de maneira distribuída, sem que os agentes econômicos pudessem individualmente pressionar por soluções, o processo de aprendizado testa os limites das estruturas de gestão pública ou privada nos seus aspectos institucionais, tecnológicos e sociais preexistentes e que produziam os resultados anteriores.

Neste sentido, o grande legado microeconômico da Copa está precisamente nesta amplificação de desafios. Quando surgem divergências sobre soluções imediatas tomadas em um âmbito executivo, comprometido com metas definidas de prazo e padrão, se tornam alvo de críticas, evidenciam-se fatores estruturais latentes que nem sempre eram transparentes ou notórios. Ao levantar uma variedade de questões que perpassam as políticas públicas, a questão urbana, a eficiência do setor privado e da articulação entre as diversas esferas de tomadas de decisão, os desafios da Copa exigem uma maior eficiência sistêmica, cujos efeitos em grande medida se generalizam pela atividade econômica de forma geral.

O futebol no Brasil e a Copa 2014

Importância socioeconômica do futebol

Esta seção tem como objetivo apresentar a cadeia produtiva do futebol no Brasil, identificando seus principais players e fluxos monetários envolvidos e sua importância socioeconômica. Neste sentido são estimados os impactos diretos e indiretos da cadeia produtiva do futebol sobre o emprego, renda e tributação da produção no país. Adicionalmente uma simulação é apresentada dos impactos potenciais sobre a economia brasileira de mudanças no perfil dos clubes, em relação ao benchmark europeu. Para alcançar tais objetivos, a FGV aplicou o Modelo de Insumo-Produto Estendido a uma base de dados do setor futebol brasileiro e europeu, coletada junto a fontes oficiais do setor.

A cadeia produtiva do futebol tem como seu eixo principal um conjunto de empresas e instituições identificadas conjuntamente como entidades do futebol: clubes, federações, administrações de estádios e outras instituições relevantes. A atividade econômica de tais entidades pode ser caracterizada resumidamente como a produção de cinco produtos-fim: direitos federativos e eventuais comissões de agenciamento associadas, cotas de patrocínio, direitos de licenciamento de marca, direitos de transmissão e receitas de estádios (bilheteria, consumo nos estádios e programas de sócio torcedor). Esta cadeia envolve ainda outras empresas e instituições: patrocinadores, empresas licenciadas e empresas de comunicação. Este conjunto de empresas e instituições é denominado o setor futebol.

Os fluxos monetários diretos do setor futebol no país alcançavam em 2009 a ordem de R$ 3,5 bilhões anuais. Tais fluxos são fortemente concentrados nas entidades do futebol, cuja produção é de R$ 2,1 bilhões anuais. Os principais responsáveis por este faturamento são os clubes da Série A, que conjuntamente respondem por 67% das receitas do grupo em questão.

O setor futebol é também um importante gerador de emprego e renda. Os 783 clubes de futebol profissionais geram conjuntamente mais de 30 mil empregos diretos formais, correspondendo a uma massa salarial anual de quase R$ 760 milhões. Como um todo, estima-se que a cadeia produtiva do futebol gere 371 mil empregos aos patamares de atividade de 2009, com renda induzida de R$ 5,7 bilhões e R$ 1,1 bilhão em impostos sobre a produção. O valor adicionado gerado pela cadeia produtiva do futebol alcança, assim, o patamar de R$ 6,5 bilhões anuais, representando 0,2% do PIB brasileiro.

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Embora o futebol já seja atualmente um setor importante da economia brasileira, sua participação pode crescer substancialmente em função de mudanças no perfil dos clubes em um cenário potencial no qual os clubes brasileiros desenvolvam sua rentabilidade até um patamar comparável àquele verificado nos clubes europeus.Neste cenário, estima-se que os fluxos monetários diretos do setor futebol nacional podem vir a somar R$ 21,5 bilhões. Estas mudanças poderão contribuir com mais de R$ 28 bilhões para a expansão do PIB brasileiro, o que corresponde a um impacto de 0,9% em relação ao Produto Interno Bruto do país em 2009. Como consequência, a cadeia produtiva do futebol passaria a gerar um valor adicionado de R$ 34,7 bilhões anuais.

Hiatos de desenvolvimento

Verificam-se hiatos substanciais entre o cenário potencial traçado no estudo citado e a realidade atual do setor. Entre os aspectos destacados incluem-se:

Insuficiente exploração e desenvolvimento do potencial econômico associado ao branding dos principais clubes e competições (inclusive no contexto internacional), principalmente devido à pirataria, a dificuldades de governança dos clubes e à incompatibilidade entre os calendários brasileiro e internacional;

Insuficiente geração de receitas de estádios, com baixas taxas de ocupação e valor agregado da visita muito aquém do potencial, principalmente devido à falta de atratividade das competições, do baixo desenvolvimento da relação clube-torcedor, e da não exploração do potencial de rentabilidade dos estádios;

Baixo aproveitamento do potencial exportador do setor futebol brasileiro, com destaque para a exportação de direitos federativos, devido à incapacidade dos clubes nacionais de desenvolver e reter talentos; e

Baixa geração de renda e emprego de baixa qualidade por parte dos clubes da “base”, por parte de deficiências no calendário de competições e nas transferências de riqueza por parte dos clubes de maior arrecadação.

Estas questões têm dois grandes fatores em comum. Primeiramente, evidencia-se uma transição não concluída. De um lado, está em questão um modelo de gestão dos clubes que não se adéqua às necessidades de um esporte profissional de nível mundial como o futebol brasileiro. De outro, não predominam ainda práticas de administração que reconheçam o futebol como grande vocação econômica nos seus diversos aspectos.

Um passo simbólico que já vem sendo adotado por muitos clubes, neste sentido, é a conversão da sua pessoa jurídica para a modalidade de uma empresa, com todos os parâmetros econômicos e jurídicos em que isto implica. Isto coloca, em particular, a questão da sustentabilidade financeira das atividades dos clubes em primeiro plano, trazendo com isto pressão considerável e continuada sobre a gestão de seus diversos ativos, desde a geração de jogadores novos nas categorias de base até os mecanismos de monetização das exibições e do prestígio do clube.

Legado da Copa sobre o futebol

Os clubes de futebol são um depositário notório de grande parte da infraestrutura diretamente produzida para a Copa do Mundo Fifa 2014 na forma de estádios novos e grandes reformas na infraestrutura. Como já

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discutido, o futebol se destaca no Brasil como vocação esportiva notória e atividade econômica de porte significante e potencial econômico ainda maior. Neste contexto, todo o investimento realizado em construção e reforma de estádios e infraestrutura relacionada se traduz diretamente em oferta para os clubes de futebol, de um lado, e de desafios de aprendizado em um novo patamar, de outro.

A organização geográfica da Copa e a disparidades regionais brasileira interagem de maneira a amplificar este efeito. Os grandes centros econômicos do país tendem a ser também grandes centros turísticos e grandes produtores de futebol. Na medida em que uma infraestrutura relevante é construída também nas cidades mais distantes, eleva-se a capacidade de competição dos clubes locais e a visibilidade do seu futebol em um escopo mais amplo, com impactos que vão desde os direitos televisivos até a exportação de jogadores.

Cabe notar que nenhuma discussão ex ante esgota o assunto, precisamente porque parte significativa do legado microeconômico da Copa consiste das lições que emergem da sua realização. O futebol no Brasil é assunto particularmente fértil neste sentido. Por um lado, trata-se de um fenômeno amplamente reconhecido como uma vocação revelada do país, com décadas de tradição, cultura e práticas próprias. Por outro, as deficiências dos modelos pré-empresariais de gestão do futebol vêm sendo reconhecidas e a atividade encontra-se em fase de transição, evoluindo soluções específicas que refletem conhecimento tácito, difícil de codificar.

Ademais, o legado microeconômico da Copa para o futebol é produto direto também dos problemas que são levantados pela sua realização nas respectivas sedes. Na medida em que surgem parcerias público-privadas para ceder os estádios a clubes de futebol, existe um complexo problema de coordenação institucional do qual devem emergir modalidades de concessão e entendimentos sobre a divisão de responsabilidades. Tal processo gera precedente e conhecimento tácito sobre a questão mais ampla da infraestrutura do futebol – não só apenas de captura, mas também de gestão – que não emergiria de outro modo.

O futebol se revela como um grande potencial beneficiário na medida em que a realização da Copa do Mundo no Brasil pode cobrir alguns dos hiatos estruturais da cadeia produtiva do futebol que inibem a expressão de todo o seu potencial socioeconômico. Desta forma, existe a oportunidade da renovação e expansão da sua infraestrutura o que poderia contribuir substancialmente para melhorar o branding dos clubes e das competições nacionais. De forma complementar, a visibilidade das cidades em escala global amplifica também a visibilidade de seu futebol, ampliando o potencial exportador do setor futebol brasileiro.

Neste sentido, ao apresentar um grande volume de oportunidades e desafios de maneira regionalmente desconcentrada, a Copa do Mundo tende a intensificar este processo, apresentando pressão particular sobre as interfaces com os ambientes institucionais e econômicos que podem ter muito a contribuir para a expansão e amadurecimento do futebol como negócio.

Observações conclusivas

Este artigo procurou abordar as questões do impacto da Copa do Mundo Fifa 2014 e seu legado sob dois focos principais. O primeiro foi um esforço de mensuração do impacto sistêmico dos gastos diretamente associados aos investimentos e à operação da Copa, utilizando metodologias baseadas na Matriz Insumo-Produto. Conceitualmente, a Matriz Insumo-Produto representa a estrutura de ligações intersetoriais na economia, mostrando a composição da pauta de insumos e de demandantes para cada setor.

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Neste sentido, o resultado deste tipo de análise engloba, além dos gastos diretos propriamente ditos, os gastos indiretos, resultantes do aumento na atividade à medida que a demanda adicional se propaga pela cadeia produtiva. O mesmo tipo de cálculo foi feito para o “setor futebol”, considerando sua importância na economia durante um ano sob o cenário atual e sob um cenário potencial em que os clubes têm rentabilidade similar com a de clubes de futebol em países desenvolvidos, como os europeus.

O segundo foco do trabalho foi examinar em maior detalhe a questão do legado da Copa – os efeitos duradouros de sua realização em um horizonte de tempo mais longo que o da realização do evento. Destarte, existe uma concepção tradicional de legado que tem grande importância, por ser parte da equação entre custos e benefícios que justificam a decisão de sediar grandes eventos esportivos. Esta visão do legado, centrada no aproveitamento continuado dos ativos físicos e tangíveis construídos para a Copa, se reflete ainda em uma antiga e densa linha de discussão na literatura internacional cujas conclusões retrospectivas nem sempre inspiram otimismo.

Neste sentido é importante ao avaliar o legado potencial em termos mais amplos e que considere também os ativos intangíveis e a inter-relação com o futebol nacional como importante setor gerador de renda, empregos e tributos na economia brasileira. Neste aspecto, o legado microeconômico deriva da indução de um processo de adaptação e acumulação de conhecimento tácito em função de um período de concentrada pressão evolutiva.

De um lado, a Copa do Mundo é capaz de induzir uma adaptação para processos e práticas mais eficientes nos setores público e privado na medida em que concentra desafios latentes que se encontravam difusos ou eram adiáveis, mas agora se defrontam com prazos e padrões bem definidos. Este é um mecanismo pelo qual um período de intensa pressão evolutiva pode trazer avanços técnicos e de gestão nos setores privados e públicos, além de novas práticas de coordenação que passem ao largo de gargalos e aumentem a eficiência.

De outro, o conhecimento adquirido através da realização (learning-by-doing) de atividades sob pressões de prazo e padrão de execução não só consolida o conhecimento tecnológico e gerencial presente nos diversos arcabouços teóricos de que sua realização necessariamente se vale, mas gera conhecimento específico e contextual. Este conhecimento tácito é pouco adaptável à transmissão via manuais e educação técnica, particularmente porque é referenciado pelas circunstâncias locais e o contexto institucional, jurídico e político.O futebol também se destaca como importante depositário do legado microeconômico da Copa do Mundo, conforme definido em Investimento, impactos e legado, discutido no contexto do evento em Impactos econômicos da Copa e aplicado ao futebol em O futebol no Brasil e a Copa 2014.

Diversos fatores interagem com um panorama do futebol profissional brasileiro no qual se observa um processo de modernização em curso, frequentemente esbarrando em gargalos internos e sistêmicos. Novos desafios, associados a grandes oportunidades e grandes problemas de gestão, têm o potencial de propagar a pressão evolutiva da Copa do Mundo Fifa 2014 para a modernização do futebol profissional no Brasil.

Cabe ressaltar, feitas estas observações finais, que o legado microeconômico deriva de um conjunto de desafios associados a uma intensa pressão sistêmica para a evolução de soluções e adaptações. Tais resultados são, em seu conteúdo, contingentes a todos os aspectos institucionais, financeiros, legais, jurídicos e políticos que condicionam os diversos agentes, e é virtualmente impossível exaurir suas possibilidades, ou mesmo filtrar todas as interações entre agentes que se mostram relevantes.

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Neste sentido, deve-se destacar que existe um conjunto de ganhos de eficiência que são possíveis em diversos pontos das cadeias de tomada de decisões das instituições públicas e privadas, e que se evidenciam pelo mecanismo descentralizado da tomada de decisões em função de objetivos bem definidos. Estes avanços são o produto de uma aliança entre o planejamento e a adaptação descentralizada ao longo da economia e das instituições. De maneira mais geral e abstrata, esta articulação pode ser uma lição da Copa do Mundo Fifa 2014 para a realização de eventos complexos no Brasil no futuro.

Bibliografia

FGV Projetos (2010). ‘Impactos socioeconômicos da Copa do Mundo Fifa 2014’. Ernst & Young.

FGV Projetos (2011). ‘Mensuração socioeconômica e financeira do futebol profissional brasileiro’. Ministério do Esporte.

A Fifa não é fofa » Política Externa

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A Fifa não é fofa

por Juca Kfouri em 10/09/2013

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O acrônimo Fifa foi presença constante nos protestos de junho que mudaram o Brasil. A Copa das Confederações contribuiu como gota d'água para transbordar o copo de insatisfações da população com os serviços públicos no país. O autor discute se o Brasil terá vantagens com a realização da Copa do Mundo no país em 2014 e defende a posição de que não terá.

FIFA, the world football association federation, was one of the reasons for the June protests that wiped most Brazilian cities. The so called “FIFA pattern” that has been required for everything that has to deal with the World Cup became a request for public services in Brazil by the crowds that demonstrated that month. The article discusses whether Brazil will benefit from the hosting the World Cup next year and its author thinks it will not.

O acrônimo Fifa foi presença constante nos protestos de junho que mudaram o Brasil.

Sem que se dê à constatação ares de importância exagerada – para não repetir a velha piada do japonês que se achava responsável pela explosão da bomba atômica em Hiroshima por ter acontecido no mesmo instante em que ele deu a descarga em seu banheiro –, não será demais dizer que a Copa das Confederações, ou das Manifestações, contribuiu como gota d’água para transbordar o copo da insatisfação ampla, geral e irrestrita.

Porque a exigência do tal padrão Fifa para as escolas, hospitais, transportes coletivos como se viu em tantos cartazes e faixas e se ouviu em tantos coros dos ativistas, foi despertada pela apresentação dos novos estádios nas seis cidades brasileiras que sediaram o torneio.

Estádios, ou arenas – como virou moda dizer apesar do evidente atropelo à última flor do Lácio, pois futebol se joga na grama, não na areia, a não ser na praia –, suntuosos, faraônicos, megalomaníacos, padrão Fifa.

Impossível olhar por fora para o belíssimo Mané Garrincha, em Brasília, onde se gastou mais de R$ 1 bilhão e meio de dinheiro público, e não se chocar com a extravagância. Pior apenas é conhecê-lo por dentro e se dar conta do acabamento de terceira, injustificável diante do tamanho do investimento, embora coerentemente adequado para uma cidade que não tem clubes nem na primeira nem na segunda divisões principais do futebol nacional.

Em Fortaleza a impressão é semelhante, agravada pela região miserável em que está o novo Castelão e numa cidade em que a principal praia, na avenida Beira-Mar é tão poluída que proíbe o banho em suas águas.

Diabolizada, a Fifa se defende, ao dizer que não exigiu belezuras e as imputa às coisas nossas, como garante não ter exigido as demolições em torno do Maracanã, enfim suspensas na base do desespero pelo governo fluminense.

Como um mantra, a Fifa repete que não pediu que o Brasil sediasse a Copa do Mundo, ao contrário – e não deixa de ter razão.

A maior parte da gastança, que não considerou as prioridades corretas como os legados de mobilidade urbana nas 12 cidades da Copa do Mundo, é mesmo de responsabilidade dos governos municipais, estaduais e federal.

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Mesmo em São Paulo, onde o Morumbi foi descartado por capricho, em nome de levar progresso para Itaquera, como se praças esportivas fossem fator de desenvolvimento, o que o Engenhão, erguido para receber os Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio, desmente sobejamente – para não falar do Soccer City, no Soweto, em Johanesburgo, na África do Sul.

O que a Fifa não pode negar é que as mais recentes escolhas das sedes de Copas de Mundo obedecem, não por coincidência, um suspeito roteiro: a África do Sul em 2010, o Brasil em 2014, a Rússia em 2018 e o Qatar, em 2022, têm em comum o pouco controle social e, nos três primeiros casos, a corrupção desenfreada. O Qatar também obedece à lógica do tudo por fazer, mas, lá, o dinheiro jorra dos poços de petróleo.

Não foi por acaso, portanto, que a Inglaterra, pronta para começar amanhã qualquer que seja a competição esportiva, candidata a receber a Copa de 2018, teve apenas um voto no Comitê Executivo da Fifa. Um voto!

Escândalo cuja explicação está na vigilância que a imprensa britânica exerceu desde que foi anunciada a candidatura.

A gigantesca multinacional das quatro letras que significam, em francês, Fédération Internationale de Football Association, vive de seus altos patrocínios, dos direitos de TV e dos festivais de futebol que organiza pelo mundo afora, nas mais diversas categorias.

Orgulha-se de ter 209 filiados, mais que a ONU, que tem 192, e que o Comitê Olímpico Internacional, o COI, com 204.

Palco permanente de denúncias de lavagem de dinheiro, propinas dos mais diversos tipos, seus dirigentes, mesmo assim, são bajulados por reis, rainhas, presidentes, primeiros-ministros, ditadores, governadores e alcaides de todas as partes do mundo.

Sob a falácia de ser entidade apolítica, faz permanentemente política da pior qualidade ao conviver, como conviveu e convive, com ditaduras espalhadas pelo mundo em nome do esporte, que estaria acima de tudo, do bem e do mal.

Exemplo gritante se deu em 1978, na Argentina de Rafael Videla, onde aconteceu a mais sombria de todas as Copas.

Não se trata de dizer, como simploriamente tem sido repetido no Brasil, que a Fifa interfere na soberania dos países que recebem seus torneios, porque é inimaginável pensar que os Estados Unidos, em 1994, ou a França, quatro anos depois, ou a Alemanha, em 2006, tenham negociado suas soberanias para sediar as Copas do Mundo que organizaram.

Não, aviões da Fifa não tomarão nosso espaço aéreo, nem seus submarinos e fragatas vigiarão nosso litoral, simplesmente porque a Fifa não tem nem aviões, nem submarinos, nem fragatas.

Mais realista será considerar, como, diziam nossas avós, que o que é combinado não é caro nem barato e que cada país combina como fazer a festa da Fifa do jeito que puder.

Daí as isenções de impostos, a quebra de leis que proíbem a venda de bebidas alcoólicas em estádios, a liberação das fronteiras sem apresentação de passaportes para quem tiver ingressos etc. Tudo previsto pelo chamado Caderno de Encargos, antecipadamente aceito pelos países candidatos.

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Impositiva, a Fifa não quer saber se quem fará sua festa terá lucro ou não. Importa garantir o seu, cada vez maior, à medida que as Copas se sucedem.

Na África do Sul, por exemplo, a entidade lucrou R$ 4 bilhões e 700 milhões, 50% a mais que quatro anos antes, na Alemanha, e espera lucrar algo em torno de R$ 5 bilhões no Brasil.

Estima-se que seu lucro na primeira Copa disputada em solo africano tenha significado um prejuízo para os organizadores quase da mesma magnitude, na casa dos R$ 4 bilhões.

É claro que essa conta não deve ser feita apenas calculando o quanto se gastou e o quanto entrou no país, pois há os ganhos indiretos, futuros, como o do esperado aumento do fluxo de turistas graças à divulgação em escala planetária das atrações do país. Mas, no caso africano, o que se sabe é que o anúncio não só não foi tão bom assim como, ainda por cima, restaram elefantes brancos que já vivem sob a ameaça de serem implodidos, tais são os gastos para mantê-los ociosos, modelo que o Brasil reproduz ao erguer estádios em Cuiabá, Manaus, Natal e Brasília.

Durante megaeventos como Copas do Mundo e Olimpíadas, é sabido que o dinheiro deixado pelos turistas costuma ser inferior ao gasto em temporadas normais, porque quem vem de fora não é o habitual hóspede de bons hotéis, ou o cliente de restaurantes refinados, ou o consumidor inveterado dos produtos locais, mas, sim, o aficionado por esportes, que quer ver os jogos, se alimenta em lanchonetes e se hospeda de preferência em albergues e quetais, com dinheiro contado.

Na verdade, os bons hotéis são oficialmente tomados pelos homens da Fifa e seus convidados Vips, a preços bem abaixo das diárias cobradas normalmente.

Alguém já disse que uma Copa do Mundo é a oportunidade que o país sede tem de fazer um anúncio de si mesmo por um mês.

É verdade, só que com o risco de fazer um mau anúncio.

E é o que se teme que ocorra no Brasil, principalmente se o povo que foi às ruas em junho passado tiver tomado gosto a ponto de voltar no ano que vem.

Segundo o que já foi dito pelo presidente da Fifa, se isso acontecer ficará demonstrado que a escolha do Brasil foi um erro.

Dependerá, é claro, do ponto de vista.

A imprensa alemã tem manifestado admiração e até mesmo uma certa inveja dos brasileiros que não se calaram como eles, em 2006.

Aliás, é curioso como a imprensa estrangeira se surpreendeu ao dar de cara com um Brasil reivindicante.É tão fixa a ideia do país festivo, do Carnaval, das belas mulheres e do futebol, que todos se esquecem dos milhões nas praças na campanha das Diretas Já! e do impeachment de Fernando Collor, relativamente recentes, assim ignoram os inúmeros conflitos que pontuam a História de norte a sul do Brasil.

De outro lado, por aqui, há quem diga que até mesmo o tal padrão Fifa é politicamente incorreto para escolas e hospitais, porque com o DNA da exclusão, haja vista o embranquecimento visto nos estádios que receberam os jogos da Copa das Confederações, ou das Manifestações.

Até mesmo num jogo da Nigéria, na nova Fonte Nova, na negra Salvador, o fenômeno foi perceptível, devido aos altos preços dos ingressos.

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Sim, na nossa Belíndia, a Copa é exclusividade da porção belga. Prova de que, diferentemente do que se disse do papa, a Fifa não é fofa.

Para onde vai a China sob a quinta geração » Política Externa

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Para onde vai a China sob a quinta geração

por Clodoaldo Hugueney Filho em 11/09/2013

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No XVIII Congresso do Partido Comunista Chinês, no final de 2012, concluiu-se a transição entre a quarta geração, de Hu Jintao, e a quinta geração, liderada pelo novo secretário-geral então escolhido, Xi Jinping, que acumula também, como seu antecessor, a função de presidente da China. Os novos dirigentes partem de uma base quantitativa sólida e assumem uma China que é hoje respeitada no mundo, mas terão pela frente o desafio de promover as reformas que a quarta geração não pode levar adiante, em virtude da crise mundial, ou porque não teve a determinação para implementá-las.O objetivo seria transformar a China de um país desigual e em desenvolvimento, com uma renda per capita em torno de seis mil dólares, numa economia de renda média entre dez e quinze mil dólares, nos próximos dez anos, com uma distribuição muito mais homogênea e com serviços sociais modernos e uma redução de seu passivo ambiental. Essa é a transformação à qual deverá se dedicar a quinta geração.

During the 18th Chinese Communist Party Congress, the transition from the 4th to the 5th generation of the Communist leadership in the country was concluded, although formally this only happened in March this year. The challenge for the 5th generation is to transform China not only into the largest economy in the world, but also into a developed country, with positive social, technological and environmental indicators, a good middle income and no huge inequalities.

No XVIII Congresso do Partido Comunista Chinês, no final de 2012, concluiu-se a transição entre a quarta geração, de Hu Jintao, e a quinta geração, liderada pelo novo secretário-geral então escolhido, Xi Jinping, que acumula também, como seu antecessor, as funções de presidente da China. Na chefia do governo, Li Keqiang substituiu Wen Jiabao como primeiro-ministro, presidindo o Conselho de Estado. A transição ocorreu sem percalços, apesar dos eventos extraordinários do Ano do Dragão, como o episódio rocambolesco e trágico do secretário do Partido em Chongqing, Bo Xilai, e sua esposa Gu Kailai, que agora está tendo sua conclusão com o julgamento de Bo Xilai.

A transição que se havia iniciado muito antes do XVIII Congresso só foi formalmente concluída, no melhor estilo socialista chinês, na sessão da Assembleia Nacional Popular de março deste ano quando, depois de decidida a direção do Partido, foi acertada a composição do governo. Não foi uma transição simples nem rotineira. Longe estão os dias do Grande Timoneiro, quando esses eventos eram dramáticos e imprevisíveis, pois dependiam da leitura correta da vontade de Mao. Mas, mesmo nos dias mais burocráticos de hoje, com uma direção colegiada e sem as disputas ideológicas do período maoísta e do início da era de Deng Xiaoping, uma mudança na direção de um Partido Comunista que tem mais de 90 anos de existência e mais de 60 no poder não é algo trivial e sem sobressaltos e surpresas. Neste caso, a significação era ainda maior por se tratar de uma transição entre gerações com a substituição de praticamente todo o Comitê Permanente, cujo número foi reduzido de nove para sete, e de boa parte do Politburo e do Comitê Central e da Comissão Militar. Na verdade, trata-se, em certa medida, de uma transição em dois estágios, pois uma parte importante dos membros do Comitê Permanente deixará a cena ao final do primeiro período de Xi Jinping, permitindo uma recomposição do centro do poder para a segunda parte do mandato do atual secretário-geral, à luz dos resultados dos primeiros cinco anos.

Por se tratar de uma mudança de gerações é justo indagar-se sobre qual o legado da quarta geração e qual sua contribuição para a história do PCC. O legado da quarta geração é discutível. Por um lado, ela conseguiu superar crises como a de 2008 preservando a estabilidade e o crescimento. Em 2012, o ano do XVIII Congresso, em que nada poderia dar errado, o Partido conseguiu digerir a crise de Bo Xilai, além de outros incidentes graves, absorveu, com uma combinação de repressão e medidas corretivas, graves distúrbios sociais causados por desmandos ou erros das autoridades e realizou sem tropeços o XVIII Congresso e a transferência do poder para a quinta geração. Em compensação, as sempre faladas, mas nunca levadas a

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cabo, reformas políticas foram de novo ficando pelo caminho ante a necessidade de preservar a estabilidade e o controle do PCC.

No campo econômico, o diagnóstico é semelhante, embora mais positivo, ante a magnitude dos desafios, sobretudo a partir de 2008. Aí as reformas, cujo conteúdo estava diagnosticado desde o XI Plano Quinquenal, foram apenas iniciadas e somente ao final do período começaram a ser implementadas no bojo da correção dos excessos praticados para fazer frente à crise. O rebalanceamento interno da economia, com a redução do peso dos investimentos e o aumento do consumo das famílias e o externo, com a redução do superávit comercial, pareciam estar caminhando, mas não está claro se tais sinais se devem ao ajuste macroeconômico de curto prazo ou se refletem um efetivo rebalanceamento interno e externo. A mudança de modelo, com a passagem de uma economia quantitativa e extensiva para uma economia qualitativa e intensiva, teve alguns avanços, mas as resistências às mudanças nos setores estatais e em nível das autoridades locais, entre outras, combinadas com a resposta à crise, inviabilizaram transformações mais profundas.

Na área externa, houve uma releitura do cenário global e uma tentativa de aggiornamento da política externa, mas não está claro se as respostas foram adequadas para tranquilizar os temores com a ascensão chinesa, sobretudo em nível regional, e para fazer frente ao reengajamento dos EUA na Ásia e no Pacífico. Ao final do período da quarta geração, assiste-se a uma deterioração da imagem regional da China e do esquema de parcerias estratégicas, elemento-chave da política externa chinesa no Leste da Ásia.

Xi Jinping e seus companheiros da Comissão Permanente do Politburo recebem assim uma China onde a supremacia do Partido foi preservada e a estabilidade e a integridade territorial defendidas, mas uma China onde a ânsia por reformas cresceu e onde o Partido, há 60 anos no poder e já sem um apelo ideológico forte, tem que modernizar-se, uma China que é hoje a segunda maior economia do mundo, mas onde os temas dos desequilíbrios, da instabilidade e da insustentabilidade do modelo cresceram na pauta, uma China que abriu espaços no mundo e fortaleceu sua presença, mas é ainda deficiente em soft power e uma potência assimétrica, sem condições de questionar o poder norte-americano.

Os novos dirigentes partem de uma base quantitativa sólida e assumem uma China que é hoje respeitada no mundo, mas terão pela frente o desafio de promover as reformas que a quarta geração não pôde levar adiante, em virtude da crise mundial, ou porque não teve a determinação para implementá-las. Há mesmo aqueles que acreditam que, dadas as resistências às reformas, a única forma de realizá-las será por meio de uma crise. Só uma recessão abriria espaço para a nova geração de reformas. O diagnóstico final sobre a quarta geração, tornado público até mesmo em órgãos do Partido é o de que se falou muito sobre reformas, mas pouco foi feito.

Mas em que consistiriam essas reformas? O XII Plano, o estudo China 2030 e o debate econômico interno dão indicações claras das mudanças a serem realizadas. Como dito acima, tais propostas partem de um diagnóstico de esgotamento do atual modelo por razões internas e externas. A ênfase anterior das reformas foi no campo econômico e a nova geração de reformas deveria concluir tais mudanças, avançando, por exemplo, na privatização das empresas estatais e em mais ênfase nas reformas nos campos social, ambiental e tecnológico.

As reformas anteriores, ao partirem de uma economia altamente regulada e fechada, com um planejamento estatal centralizado e dirigista e com uma participação predominante do Estado na produção, tinham que ser dominadas por uma ótica liberal, como, aliás, demonstram os debates entre as alas de esquerda e de direita do Partido. Feitas essas reformas, a nova geração deveria dar ênfase aos

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aspectos institucionais, a um manejo macroeconômico mais sofisticado e a uma regulação moderna com transparência e responsabilidades claras.

A abertura externa no campo comercial foi feita e agora faltaria realizar a abertura da conta de capitais. A modernização do setor manufatureiro foi profunda, mas os setores agrícola e de serviços deveriam passar por mudanças semelhantes. A imitação, a manufatura e as inovações ao longo da curva deveriam agora ser complementadas por inovações em produtos e processos nas sete indústrias estratégicas emergentes, colocando a China em posição de liderança na nova onda tecnológica.

Ao fazer uma síntese dos objetivos das reformas os chineses indicam que elas visariam a transformar a economia chinesa de uma economia extensiva, com ênfase na quantidade e na taxa de crescimento do produto, em uma economia intensiva, com ênfase na qualidade de vida da população. O objetivo seria transformar a China de um país desigual e em desenvolvimento, com uma renda per capita em torno de seis mil dólares, numa economia de renda média entre dez e quinze mil dólares, nos próximos dez anos, com uma distribuição muito mais homogênea e com serviços sociais modernos e com uma redução de seu passivo ambiental. Essa é a transformação à qual deverá se dedicar a quinta geração, tentando levá-la adiante sem que a economia chinesa enfrente uma crise e sem que o processo político e social sofra uma ruptura. Se bem-sucedida, a China assumiria uma nova face e estaria em condições de concluir, antes de 2050, seu processo de ascensão transformando-se não só na maior economia do mundo, mas num país desenvolvido, de renda média e com indicadores sociais, ambientais e tecnológicos mais positivos.

Xi Jinping e seus colegas da Comissão Permanente e do Politburo terão pela frente desafios cruciais em cada uma das áreas para a preservação da ascensão chinesa e do socialismo com características chinesas. Não parece haver mais espaço para postergar as respostas a tais desafios. Além disso, eles agora teriam que ser enfrentados em conjunto, uma vez que a dicotomia entre os planos econômico e político não poderia mais ser mantida e que no plano externo a nova estratégia chinesa deveria combinar desenvolvimento, diplomacia e defesa. A nova equipe política terá assim que demonstrar uma extraordinária capacidade de liderança para dentro e para fora e um espírito inovador para identificar e trilhar novos caminhos. Para a realização dessas tarefas, a quinta geração conta as análises, diagnósticos e planos desenvolvidos pela quarta geração e com a consolidação do princípio da liderança coletiva que coloca a ênfase na unidade de propósitos em nível dos órgãos dirigentes do Partido

Desafios no plano político

No plano político, o Partido cresceu e hoje tem mais de 80 milhões de membros, recrutados de forma mais diversificada e incorporando um maior número de pessoas com formação superior e empresários, na linha das Três Representações. Durante a era Hu Jintao, a Direção Geral do Partido aprimorou os critérios de seleção, avaliação e promoção procurando incorporar elementos das elites dos estamentos acadêmico e empresarial, reforçando o componente meritocrático do sistema chinês. Isso transparece na composição das instâncias do Partido, em que o número de graduados em universidades e de doutores vem crescendo significativamente.

Apesar desse esforço de aprimoramento da máquina partidária, a quarta geração deixa a cena política sem ter conseguido promover as reformas políticas no sentido da construção de um estado de Direito, da promoção da transparência e dos direitos humanos e da introdução de mecanismos mais democráticos para a escolha dos dirigentes e para a toma de decisões. Essa falta de progressos mais substanciais no plano político é mais preocupante porque à diferença do período de Deng Xiaoping, Hu Yaobang e Zhao Ziyang, o debate ideológico arrefeceu e os líderes ossificados e os marechais da revolução de muito deixaram a cena política. Já lá se vão 35 anos do fim da Revolução Cultural e os valores materiais

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concentram hoje os interesses dos chineses que querem todos ficar gloriosamente ricos. Essa redução da influência da linha de esquerda poderia ter aberto o caminho para reformas mais abrangentes no plano político, mas o espectro da perda de controle pelo Partido e do fim da URSS, assim como os interesses corporativos da gigantesca máquina partidária inibiram uma nova geração de reformas que retomasse as tentativas fracassadas de Hu e Zhao.

Não é que o debate intelectual não prossiga com as correntes a favor da abertura exercendo a pressão possível dentro dos limites introjetados pelos intelectuais e compatíveis com a continuação do debate. Houve uma distensão e avanços ocorreram, mas os ciclos de fang e shou não foram superados. Esses ciclos de curta duração são de importância capital para entender a dinâmica do poder na China e a capacidade do Partido de garantir a estabilidade e promover o crescimento e as transformações necessárias para a continuidade da ascensão chinesa. Esses ciclos, característicos do período socialista, são descritos de várias formas, como os ciclos de abertura e fechamento, de flexibilização ou controle, de mudanças ou de ossificação. Qualquer que seja sua designação eles são um instrumento importante para compreender o que está ocorrendo na cena política chinesa. Tais ciclos são conhecidos como fang/shou, ou seja, flexibilização e restrição e têm a ver com a dinâmica das reformas e da necessidade de promover uma maior abertura com a tentativa de manter o controle do processo e coibir excessos e transformações mais profundas que poderiam levar a uma desestabilização do regime. Ao longo do período Deng vários ciclos dessa natureza ocorreram envolvendo as forças pró-reforma e as alas conservadores. Cristalizou-se a clivagem entre o político e o econômico com as reformas na área política sendo sacrificadas e a estabilidade sendo preservada a qualquer preço (shou) em favor da abertura e reforma no campo econômico (fang). Só durante o período Deng, especialistas identificam entre 1978 e 1989 seis ciclos de fang/shou.

Na área dos direitos humanos e do estado de Direito também ocorreram progressos, mas sempre pontuais e limitados. No caso do estado de Direito o velho problema de a ele submeter os membros do Partido segue sem solução. No caso dos direitos humanos a repressão aos críticos do regime segue funcionando. Claramente, o nível de repressão e controle é hoje excessivo, mesmo tendo presente as características especiais da China em termos de história, dimensão, população e espírito de contestação. Confrontado com o progresso avassalador das mídias sociais que transformou a China no país com o maior número de internautas do mundo o Partido procurou dar a essa evolução tecnológica uma resposta na mesma linha pela via da sofisticação dos controles eletrônicos.

Durante todo esse período as manifestações populares vêm se intensificando e ganhando novos contornos. O número de manifestações de alguma significação já está na casa das quatro mil por ano e hoje elas se propalam com grande velocidade com a internet e despertam apoio e simpatia em todo o país. Assim, embora as causas sigam sendo localizadas e as reivindicações muitas vezes semelhantes às que provocavam as antigas petições, que, aliás, seguem sendo feitas em grande número, elas hoje tendem a despertar um respaldo nacional e a transformar-se de eventos singulares em questionamentos de práticas do Partido, do governo e das empresas, e de pedidos de justiça individual em plataformas para questionar políticas. Os exemplos mais recentes de Sifang e Qidong e o fato de que as autoridades locais voltaram atrás em suas decisões e pareceram reconhecer as demandas populares poderiam sinalizar uma nova abertura para processos decisórios mais participativos e inclusão de critérios ambientais na avaliação de projetos. A temática das manifestações também vem sofrendo evolução ao incorporar crescentemente demandas ambientais, questionamentos de práticas das autoridades locais e reivindicações na área dos direitos humanos. À tradicional agenda das reivindicações dos trabalhadores migrantes, das desapropriações de terras agrícolas e de combate à corrupção juntam-se novas demandas que tornam a

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agenda das reivindicações sociais mais moderna e abrangente e com capacidade de transformar-se em uma plataforma nacional de abertura e reforma.

Os acontecimentos durante 2012 e a preocupação central do Partido em evitar distúrbios e garantir um Congresso sem turbulências, numa demonstração clara de que a estabilidade está garantida, levaram a um novo ciclo de fechamento. Por outro lado, a queda de Bo Xilai e a possível investigação de Zhou Yongkhang, tsar da segurança no período de Hu Jintao e membro do Comitê Permanente, parecem sinalizar a condenação, ao mesmo tempo, das tentativas de volta de figuras carismáticas e personalistas, em favor da direção colegiada e da unidade do Politburo, e a derrota de uma tentativa, ainda que oportunista, de retomar uma linha mais ideológica e de esquerda. A queda de Zhou, se confirmada, indicaria que a liderança de Xi Jinping estaria fortalecida, abrindo caminho para as reformas. Hu Angang em artigo às vésperas do XVIII Congresso conclui com a afirmação de que mantida a unidade do Partido e de seus órgãos centrais o Politburo e sua Comissão Permanente a estabilidade da China estaria garantida e a China seria tão sólida como o monte Tai, uma das cinco grandes montanhas sagradas da China. Com a estabilidade garantida e a unidade do Partido assegurada a quinta geração poderia concluir a tarefa de transformação da China em uma potência desenvolvida.

Nessas circunstâncias, a grande interrogação sobre os caminhos da quinta geração no plano político é sobre sua disposição para promover, nesse plano, um processo de reforma e abertura semelhante ao realizado no plano econômico ou seguir apostando no enrijecimento da estabilidade e no monopólio do poder pelo Partido. A história recente dos períodos de transição na liderança indica que uma resposta a essa questão provavelmente teria que esperar o Terceiro Pleno a realizar-se no segundo semestre de 2013. O período inicial seria dedicado à consolidação da nova liderança e à resposta aos desafios na área econômica.

A despeito das especulações sobre o passado de simpatia de Xi Jinping pelas causas liberalizantes seu perfil parece assemelhar-se ao de Hu Jintao: uma figura de centro, escolhida mais por não despertar críticas do que por suas convicções e pela liderança de uma ala comprometida com as reformas no plano político. Ao mesmo tempo, parece consolidar-se o diagnóstico de que as reformas são inadiáveis, tanto porque a estabilidade a qualquer preço terminará por redundar na perda da estabilidade, como porque às reformas econômicas deverão estar associadas reformas políticas que irão mudando a face da China. Não haveria alternativa a um caminho de flexibilização da estabilidade que promovesse um caminho de duas vias para as reformas políticas: o atendimento das reivindicações pontuais no campo do fortalecimento do estado de Direito, da luta contra a corrupção e os desmandos das autoridades, na redução da desigualdade e no estabelecimento de uma nova relação campo-cidade, e na redução do passivo ambiental. Mas ao lado dessa linha de reformas possíveis e de flexibilização da estabilidade deveria tomar corpo um novo conjunto de medidas que corporificariam a definição de um novo modelo de regime político que acolhesse conquistas democráticas do Ocidente e retivesse as características do socialismo com características chinesas.

O grande desafio estaria justamente em desenvolver um modelo de organização política que não fosse uma incorporação acrítica do liberalismo ocidental ao estilo da glasnost de Gorbachev, mas que conseguisse combinar eficiência e eficácia, com participação e transparência. Um modelo que deixasse de associar respeito às liberdades individuais à anarquia e à contrarrevolução. Um modelo, em suma, que realizasse no plano político algo semelhante à combinação entre mercado, planificação e Estado, resultado, ainda que imperfeito, das reformas denguistas e que conseguisse desenvolver uma concepção teórica e prática de um sistema político do socialismo com características chinesas que combinasse a liberalização burguesa com os valores da civilização espiritual socialista ou mesmo com os valores mais tradicionais da cultura chinesa herdados de Confúcio.

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A ausência de um engajamento da quinta geração num claro caminho de modernização política poderia levar a uma ruptura do processo político liderado pelo PCCh e ao resultado que justamente se pretende evitar com a estabilidade e os controles. As mudanças no mundo e na sociedade chinesa apontam para a necessidade de mudanças. A questão é se elas se realizarão sob a liderança do Partido e sua quinta geração ou serão feitas à revelia dos atuais centros de poder. As consequências de um hard landing político seriam desastrosas para a China e para o mundo ao interromper a ascensão chinesa e potencializar os riscos de conflito a nível regional e global, com a ascensão de correntes nacionalistas e autoritárias. Um retrocesso político viria associado a uma crise econômica e poderia levar a um longo período de perda de estabilidade, crescimento e perda da integridade territorial na China, semelhante ao ocorrido na Rússia. Esse resultado trágico ainda é evitável, mas requer um claro compromisso da nova liderança com transformações, ainda que específicas e graduais, nos sistemas político e jurídico, dentro de um projeto abrangente em médio prazo de construção de um novo sistema político socialista com características chinesas.

Desafios no plano econômico

À diferença do plano político em que falta ainda uma concepção global da direção das reformas a serem realizadas, no plano econômico o XII Plano Quinquenal contém um diagnóstico do esgotamento do modelo de desenvolvimento chinês e um conjunto de propostas coerentes para promover sua transformação e realizar os objetivos paralelos de rebalanceamento da economia e mudança de seu paradigma de crescimento. Além disso, durante 2011 e 2012 o processo de rebalanceamento começou para fazer frente à mudança na economia mundial e para corrigir os desequilíbrios gerados pelos programas de resposta à crise. As reformas também foram sendo mais bem explicitadas e consolidado o consenso em torno da necessidade de sua execução. As mudanças também começaram em muitos campos facilitando a tarefa de seu prosseguimento e aprofundamento.

Na área do rebalanceamento, o objetivo de colocar a economia chinesa numa nova trajetória de crescimento na qual as taxas de dois dígitos não mais se repetirão, com a taxa de crescimento caindo para algo em torno de 7%, foi em parte atingido. Começou também a mudança de ênfase entre investimento e consumo e a redução do peso do setor exportador. O rebalanceamento externo também foi promovido com a flexibilização do câmbio, medidas de abertura da conta de capitais e de promoção das importações e de redução do saldo comercial. Os fluxos de IDE chinês também foram incentivados e não só as grandes empresas estatais, sobretudo nas áreas de energia, agrícola e de mineração, mas empresas médias e privadas nos setores industrial, de construção e de serviços passaram a investir no exterior.

O rebalanceamento da economia chinesa ainda está longe de ser concluído, tanto no plano interno, como no externo. Os analistas, aliás, divergem sobre se ele de fato começou ou se o que estamos vendo reflete apenas um ajuste conjuntural como consequência do prosseguimento da crise e da queda do crescimento na Europa e nos emergentes e da redução do preço das matérias-primas como consequência dessa queda e sobretudo da redução do ritmo de crescimento na China. Mesmo a mudança nas participações dos investimentos e do consumo no PIB poderia refletir mais a conjuntura do que uma mudança em longo prazo, com as indústrias pesadas desaquecendo mais que as leves e os investimentos em infraestrutura e construção caindo em função do ajuste fiscal e monetário para reduzir a inflação e o ritmo insustentável de crescimento.

Há sinais nos dois sentidos. Por um lado, o ajuste foi mais firme e duradouro do que inicialmente previsto, com as taxas de crescimento caindo ao longo de 2012. A impressão que se tem é que o governo procurou fazer um ajuste front loaded a fim de deixar às novas autoridades maior raio de manobra a partir do final de 2012 e em 2013. Com a inflação sob controle e algum nível de saneamento das finanças locais e de correção dos desequilíbrios o novo governo poderá ter maior raio de manobra para iniciar seu período

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seguindo com o ajuste, com uma calibragem fina da política macro e o aprofundamento das reformas estruturais.

Por outro, o aumento da massa de salários e a redução dos lucros, reverteram a tendência à queda na participação no PIB do consumo das famílias, a formação bruta de capital fixo atingiu níveis mais compatíveis com sua sustentabilidade e o saldo comercial como percentagem do PIB contraiu-se. Há, portanto, sinais de um rebalanceamento tanto interno como externo. Para que o rebalanceamento da economia prossiga duas variáveis parecem centrais: primeiro, o governo teria que resistir à tentação de voltar a injetar recursos na economia, mantendo uma política monetária e fiscal sem viés expansionista; segundo as novas autoridades deveriam encetar desde o início de 2013 as reformas para a mudança do modelo de crescimento.

O XI Plano já continha um esboço das reformas e elas foram explicitadas e ganharam maior coerência no XII Plano, atualmente em execução. O diagnóstico representa um processo de decantação de pesquisas e análises e de comparações internacionais. O receituário é completo e coerente. Faltou a implementação abrangente e persistente das medidas.

O diagnóstico do XII Plano é o de final de um ciclo e esgotamento de um modelo. Nesse sentido, as reformas não são mais opcionais e a insistência em seguir o mesmo rumo levará a uma ruptura na trajetória de crescimento. O diagnóstico parte da crítica do modelo atual e identifica as consequências de um crescimento acelerado por três décadas e a necessidade de corrigir os desequilíbrios gerados. Como as reformas foram sendo postergadas, pelas resistências internas e depois pela crise de 2008, o primeiro-ministro passou a repetir o refrão de que a economia chinesa estava desequilibrada e descoordenada e que esse curso era insustentável. O prolongamento da crise e a aproximação do Congresso do Partido levaram, contudo a um novo adiamento ficando agora para a quinta geração a tarefa de levar adiante as reformas.

Mas em que consiste essa mudança de modelo? Sem procurar ser exaustivo, seguem alguns exemplos significativos para demonstrar o alcance, profundidade e complexidade da passagem de uma economia quantitativa para uma economia qualitativa. O mundo e os chineses se acostumaram com uma China crescendo a dois dígitos. O desafio agora é crescer menos, mas melhor. Uma parte da desaceleração já foi feita nos anos de 2011 e 2012. Como disse um analista chinês 8% é desejável, mas 7% são aceitáveis e não devem causar preocupação. A questão que se coloca é se será possível aterrissar em sete ou se o crescimento do PIB cairá para algo em torno de quatro ou 5% ou se a combinação de um movimento cíclico com uma política macro pró-cíclica e uma agenda de reformas não levará a uma crise na economia chinesa. Essa questão hoje afeta o mundo todo dadas as dimensões da economia chinesa e de seu comércio exterior. Um claro exemplo disso é o impacto da China sobre o preço das matérias-primas.

A transformação do consumo doméstico no motor da economia implica, entre outras coisas, em reduzir significativamente a taxa de poupança da população. Mas, como se tornou lugar-comum afirmar, a população chinesa não poupa tanto por tradições culturais e sim porque tem que fazer frente à ausência de serviços públicos e de esquemas de segurança social, sobretudo no campo. O Estado terá que reduzir seus investimentos em infraestrutura e canalizar recursos para as áreas de educação, saúde, cultura e lazer e para a constituição de um sistema previdenciário com cobertura universal e benefícios razoáveis, tendo presente uma população de 1,3 bilhão de pessoas e uma mudança da pirâmide etária chinesa. Ao fazer isso o Estado terá que reciclar-se completamente para deixar de fazer aquilo que, apesar dos exageros e equívocos tem feito razoavelmente bem ao longo dos anos, investir em infraestrutura, para prover serviços de qualidade a uma gigantesca população. Isso implicará também reciclar os 83 milhões de membros do Partido para que se transformem em prestadores de serviços e deixem de ser classe privilegiada.

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Atacar a desigualdade social, que vem crescendo de forma assustadora em paralelo ao crescimento do PIB, passou a ser não só uma exigência econômica pela necessidade de promover o consumo das famílias, mas uma exigência política e social para garantir a estabilidade do regime. As disparidades de renda pessoal, regional e entre o campo e a cidade aumentaram significativamente durante o período de crescimento acelerado. Embora não haja registro de que Deng Xiaoping tenha pronunciado a frase “é glorioso ficar rico” essa frase é frequentemente atribuída a ele e citada para justificar as reformas econômicas liberalizantes e a operação dos mecanismos do mercado. Mas mesmo se a frase fosse verdadeira a distância entre os níveis de renda hoje, tendo presente que a China vive, no jargão do Partido, sob a ditadura do proletariado e na fase inicial do socialismo onde o desenvolvimento das forças produtivas e a eliminação da pobreza são tarefas prioritárias, é difícil de justificar e aceitar e poderia se não for corrigida levar a uma nova luta de classes.

A promoção do consumo e a redução da desigualdade tem sido objeto de medidas horizontais como aumentos salariais, expansão da cobertura dos seguros de saúde e da previdência social e reforma da educação e extensão da educação básica gratuita. Além disso, o governo tem procurado melhorar a situação dos 140 milhões de trabalhadores migrantes estendendo-lhes gradualmente benefícios que dependem da residência e assim iniciando uma reforma de fato do sistema do domicílio fixo (hukou). A abolição do “hukou” dependerá também da execução do programa de habitações populares em curso o qual pretende construir em cinco anos 36 milhões de moradias.

A reforma dos setores produtivos é outra dimensão importante do programa. Na agricultura, as reformas passam por uma modificação do sistema de uso da terra e por uma migração mais significativa da população do campo para as cidades. Pela primeira vez em 2011 a população urbana superou a rural, mas ainda cerca de 47% da população chinesa é classificada como rural.

Na indústria trata-se de reduzir o peso das indústrias pesadas altamente consumidoras de energia e recursos naturais em favor das indústrias leves o que implicaria também em uma redução do setor estatal que concentra a maioria das indústrias de base, como a química, a siderúrgica e a de cimento. Além disso, o objetivo é passar de uma economia meramente manufatureira com base na cópia e na montagem para uma economia criativa com a concepção de novos processos e produtos e o lançamento de marcas internacionais.

Um dos elementos importantes do plano foi a escolha de sete grandes setores como indústrias estratégicas emergentes: proteção ambiental e reciclagem, novas tecnologias da informação, biotecnologia, novas formas de energia, novos materiais, veículos movidos a energia renovável e equipamentos de alta performance. O objetivo é fazer com que tais setores, que o governo chinês, após cuidadosos estudos, identificou como aqueles que liderarão a nova onda tecnológica pós-crise, alcancem uma proporção de 8% do PIB em 2015 e 15% em 2020. Caso esses planos do governo central sejam efetivamente implementados o processo de inovação tecnológica na China passaria por uma profunda transformação. Até agora, o crescimento industrial chinês apoiou-se em transformações pontuais ao longo da curva melhorando processos e produtos, mas não criando novas tecnologias e produtos. Agora tratar-se-ia de criar uma economia da inovação e assumir a liderança do processo inovativo no mundo.

A tentativa de mudar o padrão de inovação na China é um componente central da mudança de modelo. Ao escolher, sete indústrias estratégicas emergentes, a China busca, a um só tempo, identificar indústrias-chave para a solução de problemas do modelo chinês de crescimento, como apostar em setores que definirão o novo paradigma tecnológico e onde a tecnologia ainda está em fase de desenvolvimento. Não se trataria, portanto, de um catching-up com os países desenvolvidos e suas multinacionais, mas de disputa pela China da liderança do processo de inovação tecnológica.

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No setor terciário, as transformações não seriam menos importantes e buscariam recuperar o atraso desse setor e fazer com que ele absorvesse uma percentagem crescente da força de trabalho. Dentre essas transformações teria papel central a modificação do setor financeiro, hoje basicamente estatal, com a privatização dos grandes bancos chineses e provavelmente sua divisão. Essa transformação exigiria uma revolução no marco regulatório do setor financeiro envolvendo a liberalização da remuneração aos investidores, modernização das bolsas de valores e a transformação da bolsa de Xangai na principal bolsa da Ásia e a abertura da conta de capitais, hoje altamente regulada. Tais reformas abririam caminho para a transformação do renmenbi em uma moeda livremente conversível.

Uma das áreas prioritárias do plano é a que diz respeito ao meio ambiente e à transformação da China em uma economia verde, com a redução do gigantesco passivo ambiental deixado pelo crescimento quantitativo. Entre as mudanças prioritárias estão a de modificação da matriz energética com a redução do peso do carvão em favor de fontes renováveis, o desenvolvimento de veículos com combustíveis alternativos, a redução da poluição industrial, que tem levado a manifestações populares cada vez mais agressivas e frequentes, e a recuperação do solo e dos cursos de água. A questão ambiental é multifacetada e requererá um grande esforço regulador para colocar como condição de qualquer projeto importante um efetivo estudo de impacto ambiental e um processo de consulta às populações potencialmente afetadas. As autoridades ambientais do governo central não têm tido a força necessária para impor tais critérios às autoridades locais, mais preocupadas em atrair investimentos e promover o crescimento. A questão ambiental tem também uma crescente dimensão internacional na medida em que a China é hoje o país que, depois dos EUA, mais contribuiu para o aumento das emissões de carbono e que deverá proximamente tornar-se o primeiro.

As questões acima representam apenas uma parte do que estaria envolvido com a mudança de modelo de crescimento. Além disso, dentro de cada uma das áreas apontadas a agenda de reformas envolve muitas outras medidas. Uma leitura do XII Plano, dos planos setoriais e do documento China 2030 permite ter uma visão mais completa da magnitude da tarefa que terá pela frente a quinta geração. Mais que explicitar mudanças e analisar novas políticas necessárias para implementá-las o que importa, a um nível mais agregado, é assinalar alguns desafios centrais para levar adiante a mudança do modelo.

Além dessa vinculação maior entre as esferas política e econômica fica também claro que as medidas estão interligadas e que se torna difícil, senão impossível, avançar por áreas ou setores. Os resultados na área social dependem da modernização das políticas públicas em vários setores, a agenda ambiental está ligada às reformas nas áreas de ciência e tecnologia e industrial. Essas vinculações tornam a coordenação de políticas complexa e exigirão não só uma política macroeconômica bem calibrada, mas uma estreita coordenação entre as políticas macro e microeconômicas e entre os vários objetivos setoriais. O desafio na área de execução de políticas torna-se muito maior.

A quarta geração foi dominada por engenheiros e egressos das escolas de ciências exatas. Seu perfil era bem talhado para executar obras e tocar investimentos. As soluções para os problemas pareciam estar em seguir adiante com a modernização da infraestrutura e, quando houvesse ameaça de ruptura no crescimento, como aconteceu com a crise de 2008, simplesmente aumentar o ritmo e o volume dos investimentos. Os desafios que têm a quinta geração pela frente são de outra ordem. Para levar adiante as reformas terão que ter presentes as interconexões entre as áreas mas, mais que isso, reconhecer que esse tipo de reformas requer outro tipo de governo e de regime político. Felizmente, a maioria da liderança da quinta geração parece formada em ciências sociais e, portanto, com mais capacidade para apreciar inter-relações e duvidar das respostas.

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Todos aqueles que acompanham o desenvolvimento chinês ficam impressionados com a magnitude e velocidade das mudanças. Seguramente, os resultados quantitativos foram impressionantes e a paisagem física mudou. Qualquer visitante que passe alguns anos sem vir à China ficará impressionado ao retornar com o que verá nas cidades, nas zonas industriais, nas estradas e ferrovias e mesmo no campo e nas áreas mais afastadas. A modernização caminhou a passos largos. Essa modernização deixou um custo elevado, político, social e ambiental.

Recalibrar as mudanças passando a ênfase da quantidade para a qualidade permitirá enfrentar esse passivo e fazer da China um país diferente, num sentido mais profundo e talvez menos espetacular que as megalópoles de hoje. Quando de sua última visita à China o professor Antônio Barros de Castro assinalou que estava sempre se surpreendendo com a China, pois o país parecia renovar-se a cada momento fazendo com que um observador da realidade chinesa, mesmo um observador arguto como ele, tivesse sempre a sensação de que a China que estudara e analisara era a China do passado e que uma nova China deveria ser compreendida para saber com ela relacionar-se e enfrentar seus desafios. A transição para a quinta geração traz a expectativa para a população chinesa e para o mundo de que a Nova China será não só maior, mas melhor.

Desafios nas relações internacionais

Os desafios na área externa não são menos importantes que os internos. A ascensão chinesa e dos demais países emergentes e em desenvolvimento e a crise mundial colocaram na ordem do dia a questão de um ordenamento multipolar e um multilateralismo renovado. A transformação da China na segunda economia mundial e a possibilidade de que ela nos próximos anos ultrapasse a economia norte-americana colocaram em questão alguns dos pressupostos básicos da política externa chinesa. A prioridade para o desenvolvimento interno e a defesa do status quo no plano internacional foram relativizadas, a questão da assunção pela China de novas responsabilidades entrou na ordem do dia, a avaliação do poder chinês em suas várias dimensões tornou-se tema de permanente reflexão na academia, no Partido e nas Forças Armadas e as relações com os EUA assumiram o caráter de relação bilateral mais importante no mundo. Ressurgiu também com força o debate, muitas vezes com fortes tons nacionalistas, sobre o renascimento chinês e a superação definitiva do século das humilhações, voltando a China a ocupar em sua região e no mundo o papel central que tivera o Império do Meio.

A China combina as características de segunda economia mundial e país em desenvolvimento e é, portanto, uma potência assimétrica. Seu desenvolvimento e não a extensão de seu poder militar é a garantia de sua ascensão. O reino do meio deve seguir tendo uma política externa que priorize o interno sobre o externo, o desenvolvimento sobre a ampliação de sua influência externa. O dilema da China é que o externo passou a condicionar o interno tornando difícil rejeitar novas responsabilidades.

A China foi talvez o país que mais se beneficiou do status quo com o envolvimento da superpotência em guerras e com a extensão excessiva de seu braço militar, com o crescimento acelerado dos EUA e das economias europeias e a transformação da China no centro manufatureiro do mundo, com a acumulação de reservas e o financiamento da dívida norte-americana, com a globalização e a abertura de sua economia ao comércio e aos investimentos. Não interessava à China desafiar a ordem estabelecida, mas sim dela beneficiar-se e seguir ascendendo e consolidando seu status de potência regional e global. A crise dramatizou a ascensão chinesa, destruiu alguns dos mecanismos centrais da ordem econômica internacional e colocou a multipolaridade na ordem do dia exigindo uma releitura dos princípios básicos da política externa chinesa.

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A China foi sendo cada vez mais chamada a assumir novas responsabilidades e embora ainda haja uma corrente que defenda o não envolvimento e o status quo, passou a ganhar força uma corrente mais internacionalista com duas vertentes básicas: a do multilateralismo e a do expansionismo. No primeiro campo estão aqueles que defendem que a multipolaridade entrou na ordem do dia e que a China deve reforçar uma melhor repartição do poder mundial e a construção de um novo multilateralismo. Nessa vertente, uma questão importante passou a ser não a dicotomia sobre a assunção ou não de novas responsabilidades, mas sim que tipo de responsabilidades. Há aqueles que defendem que a China junto com os demais emergentes deveria aumentar sua voz e voto e definir responsabilidades de acordo com seus interesses. Outros pensam que sendo a atual ordem construída de acordo com os interesses do Ocidente e não interessando à China desafiá-la o melhor é aceitar, dentro de limites que não conflitem com o desenvolvimento chinês ou com seus interesses estratégicos, responsabilidades que lhe são atribuídas.

O caráter assimétrico da China faz com que a questão das dimensões e limites de seu poder seja um tema de grande relevância nos debates sobre estratégia e política externa. Nesses debates, pesam os argumentos sobre a desestabilização decorrente de uma corrida armamentista e o colapso da URSS e a necessidade de que a China exerça contenção e redobre sua paciência, sabendo dosar suas respostas aos desafios colocados pela superpotência. Do outro lado, estão as correntes nacionalistas que advogam que a nova China não tem por que aceitar imposições ou ameaças, sobretudo à sua integridade territorial.

A relação com os EUA assumiu novas caraterísticas determinadas pela ascensão chinesa e o declínio relativo da superpotência. Os EUA seguem sendo a única superpotência e de longe a maior potência militar do mundo com gastos que ultrapassam de longe os gastos chineses com suas Forças Armadas. Mas o poderio econômico dos EUA viu-se matizado tanto em termos da dimensão e capacidade de crescimento de sua economia, como em termos da superioridade de seu modelo. Esses desenvolvimentos voltaram a colocar na ordem do dia a questão da sustentabilidade do poder militar norte-americano. Depois de flertar com a ideia de um G2, em que a China seria um coadjuvante dos EUA na manutenção da ordem mundial, os dois países passaram a reconhecer que os elementos de divergência em seus objetivos, estratégias e modelos tornavam irreal esse tipo de construção. Os EUA voltaram a sua estratégia de contenção e engajamento e a China reforçou seu discurso sobre o “desenvolvimento pacífico” e seus interesses estratégicos invioláveis: seu modelo de desenvolvimento, seu regime político, sua soberania e sua integridade territorial.

A relação com os EUA foi assumindo novos contornos. Sua agenda tornou-se mais complexa, combinando crescentemente a prioridade para as questões econômicas e comerciais com um diálogo político-militar cada vez mais intenso. Os EUA reconheceram mais explicitamente a ascensão chinesa e os desafios por ela colocados e redefiniram sua estratégia e reposicionaram suas forças na virada para o Pacífico. Esse reposicionamento implica uma mudança que vai além de uma resposta ao crescente poderio da China. A relação atlântica e a importância da Europa como parceira e da Rússia como inimiga estão em declínio. A globalização comandada pelos fluxos entre a Europa e os EUA cede lugar a uma globalização onde a Ásia do Leste passa a ter papel determinante. Nos próprios EUA, a Costa Leste volta a ter sua influência reduzida em relação à Costa Oeste. A geografia estratégica e econômica do mundo começa a ser redesenhada.

A relação entre a China e os EUA tem hoje uma importância central não só para os dois países, mas para o mundo. Uma possibilidade é que essa relação se torne prisioneira do dilema da potência hegemônica em declínio e da potência em ascensão. Os EUA passariam a reforçar os elementos de contenção da China, aumentar a aposta militar e buscar a interrupção da ascensão chinesa. Confrontada com essa atitude, a China mudaria de uma estratégia e contemporização e de ganhar tempo para consolidar sua ascensão, para uma estratégia de aproveitar o melhor momento e propiciar a decadência definitiva da superpotência. O

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risco de um conflito cresceria na medida em que os dois lados perseguissem uma disputa pela hegemonia. A outra opção, propalada pela China, é a da rejeição da busca da hegemonia, da construção de uma nova relação entre potências baseada no reconhecimento e respeito das diferenças e dos interesses estratégicos fundamentais dos dois lados. Nessa visão, os elementos de cooperação superariam os de confronto e os dois lados trabalhariam pela construção de uma nova ordem internacional, baseada não na disputa pela hegemonia, mas na repartição do poder.

A ascensão chinesa traz à tona o tema do renascimento chinês e da superação do século das humilhações, com seus sentimentos de nacionalismo e revanchismo. Qualquer análise da política externa chinesa que não reconhecesse o papel central do período que vai da Guerra do Ópio até o final da invasão japonesa e a derrota das forças nacionalistas seria falha e incompleta. A importância desse período para a compreensão do posicionamento da China no mundo decorre de vários fatores. Primeiro, o sentimento da superioridade chinesa e de sua cultura e o choque representado pelas sucessivas derrotas e humilhações a partir da Guerra do Ópio. Segundo, a percepção de que o comportamento das potências ocidentais e depois do Japão era dominado pelos objetivos de hegemonia e dominação e de imposição da vontade dos mais fortes sobre os mais fracos e que o conceito de civilização não se distinguia da barbárie numa relação desigual. Terceiro, a sensação de que os valores da cultura chinesa não poderiam prevalecer contra a superioridade material do Ocidente. Essa percepção rapidamente dividiu-se em dois campos: aqueles que achavam que a cultura chinesa era perene e infinitamente superior à Ocidental e que a disparidade de forças devia-se exclusivamente ao domínio do progresso técnico, e a segunda que acreditava que a cultura clássica chinesa tinha um viés antiprogressista que a tornava inimiga dos tempos modernos e comprometida com o feudalismo, a apatia e a dominação interna por uma classe. Quarto, o sentimento de revanchismo e a busca de recuperar o lugar perdido na ordem mundial, com a China voltando a ocupar a posição central que detivera por séculos. Finalmente, um nacionalismo que combina o elemento positivo de crença na superioridade chinesa e o negativo de frustração com as humilhações sofridas e a determinação de não permitir que elas voltem a se repetir. Essa visão dificulta uma releitura do passado chinês e a reconciliação com o pensamento clássico e com a superação das inimizades. As vicissitudes do neoconfucionismo e as relações com o Japão são dois exemplos da importância do século das humilhações na visão contemporânea chinesa.

A crescente incerteza sobre os rumos da relação com os EUA e os riscos crescentes que uma mudança de curso nessa relação leve à interrupção da ascensão chinesa, vêm forçando a China a mudar os contornos de sua política externa, tentando consolidar sua liderança regional e desenvolver novas parcerias, valendo-se de seu poder econômico. No plano regional, desperta temores, mas também abre oportunidades. Os temores derivam da percepção de que a China, em longo prazo, comportar-se-á como as potências ocidentais que a precederam e procurará impor sua hegemonia. Os EUA atiçam tais temores e procuram, com seu reposicionamento para o Pacífico, demonstrar que estarão comprometidos em defender seus aliados contra a expansão do poder chinês. Os conflitos territoriais nos mares do Leste e do Sul da China mostram os riscos dessa evolução. Felizmente, até agora a relação entre a Índia e a China tem evitado converter-se em uma disputa pela liderança regional. Mas claramente há um reposicionamento dos principais atores e um aumento da tensão na região, embora ainda a níveis controláveis. A estratégia chinesa de ganhar tempo e fazer valer seus atrativos econômicos está longe de esgotar-se e a grande maioria dos países parece preferir não ter de optar entre a China e os EUA.

A China vem trabalhando também de forma consistente na diversificação de suas relações e na incorporação de novos países a seu esquema de parcerias estratégicas, bem como na revisão da importância e do conteúdo de algumas de suas parcerias tradicionais. No primeiro caso, as parcerias com a África e a América Latina e o Caribe são um bom exemplo. Nos dois casos a China tem sabido combinar seu

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interesse em diversificar e criar novas fontes de matérias-primas para atender sua crescente demanda por recursos naturais e produtos agrícolas, com a não ingerência nos assuntos internos dos países e aceitação dos diferentes regimes, ainda que pouco palatáveis, e de promoção do desenvolvimento e da cooperação Sul-Sul. No segundo, a tentativa em curso de redefinir sua relação com a Rússia dando-lhe um papel mais estratégico, baseado numa grande parceria energética e numa contenção do poder hegemônico dos EUA, é um bom exemplo. As relações com a Índia também passam por um período de busca de distensão e melhoria econômica, sobretudo no gigantesco déficit comercial hindu.

O novo cenário internacional fez com que duas questões ganhassem crescente importância nos debates internos na China e na formulação da política externa chinesa: a importância do soft power e a construção de um novo multilateralismo. Nos dois casos, a análise chinesa parte da constatação de que a China padece de um grave déficit em relação ao Ocidente.

Os atrativos do modelo de desenvolvimento chinês e a sua capacidade de garantir altas taxas de crescimento e superar crises são matizados pelas características do sistema político e pela dominação de um partido único. O consenso de Pequim tem dificuldade em impor-se como um modelo de desenvolvimento, embora tenha elementos claramente superiores ao desacreditado Consenso de Washington. A cultura chinesa como cultura universal padece da dificuldade do Partido em aceitar uma releitura do passado imperial chinês e da incapacidade, apesar de esforços recentes nesse sentido, em demonstrar sua validade para a solução dos problemas contemporâneos e para a construção de um novo regime chinês. A familiaridade com a cultura ocidental e o fato de que ela esteve por séculos associada a uma dominação do Ocidente, e a singularidade e diversidade da cultura fazem da projeção global da cultura chinesa um projeto complexo e de longo prazo. Falta também à China uma cultura popular industrial e criativa que projete ao mundo uma imagem positiva e moderna da nova China. À inferioridade do hard power chinês se junta a dificuldade em construir e projetar um soft power que equilibre, ainda que parcialmente, o poder chinês ao dos EUA.

A diplomacia chinesa não tem uma tradição multilateral importante. Amparada nos princípios da defesa do status quo, da redução de seu engajamento no cenário internacional e na necessidade de construir relações bilaterais fortes, a China não desenvolveu uma diplomacia multilateral mais criativa e afirmativa. O contraste com o Brasil não poderia ser maior. O período atual, ao colocar a possibilidade de um novo ordenamento internacional, vem despertando na China um debate sobre a necessidade de desenvolver uma diplomacia multilateral muito mais ativa, baseada na busca de novos conceitos e de novas parcerias e alianças. Disso são exemplos o engajamento chinês no BRICS, no G20 e no BASIC e a tentativa de repensar o ordenamento internacional e de explorar os contornos de uma ordem multipolar não hegemônica e um novo multilaterismo que crie um alicerce sólido para a repartição mais equitativa do poder e para a superação da busca da supremacia e da hegemonia, no que poderia denominar-se como a construção de uma multipolaridade harmoniosa.

Essas análises encontram-se ainda em estágio embrionário embora já comecem a surgir certos contornos do que poderia constituir um novo ordenamento pós-hegemonia norte-americana com o fortalecimento da Organização de Cooperação de Xangai e a proposta russa de construção de uma comunidade euro-asiática. Falta, contudo, uma visão unificadora e consistente do que poderia ser esse novo ordenamento. Isso é natural, pois estamos vivendo um período de transição em que a potência hegemônica resiste em compartilhar poder e as potências ascendentes não têm nem uma proposta coerente, nem a capacidade de levar adiante modificações globais, trabalhando na margem e nas modificações pontuais.Uma crítica da ordem atual e uma visão inicial do que poderia ser uma multipolaridade harmoniosa poderia partir de um reencontro entre as culturas ocidental e oriental e da busca de um sincretismo criativo, que

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respeitando as individualidades das duas culturas, rejeitasse a ideia de superioridade cultural e trabalhasse nas áreas de fronteira entre os dois pensamentos, na zona cinza onde o Ocidente e o Oriente diluem suas diferenças e se confundem.

Como levar adiante as reformas

Num regime autoritário como o chinês, de liderança colegiada e supremacia do Partido sobre o governo as linhas políticas são hoje definidas não mais pela vontade imperial dos líderes, mas pelo confronto cotidiano de linhas e interesses e pelo vai e vem permanente de relatórios entre as instâncias burocráticas do Partido e do governo. Na grande maioria dos casos, será esse processo de acomodação de camadas que irá definindo a linha que finalmente resultará como vitoriosa. Os que estão no topo não podem prescindir dos que vêm abaixo e lá chegaram, menos por sua capacidade de impor suas posições e muito mais por sua capacidade de compor, negociar e respeitar limites. Isso se deve não só à escola do Partido que, como a de qualquer instituição burocrática vai moldando seus integrantes, mas pela tradição cultural oriental que valoriza a hierarquia, a ordem e os valores comunitários sobre os individuais.

Se aceitarmos que reformas ainda que imperfeitas e incompletas foram feitas e que, mesmo que muito do planejado tenha ficado no papel, mudanças foram sendo introduzidas, parece interessante ver como o que foi feito pode ser levado adiante e quais os rumos que o processo de reformas tomou para superar as resistências, corrigir seu curso e fazer frente às circunstâncias internas e internacionais. É claro que não existe uma tipologia única do processo de mudanças e que ele dependerá do tema a ser abordado. Assim, a reforma do campo difere da reforma do setor industrial em alguns aspectos, com a reforma da agricultura tendo um impulso local mais pronunciado, enquanto que a reforma industrial depende mais de um empurrão do centro.

Além disso, é claro que o primeiro passo para as reformas é haver um desejo e uma determinação de levar adiante mudanças. Dito em outras palavras, é preciso ter uma orientação inicial pró-reforma compartilhada pela liderança e propalada ao país. Por ora, for the sake of the argument, consideremos que a quinta geração procurará realizar reformas cujo alcance e conteúdo irá ficando claro à medida que a liderança se consolide e que o processo de reformas prospere e ganhe um impulso próprio resultante de seu próprio sucesso e do respaldo no Partido e na população para as mudanças. Nessas circunstâncias, parece útil especular sobre qual a melhor forma de levar adiante tais reformas, não só para evitar que a agenda reformista seja liquidada antes de consolidar-se, como para permitir que tal agenda ganhe contornos mais amplos e abarque questões mais difíceis e complexas, como a natureza do sistema político e a revisão da história chinesa, para citar dois tabus que no fundo constituem um todo único.

Uma das formas clássicas de fazer avançar reformas foi procurar circunscrever seu âmbito geográfico ou burocrático. Esse caminho para as reformas não só acompanhava a forma chinesa de evitar um ataque frontal e procurar avançar aos poucos, como atendia ao preceito de utilizar a prática como critério da verdade e o pragmatismo, tateando as pedras ao cruzar o rio. Outro caminho foi levantar o debate a nível intelectual criando grupos de discussão teórica e produzindo textos e artigos de circulação mais ampla ou restrita aos órgãos do Partido.

Outra estratégia para levar adiante as mudanças, que se relaciona com a tática de circunscrever o âmbito das reformas, mas não se confunde com ela, é o gradualismo. Mesmo em momentos de fang e de auge do espírito reformista as reformas foram sendo implementadas gradualmente. Isso não só visava a evitar retrocessos, o que, aliás, nem sempre se conseguiu, mas também a permitir um processo de decantação e correção de curso caso a orientação das reformas se revelasse equivocada. O gradualismo, se tinha a vantagem de permitir ir dosando a oposição às reformas tentando evitar as marés de shou, tinha também o

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risco, especialmente presente na área política, de retirar ímpeto às reformas tornando-as praticamente irrelevantes. Assim, as experiências com democracia intrapartidária, eleições locais e outras tentativas de introduzir alguma mudança no Partido foram se tornando tão tímidas que terminaram por não constituir uma agenda reformista.

Retornando ao tema inicial, podemos agora indagar sobre quais as lições que se poderia tirar para os dias de hoje e para a agenda reformista da quinta geração da discussão acima. Sem uma orientação geral pró-reforma vinda de cima e do centro, ou seja, do Comitê Permanente do Politburo, fica difícil vencer as resistências dos interesses constituídos. Como não há um centro ditatorial para impor sua vontade a orientação pró-reformas demandará unidade e consenso. Como acontece nos casos de construção do consenso tende a prevalecer o mínimo denominador comum. Dada a expectativa sobre as mudanças e a necessidade impostergável de implementá-las não parece haver dúvidas de que a direção do centro será pró-reformas.

Para onde vai a China

Os sinais que vêm sendo emitidos desde o XVIII Congresso e a partir da ANP em março são no sentido de que as reformas serão implementadas. No plano político a campanha de massas em nível do Partido e das Forças Armadas, conduzida pelo próprio Xi Jinping, procura dar resposta aos temas conexos da corrupção, burocratismo, e mordomias, objeto de queixas frequentes da população e elemento corrosivo do Partido. Como disse Hu Jintao em seu discurso de despedida a corrupção é uma doença que pode ser fatal. A ela estão associados todos os outros elementos que derivam da impunidade e da falta de transparência e arrogância no exercício do poder. O diagnóstico chinês do fim da URSS atribui uma importância central ao esclerosamento do Partido. A designação de Wang Qishan para chefiar a Comissão Disciplinar foi também vista como um sinal de que a luta contra a corrupção será levada a sério. Esse pode ser um ponto inicial, mas está longe de esgotar a agenda política. Mas é um sinal.

No plano econômico, onde Li Keqiang tem assumido a liderança, outros sinais vêm sendo dados, o principal deles a recusa em aplicar novos estímulos significativos à economia, sinalizando que a liderança está confortável com uma taxa de crescimento muito menor. Na verdade, existe uma dialética entre crescimento do PIB, crise e reformas. Manter a taxa de crescimento do PIB em torno de 7% promove o ajuste reduzindo os riscos da bolha imobiliária, da superprodução no setor estatal e do endividamento das autoridades locais. Mas a sinalização macro deve ser acompanhada de medidas específicas o que vem sendo feito com a auditoria das finanças locais, a melhor regulação do setor financeiro e o corte de capacidade nas indústrias pesadas e a redução dos procedimentos administrativos.

O ajuste em curso tem que ser calibrado em função da crise que ainda pesa sobre a economia global e das políticas de saída do afrouxamento monetário, sobretudo nos EUA, e de seu impacto nos emergentes. As reformas vão assim sendo iniciadas com um olho no cenário externo e outro nos setores atingidos e no PIB chinês, com vistas a manter o crescimento num nível (7%) que nem promova um retrocesso na agenda de reformas, nem leve a uma queda brusca no crescimento e a uma crise. Como disse Li Keqiang “reformar é como remar contra a corrente. Qualquer parada é um retrocesso”.

No plano externo, assiste-se a um esforço de recomposição das relações no Leste da Ásia, muito afetadas no período final da quarta geração, a uma retomada do diálogo com os EUA e à emissão de sinais de que os chineses estão preparados para ser mais cooperativos em temas caros aos norte-americanos. Além disso, prossegue a redefinição das relações com a Rússia e são feitos intentos de caminhar no aprimoramento das relações econômica, política e fronteiriça com a Índia. Xi Jinping reiterou o caminho do desenvolvimento pacífico, mas alertou que a China não sacrificará seus interesses nacionais, nem aceitará rever seus direitos

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legítimos. No plano comercial, é muito possível que a China se mova na direção de uma participação na Parceria Transpacífica e que passe a integrar mega-acordos de última geração, movendo-se em direção a uma nova fase em seu processo de abertura e integração na economia global.

Mas por cima dessas distintas dimensões do debate uma questão central parece colocar-se: a da globalidade das reformas. A natureza da agenda reformista hoje parece não mais admitir o parcelamento das reformas e a separação entre o econômico e o político. Ligada a essa questão está a do gradualismo na implementação das reformas. Como em todo processo dessa natureza é impossível controlar todas as variáveis e determinar a priori o curso dos acontecimentos, mesmo para o PCCh. O processo de reformas é por definição um processo de desequilíbrios os quais devem ser corrigidos à medida que o processo caminha. Assim, embora o processo possa, dentro da tradição chinesa, ir sendo implementado através de experiências localizadas e de forma gradual, mantendo-o sob controle, a natureza das reformas necessárias e a profundidade do processo indicam que, não só acidentes de percurso poderão ocorrer, como o processo poderá ganhar um ritmo próprio, fora do controle de Pequim. Xi Jinping em seus pronunciamentos iniciais procurou justamente sinalizar a necessidade impostergável de reformas e sua determinação para preservar a estabilidade. É a reiteração do legado de Deng Xiaoping em cuja estátua, em Shenzheng, Xi Jinping colocou flores, em seu périplo pelo sul em favor das reformas, reeditando a histórica viagem de Deng.

Os primeiros slogans e fórmulas começam a surgir para definir o discurso da quinta geração: os três erres, reforma, rejeição e rejuvenescimento e a realização do sonho chinês. A reforma e a abertura não podem parar, é preciso rejeitar a extravagância e os desmandos e o rejuvenescimento da China a projetará rumo a seu objetivo de transformar-se numa potência desenvolvida e realizar o sonho chinês. Por seu turno, Li Keqiang comparou o processo de reformas a uma partida de Go onde devem ocorrer movimentos no centro e nas beiradas do tabuleiro, em Pequim e nas Províncias. Todas essas fórmulas poderiam ser resumidas, como o fez Xi Jinping, na expressão “a única rota para o socialismo com características chinesas é o processo de reforma e abertura”.

Como em todo período inicial o objetivo dos líderes é consolidar sua posição e sinalizar suas prioridades no rumo do Terceiro Pleno do Comitê Central do Partido que, desde o famoso Pleno de 1978, é considerado o momento decisivo para cada geração dizer a que veio. Essa reunião está agora marcada para novembro de 2013 e a expectativa é que nela sejam anunciados os planos para levar adiante as reformas. Agora só nos resta esperar que a quinta geração tenha, mais do que a quarta, capacidade para levar adiante as transformações necessárias para a China.

A estratégia petrolífera chinesa: o avanço da China nos países perimetrais » Política Externa

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A estratégia petrolífera chinesa: o avanço da China nos países perimetrais

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por Felipe Santos em 12/09/2013

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O apetite chinês por petróleo e a reação dos países periféricos quanto às investidas chinesas têm alterado relativamente a dinâmica da geopolítica regional. O dragão asiático tem veementemente investido em produção e exploração de óleo e gás natural, tendo como estratégia principal a entrada em mercados em que a presença europeia e americana ainda permanecem incipientes. A China, menos preocupada com questões humanitárias e aspectos políticos democráticos como precondição para realizar negócios, tem ativamente investido em países como Sudão, Irã, Venezuela, dentre outros. O gigante asiático é criticado por países desenvolvidos por suas estatais empregarem no exterior mão de obra chinesa e terem baixos padrões de segurança ambiental. O fato de os chineses evitarem a concorrência direta com as grandes petrolíferas tem resultado em vantagens à entrada de estatais chinesas em países que em geral são ignorados pelas principais economias globais.

This article aim to investigate the energy approach of PRC government towards its neighboring countries, including the motivations and implications of this policy in the region. This article will analyze the Chinese peaceful ascent and the causes and consequences of its energy foreign policies in many regions of the great continent, such as the Central Asian States, South Pacific states and the outcomes of the Russian, American and Chinese delicate relation in the energy field.

Introdução

As estratégias energéticas entre países definem os poderes das nações. A partir do momento em que o acesso a reservas energéticas é estabelecido, eles adquirem soberania e certa competência para definir suas estratégias de desenvolvimento.

Ainda no início da década de 1990, a China era autossuficiente na produção de petróleo. Hoje esse quadro se reverteu, tornando-se importador líquido desta matéria-prima. Atualmente, não se sabe com exatidão qual é o nível de dependência, acredita-se que até 2020, a China precisará suprir 60% de sua demanda por petróleo e 30% da demanda por gás natural.

No período de 1998 a 2008 o crescimento do consumo por petróleo cresceu em média cerca de 6,3% por ano. Em dez anos, o consumo de petróleo quase duplicou, de forma que em 1998 era 4.228 milhares de bpd passando para 7.999 milhares de bpd ao ano, em 2008. A produção doméstica não acompanhou o crescimento da demanda, de forma que em 10 anos aumentou em média 1,6% de 3.212 milhares de bpd (1998) para 3.795 milhares de bpd (2008).

Desde sua abertura em 2002, o apetite chinês por petróleo, como é evidenciado pelo gráfico, e a reação dos países periféricos quanto às investidas chinesas têm alterado relativamente a dinâmica da geopolítica regional.

O dragão asiático tem veementemente investido em produção e exploração de óleo e gás natural, tendo como estratégia principal a entrada em mercados onde as presenças europeia e americana ainda permanecem incipientes.

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A China, menos preocupada com questões humanitárias e aspectos políticos democráticos como precondição para realizar negócios, tem ativamente investido em países como Sudão, Irã, Venezuela, dentre outros.

O gigante asiático é criticado pelos países desenvolvidos por suas estatais empregarem no exterior mão de obra chinesa e terem baixos padrões de segurança ambiental. O fato de os chineses evitarem a concorrência direta com as grandes petrolíferas, tem resultado em vantagens à entrada de estatais chinesas em países que em geral são ignorados pelas principais economias globais.

Fonte das importações chinesas de petróleo

A tabela ilustra a atual tendência do consumo chinês de petróleo. Observa-se que a dependência chinesa por petróleo se concentra no Oriente Médio, enquanto países africanos, Ásia Central e Rússia também participam diversificando a dependência chinesa com os países árabes.

Este estudo concentra seus esforços em entender as relações chinesas com seus países periféricos, compreendendo as relações com a Rússia, Irã e os países da Ásia Central. Analisa-se também a ameaça do Estreito de Malaca e as comunicações marítimas.

Política petrolífera nos países periféricos

O colapso da União Soviética no início da década de 1990 modificou e revelou uma nova ordem no continente asiático, ou seja, a reorganização dos Estados da Ásia Central. Essa região é composta por cinco Estados, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão, a maioria faz divisa com outros países, como Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e China, totalizando aproximadamente 3 mil quilômetros de fronteiras.

A grande quantidade de recursos naturais nesta região, principalmente petróleo e gás natural têm gerado disputas acirradas por campos produtores de países como China, Estados Unidos e Rússia. Todos buscam controlar as reservas e tentam aumentar sua influência nesta estratégica região. Outros Estados como Irã e Turquia sempre tiveram influência nesta área, devido a traços religiosos e a influência cultural que predominam até hoje na cultura destes países.

Desde o incidente de setembro de 2001 nos Estados Unidos, os americanos têm utilizado o contexto de ameaça terrorista para prevalecer na região. Alinhados, China e Rússia temem esta crescente ocupação americana na região e compartilhado esforços para manter o controle de ameaças terroristas na Ásia Central.

A China visando estabilidade social na Província de Xinjiang, região no Noroeste Chinês, com grande parcela muçulmana, tem realizado muitos esforços para manter a integridade territorial, temendo e evitando movimentos separatistas que se formaram na região Noroeste Chinesa (Marketos, 2009).

Desconfia-se que a minoria Uigur tenha participado de treinamentos em campos de milícia da Al-Qaeda no Afeganistão. O governo chinês teme essa influência separatista na região, e por isso, vem reforçando a segurança (ANDREWS-SPEED, LIAO, DANNREUTHER, 2005:56).

De acordo com Thrassy N. Marketos, os interesses da República Popular da China (RPC) na Ásia Central se concentram prioritariamente em duas questões:

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os movimentos separatistas de influência muçulmana;

manter a Ásia Central como um “quintal estratégico e estável” e, ultimamente, fazer da região fonte primária de diversos recursos energéticos, tornando-se o principal parceiro comercial da China.

Depois do colapso da União Soviética, muitos Estados na Ásia Central tiveram que lidar com disputas de fronteiras com o gigante asiático. A necessidade energética que a China demanda, fez com que a RPC tomasse medidas amenas contra as disputas em troca de segurança e exploração de fontes energéticas. Essa flexibilidade facilitou a entrada de petrolíferas chinesas, permitindo a exploração e prospecção de recursos naturais.

Outro fator decisivo no avanço para a região Centro-Asiática foi a necessidade de reduzir a dependência marítima como via de acesso ao petróleo e gás natural. O rápido avanço chinês é uma investida para dominar a região e garantir o acesso à energia. Observe na tabela a evolução das importações: em 2003, 73% das importações de petróleo eram oriundas do Oriente Médio e África. Em 2008, o total de importações dessas regiões reduziu para 66%, enquanto as importações da Ásia Central em 2008 atingiram 12,3%.

O Cazaquistão foi o primeiro país a se beneficiar do apetite chinês. É o país com a maior reserva comprovada na Ásia Central com cerca de 5,3 bilhões de toneladas de petróleo. Em 2005, o governo chinês adquiriu a companhia nacional de petróleo do Cazaquistão, Petrokazakhstan Inc., por US$ 4,18 bilhões. O negócio incluiu também a exploração da reserva Kumkol South, e desde 1997 o total de investimentos chineses no país atingiu mais de US$ 10 bilhões.

O projeto pioneiro no Cazaquistão foi a construção de um oleoduto que sai de Atyrau (Oeste de Cazaquistão) para Alashankou (na Província de Xinjiang, China). Este oleoduto está em operação desde 2006, e transporta 10-20 milhões de toneladas de petróleo por ano. Esse projeto hoje consegue fornecer mais de 10% da demanda do mercado chinês, os investimentos neste projeto totalizaram US$ 700 milhões. O duto possui 1,436 quilômetros de comprimento e é também utilizado pela Rússia, através de suas operações no Campo Kumkol Norte, explorado pela russa Lukoil Companhia de Petróleo.

No Quirguistão, a China já destinou US$ 970 milhões em ativos militares em agosto de 2009, investiu outros US$ 700 milhões construindo um oleoduto conectando Cazaquistão e Quirguistão. Este oleoduto tem 3.000 quilômetros, sendo que 240 quilômetros estão localizados na Província de Xinjiang, local em que o óleo é refinado e processado. Adicionalmente, a China investiu US$ 900 milhões em infraestrutura, com linha férrea e rodovia ligando o país à China, além de ter assinado um acordo de compromisso para investir mais US$ 9 bilhões para desenvolver infraestrutura de dutos de petróleo e gás.

Apesar de todos os investimentos em outros países, a região mais proeminente em gás natural é o Uzbequistão, que estabeleceu acordo com a China em julho de 2005. O negócio é estimado em US$ 1,5 bilhão, deste total US$ 950 milhões em formato de empréstimo de longo prazo, e um adicional de US$ 350 milhões como empréstimo de curto prazo. O país possui reservas de gás natural equivalentes a 1,2% do mundo. Deste acordo, US$ 500 milhões serão para desenvolvimento energético, baseado em contratos assinados pelas duas partes, que incluem a exploração e o desenvolvimento de cinco blocos de petróleo na costa do Mar de Aral.

O Turcomenistão é, hoje, uma das últimas regiões inexploradas, com promissoras reservas de gás natural. Foi assinado entre ambos os países um contrato de 30 anos com o objetivo de fornecer 30 bilhões de metros cúbicos de gás entre 2009 e 2039. Os ativos serão transferidos por um gasoduto que será posto

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paralelamente ao já existente duto no Cazaquistão, o Atasu-Alashankou duto, que atravessará os territórios do Tajiquistão.

A agressividade dos investimentos chineses não ficou restrita apenas na Ásia Central. Contratos com os russos estão evoluindo rapidamente, apesar de sua relação instável. Especialistas caracterizam essa relação como natural e sensível. Natural pela quantidade de reservas energéticas que a Rússia possui, e sensível, pelos conflitos históricos que ambos os países tiveram durante muitos séculos.

A relação sino-russa foi restabelecida com os acordos realizados em 2001 para definir os parâmetros geográficos de suas fronteiras. A Rússia tem usado o oleoduto de Atasu-Alashankou para exportar a maioria de sua produção petrolífera para a China. Petróleo oriundo da parceria de exploração no bloco Kumkol, no Norte do Mar Cáspio, participação que foi adquirida quando o governo chinês comprou a Petrokazakhstan Inc. em 2005.

O Projeto ESPO, na sigla em inglês East Siberian Pacific Ocean (Oceano do Pacífico Leste Siberiano), é considerado o maior desafio das relações bilaterais sino-russas. O oleoduto está em operação desde 2009. O objetivo deste empreendimento é fornecer energia para os mercados do Leste Asiático, Japão, Coreia e China.

Este novo oleoduto conectou a China com a ESPO e o transporte de petróleo é estimado em 300 mil barris por dia. O contrato foi assinado no início de 2009 pelos dois países com prazo de operação de 20 anos. O início da construção desse oleoduto foi em maio de 2009 no território chinês e seu término em setembro de 2010.

No território russo, a extensão para o terreno Chinês é de 64 quilômetros realizada pela Transneft, de Skovorodino, para o Rio Amur na fronteira entre ambos os países, e a chinesa, Corporação Nacional de Petróleo, irá construir a outra sessão que ligará o duto com a cidade de Daqing, com extensão de 992 quilômetros.

O interesse da China pelos seus países periféricos não se restringe à sua demanda por energia, mas também por outras questões de suma importância para sua estabilidade política e integridade territorial.

A China ao apoiar o desenvolvimento dos Estados da Ásia Central indiretamente reduz a taxa de ocupação dos portos nas principais Províncias do Leste Chinês e ao mesmo tempo abre mercados consumidores nos seus países periféricos, possibilitando a entrada dos produtos manufaturados chineses e balanceando o hiato de desenvolvimento que existe entre o Leste e o Oeste Chinês.

Há também outras questões, como segurança nacional, em que os interesses das duas potências regionais e o poder unipolar americano tem se convergido, o combate ao terrorismo nacionalista islâmico. Este que tem sido um problema evidente na Província de Xijiang. Nesse aspecto existe uma cooperação múltipla entre os três países.

O domínio e a influência que a China exerce na região poderá estabelecer uma rota comercial barata, rápida e segura para os bens energéticos do Oriente Médio e ao mesmo tempo poderá estabilizar e proteger as fronteiras do Oeste Chinês. Sem mencionar que o preço desta energia transportada por oleodutos e gasodutos possibilita economias entre US$ 1-2 dólares por barril de petróleo quando comparado ao uso de transporte marítimo (Marketos 2009, p. 20).

Em relação à investida americana na Ásia Central, a China e a Rússia compartilham a mesma visão, ao verem que a estratégia americana na região visa “contenção”. Esta estratégia foca em reduzir ou limitar a

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influência de ambos os países, tentando competir com a Rússia e a China. Os EUA têm se esforçado para explorar e controlar o acesso a recursos naturais na região, estando presente no Afeganistão e no Paquistão, que de uma maneira ou de outra, é uma forma de conter a integração logística para o oeste, Thrassy N. Markets, menciona em sua análise p. 86

They believe that the United States exploited the post-9/11 environment to establish strategic supremacy in the region, such as Central Asia, where previously the United State was not a major player. In contrast, Russia is viewed as a much lesser power than the Soviet Union and therefore a country with which China needs to cooperate in order to offset US influence. Together through the SCO they have enough strength to resist US penetration in Central Asia, something they could not have done separately.

A entrada americana nesta região ainda é feita via os mecanismos de mercado, especialmente nos setores de recursos naturais e tem também, influenciado sua posição através de concessões militares. A China percebeu a necessidade de manter uma relação íntima com a Ásia Central a fim de proteger suas fronteiras vulneráveis, como as Províncias de Xinjiang e do Tibete. Ambos os países temem a presença americana na região, mas a China também se preocupa com a possibilidade da Rússia interagir mais com o Ocidente, e com isso prejudicar os objetivos chineses na região.

As relações sino-iranianas

Segundo as lições de história, o império Persa e o império Chinês sempre tiveram grande importância e influência nas culturas das mais variadas regiões do globo. Alguns especialistas tendem a dizer que o sonho das relações bilaterais sino-iranianas é restabelecer a rota da seda. A China desde o início do atual século tem demonstrado maior apetite energético, e o Irã com sua preponderância histórica, ambos, sinalizam que querem reativar seu status histórico, como uma forma de reconstruir as condições do passado.

O Irã possui peculiaridades que são essenciais para a compreensão desta análise, possui relativamente grande população, capacidades econômicas formidáveis, produção energética expressiva, posição geográfica estratégica e grande influência no mundo muçulmano. Suas condições evidenciam este país como elemento-chave em qualquer tentativa de controlar ou iniciar um processo de paz nesta região.

O restabelecimento das relações diplomáticas entre Teerã e Beijing ocorreu em 1971, quando o Irã reconheceu a legitimidade do governo chinês e abriu sua Embaixada na capital chinesa neste mesmo ano. O interesse de ambos os países convergia para um inimigo comum no passado, “Moscou”.

As relações bilaterais entre Irã e Estados Unidos ficaram deterioradas com a Revolução Iraniana, seguida da guerra entre o Irã e o Iraque. Desde a Revolução Muçulmana, o governo iraniano se tornou teocrático, com vocação populista. Em contraste o governo chinês implementou reformas econômicas, adotou princípios de ascensão pacífica e declarou uma política externa independente e em muitos aspectos alinhada com os interesses americanos.

Nesta relação triangular, os Estados Unidos agem de forma a comprimir e ao mesmo tempo trabalhar como um fator potencializador. Os embargos unilaterais americano corroeram as relações iranianas com o restante do mundo, mas ao mesmo tempo, forçaram o Irã a procurar o Leste Asiático como alternativa econômica, o que indiretamente beneficiou, em especial, a China. Essa atitude unilateral americana criou oportunidades para que a China entrasse livremente no mercado iraniano, especialmente em participações nos setores energéticos deste país.

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As relações sino-iranianas concentram-se em setores como energia e militar. A China se situa como principal fornecedora de armamentos convencionais e mísseis balísticos, e é hoje a maior compradora de produtos energéticos deste país, principalmente gás e petróleo cru.

No ano de 2006, Irã se tornou o primeiro fornecedor de petróleo para o mercado chinês, fornecendo mais de 15% da demanda, mas em 2009, Arábia Saudita se tornou o primeiro exportador de petróleo para a China.

O petróleo tem maior importância nesta relação, mas o gás natural tem também grande parcela neste comércio bilateral. O Irã exporta para a China gás LGN, pois ambos assinaram um contrato estimado em US$ 20 bilhões de dólares, com termo de 25 anos, iniciado em 2009.

Para viabilizar o transporte e a importação massiva de petróleo e gás do Irã, como também de outros países da região, a China está construindo terminais portuários em Fujian, Guangdong e Shanghai. Além disso, ao acompanhar investimentos em gás liquefeito, negócios no segmento naval e na construção de navios têm se consolidado. Com isso, Dalian Shipbuilding Industry Corp. fechou contrato com a iraniana Oil Tanker Company para construção de 35 navios tanques.

Beijing e Teerã compartilham interesses em muitos projetos que permeiam a Ásia Central e o Oriente Médio, procurando alternativamente uma rota segura capaz de evitar as rotas marítimas de comunicação, atualmente dominadas pelos EUA. Entre muitos projetos, os principais são o Yadavaran-Sinopec, o duto Bandar Abbas – um duto que poderá interligar Irã com o duto do Cazaquistão no Mar do Cáspio –, e o duto Neka-Sari – que sairá do Irã, atravessando o Paquistão chegando à Índia (duto IPI), onde a China indiretamente poderá se beneficiar.

Desde 2004, o projeto da reserva de petróleo Yadavaran tem estado sob suspeita de ser um memorando militar, existindo dúvidas sobre sua real característica energética. No dia 18 de março de 2010, a chinesa Sinopec e o Irã assinaram um acordo de US$ 2 bilhões para desenvolver o poço de petróleo Yadavaran. A rede de notícias oficial do Irã declarou que o atraso no acordo se deveu a questões comerciais, não tendo nenhuma relação controversa nuclear. No período o governo chinês não realizou nenhuma declaração devido às sanções que estavam sendo impostas a Teerã, lideradas pelos EUA em 2010.

O projeto será desenvolvido pela Sinopec em duas fases. A primeira produzirá 86 mil barris diários, por um período de quatro anos. A segunda adicionará mais 100 mil barris diários de produção para serem desenvolvidos nos três anos seguintes à conclusão da primeira fase. O bloco Yadavaran tem uma potência de produção de 300 mil barris diários de petróleo cru, com 3,2 bilhões de barris de reservas recuperáveis e reservas recuperáveis de gás estimadas em 80 bilhões de metros cúbicos.

O duto do Mar Cáspio para o Cazaquistão é um projeto em que Beijing pretende conectar o petróleo de Teerã para o Mar Cáspio, e depois através do Cazaquistão entregar esse petróleo para o mercado Chinês. O projeto ainda não evoluiu devido aos conflitos existentes entre a divisão do Mar Cáspio, uma disputa entre a Rússia, Irã, Cazaquistão, Turcomenistão e Azerbaidjão.

Nenhum acordo foi firmado devido a oferta atual instigada pela Rússia, o MML10 (Modified Median Line) que difere da proposta iraniana. Além disso, as recentes rodadas de sanções realizadas pelos EUA e pela ONU deixam o Cazaquistão numa situação desconfortável frente aos interesses americanos, apesar de haver grande interesse do Cazaquistão em reduzir sua dependência com a Rússia.

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O duto Neka-Sari, concluído em 2003, é um consórcio de empresas chinesas liderado pela Sinopec e CNPC, que transporta petróleo cru russo do Mar do Cáspio até o mercado iraniano. Em 2005, CNPC ganhou um leilão para desenvolver o bloco Khoudasht no Oeste iraniano.

O principal obstáculo à relação sino-iraniana é a hegemonia americana. Os interesses americanos e europeus, além de pouca transparência nas negociações entre os dois países, também contradizem o discurso chinês de ascensão pacífica. Outros acreditam que o volume dos negócios realizados entre esses dois países é tão enorme que dizem distorcer os preços de petróleo nos mercados internacionais (Marketos, 2009:84).

As recentes investidas americanas contra o Irã têm, no curto prazo, indiretamente reestruturado as relações bilaterais entre China e Irã. Os Estados Unidos têm pressionado a China através de outros mecanismos para forçá-la a colaborar com as intenções americanas de acabar com o governo teocrático no Irã.

Neste período de sansões econômicas impostas pelas Nações Unidas, Estados Unidos e alguns países do continente europeu, como contramedida à Arábia Saudita têm aumentando sua produção para viabilizar os embargos econômicos no Irã. Muitos diplomatas no Oriente Médio sugerem que Beijing no curto prazo irá de certa maneira colaborar com as sansões impostas pela ONU, mas no longo prazo a China irá certamente favorecer o Irã.

O duto IPI e o Estreito de Malaca

A China e a Índia obviamente, devido a suas densidades demográficas, assumirão em um futuro próximo a liderança no consumo energético. Ambos os países estão sujeitos a um bloqueio naval nas ilhas das regiões sul ou leste do Mar da China ou no Estreito do Malaca.

O Estreito do Malaca tem uma distância de 2,4 quilômetros de largura máxima, é o ponto de trânsito mais movimentado e estreito, onde diariamente circulam 50 mil navios. Todos os dias, 11 milhões de barris de petróleo passam por ele. Um acidente ou um ataque terrorista em uma região como esta poderia facilmente bloquear a passagem e tornar a rota caótica.

A China considera o Paquistão como essencial na rota da seda como também estratégico para viabilizar acesso a Ásia Central, região repleta de riquezas e insaciável por negócios. Rota comercial que o Paquistão nega para a Índia, independente das intervenções motivadas pelos interesses norte-americanos na região. Não obstante, o Paquistão é também capaz de fornecer acesso à energia pelo mar ou terra, para países como Indonésia, Malásia e Tailândia.

Existe enorme interesse desses países, como também de muitos outros na construção de um duto onde China e Índia iriam se beneficiar, o projeto IPI (Irã-Paquistão-Índia) pretende interligar esses três países dando acesso ao petróleo produzido no Irã através do Paquistão.Mais de 10 anos se passaram, e muitas rodadas de negociações foram realizadas, mas até o momento nada foi concluído. Desde 2001, o Paquistão tem sofrido sérias ameaças à sua segurança nacional, principalmente desde que os EUA se estabeleceram na região, tentando “promover estabilidade e combater o terrorismo”. Permeado por incertezas, a insegurança no Paquistão impede a evolução de um acordo, onde China e Índia não definem uma agenda concreta que viabilize o desenvolvimento desta rota indispensável para o desenvolvimento de ambas as nações.

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O Irã e o Paquistão já assinaram no dia 23 de maio de 2009 em Teerã, um acordo no valor de US$ 7,5 bilhões, em que ambos os presidentes, o iraniano Mahmud Ahmadinejad e o paquistanês Asif Ali Zardari, concordaram em comercializar gás natural oriundo do Irã. No ano seguinte, em fevereiro de 2010, os dois países adicionaram artigos ao acordo dando abertura para a participação da China e da Índia no projeto a qualquer momento do seu desenvolvimento.De acordo com um especialista internacional da Universidade de Pequim, o professor Zhang Xizhen, “China must seek a faster, cheaper, and safer oil route than the Malacca Strait and the Thai canal is an important option” (Lam, 2009:233).

A geografia e a instabilidade política do Paquistão são os principais estrangulamentos que enfraquecem a concretização do projeto. Além disso, a complexidade política no Irã também favorece às incertezas neste pacto, inviabilizando o compromisso de países como China e Índia na evolução deste projeto.

Com tantos impasses, os chineses enxergaram outra possibilidade que há de convir com suas demandas iminentes. A fim de evitar a insegurança nas rotas marítimas, existem algumas opções, como por exemplo:

a construção de um oleoduto através do porto paquistanês de Gwadar para a Província de Xinjiang, no Noroeste Chinês;

a construção de um canal similar ao do Panamá na Tailândia,

a construção de gasoduto e oleoduto que sairá de Myanmar chegando na Província de Hunan.

Uma abordagem cooperativa “militar-energética” tem sido discutida através da criação do “Canal Panamá Asiático”, seria um projeto que atravessaria o Kra Isthmus, e depois poderia prosseguir via mar até seu destino final.

A primeira opção não evoluiu devido aos problemas políticos e da carência de segurança na região. Já a segunda opção tem viabilidade, mas os problemas políticos que a Tailândia tem enfrentado nesta última década, sinalizam quão delicado pode se tornar um investimento chinês dessas proporções. Dessa forma, os chineses optaram pela terceira opção que consequentemente evitará o trânsito no Estreito de Malaca, garantindo a entrega segura de energia para o gigante asiático.

O projeto chinês e Myanmar conectará o porto de Sittwe a Kunming, capital da Província de Yunan, na região Sudoeste chinesa, possibilitando um atalho de cerca de 1.200 quilômetros, tornando esta rota relativamente mais segura, esse acordo é de 25 de dezembro de 2009.O acordo entre estes países para a construção do gasoduto e do oleoduto foi entre a China National Petroleum Corporation (CNPC) e o governo de Myanmar, em que a CNPC irá desenvolver exclusivamente o projeto, construir e operar os dutos. O governo de Myanmar irá prover a segurança de toda a extensão desta linha, que irá percorrer toda costa oeste deste país através do estado de Arakan chegando em Kuming, na Província de Yunan.

As construções foram iniciadas em outubro de 2009, com a inauguração de um porto além dos dutos com extensão de 771 quilômetros. A construção foi inaugurada pelo primeiro-ministro chinês no dia 4 de junho de 2010, o projeto está estimado num total de US$ 2,54 bilhões de dólares, sendo que US$ 1,5 bilhão para o oleoduto e US$ 1,04 bilhão para o gasoduto.

Considerações finais

A China pela primeira vez conseguiu sucessivamente assegurar reservas energéticas na Ásia Central. Suas motivações estão abertas a discussões, destacando-se o desenvolvimento das regiões oeste da China, que

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resultará na estabilidade doméstica e regional. Paralelamente, iniciou-se o restabelecimento da antiga “rota da seda”, abrindo as portas para o início de um projeto de longo prazo que determinará uma rota alternativa energética (comercial) para o mercado europeu e vice-versa.

Grupos étnicos extremistas e movimentos separatistas nas Províncias de Xinjiang e Tibete, fortalecem a necessidade da China em expandir suas relações com a Ásia Central. A China se preocupa com possíveis manifestações nestas regiões, justificadas pelos movimentos étnicos em março de 2005 e abril de 2010 no Quirguistão, como também os movimentos separatistas que ocorreram em Xinjiang em julho de 2009.

A relação diplomática russo-chinesa é caracterizada como natural e sensível. A entrada americana na região da Ásia Central tem criado um ambiente mais propenso para cooperação de ambos os países, tentando evitar a estratégica de contenção implementada pelos EUA na região. Sua presença no Afeganistão e no Paquistão não é bem vista pelos dois países.

A decisão chinesa em construir o duto paralelo de petróleo e gás em Myanmar tem grande embasamento. O governo chinês tem maior confiança no governo de Myanmar em prover segurança no seu país para os dutos, realidade que difere quando se compara com o governo do Paquistão. O Paquistão, apesar de sua posição estratégica, não possui nenhum recurso natural para oferecer à China, desta forma a urgência na construção do duto portuário Gwandar é irrelevante. Além disso, os dutos Arakan-Yunan terão maior utilidade no transporte de petróleo e gases por navios-tanques chineses de regiões como Leste Africano e Oeste Asiático, sem contar com a produção de gás que Myanmar irá fornecer ao gasoduto.

Outros assuntos de relevância como a confrontação do Irã com o Ocidente, devido ao seu controverso programa nuclear e as recentes sansões impostas pela ONU, complementadas pelas sansões europeias e do próprio congresso americano impostas a empresas americanas que faziam negócios neste país, conformam o abandono da China pelo projeto IPI.

A apatia chinesa pelo acordo de Não Proliferação Nuclear sinaliza que a China não deve cooperar com as intenções americanas de minimizar as capacidades econômicas do Irã no longo prazo. A China nunca se posicionou ou sequer participou deste ambiente de disputa nuclear, onde Beijing jamais se pronunciou a respeito de seu vizinho Coreia do Norte, uma das razões, provavelmente, são os desacordos que a China e os EUA têm sobre a ilha de Taiwan.

A China pela primeira vez conferiu sucesso no transporte de energia para seu país, caminho que é capaz de evitar as habilidades de ataques das frotas de navios americanos. Apesar de ainda ser possível interceptar navios chineses que fazem transporte de energia de regiões estratégicas como o Oriente Médio, África e América do Sul.

A discussão sobre o reativamento da rota da seda, e, consequentemente, a construção de vias e canais de transporte de energias (que sairiam de países como Turquia, Irã, Iraque, Arábia Saudita e inevitavelmente atravessariam regiões que hoje sofrem tremenda intervenção externa, como Afeganistão e Paquistão) é de significante importância e merece grande atenção para a evolução das análises geopolíticas.

A ascensão da Índia e da China como gigantes econômicos irá, irreversivelmente, viabilizar esse processo num futuro incerto, região que esteve nesta década passada sob intensa intervenção. O desfecho deste episódio irá determinar o futuro do desenvolvimento da economia global e irá por fim, acabar com a hegemonia Ocidental de grandes impérios do passado.

Invoco aqui, aos mais variados especialistas em geopolítica brasileiros a iniciar uma investida nos estudos desta região, para podermos tecer nossos comentários e com a responsabilidade de primeira nação

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multiétnica, deixar a sociedade a par dos interesses que o Ocidente tem empregado nesta região, desde a Segunda Guerra Mundial.

Notas

[1] A produção doméstica de petróleo está estagnada já por um bom período de tempo, como pode ser observado no apêndice 1. ↑

[2] Phili Andrews-Speed, Xuanli Liao and Roland Dannreuther. The Strategic Implications of China’s Energy Needs. The International Institute for Strategic Studies p. 7. ↑

[3] Dan Blumenthal. Concerns with Respect to China’s Energy Policy. Disponível em: http://www.aei.org/docLib/20080723_ChinaEnergyStrat.pdf ↑

[4] Minoria étnica em que a religião muçulmana é predominante, no noroeste chinês. ↑

[5] O crescimento da demanda por gás natural na China tem sido em média 7,8% ao ano. ↑

[6] Page, The Wall Street Journal “Russia Oil route Will Open to China”: acessado em 02 de setembro de 2010. ↑

[7] Oil & Gas Journal (PennWell Corporation), p. 107 Watkins, Eric. “China to Begin Construction of 992-km ESPO Extension”: acessado em 16 de maio de 2009.↑

[8] National Oil Corporation.↑

[9] A Turquia tem também importância neste processo, mas como esse artigo não foca nas relações entre Turquia e China, não iremos analisá-las.↑

[10] Reativar a rota da seda e ter influência cultural como no antigo império Persa.↑

[11] Em que os EUA ainda participavam na retaliação da expansão comunista.↑

[12] O governo iraniano adotou medidas econômicas estatistas alinhadas com uma ideologia religiosa nacionalista.↑

[13] A imposição de embargos econômicos, abriu uma oportunidade para países como China, para explorar livremente o mercado de energia iraniano sem a disputa direta com outros países.↑

[14] CALABRESE, John; China and Iran: Partners Perfectly Mismatched, disponível em : http://www.jamestown.org/uploads/media/Jamestown-ChinaIranMismatch.pdf. ↑

[15] China’s Sinopec, Iran link Yadavaran Deal, 18/03/2010, disponível em: http://hi.baidu.com/aromacn/blog/item/

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0634a80a013e2c1395ca6b18.html.↑

[16] FISHELSON, James; From the Silk Road to Chevron: The Geopolitics of Oil Pipelines in Central Asia,12/12/2007, disponível em: http://www.sras.org/geopolitics_of_oil_pipelines_in_central_asia. ↑

[17] CALABRESE, John; China and Iran: Partners Perfectly Dismatched. ↑

[18] Através da liberdade de expressão, valorização do RMB e liberdade dos povos do Tibete e Xinjiang. ↑

[19] SOLOMON, Jay U.S. Enlists Oil to Sway Beijing’s Stance on Tehran. The Wall Street Journal, 20/10/2009. Disponível em: http://online.wsj.com/article/SB125590100370392905.html.↑

[20] O jogo de interesses nesta região tem dimensões históricas, estratégica para o restabelecimento da rota da seda, caso seja reativada, a rota marítima perderá importância significativa. ↑

[21] BLANK,Spephen . China Hangs Fire on Iran-Pakistan pipeline. China Business 09/03/2010.↑

[22] Um pequeno feto de terra que passaria pelo sul de Bangkok chegando a Phuket.↑

[23] A Tailândia sofreu golpe militar em 2006, e hoje existe uma disputa entre os partidos amarelo e vermelho, conflitos que muitas vezes se tornam violentos. ↑

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O Novo Japão rumo a 2020 » Política Externa

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O Novo Japão rumo a 2020

por Naoki Tanaka em 13/09/2013

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Desde que passou a ser governado por Shinzo Abe, em dezembro de 2012, o Japão entrou numa sequência de ambiciosas reformas econômicas e culturais com o objetivo de retomar o crescimento interrompido há quase duas décadas. Entre os objetivos do governo estão atingir até 2020 um orçamento equilibrado e acabar com a cultura corporativista que vige no Japão. O artigo faz um resumo desses objetivos.

The New Japan agenda, set up by the Shinzo Abe government that started in December 2012, has among its main goals to make the country get rid of its corporatist culture and to reach a balanced budget until 2020, when Tokyo will host the Olympics. The need for radical changes in Japan started to be more acutely felt after the tragedies of March 2011, when an earthquake and a tsunami resulted in major losses and caused a serious accident at Fukushima nuclear plant. The article is a summary of this agenda.

As tarefas relativas a energia e meio ambiente global se converteram em questões políticas e em oportunidades econômicas a partir de 11 de março de 2011

Após 11 de março de 2011, quando um terremoto e o grande tsunami atingiram o Leste do Japão, tivemos a infelicidade de sofrer graves acidentes nos reatores nucleares de Fukushima Daiichi. Em seguida, todos os nossos 54 reatores nucleares foram paralisados, o que significou o aumento da quantidade de combustíveis fósseis usados nas usinas elétricas do Japão, representando um aumento de 40 bilhões de dólares no custo da eletricidade. Os déficits de balança comercial aumentaram, e o preço do petróleo e do gás natural liquefeito subiram nos mercados globais. Nessas circunstâncias, cortes no consumo de energia e P&D sobre energia renovável se tornaram de importância vital para a sociedade japonesa. Alguns afirmam que o Japão superou duas crises do petróleo nos anos 1970, e a economia do país sobreviveu com base em uma menor dependência em combustíveis fósseis, e que o mesmo acontecerá agora.

Desta vez, entretanto, a situação é diferente. Nas crises do petróleo dos anos 1970, o aumento do preço dos combustíveis fósseis afetou a todos, inclusive os países desenvolvidos. No caso da indústria japonesa, a adoção de métodos de substituição foi possível em razão dos altos índices de investimento. Os setores industriais com alto consumo de petróleo, como a fundição de alumínio e alguns ramos da petroquímica tiveram suas atividades suspensas em território japonês, a produção tendo sido transferida para outros países. Por meio de substituições dessa natureza, a indústria japonesa se tornou menos dependente do consumo de petróleo. Tivemos que levar em conta um novo impulso do lado da demanda.

Cresceu a demanda por produtos japoneses de alta eficiência energética, como pequenos automóveis e produtos elétricos. Foram essas mudanças na demanda global que fizeram com que o Japão se tornasse o Número 1 (O Japão como número 1). Desta vez, entretanto, o alto custo da eletricidade afeta unicamente a indústria japonesa.

Tanto a ciência como as tecnologias devem ser integradas em nossa agenda

A segurança nuclear converteu-se na principal tarefa para o governo de Shinzo Abe. Para controlar o preço da eletricidade, a reabertura das usinas de energia nuclear é indispensável. No entanto, a fim de assegurar sua segurança, novas ciências e tecnologias têm que ser adotadas. Antes de 11 de março de 2011, as grandes empresas produtoras de eletricidade eram responsáveis por seus próprios sistemas de controle. Após os graves acidentes de Fukushima, a Agência de Regulamentação Atômica assumiu o poder de

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proteger a segurança dos reatores nucleares. A fim de se adequar às novas determinações da Agência, novos critérios de segurança vêm sendo introduzidos em cada usina. E, para controlar os reatores de Fukushima Daiichi, novas tecnologias, como a robótica, vêm sendo adotadas. Devo acrescentar algo acerca dos mecanismos de controle das redes inteligentes (smart-grid) de transmissão de energia. Medidas de apoio do tipo tarifas feed-in, com vistas a incentivar a energia renovável, foram introduzidas após 11 de março. Após a adoção dessas medidas, vários tipos de energia renovável (geotérmica, eólica e solar) estarão prontos a entrar em operação. No entanto, para absorver essas novas energias renováveis, um mecanismo de redes inteligentes deve ser introduzido. E, a fim de aliviar a carga dessas redes, serão necessários reservatórios de eletricidade. Prédios residenciais inteligentes equipados com baterias e carros elétricos serão outras maneiras de aliviar essas redes inteligentes. A indústria japonesa tem grande interesse em investimentos em P&D visando novas tecnologias e conhecimentos científicos.

A eficiência tornou-se a prioridade número 1 para a ativação de energias renováveis

Estamos agora no segundo estágio da introdução de energias renováveis. No primeiro estágio, quando uma maior geração de energia se tornou necessária no período caótico que se seguiu ao 11 de março, a energia renovável ganhou prestígio. Agora, entretanto, estamos levando em conta a sustentabilidade de nossa economia. A qualidade e os preços das energias renováveis estão em discussão neste segundo estágio. Do ponto de vista da eficiência, a energia geotérmica apresenta um excelente desempenho. No entanto, no Japão, as fontes termais são locais de recreação e moradia. Os hotéis japoneses localizados nessas áreas resistem à introdução da energia geotérmica. E a Agência de Proteção Ambiental é contrária ao desenvolvimento desse tipo de energia por razões de proteção ecológica. Teremos que encontrar um equilíbrio entre a energia renovável e o meio ambiente.

Serão aplicados critérios para determinar se projetos específicos de energias renováveis têm ou não viabilidade econômica

Os graves acidentes ocorridos em Fukushima Daiichi tiveram um grande impacto sobre o futuro da energia nuclear no Japão. Atualmente, a opção-zero para a energia nuclear vem obtendo apoio crescente. No entanto, a opção-zero traz três tipos de problemas. O primeiro são os altos preços dos combustíveis fósseis. Se os preços da eletricidade continuarem altos, é muito provável que um grande número de empreendimentos manufatureiros transfira para o exterior sua produção. O segundo problema relaciona-se à vulnerabilidade geopolítica do Japão. Se continuarmos tão dependentes dos combustíveis fósseis, a crise no estreito de Hormuz tornará vulnerável o fornecimento de energia em nosso país. Do ponto de vista da segurança econômica, a energia nuclear é indispensável. O terceiro problema diz respeito à postura japonesa quanto a não proliferação nuclear. Entre os países que não possuem armas nucleares, o Japão é o único capaz de produzir plutônio a partir de resíduos nucleares. Esse tratamento especial conferido ao Japão se deve ao Tratado sobre Energia Nuclear firmado entre o Japão e os Estados Unidos. Possuímos grandes quantidades de plutônio que pode ser usado no ciclo de combustíveis nucleares. Caso o Japão escolha a opção-zero, os princípios da não proliferação que deveriam ser aplicados a uma série de países não detentores de energia nuclear irão perder sua força. No caso de o Irã se decidir pelo uso de energia nuclear, o modelo japonês seria de grande importância. A qualquer momento, a IAEA (International Atomic Energy Agency) pode ter acesso, para fins de inspeção, a todas as instalações japonesas. A IAEA tem equipes de peritos lotados em regime permanente em todas as usinas nucleares do Japão, o que garante a transparência do sistema. O Modelo Japonês deve portanto ser preservado. Critérios de viabilidade econômica e política devem ser mantidos nas políticas energéticas que o Japão futuramente adotar.

Métodos de desregulamentação terão que ser empregados nas áreas do fornecimento de energia elétrica e aquecimento

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Quando o Japão se decidiu pela abertura de sua sociedade durante a Restauração Meiji, foi necessária a adoção do capitalismo desenvolvimentista. No processo de alcançar os demais países, foram introduzidos sistemas de painel de comando. Correspondência um a um da sede central com as Províncias e as fábricas eram características desse sistema. No caso da energia, a separação entre eletricidade e gás foi adotada em todo o país e continuou em vigor até 11 de março de 2011. No entanto, da perspectiva da eficiência energética, a eletricidade e o aquecimento a gás deveriam ser fornecidos conjuntamente. Foi necessária a adoção de métodos de desregulamentação com o objetivo de quebrar o corporativismo japonês. A otimização parcial alcançada com o sistema de painel de controle foi escolhida pelo setor industrial japonês. A partir de 11 de março, métodos de desregulamentação vêm sendo intensamente discutidos, resultando na introdução de novos critérios. Estamos ingressando em uma era de alta competitividade.

Tanto a oferta de alimentos quanto a sustentabilidade econômica da sociedade serão postos em questão a partir do ponto de vista da sustentabilidade do meio ambiente global

Antes de 11 de março de 2011, contávamos com a energia nuclear para fazer frente às questões do aquecimento global. Segundo as previsões do governo japonês para 2050, a energia nuclear seria responsável por 50% da eletricidade consumida. Agora, entretanto, essa energia foi substituída por combustíveis fósseis, em prejuízo das metas estabelecidas para lidar com o aquecimento global. Nessas circunstâncias, nossa indústria vem se concentrando no projeto de cidades e prédios inteligentes. Economizar energia se transformou na principal prioridade de nosso setor industrial, uma vez que temos que enfrentar o problema da sustentabilidade. As atividades de P&D vêm centrando nessas questões. No contexto dessas mudanças básicas, novos enfoques vêm sendo adotados também em outras áreas. Da perspectiva da sustentabilidade da sociedade global, os sistemas de fornecimento de alimentos em nível mundial devem ser repensados. A sustentabilidade global vem sendo tratada com foco no fornecimento de energia, redução da demanda por energia e sistemas de fornecimento de alimentos.

A garantia da qualidade dos alimentos terá que ser posta em questão

Os problemas dos alimentos devem ser discutidos levando em conta seus aspectos quantitativos e qualitativos. No passado, o problema da segurança alimentar no Japão se limitava à proteção ao arroz. Em inícios da década de 1990, quando as negociações da Rodada Uruguai sobre liberalização do comércio foram discutidas no Parlamento japonês, o enfoque centrava-se em assegurar quantidades suficientes de alimentos. Para proteger o arroz, foi aprovado um aumento de 700% em sua tarifa. Isso ocorreu há duas décadas. Desde então, aprendemos muito sobre segurança alimentar. Uma das lições foi que tarifas elevadas não bastam para proteger o fornecimento de alimentos. A média etária entre os agricultores japoneses subiu para 66 anos. A regulamentação impunha limites aos novos ingressos originários do setor empresarial japonês. O futuro da produção de alimentos é muito incerto, e nosso acesso a alimentos deve ser estudado a partir de perspectivas mais amplas. Nessas circunstâncias, a qualidade dos alimentos passou também a ser examinada. Quanto à qualidade, as indústrias japonesas contam com boas práticas. Essa é a situação atual com relação ao fornecimento de alimentos. O setor industrial japonês tem capacidade de assegurar a qualidade. Novas dimensões vêm se abrindo para nós.

A otimização ampla de todo o processo de oferta de alimentos será posta em questão

Para que a indústria japonesa possa tratar do processo de fornecimento de alimentos como um todo, todos os fatores da situação devem ser questionados. Essa preparação já vem ocorrendo em diversos setores industriais japoneses. Podemos ver a semelhança com a situação ocorrida na década de 1930, quando Kiichiro Toyoda, fundador da Toyota Motors Co., deu início à produção de automóveis fabricados no Japão. Para montar um automóvel, os materiais e as peças devem ser testados um a um. Se forem encontrados

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problemas, o setor de P&D passará a se concentrar naquela área específica, conforme necessário. No processo de montagem industrial, a coordenação de todos os setores é da maior importância. Após a montagem, qualquer produto deve ser testado em funcionamento. Se o resultado não for satisfatório, o produto deve ser submetido à análise meticulosa. Ao aplicarmos esses procedimentos ao fornecimento de alimentos, temos que examinar a totalidade do processo de sua produção. Sementes, sistemas de produção agrícola, composição nutricional etc. devem ser estudados. Juntamente com a energia, os alimentos são a prioridade mais alta na agenda da sustentabilidade global. No Japão, tanto o setor energético quanto o setor agrícola eram fechados à competição. Essas duas áreas de importância crítica para a proteção do meio ambiente global devem ser abordadas em paralelo.

A fim de atingir uma otimização parcial nas práticas de cada área

O mais comum é que, no primeiro estágio de operações, critérios de otimização parcial sejam aplicados com vistas a assegurar a qualidade. Mesmo no caso de produtos agrícolas processados, desde os agricultores até o acesso dos consumidores, a aplicação da otimização parcial é uma forma comum de gerenciamento da qualidade. Na verdade, o período de validade dos alimentos processados significa um grande desperdício. Para garantir a qualidade dos alimentos, foi determinado que a data de validade seja impressa nos produtos. Os comerciantes têm que descartar os produtos que tenham ultrapassado essa data. Algo está errado. Temos que mencionar o enfoque industrialista japonês. Kiichito Toyoda introduziu o conceito just in time (na hora exata) a fim de reduzir custos. Em seus primeiros tempos, a Toyota Motors Co. não possuía capital suficiente para acumular estoques. Para ele, não havia período de validade. A perspectiva da otimização ampla deve ser adotada no fornecimento de alimentos. A sustentabilidade se converteu na prioridade a ser levada em conta. Na escala global, a otimização ampla deve ser buscada. A indústria japonesa passou a considerar a sustentabilidade no contexto global.

Com vistas à adoção de enfoques movidos pela demanda, a totalidade da conectividade das redes industriais deverá ser questionada

Para tratar do problema dos alimentos em escala global, devemos estudar o processo em sua totalidade, desde os agricultores, passando pelo sistema de produção e distribuição de alimentos até as escolhas feitas pelos consumidores. Os níveis da produção e da distribuição são regulamentados pelo governo. A regulamentação governamental não costuma ser nem eficiente nem consistente. Os grupos de interesses obedecem a essa regulamentação unicamente porque pretendem continuar em operação. Essa regulamentação interrompe a conectividade industrial. Um sistema industrial racional exige a adoção de um enfoque movido pela demanda. Kiichiro Toyoda introduziu um sistema de produção racional em termos da demanda. Segundo ele, os enfoques movidos pela oferta acarretam grandes estoques e posições financeiras vulneráveis. No caso da produção de alimentos, significam descartes e desperdício. No setor de alimentos, novos tipos de conectividade industrial devem ser estudados da perspectiva da sustentabilidade de nossa sociedade global.

A agenda do Novo Japão segundo a Economia Abe

A Economia Abe (Abenomics – Abe+eco-nomics) apresentou algum sucesso em seu primeiro estágio. Além disso, o acesso à TPP (Trans-Pacific Partnership) trará algum grau de liberalização dos recursos econômicos japoneses. No entanto, teremos muitas questões a serem tratadas. Irei apresentar uma série de previsões sobre as tendências futuras da sociedade japonesa. Uma questão importante a ser levada em conta é o envelhecimento da população, um problema que irá afetar também outros países asiáticos. A análise da “sociedade grisalha”, portanto, será de algum interesse para outros países. Tanto o conservadorismo como o liberalismo serão fatores importantes em nossas considerações.

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Redefinir o conservadorismo sob o governo Abe

O LDP (Liberal Democratic Party) vem ocupando um papel de liderança na política japonesa, e costuma ser visto como um partido conservador. Após a Segunda Guerra Mundial, o sistema da Guerra Fria manteve-se por muito tempo no Leste Asiático. Quando o Japão voltou a ser um país independente, após o Tratado de São Francisco, foi necessário dar continuidade à ocupação militar norte-americana, devido à Guerra da Coreia que ocorria a essa época. O Tratado de Segurança Japão-Estados Unidos endossava a independência do Japão, e as lideranças do LDP aceitaram a situação. Desde então, o sistema político japonês vem sendo composto por uma combinação do LDP com JSP, Japan’s Socialist Party. O LDP era favorável aos Estados Unidos, enquanto o JSP favorecia o planejamento social. O sistema da Guerra Fria se refletia na política interna japonesa. Essa foi a razão de o LDP ser considerado um partido conservador. O povo japonês repudiava a inflação verificada após a Segunda Guerra. Uma legislação fiscal foi adotada a fim de alcançar o equilíbrio orçamentário.

No período da reconstrução econômica, foram necessários enormes gastos fiscais, mas o sistema de equilíbrio orçamentário continuou em vigor até 1965, quando ocorreu a primeira grande depressão posterior à Segunda Guerra. Um orçamento complementar foi elaborado, e o déficit orçamentário foi financiado pela emissão de Títulos do Governo Japonês. Essas medidas garantiram o sucesso da recuperação econômica, superando a depressão de 1965. No entanto, após 1965, a emissão de Títulos do Governo Japonês foi incorporada à elaboração dos orçamentos. O LDP desconsiderou o sistema de equilíbrio orçamentário, recusando qualquer compromisso político. Data daí o surgimento dos keynesianos japoneses. O LDP era pró-Estados Unidos e ficou conhecido como um partido liberal, uma vez que seus membros eram favoráveis aos gastos com previdência social. Nos sistemas políticos posteriores à Segunda Guerra, é impossível distinguir o verdadeiro conservadorismo, que é frontalmente contrário aos déficits orçamentários. Hoje, o valor total dos Títulos do Governo Japonês a serem resgatados é enorme, representando o dobro do PIB japonês. A Economia Abe não assume o compromisso de equilibrar o orçamento em um primeiro estágio. Se o preço dos Títulos vier a apresentar uma queda abrupta, seu resgate seria incerto, o que poderia levar ao temor de não pagamento. Uma tal situação poderia resultar em desordem social. O conservadorismo defende a preservação da ordem social. Não conseguimos encontrar esse tipo de conservadorismo entre os membros do LDP e necessitamos de uma redefinição desse termo.

Libertarmo-nos do corporativismo japonês

O corporativismo japonês se refletia na grande diversidade de despesas públicas. Todos os setores industriais e sociais querem estar representados na alocação dos recursos fiscais. O LDP atendia a esses tipos de reivindicações e exigências, configurando o corporativismo japonês. O LDP conseguiu a estabilidade política atraindo grandes votações. O preço dessa estabilidade, entretanto, era a imensa dívida nacional. Para financiar essas reivindicações, foram mantidos os altos impostos para o setor empresarial. Continuou sendo praticada uma alíquota de 40% para a tributação das empresas (incluindo as taxas municipais). Nos países asiáticos vizinhos, como Cingapura, Taiwan, Hong Kong e outros, entretanto, os impostos empresariais caíram para 17%. As indústrias japonesas mais influentes sempre contaram com um sistema de proteção externo muito diversificado, e vêm agora reorganizando seus modelos empresariais e ganhando liberdade para transferir suas instalações industriais para qualquer local do mundo. Os cidadãos japoneses, entretanto, não contam com essa liberdade de movimento. Essa é a crua realidade no Japão. A discrepância entre os setores empresariais e os indivíduos se tornou demasiadamente aguda, e os políticos se recusam a entender a situação. Temos que transformar o corporativismo japonês em algum tipo de gerenciamento social de autogoverno. É hoje da maior importância distinguir entre autoajuda, ajuda

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conjunta e ajuda pública. É necessário dar uma solução para a assimetria verificada nos graus de liberdade conferidos aos indivíduos e aos setores empresariais.

É possível atingir o equilíbrio da balança primária até 2020, quando terão início os Jogos Olímpicos de Tóquio?

Temos a grande sorte de Tóquio ter sido escolhida para sediar as Olimpíadas de 2020, após as do Rio de Janeiro. Temos a tradição de estabelecer metas em nossas políticas. Nos casos em que metas concretas foram estabelecidas, enfoques coerentes tornaram-se possíveis. Em 2020, nove anos terão decorrido após o 11 de março de 2011. Temos que encontrar soluções sustentáveis para as questões de energia e meio ambiente, e também para a sustentabilidade global. A indústria japonesa precisa adotar novas práticas com relação a energia, alimentos e meio ambiente, usando nossas vantagens em termos de P&D industrial. Quanto à sustentabilidade na esfera interna, novas filosofias sociais devem ser formuladas em bases profundas. Esses esforços permitirão que seja alcançado o equilíbrio da balança primária. Passaremos agora a descrever alguns cenários possíveis até 2020. Em seguida, tentarei mostrar quais deveriam ser nossas metas para 2020, assim como os caminhos para chegar até elas

Aplicação de nossos conhecimentos aos países vizinhos do Leste Asiático

Falando francamente, do ponto de vista do Japão, questões territoriais com a Coreia do Sul e a China não eram esperadas em inícios do século XXI. Do ponto de vista do observador externo, suspeita-se que o Japão não tenha a capacidade de enfrentar questões territoriais. Um ponto deve ser mencionado: a recuperação econômica japonesa após 11 de março de 2011. A sustentabilidade do crescimento econômico se transformou em um problema importante para a China e a Coreia do Sul. Houve muitas referências às armadilhas para as economias emergentes. No caso da China, uma outra questão se soma a essas armadilhas: a transição de um regime de partido único para uma economia de mercado. A China, portanto, necessita das lições ensinadas pelas práticas japonesas. A Coreia do Sul não alcançará sustentabilidade caso se atenha ao mercado chinês, e precisa diversificar suas relações com os países do Leste Asiático. O mercado japonês, agora em franca recuperação, será de grande importância para a Coreia do Sul.

As bolhas no Japão, nos Estados Unidos e na China

No presente estágio histórico, a China tem que aprender sobre os processos de bolhas e quebras que ocorrem nas economias capitalistas. No caso da economia japonesa, a grande valorização do yen após o Acordo Plaza de 1985 se converteu em uma das causas da bolha. O yen, que teve seu poder de compra aumentado em termos das moedas estrangeiras, foi aplicado internamente na tentativa de aumentar a demanda interna. Àquela época, o desenvolvimento urbano se converteu na prioridade máxima. Antes, existiam mitos com relação ao preço da terra. Capitais especulativos foram canalizados para a compra de terras, e o aumento nos preços funcionou como garantia nos empréstimos contratados por proprietários de terras. No pico da bolha, caso fosse possível convencer o Imperador a se mudar para Kyoto, a antiga capital do Japão, e a vender o Palácio Imperial, a quantia auferida seria suficiente para comprar todo o estado da Flórida. As bolhas tiveram causas e efeitos. Sua missão era aumentar a demanda interna. Para tal, a demanda por terra deveria aumentar. No caso dos Estados Unidos, a causa foram os empréstimos subprime. Comparei o caso chinês com os empréstimos subprime norte-americanos. Com base nessa comparação, é possível afirmar que há alta probabilidade de a bolha chinesa vir a explodir.

As causas do rápido progresso

Na China, os planos de urbanização foram priorizados. Para melhorar as condições de vida de 800 milhões de trabalhadores rurais, transferi-los para áreas urbanas se converteu na prioridade número 1. Foram

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criadas metas para o crescimento social harmônico. Esse é o pano de fundo das bolhas chinesas. Quando examinamos o fator temporal do estouro das bolhas, menores gastos realizados pelos setores empresariais em razão do aumento dos custos do uso da infraestrutura podem criar maiores possibilidades de isso vir a ocorrer. A ineficiência também é importante, e pode se converter na causa do estouro das bolhas.

Propostas quanto a soluções para o problema do sistema bancário paralelo (shadow banking) chinês

Os governantes chineses devem estar perplexos com o tamanho e a complexidade das práticas do shadow banking. Em julho último, teve lugar em São Petesburgo, na Rússia, o encontro do G20 que reuniu ministros da Fazenda e presidentes dos Bancos Centrais. Nessa ocasião, o problema do shadow banking chinês deveria ter sido um dos principais temas em discussão, o que entretanto não ocorreu, porque os representantes da China afirmaram que a questão não tinha maior importância. As reuniões do G20 foram criadas para tratar as condições econômicas difíceis verificadas após a derrocada do Lehman Brothers. Mas o governo chinês recusou-se a ser colocado como objeto de discussão, mesmo em se tratando de um dos problemas mais importantes a serem examinados no nível do G20, prejudicando as atribuições do grupo.

Da perspectiva do Japão, temos muitas sugestões a oferecer. Citarei alguns temas: como lidar com injeções de dinheiro público em instituições financeiras atravessando dificuldades, os sistemas de supervisão a serem adotados após essas injeções, cooperação internacional em meio a incerteza financeira etc. Nossos fracassos relativos a empréstimos não ressarcidos nos ensinaram algumas lições que podemos compartilhar com outros países. Nosso caminho para o ano 2020 inclui nosso compromisso para com os países vizinhos.

Egito – Crônica de uma revolução em curso » Política Externa

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Egito – Crônica de uma revolução em curso

por Salem H. Nasser em 14/09/2013

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A onda de revoltas que tomariam de assalto o mundo árabe, da Tunísia ao Egito, à Líbia, ao Iêmen, ao Bahrein, à Síria e além, tem causas comuns aos vários processos revoltosos e semelhanças entre eles. Porém, cada revolta seguiu um curso próprio e vai chegando a resultados diversos. Dentre as causas comuns, há aquelas que se repetiam no seio de cada sociedade, de cada país, e há aquelas que acometiam – e o seguem fazendo – o conjunto dos povos árabes como um coletivo, e não mais como Estados ou sociedades singulares. Os males internos, encontráveis em praticamente todos os países árabes, constituem uma lista razoavelmente conhecida: centralização do poder e autoritarismo policialesco, corrupção, pobreza e desigualdade social, desemprego, déficit democrático. Suficiente material para revoltas. O risco maior: o de que grupos radicais mais violentos, já em ação no Iraque, na Síria e em tantos outros lugares, transformem o Egito em mais um campo de batalha e, talvez, de guerra civil.

The wave of revolts that would assault the Arab world, from Tunisia to Egypt to Libya to Yemen to Bahrain to Syria and beyond, have common causes to various processes and similarities between them. However, each revolt followed a proper course and is reaching different results. The internal problems in almost all Arab countries constitute a list fairly well known: centralization of power and authoritarian police state, corruption, poverty and social inequality, unemployment, democratic deficit. Enough material for revolts. About the Muslim Brotherhood in Egypt, deposed by the army in July, the author says that, having experienced something of power, tend not easily accept the defeat and may resort to violence. The greater risk is that most violent radical groups, already in action in Iraq, Syria and many other places, will turn Egypt into another battlefield and perhaps into a civil war.

Um verdureiro, na Tunísia, ateou fogo ao próprio corpo e começou assim a onda de revoltas que tomariam de assalto o mundo árabe. Da Tunísia ao Egito, à Líbia, ao Iêmen, ao Bahrein, à Síria e além.

Se é possível aceitar esse evento dramático como ponto inicial e estopim de um fenômeno histórico de grande envergadura – o aspecto simbólico dos pontos de partida não pode ser ignorado – e se é possível verificar tanto causas comuns aos vários processos revoltosos quanto semelhanças entre eles, o fato é que cada revolta seguiu um curso próprio e vai chegando a resultados diversos.

Dentre as causas comuns, há aquelas que se repetiam no seio de cada sociedade, de cada país, e há aquelas que acometiam – e o seguem fazendo – o conjunto dos povos árabes como um coletivo, e não mais como Estados ou sociedades singulares.Os males internos, encontráveis em praticamente todos os países árabes, constituem uma lista razoavelmente conhecida: centralização do poder e autoritarismo policialesco, corrupção, pobreza e desigualdade social, desemprego, déficit democrático. Suficiente material para revoltas.

Para além desses problemas comuns, vividos de modo singular por cada sociedade, há uma pesada herança de frustrações e impotência que acomete o coletivo formado por povos e países. A frustração e o sentido de impotência estão ligados à sensação de já não ter em mãos as rédeas do próprio destino e de estar à mercê de vontades mais poderosas. O símbolo mais potente dessa sensação é a questão da Palestina, uma tragédia que continua a se aprofundar e a impor derrotas políticas que se vão adicionando à série de derrotas militares do século que passou.

Ao longo do tempo decorrido desde que começaram as revoltas, houve uma tendência a privilegiar as explicações fundadas sobretudo nas razões internas, ainda que comuns. E isso se relaciona com a adoção de

uma chave de interpretação que lê os processos revoltosos como, sobretudo ou apenas, tentativas de emancipação individual em face de estruturas estatais autoritárias.

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Considerar também aquele conjunto de frustrações mais generalizado e mais difuso demandaria um aprofundamento da investigação sobre o que poderia consistir numa identidade árabe para além do pertencimento a um país e sobre questões nacionais árabes que não são restritas a Estados particulares e podem ser pensadas como coletivas.

A combinação de identidade e questões nacionais, uma e outra relacionadas a um coletivo árabe abrangente, traz à superfície o tema da relação entre o árabe e o religioso, mais especificamente o Islã, e o tema da centralidade do mundo árabe, de sua localização geográfica e política no tabuleiro de poder mundial.

As revoltas não podem ser entendidas, enquanto se desenrolam, sem um olhar para o que se convenciona chamar Islã Político. E certamente não podem ser sequer afloradas sem a adoção de uma chave de interpretação que tente desvendar os jogos de poder em que estão inseridas.

São essas as preocupações que guiam esta tentativa de contar alguns momentos do processo revoltoso tal como ele se desenrola no Egito, desde a rápida e em certa medida surpreendente queda de Mubarak, após alguns dias de grandes manifestações e de repressão violenta, entre janeiro e fevereiro de 2011.

Desde o início, a contrarrevolução em marcha

Entre o período inicial do processo egípcio (aqueles dias de janeiro e fevereiro de 2011 que culminam com a renúncia do presidente de três décadas) e meados de 2012 (quando em junho se conheceu o novo presidente eleito, membro da Irmandade Muçulmana), o Egito foi governado por um Conselho Supremo das Forças Armadas.

Ao longo desse tempo, o Conselho acenou com e de fato operou algumas mudanças, um referendo sobre emendas à Constituição, eleições parlamentares e presidenciais, ao mesmo tempo em que continuava a reprimir nas ruas as manifestações populares que não davam trégua, e em que tentava manter as rédeas do poder.

Ao começarem as revoltas no mundo árabe e à medida que se foram cunhando nomes para o fenômeno, houve quem se insurgisse, desde o início, contra o nome “despertar árabe” que muitos usavam, por considerar que, ao retratar os povos árabes como adormecidos, não faria justiça aos levantes que esses povos iniciavam periodicamente, sempre frustrados, sempre abortados pelos detentores do poder e por seus apoiadores.

O risco que esse diagnóstico queria anunciar era o da contrarrevolução.

Muito cedo, o Egito começou a nos apresentar um quadro que ilustrava exemplarmente essa dinâmica de contrarrevolução. Em poucos dias, em meados de 2012, alguns golpes de caneta nos mostraram a face de um regime que, tendo deixado cair o líder que passara a concentrar o essencial da rejeição popular, se recusava a morrer.

Primeiro, a estrutura de poder ainda intacta, à frente da qual estavam os militares e que incluía parte significativa do Judiciário, produziu vereditos que em larga medida deixavam impunes representantes do regime, quer por crimes cometidos durante a revolta, quer por outros, anteriores.

Em seguida, operou-se a volta da lei marcial.Finalmente, a Corte Constitucional tomou decisões que levaram à dissolução do Parlamento, que havia sido eleito na virada de 2011 para 2012 e era composto de uma esmagadora maioria dos partidos islamitas, que afirmaram a legalidade da candidatura de Ahmad Chafic – último primeiro-ministro de Mubarak e homem

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do coração do regime e de seu aparato de segurança – à Presidência e abriram as portas para que uma eventual eleição do candidato da Irmandade Muçulmana ao mesmo cargo fosse invalidada.

A tranquilidade com que o regime (os militares e seus tribunais) operava essas jogadas estava fundada em dois fatores de confiança: a crença no cansaço, talvez exaustão da população para protestar e a crença de que já teria tido tempo de se instalar, em parte da população e na opinião pública internacional, o medo da Irmandade Muçulmana, que poderia ser assim mais facilmente impedida de chegar ao poder.

Confiava-se, provavelmente, que a população exausta quisesse acima de tudo ordem e que mesmo os democratas liberais prefeririam os militares aos islamistas, quando bem feitas todas as contas.

Esse cálculo trabalhava, no entanto, com uma incógnita de monta, o tamanho do apoio popular à Irmandade, e presumia que revolucionários e islamistas não se confundiam e eram, na verdade, excludentes uns dos outros.

Naquele momento, os discursos explicavam as decisões então recentes como golpes contra a Irmandade antes de serem golpes contra a revolução e naturalizavam essa distinção, e tendiam a legitimá-los, os golpes, em nome do medo do Islã Político.Às portas do segundo turno da eleição presidencial, a Irmandade sustentava um discurso de tranquilidade, talvez ainda segura de sua enorme força e, quem sabe, confiante de que era inescapável a sua chegada ao poder, mais cedo ou mais tarde. E nisso tinha razão.

Mas se a revolta egípcia devia oferecer uma transformação do modo como se fazia política e se construía a sociedade, e não apenas proceder a uma mudança de detentores do poder, esse objetivo maior acabava de sofrer um duro golpe, ainda que já esperado.

O vencedor levou, mas isto era só o começo

Em maio de 2012, aconteceu o primeiro turno das eleições presidenciais, que teve como resultado um face a face entre, justamente, o representante do antigo e ainda presente regime, Ahmad Chafic, e o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohamad Mursi. E a eleição deste segundo por margem apertada no segundo turno já podia ser lida como sinal da divisão que acometia o país e da resiliência do regime. Este resultado, no entanto, não foi anunciado de imediato.

Ao final, depois de alguns dias de atraso e de grandes dúvidas sobre o que viria, o vencedor foi efetivamente declarado vencedor. Mas isto não significava, necessariamente, que as instituições estavam funcionando.

Desde o começo das revoltas no mundo árabe, mais de um se perguntava se a democracia era possível naquelas paragens. E ainda que não seja fácil dizer o que é exatamente uma democracia ou decidir se pode haver mais de um tipo, talvez seja seguro dizer que ela tem a ver com o desenho de instituições sadias e com que essas funcionem de modo a reduzir o exercício arbitrário do poder.

Teria sido a decisão da comissão eleitoral que declarou vencedor o vencedor o anúncio de uma nova era?A dúvida era legítima. A demora do anúncio não podia se justificar senão porque algo estava sendo cozinhado em outra cozinha e, por um bom momento, pensou-se que o candidato do regime seria declarado vencedor.

Havia algumas hipóteses sobre o que podia estar acontecendo. Os militares talvez estivessem testando a disposição popular e aquela dos partidários da Irmandade para saber se passaria uma vitória de Ahmad Chafic como corolário do golpe a prestações que estavam dando. Ou se estava negociando com a

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Irmandade e com os interessados externos, entre eles Estados Unidos, o que seria um novo status quo de compromisso.

O fato de que tal acordo foi costurado e era do conhecimento de muitos se fez sentir nas rápidas boas-vindas que muitos, inclusive os historicamente e autodeclarados temerosos da Irmandade, como Israel, deram ao resultado.

Aceitou-se, talvez, o inevitável – a não ser que se quisesse arriscar mais revolta e possivelmente violência – e se contava com a capacidade dos militares de assegurar que a Presidência seria despida de poderes e, por isso mesmo, com que a Irmandade fracassasse na função.

Ou então um acordo havia sido costurado fazendo da Irmandade a próxima aposta para a estabilidade da região, uma estabilidade que não sacudisse o equilíbrio de poder e o arranjo vigente.

Aos olhos do Ocidente, ou de parte dele, com o primeiro cenário estaria desenhado um paradoxo do tipo que vigorou na Turquia por tanto tempo: os militares como garantia de uma democracia para a qual os islamistas seriam um perigo.

Ainda que não tivessem sido as instituições a imporem limites ao poder, mas sim o que se poderia chamar fluidamente de vontade popular – uma vontade que impôs ao poder de plantão um cálculo que se pensa vencedor – não deve haver engano, a chegada da Irmandade à Presidência era um evento de monumental importância.

A Irmandade, que há muito vinha fazendo prova de uma crença tranquila em sua própria força, fazia também os seus cálculos, e acreditava poder disputar o Egito com os militares e com forças externas. Que tenha ou não havido um acordo que incluía a Irmandade, esse jogo acabava apenas de começar.

Islamistas, de espectro a possíveis aliados

Desde que haviam começado as revoltas, eram esperadas grandes vitórias dos movimentos islâmicos quando as populações árabes fossem às urnas votar livremente. E foi o que aconteceu, na Tunísia, no Egito, e também no Marrocos.

Essas vitórias decorriam da combinação de uma consciência generalizada e profunda da identidade religiosa com uma razoável incompetência dos demais grupos políticos que disputam a lealdade dos cidadãos.

No Ocidente, essas vitórias esperadas foram por muito tempo percebidas como um espectro a pairar sobre as revoluções árabes e sobre o próprio Ocidente. O temor declarado era de que, através de procedimento democrático, as eleições, os árabes escolhessem mal, escolhendo os islamistas, e fechassem para si as perspectivas de construírem sistemas políticos liberais.

Esse susto, por um lado, parecia ignorar o caráter autoritário dos regimes contra os quais os revoltosos se levantavam, ou, como essa ignorância é de difícil sustentação, deixava entender que autoritarismo islâmico seria pior do que outros, por ser islâmico – um dos estereótipos favoritos em nosso tempo.

Por outro lado, enquanto se cantavam as odes à liberdade, parecia emergir a tese de que os árabes não deveriam ser livres para errar; se de fato se tratasse de erro.

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Desafios de monta aguardavam e ainda aguardam os povos árabes, alguns deles relacionados à construção de sociedades e de sistemas políticos novos, num contexto em que a cultura e a identidade muçulmanas são centrais.

Como nesse exercício o direito tende a ter papel fundamental, e como pensava-se que nessas sociedades haveria um retorno em força do direito islâmico, anunciava-se o desafio aos homens e mulheres árabes de representar e interpretar esse direito de modo a garantir direitos fundamentais, a dignidade humana e a liberdade.

Respeitado o direito dos árabes de escolherem livremente, não devia, no entanto, restar dúvida de que a subida dos movimentos políticos islâmicos alimentava e era alimentada por jogos de poder na região.

Vários interesses pareciam convergir em favor dos islamistas. A Arábia Saudita, que sempre teve ligações privilegiadas com os grupos islâmicos conservadores, via na ascensão desses grupos, ainda que não especialmente da Irmandade Egípcia, como ficou claro mais tarde, uma chance de incrementar seu poder e sua influência na região, marcando pontos contra o Irã e contra a Síria.

A Turquia oferecia a replicação de seu modelo como receita e visava com isso incrementar seu status e poder.

As potências ocidentais pareciam passar a enxergar a Irmandade Muçulmana e o modelo turco como a melhor alternativa de estabilidade, quando os regimes clientes iam sucumbindo, e como potenciais aliados contra a percebida ameaça iraniana. O espectro ia assim aparecendo mais simpático, para alguns.

O novo Egito e a questão Palestina

Houve quem duvidasse que as revoltas árabes tinham algo a ver com a questão Palestina. Ainda que se quisesse acreditar que as frustrações ligadas às derrotas militares para Israel e à continuidade da ocupação não participavam da vontade de revolta, em determinado momento pareceu claro que as mudanças em curso afetariam inevitavelmente o futuro do que se costuma chamar de conflito árabe-israelense.

Em novembro de 2012, oito dias de confrontos entre israelenses e o Hamas palestino pareceram anunciar mudanças nas características do conflito e de seu entorno, assim como iriam servir como primeira instância concreta em que se poderia testar o comportamento do Egito sob uma Presidência da Irmandade Muçulmana em relação à Palestina e aos alinhamentos políticos existentes na sua região.

No momento em que se chegou a um acordo, que incluiu o cessar-fogo e foi além, anunciando a possibilidade do fim do bloqueio à faixa de Gaza, o Hamas apareceu como vitorioso em mais de uma frente.

Por um lado, demonstrara ter avançado no estabelecimento de um equilíbrio de forças mais vantajoso no plano militar e, por extensão, emprestara maior credibilidade à sua tese de que não havia alternativa à resistência armada, no confronto com Israel.

Por outro lado, no plano político, emergia novamente como ator central na representação do povo palestino, em parte à custa da Autoridade Palestina.

Mas o contexto em que se chegou a um acordo revelava outro dado novo e anunciava algumas interrogações. O dado novo fundamental era o papel transformado do Egito.

O país, sob a Presidência de Mursi, procedia a um exercício de equilíbrio entre, de um lado, as demandas da opinião pública, egípcia, árabe e muçulmana, bem como as posturas históricas da Irmandade Muçulmana, à

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qual o Hamas deve suas origens, e, de outro lado, as expectativas internacionais e regionais em relação à estabilidade, simbolizada nos acordos de paz com Israel. Essa posição, de todo modo, era radicalmente diferente daquela dos tempos de Mubarak.

No entanto, a postura egípcia, de certo malabarismo, era parte de um cenário de incertezas. Uma leitura usual da situação no Oriente Médio pinta uma oposição entre, em um polo, uma aliança de partidários da resistência, que inclui Irã e Síria e, ao menos em princípio, até aquele momento, o Hamas, e, em outro, os países classificados como moderados.

No cenário que se foi desenhando após as revoltas árabes, o Hamas foi atraído para uma maior proximidade, natural, por razões históricas, com o Egito da Irmandade e, por outras razões, com outros países tais como Catar e Turquia.

Naquele momento, parecia que tanto a chamada moderação quanto a opção pela resistência seriam testadas. Havia uma dúvida sobre se o Egito faria pender a balança para a defesa da questão Palestina e para o fortalecimento do Hamas, ou se, ao contrário, este último seria atraído para o campo dos que haviam entregado o destino da Palestina aos Estados Unidos e a Israel.

Mursi, de fantoche a ditador?

Em fins de novembro de 2012, o presidente Mursi decretou para si maiores poderes, colocando suas decisões ao abrigo de qualquer contestação pelo Judiciário e impedindo que a Assembleia Constituinte e o Parlamento pudessem ser dissolvidos pelos tribunais. Logo depois, estabeleceu um prazo curto, de 15 dias, para um referendo sobre a nova Constituição que havia sido elaborada por uma comissão liderada pelos islamistas.

Estava então Mohamad Mursi se revelando um novo Mubarak? Enquanto alguns faziam essa pergunta, poucos talvez se lembrassem de que, quando assumira o cargo, havia uma expectativa generalizada de que fosse um presidente desprovido de reais poderes.

Poucos dias antes de sua posse, os militares haviam emitido decretos limitando as prerrogativas do presidente, dissolvendo o Parlamento e reservando para si poderes legislativos e responsabilidade pela política externa.

No entanto, de um modo que surpreendeu a muitos, em alguns lances, o presidente egípcio tomara mais tarde medidas que golpeavam o poder dos militares e pareceram confirmar as apostas da Irmandade Muçulmana de que ela estava em condições de ganhar o braço de ferro pelo poder no Egito.

Os dois momentos em que Mursi se mostrou mais ousado no esforço de afirmar seu poder foram, primeiro, as mudanças na cúpula das Forças Armadas, em agosto de 2012, e, mais tarde, a adoção do citado decreto que colocavam seus atos ao abrigo do controle do Judiciário.

Nas duas ocasiões, a afirmação dos poderes do presidente se seguiu a eventos que aumentavam o seu prestígio. No primeiro caso, as demissões dos militares vieram depois de uma campanha militar no Sinai, em resposta a um ataque contra guardas egípcios. No segundo, o decreto veio depois que o Egito mediou com sucesso a trégua entre Hamas e Israel.

A assunção de novos poderes, naquele segundo momento, estava intimamente ligada à tentativa de aprovar a nova Constituição por referendo popular.

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Aos olhos de muitos, tanto o que parecia ser uma virada autoritária do presidente quanto a nova Constituição levantavam novamente as dúvidas sobre o futuro democrático dos países árabes pós-revoltas, em que partidos islâmicos iam assumindo o poder.

Havia aqueles, no entanto, que defendiam as ações da então nova liderança egípcia como medidas de proteção do que se adquirira com as revoltas, contra a interferência do que restava das forças do regime anterior, contra as forças da contrarrevolução.

Enigmas da revolução egípcia

Persistiu, desde que tivera início a sequência de revoltas no mundo árabe, uma série de dúvidas sobre o Egito e seu futuro.

Algumas diziam respeito ao futuro da sociedade egípcia e da sua organização política, outras ao futuro de seu posicionamento no jogo político regional e mundial.

As respostas a esses dois conjuntos de perguntas passavam, no entanto, pela solução, ainda que parcial, de alguns quebra-cabeças sobre o presente, sobre o cenário político egípcio de cada instante e sobre as posições dos vários atores, sobre as divisões que os opunham uns aos outros e sobre as alianças que os uniam.

Afinal, como caracterizar os eventos egípcios a cada momento dado? Tratava-se de uma oposição entre forças remanescentes do regime anterior e forças revolucionárias? Ou seria uma divisão entre islamistas e liberais? Ou uma disputa de poder entre militares e civis, ou entre os militares e a Irmandade Muçulmana?

E, não se pode esquecer, quais eram e são as preferências dos atores externos e como estes exerciam e exercem sua influência?

É verdade que cada ator, considerando seus objetivos e tentando atingi-los, operava e operará, por vezes, flutuações em seu comportamento e em suas alianças. Assim, por exemplo, os liberais e os islamistas estavam no início unidos na tentativa de derrubar o regime de Mubarak e logo estavam se enfrentando no que respeitava a uma nova Constituição.

De todos os enigmas persistentes nessa revolução egípcia, um dos mais obscuros era aquele que respeitava às relações entre as duas forças políticas mais impressionantes daquele país: o establishment militar, de um lado, herdeiro e centro do poder que comandou o Egito por quatro décadas, além de operador fundamental na economia egípcia, e a Irmandade Muçulmana, de outro, marginalizada pelas mesmas quatro décadas, mas cuja força se manifestara assim que eleições livres aconteceram.

No momento em que a posse de Mursi, como presidente eleito, era posta em dúvida e foi finalmente permitida, pareceu claro que cada um dos dois lados fazia uma aposta de que seria capaz de preservar o máximo do próprio poder ao mesmo tempo em que colocaria em xeque o poder do outro.

Muito cedo, como visto, o presidente parecera demonstrar o bem fundado da aposta feita pela Irmandade Muçulmana ao demitir lideranças eminentes da cúpula militar.

Desde sempre, no entanto, havia quem dissesse que existia uma articulação, um acordo, entre as duas forças, do qual o fortalecimento da figura do presidente podia ser parte integrante. Ou esse acordo se estaria fazendo com a própria cúpula ou diretamente com o corpo militar, independentemente da vontade da cúpula.

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Algumas indicações dessa articulação apareceram em várias ocasiões. Uma delas foi a extensão dos poderes de polícia do Exército, concedida pelo presidente em meio à forte divisão que opunha seus partidários àqueles que rejeitavam o regime de urgência em que se estava então, no início de dezembro de 2012, tentando aprovar a nova Constituição.

Mas o que podia fazer com que duas forças que a história de meio século do Egito deveria manter opostas encontrassem interesses comuns e fossem levadas a cooperar? Uma pista para esse enigma particular pode ser esta: tanto os militares quanto a Irmandade Muçulmana tinham interesse em que o poder continuasse concentrado e muito verticalizado, de modo a preservar a Irmandade de competição e preservar a dimensão do aparato militar como ator político e econômico.

E, é claro, desde fora, muitos desejavam essa centralização do poder para evitar os riscos de instabilidade que um país como o Egito, se não contido por uma mão forte, poderia trazer ao jogo de poder regional.

Uma segunda revolução?

Em julho de 2013, o experimento egípcio com a democracia evidentemente ainda não chegara a bom termo.Naqueles dias, o presidente Mursi chegou a repetir o que dizia, antes de cair, Mubarak: “sou eu ou o caos”. E de novo a ameaça parecia não surtir efeito.

Se não foi o caos o que se seguiu a Mubarak, foi ao menos certamente um cenário de convulsão social, um doloroso parto de que não se sabia, e não se sabe, se nascerá uma nova ordem democrática ou se um natimorto virá frustrar tantas expectativas.

Como dito, o primeiro arranjo que se pretendeu o substituto institucional à era de Mubarak resultou de um compromisso entre as Forças Armadas, um poder essencial e histórico, e a Irmandade Muçulmana, a organização política mais estruturada e com maior penetração no tecido social egípcio.

Esse arranjo parecia ter agora esgotado suas possibilidades. Ele não respondera às expectativas de milhões de pessoas que passaram a pedir a saída do presidente e, com ele, da Irmandade. O arranjo parecera ter trabalhado para uma nova concentração do poder e dera a impressão de querer servir à agenda política do grupo antes de abordar os profundos problemas da sociedade egípcia.

Por falta de competência, ou por falta de vontade, os problemas econômicos se perpetuaram, a fragilidade institucional permaneceu inteira e o código autoritário ainda vigia. E as multidões voltaram às praças.

Mas cabia ao intérprete ser cauteloso. Tantas vezes ao longo do processo revoltoso, as revoltas no mundo árabe foram representadas como um enfrentamento entre o povo e o regime. Seria talvez mais apropriado falar em uma divisão da sociedade, os regimes se beneficiando de maior apoio popular do que se admite.

No Egito, naquele momento, isso era ainda mais verdadeiro. A representatividade e a força da Irmandade e de outros grupos islamistas não se desfizeram no ar e, por isso, o Egito estava efetivamente dividido. E o desafio maior então era, como é hoje, evitar que a divisão se tornasse violência generalizada.

Tampouco desaparecera o poder das Forças Armadas e, caindo o presidente Mursi, como ao final caiu, sua queda terá decorrido da perda do apoio dos militares. Assim como terá decorrido da perda de apoio de potências interessadas cuja influência também permanecia, ainda que com variações.

Alguém terá notado o paradoxo no fato de que as mesmas multidões que pediam por democracia festejassem o ultimato, dos primeiros dias de julho de 2012, dado pelas Forças Armadas, que leram,

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corretamente, como um comando para a renúncia. Os militares reafirmavam assim o seu papel de árbitro último, ao menos nessa segunda fase da convulsão egípcia.

Esse fato sozinho serve a indicar que se estava mais perto do meio do caminho do que do seu final.Para o entorno e o mundo, a experiência egípcia parecia anunciar, pela segunda vez em menos de três anos, surpresas e mais incerteza.

A Irmandade e o futuro das Primaveras

Em três de julho de 2013, os militares depuseram o presidente Mursi em comunicado lido com a presença e o apoio de setores oposicionistas, inclusive os chamados liberais, e de salafistas que até ali eram aliados da Irmandade Muçulmana.

Teria sido a queda da Irmandade e seu presidente no Egito obra de outros que não a própria Irmandade? E a quem interessava a sua queda?

Sempre se poderá dizer que a Irmandade chegara ao poder por conta de sua extensa e profunda penetração no tecido social egípcio e por conta de sua organização, uma organização que contrastava com o cenário das oposições ao regime anterior, inexistentes ou desarticuladas; e sempre se poderá dizer que caiu por conta de sua incapacidade para governar de outro modo que não fosse autoritário, centralizador e ineficiente.

No entanto, a partir de sua chegada ao poder no Egito e na Tunísia, e durante um bom tempo, a Irmandade parecia ter sido a escolhida, por várias potências relevantes, da região e de fora dela, como a melhor sucessora para os regimes que caíam, corroídos por seus próprios males; uma sucessora que garantiria a estabilidade dos jogos de poder regionais e preservaria alguns interesses vitais dos Estados Unidos e seus aliados.

Diante do fracasso da experiência no mais relevante dos países árabes, alguns se perguntam se o projeto que colocou ou permitiu a chegada da Irmandade ao poder fazia realmente esta aposta ou se se tratou apenas de permitir que a experiência, fadada desde o início à falência, queimasse para sempre a ideia do governo do Islã Político nesses moldes.Ainda que a incógnita continue sem resposta, um olhar detido sobre alguns fatos talvez ofereça alguma luz.

É incontestável que os militares afirmaram novamente seu poder no cenário egípcio, um poder que sempre esteve lá. Fizeram-no desta vez de um modo mais hábil, carregados pela vontade popular dos milhões que enchiam as ruas e praças.

Algo muito diferente da imagem da junta militar que toscamente, e diretamente, assumiu o poder enquanto dava adeus a Mubarak.

A queda da Irmandade embaralhou novamente os interesses e as posições dos vários atores regionais e das potências.A Arábia Saudita recebeu muito bem a mudança e pareceu mesmo ter obrado para a queda de Mursi, e o indício disso era a presença dos salafistas ao lado dos militares.

Já o Catar, sob novo comando, depois da súbita troca de emir e de chanceler, na passagem de junho para julho de 2013, foi mais comedido na reação, mas certamente viveu a coisa como uma derrota real, depois de ter investido tanto na Irmandade como a próxima alternativa, não só para a Tunísia e o Egito, mas também para a Síria, e como expressão de seu poder regional. A própria mudança no comando do país já era sinal de que a aposta se esgotava.

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Também a Turquia demonstrou seu incômodo com as mudanças no Egito, tendo feito apostas semelhantes às do Catar.

Os Estados Unidos, que hesitaram em condenar ou em dar as boas-vindas à mudança forçada de comando no Egito, nunca estão muito distantes dos militares daquele país e da ideia de que estes representam uma garantia de estabilidade, especialmente nas relações com Israel.

Interessante notar que a Síria, que tanto denunciava e ainda denuncia a interferência de todos esses atores, Arábia Saudita, Catar, Turquia, Estados Unidos e outros, no seu conflito interno, pareceu festejar a queda da Irmandade no Egito, apesar de não se poder dizer que os militares egípcios componham ou estejam dispostos a compor o chamado campo da resistência.

Justamente, naquele momento a oposição síria, enfraquecida, lutava para encontrar alguma unidade em meio a dúvidas sobre o lugar que devia caber à Irmandade em seu seio.

De todo modo, qualquer que seja o resultado vindouro das revoltas árabes, ao que parece, a Irmandade já não era a solução.

O Egito como ele era

O Egito parecia, então, dar definitivamente razão aos que desde o começo alertavam para o perigo da contrarrevolução.Em poucos lances, toda esperança parecia pronta a ser enterrada e o Egito voltava a se parecer com o que era sob Mubarak.

Os militares, que nunca perderam o status de força preponderante na política egípcia, voltam a comandar desde o centro do cenário, sem constrangimento. E voltava o estado de emergência que vigorou por trinta anos sob Mubarak.

O próprio Mubarak se apronta para voltar à liberdade, enquanto são presas as lideranças da Irmandade Muçulmana, que volta a ser perseguida e violentamente reprimida.

E permanecem a pobreza e a desigualdade extremas, assim como não muda a estrutura autoritária do poder.Houve, no entanto, e por um tempo, esperança. O regime de quatro décadas caiu rapidamente, pela mão das multidões que enchiam as ruas.

Essas mesmas multidões se insurgiram contra a tomada do poder por uma junta militar e mantiveram a pressão até que se realizassem eleições e assumisse um governo eleito.

A Irmandade Muçulmana, a força de oposição mais significativa ao regime anterior, a mais organizada, aquela com apoio popular mais amplo, venceu, por conta de tudo isso, eleições parlamentares e a presidencial. Mas governou mal. Não soube gerenciar os graves problemas econômicos e deu sinais demasiados de querer concentrar poder e determinar sozinha o desenho do novo Egito. Enquanto fazia isso, pareceu em alguns momentos vencer o braço de ferro que a opunha aos militares. Isso não durou.

As multidões voltaram às ruas e pediram a queda do presidente eleito, saído das fileiras da Irmandade. Elas talvez não tardem em se arrepender por terem festejado quando, pela boca de um general foi decretada a queda e foi dado o golpe.

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Ao ler seu comunicado, o chefe das Forças Armadas estava cercado de representantes dos partidos e grupos que, em princípio, tinham ajudado a fazer a revolução. Estes, sabendo ou sem saber, legitimaram assim a volta dos militares ao comando das coisas, legitimaram a contrarrevolução.

Isso talvez seja apenas um erro de quem não estava acostumado ao exercício da democracia.

Mas para além do erro de quem legitimou o golpe, está o fato de que as forças que estavam no poder com Mubarak não se desfizeram no ar e continuavam intensamente ativas.

E mais ainda: os vários atores, da região e de fora dela, profundamente interessados no papel que segundo eles deve desempenhar o Egito, também trabalharam intensamente para determinar ou influenciar as resultantes do processo de revolta popular e de reviravoltas políticas.

O resultado, por ora, é a volta do Egito ao que ele era antes, com algumas, talvez perigosas diferenças.

Agora a Irmandade já não opera na clandestinidade e, ao assumir o governo e depois, ao sair às ruas para reclamar o retorno à legitimidade conquistada nas urnas, revelou-se por completo. Tendo experimentado algo do poder, tenderá a não aceitar facilmente a derrota e talvez recorra à violência, especialmente na medida em que, exposta, sofre também brutal violência.

E o risco maior: o de que grupos radicais mais violentos, já em ação no Iraque, na Síria e em tantos outros lugares, venham transformar o Egito em mais um campo de batalha e, talvez, de guerra civil.

Setembro de 2013