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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano II, número 2, 2010 ISSN: 1984-7157 1

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano II, número 2, 2010ISSN: 1984-7157

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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas

ISSN: 1984-7157

Corpo editorial:Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega)Cerasel Cuteanu – CEFA/RomêniaJames Campbell – Universidade de Toledo (EUA)Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina)Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica)Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)Inês Lacerda Araújo - PUC-PRHeraldo Silva - UFPIMaria José Pereira - UCGAldir Carvalho Filho - UFMAVera Vidal - FiocruzRonie Silveira – UFRBReuber Scofano - UFRJSérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ

ExpedienteREDESCRIÇÕESRevista do GT-Pragmatismo da ANPOFISSN: 1984-7157Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de CastroEditor executivo: Marcos Carvalho LopesLogo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr.Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: ManufatoFoto da capa: Mirian Carvalho Lopes

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano II, número 2, 2010

SumárioEditorial 4

Artigos:

1. Nancy Fraser e a teoria da justiça na contemporaneidade – Susana de Castro 6

2. A possibilidade de políticas de reconhecimento no pensamento de Ronald Dworkin: uma resposta à

Nancy Fraser – Henrique Brum 11

3. Uma análise crítica do idealismo de Axel Honneth em defesa da democrática paridade participativa de

Nancy Fraser – Frederico Graniço 24

4.Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça -Antoine Lousao 37

5. Há solução para o antagonismo entre redistribuição e reconhecimento?- Príscila Teixeira de Carvalho 57

Resenha:

RORTY, Richard. Uma ética laica. Trad. Mirella Traversin Martino. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2010. – por Eustáquio José da Silva 73

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Editorial

Este segundo número do segundo ano da Redescrições é o primeiro número temático da

revista. Os artigos aqui presentes giram em torno das propostas teóricas da filósofa norte-americana

Nancy Fraser, especialista em filosofia política contemporânea e feminismo, e professora de ciência

política e ciência social do New School for Social Research em Nova Iorque. Grande parte dos

artigos deste número gira em torno da questão da justiça distributiva versus reconhecimento e do

debate de Fraser com Axel Honneth sobre esse tema. Mas, além disso, os autores deste número

trataram também de relacionar questões de Fraser com outros autores contemporâneos como

Amartya Sen, Charles Taylor ou Ronald Dworkin.

Esperamos manter essa prática de fazer um número temático por ano, deixando os outros três

para temática livre desde que relacionada à linha da revista.

Boa leitura!

Os editores

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Artigos

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NANCY FRASER E A TEORIA DA JUSTIÇA NA CONTEMPORANEIDADE

Por Susana de Castro

Resumo: Neste artigo a autora mapeia o debate entre teorias políticas contemporâneas da justiça a

partir dos conceitos chaves de reconhecimento e distribuição. Mostra a teoria normativa da justiça de

Nancy Fraser, chamada de ‘paridade participativa’. Esta Teoria reúne elementos distributivos e de

reconhecimento. No final, aborda as críticas de Zerilli às teorias feministas universalistas e a filiação

de Fraser ao pragmatismo.

Palavras chaves: reconhecimento, distribuição, feminismo, justiça.

Abstract: In this paper the author maps the debate in contemporary political theories about justice

through the key concepts of recognition and distribution. It shows the normative theory of justice by

Nancy Fraser, called ‘parity of participation’. This theory aggregates elements of both recognition

and distribution’ theories. At the end, it deals with the critics of Zerillli about the universalistic

feminist theories and shows the affiliation of Fraser with pragmatism.

Key-words: recognition, distribution, feminism, justice.

Nancy Fraser, ao lado de Seyla Benhabib, Iris Young e outras feministas americanas estão

preocupadas em situar as questões de gênero dentro do universo maior acerca dos impasses da

justiça no mundo atual, principalmente nas democracias ocidentais. Em seus ensaios Fraser faz um

mapeamento preciso de quais seriam as principais correntes e questões da filosofia política e da

teoria da justiça atuais.

1. Redistribuição versus reconhecimento

As duas principais correntes de filosofia política contemporâneas são as encabeçadas por

John Rawls e Axel Honneth. O primeiro, J. Ralws, propõe com sua obra principal, Uma Teoria da

Justiça, um modelo de organização social e política liberal centrado na noção de justiça

redistributiva. Para Rawls, uma sociedade bem ordenada é aquela na qual existam mecanismos

compensatórios e regulatórios legais capazes de diminuir as desigualdades econômicas e igualar as

oportunidades de emprego. Axel Honneth, autor de Luta por reconhecimento, a gramática moral

dos conflitos sociais, traz a questão da justiça para o plano psicológico. Segundo Honneth, a questão

central da justiça não é o da distribuição econômica, mas sim a do ‘reconhecimento’. O cerne da

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questão do reconhecimento é a noção de identidade. Para Honneth está claro que a identidade de

cada um é construída pela aceitação/reconhecimento do outro. Se um grupo ou um indivíduo não

tem sua identidade, seu modo de ser, respeitado pelo grupo hegemônico isso automaticamente

configura uma situação de injustiça.

As questões de justiça das sociedades contemporâneas tendem a se pautar mais por

revindicações de reconhecimento cultural do que por reivindicações salariais ou redistributivas.

Hoje, os grupos sociais estão cada vez mais diferenciados e com uma pauta de reivindicações

específicas. Os movimentos das mulheres, dos negros e dos homossexuais, para citar apenas os três

mais conhecidos, exigem que a sociedade os reconheça como cidadãos iguais, com iguais direitos de

casamento, educação, trabalho, que os grupos culturais hegemônicos. Para Fraser, essa luta pelo

reconhecimento identitário, ainda que legítima e necessária, favorece a fragmentação e o

enfraquecimento do movimento político mais amplo, que almeja combater as formas de exploração

capitalista. Propõe uma união das questões distributivas com as questões culturais.

Segundo Fraser, vigora na atualidade um sentimento de que as questões de distribuição são

questões que dizem respeito somente a questões morais e de política econômica, e as questões de

reconhecimento dizem respeito somente a questões éticas, de busca de felicidade pessoal. O defensor

de cada posição reivindica uma prioridade do seu tema sobre o outro e acredita que qualquer um que

queira unificar as duas questões padecerá de “esquizofrenia filosófica” (Fraser, 2007, p. 105). Para

Fraser é possível unir as duas questões sem cair em um estado de “esquizofrenia”.

É importante frisar que Fraser não defende em seus textos um modelo distributivo liberal,

mas sim uma via media, entre as políticas socialistas transformadoras e as políticas reformistas

liberais. Esta via media é chamada por ela de ‘reforma não reformista’ (Fraser, 2003, p. 78 e seg.).

Para Fraser está claro que as injustiças possuem duas faces, ou duas dimensões, uma

dimensão econômica e outra cultural, ou, em outras palavras, uma dimensão de classe e outra de

status. Assim, a mulher dona de casa que não recebe nenhum tipo de remuneração por seu trabalho

doméstico sofre um tipo de exploração econômica, mas ao mesmo tempo, ela sofre os efeitos da

dominação cultural masculina que desvaloriza o trabalho doméstico por considerá-lo inferior ao

outros tipos de trabalho exercidos pelos homens. A mesma coisa podemos dizer da situação do

homossexual. Em um primeiro momento, diríamos que a maior injustiça que o homossexual sofre é

a injustiça cultural ou de status, pois os valores heterossexuais são predominantes na sociedade. Seja

na representação da família ideal e do relacionamento afetivo da propaganda, seja na própria

legislação sobre as uniões afetivas, o modelo difundido de relacionamento afetivo e de preferência

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sexual é predominantemente o heterossexual. Mas, por outro lado, há também uma dimensão

econômica envolvida. O profissional bem remunerado que resolve assumir a sua preferência sexual

sabe que corre o risco de ser preterido quando surgirem chances de promoção. A bidimensionalidade

das questões de injustiça perpassam todos os casos. Em função do reconhecimento dessa

bidimensionalidade intrínseca, Fraser propõe um modelo de paridade participativa (Fraser, 2003,

2007).

2. A paridade participativa

Segundo Fraser, a questão do reconhecimento cultural de grupos minoritários1 não é uma

questão ética, mas sim moral. Ela não diz respeito à busca pessoal pela felicidade e auto-realização,

mas sim ao desenho institucional justo. O desenho institucional, isto é, as normas e regras que

organizam as instituições públicas, quaisquer que elas sejam, só será justo na medida em que todos

os segmentos da sociedade, sejam eles de grupo majoritários ou de grupos minoritários, tenham a

possibilidade de participar de maneira igualitária na formulação dessas regras. Essa é a única forma

de combater os padrões culturais excludentes que perpassam as regras das instituições. Não compete

aos formuladores de política pública interferir nas crenças e no imaginário dos indivíduos; eles

podem ser tão homofóbicos, racistas ou sexistas quanto queiram, no entanto os padrões culturais

excludentes devem ser banidos das instituições. Esse banimento dos padrões culturais excludentes

não se dará apenas por sabedoria e benevolência dos dirigentes e gestores públicos. Na medida em

que os cargos públicos de representação sejam ocupados exclusivamente pelos segmentos

hegemônicos da população, a tendência é que não haja a moralização das regras institucionais.

Fraser (2007, p. 36) deixa claro que seu modelo moral de reconhecimento não invalida as

reivindicações de justiça econômica. Assim, estabelece que para que seja possível criar um regime

de paridade participativa é necessário tanto que certas condições objetivas, quanto certas condições

intersubjetivas, sejam satisfeitas.

As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e

desigualdade que impeçam a igualdade de participação, isto é, que excluem arranjos sociais que

institucionalizam a privação, as grandes disparidades de renda, riqueza, e tempo de lazer, impedindo

a possibilidade de algumas pessoas de interagirem com outras como iguais.

1 Até que ponto podemos chamar as mulheres, que compõe a metade da população mundial, de grupo minoritário? Essa é uma questão controversa. Porém é correto falar que do ponto de vista do poder, esse quantitativo não influencia em nada. 8

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A condição subjetiva para a igualdade de participação requer que os padrões

institucionalizados de valores culturais expressem igual respeito por todos os participantes e garanta

a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social.

Ambas as condições são necessárias para a paridade de participação. A satisfação de apenas

uma delas não é suficiente. Fraser defende uma concepção bidimensional da justiça orientada para a

norma da paridade de participação, que leve em consideração tanto o aspecto econômico, quanto o

cultural da justiça, mas sem reduzir um ao outro.

3. Feminismo e capitalismo

Em um artigo recente, “Feminism, capitalism and the cunning of history” (NLR, 56, 2009),

Fraser parece atribuir ao feminismo identitário, ou culturalista, o da chamada ‘segunda onda’ do

feminismo, um papel atuante na fase neoliberal do capitalista.

Segundo Fraser a segundo onda do feminismo surgiu no início da década de 70, dentro do

contexto de crítica ao capitalismo estatal. Por capitalismo estatal, ela entende os Estados do bem

estar social que surgiram após a segunda grande guerra nos chamados países do ‘primeiro mundo’.

Tais economias e sociedades do bem estar possuíam quatro grandes características: o economismo,

isto é, a ideia de que o poder público político deveria regular o mercado econômico; o

androcentrismo, isto é, a ideia de que as políticas salariais deveriam estar voltadas para o homem

trabalhador que com o seu salário deveria ser capaz de sustentar toda a família; o estatismo, isto é, a

visão empresarial estatal do Estado, provido de um número grande de profissionais tecnocratas que

determinavam as políticas públicas econômicas; e, por último o westphalianismo, isto é, a defesa de

nações-Estados com suas fronteiras nacionais bem claras que definia um padrão de cidadania

próprio.

A segunda onda do feminismo vai rejeitar todos esses quatro pilares do capitalismo estatal.

Contra o economismo, dirá que não existem apenas injustiças econômicas, mas o pessoal também é

político e sujeito a relações de injustiça. Contra o androcentrismo, denunciará a divisão de gênero do

trabalho que exclui as mulheres das profissões melhor remuneradas e não reconhece a necessidade

de remuneração pelo serviço doméstico. Contra o estatismo, revindica e cria novas formas de agir e

fazer política que não perpassam pelos escritórios e departamentos do Estado. Essa novas formas de

fazer política estavam inseridas dentro do contexto político da contracultura que reivindicava uma

autonomia de ação política e a diminuição da presença do Estado nas formas de organização sociais

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e privadas. Contra o westphalianismo, reivindicava uma justiça transnacional, e uma solidariedade

feminina internacional (‘sistehood is global’).

Em que pese a conveniência dessas críticas ao capitalismo estatal do bem estar social, ela

abriu espaço, e foi coetânea, para o ‘novo espírito do capitalismo’ da década de 80. Capitaneados

pelos governos de Reagan, nos Estados Unidos, e de Thatcher, na Inglaterra, essa novo espírito

promoveu reformas que desmantelaram a rede de segurança social e previdenciária do governo.

Promoveu, além disso, a desregulamentação do mercado e a privatização das empresas estatais. Esse

modelo espalhou-se pelo mundo, obrigando os países endividados a realizar reformas que livrassem

o Estado de encargos sociais.

Segundo Fraser, as críticas acima referidas do feminismo ao capitalismo do bem estar social

foram resignificadas pelo novo espírito desregulador e privatista do novo capitalismo de tal forma

que sua força emancipadora foi abalada. Assim, por exemplo, a crítica ao sistema salarial centrado

no homem (androcentrismo) como o único provedor foi reapropriada de modo a abrir espaços no

mercado de trabalho às mulheres. Ocorre que o espaço de trabalho cedido foi o de trabalhos

subalternos e mal pagos na indústria e no comércio. Por outro lado, a crítica ao economismo levou

os movimentos feministas a privilegiarem as questões do reconhecimento e da cultura. Ao descartar

a relevância em pé de igualdade das questões de distribuição, o feminismo tornou-se uma discussão

acadêmica e pouco relacionada com as desigualdades econômicas e injustiças das mulheres ao redor

do mundo. Neste ponto Fraser compartilha da crítica de Richard Rorty (1999) ao culturalismo de

uma maneira geral, por este ter se afastado do movimento dos trabalhadores (ver Fraser, 2007, p.

15), mas ao contrário deste, reconhece que a questão da justiça hoje não se reduz a questão da

distribuição, mas também está associada à luta pelo reconhecimento, como expusemos acima.

4. Pragmatismo democrático-feminista-socialista

Em “Rumo a uma teoria feminista do julgamento” (2009), Linda Zerilli defende o

feminismo multiculturalista contra o que ela chama de novo universalismo feminista. Seus principais

alvos são as filósofas Martha Nussbaum e Seyla Benhabib, no entanto, é evidente que a proposta de

um (feminismo) reconhecimento moral de Fraser poderia ter sido muito bem alvo dessa mesma

crítica.

Segundo Zerilli o problema das novas universalistas é o de acreditarem que precisam de

uma teoria transcontextual de julgamento para que possam dar força políticas às suas conclusões e

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reivindicações. Temem cair no relativismo se assumirem uma postura anti-essencialista e cultural,

mas, segundo Zerilli, não alcançam a almejada objetividade e imparcialidade de seus julgamentos:(. . .) o etnocentrismo reaparece na visão antiessencialista da cultura desses novos universalistas sob a forma de contextos locais que se tornaram supérfluos a partir do ponto de vista de qualquer articulação de critérios normativos comuns. (2009, p.99)

Na visão de Zerilli, portanto, qualquer esforço de normatividade não escapará ao ímpeto de

assumir um só critério de escolha, e ao fazer isso estará necessariamente deixando de lado as

questões que não se encaixem nesse critério. Segundo Zerilli, porém, nosso julgamento não ficará

paralisado diante da impossibilidade de assumir critérios transcontextuais que eliminem o risco do

relativismo, desde que aceitemos uma validade provisória para nossos julgamentos, isto é, que eles

estejam sujeitos a críticas e aceitação dentro da arena de disputa política.

Fraser afirma (2007, p. 120) que a paridade participativa é universalista, seja porque inclui

todos os parceiros na interação, seja por que pressupõe igual valor moral dos seres humanos. Esses

são critérios mínimos que não comprometem o conteúdo do julgamento moral. Esse conteúdo não

pode ser definido a priori. O que define o tipo de reconhecimento a ser reivindicado em um campo

de forças políticas e sociais depende, para Fraser, da abordagem do problema com o “espírito de um

pragmatismo informado pelas compreensões da teoria social” (idem, ibidem). Em outras palavras, é

preciso sempre contextualizar o debate e fazer uso das informações correntes sobre o problema em

jogo.Para o pragmatista, nesse sentido, tudo depende do que as pessoas são reconhecidas hoje em dia necessitam a fim de serem capazes de participar como parceiros na vida social. E não há razão para assumir que todas elas necessitem da mesma coisa em qualquer contexto Em alguns casos, elas podem necessitar de serem aliviadas de excessiva distinção atribuída ou construída, Em outros casos, elas podem necessitar de que suas particularidades, até agora não reconhecidas, sejam levadas em consideração.( 2007, p. 123)

Em “Solidarity or Singularity? Rorty between Romanticism and Technocracy” (1989),

Fraser define melhor o que ela adota no seu pensamento da filosofia pragmatista. No final desse

ensaio ela fornece uma receita para o que seria um pragmatismo democrático–socialista-feminista e

fala sobre cada um de seus ingredientes. Apesar de neste ensaio criticar a posição liberal e

androcêntrica de Rorty, aceita um grau zero de pragmatismo como importante. Segundo ela, o

pragmatismo é uma visão antiessencialista com respeito aos conceitos da filosofia tradicional, tais

como razão, verdade, natureza humana e moralidade. O pragmatismo considera que tais categorias

são construídas histórica e socialmente. Mas é preciso radicalizar a democracia e não acreditar que

suas instituições sejam autorreguladoras e imparciais, posição adotada pelo meliorismo pragmatista.

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Conclusão:

A despeito de sua reivindicação de um universalismo moral, não penso que Fraser discorde

essencialmente da Zerilli de que não podemos assumir uma posição transcontextual de julgamento,

já que ela adota a crítica ao essencialismo do pragmatismo e seu método de contextualização dos

problemas. Por outro lado, me parece que a sua visão bidimensional da justiça, a visão segundo a

qual a paridade participativa é o critério de justiça que pode abrigar tanto as condições objetivas da

justiça distributiva, quanto as condições intersubjetivas do reconhecimento é uma posição mais

apropriada do que a pura política da justiça como reconhecimento do feminismo culturalista. Em

países como o Brasil, com enormes disparidades econômicas, seria uma grande alienação acharmos

que a questão cultural se sobrepõe à econômica.

Referências bibliográficas:

FRASER, Nancy. “Solidarity or Singularity? Richard Rorty between Romanticism and

Technocracy”. In: Fraser, Nancy. Unruly Practices: Power, Discourse, and Gender in

Contemporary Social Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989. P. 93- 108.

-------------------. “Reconhecimento sem ética?”. Trad. Ana C. F. Lima e Mariana P. Fraga Assis. In:

Lua Nova, 70. São Paulo, 2007. P. 101-138.

---------------------. “Feminism, Capitalism and the Cunning of History”. In: New Left Review, 56.

2009. P. 97-117.

--------------------. “Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and

Participation”. In: Fraser, Nancy e Honneth, Axel. Redistribution or Recogntion? A political-

Philosophical Exchange. Nova Iorque, Londres: verso, 2003. P. 7- 109.

HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz

Repa. São Paulo: Ed. 34, 2009 (2ª. edição).

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

RORTY, Richard. Achieving our Country. Leftiest Thought in Twentieth-Century America.

Cambridge, Londres: Harvard University Press, 1999.

ZERILLI, Linda. “Rumo a uma teoria feminista do julgamento”. TRad. André Villalobos. In:

Revista Brasileira de Ciência Política: Gênero e Política. No. 2. Brasília, julho/ dezembro, 2009.

P. 89-118.

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A POSSIBILIDADE DE POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN: uma resposta à Nancy Fraser

Henrique Brum

Resumo: Neste artigo procuro, a partir das observações de Nancy Fraser e Iris Young sobre os

limites e possibilidades de integração das teorias do reconhecimento às teorias liberais, acoplar uma

teoria do reconhecimento nos moldes da de Axel Honneth ao sistema político de Ronald Dworkin.

Para tanto, exponho brevemente a teoria da Igualdade deste e seu corolário referente à Liberdade

para, então, usar uma brecha deixada por um dispositivo teórico (o Princípio da Independência) de

modo a permitir e endossar políticas de reconhecimento. Argumento que essa abordagem possui a

clara vantagem de ligar deontologicamente o reconhecimento à Igualdade, fazendo do mesmo uma

questão de Justiça. Por fim, tento responder a quatro objeções que poderiam ser feitas a tal intento e

às teorias que o baseiam.

Palavras-chave: Dworkin, Fraser, Honneth, Igualdade, Reconhecimento.

Abstract: In this paper I intend, from the observations of Nancy Fraser and Iris Young concerning

the limits and possibilities of integrating recognition theories to liberal ones, to connect a theory

of recognition like Axel Honneth’s one to Ronald Dworkin political system. For so, I expose

briefly the latter’s Equality theory and then I use a gap left by a theoretical device (the

Independence Principle) in order to allow and endorse recognition policies. I argue that this

approach has a clear advantage in deontologicaly linking recognition to Equality, making from

the former an issue of Justice. To conclude, I try to respond four objection that might be made

against this intent and against the theories that base it.

Keywords: Dworkin, Fraser, Honneth, Equality, Recognition.

Introdução:

Em seu artigo “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Postsocialist’

Age.”2, Nancy Fraser identifica duas tendências no atual cenário das teorias políticas. De um lado,

estariam teóricos cuja atenção estaria mais voltada para as disparidades socioeconômicas, tais como

as desigualdades de riquezas e de renda. Estes compreenderiam uma ampla fatia do espectro político,

2 FRASER, Nancy.From redistribution to recognition? Dilemas of justice in a ‘Post-Socialista’ age. New Left Review, 212, julho/agosto 1995.

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do pensamento marxista aos liberais igualitários atuais (Rawls, Sen, Dworkin), e, por prescreverem

que algum conjunto de bens (riquezas, recursos...) seja redistribuído na sociedade segundo

determinado critério para sanar injustiças, defenderiam a chamada “redistribuição”. De outro,

teóricos que estariam mais atentos a injustiças de caráter cultural ou simbólico, como o racismo, o

machismo ou a homofobia. Por prescreverem que a sociedade reconheça certa condição de

determinado grupo de pessoas, defenderiam o chamado “reconhecimento”.

Fraser, no entanto, sabe que muitos dos teóricos de ambos os lados preocupam-se tanto com

um aspecto da injustiça quanto com outro, de modo que tal divisão soa por vezes artificial. Guiada

pelas observações de Iris Young, ela cita, por exemplo, as “bases sociais do autorrespeito” no

pensamento de Rawls ou o “senso de self” em Amartia Sen3.

O objetivo deste artigo é mostrar como no pensamento de outro liberal, Ronald Dworkin, a

existência de um mecanismo distributivo pode dar origens a políticas de reconhecimento. Para tanto,

farei um breve resumo da teoria liberal de Dworkin, baseada na chamada “Igualdade de Recursos” e

em seguida argumentarei que o chamado “Princípio da Independência”, presente na parte da teoria

que diz respeito à liberdade política, pode ser interpretado (e agir como) um mecanismo de

reconhecimento.

A Igualdade de Recursos:4

A teoria de Dworkin parte da aceitação quase universal do chamado Princípio Igualitário

Abstrato, que estipula que o Estado deve demonstrar interesse em melhorar a vida dos cidadãos e

deve fazer isso demonstrando igual consideração por todos. Os conflitos entre as diversas teorias

políticas decorreriam de como interpretar tal princípio (Quem são “todos”?, O que é demonstrar

igual consideração?). Para o autor, a melhor maneira de respondê-lo é através da Igualdade de

Recursos, e para explicar este conceito ele lança mão de um célebre exemplo.

Imaginemos um grupo de náufragos em uma ilha deserta. Diante da possibilidade de ficarem

presos lá por muitos anos, decidem repartir os recursos da ilha entre si. Mas qual a melhor

distribuição? Poderiam reparti-los igualmente entre si, mas isso poderia não satisfazer todas as

necessidades dos cidadãos (quem fosse vegetariano, por exemplo, poderia desejar mais coqueiros e

3 Para uma melhor exposição das observações de Young, ver: YOUNG, I. M. Unruly Categories: A Critique of Nancy Fraser’s Dual Systems Theory. New Left Review I/222, March-April 1997 e seu Justice and the Politics of Difference, Princenton, 1990.

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Para uma visão mais detalhada da Igualdade de Recursos ver: DWORKIN, A Virtude Soberana. São Paulo, Martins Fontes, 2005. 14

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menos vacas do que a média). Ademais, este tipo de divisão não reflete uma questão básica de

justiça: a de que nesses casos um terceiro agente (o Estado) faz a distribuição entre as pessoas, mas

quem sofre as conseqüências boas e más de tal distribuição são as próprias pessoas, o que é

claramente injusto, pois se as consequencias recaem sobre as pessoas, nada mais justo do que deixar

que elas escolham os bens que achem mais convenientes. No entanto, Se fosse assim, isso geraria

consequências para a comunidade, pois o uso de um recurso singular por uma pessoa impede que o

mesmo seja usufruído por outras, de modo que é preciso conciliar essas duas questões de justiça.

A solução para esse impasse é o leilão igualitário. No caso do exemplo, os náufragos

escolheriam uma pessoa para ser o leiloeiro. Este dividiria todos os recursos da ilha em parcelas

pequenas o bastante para satisfazer os vários tipos de planos, mas não tão pequenas a ponto de não

servirem para nada. Em seguida, combinaria com os cidadãos a adoção de um Teste da Cobiça:

nenhum resultado do leilão seria válido se ao final do mesmo alguém cobiçasse o quinhão de

outrem. A seguir se distribuiria entre as pessoas um igual número de objetos sem valor para servir

como moeda (conchas, no caso). Feitas essas considerações, se iniciaria o leilão propriamente dito,

com cada um dando lances pelos diferentes recursos à disposição. Caso o leilão terminasse e o teste

da cobiça não estivesse satisfeito, este se iniciaria novamente com novos ajustes para melhorá-lo, até

que isso ocorresse. Por fim, o leilão terminaria, e ninguém preferiria a parte de ninguém.

Dessa maneira, fica assegurado que cada um colha os frutos bons e maus dos recursos que

escolheu (e, consequentemente, da vida que quer levar para si), e apenas os do que escolheu. No

entanto, para isso, não adianta somente garantir a igualdade na linha de partida. Sorte, talento e

deficiências podem comprometer a igualdade a longo prazo. Para sanar tal problema, Dworkin

imagina um sistema de tributação baseado em um mercado hipotético de seguros. Por esse sistema,

as pessoas comprariam apólices contra o azar, contra a chance de desenvolverem deficiências ou

ainda contra a chance de não alcançarem com seu talento todas as possibilidades que acham que

podem. A partir dessas respostas seriam criados impostos com o valor da quantia imaginada, e que

recompensariam com o valor da apólice hipotética aqueles que de fato fossem atingidos por tais

imprevistos.

Integrando a Liberdade5:

5 Para uma melhor exposição deste ponto, ver DWORKIN, idem, cap.3. 15

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Após desenvolver sua teoria da igualdade, Dworkin passa a explicitar o lugar da liberdade

nela, a fim de evitar os freqüentes confrontos entre uma e outra. Para tanto, o autor rejeita o

argumento tradicionalmente utilizado nesses casos, que coloca a liberdade como sendo do interesse

dos cidadãos para em seguida afirmar que esta deve ser protegida em favor desses interesses. Ele

protege a liberdade de uma maneira perigosamente contingente: caso as pessoas não quisessem a

liberdade, (como de fato não querem em várias situações em que esta é sacrificada em favor de

outras virtudes como segurança e eficiência) ele perderia a sua força.

O projeto de Dworkin é derivar a liberdade diretamente do Principio Igualitário Abstrato.

Para isso, ele parte de um problema relacionado ao leilão igualitário. Imaginemos que o leiloeiro

tenha decidido lotear os terrenos em grandes propriedades. Tanto quem quer construir uma mansão

quanto quem quer um chalé deve comprar o mesmo terreno, de modo que o que quer o chalé poderia

questionar a própria divisão dos lotes. Perceba-se que aqui o que está em questão é o próprio sistema

paramétrico de regulagem da propriedade privada, e não o resultado do leilão em si, de modo que

trata-se de uma injustiça para com a qual o teste da cobiça é cego (nenhum do dois quer a parte de

outro, mas com os recursos economizados na compra de um terreno menor, o dono do chalé poderia

fazer outras coisas). Não se pode, no entanto, declarar arbitrariamente que o segundo padrão é

melhor e recomendar sua adoção, já que este também gerará consequências distributivas que

favorecerão alguns e prejudicarão outros. É preciso uma razão para tanto, e a razão está no próprio

objetivo da Igualdade de Recursos. Esta foi concebida para que as pessoas colham os frutos bons e

maus das escolhas que fizeram (e apenas estes), de modo que o segundo claramente cumpre melhor

esse papel. Isso leva ao primeiro de uma série de princípios para integrar a liberdade à Igualdade de

Recursos: O Princípio da Abstração. Este diz que os recursos devem ser leiloados em sua forma mais

abstrata e reduzida possível para refletir os reais custos destes para a realização dos planos do

indivíduo e seu impacto na comunidade. Isso, porém, tem consequências profundas sobre a

liberdade. Talvez eu não queira comprar um violão se não puder usá-lo para fazer músicas de

protesto. Assim, não só o tamanho, mas a forma e maneira de uso dos recursos também fazem parte

do sistema paramétrico. Portanto, o Princípio da Abstração recomenda que todos os recursos sejam

leiloados de maneira que permita a seus donos o uso mais livre possível, a não ser em caso de grave

ameaça à integridade dos outros cidadãos, e aqui entra o segundo princípio, o da Segurança, também

originado diretamente do Princípio Igualitário Abstrato.

Dworkin elenca outros princípios oriundos do Princípio Igualitário Abstrato para proteger a

liberdade. Por exemplo, um grande mérito do leilão é o de dar às pessoas a oportunidade de escolher

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baseadas em suas próprias preferências, em vez de querer adivinhar o que elas escolheriam em

determinada situação. No entanto, às vezes, descobrir quais são suas verdadeiras preferências pode

ser mais difícil do que parece. Os gostos estão a todo o momento sujeitos a manipulações ou simples

mudanças, de modo que é preciso criar parâmetros para decidir quando os cidadãos estão prontos

para iniciar o leilão. Neste aspecto, o Princípio da Autenticidade cumpre um papel importante. Diz

que, como os resultados do leilão e das operações posteriores a ele só são realmente igualitários se

refletirem as verdadeiras preferências individuais, a melhor maneira de se chegar a estas é garantir

aos participantes o maior acesso possível às informações que desejam, bem como a liberdade de se

expressarem e ouvirem a opinião alheia, a fim de que o processo deliberativo produza convicções

mais sólidas. Isso tem impacto direto na questão das liberdades, já que garante a proteção das

liberdades de expressão e não expressão (ou seja, a proteção contra a vigilância estatal na vida

privada), associação pessoal, social, política, íntima e religiosa e o mais amplo acesso às artes e ao

conhecimento.

Imagine-se que o leiloeiro saiba que um dos participantes comprará um terreno para lá

instalar uma fábrica muito poluidora e que se seus vizinhos soubessem desse fato, poderiam fazer

lances conjuntos pelo terreno. Porém, como não sabem, não se unirão, e o resultado, então, não é o

que se teria em um leilão com ampla base informacional. É aí que entra o Princípio da Correção.

Para resolver este problema, o leiloeiro poderia mexer nos parâmetros de liberdades e restrições,

adotando medidas de zoneamento de terreno, ou tornando a poluição passível de processo judicial.

Liberdade, Independência e Reconhecimento:

É o último dos princípios que nos interessa e que é a razão de ser desse trabalho. O Princípio

da Abstração pode dar margem à existência de formas de discriminação. Ele permitiria, por exemplo,

que racistas comprassem terrenos para gerar recintos onde os negros fossem impedidos de entrar. E a

Correção, por sua vez, impediria os negros de dar lances por tais terrenos a fim de evitar a

segregação, pois entenderia que se os brancos soubessem do fato, dariam lances mais altos pelos

mesmos. No entanto, um leilão que permita e até apóie este tipo de resultado está claramente contra

o Princípio Igualitário Abstrato.

Para evitar que isto aconteça, existe o Princípio da Independência. Ele controla a Abstração,

impedindo-a de incluir entre as liberdades para uso dos bens a de fazê-lo para discriminar minorias, e

impedindo a Correção de adotar medidas que protejam atitudes discriminatórias.

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Isto não significa, porém, que o Princípio da Independência seja apenas um mecanismo ad

hoc para evitar conseqüências indesejáveis à Igualdade de Recursos. Pode também ser visto como

uma solução no âmbito das deficiências. Ser vítima de preconceito pode ser visto como uma

deficiência, de modo que alguma forma de compensação passa a ser exigida pela teoria. Como,

porém, o ressarcimento financeiro via mercado hipotético de seguros não pode resolver o problema

(não se pode lidar com o status social assim), a melhor forma de fazê-lo é a prevenção pela proteção,

e por isto recorre-se ao Princípio da Independência, não como um adendo ad hoc à teoria, mas como

uma extensão dela.

Obviamente, esse mecanismo é, de início, claramente distributivo. Previne que o arranjo dos

recursos seja tal que permita atos discriminatórios. No entanto, ao reconhecer que problemas de

status social não podem ser resolvidos pela transferência de recursos (não por acaso a solução para

esse impasse é a prevenção contra uma distribuição discriminatória), o autor abre espaço para que o

Princípio da Independência seja expandido para endossar também demandas por reconhecimento.6

Expandindo o Princípio:

Proponho, então, que o princípio seja expandido e reconceitualizado. Uma boa maneira de

recolocá-lo formalmente seria: I) O Princípio Igualitário Abstrato estipula que o governo deve

demonstrar interesse em melhorar a vida dos cidadãos, e que deve fazê-lo demonstrando igual

consideração por todos. II) Porém, uma política que trate a todos como uma massa uniforme não

consegue captar certas nuances dos cidadãos que podem ser fundamentais para a constituição de suas

identidades. Portanto, não adentrar nesse terreno que vai além do igual tratamento formal é não

demonstrar interesse pela melhoria da vida dos mesmos. III) A única maneira, entretanto, de fazê-lo

demonstrando igual consideração por todos é considerar cada cidadão não apenas em seu status

juridicamente conferido, mas também em sua estima individualmente atribuída, de modo a atentar

para as nuances supracitadas.7 IV) Portanto, do Princípio Igualitário Abstrato deriva o novo Princípio

da Independência, que estipula que o governo deve não apenas evitar situações discriminatórias, mas

também gerar e endossar políticas que afirmem as individualidades e a estima dos cidadãos.6 Talvez esse espaço deixado não seja tão inconsciente quanto meu texto possa fazer parecer. Nas páginas 219 e 220 d’ A Virtude Soberana, Dworkin escreve: “O Princípio da independência (...) controla o princípio da correção ao insistir que não se pode justificar como necessário nenhum parâmetro limitador para se chegar a um resultado ao qual se chegaria em um leilão com perfeitos conhecimentos e nenhum custo organizacional, se só se alcançasse tal resultado porque os lances refletiriam um desprezo ou antipatia por quem estivesse sujeito a desvantagens ou sofresse devido à restrição.” (DWORKIN, Ibid., grifos meus) . Perceba-se como o vocabulário é parecido com o dos teóricos do reconhecimento. 7Isso nos leva a uma teoria do reconhecimento nos moldes da de Honneth. Para uma melhor exposição da mesma, ver: HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003. Pgs159-211. 18

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De modo a aprofundar a análise teórica, desenvolverei os estágios um a um:

I) Dworkin não fornece nenhuma razão pela qual adotar o Princípio Igualitário

Abstrato, não parece ser o caso que precise fazê-lo. Sua aceitação quase universal

permite-nos começar já a partir dele. Claro que as mais variadas teorias políticas

discordarão em muitos dos seus aspectos, como: a) Quem são “todos”? b) O que

significa demonstrar interesse pela melhoria da vida dos cidadãos (incluiria, por

exemplo, medidas paternalistas, ou que “protegessem o indivíduo de si mesmo”?)?

c) O que significa demonstrar igual consideração por todos? d) Em que aspectos

todos merecem ser tratados como iguais? Etc. Entretanto, o Princípio é abstrato o

suficiente para se encaixar em quase todas as teorias contemporâneas. De fato, seu

alto grau de abstração é propositalmente talhado para isto, ainda que isso enxugue

quase todo o seu potencial normativo.

II) Esse passo também não é exatamente novo. Várias teorias normativas têm apontado

para a necessidade de se ir além da igualdade formal a fim de garantir a igualdade

de fato na sociedade, não deixando as diferenças sociais, culturais e econômicas

implodirem o igual tratamento. Novamente, a profundidade desta igualdade

ampliada será o ponto de divergência entre as teorias adeptas de um conceito

substantivo de justiça. Perceba-se, no entanto, que o passo dado aqui já toma uma

direção diferente da tomada pela maioria das teorias supracitadas, que focam suas

intervenções em políticas de redistribuição. Aqui se encaminha explicitamente para

o endosso de políticas de reconhecimento, embora estas últimas também possam

ser endossadas por outros mecanismos (como de fato são na teoria de Dworkin e

outros liberais). Tal caminho, perceba-se, não apresenta nenhuma dificuldade

conceitual.

III) O terceiro passo decorre do anterior. Se a preocupação é atentar para as

características que são constitutivas das identidades dos indivíduos8, não faz o

menor sentido tentar fazê-lo através do tratamento idêntico dado pelo sistema

jurídico à pessoa na simples condição de cidadão. É preciso ir mais além e

considerar cada cidadão em sua individualidade. Chega-se aqui a uma questão

fundamental: Se a igualdade exige que todos sejam tratados com igual

consideração, e o passo 2 diz que devem ser levadas em conta as características que

8 Para uma descrição mais detalhada do que seriam tais características, ver: HONNETH, idem, especialmente caps.: 5 e 6. 19

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formam a individualidade (que, por sua vez, exigem soluções individualizadas),

como conciliar as duas coisas? Como é possível apelar para a igualdade a fim de

tratar cada um diferentemente? A resposta, no entanto, já é dada no próprio passo 2.

Se se adotou de antemão um conceito substantivo de justiça, em nome da igualdade

em algum nível (no caso de Dworkin, o dos recursos) não apenas podemos, mas

devemos dar tratamento diferenciado a cada pessoa, de modo a atingir a igualdade

no âmbito almejado9.

IV) Ao se juntar o Princípio Igualitário Abstrato com os passos 2 e 3 fica claro que o

Estado não deve se contentar em evitar situações discriminatórias. Deve ir além e

promover políticas que garantam a estima dos cidadãos e o reconhecimento de suas

individualidades. Não fazê-lo é não demonstrar interesse na melhora da vida de

seus concernidos (o que é absurdo) ou não fazê-lo demonstrando igual

consideração por todos (o que é imoral), pois ao não fazer nada o Estado

tacitamente dá mais apoio àqueles que têm o reconhecimento garantido (homens

brancos heterossexuais, por exemplo). A questão do reconhecimento é inevitável, e

escolher ficar de fora é já marcar uma posição a favor e uns e não de outros.

Ainda que essa reformulação seja ainda muito primária, ela já possui de início duas

vantagens importantes. Primeiramente, fundamenta as demandas por reconhecimento derivando-as

diretamente do Princípio Igualitário Abstrato e colocando-as, portanto, como uma exigência da

Igualdade. Isso as embasa naquele que talvez seja o solo mais sólido do pensamento político

ocidental. Em segundo lugar, permite integrar a teoria do reconhecimento no seio das teorias

deontológicas e normativas, nos moldes da teoria da ação participativa de Nancy Fraser10, de modo a

reforçar sua base.

9 Uma possível objeção a esse passo seria que o âmbito escolhido por Dworkin (os recursos), e os escolhidos por todas as teorias prioritariamente distributivas não permitem que se dê o passo 3. Isto porque se se trata de um âmbito prioritariamente distributivo, o conjunto de intervenções sociais que serão realizadas para garanti-lo deve ser organizado em um esquema igualmente distributivo, pois este é pensado justamente para assegurar a igualdade no âmbito principal, de modo que seria cegueira analítica tentar introduzir políticas de reconhecimento nesse estágio. Porém, a objeção não vê que para Dworkin o conceito de “Recursos” vai além do significado usual da palavra. A Igualdade de Recursos separa claramente a pessoa (seus desejos, planos e aspirações, etc) e suas circunstâncias (condição social, cultural e econômica, cor, sexo, etc), igualando as últimas de modo que a pessoa possa, com seu justo quinhão, escolher a vida que quer levar. Nesse sentido, as condições para a formação de uma individualidade com autoconfiança, autorrespeito e autoestima (usando o esquema conceitual de Honneth) podem muito bem serem vistas como fazendo parte das circunstâncias, pois, assim como educação e nutrição, são condição para a própria formação da pessoa. Por isso, devem ser levadas em conta no cômputo geral dos recursos, assim como se reconhece que um deficiente deve ter mais recursos para que se tente amenizar sua desvantagem natural. No capítulo 2 de A Virtude Sberana tem-se ma ótima explicação sobre o conceito dworkiniano de Recursos. 10 Para uma visão da teoria da autora ver: FRASER, N. e HONNETH, A.Redistribution or Recognition?. London: Verso, 2003. Cap. 1. Ver também FRASER, N. “Reconhecimento sem Ética?.Lua Nova. São Paulo, 70: 101-138, 2007. 20

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Possíveis Objeções:

Tento responder aqui a algumas das objeções que poderiam ser levantadas à maneira como

Dworkin lida com o problema do status social, bem como à minha reformulação desta.

I) É imoral tratar o fato de se sofrer preconceito como uma deficiência: Esta

crítica afirma que ao lidar com o fato de se sofrer preconceito como uma forma de

deficiência, a teoria acaba legitimando involuntariamente o preconceito, pois

colocaria este fato (e, junto com ele, a característica que o originou) como um

defeito da pessoa que o sofre, e não dos preconceituosos. No entanto, essa crítica

rasteira (e por isso mesmo comecei por ela) não percebe o óbvio: Em nenhum

momento se disse que se trata de uma deficiência. O que Dworkin argumenta é

que, por tratarem-se, em ambos os casos, de características que afetam a igualdade

e que estão fora do âmbito das escolhas individuais, ambas podem ser tratadas de

forma estruturalmente semelhante, pois a Igualdade de Recursos tem um

compromisso de fazer com que apenas essas escolhas influenciem a vida das

pessoas, devendo tudo o que está fora de seu âmbito ser mitigado ao máximo. E,

nesse caso específico, problemas semelhantes levam a soluções diferenciadas, já

que o próprio autor reconhece que não se pode lidar com o status social com a

simples transferência de recursos (o que talvez valesse para algumas deficiências,

embora outras demandassem, com a vigência do novo Princípio da Independência,

políticas de reconhecimento específicas para elas).

II) A extrapolação do pensamento de Dworkin não é válida: De maneira simples,

esta objeção afirma que a extrapolação foi além das possibilidades da teoria

dworkiniana. Alega que, por mais que por vezes se expresse com um vocabulário

típico dos teóricos do reconhecimento, o autor em nenhum momento está

preocupado com essas questões. Tanto que sua solução para o fato de o problema

do status social não poder ser resolvido pela redistribuição de recursos é ainda e

essencialmente distributiva. Não haveria, então, espaço para o reconhecimento,

mesmo neste caso. Assim, querer forçar uma brecha para o encaixe de uma teoria

do reconhecimento no Princípio da Independência é não querer ver as limitações da

teoria de Dworkin. E a resposta para ela, é, a meu ver, igualmente simples. Não

21

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importa se Dworkin se preocupa efetivamente com as questões de reconhecimento

ou não (sinceramente, penso que não). O importante aqui é que ao se admitir que as

soluções distributivas não dão conta do problema do status social, abre-se uma

brecha para a introdução das questões de reconhecimento, e não há motivo algum

para não se explorá-la, radicalizando o Princípio da Independência. De fato, a

construção permite que exijamos reconhecimento porque faz parte das políticas de

um Estado alinhado com o Princípio Igualitário Abstrato a estima dos cidadãos em

sua individualidade. E a valorização não apenas do que eles têm de igual, mas

também o que têm de diferente.

III) Mesmo com a adoção da versão expandida, a teoria de Dworkin continua a ser

essencialmente uma teoria da redistribuição: Essa objeção alega que mesmo

com a adoção das modificações propostas aqui. A teoria dworkiniana continua

presa ao costume tradicional na Filosofia política de pensar que todos os problemas

se resumem a questões distributivas, prescrevendo-lhes soluções que recorram à

redistribuição. Porém, é justamente a constatação dessa limitação da teoria que,

juntamente com a brecha aberta pelo Princípio da Independência, nos move para o

seu aprimoramento, pois a introdução do reconhecimento na mesma é viável e,

pelo menos aparentemente, não problemática. Ademais, todo(a) autor(a), ao

discorrer sobre certos problemas, preocupa-se primariamente com certas questões,

de modo fatalmente serão deixadas de lado outras que estão fora do foco principal.

De fato, Fraser por vezes adverte os teóricos do reconhecimento para o

esquecimento por parte destes das questões distributivas. Por outro lado, a própria

Fraser já foi acusada de ser ainda primariamente distributiva.

IV) Trata-se de uma teoria do reconhecimento por demais individualista: Esta

objeção não se dirige apenas à minha reformulação do Princípio da Independência,

mas ao próprio modelo de Reconhecimento proposto por Honneth11. Alega que

essa abordagem coloca a questão do reconhecimento como algo relativo a

indivíduos, o que seria inadequado, visto que a maioria das demandas são feitas em

nome de e para grupos. Dessa forma, certas demandas comunitárias não seriam

cobertas por esse tipo de teoria. Para respondê-la, é preciso primeiramente atentar

11 Para uma exposição detalhada da teoria do reconhecimento de Honneth, ver: HONNETH,A. . Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003. 22

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um fato. Dworkin é um liberal, e, portanto, sua teoria da Igualdade (e as teorias

Ética, de Liberdade, e Democracia que a seguem) é centrada primariamente no

indivíduo (ainda que notemos no autor uma preocupação com a comunidade só

comparável, talvez a de Sen). Logo, nada mais coerente do que basear também no

indivíduo a teoria do reconhecimento que se quer acoplar ao seu sistema. Ademais,

fazê-lo evita o problema da reificação da cultura e/ou da comunidade, uma das

críticas centrais feitas aos comunitaristas.

Conclusão:

As questões sobre o reconhecimento são alguns dos mais interessantes assuntos da filosofia

política contemporânea. Explorá-las, no entanto, pode nos levar a soluções inesperadas. Este artigo

explorou uma delas. A partir das observações de Nancy Fraser e Iris Young12 sobre os limites e

possibilidades de integração das teorias do reconhecimento às teorias liberais, procurou-se acoplar

uma teoria do reconhecimento nos moldes da de Axel Honneth ao sistema político de Ronald

Dworkin. Para tanto, foi exposta sucintamente a teoria da Igualdade deste e seu corolário referente à

Liberdade para, então, valer-se de uma brecha deixada pelo Princípio da Independência de modo a

permitir e endossar políticas de reconhecimento. Argumentei que essa abordagem possui a clara

vantagem de ligar deontologicamente o reconhecimento à Igualdade, fazendo do mesmo uma

questão de Justiça. Por fim, tentei responder a quatro objeções que poderiam ser feitas a tal intento e

às teorias que o baseiam. Claro que trata-se aqui de uma versão primaria, e por isso mesmo,

despretensiosa, do argumento. Mas, como argumentei na sessão anterior, havia uma possibilidade

deixada em aberto pelo autor, e nenhuma razão para não explorá-la.

Bibilografia:DWORKIN, A Virtude Soberana. São Paulo, Martins Fontes, 2005.FRASER, Nancy.”From redistribution to recognition? Dilemas of justice in a ‘Post-Socialista’ age”.

New Left Review, 212, julho/agosto 1995.____. “Reconhecimento sem Ética?”.Lua Nova. São Paulo, 70: 101-138, 2007.

____. e HONNETH, A.Redistribution or Recognition?. London: Verso, 2003.HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003.

YOUNG, I. M. Unruly Categories: A Critique of Nancy Fraser’s Dual Systems Theory.New Left Review I/222, March_April, 1997 .

____. Justice and the Politics of Difference, Princenton, 1990.

12 Ver nota 2. 23

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UMA ANÁLISE CRÍTICA DO IDEALISMO DE AXEL HONNETH EM DEFESA DA

DEMOCRÁTICA PARIDADE PARTICIPATIVA DE NANCY FRASER

Frederico Graniço13

RESUMO: O presente artigo busca uma análise crítica do debate entre Nancy Fraser e Axel

Honneth sumarizado no livro lançado em 2003 conjuntamente pelos dois pensadores14. A

argumentação atual se referirá aos textos, ali contidos, “Social Justice”, de Nancy Fraser, e

“Redistribution as Recognition”, de Axel Honneth15.

ABSTRACT: This article attempts a critical analysis of the debate between Nancy Fraser and Axel

Honneth summarized in the book launched in 2003 jointly by the two thinkers. The current argument

will refer to the texts, contained therein, "Social Justice", by Nancy Fraser, and "Redistribution to

Recognition", by Axel Honneth.

1) Resumo da questão entre os autores

Nancy Fraser e Axel Honneth, em seu livro, têm por objetivo a compreensão da relação

entre “redistribuição” e “reconhecimento”. Entendem por redistribuição econômica a necessidade

por re-divisão das riquezas socialmente produzidas, esta seria a principal reivindicação dos

movimentos sociais nos últimos dois séculos. Já o reconhecimento seria uma demanda que se

popularizou mais recentemente, desinteressada na redistribuição da riqueza reivindica respeito nas

relações sociais – onde de um lado clama-se por igualdade de tratamento e, de outro, por

reconhecimento da diferença.

A respeito deste objetivo central de tecer a relação entre redistribuição e reconhecimento,

Fraser defende um “dualismo perspectivo” onde um eixo não pode ser reduzido a outro, mas podem

(e devem) ser ligados num conceito amplo de justiça que os subsuma sob o objetivo normativo da

13 Frederico Graniço é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, e mestrando do programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro sob orientação da prof.ª Dr.ª Susana de Castro. Email: [email protected].

Frederico Graniço holds a BA in Social Sciences from the Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, and is graduating in Science Graduate Program in Philosophy at the Universidade Federal do Rio de Janeiro under the guidance of prof. Dr. Susana de Castro. Email: [email protected] FRASER, N; HONNETH, A.: 2003.15 Referentes aos primeiro e segundo capítulos. Os nomes completos destes capítulos são, respectivamente, ‘Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, Participation’ e ‘Redistribution as Recognition A Response to Nancy Fraser’. 24

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“paridade participativa” – conceito análogo ao “discurso não-coagido” de Jürgen Habermas. Já

Honneth considera ilegítima a distinção entre cultura e economia, propõe um “monismo normativo”

onde a economia é entendida como resultado das inter-relações sociais legitimadas

intersubjetivamente por três esferas do reconhecimento – amor, lei e estima.

Honneth em seu discurso reconstrói a formação da sociedade moderna como a

diferenciação entre três esferas de reconhecimento autônomas: 1) o amor é a esfera afetiva colocada

em movimento por decorrência do fim das amarras do status nas relações sociais medievais; 2) a

legalidade é resultado do discurso burguês sobre a necessária igualdade de condições legais entre os

seres humanos; 3) já a estima social é a re-interpretação do status medieval, com a diferença

revolucionária de que aqui os sujeitos são avaliados por suas realizações e não por seus laços de

parentesco. São estas três esferas de reconhecimento que ancoram a legitimação dos discursos

sociais atuais, por isso a base normativa da teoria crítica deve partir desse consenso moral

estabelecido.

Já Nancy Fraser em seu discurso busca demonstrar a irredutibilidade das questões culturais

às econômicas e vice-versa. Feito isso através de exemplos empíricos, busca uma abordagem teórica

que dê conta da diferenciação entre estes dois eixos de justiça e também da inter-relação patente

entre eles. Através de seu “modelo de status” abandona a questão da formação identitária dos

sujeitos mal-reconhecidos e se volta para os resultados institucionais da ausência de paridade

participativa decorrente desse mal-reconhecimento. Com isso busca um critério normativo

deontológico para o diagnóstico e solução dos problemas de mal-reconhecimento: é mal-reconhecido

todo sujeito que por conta de uma filiação identitária é negado como um par nas relações sociais,

soluções justas devem eliminar essa desigualdade sem a formação de nenhuma outra desigualdade

de relações.

Passemos a uma análise crítica do debate. Num primeiro momento salientarei o conjunto de

problemas decorrentes do idealismo honnethiano. No segundo momento defenderei a boa solução

fraseriana de um ‘dualismo perspectivo’. A exceção será a questão entre “ética” e “moralidade

deontológica"; aqui serei fiel à posição de Richard Rorty na deflação do incondicional, concedendo a

Honneth, pace Fraser, a necessidade de uma antecipação da boa vida para qualquer tarefa avaliativa

atual.

2) Os Erros Idealistas de Axel Honneth.

2.1 – Seu Idealismo Sociológico

25

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Axel Honneth se esforça na defesa de sua chamada “Teoria Crítica”, todavia quero mostrar

neste trabalho que o adjetivo “crítica” não é apropriado à sua teoria.

No curso de sua caracterização dos princípios normativos intersubjetivos contemporâneos,

Honneth volta-se para a formação da sociedade moderna. Esta representaria um “progresso moral”

para a humanidade por criar a esfera da igualdade legal e por desvincular a esfera da estima social do

status de parentesco. Por focar nas distinções entre capitalismo e feudalismo (e não nas

semelhanças), sua explanação só representaria teor crítico se estivesse contestando a legitimidade

moral de um Senhor Feudal, mas em referência à contemporaneidade o discurso honnethiano mais

obscurece que clarifica.

Exacerbando as distinções entre medievo e modernidade, Honneth falha na tarefa crítica de

perceber as continuidades da dominação social. Atendo-nos a estas continuidades percebemos que o

discurso honnethiano é carregado de eufemismos: o princípio da “igualdade legal” poderia ser

chamado “princípio da hipocrisia” – desde quando já está claro que a igualdade legal não se sustenta

sem uma igualdade ampla de condições –, e o princípio da “realização meritocrática” poderia ser

chamado “princípio da exploração” – porque a organização econômica capitalista não favorece o

trabalho, mas sim a propriedade.

Essa não é só uma questão formal de nomenclatura, pois Honneth parte destes princípios

supostamente progressistas para concluir, falsamente, que o capitalismo liberal é o “ponto de partida

legitimado para a política ética”. Com isso faz parecer que o desenvolvimento social não requer

nenhum tipo de ruptura com a sociedade atual, mas tão-somente o desenvolvimento de suas três

esferas de reconhecimento: amor, lei e realização. Honneth vincula toda possibilidade de

argumentação racional a estas esferas de reconhecimento mal denominadas (porque mal

compreendidas) resolvendo que somente discursos embasados na ideologia burguesa hegemônica

podem servir ao aprimoramento social.

“If deep-seated claims of this kind are always socially shaped – in the sense that the content of the

expectation is always influenced by institutionally anchored principles of recognition – then these

principle always give rise to practical grounds that make up the rational web of sphere-specific

discourses of questioning and justification.” (HONNETH:2003 145)

O problema é que, assim, novamente afasta o adjetivo “crítica” de sua teoria; pois se a única

possibilidade de questionamento está na utilização da linguagem burguesa hipócrita de legitimação,

então a tarefa mais difícil será exatamente a crítica do que está posto. Resta como possibilidade uma

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crítica reformista de ‘aprimoramento’ das incompletudes da modernidade, sendo varrida a

possibilidade de uma crítica radical.

Assim Honneth inventa uma monolítica esfera intersubjetiva hegemônica burguesa e conclui

que toda argumentação racional precisa partir destes princípios. Com isso reduz a estrutura

econômica atual a um consenso moral intersubjetivamente estabelecido sobre a esfera de

reconhecimento da “realização meritocrática” (nosso princípio da exploração).

“Not only wich activities can be valued as ‘work’, and hence are eligible for professionalization, but

also how high the social return should be for each professionalized activity is determined by

classificatory grids and evaluative schemes anchored deep in the culture of bourgeois-capitalist

society.” (HONNETH:2003 154)

Mas isso nos leva à falsa conclusão de que a razão para traficantes de alta patente possuírem

rendimentos superiores a professoras ginasiais e bombeiros, é o desrespeito cultural das cidadãs e

cidadãos pela profissão de ensinar e salvar vidas enquanto super-valorizam o ‘importante’ ofício da

distribuição ilegal de drogas e armas. Assim, Honneth decide, a reivindicação distributiva deve

assumir a forma da argumentação legal e/ou da re-interpretação do princípio de realização.

Reduzindo o campo da luta distributiva a um espectro idealista culturalista, acaba por condenar à

esquizofrenia o maior movimento social da América Latina (Movimentos dos Trabalhadores Rurais

Sem-Terra). Pois, desde quando as ocupações de terra não necessariamente mobilizam argumentos

da legalidade (hipocrisia) burguesa nem possuem por objetivo imediato um debate sobre o princípio

de realização (exploração) – são sim ações concretas de democratização dos meios de produção –

escapam à tipologia honnethiana de reivindicações.

Honneth se equivoca a tal extremo por ter decidido abandonar a existência de uma dimensão

econômica política e estruturalmente conflituosa na sociedade. Desde quando tudo se baseia na

cultura social, não existem imposições militares, econômicas, políticas ou estruturais de qualquer

tipo. Ao contrário, o mundo atual está profundamente legitimado pois sua base de sustentação é

exatamente a razão socialmente estabelecida:

“Since the central institutions of even capitalist societies require rational legitimation throught

generalizable principles of reciprocal recognition, their reproduction remains dependent on a basis of

moral consensus – which thus possesses real primacy vis-à-vis other integration mechanisms, since it

is the basis of the normative expectations of members of society as well as their readiness for

conflict.” (HONNETH:2003 157)

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Ora, se o capitalismo está embasado na “legitimação racional através de princípios gerais de

reconhecimento recíproco” e sua reprodução depende da “base de consenso moral”; então já não há

necessidade alguma de crítica – ainda mais porque esse consenso moral tem prioridade frente a

outros mecanismos de integração.

O profundo e triste engano de Honneth está relacionado a uma má compreensão histórica das

turbulentas transformações revolucionárias que retiraram o poder do feudo passando-o para as mãos

burguesas. O filósofo acredita que essa transformação foi, mais uma vez eufemicamente, resultado

do “mercado e dos novos pensamentos”, simplesmente abstraindo toda a luta popular. Esquecendo-

se da aliança entre burguesia e nobreza no episódio paradigmático da Revolução Francesa, vende a

ideia de que a ascensão burguesa é responsável pelo “progresso moral” da modernidade – quando na

verdade os interesses burgueses representam há muito os principais entraves à democracia, à

ecologia, à paz, à igualdade étnica, entre outros.

Como se não bastasse essa enxurrada idealista, Honneth também resolve que o “poder

persuasivo” e a “incontestabilidade de razões morais” são o verdadeiro motor da história (p. 149). A

esse respeito me contento em fazer duas perguntas: a primeira é sobre o “poder persuasivo” da

“incontestabilidade de razões morais” no evento da invasão estadunidense ao Iraque ou no

Holocausto, a segunda é sobre o número de mortos.

2.2 – Seu Idealismo Epistemológico.

Partindo deste tacanho idealismo sociológico, onde todos os sujeitos necessariamente se

referem a uma forma hegemônica de legitimação16, Honneth percebe que qualquer justificação

normativa advinda deste arcabouço é dubitável. Desde quando os sujeitos estão contingencialmente

imersos numa sociabilidade histórica questionável, já não podemos confiar em seus discursos

normativos. Como solução para o antigo “problema do corpo” (seja o corpo físico ou o corpo social)

temos o antigo caminho redentor do mundo das ideias!

“In this second case, it can no longer simply be a matter of spelling out already-existing, socially

anchored principles of justice in all their plurality; rather, what is at stake is the central, far more

16 Sem complexidade, sem discursos e ideologias conflitantes, sem posição de classe, sem sujeitos em realidade, pois nessa compreensão todos se resumem a objetos completamente passivos da ordem social (menos os filósofos, como será mostrado). 28

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difficult task of developing normative criteria out of the plural concept of justice, by means of which

contemporary developments can be criticized in light of future possibilities.” (HONNETH:2003 183)

Sendo assim, para fugir do “presentismo míope” das “reivindicações relativistas de

justificação”, é necessário um critério normativo para o desenvolvimento da “constituição moral da

sociedade”. A pergunta, é claro, é como construir tal critério – por definição necessariamente acima

da opinião dos sujeitos (aqui tomados como meros objetos da sociedade).

Esse critério normativo tácito, Honneth nos diz, pode ser fornecido por sua “teoria do

reconhecimento”; que parte de uma “fenomenologia das experiências sociais de injustiça” (p. 114).

Essa teoria tem a vantagem de “identificar o descontentamento social” de modo “independente do

reconhecimento público” – isso porque trabalha precisamente com o tipo de “considerações moral-

psicológicas” que Fraser deseja evitar (p. 125).

Vemos então que Honneth conclui com a necessidade de uma análise fenomenológica das

experiências de injustiça. Porque se o discurso normativo social se refere necessariamente ao

discurso legitimado socialmente, então teríamos um círculo bem pequeno de justificação – posto que

o injusto seria tão-somente tomado em relação à ordem social vigente. Para resolver este problema

(de ter transformado os sujeitos em objetos de uma ordem social monolítica), Honneth apela a uma

concepção sobre a “natureza intersubjetiva dos seres humanos” (p. 138):

“But, on the other hand, this restriction to only a form of justification seems to entirely lose sight of

the normative perspectives from which individuals decide how far they can follow the established

principles of public justification in the first place. It is as if the generally accepted reasons need not

correspond to the normative expectatons that the subjects bring – in a certain way on their own – to

the social order.” (HONNETH:2003 130)

Pronto, Honneth amarrou a análise normativa das reivindicações de justiça a uma abordagem

“moral-psicológica” dos indivíduos. Agora está em condições de responder conceitualmente quais

“expectativas normativas os sujeitos geralmente têm da ordem social”. E, como sabemos, a boa

fenomenologia é aquela que responde as coisas sem nenhuma “restrição histórica” (p. 125) e “livre

de contextos hermenêuticos” (p. 126).

Ora, passemos à crítica, o problema aqui é claro! Toda a argumentação honnethiana cai por

terra com uma simples pergunta: o que o leva a crer que seu empreendimento teórico

fenomenológico é mais capaz de dizer o que as pessoas consideram desrespeito do que elas mesmas?

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O senhor Honneth acredita que estudando a psicologia interior dos seres humanos “em geral” será

capaz de esboçar um fundamento normativo para todo o mundo, e isso melhor do que qualquer um

dos seres humanos “particulares” – mesmo que organizados em movimentos populares e discutindo

organicamente suas questões – poderiam fazer. Partindo das críticas de Rorty e Fraser a esta postura

platônica, permitam-me chamar isto de ‘autoritarismo acadêmico’.

Se relembrarmos a genialidade psicanalítica de Freud, veremos que o papel do terapeuta não

é afirmar acima do paciente seus problemas, mas ao contrário dialogar com este paciente para que

ele próprio autonomamente tome consciência de si expressando suas questões. A Teoria Crítica

deveria se manter nesta linha de diálogo íntimo com os movimentos sociais, em vez de se preocupar

procurando fundamentos a-históricos para as experiências de injustiça17.

Honneth ignora isso e, através desse malabarismo teórico, resolve , por um lado, que a

filiação da teoria crítica social aos movimentos sociais é “perigosa” (p. 115), por outro que a

principal reivindicação popular se refere à “honra” muito mais que à “situação material”.

Assim fica completamente desacreditada a conclusão de Honneth de que as metas normativas

do progresso moral deveriam ser a “individualização” e a “inclusão social”. Além de ter faltado uma

argumentação convincente para que preferíssemos a “individualização” (e não, por exemplo, a

democratização) da sociedade, a própria estratégia fenomenológica de estipulação dos princípios

normativos do progresso moral parece cúmplice de um teoricismo demasiado a-crítico e autoritário.

Em realidade a tipologia de Honneth não está muito preocupada em convencer, basta descobrir as

raízes fenomenológicas das experiências de injustiça e, em seguida, modificar a vida das pessoas de

um modo que talvez nem elas mesmas saibam que desejavam.

Mas a “individualização” é um termo completamente questionável como meta moral,

principalmente em tempos onde assistimos resultados nefastos do individualismo crescente e falta de

senso coletivista em nossa sociedade18. E, por outro lado, “inclusão social” é um termo criticamente

esvaziado, com o qual o dono do Banco Mundial e o presidente de um possível Partido Comunista

Brasileiro concordariam igualmente – fica faltando exatamente a tarefa crítica de perguntarmos: que

tipo de inclusão ‘cara pálida’?

3) A democracia de Fraser entre o fundamento e o procedimento

17 Para a relação entre Teoria Crítica e psicanálise veja ROUANET, Sérgio Paulo. “Teoria Crítica e psicanálise” / – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983.18 E digo isso linguisticamente, como ator argumentativo que joga propostas interpretativas e aguarda o feedback de uma audiência que sonha ser a mais democrática possível; pois não sei exatamente o que ‘fenomenologicamente’ Honneth poderia dizer que estou pensando agora enquanto simplesmente olho para o objeto computador. 30

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Honneth se coloca em tão maus lençóis por conta de sua preocupação em justificar

normativamente as metas das políticas públicas, em distinguir os bons dos maus movimentos sociais;

quer, como bom filósofo, fazer isso sem precisar perguntar às pessoas o que elas sentem – quer

descobrir o que elas sentem por trás das palavras, num misto de fenomenologia, sociologia e

psicologia. Fraser, partindo de uma ética do discurso e de um pragmatismo democrático, caracteriza

este tipo de postura como monológica e platônica, de outro lado situa uma postura aristotélica

dialógica.

“Finally, the Platonic stance neglects the importance of democratic legitimacy; effectively usurping

the role of the citizenry, it authorizes a theoretical expert to circumvent the deliberative process by

which those subject to the requirements of justice can come to regard themselves as the latter's

authors.” (FRASER:2003 71)

Assim conclui que a postura aristotélica é preferível. Todavia, Fraser nos diz, esta pode recair

em “formalismos vazios” por rejeitar “conteúdos substantivos” rápido demais, insistindo no

“procedimento democrático que tem pouco a dizer sobre a justiça” (p. 71). Por isso, embora melhor

que o platonismo, o aristotelismo também não seria a melhor saída. O ideal seria o velho caminho do

meio – uma apropriada “divisão do trabalho entre teóricos e cidadãos”:

“Yet it is possible to state a rule of thumb: when we consider institutional questions, the task of

theory is to circumscribe the range of policies and programs that are compatible with the

requirements of justice; weighing the choices within that range, in contrast, is a matter for citizen

deliberation.” (FRASER:2003 72)

Embora a posição de Fraser seja preferível à monológica honnethiana, me preocupa sua

resistência ao que chama de “procedimentalismo vazio”. Neste ponto eu não quero argumentar, em

defesa da democracia, que o “procedimentalismo vazio” é preferível a qualquer “conteúdo

substantivo”; mas sim que não existe nem pode existir um tal procedimentalismo vazio. Qualquer

proposta política carrega consigo conteúdos substantivos, não há algo como uma proposta sem

conteúdo ou neutra: se dizemos que as decisões devem ser tomadas pelas pessoas democraticamente,

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há aqui inúmeros conteúdos substantivos querendo se afirmar19. Defendemos com isso algo de

bastante específico: que todos os sujeitos devem possuir dignidade igual na tomada de decisões.

Por isso estranho quando Fraser divide o trabalho entre “teoria” e “deliberação cidadã”, fazer

esta distinção é acreditar que filósofos fazem algo de categorialmente distinto das demais pessoas.

Este é um ponto confuso no pensamento fraseriano, pensa que “there are no clearly marked borders

separating political theory from the collective reflection of democratic citizens” (p. 71), mas se não

existem “bordas claras”, existem então bordas tênues? Sustento, partindo de Rorty, que não haja

algo como um limite categorial para essa distinção; o máximo que posso pensar é que um filósofo

competente terá argumentos realmente bons quando em comparação com um sujeito que, por

ventura, dedique pouco tempo ao pensamento crítico. Mas nesse caso não é necessário falar em

nenhuma “divisão de trabalho entre teóricos e cidadãos”, pois o teórico só pode ter vantagem na

deliberação democrática em referência a sua capacidade de convencimento dos demais participantes

– e esta é precisamente a base da democracia. Pode-se ceder que em alguns casos os sujeitos

decidam permitir que um perito explique os meandros de determinado problema sobre o qual

medidas serão tomadas, mas aqui também não é necessário falar em “limite da democracia”, pois

esta vantagem no tempo de fala do perito – por definição – também está submetida às decisões

democráticas. Ou seja, é recomendável que o perito se cale quando a maioria assim desejar.

Neste ponto Fraser se aproxima do engano de Honneth quando este pergunta retoricamente:

“(...) what would be the implications for the categorial framework of a critical social theory if, at a

particular time and for contingent reasons, problems of distribution no longer played a role in the

political public sphere?” (FRASER:2003 117)

O problema aqui é que ambos estão subestimando a democracia. Ora, as pessoas – animais

inteligentes que são – só abandonarão as reivindicações distributivas se estas deixarem de lhes ser

um problema. A possibilidade de abandonarem uma questão problemática é absurda e não precisa

ser cogitada. Cogitá-la, como Honneth, faz parecer que o nosso maior problema atual é a ausência de

um fundamento para a justiça, que falta às pessoas um senso de justiça que possibilite a democracia

– mas nosso problema não é a ausência de tal fundamento, mas sim a existência de poderes políticos

interessados na ausência democrática.

19 O debate sobre a verdade entre os filósofos Richard Rorty e Jürgen Habermas é bastante pertinente neste ponto. Embora endosse a ‘epistemologia’ rortyana, propus em outro lugar que o filósofo se equivoca quando faz o pragmatismo parecer algo de vago e tênue, desprovido de conteúdos substantivos. A este respeito indico meu artigo de 2009: Entre verdade e democracia: Os debates Rorty & Habermas. Disponível em http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/edicao3.htm. 32

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A abordagem fraseriana versa precisamente sobre a competência democrática para as

decisões. Em referência a posições populistas e autoritárias, Fraser nos diz:

“Both those approaches are monological, vesting in a single subject the authority to interpret the

requirements of justice. In contrast to such approaches, the status model treats participatory parity as

a standard to be applied dialogically, in democratic processes of public deliberation. No given view

—neither that of the claimants nor that of the “experts”—is indefeasible. Rather, precisely because

interpretation and judgment are ineliminable, only the full, free participation of all the implicated

parties can suffice to warrant claims for recognition.” (FRASER:2003 43)

Por isso considero que Fraser, com seu modelo de status baseado na reivindicação por

paridade participativa, segue no caminho certo. Todavia complica um pouco as coisas no modo de

sua argumentação. Ela quer que as interpretações dos “requerimentos de justiça” sejam dialógicas,

mas insiste – a meu ver desnecessariamente – numa concepção de justiça deontológica.

Pensa assim porque considera que “sob as condições modernas do pluralismo de valor” seria

“sectário” vincular o reconhecimento à auto-realização: “No approach of this sort can establish such

claims as normatively binding on those who do not share the theorist's conception of ethical value.”

(FRASER:2003 30).

Mas essa forma de colocar as coisas entra em conflito com a posição dialógica defendida por

Fraser. Compreendamos então a posição de Fraser: considera que as cidadãs e cidadãos devem

decidir sobre o leque de possibilidades para o empreendimento da “justiça”, mas a conceitualização

desta justiça e a circunscrição do alcance das políticas públicas, cabem à deontologia e aos teóricos.

Há aqui uma contradição desnecessária, pois não há meios para fundamentar absolutamente a

‘justiça’.

Essa concepção de justiça, Fraser nos diz, é retirada do espírito moderno da “liberdade

subjetiva”, mas este espírito não precisa estar acima da opinião dos sujeitos; ao contrário, ele só se

sustentará se estiver intimamente integrado à opção dos sujeitos. Aqui é necessária a sutileza de

perceber que a democracia pode cuidar de si mesma20.

20 Tugendhat em suas Lições de Ética (1996) nos diz: “(...) se o bem não é mais dado previamente de modo transcendente, parece então que é apenas o recurso aos membros da comunidade que por sua vez não pode ser limitada e que, portanto, deve fornecer o princípio do ser bom para todos os outros – e isto quer dizer também para seu querer e seus interesses. Formulado de maneira taxativa a intersubjetividade assim compreendida passa a ocupar o lugar do previamente dado de maneira transcendente e parece assim constituir o único sentido que ainda resta de preferência objetiva.” (p.95) E acrescenta uma justificativa para a insistência dos filósofos na dedução transcendente: “Estamos inclinados a isto [deduzir de algum outro lugar] por causa de nossa proveniência de morais tradicionais e porque como crianças, primeiro, crescemos no contexto de uma compreensão de moral ao menos em parte autoritária. Assim, terminamos esperando de uma outra parte uma simples fundamentação (da razão) em analogia com um apoio pela 33

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Para clarificar a questão tomemos um exemplo prático de Fraser.

“Such tactical considerations aside, the case of same-sex marriage presents no conceptual difficulties

for the status model. On the contrary, it illustrates a previously discussed advantage of that model:

here, the norm of participatory parity warrants gay and lesbian claims deontologically, without

recourse to ethical evaluation—without, that is, assuming the substantive judgment that homosexual

relationships are ethically valuable. The self-realization approach, in contrast, cannot avoid

presupposing that judgment, and thus is vulnerable to counter-judgments that deny it.”

(FRASER:2003 40)

Há aqui algumas complicações desnecessárias. A ideia de uma justiça deontológica acima da

opinião dos atores é desnecessariamente autoritária. A distinção que posso ver nesse caso é entre

‘coisas que não gosto’ e ‘coisas que não admito’, pois a distinção entre ‘concepção de justiça’ e

‘concepção de boa-vida’ faz parecer que devemos tratar as duas coisas em separado. Mas a meu ver

o mais interessante é propor que devemos tratar as duas coisas juntas.

Nesse caso devemos acreditar que democratizando as mídias, as escolas, as condições de vida

e dignidade, democratizando a sociedade, então – a cada passo – as soluções encontradas pelas

pessoas serão mais e mais próximas de uma boa concepção de justiça integrada a uma boa

concepção de boa vida. Não há necessidade de afirmar uma instância distinta da opinião dos atores,

com autoridade sobre estes atores, ao contrário, é necessário que os atores sociais tomados

igualmente assumam os poderes que, atualmente, são facultados a atores “especiais” simplesmente

por possuírem a propriedade privada.

Acho que essa forma de colocar as coisas é fiel ao projeto fraseriano de subsumir

redistribuição e reconhecimento sob uma perspectiva de justiça democrática (neste caso não-

deontológica). Mas vejamos um pouco mais porque Nancy Fraser, no início de sua explanação, toma

o caminho dessa distinção entre justiça e boa vida:

“Norms of justice are universally binding; like principles of Kantian Moralität, they hold

independently of actors’ commitments to specific values. Claims about self-realization, on the other

hand, are usually considered to be more restricted. Like canons of Hegelian Sittlichkeit, they depend

on culturally and historically specific horizons of value, which cannot be universalized.”

(FRASER:2003 28)

autoridade.” (p. 92)

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Ela própria concede que esse contraste, entre Moralidade e auto-realização, “em parte”, é

uma “questão de perspectiva” (p. 28). Gostaria de propor que essa questão é ‘completamente’ uma

questão de perspectiva. Não há uma moralidade, como a kantiana, desvinculada da história e da

opinião dos sujeitos: esta concepção é resquício de um indesejado autoritarismo. Nesse sentido a

defesa de Honneth da necessidade de uma antecipação da boa vida para qualquer avaliação

normativa parece sensata – excetuando sua proposta de construir tal “antecipação” a partir de uma

fenomenologia empiricamente orientada, mais útil e mais coerente é construí-la democraticamente, a

partir das arenas de discussão públicas; nesse caso, pace Honneth, os movimentos populares são sim

fontes legítimas de argumentação.

Para concluir gostaria de expressar uma dúvida mais prática sobre a argumentação de Fraser.

Soa-me perfeita sua explanação sobre o dualismo perspectivo e a necessidade de que a esquerda

integre as lutas por redistribuição e reconhecimento, de modo a construir uma nova sociedade –

enfim democrática. É bastante progressista sua distinção entre políticas afirmativas e

transformativas, que clarificam a inutilidade do reformismo.

A questão que trago é sobre a possível eficiência da estratégia proposta por Fraser em sua

conclusão: as reformas não-reformistas. Fraser acredita que, através de reformas com vistas a médio

e longo-prazo, é possível uma transformação substantiva da realidade capitalista de opressão e

miséria:

“These would be policies with a double face: on the one hand, they engage people's identities and

satisfy some of their needs as interpreted within existing frameworks of recognition and distribution;

on the other hand, they set in motion a trajectory of change in which more radical reforms become

practicable over time.” (FRASER:2003 79)

A esse respeito Fraser argumenta que a social-democracia no período fordista optou por essa

estratégia, mas não teve tempo de ver seus frutos por conta da ascensão neoliberal.

“Although none of these policies altered the structure of the capitalist economy per se, the

expectation was that together they would shift the balance of power from capital to labor and

encourage transformation in the long term. That expectation is arguable, to be sure. In the event, it

was never fully tested, as neoliberalism effectively put an end to the experiment.” (FRASER:2003

80)

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Minha questão é se realmente faltou tempo para ver os resultados do experimento, ou se o

advindo neoliberalismo não pode ser compreendido como parte do experimento, que teria então

falhado. Quer dizer, políticas públicas progressistas em meio à lógica do capital são – por definição

– empreendimentos dificultados. Quanto mais resultados práticos tais políticas alvejarem, maior será

a rejeição do poder vigente. Tal estratégia das reformas não-reformistas exigiria um nível

organizacional estupendo e permanente dos movimentos populares para, co-existindo com o capital,

vencer-lhe as batalhas em nome de cada nova política pública de democratização.

No Brasil temos o caso do golpe militar de 64, quando o capital nacional aliado ao capital

internacional (principalmente Estados Unidos) resolveram que a ‘democracia’ estava indo longe

demais.

Assim sendo, penso que a questão sobre a possibilidade das reformas não-reformistas é a

questão sobre o futuro do capitalismo: podemos esperar um aprimoramento da democracia neste

sistema ou, ao contrário, ele tende – se deixado solto – ao incremento da espoliação e submissão21?

Que nível organizacional seria necessário para convivermos com os interesses do capital e

garantirmos avanços homeopáticos na sociedade? Não haveria uma estratégia que exigisse dos

movimentos populares um nível organizacional mais focalizado num movimento radical de ruptura

que eliminasse a co-existência autoritária do poder do capital e, assim no longo prazo, não nos

exigisse uma dificultada mobilização permanente paralela à exploração e opressão? Aqui me refiro a

uma estratégia de independência semelhante à adotada por Cuba. Deixo estas questões em aberto.

Bibliografia

GRANIÇO, Frederico. A Verdade no fim da linha e a urgência democrática: Estudos sobre o debate

Habermas & Rorty de 2000. In: Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e

Filosofia Norte-americana. Ano 2, Número 1, 2010.

FRASER, N; HONNETH, A. Redistribution or Recognition. A political-Philosophical exchange.

Londres/Nova York: Verso, 2003.

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

21 Ainda mais nos tempos atuais onde assistimos ao crescente monopólio do poder econômico por uma classe mínima de mega proprietários transnacionais. 36

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SOBRE A IMPORTÂNCIA INTRÍNSECA DAS DECISÕES DEMOCRÁTICAS

PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA – uma abordagem comparativa das

teorias de Amartya Sen e Nancy FraserAntoine Lousao*

Resumo: Nancy Fraser e Amartya Sen desenvolvem conceitos substantivos de justiça cuja pedra de

toque é a participação democrática. Porém, os dois autores discutem as questões de justiça partindo

de perspectivas e debates totalmente distintos. Através da ampliação da base informacional para a

consideração da liberdade, Amartya Sen se situa em uma discussão com as teorias do public choice e

com os utilitaristas – criticando o modelo de maximização da utilidade e de ponto social ótimo. Com

sua teoria das políticas transformativas/desconstrutivas, Nancy Fraser provoca uma discussão com as

políticas afirmativas e as teorias do reconhecimento – criticando a idéia de identidade psicológica

(self) como base da justiça. A abordagem comparativa dos textos dos dois autores permite

compreender seus respectivos alcances e limites. Essas diferenças se exprimem com respeito à

intensidade crítica em relação ao liberalismo político, ao grau de universalismo das teorias, e à

possibilidade de traduzi-las em diretrizes de políticas públicas.

Palavras-chave: democracia, justiça, reconhecimento, políticas afirmativas.

Abstract: Nancy Fraser and Amartya Sen develop substantial concepts of justice based on

participative democracy. Despite this common concern, each of them discuss justice from different

start points. Amartya Sen sets the debate on the importance of informational basis for freedom

degree evaluation, disagreeing with public choice theories and the utilitarianism – criticizing the

maximin model and the concept of social optimum. In a different approach, Nancy Fraser makes

objections to affirmative action and the theories of recognition, criticizing the use of the concept of

self as a foundation for justice. Her critical model is based on deconstruction and transformation of

traditional categories. The analyses of both theories may lead us to a better comprehension of their

respective reach and limits. The differences between them concern both critical intensity towards

political liberalism, universalism degree, and ability to inspire public policies improvements .

Keywords: democracy, justice, recognition, affirmative policies.

*Notas :* Mestre em Filosofia Política pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Mestre pelo Institut d’Études

Polítiques de Paris (Sciences Po), doutorando de Ética e Filosofia Política pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 37

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Introdução:

A partir da perspectiva aberta por John Rawls1, com sua proposta de organização da

cooperação social com base em regras distributivas fundamentadas racionalmente, diversos autores

desenvolvem teorias da justiça2 segundo critérios normativos rivais. Cada autor propõe um

ordenamento da sociedade que lhe parece mais legítimo e justificável politicamente. Essas teorias

examinam a questão da justiça visando um suposto ponto ótimo de distribuição de determinados

recursos, mas raramente integram nesses recursos a importância intrínseca da capacidade decisória

para a vida dos indivíduos. Na maioria dos casos tal capacidade é vista somente como um

instrumento de deliberação ou barganha para a obtenção de outros recursos materiais e simbólicos

considerados como fundamentais. A capacidade decisória só se relaciona com a justiça

exteriormente, sem integrar a definição de seu conteúdo.

Do outro lado do espectro teórico, alguns autores3 buscam fundamentar a teoria da justiça em

uma teoria da democracia, seguindo nesse ponto o caminho pioneiramente trilhado por Robert Dahl4.

No entanto esses autores acabam muitas vezes defendendo uma visão puramente processualista da

justiça, esvaziando-na de seus conteúdos morais substantivos herdados das tradições liberal,

republicana ou socialista.

No amplo espectro de perspectivas criado pelas teorias inovadoras dos anos 1960 e 1970,

como a de John Rawls no campo da justiça e a de Robert Dahl no campo da democracia, fica aberta

a questão do tipo de democracia que pode servir de pedra angular para a organização de uma

sociedade justa. Dito de maneira inversa, que racionalidade moral pode dar sentido ao regime

democrático? Uma vez que a questão da justiça na esfera social está relacionada a uma determinada

definição da cidadania, as investigações sobre essa questão exigem ainda a consideração dos limites

dos traços dominantes da noção de cidadania sustentados ao longo da segunda metade do século XX

pelas sociedades de consumo e bem-estar. Novas exigências de pluralismo e diversidade surgidos de

sociedades democráticas em profunda transformação fazem evoluir a noção de cidadania condizente

com os novos conceitos de justiça.

1 RAWLS (1971). 2 Em relação ao vasto debate sobre justiça, citemos apenas as referências cujo debate com Amartya Sen e Nancy Fraser é diretamente abordado no presente artigo e nos principais textos dos dois autores aos quais ele se refere: RAWLS (1971 e 1993-96), DWORKIN (1977), TAYLOR (1989), HONNETH (1992).3 Por exemplo ACKERMAN (1991), HABERMAS (1992).4 DAHL (1972 e 1989). A teoria empírica da democracia centrada nas bases decisórias foi pioneiramente desenvolvida por Robert Dahl, que sugere uma reorganização teórica dos conceitos políticos de modo a submeter as problemáticas de justiça aos problemas teóricos da democracia decisória. 38

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Movidos pela necessidade de pensar um modelo democrático capaz de formular políticas

públicas que atendam as demandas mais diversas, aceitando o desafio de pensar os limites dos

paradigmas de democracia e de cidadania mais difundidos, Nancy Fraser e Amartya Sen

desenvolvem conceitos substantivos de justiça cuja pedra de toque é a participação democrática.

Esses dois autores têm portanto uma preocupação comum: pensar uma racionalidade para a

participação democrática que integre a definição substantiva de justiça nas relações sociais e na

formulação de políticas públicas.

Ambos os autores têm ainda a preocupação de adotar um ponto de vista universalista,

levando ao mesmo tempo em consideração a grande diversidade dos indivíduos e grupos. Ao

considerar a importância da diversidade e da pluralidade para a formulação de questões e soluções

políticas, ambos criticam o caráter limitado das políticas afirmativas e distributivas tradicionais, que

acabam reforçando os isolamentos sociais ao invés de eliminá-los. Essa crítica leva ambos a

considerar o caráter limitado dos modelos tradicionais de cidadania, baseados em traços psicológicos

ou hipóteses econômicas por demais simplistas5. Assim, ambos visam uma ação política ampliada

capaz de reduzir as desigualdades sociais e políticas, a partir de um ponto de vista crítico sobre as

teorias tradicionais. Ao definirem essas desigualdades, ambos recorrem ao vocabulário da

dominação e da exploração. Enfim, para eliminar essas desigualdades através de uma democracia

ampliada, ambos defendem a aplicação de políticas multi-setoriais e integradas (sobretudo nas áreas

de educação, saúde e assistência no caso de Nancy Fraser; também mostrando uma preocupação com

as políticas fiscais e financeiras no caso de Amartya Sen).

Apesar dessas semelhanças de propósitos percebidas em uma primeira abordagem dos

textos6, Nancy Fraser e Amartya Sen discutem as questões de justiça e democracia partindo de

perspectivas e debates totalmente distintos. Enquanto Amartya Sen adota um modelo agregativo,

baseado nas decisões individuais, Nancy Fraser adota um modelo de deliberação dialógica. Enquanto

Amartya Sen parte de uma discussão com as teorias do public choice e com os utilitaristas –

criticando o modelo racional de escolha individual, de maximização da utilidade e de ponto social

ótimo que essas teorias defendem – Nancy Fraser parte de uma discussão com as teorias do

reconhecimento – criticando o modelo de identidade psicológica que molda seus princípios de

justiça. No primeiro caso, Amartya Sen busca compreender a justiça a partir de uma teoria da

5 Os principais alvos dessas críticas são TAYLOR (1989) e HONNETH (1982) no que diz respeito à teoria do reconhecimento, e RAWS (1971), no que diz respeito à teoria da justiça distributiva. 6 Tomamos como base de análise FRASER (1995, 2000, 2003 e 2007) e SEN (1979, 1992, 1996, 1999 e 2003). 39

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escolha com base informacional, integrando indicadores heterodoxos do bem-estar social na medição

da desigualdade e apontando para a importância da responsabilidade coletiva em relação às

capacidades decisórias individuais. A contemplação das diversidades econômicas, de gênero e de

outros tipos advêm da discussão com as teorias tradicionais da escolha e da decisão, inspiradas nas

teorias do consumidor dos economistas marginalistas7. No segundo caso, Nancy Fraser desenvolve a

partir de uma discussão com as teorias do reconhecimento uma releitura da teoria de classes que a

leva a considerar o problema dos ordenamentos sociais segundo o princípio de paridade

participativa. Essa paridade depende de certas representações simbólicas com força institucional, ao

mesmo tempo em que contribui para moldar essas mesmas representações:

“it is unjust that some individuals and groups are denied the status of full partners in social

interaction simply as a consequence of institutionalized patterns of cultural value in whose

construction they have not equally participated and which disparage their distinctive characteristics

asigned to them.”8

Assim, os modelos de decisão, de democracia e de distribuição desenvolvidos por cada um

dos autores está fundamentado em debates distintos e em modelos distintos de racionalidade. Nos

pontos críticos em que se encontram, os dois autores desenvolvem posições divergentes e objeções

recíprocas, por exemplo sobre questões de gênero, de pobreza, de políticas públicas sociais. Sendo

assim, uma abordagem comparativa das duas teorias pode ser esclarecedora em relação a sua

originalidade, alcances e limites para a compreensão dos vínculos entre democracia, decisão e

justiça.

O pensamento de Nancy Fraser tem uma dimensão desconstrutiva9. Ele visa o entendimento

crítico das categorias baseadas em dicotomias tradicionais, aplicando esse método interpretativo a

questões de gênero, opção sexual e grupos. Essa proposta inaugura uma tentativa de repensar em

profundidade a racionalidade da interação social, com alternativas conceituais ao pensamento liberal,

e assumindo ao mesmo tempo heranças do pensamento republicano igualitário. Por outro lado, ela

exige certa diferenciação para cada caso de diversidade considerada e tem alcances práticos menos

imediatos. A solução defendida por Amartya Sen se apóia nas teorias criticadas para ampliar sua 7 Os principais economistas da chamada revolução marginalista são Jevons, Mengers e Walras. Essa abordagem, tida como base da micro-economia, emprega funções derivadas para analisar as decisões de consumo e produções, que permite mensurar o aumento da utilidade, da produtividade ou do rendimento por unidade superior de bem consumido ou de fator de produção empregado.8 FRASER, (2003), p.29.9 Inscrevendo-se abertamente na tradição desconstrutivista baseada nos escritos de Jacques Derrida, por exemplo em L’Ecriture et la différence, Paris, Seuil, 1967 e Marges- de la philosophie, Paris, Minuit. 1972. 40

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base racional, assumindo alguns conceitos herdados da tradição liberal. Assim, a teoria da base

informacional não questiona radicalmente a tradição filosófica. Tem porém o mérito de propor um

critério único (universal) para abordar a questão da diversidade e da igualdade na formulação de

políticas públicas tangíveis, obtendo assim maior alcance na formulação e justificação de programas

políticos. Enfim, essas diferenças são repercutidas no papel conferido à capacidade decisória dos

indivíduos em relação à justiça: na teoria de Nancy Fraser, esse papel não é ilimitado, cabendo

prioritariamente à especulação teórica o questionamento crítico das categorias políticas (mesmo se

os bens sociais são discutidos publicamente). Na teoria de Amartya Sen, é a própria discussão

democrática que formula as categorias da política, além de seus problemas, demandas e soluções.

1. Democracia, decisão e justiça:

Amartya Sen e Nancy Fraser consideram a problemática da justiça a partir da determinação

de ordenamentos sociais, valores e necessidades construídos na interação social. Os dois autores dão

à democracia um valor intrínseco e não meramente instrumental com respeito à justiça. Porém, a

maneira como cada um desenvolve o seu modelo de participação e o papel específico que cada um

reconhece à democracia já indicam algumas divergências entre suas teorias.

Em Nancy Fraser, é proposto um modelo de justiça baseado no status assumido dentro da

cooperação social10, e medido segundo a capacidade participativa. Como Amartya Sen, Nancy Fraser

aborda o problema da justiça e da participação democrática a partir dos limites das teorias que fazem

uma leitura das questões de justiça exclusivamente sob o ângulo da distribuição ou exclusivamente

sobre o ângulo do reconhecimento. Trata-se de restituir a complexidade das questões e de perceber

que na prática os dois tipos de justiça (e injustiça) se misturam e se reforçam mutuamente

(dialeticamente).

O desenvolvimento de uma teoria multifacetada com respeito aos aspectos da justiça a serem

levados em consideração no debate democrático levam a uma releitura das categorias sociais

desenvolvidas na segunda metade do século XX. Em contraposição às ortodoxias marxista e

keynesiana dominantes, a autora tem a preocupação de pensar a especificidade dos status individuais

nas interações sociais da “era pós-socialista”:

“Unlike stratification theory in postwar US sociology, for example, I do not conceive status as a

prestige quotient that is ascribable to an individual and compounded of quantitatively measurable

factors, including economic índices such as income. In my conception, in contrast, status represents 10 FRASER (2003), 1. II, p. 28-29. 41

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an order of intersubjective subordination derived from institutionalized patterns of cultural value that

constitute some members of society as less than full partners in interaction. Unlike Marxist theory,

likewise, I do not conceive class as a relation to the means of production. In my conception, rather,

class is an order of objective subordination derived from economic arrangements that deny some

actors the means and ressources they need for participatory parity.”11

No entanto, se a participação democrática é considerada pela autora como pedra de toque

fundamental para a justiça e a qualidade da cidadania, seu campo de atuação fica bem delimitado à

escolha entre as opções de ordenamentos sociais. Cabe à teoria especulativa e não à democracia o

papel de esclarecer a compatibilidade dos programas políticos com os requisitos de justiça. Ou seja,

a discussão democrática não tem valor absoluto para decidir o que é aceitável politicamente e

socialmente, ficando restrita à escolha entre opções desenvolvidas pelo pensamento crítico

independente:

“when we consider institutional questions, theory can help to clarify the range of policies and

programs that are compatible with requirements of justice; wheighing the choices within that range,

in contrast , is a matter for citizen deliberation.”12

Assim como Nancy Fraser, Amartya Sen parte da determinação da responsabilidade social

pela necessidade de assegurar a cada indivíduo a possibilidade de tomar parte no processo decisório

democrático que determina as escolhas sociais e os valores e prioridades entre opções conflitantes. O

que está em jogo para o autor é o debate sobre os fins em última instância a serem almejados pela

sociedade. Para Amartya Sen, isso inclui tanto o conceito de justiça a ser adotado como os meios e

processos pelos quais os fins estabelecidos são implementados e avaliados. Nessa perspectiva, nota-

se que a democracia tem um papel irrestrito na definição da justiça e na determinação da

responsabilidade social. Esse papel irrestrito resulta de uma re-interpretação num sentido

amplamente democrático do conceito de Razão Pública, originalmente desenvolvido por John

Rawls13. O regime democrático é ao mesmo tempo objeto de decisão e critério de responsabilização

coletiva.

No caso de Amartya Sen, o desenvolvimento de uma teoria da justiça que busca ampliar o

espectro de considerações teóricas acerca das demandas sociais nas democracias também leva o

11 FRASER (2003) p.49.12 FRASER (2003) p.72.13 RAWLS (1971), SEN (2003) p. 12. 42

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autor a questionar as categorias sociais dominantes na segunda metade do século XX, vinculadas a

um ideal tradicional de sociedade de bem-estar. Sua proposta se traduz na troca dos diferentes

critérios disponíveis (como bens primários e utilidades) por um critério mais amplo e fundamental:

as capacidades, definidas como “um conjunto de vetores de funcionamentos, refletindo a liberdade

da pessoa para levar um tipo de vida ou outro”14. Os funcionamentos realizados constituem o bem-

estar de uma pessoa, e a capacidade para realizar funcionamentos (todas as combinações alternativas

de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constitui a liberdade da pessoa – as

oportunidades reais – para ter bem-estar:

“A capacidade é principalmente um reflexo da liberdade para realizar funcionamentos valiosos.

Ela se concentra diretamente sobre a liberdade como tal e não sobre os meios para realizar a

liberdade, e identifica alternativas reais que temos.”15

Essa “liberdade de bem-estar” pode ter relevância direta na análise ética e política. A

organização social deve ser feita de maneira a permitir o desenvolvimento das capacidades dos

indivíduos. Nessa perspectiva, a capacidade decisória não é um mero meio, mas um requisito de bem

estar. Escolher pode em si ser uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolhas genuínas pode ser

considerada como sendo mais rica. Amartya Sen está preocupado tanto com a participação dos

indivíduos na democracia quanto com suas escolhas privadas. A preocupação de Amartya Sen com

as decisões privadas individuais como base de compreensão da participação democrática é

claramente estranha à teoria de Nancy Fraser. Para Amartya Sen, a participação política ganha em

relação à justiça um valor intrínseco (tornar a existência do indivíduo mais rica), instrumental

(responsabilização dos poderes públicos em relação às liberdades individuais) e construtivo

(formação dos valores e compreensão das necessidades, dos direitos e deveres de cada um)16.

Se a importância da participação política para a definição da justiça é comum aos dois

autores, as maneiras de considerar as funções da democracia divergem claramente. Para

compreender melhor os pontos de convergência e os pontos de divergência entre as duas teorias, é

necessário apreciar seus respectivos modelos de participação e de decisão, assim como as

compreensões da razão pública17 que as sustentam. Ambas as teorias defendem o debate público.

14 SEN (1992), p. 80.15 SEN (1992) p.89.16 SEN (2003) p.87.17 A expressão “razão pública” é empregada por Nancy Fraser em FRASER (2003) p. 43, e por Amartya Sen em SEN (2003) p.12. Os dois autores retomam o conceito proposto por John Rawls, mas cada um muda sensivelmente seu significado de acordo com as premissas de sua própria concepção da democracia. 43

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Amartya Sen se refere com freqüência à importância da discussão pública e da troca de idéias18,

enquanto Nancy Fraser defende a noção de deliberação em um sentido dialógico19 (diferente de um

modelo de deliberação que visaria qualquer tipo de consenso). Ao afirmar a importância da

discussão pública, ambos os autores a consideram como um meio de inovação das problemáticas

políticas e de definição dos objetivos sociais a serem atingidos, permitindo romper o

conservadorismo sustentado por uma definição rígida de bens primários. Para Nancy Fraser, a

deliberação com base discursiva e dialógica, observando a exigência de paridade participativa (e ao

mesmo tempo favorecendo o alcance dessa exigência), leva a uma recusa do modelo econométrico

de decisão, baseado na definição de preferências pelo indivíduo com busca de um ponto ótimo. Por

outro lado, o modelo participativo de Nancy Fraser não se confunde com um regime político onde

cada indivíduo ou grupo define o que é melhor para si com base em sua identidade. Ao discutir a

validade dos dois modelos como fundamento político – teoria da decisão e reconhecimento de

identidades – Nancy Fraser procura minimizar o papel exercido pelas diferentes decisões privadas na

participação democrática. A justiça não é determinada pela agregação de preferências privadas mas

pela forma própria do debate público. Portanto o modelo político não é agregativo.

Já para Amartya Sen, a demonstração da possibilidade de agregar preferências individuais

para formar escolhas coletivas constitui um ponto central da teoria. A importância da discussão

pública para a definição das questões políticas e do próprio conceito de justiça também leva o autor a

criticar os modelos métricos propostos pelas teorias da decisão. No entanto, Amartya Sen não recusa

completamente esses modelos, buscando antes ampliar suas premissas e o campo de liberdade

humana considerado. Amartya Sen discute a possibilidade de escolhas sociais sem abandonar a

exigência de liberdade decisória individual defendida pela tradição liberal, analisando os meandros

dos modelos decisórios defendidos por essa tradição. Ao contrário de Nancy Fraser, o autor busca

basear as macro-decisões sociais na agregação das diferentes concepções de bens que sustentam as

micro-decisões privadas.

Essa diferença expressiva entre as duas teorias está relacionada tanto às respectivas

racionalidades políticas adotadas quanto aos respectivos debates teóricos no qual elas se inserem.

18 SEN (1999 e 2003).19 FRASER (2003), p. 42-43. A seção evoca explicitamente o debate com as teorias da decisão no seu título: Decision or democratic deliberation. 44

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2. Debates contextuais: igualdade de recursos, diversidade de identidades:

Amaryta Sen e Nancy Fraser desenvolvem suas teorias a partir da constatação da

insuficiência dos termos do debate sobre cidadania, justiça e democracia na segunda metade do

século XX. Porém, os debates em que se insere cada um dos dois autores para mostrar a limitação

dos paradigmas vigentes não é o mesmo. Amartya Sen parte da crítica das teorias igualitárias que ao

assumirem um princípio formal de igualdade desconsideram a existência de desigualdades e

diversidades. Nancy Fraser parte da crítica das teorias da diversidade que consideram os problemas

de desigualdade como problemas de identidade individual ferida. Assim, os dois autores partem de

pólos opostos do debate, buscando equilibrá-lo.

Com respeito à evolução das questões de democracia e justiça na segunda metade do século

XX, Nancy Fraser parte da constatação que a batalha por reconhecimento se tornou a forma

paradigmática do conflito político20, valorizando problemas de nacionalidade, etnia, raça, gênero e

sexualidade, e substituindo os conflitos de classe. A problemática da dominação cultural substitui a

problemática da exploração capitalista. Porém, a autora lembra que tais conflitos ocorrem em

contextos de desigualdade material exacerbada, com condições desiguais de saúde, educação,

emprego, renda e propriedade (tanto no nível de cada país como globalmente). Daí a importância de

desenvolver uma crítica das teorias puras do reconhecimento, ou uma teoria crítica do

reconhecimento que defenda políticas culturais da diferença somente na medida em que possam ser

combinadas com políticas sociais de igualdade. Tal teoria requer a consideração conjunta das

questões de reconhecimento e distribuição, rejeitando teses polarizadas.

A perspectiva desenvolvida por Nancy Fraser procura combinar a denunciação da injustiça

sócio-econômica promovida por teorias que estão comprometidas com algum tipo de igualitarismo21,

com teorias que denunciam a dominação cultural, o não-reconhecimento e o desrespeito, baseando-

se em problemas de representação, interpretação e comunicação22. Ao mesmo tempo, os problemas

de reconhecimento deixam de ser do ponto de vista político um problema de identidade ferida para

se tornar um problema de igualdade perante as oportunidades de participação na formação dos

valores.

Amartya Sen também defende uma teoria democrática com propósitos igualitários, mas trata

de maneira distinta a questão da relação entre igualdade e diversidade, partindo da crítica do caráter 20 FRASER (1995) p. 68.21 Segundo Nancy Fraser, essa vertente teórica é representada por autores como Karl Marx, John Rawls, Amartya Sen e Ronald Dworkin. In FRASER (1995) p.71.22 Esse argumento visa os autores de inspiração hegeliana que compreendem o reconhecimento como uma questão de auto-realização, e a falta de reconhecimento como uma lesão à identidade pessial e à subjetividade. São visados principalemente TAYLOR (1989) e HONNETH (1992). 45

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restrito das teorias da justiça distributiva e do igualitarismo formal23 (pelos limites desses últimos em

relação à consideração da diversidade humana). Segundo Amartya Sen, as investigações da

igualdade falham ao considerar a diversidade humana como um problema secundário, e ao suporem

uma uniformidade antecedente (a idéia de que todos os homens são criados iguais). A consideração

da igualdade sob um certo aspecto é dependente do espaço específico de avaliação que se está

adotando. As características da desigualdade em espaços diferentes (tais como renda, riqueza,

felicidade, etc.) tendem a não convergir devido à heterogeneidade das pessoas. A igualdade em

termos de uma variável pode não coincidir com a igualdade na escala de outra. As oportunidades

iguais podem resultar em rendas bastante desiguais. A diversidade generalizada dos seres humanos

acentua a necessidade de lidar com a diversidade de foco na avaliação da igualdade.

Dessa constatação fundamental surgem importantes debates com as teorias utilitaristas,

distributivas e do bem-estar, e com as teorias das escolhas sociais (public choices)24. Com respeito ao

primeiro debate25, trata-se de adotar um critério mais adequado e mais amplo para a consideração

dos problemas de justiça, condizente com exigências de pluralidade democrática no plano das

escolhas individuais e das decisões coletivas. O utilitarismo restringe seu alcance ao colocar a

questão da justiça em termos de maximização da utilidade, não considerando a pluralidade de

preferências e não valorizando o ato e a abrangência da escolha em si (mas apenas seu objeto

final)26.

Amartya Sen reconhece os aportes fundamentais da teoria de John Rawls e sua compreensão

da justiça como equidade em relação aos limites do utilitarismo. Porém, o autor defende a

necessidade de focalizar a teoria sobre as extensões da liberdade alcançada (o que requer levar em

consideração a pluralidade existente das pessoas) ao invés de simplesmente nos meios para alcançá-

la (bens primários). Duas pessoas que detenham o mesmo pacote de bens primários podem ter

23 SEN(1992).24 Com respeito ao primeiro debate, SEN (1992, 1996 e 1999). Com respeito ao Segundo debate, SEN (1979, 1996, 1999 e 2003).25 Por exemplo em SEN (1992) p. 94-97.26 Daí a importância de desenvolver um pensamento crítico sobre a restrição da base informacional a um critério único como a utilidade. Por exemplo, o princípio de Pareto, aparentemente não-sujeito à controvérsias, tem como única base informacional a utilidade, e por isso pode entrar em conflito com outras exigências elementares, relativas por exemplo ao respeito das liberdades pessoais (uma vez que o princípio só reconhece o mérito da liberdade em função de sua associação contingente com a utilidade). In Sen (1999). As objeções ao utilitarismo levam Amartya Sen a questionar, além dos princípios de Pareto, o modelo de decisão baseado na teoria neo-clássica do consumidor, e em particular as representações de decisões segundo curvas de indiferença, com suas taxas marginais de substituição entre bens. Com respeito a esse tipo de representação, Amartya Sen chama a atenção para seus limites em termos de grau de decisão e articulação. Mesmo com o aperfeiçoamento do modelo de maneira a aumentar os graus de decisão, não é eliminado o problema da indecidibilidade devido a valorações parciais dissonantes. in SEN (1992). 46

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diferentes liberdades para buscar suas respectivas concepções do bem, quer essas concepções

coincidam ou não.

Com respeito ao segundo debate (sua discussão com as teorias do public choice, em

particular o seu debate com Kenneth Arrow)27, trata-se de defender a possibilidade da formação de

escolhas coletivas de maneira a assentar a igualdade democrática na responsabilidade social e na

determinação coletiva dos valores, questões sociais e prioridades. Contra as teorias da

impossibilidade das escolhas coletivas, Amartya Sen defende o papel da discussão pública na

determinação das escolhas sociais sob responsabilidade da coletividade. A liberdade individual não é

só um meio de realização das decisões coletivas (determinação de valores e prioridades) ou

finalidades individuais, mas também objeto de responsabilidade da coletividade.

Enfim, da combinação entre decisões individuais com bases informacionais ampliadas, de

um lado, e responsabilidade coletiva, de outro, surge uma teoria das escolhas coletivas: a

compatibilidade dos princípios em discussão depende na maioria dos casos do grau de combinação

possível entre bases informacionais distintas dentro das decisões sociais. Ao centrar sua teoria sobre

as liberdades individuais, as comparações entre as liberdades desfrutadas por diferentes pessoas

passa a fornecer a base agregativa necessária para as escolhas sociais. A organização social, segundo

Amartya Sen, tem a missão de reconhecer os conflitos de interesses na sociedade e de elaborar uma

solução eqüitativa para esses conflitos através de uma distribuição mais justa das liberdades

individuais28.

Portanto, as teorias de Amartya Sen sobre a justiça e a democracia se inserem num debate

sobre os modelos de decisão, a igualdade formal entre indivíduos, a determinação de preferências e a

maximização da utilidade, enquanto Fraser se concentra numa reflexão sobre os paradigmas da

dominação nas teorias da justiça centradas na identidade (self). O que essa análise dos debates

contextuais revela é a diferença de propósitos entre os dois autores: consideração da diversidade na

aplicação de políticas igualitárias para um, desconstrução das diferenças no intuito de minar as

políticas fundamentadas na identidade, para outro.

Se os diferentes pontos de partida adotados pelos dois autores levam ambos a valorizar a

diversidade das condições e das aspirações humanas na busca da realização pessoal dos indivíduos,

27 Em SEN (1979), o autor formula objeções (que incluem demonstrações matemáticas) ao teorema de Kenneth Arrow que demonstra a impossibilidade, dadas algumas hipóteses, de fundamentar escolhas coletivas sobre a agregação de escolhas individuais. Os trabalhos pioneiros no campo dos paradoxos da decisão foram desenvolvidos no século XIX por Borda e Condorcet.28 Ibid. 47

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assim como a importância da democracia para levar em consideração essa diversidade, eles se

baseiam em modelos distintos e acabam chegando a soluções diferentes em termos de políticas

públicas. É nesse ponto que os dois autores divergem em definitivo.

3. Políticas públicas e transformação:

A comparação entre os dois autores no que diz respeito às soluções de políticas públicas para

os problemas de justiça e de capacidade decisória nos regimes democráticos apresenta uma

importante similitude prática: a ênfase em políticas multi-setoriais. Uma mesma crítica é feita: as

soluções distributivas focadas unicamente em questões de renda gerenciam os conflitos ao invés de

eliminá-los29. Essa similitude está relacionada com a constatação do caráter multi-facetado dos

problemas de dominação social e política, comum a ambos os autores. Porém, essa solução está

assentada em bases conceituais claramente distintas em um e em outro caso, e resulta em paradigmas

diferentes de democracia e de direitos individuais.

Uma vez que se posiciona no debate entre reconhecimento e distribuição, Nancy Fraser é

levada a discutir as questões de políticas públicas segundo seu alcance nesses dois aspectos. Isso a

leva a estabelecer uma distinção fundamental entre políticas afirmativas e políticas transformativas.

Segundo a autora, a afirmação consiste em remédios focados em reparar conseqüências injustas dos

arranjos sociais sem interferir no quadro subjacente que os genera. A transformação, por sua vez,

consiste na re-estruturação dos quadros sociais que generam a injustiça30. Enquanto a primeira

solução defende um reconhecimento específico dos grupos e indivíduos, a segunda solução defende

a desconstrução das dicotomias conceituais que produzem os efeitos de dominação social. As

políticas afirmativas revelam seus limites por não questionar as bases estruturais da dominação. O

mesmo ocorre com as políticas distributivas tradicionais (classificadas como um tipo de política

afirmativa), que acabam reforçando a divisão entre grupos. Diferentemente dessas soluções

tradicionais, as políticas públicas multi-setoriais minam a distinção de classes, induzem

transformações e promovem a solidariedade entre os indivíduos e grupos31, modificando o senso de

pertencimento, filiação e identidade de cada um.

29 SEN (1996) e FRASER (1995). 30 FRASER (1995) p. 82.31 Nesse ponto, Nancy Fraser opõe as políticas de reconhecimento específico defendidas pelo multiculturalismo e as políticas de desconstrução. Cita como exemplo a desconstrução da dicotomia hetorosexual/homosexual, em oposição à política de afirmação gay. Em outro campo politico, a autora cita como exemplo o caráter limitado das mudanças na divisão do consumo sem re-estruturação dos modos de produção. in FRASER (1995) p. 83-84. 48

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A distinção entre políticas transformativas e afirmativas, combinada à distinção entre

distribuição e reconhecimento, dá lugar a uma tipologia de políticas públicas em quatro categorias,

que resultam das combinações dois a dois entre os quatro termos das distinções: o Estado liberal de

bem-estar (com políticas afirmativas distributivas), o Estado multiculturalista (com políticas

afirmativas de reconhecimento), o socialismo tradicional (com políticas transformativas de

redistribuição) e as políticas de desconstrução (políticas transformativas de reconhecimento), sendo

essas últimas as únicas verdadeiramente capazes de minar a diferenciação entre grupos.

Embora o dilema entre políticas afirmativas e políticas transformativas seja real, podendo

gerar conflitos práticos, esses dois modos de ação também podem ser complementares32.

Dependendo do contexto, uma mesma ação afirmativa pode reforçar o efeito de diferença e a ordem

estabelecida, ou então ser combinada a outras ações num âmbito transformador. Um programa de

renda mínima pode deixar inalterada a estrutura de propriedade capitalista ou ter um efeito

transformador a longo prazo sobre a relação trabalho/capital. Um programa de licença maternidade

pode reforçar a divisão de trabalho entre os gêneros ou ter uma ação transformadora se combinada

com um programa de implementação de creches públicas33. No entanto, podemos notar que esses

exemplos de ações afirmativas não são baseados na afirmação de identidades morais, mas de grupos

sociais em situação de desvantagem. Assim, os exemplos usados pela autora indicam que, mesmo

quando vislumbra o caráter válido de ações afirmativas, Nancy Fraser não se refere à afirmação de

identidades morais possivelmente feridas (conforme defendido pelas chamadas teorias do

reconhecimento). 34 Outro exemplo desenvolvido pela autora é mais instigante quanto à sua posição

a respeito das políticas afirmativas e sua definição das mesmas: o “affaire foulard” (proibição do

porte de qualquer sinal religioso nas escolas francesas, incluindo o véu portado por mulheres

muçulmanas). A autora se declara em favor da posição laica, classificando-a de afirmativa por

favorecer a integração das mulheres. Porém, a proibição do uso do véu não corresponde à definição

tradicional de política afirmativa, mas se enquadra na tradição republicana francesa e seu princípio

de laicismo, ambos assentados em uma concepção universalista e fortemente anti-particularista de

cidadania. Se Nancy Fraser admite a complementaridade entre afirmação e transformação, sua

definição das políticas afirmativas é no mínimo incomum.

32 Nesse ponto, observamos uma diferença de análise entre os diversos textos. Enquanto em FRASER (1995) observa-se uma dicotomia rígida entre políticas afirmativas e políticas transformativas, em FRASER (2003) essa dicotomia é mais branda, e o caráter possivelmente complementar dos dois tipos de políticas é afirmado. 33 FRASER (2003), 1. IV34 Ibid. 49

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De acordo com a autora, a combinação de políticas de distribuição e reconhecimento a curto

prazo com políticas transformativas a longo prazo permite responder a reivindicações de base da

sociedade e ao mesmo tempo promover reformas mais profundas das estruturas sociais, que de outra

forma seriam impraticáveis. Essa combinação dos dois tipos de políticas constitui a Via Media

proposta. As políticas transformativas são propícias a coalizões e evitam as divisões dos movimentos

sociais, eliminando os efeitos perversos que podem ser gerados por políticas puramente afirmativas

(que adicionam direitos de acordo com especificidades, sem questionar os fundamentos das

diferenças estabelecidas entre indivíduos e grupos).

Segundo Nancy Fraser, a solução transformativa é bem adaptada para pensar problemas

como a discriminação de gênero ou de “raça”, e é também propícia para casos de indivíduos que

pertencem a várias categorias ao mesmo tempo.

Frente à questão da diversidade e os limites das políticas afirmativas e distributivas usuais,

Amartya Sen adota uma solução distinta. Não se trata de ultrapassar os limites dessas políticas

desenvolvendo um questionamento crítico sobre o fundamento das identidades, mas de operar uma

seleção (através do próprio processo democrático) de critérios de igualdade e de traços secundários

de desigualdade para fins de formulação de políticas públicas35. É essa preocupação metodológica e

prática que dirige a formulação da teoria. Tal procedimento envolve a consideração de elementos

invariantes (ou que se deseja invariantes) e de elementos considerados incidentais em cada

indivíduo. Além disso, essa seleção visa estabelecer prioridades de políticas democráticas, uma vez

que o critério de igualdade selecionado como relevante pode implicar em desigualdades em outros

planos de consideração.

Nesse ponto, Amartya Sen identifica uma dificuldade metodológica: a identificação de

particularidades dos grupos ou indivíduos na consideração da pluralidade humana pode levar a tipos

de diversidade muito diferentes, até o limite da idiossincrasia, com o risco de qualquer tentativa de

classificação para fins práticos terminar em desordem empírica. Daí a necessidade de desconsiderar

uma série de diversidades para fins de formulação de políticas públicas (por exemplo limitando a

atenção a variações intergrupais).

Por um lado essa solução não tem o mesmo alcance desconstrutivo que a solução de Nancy

Fraser em relação às classificações sociais. Por outro lado, a teoria de Amartya Sen, segundo ele

próprio, é propícia à transformação de casos de falta de liberdade enraizada, onde a dominação está

sedimentada culturalmente a ponto de não ser mais percebida como tal 36. A ampliação da base

35 SEN (1992), p. 204-207.36 SEN (1992), p. 96. 50

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informacional de consideração da liberdade individual pode revelar situações de injustiça até então

não percebidas pela coletividade. Enfim, a solução de Amartya Sen deixa ao debate democrático

toda a responsabilidade do trabalho crítico sobre as categorias sociais e as políticas que delas

dependem.

Ainda com respeito às diferenças em relação à solução de Nancy Fraser, pode-se dizer que a

solução desenvolvida por Amartya Sen é mais acomodatícia do que desconstrutiva. Já no caso de

Nancy Fraser a solução passa pela rejeição dos modelos tradicionais do liberalismo e do

comunitarismo. Embora os dois autores critiquem os limites das teorias restritas da distribuição ou

do reconhecimento e defendam uma concepção ampliada das problemáticas políticas, no caso de

Amartya Sen esse projeto é realizado através da ampliação da base informacional considerada (as

visões utilitaristas e os bens primários são a visão de um lado do problema, a serem integradas em

uma visão mais ampla), sem invalidar as abordagens previamente realizadas por utilitaristas,

welfaristas, etc. Porém, a assunção dessa herança política não impede o autor de pensar a democracia

para além de seu modelo institucional do Ocidente37, em prol de uma definição desse regime em

termos de debate público que abarca várias tradições38.

Enfim, uma vez que o objetivo de Amarya Sen é antes a ampliação da base informacional

considerada para a avaliação da desigualdade, do que a desconstrução das particularidades, sua

proposta resulta na importância da publicação de informações diversificadas e de dados sociais

múltiplos. Essa é uma preocupação teórica que se traduz de maneira prioritária em termos técnicos

para a formulação e a avaliação de políticas públicas39. Já no caso de Nancy Fraser, a teoria não se

traduz em uma metodologia clara para a difícil tarefa pública de avaliação social.

4. A questão do gênero:

As diferenças entre os dois autores na abordagem do vínculo entre justiça e democracia,

assim como na consideração da diversidade humana no campo político, podem ser ilustradas pelas

diferentes considerações que esses autores fazem a respeito das questões de gênero.

Segundo Nancy Fraser, a noção de política transformativa é particularmente propícia à

compreensão das questões relacionadas ao gênero, uma vez que essas são questões de

37 Sobre as bases históricas das democracias liberais, herdadas principalmente das revoluções Inglesa, Americana e Francesa, ver MANIN (1992).38 O projeto de pensar a democracia para além de seu modelo “ocidental” é um ponto central em SEN (2003), como dá a entender o próprio título da obra: Democracy and Its Global Roots.39 SEN (1992 e 1996). 51

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reconhecimento que se traduzem em diferenças na distribuição de recursos, inclusive de recursos

políticos. Portanto são questões que se reduzem em última instância a problemas de distribuição, ao

contrário por exemplo da discriminação contra os homossexuais, que transpõe barreiras econômicas

(ainda que possa ser tornada mais difícil em contextos de pobreza).

Segundo Nancy Fraser, as questões de gênero (assim como as questões de “raça”) são

questões ambivalentes, pois colocam os movimentos sociais diante de uma escolha: lutar pelo

reconhecimento ou pela abolição da diferença. Essa alternativa pode provocar a cisão nos

movimentos sociais, enfraquecendo-os. Ao revelar os limites dessa alternativa, a solução

transformativa permite ir além, questionando os fundamentos da própria idéia de gênero.

Para Amartya Sen, as questões de gênero também são questões de discriminação que

resultam em problemas distributivos. O autor ressalta que essa desigualdade distributiva não se

limita à renda mas compreende também outros benefícios diferenciais, como na divisão do trabalho

dentro da família e na extensão da assistência ou educação recebidas, no domínio sobre o próprio

corpo, e até no diferencial nos índices de mortalidade em certas sociedades.

No entanto, a principal diferença entre a tese dos dois autores em relação aos problemas de

gênero é o lugar que esses problemas ocupam dentro de sua teoria geral. Enquanto para Nancy

Fraser as questões de gênero se encaixam de maneira particularmente adequada no trabalho do

pensamento crítico transformativo, para Amartya Sen esses problemas são apenas mais um problema

de não reconhecimento da pluralidade na consideração dos problemas de desigualdade. Em

princípio, as questões de gênero não se distinguem de outras no que diz respeito às limitações da

maneira como são consideradas pelas políticas distributivas e afirmativas tradicionais (como a

pobreza, a diversidade cultural, etc. ), sendo portanto um exemplo da desigualdade a ser considerado

junto com outros casos que possam vir a se manifestar pelas vias democráticas e pelos índices

sociais ampliados.

A diferença fundamental na compreensão das questões de gênero entre os dois autores – caso

paradigmático para um, caso ilustrativo para outro – demonstra assim a diferença de abordagem dos

princípios de racionalidade e modos de colocação em prática da justiça e do fortalecimento da

capacidade decisória nos regimes democráticos.

Considerações finais: sair do liberalismo?

A abordagem comparativa dos textos de Amartya Sen e Nancy Fraser permite compreender

seus respectivos alcances e limites, segundo as diferenças entre os modelos de racionalidade pública 52

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empregados pela teoria transformativa/desconstrutiva, de um lado, e pela teoria de ampliação da

base informacional, de outro.

Dada a preocupação comum com a capacidade participativa dos indivíduos para a realização

da justiça (e outros traços comuns entre as teorias que acompanham essa preocupação), podemos nos

perguntar: que modelo de democracia devemos empregar para pensar que justiça? Que premissas

adotamos e até onde podemos ir com cada uma das duas soluções? Qual das teorias tem mais êxito

na crítica dos limites das teorias distributivas ou afirmativas tradicionais?

Ambas as abordagens permitem a crítica das teorias tradicionais da afirmação e da

distribuição, que reforçam (ou no melhor dos casos gerenciam) os conflitos políticos e sociais e as

desigualdades ao invés de eliminá-los. Ambas permitem a crítica de um modelo restrito de cidadania

baseado na teoria pura do consumidor (do cidadão como homo-economicus), superando com esses

argumentos uma crítica central feita às teorias que sustentam as sociedades de consumo da segunda

metade do século XX40.

No entanto, as duas teorias adotam perspectivas divergentes com respeito à consideração da

relação entre decisões individuais e escolhas coletivas. Enquanto Nancy Fraser defende um modelo

não agregativo de democracia, baseado na deliberação dialógica (sem busca de consenso), Amartya

Sen desenvolve um modelo agregativo onde as escolhas sociais estão baseadas em última instância

nas preferências e concepções de bens que sustentam as decisões individuais.

Nancy Fraser centra sua perspectiva de justiça no problema da participação. Isso permite a

crítica de certas teorias da identidade e do reconhecimento, como a de Charles Taylor e Axel

Honneth, escapando dos limites dos argumentos da justiça centrados num modelo psicológico de

identidade (self). Por outro lado, permite a crítica das teorias distributivas que adotam um ponto de

partida supostamente neutro em relação às identidades, e cujo paradigma é constituído pela Teoria

da Justiça de. John Rawls, em particular com o procedimento do véu da ignorância41. Em

comparação com a teoria de Amartya Sen, podemos dizer que o caráter desconstrutivista da teoria de

Nancy Fraser lhe dá um alcance crítico maior em relação aos modelos políticos tradicionais. Nessa

perspectiva, a teoria de Nancy Fraser constitui um autêntico esforço para sair dos quadros

conceituais tradicionais do liberalismo – assentados sobre um modelo clássico de direitos, de

liberdade e de escolhas individuais – enquanto a teoria de Amartya Sen incorpora em certa medida a

herança do pensamento liberal, se contentando de ampliar a compreensão de suas noções

40 Nesse ponto, ver por exemplo a crítica de Michael Sandel, sobre o caráter redutivista das sociedades pós-keynesianas em relação à cidadania, in SANDEL (1996).41 RAWLS (1971). 53

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elementares – por exemplo ao assentar sua teoria sobre a liberdade individual de escolha, ou ao

lembrar a importância da liberdade de exercer oposição aos governos para a garantia da liberdade em

geral. Ao ampliar as teorias vigentes e ao buscar soluções acomodatícias, a teoria de Amartya Sen

pode acabar restringindo sua capacidade criativa em relação a modelos políticos. Não obstante essa

característica, a teoria não se limita a um modelo ocidental de democracia, como vimos.

É preciso ainda trazer algumas nuanças a essas considerações. As posições políticas

defendidas por Nancy Fraser muitas vezes retomam os preceitos do igualitarismo republicano,

vinculando-se assim claramente a uma tradição política (como no exemplo do “affaire foulard”

analisado). Por outro lado, Amartya Sen não se contenta de reproduzir o modelo político liberal

ampliando seu acesso a um maior número de indivíduos. Uma das críticas feitas pelo autor a

algumas propostas de desenvolvimento e de erradicação da pobreza diz respeito justamente ao

caráter insuficiente da ampliação do modelo liberal sem um questionamento de suas bases

fundamentais42. Se por um lado Amartya Sen herda alguns princípios da tradição liberal, sua

empreitada crítica não se contenta de expandir o alcance social do modelo, formulando duras críticas

a seus fundamentos.

Além disso, o papel conferido por Amartya Sen à democracia não tem restrições, cabendo

aos processos democráticos de discussão e de decisão constituir a própria base informacional que

serve de alicerce para a identificação de problemas políticos. Já para Nancy Fraser, o papel da

deliberação democrática está restrito à seleção das melhores opções políticas, deixando para a teoria

o trabalho da crítica social e política.

Com respeito a outro aspecto das duas teorias, pode-se dizer que o modelo de Nancy Fraser

se aplica a um número mais restrito de problemáticas do que o modelo de Amartya Sen, não

reduzindo todos os casos de diversidade a um mesmo princípio fundamental a ser levado em conta

pela democracia e pela justiça. Assim, o grau de universalismo da teoria é menor. A economia do

argumento não abarca a mesma extensão de casos. Em relação à teoria de políticas transformativas

de Nancy Fraser, a teoria da consideração das desigualdades sobre bases informacionais ampliadas

permite mais abrangência, pensando a partir de um mesmo princípio a grande variedade dos casos

(renda, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc.). O argumento é por assim dizer mais econômico do

ponto de vista de sua racionalidade. A economia racional do argumento não é uma virtude em si,

42 Podemos citar a esse respeito o comentário esclarecedor feito por Amartya Sen em uma conferência dada no Insitut d’Etudes Polititques de Paris (Sciences Po) em junho de 2007, a respeito do modelo de microcrédito desenvolvido por Mohamed Yunus (que havia dado uma conferência no mesmo local alguns meses antes). Amartya Sen afirmava então situar-se à esquerda de M. Yunus no espectro político, uma vez que esse último não questionava os fundamentos do modelo político liberal, contendando-se de difundir seu acesso. 54

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mas contribui para sua maior aplicabilidade na esfera da ação política e lhe dá maior capacidade de

justificação em relação às políticas democráticas.

Enfim, pode-se questionar a capacidade da teoria sobre políticas transformativas de sustentar

por si só a formulação de políticas públicas, dado seu caráter mais crítico do que normativo. A

maioria dos exemplos de aplicações políticas dados por Nancy Fraser remetem a políticas

universalistas comuns nos países que visam o bem-estar social (como impostos progressivos, pleno

emprego, etc.), ou em outros casos sugerem a combinação de políticas afirmativas e políticas

transformativas43. Ao partir do que já existe em termos de teoria da desigualdade e da justiça, a

solução de Amartya Sen permite um foco mais importante na implementação de políticas públicas,

com efeitos práticos mais tangíveis, como mostra sua defesa da divulgação de indicadores de

desenvolvimento para além do PIB e sua contribuição técnica nesse sentido.

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43 FRASER (2003), 1. IV. 55

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HÁ SOLUÇÃO PARA O ANTAGONISMO ENTRE REDISTRIBUIÇÃO

E RECONHECIMENTO?

Is there any solution for antagonism between redistribution and recognition?

Príscila Teixeira de Carvalho

Doutoranda em Filosofia pelo IFCS-PPGF/UFRJ

Resumo: Demandas por Redistribuição associam-se às ideias de justiça social, emancipação política

e econômica. Devedoras da filosofia marxiana desde a década de 1990, dividem o cenário político

com reivindicações por Reconhecimento da Identidade, que por sua vez associam-se à ideia de

florescimento humano e inspirando-se na filosofia de Hegel. Será possível falarmos de injustiça

tanto na dimensão econômica quanto na cultural? Sobre que fundamento filosófico poderíamos

compor tais reivindicações em uma única agenda de reivindicação política? Esse trabalho pretende

mapear o surgimento do suposto antagonismo aqui mencionado, bem como apresentar a proposta de

conciliação das mesmas, defendida pela filósofa Nancy Fraser.

Palavras-chave: Reconhecimento; Identidade; Redistribuição; Igualdade Social; Nancy Fraser.

Abstract: Demands for redistribution are related to ideas of social justice, as well as economical and

political emancipation. Inheritance of the Marxist philosophy since the 90’s, these claims share

political scenario with those for recognition of identity, which are related to the idea of human

flowering, inspired in the philosophy of Hegel. Would it be possible to talk about injustice in both,

economical and cultural dimensions? Under which philosophical fundamentals would such claims be

addressed in the same political agenda? This paper tries to follow the birth and causes of the

antagonism of both of the positions mentioned above, as well as to present the proposal of

philosopher Nancy Fraser to help understand them.

Key words: Recognition; Identity; Redistribution; Equality Social; Nancy Fraser.

O surgimento de demandas por Reconhecimento não significa que a humanidade tenha

resolvido problemas historicamente vinculados à desigualdade social. Esses foram ligados

inicialmente à falta de condições materiais necessárias para qualidade de vida, tais como má

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distribuição de renda, falta de pleno acesso ao trabalho, à educação de qualidade e ao lazer. Além

dessas demandas não atendidas, assistimos ou somos notificados da existência de exploração não-

sustentável dos recursos naturais, hábitos diários de consumismo demasiado, excesso de produção de

lixo e outros grandes impactos ambientais que se consolidaram há anos como práticas de estragos,

alguns deles irreversíveis ao planeta e da vida nele presente, comprometendo as atuais gerações –

principalmente a qualidade de vida dos mais desassistidos – e, não só das atuais gerações, como das

futuras também. Algumas vezes tais práticas resultam em mortalidade. Ainda hoje se descobre a

existência de trabalho escravo, infantil e de exploração sexual da infância. Sabemos que algumas

pessoas são capazes de manter essas práticas mesmo sendo proibidas, fazendo isso em proveito de

sua ganância e, quiçá também, com algum outro tipo de satisfação hedonista bizarra. Em meio a esse

quadro nada agradável, temos ainda que dar conta das demandas por reconhecimento da identidade.

Mas no que consiste uma preocupação por redistribuição? E por reconhecimento?

A concepção geralmente atribuída à ideia socialista de que educação de qualidade para

todos, igual distribuição de renda e oportunidade, divisão dos meios de produção e acesso à gestão

dos cargos políticos e públicos sejam as principais demandas de planejamento político presente nas

agendas dos que sonham com outros modelos de sociedade, deixou de ser hegemônica nas

orientações sobre o que vem a ser uma sociedade justa. Desde o século XX, essa concepção de

justiça começa a dividir o cenário de reivindicações com as defesas pelo reconhecimento,

organizadas em torno de demandas específicas de etnicidade, gênero, nacionalidade, raça, orientação

sexual, entre outras. Essa mudança fez com que se construísse um quadro de segregação e

desentendimento entre cidadãos, militantes e teóricos que advogam a satisfação da justiça social pela

via da Redistribuição ou de Reconhecimento.

Na defesa da agenda política das demandas por Reconhecimento, o filósofo Charles Taylor

desenvolveu uma teoria na qual os valores são apontados como norteadores da estrutura social.

Taylor denuncia que as instituições e a vida em sociedade são atravessadas e constituídas por uma

dinâmica simbólica na qual as pessoas são obrigadas a buscar reconhecimento também no âmbito

privado, uma vez que estaria em jogo não só a própria identidade dos sujeitos como a construção do

respeito mútuo. A vida social entendida dessa forma é regida por princípios morais unidos por

“configurações” que determinam a relação entre concepções de bem e construção da identidade. Tal

relação delineia as escolhas, reações morais e modos de julgar, já que as configurações em que estão

imersas funcionam como orientação das condutas sociais. Taylor sustenta que "pensar, sentir, julgar

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no âmbito de tal configuração funciona como a sensação de que alguma ação, modo de vida ou

modo de sentir é incomparavelmente superior aos outros"22.

Segundo Souza23,Taylor situa na moralidade de cada época e cultura uma forma de

construção da autocompreensão dos sujeitos de então. As convenções e valorações morais de cada

época funcionariam como um padrão a ser adotado por todos igualmente ou de forma muito

hegemonizada, influenciando diretamente na individuação de cada um. Também em razão desse

processo cultural, de tamanha influência na concepção que cada um terá de si mesmo, do fenômeno

e da relação de troca que se dará a partir daí, Taylor propõe que seja concedido o respeito, não à

igualdade, mas ao que fazemos com ela, ou seja, a diferença. A concepção de desenvolvimento do eu

em Taylor está embasada nas ideias de interioridade e autenticidade. Taylor aposta que essas só

podem se desenvolver plenamente se houver reconhecimento da diferença.

A concepção de reconhecimento defendida pelo filósofo Axel Honneth se assemelha à

posição de Taylor, uma vez que valida a ideia de que os contextos normativos são definidores de

práticas sociais. Honneth aponta a influência desses contextos na vida dos sujeitos e ressalta que a

realização dos mesmos se dá a partir da própria troca intersubjetiva. A necessidade de ser

reconhecido submete o sujeito ao resultado das interações na construção de si mesmo. Essa ideia é

devedora da filosofia de Hegel no tocante à intersubjetividade, já que para Hegel as relações

humanas, sejam elas familiares ou sociais (interação social e funcionamento do direito), viram

embates dinâmicos e a partir deles cada sujeito constrói sua autoimagem.

Em Luta por Reconhecimento, Honneth constrói sua argumentação a partir da interrogação

sobre o “por que os homens se engajam em movimentos sociais?” e conclui pela relação desses – tal

qual fez Hegel – com a construção da moralidade social e com a experiência do sentimento de

desrespeito. Honneth se apoia principalmente nas obras hegelianas, tais como Maneiras cientificas

de tratar o direito natural e Sistema da vida ética, para demonstrar a relação entre os conflitos,

reconhecimento e intersubjetividade. Nas palavras de Honneth e Hegel, respectivamente:

...só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, autorrespeito e autoestima, como garantem sucessivamente as experiências das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos (HONNETH. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 266).

(...) eu não posso saber se minha totalidade, como de uma consciência singular na outra consciência, será esta totalidade sendo para-si, se ela é reconhecida, respeitada, senão pela manifestação do agir do outro contra minha totalidade, e ao mesmo tempo o outro tem de manifestar-se a mim como uma

22 TAYLOR, As fontes do self: a construção da identidade moderna, p. 3223 SOUZA, Uma teoria crítica do reconhecimento, p.137. 59

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totalidade, tanto quanto eu a ele (HEGEL apud HONNETH, Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 63).

Sobre a estrutura do pensamento de Honneth, Ricardo Fabrino Mendonça explica:

Aos três reinos do reconhecimento, Honneth associa, respectivamente, três formas de desrespeito: 1) aquelas que afetam a integridade corporal dos sujeitos e, assim sua autoconfiança básica; 2) a negação de direitos, que mina a possibilidade de auto-respeito, à medida que inflige ao sujeito o sentimento de não possuir o status de igualdade; e 3) a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, que afeta a auto-estima dos sujeitos (MENDONÇA, Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado Habermasiano, p.169-185).

Para Honneth a relação entre conflitos, reconhecimento e intersubjetividade não é bem

explorada nos estudos sobre fundamentos normativos do senso de justiça, ficando alijada das

preocupações teóricas e políticas:

já nos começos da sociologia acadêmica, foi cortado teoricamente, em larga medida, o nexo que não raro existe entre o surgimento de movimentos sociais e a experiência moral de desrespeito: os motivos para a rebelião, o protesto e a resistência foram transformados categoricamente em ‘interesses’, que devem resultar da distribuição desigual objetiva de oportunidades materiais de vida, sem estar ligados, de alguma maneira, à rede cotidiana das atitudes emotivas (HONNETH, Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 255)

Marxism, then, the leaning toward utilitarian anthropology allows granting collective interest to a social class, the antithetical position lacks any concepts for forming hypotheses regarding the potential causes of the sense of social injustice (HONNETH, The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts, p.124).

Embora Honneth acabe encontrando o preenchimento dessa lacuna no fundamento da

relação entre respeito e normatividade da moral em Habermas, ele apresentará sua própria defesa da

relação com os conflitos sociais e com o autorrespeito, amparada na ótica hegeliana de

Reconhecimento, uma vez que Honneth não encontra em Habermas – ao menos da forma que lhe

interessa imediatamente – uma relação entre essa dinâmica de entendimento intersubjetivo e a

formação de identidades.

Habermas, seguido por Honneth e por Fraser, toma uma posição crítica com relação à ideia

marxiana do que seria a mudança da dinâmica estatal, especificamente na relação entre infraestrutura

e superestrutura. Segundo a leitura marxiana, nessa dinâmica estaria o germe da transformação

social. A necessidade de redistribuição, bem como a participação nos processos de decisão política,

são importantes para Habermas, mas não é a esses que ele delega a função emancipatória da

exclusão e da exploração social. Habermas atribui esse potencial à cultura e as interações sociais, nas

quais prevalece a ação comunicativa voltada para o entendimento, construída pelo uso racional e

intersubjetivo da linguagem. Ainda assim, isso não significa que Habermas estabeleça como âmago

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de seu projeto a construção de identidades, de estima social ou de Reconhecimento, mesmo que

associados à normatividade da moral ou ao agir comunicativo. Como para Honneth, é fundamental a

defesa do Reconhecimento interpretado daquela forma, bem como associado ao desenvolvimento

moral da sociedade, as noções de desrespeito e de não-reconhecimento são apresentadas como

comprometedoras no processo da construção da dignidade do sujeito e fundamentais em seu

entendimento da noção de injustiça.

Embora tanto o Reconhecimento quanto a Redistribuição sejam importantes para a agenda

social, ambos aparecem no cenário político como representantes de objetivos antagônicos e, por

vezes, contraditórios. Enquanto a defesa do Reconhecimento se baseia na ideia do respeito à

diferença, a defesa da Redistribuição tenta promover o oposto: a igualdade do tratamento político e

econômico. Esse é o cerne inicial do antagonismo que tem prevalecido entre essas duas posições.

Porque essas demandas por justiça social, a histórica e a atual, apresentam-se como duas

agendas de reivindicações paralelas? Por que há conflito de prioridade entre uma e outra? Por que

não são partes de uma mesma agenda política?

Desde meados da década de 1990, existe esse antagonismo teórico entre ambas as posições.

A concepção marxista sobre a injustiça social é a concepção mais hegemônica e histórica, como

vimos acima. Ela aponta a necessidade de redistribuição da renda e da produção do trabalho entre

“patrão e proletariado” como solução para que a classe proletária oprimida e explorada seja extinta e

dê origem a uma sociedade sem classes e, portanto, mais justa. A origem de tal injustiça está,

segundo essa concepção, ancorada pela política econômica adotada no regime capitalista que é

gerador das desigualdades sociais.

Na perspectiva do Reconhecimento, a ideia de que a justiça seja unicamente uma questão

de ajuste econômico não é suficiente, pois não atende às demais necessidades das pessoas. O arranjo

conceitual, nesse caso, está focado na diferença e não na igualdade, uma vez que os padrões vigentes

de virtude e moralidade sociais não geram os mesmos direitos de estima e reconhecimento a todos,

mas apenas àqueles que correspondam a esse padrão.

Injustiças ocorrem tanto na vida cultural quanto na vida econômica de uma sociedade.

Embora necessitem de providências diferentes, ambas se inter-relacionam. Existem pessoas

abastadas que sofrem dificuldades de aceitação social em função de pré-conceitos culturais, assim

como existem pessoas que nutrem valores hegemônicos e vigentes socialmente sem ter acesso ao

aparelho social do Estado e às condições para uma vida material boa e, portanto, não gozam da plena

realização ou de condições para o florescimento humano. Essa ideia de florescimento humano, ao

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lado de justiça é tão dependente de boas condições materiais quanto de respeito e aceitação social.

Portanto está tão ligada ao Reconhecimento quanto à exigência de Redistribuição.

Para Nancy Fraser há algumas tentativas por parte dos teóricos igualitários – Marx, Rawls,

Amartya Sem e Dworkin – em conceituar e propor soluções para as injustiças socioeconômicas,

fornecendo recursos para o aspecto valorativo e simbólico das justiças culturais. Entretanto não é

propósito seu comprometer-se com nenhuma posição teórica no que se refere à análise da

acomodação dessas duas posições a princípio conflitantes; antes ela pretende apenas manter um

entendimento igualitário geral sobre as injustiças econômicas.

Fraser seguirá no caminho de mostrar que o resultado da relação entre as duas formas de

injustiça acaba sendo a formação de “um ciclo vicioso de subordinação cultural e econômica”. Por

isso, não pretende endossar ou rechaçar a política da identidade para defender a Redistribuição ou

vice-versa. Primeiro ela faz uma análise conceitual dessas. Depois, passa a defender uma teoria

crítica que possa acomodar às demandas por Redistribuição a necessidade de Reconhecimento,

passando a interpretar essa última como parte necessária da luta pela igualdade social. Ela defende

esse procedimento porque diz entender que Justiça requer ambas as demandas apresentadas

erroneamente como antagônicas. Logo, acomodar os aspectos emancipatórios das duas posições é

fundamental. Em Reconhecimento sem ética, Fraser declara para seu leitor que seu objetivo é criar

uma concepção mais aberta de justiça para nela incluir e conciliar as reivindicações das agendas da

Redistribuição e do Reconhecimento.

Procedendo à análise conceitual que explica os supostos aspectos inconciliáveis das duas

posições, Fraser recorre a um conjunto de reflexões éticas, ou seja, da filosofia moral, para pensar os

fundamentos das concepções de Redistribuição e de Reconhecimento. A ideia de Redistribuição está

ligada ao campo da moralidade, já a ideia de Reconhecimento está ligada ao campo da ética, conclui.

Onde mora a distinção entre ambas? Tratar-se-á, como alega Zigmunt Bauman24, apenas de

filigranas filosóficos ou há alguma relação entre esta distinção e o fundamento das posições aqui

estudadas?

Neste trabalho a leitura é de que não se trata de meras filigranas, sejam elas de quaisquer

status ou área de conhecimento. Pelo contrário, o entendimento aqui é o mesmo de Fraser, de que a

compreensão da distinção entre moral e ética possibilita, por sua vez, a compreensão da base

argumentativa presente tanto na defesa do Reconhecimento quanto na base argumentativa dos que

advogam a defesa da Redistribuição e da relação de ambas – cada uma a sua maneira – com a noção

24 BAUMAN , Comunidade – A busca por segurança no mundo atual, p. 73. 62

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de justiça. Por isso estabelecer-se uma distinção conceitual entre ambas é fundamental, bem como a

clareza sobre as mesmas, além de não se compreender os fundamentos que a sustentam e permanecer

na mera troca de opiniões e visões distintas.

Dando prosseguimento a esta análise conceitual, passamos a localizar a moral no campo do

questionamento sobre o justo, o correto, ou seja, do questionamento sobre o que seria válido não só

para um sujeito isoladamente, mas para uma coletividade. Saber deliberar o que é justo – válido para

mim e para os outros – se faz a partir de uma perspectiva de tratamento e entendimento da igualdade

entre todos. Assim, o questionamento ético sobre a moral refere-se ao que é válido para o espaço da

convivência social, da possibilidade de universalização dos direitos e de alguns valores morais caros

à garantia da igualdade, uma vez que, se todos são iguais, o que vale para um, a princípio, deve valer

para todos.

Já a ética é o espaço da individualidade na construção de valores. É, portanto, o campo do

bem, da concepção de vida boa que cada pessoa descobre para si, da liberdade de escolha dos

valores que estão disponíveis ou que estão sendo criados e pensados. Numa sociedade convivem

várias concepções éticas, ou seja, várias concepções de vida boa e esse espaço para a individualidade

deve ser preservado. Por isso Fraser distingue a prioridade que cada um dá à escolha de sua

profissão, amor, estilo de vida, etc. Como lembra Habermas, a ética refere-se a um tipo de uso da

razão prática. Na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, encontramos a defesa da ideia de que um

cidadão deve guiar-se por ideal de vida boa, mas partir da referência de seu grupo social. O cidadão

deve buscar uma forma de integrar-se ao projeto coletivo, respeitando ao mesmo tempo suas opções

em particular.

A partir desse universo de entendimento já podemos situar a defesa que é feita para a ideia

de Redistribuição como fruto de uma concepção moral, isto é, numa concepção de justo, correto, de

algo que pode e deve ser universalizado para todos, respeitando a ideia de que todos são iguais e que,

portanto, merecem igual tratamento. Também é possível, dado o entendimento da diferenciação

entre moral e ética aqui ressaltada, situar a defesa pelo Reconhecimento como a tentativa de garantir

o direito à criação e adesão a uma concepção de bem em particular. Todas as concepções de bem que

não concorram com a concepção de Justo partilhada socialmente seriam reconhecidas como

legítimas. Uma concepção de bem é uma concepção que possui fundamentos éticos, portanto.

Fraser mostra que não deveria haver conflitos entre a dimensão moral e a dimensão ética.

De fato se prevalece o conflito entre as demandas de Redistribuição e Reconhecimento, em alguma

medida, prevalece uma discussão sobre concepções particulares de vida boa, que pode pôr em risco a

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concepção de Justo da coletividade. Quando isso acontece, há impasses e conflitos e, muitas vezes a

instituição do direito é chamada a intervir, visto que permanece aberta a dificuldade de

estabelecimento de prioridades. A despeito do quadro de antagonismo entre essas defesas, Fraser

coloca a seguinte questão: “(...) se os paradigmas da justiça, associados à moralidade, podem lidar

com as reivindicações pelo reconhecimento da diferença – ou se é necessário, ao contrário, voltar-se

para a ética”25.

Esse quadro conceitual gera a fundamentação e o entendimento que vêm sendo situados de

forma antagônica, visto que nem os defensores do Reconhecimento Ético da Diferença, nem os

defensores da Moral Política da Redistribuição chegam a um acordo de composição das agendas de

necessidades. Segundo Fraser, Moralitat kantiana de um lado – normas de justiça universalmente

vinculantes – e Sittlichkeit hegeliana – horizontes de valor e concepções de bem como base das

escolhas e da vida social –, de outro, sustentam duas formas diferentes de normatividade”:

Os filósofos deontológicos e os teóricos políticos liberais insistem que o correto deve ter prioridade sobre o bem, já os comunitaristas e os teleologistas replicam que a noção de uma moralidade universalmente vinculante, independente de qualquer ideia de bem, é conceitualmente incoerente (FRASER, Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI. Jessé Souza e Patrícia Mattos, p.115).

De um lado os teóricos que advogam a justiça distributiva entendem que estão respeitando

a moralidade política necessária à justiça social; de outro lado, os teóricos que defendem as

reivindicações de reconhecimentos das diferenças entendem que o direito à adesão a valores e

práticas socialmente não hegemônicas é uma questão de justiça, uma vez que essa necessita de juízos

de valores e não só distribuição de recursos. Por isso, reconhecimentos das diferenças se associam à

fundamentação ética em contraposição à fundamentação de ordem moral. O isolamento das posições

se mantém na sustentação de que bastaria corrigir a distorção de origem da situação de injustiça

social e posteriormente sua consequência no outro campo, que o problema estaria automaticamente

corrigido. Logo, seria uma mera questão de descobrir a origem da injustiça, se é de Reconhecimento

ou de falta de recursos econômicos.

Para Taylor, por exemplo, o Reconhecimento é o aspecto primordial, pois como lembra

Fraser, os que advogam a defesa do Reconhecimento, o respeito à diferença geraria igualdade de

estima social. De acordo com Fraser, se tratarmos as coisas assim, continuaríamos no dilema:

25 FRASER, Reconhecimento sem ética, em Teoria Crítica do séc. XXI, p. 115. 64

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“Essa situação exemplifica um fenômeno mais amplo: o desacoplamento bem-fundido entre a política cultural e a política social, e entre a política da diferença e a política da igualdade (....). Nesses casos somos apresentados a uma escolha entre esse ou aquele: a redistribuição ou o reconhecimento? Política de classe ou da identidade? Multiculturalismo ou igualdade social?” (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 114).

A extensão e generalização da estima social é oximórica, isto é, contraditória e paradoxal,

como sugere a palavra grega. Por isso não me parece que outra característica possa traduzir melhor a

falta de sentido de tal extensão. Fraser foi muito feliz nessa caracterização. A forma como Taylor

constrói sua defesa de tal extensão da estima social, corrobora a leitura que Fraser faz de sua

implausibilidade e dimensão oximórica:

nonrecognition or misrecognition (...) can be a form of opression, impresioning someone in a false, distorted, reduced mode of being. Beyond simple lack of respect, it can inflict a grievous wound, saddling people with crippling self-hatred. Due recognition is not just a courtesy but a vital human need (TAYLOR apud FRASER, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, p. 250).

Fraser reconhece que a maioria das teorias sobre injustiça social não inclui adequadamente

os problemas de Reconhecimento, embora tentem, como vimos acima. Segundo ela, apesar dos

teóricos igualitaristas já citados, como Rawls, Dworkin e Sen, apreciarem não só a alocação de

recursos, mas também a importância do status social e buscarem – cada um a seu modo – a

acomodação dos aspectos culturais, essa acomodação não tem sido suficiente para responder as

questões do antagonismo que se construiu entre as duas agendas de reivindicação. Fraser salienta

que esses teóricos pretendem compor as agendas por entenderem que são complementares, mas

acabariam sendo acusados de provocar uma “esquizofrenia filosófica”. Entretanto, há casos em que

demonstram claramente tal necessidade de acomodação. São os casos em que pessoas e segmentos

sociais são ambivalentes, no tocante aos dois paradigmas acima tratados, por sofrerem igualmente:

1) Injustiças por falta de igual tratamento, na medida em que não lhes é ofertada as mesmas

condições e oportunidades de escolarização, trabalho e qualidade de vida e que, por isso mesmo

geram consequentes desvantagens socioeconômicas em sua vida adulta e menores condições de

qualidade de vida e de florescimento humano;

2) Não-reconhecimento cultural, seja em função de sua opção sexual, seja por se tratar

de discriminação de gênero, cor de pele, origem étnica, etc.

Segundo Fraser, em casos como esses, não bastam apenas correções de ordem redistributiva

ou mesmo de seu reconhecimento ético, como medidas isoladas. De alguma forma essa situação 65

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demonstra a necessidade de compatibilidade entre as duas posições. A exemplo de casos como esse,

que, aliás, não são raros e nem isolados, podemos citar:

A desvantagem econômica das mulheres restringe sua voz, impedindo participação igual na fabricação da cultura, em esferas públicas e na vida quotidiana. O resultado é um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica. Reparar injustiças de gênero requer mudanças na economia política e na cultura (FRASER, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, p.261).

Desvantagens econômicas das famílias matrifocais são geradas a partir de uma política que

toma como lógica as demandas masculinas. No caso das mulheres, é preciso que haja estrutura no

aparelho estatal que dê conta de suas demandas específicas para que iguais condições de

oportunidades e desenvolvimento em relação aos homens seja realidade. Essa distorção

socioeconômica se origina no não-reconhecimento de sua especificidade e necessidades enquanto

gênero. A ideia aqui não é, definitivamente, defender a total dissolução das diferenças de gênero,

como se não existissem e não determinassem uma prerrogativa de políticas específicas para

mulheres, que dessem a essas condições de igualdade com os homens, em vez de tratá-las como se

tivessem apenas necessidades que esses têm, essencializando os seres humanos a partir da ótica

masculina. Tampouco é o caso de fazer uma polarização ou antagonismo entre necessidades geradas

por modos de ser e existir de mulheres versus necessidades de ser e existir de homens. Cabe entender

que, para que ambos tenham condições iguais de florescimento, é preciso que suas demandas sejam

atendidas especificamente, dando-lhes tratamento, condições e oportunidades iguais.

Pretendo mostrar que as propostas de solução para uma política de combate à injustiça

dependem de uma correta análise sobre a origem das injustiças sociais. As soluções por

Reconhecimento delineadas por “políticas afirmativas”, mantêm a diferença social existente,

enquanto que a solução por Reconhecimento delineadas por “políticas transformativas” possibilitam

diminuir as diferenças sociais a longo prazo. As “políticas afirmativas” para reconhecimento e para

distribuição de recursos são adotadas pelo Estado de Bem-Estar Liberal, que Fraser reconhece nos

EUA e diferencia do Estado de Bem-Estar Social-democrata, por um lado, e por outro, do Estado de

Bem-Estar Conservador Corporativista.

Para acomodar as duas posições até aqui antagônicas, será preciso responder às

reivindicações por reconhecimento como reivindicações de justiça dentro de uma compreensão

expandida da justiça, trazendo a política do reconhecimento para o terreno da Moralitat. É o que faz

Fraser. Mas como isso é possível?

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Primeiro ela propõe desvincular a ligação entre Identidade e Reconhecimento, que subjaz

na defesa do modelo atual do segundo conceito, uma vez que no modelo atual é o grupo social que o

exige. Segundo Fraser, esse modelo é controverso porque deposita ênfase na estrutura psíquica em

detrimento da estrutura e da interação social. Esse peso dado ao aspecto psíquico tende a segregar os

grupos e diminuir a troca cultural entre os diversos segmentos sociais, criando segregações,

despolitizando o problema e colocando-o numa arena da construção psíquica e individual. Feita,

assim, a defesa do Reconhecimento fica restrita à defesa de certas concepções éticas de vida boa,

como se fossem desvinculadas da interação no contexto social em que estão. A dinâmica de

estruturação da vida social, como por exemplo a divisão urbana de bairros para brancos e bairros

para negros me faz concluir que de fato a defesa ética da diferença em detrimento de uma concepção

moral de justiça é predominante há muitos anos nos EUA, diferente do que sempre ocorreu no

Brasil, onde as demandas vinham sendo tratadas como necessidade de direitos iguais para condições

do florescimento humano, sem esse aspecto segregador dos seguimentos sociais que sempre existiu

naquele país. Assim fica mais confortável endossar o entendimento de Fraser, segundo o qual a

estratégia daquele modelo de Reconhecimento cria segregação e não interação. Concordo que essa

forma de comunitarismo acabaria servindo a políticas que criam antagonismos entre grupos sociais,

diminuindo o diálogo e a interação ao invés de promover o respeito mútuo às diferenças e inclusão

social de certos grupos não reconhecidos. Isso acaba criando um paradoxo: tentar acabar com a

exclusão causada pelo não Reconhecimento a partir de uma postura que não colabora para sua

inserção e sim para uma forma de Reconhecimento acompanhado de isolamento.

A proposta de Fraser, ao contrário, propõe interpretar Reconhecimento como uma questão

de status social. Segundo esse novo modelo, o “Modelo de Status”, o que deve ser reconhecido é o

status dos membros dos grupos como iguais e plenos parceiros na interação social. Isso implica a

mudança da ideia central de Reconhecimento como defesa da identidade de um grupo, e da

dimensão psíquica dessa, para a defesa do Reconhecimento da plena aceitação e parceria dos

membros desse grupo. O não Reconhecimento dentro desse entendimento significaria, como

argumenta Fraser, a subordinação social de certos grupos e o impedimento desses em participar e ter

uma vida em iguais condições ao restante da sociedade. Nas palavras de Fraser:

Ver o reconhecimento como uma questão de status é examinar os padrões institucionalizados de valor cultural por seus resultados na posição relativa dos agentes sociais. Se e quando tais padrões constituem esses agentes como pares, capazes de participar no mesmo nível um com o outro na vida social, então podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando em contraposição, padrões institucionalizados de valor cultural, constituem alguns agentes como inferiores, excluídos, completamente diferentes ou simplesmente invisíveis, consequentemente

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como menos que parceiros plenos na interação social, então podemos falar em não-reconhecimento e subordinação de status (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 118).

Assim, no “Modelo de Status” o não Reconhecimento é entendido a partir do momento em

que não haja paridade de participação entre os membros de uma mesma sociedade, como em casos

de discriminação de gênero, de etnia, de credo, de orientação sexual. Fraser cita, a exemplo disto, os

casos de leis matrimoniais que excluem as uniões entre o mesmo sexo, as políticas de bem-estar

social que estigmatizam as mães solteiras como parasitas sexualmente irresponsáveis, as práticas de

policiamento como os “delineamentos raciais”26.

No entanto, Fraser não propõe tratar Reconhecimento como igualdade social e incluir a

partir daí qualquer tipo de reivindicação como legítima. Ela ressalva que, tal qual os liberais, ela não

reconhece a legitimidade do tipo de reivindicação por Reconhecimento que não respeite direitos

humanos. Esses estariam excluídos da agenda legítima de Reconhecimento. O entendimento aqui é

que tanto direitos humanos como soberania popular são ambos focados como prioridade na

concepção de Fraser. Segundo Fraser: “As reivindicações por reconhecimento no modelo de status

buscam (...) desinstitucionalizar padrões de valor cultural que impedem a paridade da participação e

substituí-los por padrões que a favoreçam”27. Ela não pretende desinstitucionalizar os valores

embutidos na ideia de direitos humanos, o que faz total sentido, já que negociar tais valores

equivaleria a negociar a idéia de direito a igualdade de tratamento. Talvez caiba falar em agregar

direitos na atual concepção de direitos humanos, mas não em abrir mão do que já é reconhecido. E

isso é inegociável.

A paridade de participação é a garantia de um padrão normativo capaz de analisar a

legitimidade das reivindicações presentes em conflitos, diferente do modelo proposto por Charles

Taylor e por Axel Honneth. Nesses modelos predominam a defesa da diferença com a defesa do

reconhecimento da igual estima social para todos. Nessa encontra-se o segundo erro da posição

defendida por esses autores. A primeira, como já vimos, é vinculação da ideia de construção da

identidade a uma espécie de essencialização da diferença. Sobre a segunda vinculação insustentável

entre reconhecimento e individuação cabe ressaltar, conforme diz Fraser, que o igual respeito social

não significa igual estima por todos.

Tomo a liberdade de mudar a formulação da argumentação que a autora do “Modelo de

Status” faz quando defende a negativa de que “(...) evita-se a visão de que todos possuem direitos

26 FRASER. Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI, p.118.27 Idem 68

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iguais à estima social”28 para a formulação que diz: “evita-se a visão de que todos possuem

naturalmente, isto é, a priori, direitos iguais à mesma estima social”. Faço isso com pretensão de lhe

ser fiel em sua intenção original, qual seja, a de mostrar que a ideia de direito igual à igual estima

social é insustentável (os grifos são meus):

Aqui estou admitindo a distinção (...) padrão na filosofia moral entre respeito e estima. Segundo esta distinção o respeito é universalmente devido a cada pessoa em virtude da humanidade compartilhada; a estima, em contraste, é concedida diferencialmente com base nos traços, realizações ou contribuições específicas das pessoas. Assim (...) a injunção para estimar todos igualmente é oximórica (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 122).

A argumentação de Fraser mostra que a condição para a estima social depende justamente

das diferenças de postura, que podem agradar a cada um de acordo com seus valores e visão de bem

e não por ser um valor subsidiado por uma posição política moral que dependa de ser endossada

socialmente para a convivência social harmoniosa. Nesse caso, não é legítima a base moral do

argumento, já que a estima social é relativa, variando conforme orientação valorativa de cada um, ou

seja, conforme a concepção ética adotada. Se essa for atribuída de todos para todos, não será

atribuída a ninguém, uma vez que é impossível estimar um comportamento ético x (segundo alguns

valores éticos, estéticos...) e, ao mesmo tempo, o comportamento ético não-x, ainda que ambos

sejam morais e até válidos legalmente. As realizações, contribuições e comportamentos éticos x

receberão maior estima social de pessoas que depositem sua adesão aos valores subsidiários dessas

contribuições, comportamentos e realizações. O mesmo vale para a estima social relativa às

contribuições, comportamentos e realizações não-x, y e z.

Para Fraser, diferentemente de Honneth, o Reconhecimento requer que “todos possuam

direitos iguais para exercer estima social sob condições justas de oportunidades iguais”29 (os grifos

são meus). Essas condições são o centro da questão e não propriamente o seu resultado – a estima

social –, uma vez que a igualdade de oportunidade configura como importante em matéria de justiça

e não o que se faz com ela ou o resultado das escolhas a partir das mesmas condições de agir.

Mas quais seriam as vantagens da adoção do “Modelo de Status” defendido por Nancy

Fraser?

28 FRASER. Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI, p.118.29 FRASER, Reconhecimento sem ética, Em Teoria Crítica do séc. XXI. Jessé Souza e Patrícia Mattos, p. 123.

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Segundo Fraser algumas vantagens de um tal modelo em detrimento do atual Modelo

de Identidade seriam:

1) Evitar essencializar as identidades que pleiteiam reconhecimento, na medida

em que o que merece ser reconhecido não são seus valores em si, como de nenhum outro

grupo, e sim o respeito à livre opção por alguma concepção de bem, desde que essa não

comprometa a integração social e o bem-estar de outrem.

2) Conciliar as agendas do Reconhecimento e da Redistribuição de recursos e

condições econômicas, promovendo relações simétricas, através de uma guinada moral, cujo

núcleo de sustentação é a paridade de participação;

3) Desinstitucionalizar os padrões culturais que impedem a paridade de

participação, promovendo maior diálogo entre os diversos segmentos e agrupamentos

culturais e reconhecendo igualdade de status entre todos;

4) Permitir que se justifiquem as reivindicações por reconhecimento como

moralmente vinculantes e respeitadoras do panorama moderno, no qual predomina uma

pluralidade axiológica em detrimento da adoção de uma determinada concepção de bem.

Assim pretende-se dar lugar a uma composição de demandas tão caras a qualquer

política voltada a atender a justiça social e a doação de plenas condições para o florescimento

humano, sem com isso ter que se situar em algum nicho de poder ou discurso especializado sobre

o mesmo. Antes, entendendo que ambos, Reconhecimento e Redistribuição são complementares

e cooriginários na satisfação das necessidades sociais e individuais para o desenvolvimento

humano.

Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zigmunt. Comunidade – A busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2003.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade I e II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2003.

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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2009.

MENDONÇA, R. F. “Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado Habermasiano”. Revista de Sociologia Política. no.29 (Nov. 2007).

SOUZA Jessé. Uma teoria crítica do reconhecimento. São Paulo: Lua Nova, nº 50 (2000).___________. (org.) Democracia Hoje: novos desafios para a teoria contemporânea democrática.

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___________. e Mattos, Patrícia (org.). Teoria Crítica do séc. XXI. São Paulo: Annablume, 2007.

TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997.

_______________ . Multiculturalism and the Politics of Recognition, Princeton: Princeton University Press, 1992.

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Resenha

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RESENHA:

RORTY, Richard. Uma ética laica. Trad. Mirella Traversin Martino. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2010.

Eustáquio José da Silva1

A expectativa é a de uma carta: o remetente é o próprio texto a ser resenhado e o destinatário

uma sociedade ainda religiosa, nominalmente a nossa sociedade brasileira, na qual o texto ganha o

valor e a serventia necessária para que o leiamos e o tenhamos como referência de leitura de nossa

realidade.

Fruto de uma conferência em Turim pronunciada por Richard Rorty e com a introdução de

Gianni Vattimo, o texto foi primeiro lançado em 2008 sob o nome de “Um-etica per Laici” e

traduzida em 2010 com o título de “Uma ética laica” por Mirella Traversin Martino. A publicação

deste texto adere à necessidade que temos de lidar com a questão ética e esta enquanto pensada

desprovida de sua intrínseca relação com um ideário platônico-religioso de “ponto fixo moral”

inerente e imanente ao homem afixado por um ser transcendente e poderoso. Responder a esta

questão quando estamos diante de uma pluralidade de coisas e de situações e quando várias relações

estão reinvidicando seu espaço social torna-se necessário, e por que não uma ética laica?

O texto pretende tratar da relação conflituosa na sociedade, ou melhor dizendo nas

sociedades, entre concepções fundamentalistas (estritamente religiosas ou relacionadas a estas de

alguma forma) que o Rorty define como “ideais válidos enquanto alicerçados numa realidade, no

real” defendidas pelo papa Bento XVI como nascidas na própria “natureza humana” e na

necessidade de um ponto fixo e verdadeiro que seria uma moral universal e os relativistas que

negariam esta afirmação.

A despeito da crítica recebida nas questões formuladas no final da conferência, Rorty se

referia a possibilidade, a partir de uma ética laica, de convivência entre as duas perspectivas e a não

tentativa de fundamentar toda a realidade possível (e plural), como era o modus operandi da filosofia

e da própria igreja historicamente, numa única visão, a saber; a visão transcendentalista da moral

numa natureza humana.

Sob a reclamação de que a democracia, e a sua verdade relativizada, estavam sendo impostas

como a única verdade válida a todos, o cardeal Ratzinger criticava o crescimento desta corrente ética

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taxando-a de possível desagregação da natureza humana deixando-a desprotegida diante de uma

realidade. Para Rorty a reclamação de Ratzinger não se sustenta justamente porque pensadores

como ele, James, Santayana, Habermas e Dewey estavam preocupados em garantir as possibilidades

de uma pessoa frente ao seu progresso moral e intelectual garantindo o direito à satisfação dos

desejos, desde que não ferissem os desejos alheios de serem realizados.

Satisfazer os desejos não teria o sentido de um absolutismo do relativo e de um

enfraquecimento da moral que funciona enquanto demonstra o que se deve fazer, segundo a

perspectiva fundamentalista apontada por nosso autor, mas significa primeiramente munir o homem

da liberdade possível para ir buscar o maior ponto de felicidade possível. Daí se podem inferir duas

coisas: 1. A nossa impossibilidade de buscar marcos universais e no máximo podermos apenas

procurar aumentar o número de pessoas com as quais nos identificamos e nesses grupos buscar

satisfação de desejos e conseqüente felicidade derivada desta. 2. A ideia de que toda a questão ética

passa primeiro pela questão dos desejos e esta deve ser vista caso a caso como na postura

preconceituosa contra os homossexuais, o machismo, a segregação racial e social entre outras coisas.

A nossa ideia de ética deve abranger dar voz ao máximo de pluralidades possível sem que, com isso,

privemos alguém de direitos de satisfação de seus desejos.

Essa sempre foi uma atitude questionada por quem defende a fórmula platônico-religiosa de

ver a moral e o ser humano. O título proposta à conferência por Rorty explicita bem a sua reação a

este fato: “Espiritualidade e Secularismo” deixa clara a intenção de que a busca de Rorty é também

por formas de espiritualidade que não sejam ligadas necessariamente à religião, a uma forma

universal de ver as coisas. Aqui em comum com André Comte-Sponville2, Rorty quer uma forma de

espiritualidade possível sem o crivo religioso. A proposta rortyana é a de uma espiritualidade que

busque progresso no âmbito horizontal e não para uma ascensão vertical proposta por

fundamentalistas.

É preciso saber que para Rorty relações religiosas, místicas, poéticas e filosóficas, como

postas neste texto, são produtos da imaginação humana (criação humana) e que estas são partes

importantes para o progresso humano no campo moral e intelectual. O homem produz pela

imaginação linguagens novas que o auxiliam a crescer e a melhorar a sua vida e a de quem o

circunda. Enquanto exercendo este papel todo ser humano contribui para o progresso moral e

diminui as distâncias que as segregações preconceituosas e baseadas numa ótica petrificada da razão

ou de uma verdade exterior à história e ao tempo proporcionam.

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Por que uma ética laica? Porque somente uma ética laica permite que falemos numa realidade

mais democrática e menos desigual e mantém como valores a serem seguidos apenas a solidariedade

e o respeito como ideais possíveis e não um amor incondicional ao próximo apenas possível em

discursos. E esta mesma ética laica permite a sobrevivência de duas coisas numa sociedade: 1. A

presença de diversas formas de expressão e linguagens incluindo a própria concepção religiosa, pois

não poderemos escolher em definitivo que caminho seguir sem que levemos em conta os desejos

locais e acentuados historicamente que queremos realizar. 2. Que a partir desta pensemos o ser

humano incluindo homens, mulheres, heterossexuais e homossexuais, ricos e pobres sem que

precisemos até destes pares descritos e vendo simplesmente como seres humanos dispostos a buscar

algo que é comum a todos: a busca da felicidade possível a partir da realização de seus desejos.

Remeter este texto, como numa carta, à sociedade religiosa brasileira é a minha singela

indicação de que somente quando buscarmos este entrelaçamento de diversas formas de discurso,

diversos discursos, é que poderemos falar em progresso em nossa realidade. A própria concepção de

ética que temos seria mais ligada ao homem e não a um fundamento platônico extratemporal e

suprasensível, mas a uma realidade tangível e na qual estamos sempre. Uma ética para laicos não

significa que todos o sejam, mas que a ética se coloque como dentro das questões humanas e não na

sua suposta neutralidade anterior e a intenção rortyana em defender este tipo de reflexão ética seria

algo a ser melhor visto em nossos dias.

NOTAS:1- Mestrando em filosofia no programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de

Pernambuco – UFPE

2- COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2009. Neste texto Comte-Sponville defende a visão de uma noção de “comunidade”, necessária a uma sociedade que queira se manter, independente de uma religião. A noção de comunidade seria o cimento que uniria diferentes formas de ver o mundo diante de uma única sociedade possível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCOMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2009

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia

Norte-americanaAno II, número 2, 2010

ISSN: 1984-7157

Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro

www.gtdepragmatismo.com

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