Revista Portal Do Educador

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nº 1 | junho de 2015 EDUCADOR REVISTA ELETRÔNICA DO portaldoeducador.org mídia autônoma e independente RELATOS DE EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS COM JOVENS APRISIONADOS POR MAIORES INFRATORES COLABORADORES: Bruno Bissoli Denis Plapler Helena Singer Heloisa de Souza Dantas José Pacheco Marília Rovaron Milena Franceschinelli Vitor Sório Welton Santos

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nº 1 | junho de 2015EDUCADORREVISTA ELETRÔNICA DO

portaldoeducador.org mídia autônoma e independente

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS COM JOVENS

APRISIONADOS POR MAIORES INFRATORES

COLABORADORES:

Bruno BissoliDenis Plapler

Helena Singer Heloisa de Souza Dantas

José Pacheco Marília Rovaron

Milena Franceschinelli Vitor Sório

Welton Santos

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SUMÁRIO

Maiores Infratores

Entrevista: Helena Singer para o Portal do Educador

A Prisão

A Respeito de Adolescentes, Ato Infracional e Visibilidade Social

Educação Contra a Redução... De Direitos

Imaginemos

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Relatos de experiências educativas com jovens aprisionados por maiores infratores

Se palavras de ódio são recheadas de medo, palavras de amor são recheadas de coragem, não por coincidência Osho (1931/1990) na Índia e Paulo Freire (1921/1997) no Brasil pensavam o amor como um ato de coragem, duas maravilhosas referências de pessoas que viveram de forma coerente com suas ideias.

Esta revista reúne textos de pessoas corajosas, que todos os dias se levantam capazes de amar. Se partirmos do princípio que acreditar em uma outra realidade possível é idealismo, talvez não seja possível tornar-se edu-cador sem a capacidade de idealizar, de acreditar no ser humano e sonhar com uma outra realidade, com uma sociedade que ofereça a todas as crianças uma educação integral, não em seu tempo de permanência presas dentro de instituições, prisões ou escolas, mas integral na maneira de cuidar das questões cognitivas, emocio-nais e sociais, dentro e fora das escolas.

No Brasil de hoje o Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha defende a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 171/93) que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, com as portas fechadas para povo, sem nenhum tipo de consulta popular, ignorando a realidade atual do planeta onde a enorme maioria dos países com taxas de violência mais baixas que a do Brasil, adota a idade mínima de 18 anos como limite, igno-rando ainda a informação de que os países que reduziram a maioridade penal não tiveram sucesso no combate a violência e ignorando também as baixas taxas de homicídios dos países com politicas sociais qualificadas. O Brasil já tem hoje mais de 500 mil pessoas vivendo atrás das grades, em sua imensa maioria pobres e negros. Neste contexto, apoiar a redução da maioridade penal no Brasil hoje é apoiar uma política racista de apartheid.

Para emitir uma opinião frente a complexa questão da idade adequada para um jovem responder criminalmen-te pelas suas ações torna-se obrigatório portanto refletir sobre as origens da violência. Por mais que possamos atribuir esta origem a natureza humana, ela claramente se potencializa em ambientes hostis onde há algum tipo de carência, assim como se ameniza em ambientes de paz. Portanto se desejamos combater a violência precisamos oferecer aos jovens uma nova educação, com perspectivas superiores aquelas oferecidas pelo cri-me, uma educação capaz de promover uma cultura de paz, cooperação, solidariedade, afeto, saúde, diversão, amor...

A lealdade presente na cultura da cooperação combate a violência inerente a cultura da competição desleal que desperta o que existe de pior dentro de nós. O altruísmo inerente a cultura da solidariedade combate a violência do egoísmo presente na cultura individualista de consumo e acúmulo de capital. Os sentimentos transmitidos por vínculos amorosos são o alimento que preenche o vazio da fome de afeto gerada pela solidão e pelo abandono.

Ao me indicar para uma vaga de professor de História, minha amiga e professora Milena Franceschinelli me concedeu o privilegio e a oportunidade de trabalhar com os meninos que passavam pela Fundação Casa pelo período de seis meses. Foi o tempo que tive para ministrar um curso de História do Brasil dentro de um pro-grama que buscava capacita-los para que pudessem realizar profissionalmente a atividade de restauradores de patrimônio histórico.

MAIORES INFRATORESDenis Plapler

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Relatos de experiências educativas com jovens aprisionados por maiores infratores

Para desempenhar a mesma atividade que eu realizava no período da manhã, uma graduada doutora em His-tória era responsável por ministrar as aulas no período da tarde. Antes de ingressar fui convidado a observar suas aulas, nas quais tristemente vomitava conteúdos para meninos que dormiam enfileirados a sua frente.

Fui bastante ansioso receber os meninos na primeira aula do curso. Aos poucos cada um deles entrava na sala, cabisbaixos, uniformemente com seus bonés cobrindo a vista e seus fones de ouvido pendurados, tapan-do qualquer possibilidade de visão e escuta. Aguardei a chegada de todos. Depois de sentados solicitei que retirassem os fones de ouvido e levantassem seus bonés para que pudesse enxergar os seus olhos e dialogar, contrariados obedeceram, como que se necessitassem daquele pedido que sinalizava um limite, assim como minha vontade de estabelecer um diálogo. No primeiro encontro praticamente apenas nos apresentamos e nos reconhecemos minimamente. Encontrei meninos que pareciam conseguir se enxergar apenas como cri-minosos. Me parecia que sem antes conseguir contribuir para que pudessem se enxergar de outra forma seria impossível e inútil transmitir qualquer conteúdo de História do Brasil.

Todos vinham de realidades difíceis, em sua grande maioria órfãos ou de pai, ou de mãe, ou dos dois. O rótulo de criminosos lhes foi oferecido socialmente diante de tantas outras recusas e faltas de oportunidades. A forma como nasceram, cresceram e até mesmo o vocabulário bastante próprio, já apresentava a elaboração de uma identidade bastante vinculada a ilegalidade. A lógica da exclusão social estava ali escancarada e eu era o único homem branco da sala.

Na segunda aula, aproveitei os minutos iniciais para me aproximar e perguntar o que tanto escutavam com aqueles fones pendurados nos ouvidos a todo tempo, foi assim que tomei conhecimento do Rap de SNJ e Facção Central, com letras que cantavam a realidade daqueles meninos. Perguntei se também escutavam Racionais e me responderam que era coisa de p”layboy”. Encontrei na música a possibilidade de iniciar um vínculo. Apresentei a eles Adoniran Barbosa, comparamos as letras dos Raps que escutavam com os sambas que eu tanto gosto. Logo notaram as semelhanças nas reivindicações sociais que apareciam na poesia do morro e da periferia, mudando apenas de gênero musical e o contexto histórico. Foi o suficiente, a partir desta pequena atividade fui privilegiadamente aceito entre eles, de maneira que por seis meses pude me dedicar a conversar de forma afetuosa, esforçando-me por oferecer o que eu tinha de melhor e, deprimindo-me ao notar as oportunidades que até então já haviam sido negadas a aqueles jovens. O que consegui transmitir em termos de conteúdos de História, Geografia ou Língua Portuguesa certamente foi irrisório diante da lição de vida que aqueles meninos me proporcionaram. Apenas alguém que ignora completamente a realidade destas crianças pode acreditar que o que elas precisam para abandonar a criminalidade é do cárcere.

Não sei qual foi o destino daqueles meninos, Denilson e Rafael compunham e sonhavam ser rappers, espero pelo dia que poderei escuta-los fazendo sucesso. No entanto, sabemos que o grau de reincidência no crime é altíssimo e a expectativa de vida daqueles meninos extremamente reduzida. Não nego jamais a condição de sujeito de cada um deles, com toda certeza donos de seus destinos e capazes de alterar sua realidade, por mais difícil que ela seja. No entanto, grande parte de suas vidas já foi determinada não por eles, menores de idade, mas pelos maiores infratores, aqueles que já adultos permitem que uma sociedade recuse as suas crianças o direito a educação, a vida.

Dedico esta revista ao Presidente da Câmara dos Deputados Vossa Excelência Eduardo Cunha.

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Em entrevista para o Portal do Educador, a socióloga Helena Singer, recém convidada para integrar a nova equipe do MEC como Assessora Especial do ministro Renato Janine, fala da necessidade de conceber a edu-cação de modo integral para pensar politicas urbanas que levem em consideração o ser humano antes do auto-móvel, da indústria e do lucro.

Helena é membro fundadora do Núcleo de Psicopatologia, Políticas Públicas de Saúde Mental e Ações Comu-nicativas em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (NUPSI-USP), Doutora em Sociologia pela USP, com pós-doutorado em Educação pela Unicamp, autora de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior sobre educação e direitos humanos. Sua experiência como diretora pedagógica da Cidade Escola Aprendiz, pensando a educação não apenas dentro da escola, mas promovendo territórios educativos em diferentes cida-des do Brasil, contribuiu muito para o novo desafio de desenvolver a inovação dentro do sistema de educação no país.

Portal do Educador: Da República das Crianças aos Territórios educativos, o que mudou e o que per-manece na forma como a Helena concebe a educação?

Helena Singer: Quando escrevi República das Crianças, mais de vinte anos atrás, estava muito focada na esco-la e nas relações pessoais que ela promovia. As escolas estudadas naquela pesquisa buscavam criar ambientes educadores que valorizassem a liberdade e ao mesmo tempo criassem espaços coletivos de decisão, demo-cratizando as relações dentro das escolas. De lá para cá, não apenas eu, mas mesmo o movimento das escolas democráticas começou pensar o papel que a escola pode desempenhar no território e na comunidade em que ela está inserida. Não são todas as escolas democráticas que já pensam assim, nem todas que mencionei no livro, algumas tem objetivo mesmo de preservar as crianças dos males que a sociedade pode trazer. Mas ex-periências nos Estados Unidos, Europa, América Latina e Brasil tem se esforçado para melhorar a situação do seu entorno, compreendendo a escola como parte da comunidade.

P.O: De que modo você acredita que sua experiência no Aprendiz pode contribuir com o seu trabalho no MEC?

H.S: A experiência no Aprendiz foi o que me abriu a perspectiva de envolver a escola no território e me pro-piciou conhecer experiências em muitos lugares do Brasil. Assim a experiência do Aprendiz é de onde posso partir para pensar meu trabalho no MEC, jogando luz nas experiências educativas que criam novas possibili-dades para as relações internas e externas, se reconhecendo como espaços de produção de conhecimento, de cultura, como agentes socioambientais que transformam o lugar onde estão. O processo de aprendizagem é muito mais efetivo quando se torna um processo de produção e não de reprodução de conhecimentos.

ENTREVISTA:Helena Singer para o Portal do Educadorem 01/06/2015

P.O: No primeiro volume da serie Territórios Educativos você menciona o movimento de cidades educa-doras iniciado em Barcelona em 1990. Qual a importância deste movimento para o Brasil?

H.S: A proposta da cidade educadora de Barcelona é importante porque busca que o planejamento urbano seja pensado para as pessoas, para a promoção da qualidade de vida; o ponto de partida são as pessoas, não o crescimento econômico. A partir da experiência de Barcelona, criou-se a Associação Internacional de Cidades Educadoras que é importante para a promoção destas ideias, embora muitas das cidades que ali estejam não as implementem de fato. A cidade educadora traz uma visão de educação muito alargada, como um ambiente de desenvolvimento humano para todas idades, do bebe ao idoso. Os planos diretores conversam com os planos municipais de educação, de cultura, da assistência social, e toda esta articulação orienta os planos locais, de modo a pensar os territórios a favor da qualidade de vida. Qualidade de vida no sentido das pessoas poderem se desenvolver plenamente, nos aspectos intelectual, afetivo, social, cultural, para atingir o estado de felici-dade, não pequenos episódios de alegria, mas atingir um bem estar permanente, o que depende de relações humanas de qualidade, assim como realização pessoal, profissional, familiar...

P.O: Você menciona o trabalho desenvolvido em 1980 por Darcy Ribeiro em conjunto com Oscar Nie-meyer no CIEPs, no RJ, como uma forte referência para pensar os territórios educativos. Existe espaço hoje no Brasil para pensarmos o planejamento urbano de modo a associar arquitetura e educação nas grandes capitais?

H.S: Os CIEPs foram uma referencia importante para educação integral, assim como os CEUs e as Escolas Parque propostas por Anísio Teixeira em Brasília. Estes projetos buscavam que a escola tivesse os recursos e infraestrutura necessários para dar conta do desenvolvimento humano integral, com clareza de que a sala de aula não é suficiente, que precisamos de outras estruturas que possibilitem outras experiências. Mas o territó-rio educativo vai além disto, com um investimento no mapeamento do bairro, no que há de possibilidades para o território educativo, com as pessoas que ali vivem, com os recursos disponíveis ali. A arquitetura do prédio escolar, a gestão do espaço assim como do tempo compõem a matriz de toda instituição, então os espaços que não são formados por salas e corredores como na maior parte das escolas, mas que possibilitam vivências artísticas e ambientais são fundamentais para o desenvolvimento integral. E o planejamento urbano vai pensar como a politica de transportes, por exemplo, da cidade, vai propiciar que as pessoas possam usufruir do que ela oferece, assim como a politica de habitação vai oferecer moradia digna... Trata-se de uma politica urbana que leva em consideração o ser humano antes do automóvel, da indústria, do lucro.

P.O: Como você acredita que podemos articular melhor o planejamento, a distribuição e a gestão dos recursos de modo que possamos transformar nossos territórios em lugares de aprender?

H.S: De um lado, tem uma questão que é da formulação da política publica que precisa convergir e articular superando uma lógica de departamentos onde cada um faz seus programas visando um determinado aspecto da existência humana. As politicas precisam ser formuladas visando a integralidade, visando a criança, não o aluno, o usuário do equipamento de saúde ou da cultura. Formular uma politica voltada para o desenvolvi-mento integral da criança, propondo o que é preciso que venha da educação, da saúde, do esporte, da cultura, da assistência social. Por exemplo: muitas vezes acontece de uma criança ser encontrada vivendo nas ruas do centro da cidade e ser levada para a escola da região; ao chegar lá, a escola não encontra uma matrícula daque-la criança no sistema e então compreende que ela não é da sua alçada, não é um “aluno”. Em outras situações,

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Relatos de experiências educativas com jovens aprisionados por maiores infratoresa criança passa mal na escola, mas não pode ser atendida no posto de saúde porque não mora no bairro e o posto só atende moradores.De outro lado, comunidade também não costuma se articular Não é comum que as escolas dialoguem com as associações de moradores, os coletivos de cultura, os equipamentos da saúde, os conselhos locais. A politica publica pode induzir e favorecer a integração, mas a comunidade precisa se organizar para isto. A articulação tem que acontecer nas duas pontas, na formulação das politicas públicas e na sua apropriação pela comunida-de.

P.O: O que você pensa sobre a redução da maioridade penal? Acredita que medidas como esta são efi-cientes no combate a violência?

H.S: Não acredito que a redução da maioridade penal vá fazer alguma diferença para reduzir a criminalidade ou atos violentos no país. Assim como não acredito que o sistema penal como um todo tenha impacto na re-dução da violência. A lógica do sistema penal é, como o nome diz, penalizar, atender o desejo de punição que marca a nossa sociedade. É uma contradição em relação papel que se espera do Estado que, no que se refere aos conflitos, deveria colocar fim à sucessão de atos de vingança que leva à escalada da violência no mundo privado. Teoricamente, o Estado deveria exercer o papel do interventor que coloca fim no conflito por meio de um sistema racional e justo. No entanto, não é isso que acontece de fato. Todo o processo, desde a primeira intervenção policial até a efetivação da pena nos presídio, passando pelo processo judiciário, é marcado pela violência e discriminação. Trabalhei isso no meu livro Discursos Desconcertados. O que reduz a violência são experiências em que as comunidades se organizam, fazendo crescer o nível de confiança entre as pessoas dali, impedindo que estruturas criminosas se fortaleçam. Políticas de combate à violência deveriam focar nis-so. Em relação especificamente à redução da maioridade penal, ela vem atender a um forte desejo das forças conservadoras da sociedade brasileira de controlar e punir nossos adolescentes. É disso que se trata, não da redução da violência.

P.O: Na sua avaliação quais as maiores desafios a serem enfrentadas nos próximos anos para que pos-samos promover uma educação pública integral, viva e democrática?

H.S: O maior desafio é sempre a transformação da cultura, há um limite do que a politica e as instituições podem fazer, este limite é dado pela cultura dos pais, dos estudantes, supervisores, da mídia. O que domina é uma visão que reduz educação à escolarização e que mantém um imaginário de escola formado por relações hierárquicas, conhecimento fragmentado, corpos controlados. Transformar esta visão, dar espaço, visibilida-de a outras propostas, levar os meios de comunicação a tematizarem a educação de outra forma são estratégias importantes para enfrentar o desafio de transformar em larga escala a educação pública brasileira.

P.O: Como você enxerga e define o conceito de educação integral?

H.S: Educação integral é uma proposta que integra diferentes espaços, agentes, tempos e recursos de um ter-ritório em busca de um projeto que promova o desenvolvimento integral, em todas as dimensões, das pessoas daquele território. A integralidade está, portanto, no princípio, na visão, no meio, que é o método, e no final, no objeto.

Comentários – inovação – quanto que é inovador tudo isto que estamos falando Os adjetivos escolas demo-cráticas, educação integral, eles vem para diferenciar experiências localizadas, mas estamos falando de trans-formar a educação como um todo e quando atingirmos isto, não precisaremos de adjetivos que diferenciem determinadas propostas. Inovação é tudo que ajuda a transformar a educação neste sentido, da participação, da integração, do respeito à singularidade de cada de um, de valorização da potência das novas gerações para criar um mundo novo. O ministro Renato Janine vem falando de criatividade, o que faz muito sentido nesta perspectiva.

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Eu prisioneira de mim.

Eu sou uma prisão. Trancada dentro de mim. Os muros altos permitem a entrada, mas nem sempre a saída. A intenção de entrar e sair para saber mais sobre quem ali habita. Um local para transformar e ser transformado. Deformado. Reforma. Forma. Universitários, mendigos, políticos, presos, escravos. Pessoas. Eu.

Inicio

Os conhecidos edifícios de classe média assemelham-se muito com aos prédios da FEBEM. Seus habitantes vivem presos. Os moradores de edifícios, como diz “Liberdade e escravidão são estados de espírito.” Quando esta escravo/preso de verdade este estado torna-se de corpo e alma.

A liberdade é uma idéia bonita. A liberdade é um conceito para talvez nos distrair da realidade a que estamos presos. Sempre estamos ligados a representações estereotipadas. A prisão representa o local onde alguém vio-lou a sociedade. Violaram seus costumes, sua cultura, suas expectativas em relação a ser um cidadão. Torna-se prisioneiro da sociedade representada nos operadores e locais da Sra. Justiça. Homens a quem damos o direito de julgar, capturar e por vezes ate matar. Lugares onde se pode matar, torturar, aprisionar. Todos resguardados na abstração das representações de papeis sociais. Eu, fui lá e fiz meu papel. O da tola que acredita ter condi-ções de ajudar alguém somente por ter estudado e ter uma ótima família. A ironia é que não salvei, fui salva por essa experiência. Vivenciei muito mais humanidade dando aulas na internação do que poderia sonhar. Aprendi a arte de respeitar e ser respeitada.

A minha historia na Fundação é bem contemporânea. Em uma rede social respondi a um anuncio de uma jo-vem “Oportunidades oficinas em arte para jovens infratores!”. Sempre curiosa, pensava estar preparada para essa experiência. Ingênua, dizia “Devo ir onde às pessoas não querem, conhecer outras realidades, sair da bolha.” Então o telefone tocou e agendamos uma entrevista. Fui bem recebida e logo já estava com a minha querida Coordenadora me ciceroneando em meu primeiro dia dentro do complexo do Tatuapé.

Hoje vejo literalmente a proteção divina nesses primeiros passos dentro da selva de pedra. Quando somos analfabetos não sabemos ler os sinais, símbolos e signos em sua totalidade passam despercebidos. É sabido por todos que locais como esses tem uma linguagem própria. Então aprendi sobre quem manda na “casa”. Variava entre os meninos e funcionários, uma dança de poder com piruetas de violência. A unidade onde rea-lizei as primeiras atividades era “meio a meio”. Nem todos os funcionários eram autorizados a entrar na área de convivência da unidade. Nesta encontramos a quadra, os dormitórios e o refeitório, onde aconteciam as atividades a maioria das vezes. Sempre acompanhada por um agente de segurança. Sempre contando todo os lápis, apontadores, borrachas, tudo. Foi assim no primeiro dia ate o ultimo. Controle!

A PRISÃOMilena Franceschinelli

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O tempo passou, e perto do segundo ano trocamos de convenio. Os educadores continuaram mas a ONG mu-dou. Porem, tudo continuava parecido.

O grande problema não era a fundação, os meninos, os educadores, os funcionários, os pais, as mães, as vi-timas. O problema está fora. O problema está solto. O problema é a social prisão. Não a prisão social. Ali na prisão social temos nosso atestado frio, nu e cru, de falência da liberdade, de falência dos direitos, de falência dos sentimentos humanos. O triunfo do reino da loucura, da desigualdade, da injustiça. Não há nada a ser fei-to, o resultado esta posto. O julgamento já tem sua sentença. Todos juntos acreditamos em uma das grandes mentiras da atual sociedade. Estamos todos presos, não tem como fugir. A prisão não tem grades, então porque fugir?

Com uma desigualdade ridícula e vergonhosa temos uma dualidade cruel. Alguns têm condições para exercer sua cidadania e preferem não exercer. Os outros, a grande maioria, não exerce sua cidadania, apenas exerce o papel de escravo consumidor. No final temos uma grande massa de consumidores encantados com um luxo superestimado através da fantasia de ser único exclusivo. Ai está uma das grandes mentiras contadas e re-contadas, a importância de ser único. Acreditar nisto é ter certeza de fracasso. Somos fortes unidos. Veja só nossa capacidade de união para destruição ao manter as grandes mentiras em vigor. O consumo é o principal apelo dos jovens internados na unidades da atual Fundação CASA. Eles querem o celular, o tênis e a corrente, querem ser a imagem e semelhança dos grandes consumidores, ditos por eles “PLAYBOYS”. A contradição esta no desejo de ser/ter e ódio de não ter/ser a imagem monetária e marcada por logos significando riqueza. Não queria mais conviver com a minha falência. Precisava voltar a acreditar em todos e, principalmente re-construir minhas sobras. A transformação só foi sentida quando me vi igual. Sem dor. Sem revolta. Calma, tranqüila, ajudando a conduzir a docilidade dos corpos presos. Mais uma peça a serviço da manutenção da ordem do caos. Não pude acreditar no mais obvio, sou igual a todos, somos humanos. Do mais cruel ao mais amável, apenas, humanos.

Voltei a ficar apenas em uma prisão. E fico diariamente vivendo meu sonho de liberdade. Uma liberdade onde a diferença seja riqueza, o amor a maior realização, onde as alegrias se sobressaiam a nossos dissabores. Sim, parece tudo muito obvio, mas é tragicômico o tempo e as experiências para aprendermos o simples. A sabedo-ria esta sempre nos rondando precisamos ver.

Falta ver no Brasil um movimento anti guerra civil. O estado de guerra é quando se está disposta a matar para defender seu território, sua soberania e ideologia. No capital por vezes é a soberania do seu relógio, do seu celular, do seu carro. Os jovens trancafiados são os soldados mais fieis das industrias em atividade. A indústria da moda cria jovens dispostos a fome em troca de corpos esquálidos, iguais aos subnutridos da nossa extrema miséria humana. Novamente as imagens são confusas. A indústria da doença guarda os segredos da saúde e cobra por pedaços em cartelas, às vezes possuindo sua cura, faz a manutenção da dor, investe no lucro, não na solução do problema. As indústrias da comunicação e cultural, unidas para disseminar e enraizar as grandes mentiras encontram na ameaça da internet sua salvação na próxima esquina da história.

O espetáculo da punição continua. O violentado hoje é o violador de amanhã. Hoje preso, amanhã preso. Somente o possível é factível, nada alem dele. O universo de possibilidade é proporcional ao numero de ex-periências a que somos expostos. Quando nos temos limitações severas tendemos a ter um numero limitado de possibilidades. Funcionamos por repetição. Mimetizamos aquilo que nos cerca. Se desejamos ser educados devemos estar cercados de exemplos de sabedoria. A academia esta se revendo quer unir o desunido, transdis-

ciplinar. Cidades educadoras, cidadãos solidários, respeito da diversidade, amor. O mundo esta criando novas medidas e novas saídas. O PIB da lugar ao FIB. Em evento se pede mais AMOR EM SP. Precisamos materia-lizar o amor. Estamos juntos presos nesse tempo e espaço a única saída é a morte e a extinção. A escolha deve ser compartilhada junto a responsabilidade pela felicidade.

Espero ter noticias de meninos e meninas em contato com a arte antes de serem presos. Espero vivenciar o momento onde fecharemos prisões em nosso país. Acordar e ver a população armada de boas intenções, to-lerante e respeitando a diversidade. Eu quero ser eles. Viver a liberdade compartilhada, pois liberdade não se vive só, se vive junto.

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Relatos de experiências educativas com jovens aprisionados por maiores infratores

Como eu vejo as pessoas que passaram por mim? Com a mesma vivência e histórias de vida diferentes.

Bom, vejo cada uma dessas pessoas caminhando numa esteira com barreiras e obstáculos. Ao mesmo tempo vejo que estão carregando uma mochila, aparentemente cheia, repleta de acontecimentos

que representam esta pessoa.

Quando nos deparamos com uma atividade que vai nos acrescentar mais algum tipo conteúdo, seja ele qual for, isso representa ter que encher mais nossa bagagem, com coisas que nunca vimos.

Não é fácil simplesmente largar tudo que está dentro desta mochila, pois ela nos representa, mesmo que com defeitos; falhas, desejos e sonhos.

Não podemos largar tudo, pois talvez assim não existíssemos. Nossa história consiste numa trajetória de conhecimento, transformação e resistência.

Giovane Vieira da Silva, agente educador na Associação Horizontes, universitário com inúmeras experiên-cias e que um dia cumpriu medida socioeducativa de internação.

A cena nunca saiu da memória. Um psicanalista que atuava há anos com meninos em situação de rua, parti-cipando de uma conferência sobre os direitos das crianças e adolescentes na década de 90, ao ser interpelado por um menino em situação de rua sobre o que a sociedade esperava dele, respondeu: “a sociedade quer você morto!”. Diante da fala, um mal-estar intenso se generalizou pelo ambiente e comentários pareciam recriminar o enunciado do psicanalista. Naquele momento qualquer possibilidade de ilusão sobre o lugar daqueles pro-fissionais e acadêmicos tão potentes na luta pelas garantias fundamentais previstas no ECA de 1990 parecia se esvair.

Como assim? Como responder de forma tão direta para um adolescente que é vitima das maiores violências? Não estamos aqui reunidos justamente para mudar esse cenário? A cena ficou e os anos se passaram. Não estamos mais em 1990, 2000 e sim, em 2015. Também não estamos em 1937 quando foi publicado Capitães da Areia ou no final do século 19 em que um contingente imenso de crianças negras ficaram a vagar pelas ruas, sem possibilidades de um futuro outro que não o de miséria e exclusão. Estamos em 2015 e os dados sobre a violência contra crianças e adolescentes no Brasil continuam a gritar o óbvio: a sociedade não liga e em muitos casos aplaude a morte de crianças e adolescentes indesejá-veis. Claro que se indagarmos tal evidência para cada pessoa, isto jamais será revelado desta maneira; muito pelo contrário: é insuportável ter que olhar no espelho a própria violência e o violento será na visão comum o “menor infrator”.

A RESPEITO DE ADOLESCENTES, ATO INFRACIONAL E VISIBILIDADE SOCIALHeloisa de Souza Dantas e Marília Rovaron

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Relatos de experiências educativas com jovens aprisionados por maiores infratores Se não fosse assim, como explicar o anestesiamento frente aos dados de homicídios da população pobre, jovem e negra no Brasil? O Mapa da Violência de 2014 aponta que 7 jovens entre 15 e 29 anos são mortos a cada duas horas, perfazendo 82 jovens mortos por dia e 30 mil por ano. Dos assinados, 77% são negros. Mas parece que a repetição destas palavras e números não sensibiliza a população que está distante das periferias e que não parece se mobilizar com algo que ela não vê e não participa. É como se tais dados, quando difundidos, fizessem referência a algo que se passou em outro mundo e tempo histórico. Para que falar sobre isso? Por que contar algo que está tão perto e tão longe de nós?

A tentativa de enxergar o horror do outro exige que possamos sair de nossos lugares e que consigamos nos identificar com aqueles que pensamos ser diferentes de nós. Significa perceber que meu filho poderia estar no lugar de Eduardo de Jesus Ferreira, 10 anos, ironicamente assassinado pela polícia em sua casa no Rio de Janeiro na Páscoa de 2015. Tal anestesiamento não é novidade alguma e muito já foi dito sobre a constatação de Hannah Arendt de que a banalidade do mal acontece no vazio do pensamento, transformando a violência em algo corriqueiro. O trágico é que Eichmann não era um monstro antissemita, mas um burocrata cumprindo ordens que não percebia a brutalidade de suas ações.

Ao mesmo tempo, estamos vivendo o avesso do processo identificatório e contribuindo para a instalação de um discurso do medo que condena o adolescente que se envolveu na prática de atos infracionais a ser o algoz da nossa sociedade. Como fazemos para inverter o espelho e lançar sobre o adolescente que acabou se envol-vendo no mundo do crime a ser o nosso monstro social? Como se ele fosse naturalmente violento e inconstan-te, como se tivesse nascido com a marca da instabilidade e com a capacidade inata de se envolver no crime?

A criminologia critica e a teoria do labeling approach nos auxiliam nesta compreensão. Criada na década de 60, nos Estados Unidos, o labeling approach se firmou como uma mudança de paradigma que coaduna com a transição entre a criminologia tradicional e a criminologia crítica, sendo considerada um modelo teórico que explica o comportamento criminoso com base em construções sociais pautadas no Direito Penal e na seletivi-dade punitiva, e não mais na patologização da personalidade.

O labeling approach afirma que os indivíduos possuem a mesma potencialidade de cometer condutas consi-deradas criminosas. O que diferencia sua punição e caracterização como crime é a tipificação criminal, deter-minada pelas instituições oficiais de controle social, além de fatores sociais que atravessam as classes sociais marginalizadas, marcadas pela ausência de garantia de direitos sociais básicos. Remetendo aos adolescentes, ainda que em classes sociais abastadas também existam atos infracionais, esses meninos e meninas não são submetidas ao mesmo processo de estigmatização justamente pela seletividade punitiva do Sistema Penal, que determina quem são os supostos desviantes e qual tratamento deve ser a eles dispensado. Ou seja, os reais destinatários do sistema punitivo não são os verdadeiros autores dos fatos típicos, mas sim os tipos de autores destes fatos, que compreendem, historicamente, grupos sociais rotulados como criminosos potenciais e sujei-tos perigosos que demandam formas efetivas de controle.

A partir desta análise, conseguimos perceber que uma leitura mais crítica de nossa história revela que a lei é que cria o criminoso, devido à posição que esse ocupa em uma determinada dinâmica social. Das casas de correção do início do século 20, aos centros de internação para cumprimento de medida socioeducativa de hoje, o que vemos é a internação compulsória de meninos e meninas pobres que tomam conhecimento de sua cidadania pelos limites da lei.

Quem são esses meninos e meninas?

Os adolescentes que acabam se envolvendo na prática de atos infracionais são antes de tudo adolescentes. Isto quer dizer que enfrentam as angustias, incertezas e necessidades de modelos identificatórios para afirmação de sua identidade e de seu lugar social como qualquer outro indivíduo nesta mesma faixa etária. Em nosso país, o ECA compreende que aqueles que estão na faixa etária dos 12 aos 18 anos encontram-se em uma fase peculiar do desenvolvimento humano, porém há diferenças fundamentais na maneira como este período é vivido ao serem considerados fatores como classe, raça e gênero.

Concomitante com tais diferenças que marcarão as trajetórias desses meninos e meninas, Birman alerta para o impasse da juventude atual que não encontra “um horizonte delineado para sua inscrição no espaço social”. No mundo, a globalização neoliberal contribui diretamente para a não inclusão de jovens no mercado de trabalho e obriga aqueles que conseguem se inserir a constantes adaptações em nome da sobrevivência. Em “Vidas Desperdiçadas”, Bauman reconhece tal fenômeno de nosso tempo e aponta que em uma sociedade cada vez mais seletiva, as pessoas passam a ser “descartáveis” ou “refugadas”, havendo o entendimento por parte da sociedade de que a culpa pela marginalização é sempre do outro, dos grupos marginalizados; con-siderados verdadeiros “lixos humanos”. Para Bauman, o modelo atual se traduz pela passagem do “Estado social” que buscava incluir os cidadãos, para um “Estado excludente penal”, voltado para o controle do crime, enquanto as relações são pautadas pela dificuldade de construção de vínculos, instantaneidade e descartabili-dade.

No cotidiano das cidades brasileiras, os adolescentes são atingidos diretamente pela instantaneidade e ausên-cia de perspectivas desse nosso tempo histórico, bem como pela profunda desigualdade social atribuída à má distribuição de renda e ausência de políticas públicas capazes de responder às necessidades de saúde, educa-ção, cultura, dentre outros campos de direito de uma população que vive constantemente bombardeada por ideologias de consumo que afirmam de forma impositiva que o lugar social de cada indivíduo se traduz pelo seu potencial aquisitivo.

Essa geração de jovens, nascida do final da década de 90 e início dos anos 2000, não reconhece como sua a ideologia de seus pais e avós, que é fortemente marcada pela moral do trabalho, herança de um passado onde o operário de chão de fábrica tinha respeito enquanto sujeito e contava com a estabilidade da carteira assinada e a promessa de um futuro seguro.

A partir da reestruturação produtiva – resposta criada pelo capital como forma de atender à crise econômica vigente que teve inicio na década de 70 – houve o aumento do desemprego em massa e o fim da sensação de estabilidade que atravessava a geração de trabalhadores no Brasil, sobretudo na década de 80.

Com a crise, muitos provedores perderam seus empregos, as mulheres passaram a trabalhar fora de casa (sur-gimento de novos arranjos familiares, como os matrifocais). Os filhos passaram a cuidar dos irmãos, por vezes tendo que abandonar os estudos e iniciar precocemente no mundo do trabalho informal, alocados no setor de serviços, como terceirizados, forma de trabalho extremamente precária. Foi o fim da crença no progresso para essa geração.

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Neste contexto, há clivagens entre o universo moral do trabalhador e do sujeito inserido no mundo do crime, que precisam ser consideradas para um entendimento sobre as expectativas dessa nova geração e sua possibi-lidade de ascensão em um mundo marcado pela legitimação do consumo. Ainda que o tráfico de drogas tenha começado a ganhar força na década de 80, o “mundo do crime” alcança novos domínios a partir dos anos 2000, reivindicando para si certa legitimidade social. Além de se configurar como fonte de geração de renda, de proteção e apoio em caso de necessidade, ele se apresenta como lócus de pertencimento e identidade para uma geração que não se vê contemplada no universo moral das gerações anteriores.Para os jovens atraídos por essa nova instância normativa, “o lugar é aqui e o tempo é hoje”. Isso significa dizer que há uma nova forma de relação social vivenciada por essa geração, que vive intensamente a ideia de “vida loka” e é atravessada por situações de adrenalina e risco, prazer e dor, em um espaço onde a morte é presente o tempo todo. Sem condições de concorrer a vagas no mercado de trabalho formal que exige certa formação escolar e qualificação profissional, e sem expectativas em um futuro marcado por longas jornadas de trabalho assalariado em que realizam atividades em que não veem sentido, submetidos à quase nenhuma chance de ascensão a curto e médio prazo, a opção desses jovens é pela possibilidade de tornar-se parte de um grupo instituído, que possui reconhecimento social e prestígio local.

A inserção dos jovens neste mercado paralelo está relacionada à ausência da efetivação de seus direitos, à desresponsabilização do Estado nessa garantia, sendo presente em suas vidas apenas como forma de exclusão e punição.

A escola, espaço fundamental de socialização na vida de crianças e jovens, se configura também como espaço de exclusão, não sendo eficiente em sua função de garantir direitos, quando enxerga o jovem como ameaça à ordem social.

A punição aparece como ferramenta disciplinar utilizada pela escola, que deixa então de cumprir sua função social emancipatória, estigmatizando e expulsando o adolescente considerado transgressor e potencialmente perigoso, rejeitando e fortalecendo a seletividade a que este menino está exposto em toda sua trajetória de vida.

É através das relações estabelecidas com este universo ilícito, que muitos adolescentes da geração nascida nas duas últimas décadas se sentem valorizados, incluídos, em condições de se impor, seja através do dinheiro ou da violência, e reivindicam para si o status de consumidores. Em tempos onde o consumo estabelece identi-dade e visibilidade, esses jovens não querem continuar à margem e sua inserção neste espaço criminalizado permite que seus desejos sejam realizados, ainda que temporariamente e com alto custo. Sua busca por prestí-gio e reconhecimento social é a mesma de jovens de outras classes sociais, tendo como diferencial a forma de obtenção dos objetos de desejo.

Referências:

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BATISTA, V. M. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BIRMAN, J. Juventude e condição adolescente na contemporaneidade: uma leitura da sociedade brasileira de hoje. In: BOCAYUVA, H ; NUNES, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L8069.htm. Acesso em: 3 jul. 2014.

BROIDE, J. Adolescência e Violência: criação de dispositivos clínicos no território conflagrado das perife-rias. Psicologia Política. Vol. 10 (19). PP. 95-106. Janeiro-junho, 2010.

FEFFERMANN, M. Os jovens inscritos no tráfico de drogas: os trabalhadores ilegais e invisíveis/visíveis. In: BOCAYUVA, H ; NUNES, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contra-capa, 2009.

FELTRAN, G.S. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana. Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – vol. 53(2), julho-dezembro 2010, São Paulo, SP.

ROVARON, M. Nós e os outros: reflexões acerca da política de criminalização da juventude pobre. Margem Esquerda , v. 1, p. 36-43, 2013.

TRASSI, P.A.; MALVASI, P.A. Violentamente pacíficos: desconstruindo a associação juventude e violência. São Paulo: Cortez, 2010.

WAISELFISZ J.J. Mapa da Violência 2014. Os Jovens do Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2014. Dispo-nível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf. Acesso em 9 jul. 2014.

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Em pesquisa recente realizada pelo Datafolha, ficou demonstrado aquilo que já era de amplo conhecimento de todos: a maior parte da população brasileira apoia a redução da maioridade penal (87%). Com ligeiro aumento desde 2003, quando 84% dos entrevistados apoiavam tal medida, a pesquisa comprova o grande anseio pelo encarceramento de jovens infratores como alternativa para a diminuição da violência no país.

Sobre esse resultado é possível gerar algumas reflexões que superam a obviedade dos números e que nos fa-zem refletir sobre o nosso papel como educadores.

A primeira constatação, quase que óbvia, é que durante mais de uma década a opinião da maioria das pessoas em relação à redução da maioridade penal permaneceu inflexível. Durante esse período, o tema da redução somente era trazido ao público pela mídia após casos pontuais e emblemáticos de violência juvenil. Foi apenas com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 171/93 na Comissão de Constituição e Justiça, em março deste ano, que o debate foi ampliado, com a divulgação de posições contrárias e favoráveis à mudança legislativa.

Ou seja, há anos a discussão sobre a alteração da idade penal somente surge quando casos específicos desta-cam-se do todo para serem tratados como regra geral. Mesmo que o número de crimes contra a vida cometidos por jovens tenha diminuído nos últimos anos, que coincidem com o período da pesquisa, não é essa a impres-são que nos deixa o noticiário. De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, entre os anos de 2002 e 2011, houve grande redução dos números de casos de homicídio (de 14,9% para 8,4%), de latrocínio (de 5,5% para 1,9%) e de estupro (de 3,3% para 1%).

Ao menos a experiência internacional nos serve para mostrar que o fenômeno que ocorre aqui não é isolado, o que possibilista que nos antecipemos aos desafios que estão a surgir.

Em 2014, no Uruguai, por meio de um plebiscito, a população disse não à redução da maioridade penal. Ape-nas três anos antes, 75% das pessoas eram favoráveis à medida. O que mudou tanto em tão pouco tempo?

A sociedade civil organizou-se em uma ampla frente para facilitar o acesso à informação e levar o debate ao grande público, na tentativa de mostrar de forma didática porque a proposta da redução não representava uma solução para a insegurança e gerava graves consequências sociais. O movimento “No a la Baja” atuou utili-zando-se de estratégias de comunicação, com a produção documentos, vídeos, realização de manifestações e intervenções artísticas, com a finalidade de sensibilizar as pessoas pela causa, sem utilizar-se do discurso do medo tão disseminado pela proposta contrária (http://noalabaja.uy/).

EDUCAÇÃO CONTRA A REDUÇÃO... DE DIREITOSBruno Bissoli

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A experiência uruguaia confirma que o acesso à informação e aos dados técnicos sobre o tema favorece o po-sicionamento das pessoas em oposição à redução da maioridade penal.

Não é à toa que os especialistas que estão em contato mais próximo do assunto convergem em contrariedade à PEC. Recentemente, em ato realizado na Faculdade de Direito da USP, juristas, acadêmicos, políticos e membros de movimentos sociais, das mais diferentes posições políticas, disseram não à redução da maiorida-de penal (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1622482-juristas-e-autoridades-fazem-em-sp-ato-contra-a-reducao-da-maioridade-penal.shtml).

Segundo o ex-Ministro da Justiça de FHC, Miguel Reale Jr., a PEC 171 é uma fraude, “uma mentira que se construiu longe de todos os dados que aí se encontram, nos fóruns e nas estatísticas demonstrativas, de que a criminalidade praticada por menores é de índices extremamente inferiores do que a criminalidade praticada pelos maiores”.

E quando a Polícia Civil do Rio de Janeiro e o Ministério Público de São Paulo se colocam contra a redução da maioridade penal é possível suspeitar que tem algo errado com a venda política da punição de jovens in-fratores como uma solução para diminuição da criminalidade (http://colpol.com.br/a7/?p=1784 e http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noytticias/noticia?id_noticia=13384560&id_grupo=118 ).

Em um país que os jovens são mais vítimas do que autores da violência, não é possível ignorar que entre 2006 e 2012 morreram 33 mil adolescentes, o que coloca o Brasil em segundo país no mundo em número de homicídios de jovens, perdendo apenas para a Nigéria. Por isso, não podemos aceitar qualquer retrocesso em relação aos seus direitos e garantias que já são tão pouco respeitados.

Exatamente para evitar que direitos tão duramente conquistados sejam sacrificados por políticas circunstan-ciais, é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal não admitem que haja retrocesso em relação aos nossos direitos fundamentais. Por isso, a PEC 171 é inconstitucional.

Em tempos nos quais nossos direitos encontram-se ameaçados por aqueles que deveriam resguardá-los, é fundamental que não lutemos apenas para evitar o retrocesso, mas para garantir que os direitos já previstos sejam efetivados.

Daí a necessidade de valorizarmos a educação em direitos desde o ensino básico, para que a nossa opinião sobre questões fundamentais para o exercício da cidadania não fique a mercê da disponibilidade de dados nos meios de comunicação ou de discursos políticos oportunistas.

É com a educação dos jovens para a cidadania que lhes damos a oportunidade de realização de suas vocações em favor de uma sociedade mais justa e igualitária, distante da criminalidade. É com uma educação eman-cipatória que nos posicionamos contra a privação do acesso ao conhecimento, para não encarcerar nossas liberdades individuais e para passarmos a entender que a violação dos direitos de alguns enfraquece o direito de todos.

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Imaginemos um grupo de jovens considerados “perdidos para o estudo”, sete jovens marcados por perdas e danos, que alternavam períodos de dureza na construção civil com passagens pela prisão. Os volumosos relatórios, que os acompanhavam, davam conta de andanças pelo submundo do tráfico e da prostituição, de assaltos e outras violências.

Imaginemos que haviam sido expulsos de várias escolas. Imaginemos que, com 15 ou 16 anos, quase não sabiam ler e muito menos compreender um texto. Sentados em volta de uma mesa, escutaram a inusitada pergunta: O que quereis fazer?

Sorriram, entreolharam-se e um deles inquiriu: Está a falar sério? Nunca ninguém nos perguntou isso! – ex-clamaram, quase em coro.

O professor confirmou: O que quereis fazer? E a conversa fluiu plena de surpresas e interrogações:

Podemos trazer uns pássaros, que temos lá no presídio?

Podereis trazer os pássaros. Mas dizei-me porquê… Os guardas dizem que os vão matar, porque fazem barulho e sujam tudo.

E, se trouxerdes os pássaros, onde os ides pôr?

O decano do grupo interveio: Eu estive a trabalhar num condomínio e ajudei a construir um viveiro. Sabeis o que é? E após a retórica pergunta, explicou: É assim como uma casa de pássaros, muito grande, com árvores dentro, e os pássaros ficam como quem está em liberdade… Entendeis? Entenderam. E com o professor repetindo a pergunta inicial – O que quereis fazer? – deram início a um… projeto. Preciso saber como será esse tal viveiro – insistiu o professor. Os moços o desenharam. O professor olhou o esboço de viveiro e perguntou: Qual é a proporcionalidade, qual é a escala? O que é isso? O professor explicou e eles registraram os conteúdos no espaço da folha encimado pelo título: “O que preci-samos saber”. E outros conteúdos foram acrescentados em forma de pergunta: Em que ponto cardeal estará a porta? Quanta cantoneira de alumínio?

IMAGINEMOS José Pacheco

Os jovens interromperam o interrogatório do mestre: Quanta… o quê? Quantos metros. E quantos metros quadrados de tela vão comprar? Sabeis como se calcula a área de um re-tângulo? Conheceis as medidas de área? Quanto vai custar todo o material? Ireis pedir desconto ao dono da loja? Sabeis calcular percentagens? O que comem esses pássaros? Qual o seu habitat? E os seus predadores? O que é uma cadeia trófica?… E por aí foi progredindo um diálogo, que deu origem a… um roteiro de pesquisa. Duas semanas depois, lemos um convite, num cartaz pendurado na parede: Quem quiser aprender como se faz um viveiro, o que é uma escala, como se calcula a área do retângulo e outras coisas mais, vá ter conosco ao viveiro, que a gente explica. E quase todos os alunos foram assistir à explicação. De régua em punho, os sete começaram por explicar que a cada centímetro na escala equivalia um metro: Não é um metro quadrado. É só um metro, não confundas medidas lineares com medidas de área! – atirou um dos autores do projeto, quando braços se erguiam para pedir esclarecimentos.

Quando todas as dúvidas foram dissipadas e os professores concluíram os seus registros de avaliação, os “sete do presídio” descerraram uma lápide de cartão: “Oferecemos este viveiro à nossa escola”. Ato contínuo, cente-nas de alunos os aplaudiram, cumprimentaram, abraçaram, não os “sete do presídio”, mas já sete maravilhosos seres humanos.

Imaginemos que esses jovens recuperaram a autoestima, que alguns cursaram a universidade. Imaginemos que já são sexagenários e que todos são pessoas felizes. Imaginemos, também, que todas as escolas podem operar tais milagres.

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