Revista Presença - Re-edição

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Reedição da Revista Presença, nº 46, de Outubro de 1935

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PRESENCAFOLHA DE ARTE E CRÍTICA

COIMBRAOUTUBRO, 1935

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2 PRESENÇA

FICHA TÉCNICA

PRESENÇA #46ANO NONO | VOLUME SEGUNDO

EDIÇÃO ORIGINAL

DIRECTORES E EDITORES JOÃO GASPAR SIMÕES

JOSÉ RÉGIO

CASAIS MONTEIRO

ADMINISTRADOR JOAQUIM MOREIRA

REDACÇÃO R. DE MIGUEL BOMBARDA, 516

PORTO, PORTUGAL

ADMINISTRAÇÃO LARGO DA MATERNIDADE

DR. JULIO DINIZ, 70

PORTO, PORTUGAL

EDIÇÃO 2010

DESIGN E ILUSTRAÇÃO TIAGO GONÇALVES

FOTOGRAFIA PEDRO DE PASSOS

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PRESENÇA 3

ÍNDICE

4 EDITORIAL

6 POEMAS DE LIONELLO FIUMI

8 BALADA COM LUA MORTA

11 REFLEXÕES SOBRE RELIGIÃO, DEUS E MANDAMENTO

15 QUATRO DE 'OS VINTE POEMAS DA NOITE'

16 CINCO POEMAS DO 'CÂNTICO DO DESEJO'

20 CINCO POEMAS DO 'CANCIONEIRO SENTIMENTAL'

22 TRÊS CANÇÕES

25 O MAR...

26 JUSTIÇA

28 UM TRECHO DO ROMANCE EM PREPARAÇÃO 'A VELHA CASA'

32 COMENTÁRIO LITERÁRIO

35 CRÍTICA A 'CALUNGA' DE JORGE DE LIMA

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4 PRESENÇA

Pela primeira vez, o aparecimento de um novo colaborador é, na presença, acompanhado de um co-mentário. Parece-nos oportuno fazê-lo, por duas razões: A primeira só diz respeito ao poeta: João de Castro Osório, pode dizer-se, está inédito como lírico. Os importantes fragmentos que publicamos da sua obra inédita - mostram bem não se tratar de um novo; mas já todos o sabiam. O significativo é que João de Castro Osório tenha esperado durante o momento oportuno de se revelar sob tal aspecto. Aprove-se, ou não, êsse silêncio, o que é certo é representar uma sêde de aperfeiçoamento digna de admiração. E aqui surge a segunda razão, que diz respeito ao poeta e à nossa revista: Também consideramos significativo que João de Castro Osório tenha considerado a presença própria a revelar o que o “poeta durante anos preferiu esconder”; como consideramos significativo que a presença tenha acolhido com entusiasmo, um entusi-asmo que aqui declara, o poeta João de Castro Os-ório. Significa isto, por um lado, que a presença não é orgão de nenhuma «capela literária»; antes aspira a ser, fora de qualquer preocupação de escola ou anti-escola, orgão de todos os valores representativos. Pertenca a presença a todos os artistas contemporâneos cuja mensagem importe. Se alguns dêsses há que ainda não honraram, ou habitualmente não honram, as páginas da presença, - não é a presença que lhes fecha as portas. Significa, por outro lado, que os verdadeiros artistas como João de Castro Osório sabem ver isto mesmo. E vem a propósito citar a recente resposta de João de Castro Osório ao inquérito realizado pelo Diário de Lisboa. Nessa resposta superior pela lucidez, o esforço

de imparcialidade e o reconfortante optimismo, vinca João de Castro Osório vários pontos importantes. En-tre êles, parece-nos elucidativa a tentativa de caracteri-zação da geração de 1930. Se é certo que a presença tem entre os seus colaboradores não só escritores desta geração mas também da de 1920 (adoptemos a divisão de João de Castro Osório), também é certo que, pelo menos sob o ponto de vista crítico, procura-mos a afirmação de certos valores espirituais, que nos cabe proclamar e defender. Por isso nos apraz citar êste fragmento da resposta de João de Castro Osório ao referido inquérito, no ponto em que procura indicar algumas características da geração de 1930: «Sentido trágico, liricismo mais profundo que formal, ao mesmo tempo religioso e humano, amor da vida e da ener-gia mas elevado já a uma afirmação religiosa e assim, em vez de angústia metafísica, uma certeza metafísica e humana que poderá vir a ser a vitória e afirmação de um sentido humano e também divino de uma cri-ação espiritual que em Antero foi previsão, incerteza, dúvida criadora e como tal profunda angústia». Por muito difícil que neste momento seja caracterizar uma geração em caminho, - podemos encontrar nesta pas-sagem pelo menos a indicação daquilo para que tende a nossa geração. Importa-nos dizê-lo. Demasiadas vezes nos temos visto acusados dum «partidarismo» de pes-soas, quando entre nós só há - e êsse tem de haver, já que procuramos afirmar - um partidarismo de tendên-cias. Decerto não poderemos deixar de proclamar, quer pela afirmação dêles quer pelo combate ao que lhes é adverso, os valores e tendências que dão vida à nossa geração.

EDITORIALJOÃO DE CASTRO OSÓRIO E A ‘PRESENÇA’

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PRESENÇA 5

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6 PRESENÇA

trapézio

Desaparecido o prestidigitador de Hong-KongA trapezista americana, flexível,Enrodilhou na barra os seus vinte anos.Pelo circo fora, a sua beleza ecoou como um gong.

Cílios imensos e lourosComo auréolas nos altares,Seus olhares iguais a setas,Ela era, sob o rosa da malha,Um rijo fruto dos trópicosCujo sabor, decerto, era desconhecido e raro.

O meu desejo, fustigadoComo por um domador,Violento a atraíu sôbre o meu coração,Para lhe dar paz.

Ao trapézio vazio se lançou dum saltoO meu desejo, e em saltos mortaismergulhou nos absurdos espaciais.

Beleza de tôdas as partes!Ter-vos nesta mão, mas tôdas, tôdas,Como os fragmentos do arco-irisNa bola de vidrodum pesa-papéis.

Mas ficou-me o tormentoDe não poder ter, de não poder amarTôdas as mulheres do mundo que neste momentoSão belas e de amar.

As que nem sequer imaginei.As que murcharão tristementeE hão-de perder-se na trevaAntes que eu tenha podido conhecê-las.

POEMASde LIONELLO FIUMI

a intrusa

Quando as nossas duas ternurasSe reduzem a uma sóComo duas brisas se encontramPor uma noite de lua,A’s vezes, nessa doce comunhãoQualquer coisa - um hálito? uma sombra? - tu sentesQue se interpõe.

Receias a súbita intrusa,Confusamente adivinhada,Porque me sentes as mãosDe súbito paralisadas,E os olhos tomados de incerteza.

Exiges-me para tiPelo teu direito de mulherMas não podes, não podes prender-meFujo, sou flor estrada nuvem mar,Ao longo do trajecto(Branco, espera o papel)Duma volúvel imagem.

Querida, não tenhas ciúmeDaquela intrusa qualquerE comigo, adora também.Passa num relâmpago, ei-la, foi-se,Esvaíu-se talvez para sempre.Mas que eu fixe êsse relâmpago,e amanhã, atravez de mim, o mundoterá uma côr a mais.

Querida, não tenhas ciúmeDaquela intrusa qualquer.

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PRESENÇA 7

poesia

Nas células opacas dos dicionáriosAs palavras procuram-se confusamenteComo se as atraísse uma inconsciente simpatia,Em místicos cenários sonham reunir-seMas em vão tentam quebrar a ordem alfabética,São larvas inteiriçadas por um sono hermético.

Entra o poeta, fronte sombria, no seu quarto.Os léxicos têm frémitos gestatóios.Ele, as mãos nas rugas, espera a inspiração.As palavras surgem, crepitantes,Zumbem espalhando-se em vôos que hesitam.No quarto pululam intenções e harpejos.

Abre então a janela sôbre os astros.Os espaços irrompem com as matemáticas azuisDe mil silenciosas músicas de enigma.Vêde os números tomar como donzelasPela mão as palavras, e em doce companhiaArrastá-las ao ritmo da sua dança.

Atónito, o poeta escreve em seu cadernoPalavras que tomaram o ritmo do eterno.

tradução de ADOLFO CASAIS MONTEIRO

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Balada com Lua MortaANTÓNIO DE NAVARRO

8 PRESENÇA

Um choro lancinante,chôro que corta a noite,a noite calma, qual mãi a embalarum filho, como a lua embala o luar...

Construía eu uma que se afoiteàquela, subindo, errante,como ela. Só lhe faltava então,nesse instante, o saber amar-me...

Mas o chôro lancinante,cortando a noite, encomendava, carpianum tão doloroso carmeque, abandonando aquela abstracta maquinaria,eu pensei: - que êsse filho morto, pequeninoainda, morto ninguêm soube porquê,foi assim imolado ao alheio (?) destinode quem tão lancinantemente o chorava...- A quem chorava poiso chôro lancinante?!ao filho e à mãi, aos dois?!E o médico não levasse (pensariam atéque a ciência nada remedeia ou sabesó para amordaçar certa instintiva egolatria)para salvar aquela vida o que iriafazer míngua à que lhes éjá consciência plena, e aonde lhes cabetodavia, sofrendo embora, aquela dor,lancinante como a noite. (...E o amorda minha lua?...Se calhar chama-lhe o seu, e a suavida, a minha, que ela talvez me tenhajá subrepticiamente escamoteado;e só me espere em distracçãoe trânsfuga, deixe o coraçãoque lhe deu a vida, frustemente incendiado,a ver ardendo ao longe seu clarão...- êsse clarão que há, quando a lua plenano céu azul subindo, transitória ave de fogo,

migratória e fugaz, com mãos de pérola, depena.)Quem chora aquele chôro na noite negra?!A mãi passou, esqueceu na minha retentiva,e eu julgo a natureza, a noite negra e cegachorando a dor que a liberta e a escraviza.

(...Não sei já que mãos desfolham floresde cinza...)

Porque há duas mãos que me abençoameu expio o crimede lhes ter golpeado a sombra,e de as ter aprisionado,criminosamente, como a duas pombas,depois de havê-las feito passar na frontepara que nela se aninhasse o frescorduma íntima e cariciosa calma...

Ignoro se expio ou gozoa êsse meu crime...;gôzo ou sofrimento,qualquer cousa que nos redime.Também aprisionei a liberdade,a inconsútil liberdade da alma- mas é por ela que eu sofro,ah! porém, gozo, também, sentindo Deusjustificar-se - êle que é luz -com êste pobre crepúsculo efémeroque lhe recorta a sombria cruzpara cruciar a humanidadeque eu, dessa maneira tão ingénua,não só explico e alumio,morro e ressuscito.(...Deus é um homem que se explicou totalmente,imolando a humanidade depois de a ter santificado.)

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Só êste adeus que eu digonão sei a quê, não sei a quem,dá a esta Vida inútil,mais do que a dum mendigo,qualquer cousa que ela não tem.

E é êsse qualquer cousaindefinido, que ela atirapara fora dela, ao seu íntimo longínquo,como o aroma à rosa,como o vôo ao pássaro,como qualquer cousa que delira,estrêlana fronte de qualquer Lázaro,que lhe dá um sentidoe uma velapara um vento qualquer.

E são aquelas mãosque me dizem adeuslá do longe, que me fazem esperarsenti-las afagara alma fugitiva...

Ah!...não houvera uma outra evidênmciaalém do que nós vemos...!...(...neste barco onde vou, apenas o som dos remosé luz na noite negra, de negra sonolência...)

ao JÚLIO

O último olhara última palavra,o último golpe d’asa...ficam no meu sangueviajando, ficam...partindoa dizer adeus não sei a quê,

a dizer adeus não sei a quem...E o último do último silêncio,aquele que me desvenda e vê,aonde ficará quando eu partir,quando partir a última fôrça,esta que me vai transferindo?!

Nas minhas mãos há vermes, já, entre o calcáreo,e um Deus que a fôrça do imaginárioensinou, sem eu saber, a minha reza,uma reza que tem a mística da naturezaajoelhada diante do silêncio que nos pesaa alma inconsútil, a vida indefinida, a vida inútil...como se ela pesasse tanto como uma pêna,e mais, muito mais do que o Universo.

(...A agonia será a última prece,síntese da tragédia de quem surge e desaparece,tragédia e carícia, uma que à outra se disfarça,-...carícia, tragédia e farça...)

E quando a noite branda,suavemente suave,já fecha quási as minhas pálpebras- o sono aprisiona a uma aveque se liberta dando ao sonhouma espécia de vida,uma vida que ela tinha guardadana mística dum inda só premeditado vôo.

E a luz esperada,que vela sempree nunca dorme,talha da sombre que nos contempleo motivo dinâmico que nos formea ânima para continuarmos a jornada...

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PRESENÇA 11

Não furtarás! é muito bom para dizer. Mas para com-preender ou sentir? É uma fonte de negativo desespêro para os que são levados a furtar e um motivo de orgulho dos que não furtam e se sentem por isso justificados e engrandecidos na deficiente virtude. Não me digas, tu, homem, nem tu, Deus, não furtarás. Porque a ti, homem, responderei que és ignorante de coisas elementaríssimas, sem saber as quais é ocioso abrir a bôca; e a ti, Deus, responderei que não és do que divindade da zona média do ser, divindade existente (mas não subsistente) entre o homem e o puro divino. O puro divino, segundo penso, e é o que ao longo destas considerações estabeleceremos, não se exprime em manda-mento: assim o homem no que tem de mais íntimo se não exprime em norma, lei ou decreto ou não pode ser objecto dêles. O mandamento radica no divino por assim dizer tran-sitório, o divino a quem mantém o deficiente pensamento do homem e o deficiente amor. É êsse o herdeiro de Jeová e das divindades do Olimpo. Mais alto do que a divindade com uma providência exclusiva e funcional estreita, é o deus do mandamento, um trânsito da divindade para o autêntico divino. É aquele a quem atribuem a criação do mundo e dos sêres, aos quais mantém, governa e dá prémios, o Deus im-aginado à semelhança dos homens da tribo antiga e da tribo dos novos tempos. É o Deus arquitector, operário, geómetra e engenheiro. E seguindo uma prossecução de funções êste deus indefinido mas limitado vem a ser por uma série de ex-plosões ontológicas o legislador e o juiz; e ainda o comissário de polícia, o rei e até o ditador caprichoso. Pertence a tal Deus uma intenção humana e um desí-gnio que os homens em geral podem facilmente perceber. Fica bem na sua bôca o não furtarás. O povo acredita no seu poder e os teólogos consideram-no omnipotente. Mas isto mesmo de se poder falar dêle em têrmos de poder e até de

fôrça traduz o precário da sua humana origem. É um deus genético, mas gerado; em todo o caso não fala em seu próprio nome, mas, alternadamente, em nome do homem e do divino excedente. É o trânsito entre o homem e o supremo destino do homem. É o deus-purgatório, não o deus-paraíso. Um mé-dio fim, e não o fim dos fins. Manda e o mundo diz: manda quem pode. Mas a questão tôda está em saber se a meditação do homem profundo não afasta o mandar, o corrigir e o governar como uma fantasia, embora adequada, como uma espécie de urgência transitória. Deus, criação, mandamento, êstes são os problemas capitais perante o espírito religioso e as suas obras. Êste o problema capital, se estudado sincrèticamente. Mas nada se resolve meditando o vácuo. Já o concreto homem quando objecto de reflexão atenta revela o ser que excede ao Deus transitório, que criou um homem para o que no homem carece de se sentir criado, e um juízo abissal para os que abriram o fácil e sedutor fôsso entre o bem e o mal; e tomou o ceptro para os que precisam de ser governados, ou, convencidos de que êles mesmos o não precisam, requerem então o rei dos reis e o senhor dos senhores para o vizinho incomodativo, corrupto ou revoltado contra as tolices humanas. Manda quem pode, dizem. E Deus manda: Não furtarás. É muito estranho ver êsse mandamento ao lado dêste outro: ama o Deus sôbre tôdas as coisas e ao próximo, etc. Aqui zela-se o meu amor e a minha alma, ali zela-se também a minha bôlsa. E se o mandamento não tem o exclusivo carácter mais fàcilmente apreensível, se êle alcança maior latitude e profun-deza, ainda então que vale um mandamento que não alcança directa mas só possui falsa ressonância na alma do homem? Pois é certo que não são as riquezas ou bens materiais o que podemos furtar aos outros homens de mais valioso: po-demos furtar-lhes a vida (não matarás), podemos furtar-lhes a alegria e o amor que êles de nós solicitam, e a acção espiritual

REFLEXÕES SÔBRE RELIGIÃO

DEUSE MANDAMENTO

JOSÉ MARINHO

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12 PRESENÇA

que para com êles devemos realizar. Podemos furtar-lhes, em-quanto comemos, o pão que lhes falta, e emquanto repousa-mos tranquilamente, a cama que êles não têm ou o tecto que os abrigue. Mas, sendo assim, não está denunciado o que há de equívoco em não furtarás e o que resultará de parcelar e de infecundo do seu cumprimento? Da reflexão sôbre os tradicionais mandamentos da lei de Deus resulta que êles se implicam uns aos outros e estão todos implicados no primeiro. Mas isto mesmo os torna va-gos e imprecisos. E temos então que, compreendidos super-ficialmente são parciais, e que alargados ou aprofundados se indefinem. Em face desta questão, que é uma das questões capitais perante a religião e o espírito religioso tenho-me sentido perplexo sempre que a abordei. E bem compreendo como para a maioria dos homens seja mais simples cumpri-los ou voltar-lhes as costas, não pensando nêles no segundo caso como no primeiro. À maioria dos humanos não agradará, estou certo, a ex-egese do mandamento em questão. E não sem motivo. Pois que vale um mandamento de uma religião universal que não tem presa directa sôbre o espírito dos homens todos, care-cendo de exegese? - Mas o motivo, mais ou menos secreto, do repúdio será, na maioria dos homens, diferente. Não furtar o que os outros possuem de bens materiais quando se possui o necessário ou o supérfluo é fácil à maioria dos humanos. Mas não lhes furtar a alegria que possuem, e o amor e a com-preensão que lhes devemos? Não lhes furtar o pão que êles comem é fácil, mas o pão que nós comemos? Não lhes furtar a casa em que vivem é fácil, mas a nossa casa ou um mísero quartozinho da casa que habitamos? Por análoga maneira se poderia mostrar o equívoco na maneira como estão limitadamente enunciados os outros mandamentos. Quanto ao primeiro é muito belo. Mas a sua beleza vai a par do seu não-sentido e não-valor. Êle traduz uma concepção ética germinal da vida e pode sugerir um val-ioso desenvolvimento teológico. Mas não me parece, em seu género, menos equívoco, supõe um conhecimento fruste do homem, está preso como tôda a ética normativa a uma re-flexão elementar do homem. Neste ponto poderia surgir no espírito atento, reflec-tido e religioso, uma distinção capital para a sua maneira de considerar as coisas: a distinção entre norma e mandamento. A norma tem um carácter transitório e é humana. Está impli-cada na sua origem com um processo, um devir, um espírito, um intelecto. O mandamento procede do espírito puro, da

omnisciência, não visa êste ou aquele momento do ser, êste ou aquele ser. Não supõe na sua origem uma deficiência in-telectual ou ética, mas uma plenitude. Tem por origem uma consciência de tôdas as consciências, um ser de todos os sêres. O seu significado não é apenas lógico ou ético, mas ontológico. A norma tem um carácter suasório e condicional, o mandamento um carácter imperativo e absoluto. Mas o problema justamente é o de saber se o manda-mento pode ter êsse valor universal e absoluto ou se não é antes um momento a ultrapassar na consciência que o homem se vai formando não já só do divino mas até de si mesmo. O problema não é apenas o de saber se uma verda-deira ontologia, uma ontologia harmoniosa do pensamento e do ser não supera todo o mandamento; o problema é, ainda, o de saber se o mandamento não é, em si e pelo que determina, deficiente, e se é possível conceber-se o mandamento sem uma contradição interna no seu âmago e revelada na própria expressão. É êste uma das questões que me parecem estar no âma-go da ética de Espinoza. E foi um dos problemas com que veio embater-se o génio desorbitado de Nietzche. Bergson, nos nossos dias e no seu recente livro Les Deux Sources, realizou uma tentativa de depurar a filosofia da religião das dificul-dades milenárias que resultam da coexistência no cristian-ismo do sentido da graça com a urgência da lei, dialogismo um tanto análogo, de certa maneira, ao que surge no terreno do conhecimento entre o espírito geométrico e o espírito de fi-nesse. Mostrou-nos dois mundos no mundo, dois homens no home, duas sociedades na sociedade. Ora, suposta a distinção do genial pensador francês, importa saber se a sociedade fechada é tão fechada como Bergson a supõe, e a sociedade aberta tão aberta como êle pretende. Certo que Bergson aceita que a sociedade fechada se entreabre com cada men-sagem de um novo místico ou de um novo revelador, com cada nova irrupção do espírito superiormente revelado do alto destino do homem. Mas abre-se para se fechar de novo, embora no seu fundo fique sendo levedada, de cada vez, pelo novo fermento. Ora não quero, por agora, insistir na ideia de que a sociedade fechada não é tão fechada como se supõe. Pretendo insistir sobretudo em que os místicos, a meu ver, não vêem tudo quanto supõem dêles os pensadores ou es-critores que dêles se ocupam. E suponho que tentar traduzir filosòficamente as mensagens dos místicos não dá como re-sultado senão exprimir o pensador do próprio pensamento de maneira desviada ou prematura.

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PRESENÇA 13

Existe no mundo moderno uma tendência omnímoda para dar à metafísica um papel sem autonomia, pondo-a ao serviço da ciência, da arte, dos interêsses de acção moral ou acção política, da religião ou da mística. Tal que argui a filosofia de ir ao serviço da ciência, põe-na ao serviço da arte; tal que a argui de andar ao serviço da política, põe-na ao serviço da mística ou da religião. A mística é uma forma de actividade espiritual que persiste mais simples do que a religião; a re-ligião, ao contrário, torna-se extraordinariamente complexa. E aquilo que faz com que ela se torne assim complexa é sinal do seu específico valor e até da sua grandez. Ela visa ao acto de ser pelo qual se torna possível ao que é finito transmutar-se no que é infinito ou dirigir-se, pelo menos, no sentido do que é infinito. Isso implica uma apreensão do infinito e uma com-preensão do humano. Mas como o humano se realiza em vários planos de ser e no tempo, a religião chega a exprimir um compromisso entre o que há de mais transitório e o que há de mais eterno. Realiza uma penetração dos valores mais escassos pelos mais elevados e, por outro lado, faz refluir al-guma coisa daqueles sôbre êstes últimos. O homem é conce-bido com excessiva simplicidade, como uma imagem e uma semelhança de Deus, e Deus ao contrário subsiste sempre como um membro ou um senhor da grande tribo humana, com os atributos do operário, do juiz, do rei. Ora êste Deus não se concilia com o Deus do amor e da inteligência. Esta impureza específica na concepção do divino e das relações do divino com o humano é um sinal da utilidade da religião. Pois é manifesto que nem a todos os homens é dado pensar o essencial ou estudar a metafísica e nem todos se sentem dispostos a respirar o ar lavado das serranias. A religião existe e, acima da religião, o homem religioso perante o qual todo o homem tem de inclinar-se. Mas quando pretendamos saber sôbre a religião alguma coisa de seguro, que caminho havemos de seguir? Abandonaremos o espírito da metafísica para seg-uir o espírito religioso, mesmo na sua forma suprema de mis-ticismo? Ou não haveremos antes de entrar no templo com o espírito metafísico bem aberto mas exigente? A segunda atitude me parece não digo a melhor, mas a única possível. Foi pensando metafisicamente que Platão e Aristóteles criaram sistemas de pensamento capazes de servir de es-teio seguro à teologia. Se êles tivessem pensado com inten-cionalidade religiosa teria o seu pensamento interessado aos religiosos como interessou? Ter-se-iam inspirado dêles S.to Agostinho e S.Tomaz? O mesmo que realiza em relação ao espírito religioso e suas obras, fará a filosofia em relação à

arte e às suas obras. O artista encolherá os ombros des-interessado de uma especulação que parece feita longe ou fora do sentimento, da experiência, da consciencialização do que na arte é específico; fá-lo-á sobretudo quando é artista por graça das musas e não de Apolo, assim como o religioso fulminará no secreto da sua alma o velho, mas inútil anátema. Entretanto, a metafísica irá ao seu propósito lento, pois o es-pírito da metafísica é vagaroso. E afinal o homem religioso como o artista virão a reconhecer que não foi emprêsa vã, nem tão orgulhosa ou pretensiosa como se afigurava no pri-meiro momento. Era neste espírito que vinhamos adiantando as anteri-ores considerações, mas com o simultâneo sentimento de não realizar aqui, como noutros escritos, mais do que uma exploração para assim dizer preliminar. Propuséramo-nos tratar dos mandamentos da lei de Deus e da sua correlação com a idea ou o sentido do divino, quando se nos deparou a conveniênvia de afastar possíveis objecções e equívocos. Se na verdade, como já foi visto, o primeiro manda-mento resume e dá sugestões par ao entendimento de todos os outros, deverá incidir sôbre êle especial reflexão. Segundo suponho, e tentarei mostrar, o mandamento dos mandamen-tos revela-nos três entidades afins: o Deus da zona média a que aludi; o homem mediano que tôda a norma ou todo o mandamento supõe; e o criador do mandamento com a sua concepção transitória do humano e do divino. E não nego que a lei de Deus tenha por origem Deus. Há um processo de gradual (e às vezes catastrófica) manifestação do homem em Deus e de Deus no homem. E não admira que o inferior na intercorrente manifestação tenha passado como superior. Esse fenómeno de infra-exosmose e de hiper-endosmose é característico do espírito religoso;

CONCLUI NO PRÓXIMO NÚMERO

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14 PRESENÇA

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PRESENÇA 15

Iremos encontrar a noite no jardim...As sombras que as árvores façam para nossos passos e carícias,o luar que porá luares no teu rosto,a quietação mortal de tôda a vida próxima,o barulho longínquo das ondas, eco dos nossos sentimentos,o cheiro a saúde da terra molhada,a cantiga clara da água no tanque- tudo será propício para o amor.Tu, como a noite...E, quando se encontrarem os nossos lábios,os insectos estarão à nossa volta,como atraídos por uma chama...

a DIOGO DE MACEDO

A montanha é um obstáculo para a lua que vem,os pássaros descansam as asas e os chilreios,as árvores crescem, para maiores sombras,os arbustos e as flores mudaram-se em perfume,as borboletas não são lindas - são mêdos delicados,as estrêlas fizeram-se rimas para os Poetas,as luzes tremem na dor da sua inutilidade,a água da fonte é só para cantar a sua cantiga magoada,o silêncio para cairem os frutos,a janela para estar aberta sôbre a noite...E os homens dormem, a caminho da morte...

Dorme, filho!A noite desce, como pálpebra sonolenta que se fecha,lá fora, anda um silêncio que é um berço embaladoe o luar vem descendo do céu para tocar-te...A noite vai pôr. no teu sono, a sua serenidade,o silêncio vai ser uma canção do teu anjo da guarda, a acalentar,e o luar vai dar-te, em sonho, o que sonhaste desperto...

ao dr. LUIZ CARDIM

Mulher que passas por acasoe passas,vai, no teu destino de passar...A tua vida é andar pela noite,andar, andar sem rumo,neste passo enganoso de quem leva um destino...Segue sempre pela rua longe,volta na esquina, segue outra rua longa,pára, sob a luz forte do candeeiro e espera!- Em tôda a parte, contigo andará a noite,tua protecção e tua desventura sem culpa.

QUATRO DE'OS VINTE POEMAS DA NOITE'ALBERTO SERPA

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16 PRESENÇA

zejel da condenação de amor

Esgotas-te, minha alma. Do amor as mãos sensíveisSouberam desviar-te dos sonhos inflexíveis.

Abriram teus segredos; lançaram teu mistérioAos ventos, esfolhado, qual, no azul etéreo,

Do céu, aos quatro rumos, foi o pranto sidéreoPelo Senhor esparzido de lágrimas visíveis...

Aos pedaços, sangrando de amor, vai-se a substânciaDo que era um sol fremente. O Arcanjo da Observância,

Quando vier confessar-me desta terrível ânsia,Achará, em vez de alma, só lágrimas terríveis.

CINCO POEMASDO CÂNTICO DO DESEJO

(SUGESTÕES DE LÍRICAS ORIENTAIS)

UM POEMA ÁRABE

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PRESENÇA 17

consolação solitária

Veem as aguas do rio de entre a bruma,Mas, a jusante, correm, sem que eu vejaLimites, ao seu curso, para o mar...Quanto aos meus pensamentos,A não ser os do sonho,Nenhuns marcos os podem limitar.

Velando, solitário, os meus versos compus;Enchi-os de alegria e da desditaDa minha imensidade...-Mas não achei ninguem que mos transmitaE os reze e perpètue...

Foram um grito vão desta ansiedade!

Baste-me o tê-los feito...E agora redizê-los, abrindo o coração,Por esta luz crepuscular, dolente,Neste dia de outono languescente,Aos gansos a voar...na arribação...

aflição na suavidade

Uma tépida brisa murmura docemente...E em suas ondas traz o luar do céu...É qual vento de luz!Submerge o imenso vácuoUm perfumado véu...Para que céus, ocultos e estelares,A lua, caminhando, nos conduz?

A noite é tão profunda, tão imensa,E cai do céu com tanta solidão,Que me ponho a pensarSe as flores e a vida, mesmo, poderãoDesta noite, profunda e divina, acordar!?...

E começo a acender grandes fachos, querendoAcordar as flores e a vida,Embora ardendo...

ghazel da separação

Um dia só do seu amor fremente,A rápida visão do paraíso,Um só beijo...e partiu...E agora sofro o bem que reüniuOs nossos corpos. Quis retê-la em vão...E deixou-me...e partiu...

Promessas dos seus lábios e caríciasQue mal sonhar podiam meus desejos...Carícias...e partiu...Meu coração de tudo se despiuQue não fôsse êste amor, ùnicamente,De tudo...e ela partiu...

mensagem

Não te inquietes do tempo fugidio.Deixa rodar a roda do destino,Sem pedir nem gemer.Canta, suavemente, o teu prazerSó para ti, só para to lembrares,Quando a morte vier.

Faz por sonhar assim, profundamente...A face da alegria é só em sonhosQue tu podes ver.Canta o louvor do amor e o seu poder,Graça da eternidade e alma da vida...Canta-o mesmo ao morrer!

E tudo que sonhou teu coração,Deixa se perca em cinza e esquecimento...Menos êste sofrer...Menos a chama que fizeste arderNo deserto do mundo, quando o amorSoubeste conhecer.

D O I S P O E M A SC H I N E S E S

D O I S P O E M A SD E H A F I Z

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interrogação ante a vida

Fui eu que abri ao vento o meu jardim...Só para ver no vento transportado

Todo o meu sonho em flor...e fecundado,De humano sonho, o mundo aonde vim.

Vai-se o vento, de sonho aureolado,E insaciável volta e vai, sem fim...

Mas o mundo só manda para mimMeu proprio anseio, nêle despertado.

Que farás, coração? Se não terminaO desfolhar de sonhos abre o mundoE sobre os céus, sem nada te voltar?...

Dormir, sem êste sonho que se obstina?Fechares-te para ti, jardim profundo?

Que farás, coração, senão sonhar?!

interrogação ante a morte

Alminha vaga, branda e passageira,Hospedade em meu corpo um só momento,A que frias mansões o frio ventoTe levará, na hora derradeira?

Irás buscar por unico tormentoA sombra em que te abismes, tôda inteira?Ou, chama entre mil chamas, na fogueiraDe uma ou outra vida, perderás o alento?...

Ou irás, pelo vento desfolhada,- Sem que lembres sequer quanto viveste -Reatar-te e morrer, eternamente?

Ou poderás - ardendo insaciada -Levar teu ser e a vida que sofresteA incendiar a treva, imensamente?!

CINCO POEMASDO CANCIONEIRO SENTIMENTAL

D O I S S O N E T O S N Ã O - D E - A M O Re f

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PRESENÇA 21

Deu-me a noite da vida o seu amor...Porque vem, branca e fria, a luz do alvor Findar o meu encanto?

Que vigilante voz, de além do mundo,Vibrou, em mim, seu chamamento fundo, Findando o meu encanto?

Como, ao grito do sol, heide deixar-te,Se o sol em mim só nasce de adorar-te, Neste amoroso encanto?

No horisonte ascendeu uma primeira alvura...Sobe apenas a luz, sem sol, da noite escura... O dia vai alvorecer!

Pureza branca e nua, a luz da madrugadaVem, irreal, de além céus, surgindo, imaculada... O dia vai alvorecer.

Breve, porém, no mundo hãode sangrar seus passosE, de ouro e fogo, o sol rolára nos espaços. O dia vai alvorecer!

Surgi! - O dia vai romper da noite e a escuridão!...Cantam as aves para a luz a sua exortação... Ledo vem o alvor!

Surgi, da quieta noite! Surgi, da noite pesada!- Clarão iluminando o céu de eterna madrugada Ledo vem o amor!

As aves vão, num estremecer de júbilo, fremente,Levar ao sol o seu louvor do dia renascete... Ledo vem o alvor.

Asas ardendo por chegar ao místico arrebol,Abrem-se em nós, de imenso ansiar, quando, divino sol, Ledo vem o amor.

Rôtas as trevas, como um canto e um vôo de ansiedade,O Sol do eterno amor surgiu da vida em claridade! Ledo vem o alvor!

A vida inteira, em nossas almas, fez-se eterno bem.Da nossa noite fez-se o sol, do nosso sangue o além! Ledo vem o amor!...

Será, de amor, minha alma adormecida?Cedo demais veria então, na vida, Findar da noite o encanto.

Despedida cruel da noite, emboraEterna seja a luz da nova aurora, Sem o nocturno encanto.

Se a luz do céu me impõe êste abandôno,Durma minha alma o seu humano sono... Sem fim no seu encanto.

Este amororo alvor, de mística pureza,Veio sangrar no mundo em dor e em beleza!... O dia vai alvorecer...

A vida inteira, ardendo, subiu nesta ascençãoDa alvorada de amor. E ao fogo da paixão O dia vai alvorecer.

E é porque abraço a vida inteira, no profundoAmor ansioso e humano, que senti no mundo O eterno dia vai alvorecer.

T R Ê S C A N Ç Õ E S D E A LV Ae f

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sonho pueril

Que esperas ter da morte, fantasma passageiro,Que na vida, entre sombras de alegria,Ergueste a tua voz que nenhum céu ecoa,Incerta a luz de um fugitivo diaQue à sombra imensa voa?

Escolhe um recanto dôce e triste...Cemitério de aldeia, florido de balões,- Vidros brilhando ao sol.Se a vida não persiste,Ao sumires-te na terra,Faz das tuas paixõesO macio lençol.

E fica-te a olhar nas esferas de vidro,Azuis, vermelhas, verdes e douradas,As imagens das tuas divinas ilusões...Esta, a ternura imensa,Esta, as eternas glórias conquistadas...E esta, azul, as infinitas solidões!

Verás descer a noite enorme e dura,Mas, constelações divinas e pueris,As esferas brilharão na morte escura...Farão o teu dormir quasi feliz!

Talvez sonhes, então, de ti partindo,Que um anjo aladoVae levantar seu vôo gloriosoDesse escuro, em que jazes submerso...E, brincando com esferas, torturadoDe uma dor sublime, vá subindo,Infantilmente ansiosoDe abraçar em seu vôo o Universo!...

TRÊS CANÇÕESJOÃO DE CASTRO OSÓRIO

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2renúncia inútil

Disse à minha alma:Esquece-te um momento;Pára de violentar os infinitos;Cala o canto de ardor.O teu tormentoEnche de humanos gritosA mudez,Tortura tudo em teu redor.

Colhe as velas e os remos,Sedento aventureiro,Desvendador de mundos e de dor.

Porque aproas, audaz, a novos mares?Deixa embalar teu sonho o esquecimentoE as sereias do mundo, em seus cantares...Deixa calar teu canto humanoEste canto das ondas e do vento...Deixa o que te rodeiaEcoar em ti - Descobridor!

E parei...e calei...Voz nua da minha almaQue, em gritos, pelo mundo reboaste,Humaníssimo canto em que elevasteO teu sonho de ardor...

Mas os cantos do mundo, que vieramA' minha alma, trouxeramO eco de harmoniasQue o meu peito criou em sua dor!...Voz humana,Que o mar e os ventos convertiasEm ecosDêste canto maior.

3cor ardens

Qual no estio implacável,O Sol...A´ vida desce o meu ardente abraço...E a vida, enternecida e amorável,Parece arder, no fogo da minha alma,Mais cruelmente aindaDo que, ao fulgor do estio, a terra e o espaço.

E podem vir, as ledas primaveras,Trazer nova doçura a estes prados,Novas seivas florir;Pode a vida entregar-me outras quimeras,Outros amores e sonhos;AbrasadosSerão, do estio os campos, e de mimQuanto eu puder sentir!

Podem, gemendo chuvas, aplacarOs invernos e as leivas ressequidas,E de névoas calmar céus e montanhas...Podem, lágrimas dôces, apagar,Em renuncias suaves, este anseio...Das cinzas e das névoas renascidas,Nossas ardências voltarão - estranhas.

Sempre, cruel esplendor, alma ardorosa,Na Terra, tu, estio, voltarásA oirescer e queimar toda a planura!E tu, alma fremente e poderosa,Numa ascenção de força e fogo, irás,Queimando vida e amor,Ensanguentar e incencdiar a altura.

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U M I N É D I T O D E Â N G E L O D E L I M A

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O MAR...

Semelhante a Algum Monstro, Quando Dorme

- O Mar... Era Sombrio, Vasto, Enorme...

- Arfando Demorado

- Immenso sob os Céus!...

- Tal immenso e Sombrio, o Mar Seria

- E assim Em Vagas Tristes Arfaria

No tempo Em Que o Espírito de Deus

- Sobre Elle era Levado!...

24-VI-1917ÂNGELO

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Uma vez um leão ouviu dizer que em certo mosteiro os monges reuniam-se tôdas as semanas na «Sala do Capítulo» para que, diante do Superior, dessem relato dos seus pecados, sèriamente arrepend-idos. - Isso é muito necessário e muito significativo!, disse o rei dos animais. E erguendo a fronte, continuou: - Pois eu não quero, nem devo, ser menos do que êles. Sou a máxima fôrça animal, exijo, por conseguinte, que os meus inferiores a mim se apresentem e me falem das suas acções, - más ou boas, não importa... Con-vocada a assembleia extraordinária, o leão presidiu, e disse: - Não poderemos ficar atrás _dêsses_ a quem nós chamamos homens... Ouviram bem? Entenderam? Só numa coisa não será fácil imitá-los: - na maneira de julgar. Êles saltam, a cada passo, por cima da verdade e da razão; tôdas as coisas, entre êles, se resolvem apenas por miserável conveniência: entendimentos monetári-os e manigâncias políticas. Aqui, não. Seremos impar-cialíssimos e ao alto de tudo ficará esta palavra sagrada, esta palavra: - JUSTIÇA! Vamos lá, venha o primeiro. Um burro avançou, então: - Misericórdia, senhor!, disse o asno aos pés do rei. Trabalho com um campónio que todos os dias me carrega de palha para o mercado... E vende-a bem, por bom preço! O meu único pecado é, às vezes, quando o vejo distraído, e para entreter a fome, furtar-lhe meia dúzia de palhitas... - Ladrão!, exclamou o juiz, indignado. E não tens tu consciência dessa lamentável e grande monstruosidade? Levem daqui a êste bárbaro e castiguem-no a valer! A seguir, uma cabra pediu licença para falar: - Os meus pecados, senhor juiz, são visitar alguns quintais e tratar da minha saúde comendo tôda a casta de verduras. Distingo, nas minhas visitas, a horta de uma pobre viúva, cheia de filhos, porque tem lá umas nabiças e uns carrapatos

que são qualquer coisa de a gente comer e chorar por mais. - Ora aqui temos duas consciências opostas, disse o leão. Uma, requintada, gentil, - a da cabra; outra, gros-seira, vulgar, - a do burro. E dirigindo-se à cabra: - Podes orgulhar-te de possuir uma consciência digna até de uma rainha. Vai-te com Deus e em paz! Só pensar que deves ter ajoelhado para comer as nabiças faz com que eu tenha que apresentar êsse lindíssimo gesto, várias vezes, como lição de elegância moral na minha vida ju-rídica. Vai com Deus e sê feliz. A´cabra seguiu-se a rap-osa. - Acuso-me, senhor, de ter comido alguns milhares de galinhas. Cômo as que posso comer mas abandono também muitas com pouquíssima saúde, só pelo prazer de matar e destruir. - Bravo! Muitíssimo bem! A tua nobreza de sentimentos merece o maior aplauso! Continua, sê eterna! Surrateiro, afadistado, e gingão, ao fundo surgiu o lôbo: - Os meus pecados são poucos. Visito os rebanhos de ovelhas; agora levo uma, logo outra, e assim me vou entretendo porque isto de não fazer nada não se dá com o meu temperamento. Gosto de matar, é certo, mas mato para comer. - Admirável!, exclamou o Juiz Presidente. Assim, sim. Vai-te embora, continua... Nisto, avança uma ovelha, melindrosa e frágil a gemer. - Vamos menina, seja breve, disse, impaciente, o leão. - Sim, meu Juiz, serei breve. De resto, os meus pecados, se é que podem ser pecados, consistem em morder alguma folhinha de cevada, ou uma ou outra ervinha perdida em terreno de abandôno...- Desgraça-da e mísera ovelha! O teu crime é tão abominável, que nem encontro castigo para tamanho delito! Ficarás presa, e, durante cinco dias, nem água consentirei que me peças. O sol num beijo de sangue despedia-se da terra, e um voz pairou nos ares: - Só perdoamos nos outros o mesmo mal que fazemos.

JUSTIÇAANTÓNIO BOTTO

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Pelo cair da tarde, Lèlita, que amava o quintal, revia-se nos seus crisântemos, quando mais adivinhou do que ouviu um leve trilhar de passos em direcção às escadas. Levantou a cabeça, espreitou afastando um pouco os galhos do limonete, e viu o irmão. In-voluntàriamente, os olhos de Lèlita encontraram a pequena mala que João levava. Depois encontraram os olhos de João, e João e Lèlita pareceram embraçados. Houve um silêncio (a impressão de ambos era de que só então se fizera um silêncio que já havia) durante o qual Lèlita sentiu o cheiro da terra acabada de re-gar subir de envolta com o das folhas dos crisântemos. João torneou o limonete, poisou a mala por terra, e ficou diante do irmão. Durante aquêles seis anos da sua ausência, Lèlita crescera e transformara-se. Ia agora para dezassete anos, estava da altura de um homem; e João, que tinha na memória o garotito que deixara, não conseguia identificá-lo nem achar o tom com que se lhe dirigir neste primeiro instante de intimidade. Sen-tiam ambos que êste era o seu primeiro insante de intimidade, - pôsto a não pudessem manifestar natural-mente. Foi Lèlita quem falou primeiro: - Levas a mala...?!

- Levo... - disse João - Vou-me embora. - O quê?!... - fez Lèlita mais com os olhos do que com os lábios. E os dois irmãos olharam-se a fundo; Lèlita querendo adivinhar o que João não dizia, João tentando saber até que ponto Lèlita o adivinhava. Am-bos, então, compreenderam que a sua embaraçosa reserva se fundia nesse olhar. - Não sabia que ias já hoje! Nem sequer te despe-dias de mim... - balbuciou Lèlita, còrando pela ousadia destas palavras. Lèlita sabia que através destas palavras simples pedia ao irmão uma explicação complexa. Prin-cipiava então a reparar que _sabia_ assim muitas coisas, _por simplesmente as sentir_. João poisou-lhe a mão no ombro: - És tu o único de quem me despeço. - Sim...,mas...porque eu te surpreendi a fugir! - A fugir?!... - Pareceu-me que ias fugido... - tartamudeou Lèlita cada vez mais còrado. João, que tinha a mão no seu ombro, comprimiu-lho ligeiramente; e Lèlita baixou os olhos sôb aquêle olhar que o sondava com um in-terêsse sùbitamente desperto. Ergueu-os logo, por um esfôrço da vontade, e viu fugir nos lábios do irmão o rastro dum sorriso.

UM TRECHO DO ROMANCE EM PREPARAÇÃO

A VELHA CASAJ O S É R É G I O

de

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- És inteligente!... - disse-lhe João. Pela brancura que substituiu no rosto de Lèlita o seu rubor de timidez, João suspeitou que êsse adoles-cente em quem nunca pensara senão como num ga-rotelho de dez anos - pensara muito nêle. Com efeito!: pensara. Como não teria Lèlita pensado naquele irmão de quem se não falava em casa senão com reserva, e cuja vida lá longe (nem sempre sabia onde) lhe aparecia extraordinária como a dum herói de romance? Lèlita pensara muito nêle. E na alma de Lèlita ia agora um tu-multuoso redemoínho, que uma voz triunfal dominava: «_Ele acha-me inteligente! Ele acha-me inteligente!» Lèlita não pôde responder nada, e aquela situação era-lhe, ao mesmo tempo, deliciosa e insuportável. - Sim..., - disse João ao cabo dum silêncio - vou fugido. Não digas que me viste. Receio muito as des-pedidas. E depois... _êles_ não contavam, talvez, que eu me fôsse embora tão breve; sobretudo a mãi. Deixo-lhe uma carta. Mas aqui, como hei-de eu resolver os problemas da minha vida? Ainda sou novo...,posso lu-tar! Bastou-me um dia para compreender... De repente calou-se, perturbado pelos olhos de-masiados inteligentes com que Lèlita o escutava; e sen-tiu a responsabilidade das palavras que dissesse nesse momento. De novo Lèlita escondeu sob as pálpebras aquêles olhos ávidos que traíam a sua precocidade de com-preensão. - Que fazes tu agora? - preguntou João ao fim duma pausa constrangida. - O pai quer que tire o sétimo ano num colégio... - E tu...queres ir? Lèlita hesitou um instante, pôs-se a esmagar nos dedos uma folha de crisântemo. - Não... Mas vou. Apesar do desejo feroz de lhe gritar brutalmente: «Não vás! Resiste!», João disse-lhe manso, devagar: - Deves fazer a vontade ao pai...; e à mãi, que bem o merece. Talvez o colégio te custe um pouco; mas não virás a perder com isso: Pela vida fora..depois... terás de ter muitas contrariedades. E o ter sofrido cedo, quando

não aniquila o indivíduo, torna-o resistente... Mais tar-de compreenderás.Pegara na mala, e deu alguns passos em direcção à es-cada. - Já compreendo - murmurou Lèlita caminhando a seu lado. - Não... ainda não podes compreender bem. Mais tarde!«Parece-me que já compreendo...» - queria insistir Lèl-ita. Mas não disse nada, por aquela espécie de pudor que o fazia calar tudo quanto pudesse revelar a sua superioridade. Lèlita tinha um segredo, feito de todas as pequeninas cousas íntimas, surpreendentes, que a ninguém contava: Era diferente dos outros rapazes de dezassete anos. Os dois desceram calados, devagar, os dez de-graus de pedra ao fundo dos quais havia a porta para a estrada. O sol raro dava nesses degraus; e como eram pouco servidos, atapetavam-se de musgo às primeiras chuvas. Dum e doutro lado, escorriam do muro plantas rastejantes ou repontavam parietárias. João, em baixo, parou antes de abrir a porta, ficou-se a olhar a casa que mais uma vez abandonava. Não se via de aí senão o telhado, com sua chaminé donde o fumo subia quási direito, a desaparecer no azul, e o alpendre da varanda invadido de rosas e buganvílias. Depois era a folhagem das laranjeiras, dos limoeiros, dos loureiros, toda a massa do quintal aguarelada nos mais vários tons de verde: desde o verde sombrio, sumptuoso, dos limoei-ros, ao verde--azul-cinza das três oliveiras plantadas pelo capricho do tio brasileiro; ou até ao verde trans-parente de certos arbustos, que é amarelo ao sol. De vez em quando, uma aragem respirava; e nos ramos de árvores e arbustos, as folhas só tremiam o suficiente para se sentir melhor a doçura da luz e o sossego da tarde. João demorou os olhos em tudo isto, e disse: - A felicidade ... está aqui: É esta paz, este quintal, esta casa, esta segurança e simplicidade de princípios... Mas há homens que não podem limi-tar-se à felicidade. Tu, se não tiveres necessidade de mais, deixa-te ficar! A

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mãi e o pai devem precisar de ti. Dá-lhes o que eu lhes não posso dar. Olha que isto é que é a felicidade! Não há outra, lá longe..., que valha esta... - Bem sei! - balbuciou Lèlita - Mas tu partes ...João, que dava volta à chave, ficou-se um instante a con-templar o irmão; e disse com um sorriso: - lá sabes muita coisa! Foi nos livros que aprendeste tanto? De novo o rosto de Lèlita se cobriu de rubor, e Lèlita queria responder mas não pôde. Os seus olhos resplandecentes sustentaram ainda os olhos perscru-ta-dores e o sorriso amigavelmente irónico de João. Depois fugiram, esconderam-se sob as pálpebras que tremiam, e um pobre sorriso de confusão retorceu os lábios finamente desenhados de Lèlita. A sua boca, as-sim, ficava maior, quási feia; e o embaraço de Lèlita era tanto mais doloroso quanto melhor ele compreendia que esse embaraço se tomava demasiado visível, e era desproporcionado à benevolente ironiazinha do irmão. De repente, Lèlita sentiu que o irmão o apertava ao peito com uma ternura inesperada. Só então pôde tor-nar a erguer os olhos; e os dois fitaram-se de muito perto, olhando cada um a cara do outro como se olha uma cara que verdadeiramente se vê. No rosto de João, então, adivinhou Lèlita o cansaço precoce, o desgosto dos homens, o vinco das pequeninas e continuas lutas inglórias, a aproximação da velhice com todas as suas resignações amargas. E nas feições irregulares, delica-das e vibrantes de Lèlita, via João uma imagem da sua própria adolescência para sempre perdida. - Desculpa... - disse João quási com gravidade - Magoei-te sem querer. Não sabia que és tão sensível ...E calou-se, comovido pelo olhar de reconhecimento e enlevo com que o irmão o ouvia. - Mas não... - disse Lèlita com uma espécie de pre-cipitação - não estou magoado! Eu queria explicar-te... Há cousas que a gente sabe antes de as experimentar. E' como se nascesse para sabê-las! E é por isso que depois as compreende tão bem nos livros... quando as encontra. Mas eu também hei de escrever livros, um dia ...

Assim lhe saiu naturalmente uma parte do seu segredo. - Ah!... - fez João - Também queres escrever livros?Deu volta à chave, descerrou a porta; e já fora, com a mala na mão, acrescentou: - Um homem não é homem senão na medida em que cumpre a missão que lhe coube. Se te não bastar isto . . . esta tranquilidade ..., não há outro remédio: Segue o teu rumo! Adeus. Hei de fazer por ter notícias tuas .. . A tarde caía. Os raios quási horizontais do sol di-luiam-se numa larga réstea de oiro ao longo da estrada silenciosa. A silhueta de João avançou nesse nevoeiro doirado. E a mesma pulverização de oiro imponde-ra-bilizava ao longe o casario de Vila do Conde, a cúpula da Senhora do Socorro, a Capela da Senhora da Guia sobre penedos, os terrenos à margem do Ave. Voavam guinchos muito alto, nas profundezas de céu inque-brantàvelmente puro. Lèlita ergueu a cabeça, com as narinas e os lábios abertos; e ao mesmo tempo que via tudo isto, viu o vulto do irmão desaparecer sem tornar a voltar-se para a casa que abandonava. Então, Lèlita fechou mansamente a porta, procurando aba-far o ranger perro da chave; esperou um momento, a certincar-se de que ninguém havia no quintal que es-tranhasse vê-lo sair desse esconderijo; e precipitou-se para casa. Piedade, na cozinha, preparava o jantar psal-modiando «o lavrador do arado». Sentada ao pé da janela aberta para o quintal, Maria Clara descascava qualquer cousa numa gamela de madeira apertada entre os jo-elhos. Um dos prazeres de Maria Clara era colaborar com Piedade nas suas confecções culinárias. A gaiola do canário estava pendurada ao lado da janela. Francisca punha a mesa na sala de jantar. Toda a casa respirava tranquilidade, e Lèlita pensou: «Ainda não sabem que partiu ...» E aquela tranquilidade feliz pareceu-lhe es-tranha. Ao mesmo tempo, sentiu-se inquieto e excitado pela posse do segredo que havia, agora, entre João e êle. Que segredo? Lèlita não saberia explicá-lo. De-cer-to, o seu segredo não consistia simplesmente em ser êle o primeiro a saber da precipitada partida de João. Para Lèlita, eram segredos seus tudo o que ele enten-dia melhor do que os outros... Assim atravessou a larga

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sala de jantar, subiu a escada em caracol. Já no corre-dor de cima, parou. Do quarto em que João dormira, e que ficava por cima da casa de jantar, vinha como o estertor dum choro baixo e arquejante. A porta ao fundo do corredor estava fechada, as dos outros quar-tos também. Aproximando-se sem fazer ruído, colado à parede, Lèlita espreitou pela frincha entre o muro e a porta entreaberta: Sua mãi estava sentada na cama em que João dormira. Tinha um papel na mão caída para os joelhos; e com a cabeça baixa e a outra mão na boca, soluçava. Lèlita hesitou: O seu primeiro impulso natural fora entrar, falar a sua mãi, consolá-la, dizer-lhe cousas que sabia... Mas na profunda ternura de Lèlita por sua mãi, havia estranhas inibições e um exagerado pudor de qualquer expansão sentimental. Lèlita deslizou ao longo do corredor silencioso, abriu subtilmente a por-ta ao fundo. Em frente, havia outra porta. Do pequeno pátio entre estas duas portas descia para o largo pá-tio de entrada a escadaria em dois lanços. A segunda porta abria para um estreito corredor perpendicular ao primeiro. Num dos extremos, o velho relógio de caixa alta batia a sua pancada magestosa e lenta. No outro, uma janela com dois assentos de pedra olhava para a viela. E o quarto dos pais, o gabinete-biblioteca e a sala de visitas davam para este corredor. Proposita-damente, Lèlita fez rumor com os pés, tossiu, antes de bater com os nós dos dedos à porta do escritório do pai. - Quem é?... — preguntou a voz de Martinho. Lèlita abriu a porta, devagar; e sem entrar, sentindo-se empalidecer, disse com dificuldade: - Parece-me que a mãi está incomodada. Ouvi-a chorar no quarto do João. Talvez fosse melhor o pai lá ir . .. - Han...?! — fez Martinho levantando de sobres-salto um rosto envelhecido. Os seus olhos ansiosos interrogaram o filho, e Lèlita mal teve tempo de se afastar para lhe dar passagem. As palavras de João voltaram-Ihe então à memória, como complicadas duma ressonância irónica ou de sentidos ocultos: «A felicidade... está aqui: É esta paz, este quintal, esta casa,

esta segurança e simplicidade de princípios...». Lèlita sen-tia que isto podia ser verdade; — mas duma verdade muito menos aparente, ah, muito mais difícil!, do que o poderiam fazer supor as palavras de João. De ai a momentos, Lèlita ouviu no corredor a voz de sua mãi que falava alto. Depois chegou a voz de Piedade, a de Madrinha Libânia, a de Martinho; e depois, outra vez, a de Maria Teresa que falava cada vez mais alto, num tom ora agressivo ora clamoroso que regelou Lèlita. Era um tom quási de revolta, que ainda não conhecia a sua mãi. «Já todos sabem...» pensou Lèlita referindo-se à partida de João. E de novo suspeitou, em roda das ausências de João, mistérios que sempre lhe tivessem escondido.

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Assistiu-se, de há tempos para cá, a um intenso florescimento deste género de periódicos; intenso, pelo menos, em relação ao que havia anteriormente, que era nada, e à pequenez do nosso público literário. E, se três conseguiram perdurar, só o explica o facto de não ser nenhum deles um se-manário literário pro-priamente dito. Na verdade, se uma dessas folhas fosse exclusivamente literária, a morte por inanição - ou seja por falta de número suficiente de compradores - não se faria esperar. Não é, pois, de admirar que esses se-manários consi-gam viver; não há milagre: são as suas características políticas que lhes valem o grosso do público. Exceptua-se «Bandarra»... que para prosperar não chega a precisar de público. Mas nem por isso esses semanários deixam de ser literários; e é sob este ponto de vista que nos inter-essa ver qual a acção que podem exercer, se a exercem convenientemente, e como. Dos três, é «Fradique», sem dúvida, jornalisticamente o mais «bem feito»: mais equilibrado, mais variado. Mas a maior parte da sua colaboração literária é péssima, sem interesse, gé-nero «literatura de amadores». A impressão de con-junto que nos dá «Fradique», literariamente, é a duma folha colaborada por seres dum outro mundo. Sob este ponto de vista, «Fradique» não representa de modo algum qualquer dos sectores vivos da actual literatura portuguesa, não nos pode dar uma imagem verídica de qualquer das suas tendências vivas; para o que mais contribui ainda a pobreza da sua crítica e da sua in-

formação. Falta a Tomaz Ribeiro Colaço um grupo de escritores que o coadjuvem; a não ser que, tal como é, «Fradique» represente o que êle ache dever ser um semanário literário: um repositório de prosas e versos «para entreter»; e nada mais. «O Diabo» é mais pesado, de as-pecto e à leitura; desiquilibrado por tremendos «nabos», nada jornalísti-cos, como o relatório de todos os passos dum pobre diabo que queria ser rei de Andorra, etc, coisas que nada têm com a literatura, ou, se têm, estão deslocadas num semanário. Também em «O Diabo» encontramos a tal literatura de amadores cheirando a bafio. Carência, pois, de selecção de colaboradores e de colaboração. Contudo, ainda é nessa folha que podemos encontrar, por vezes, reflexos vivos da vida literária portuguesa, poucos na literatura propriamente de imaginação, mais em artigos isolados de critica. E diz-se em artigos isolados, porque é em «O Diabo» que podemos con-templar o mais extraordinário fenómeno: um critico literário que começa as suas «criticas» pela declaração de que não percebe nada do livro que leu... e vai criti-car!! Esta coexistência, em «O Diabo», de tendências vivas e de cadáveres que escrevem, manifesta a inex-istência de uma orientação decidida; de uma directriz. Aceitar tudo - conduz a um amorfismo lamentável. Mas tendo tomado Ferreira de Castro, recentemente, a direcção deste semanário, resta-nos esperar os efei-tos da sua presença. Quanto ao «Bandarra » . . . só diremos que é um

SEMANÁRIOS LITERÁRIOSCOMENTÁRIO

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semanário cujas opiniões e atitude para com a litera-tura estão na razão directa das opiniões políticas dos escritores. - És nacionalista? - Então és um génio! Eis a tábua de valores de «Bandarra», e não vale a pena acrescentar nada.Averiguamos, pois, que nenhum destes semanários nos pode fornecer um panorama, incompleto e tendenci-oso que fosse, das correntes vivas da nossa literatura contemporânea. A missão de orientar é-lhes vedada, visto em nenhum deles se exercer a função critica com a necessária latitude: Em «Fradique» é incerta, desor-denada; em «O Diabo» não existe, pois está lá o sr. Ferreira de Mira; em «Bandarra» é também raríssima, incompletíssima. Faltam, em todos, crónicas regulares sobre as artes plásticas, o romance, a poesia, o teatro, o cinema, etc, e a crítica -regular e sem atrasos - às novidades literárias. É isto que dá vida e actualidade a um semanário literário. Se não, veja-se: Quanto in-teresse não tem, nesse simpático esforço que repre-senta o «Suplemento Literário» do «Diário de Lisboa» (miniatura de semanário literário afinal mais verda-deiramente literária de que os seus colegas em ponto grande), o inquérito à literatura contemporânea! Há pois, em geral, nos nossos semanários lit-erários, carência de actualidade, carência de orientação e carência de selecção; falta daquele interesse que dá o permanente e vivo contacto com as manifestações da nossa cultura, da nossa literatura e da nossa arte contemporâneas. Dir-se-ia que a única função de quem

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dirige esses semanários é esperar a colaboração que lhes queiram dar, e atirar com ela para as páginas do próximo número, segundo as conveniências da pagi-nação. Agora, para que a justiça destas linhas nos seja feita, só falta que «Fradique » nos acuse de contra-rev-olucio-nários, «O Diabo» de reaccionários, e «Bandar-ra» de.. internacionalistas!

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O romance brasileiro e a poesia brasileira começaram por não existir. Romance e poesia, vindos do outro lado do Atlântico, tinham o sabor dos do lado de cá. Agora, não: A poesia brasileira, embora ainda se lembre de Cesário e de Nobre, sabe a Brasil. O ro-mance, sem lições da Europa, emancipou se e dá-nos um panorama rico como cá não temos. O bom que déle conhecemos é panfleto - ou pan-fleto que ataca e procura resolver um problema social, ou panfleto que somente ataca.

Jorge de Lima que, parece, não quere ser apenas o mais forte Poeta do Brasil, depois de publicar um romance que é pura poesia e se chama O Anjo, fez um romance que tem poesia, mas é também panfleto, e se chama Calunga. O Poeta, porém, não quis combater e vencer; nas páginas de Calunga não se descobre aquela fôrça forçada que dirige os personagens e quási os faz exclamar: eu vou fazer isto, eu náo vou fazer aquilo, porque o autor quere ou não quere que eu faça ou não faça. Este livro tem a naturalidade e a humanidade de tanta amargura que encerra. Todo êle é um pan-fleto poético e doloroso contra a desgraça dum povo perdido no mapa do Brasil. Nas suas páginas anda uma grande ternura por uma gente que sofre e nada faz para vencer o seu sofrimento, arrastando-o como des-

tino inamovível. O principal personagem é a terra. Lula é um homem que vem de longe lutar com ela, salvar os seus irmãos que a sofrem e a comem. O livro é a batalha. A terra ganha e leva Lula a morrer, depois de obrigá-lo a baixar-se até ela e comê-la, saborosamente, como os outros que ficarão escravos. Jorge de Lima constata o drama, mostra-o com força e génio, como se o romancista fosse Lula. Só isso... Calunga é um protesto, um grito. Só isso... e uma obra de arte... ... obra de arte pela construção sólida, pela hu-manidade dos personagens que são justo comple-mento do ambiente, pelo relevo continuo da descrição natural e psicológica, e muito, também, pela linguagem, cheia de novidade, sabor e sugestão.

CRÍTICAA. DE S.

OBRA 'CALUNGA'AUTOR JORGE DE LIMA

GÉNERO ROMANCE

" (...) um panfleto poético e dolor-oso contra a desgraça dum povo perdido no mapa do Brasil."

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