Revista Saúde Em Debate_Saúde Mental_ v.32_n 78-79-80_jan_ Dez_2008
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. 20
08Cebes
ISSN 0103-1104
-
Centro Brasileiro de estudos de sade (CeBes)
DIREO NACIONAL (GESTO 2006-2009)
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)
Diretoria Executiva
Presidente Sonia Fleury (RJ)
1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)
2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)
3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)
4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)
1O Suplente Francisco Braga (RJ)
2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)
Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP)
Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ)
CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL
quilas Mendes (SP)
Jos da Rocha Carvalheiro (RJ)
Assis Mafort (DF)
Sonia Ferraz (DF)
Maura Pacheco (RJ)
Gilson Cantarino (RJ)
Cornelis Van Stralen (MG)
CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL
Sarah Escorel (RJ)
Odorico M. Andrade (CE)
Lucio Botelho (SC)
Antonio Ivo de Carvalho (RJ)
Roberto Medronho (RJ)
Jos Francisco da Silva (MG)
Luiz Galvo (WDC)
Andr Mdici (DF)
Jandira Feghali (RJ)
Jos Moroni (DF)
Ary Carvalho de Miranda (RJ)
Julio Muller (MT)
Silvio Fernandes da Silva (PR)
Sebastio Loureiro (BA)
SECRETARIA / SECRETARIES
Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves
A Revista Sade em Debate associada Associao Brasileirade Editores Cientficos
sade em deBate
A revista Sade em Debate uma publicao quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Sade
EDITOR CIENTFICO / CIENTIFIC EDITOR
Paulo Amarante (RJ)
CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL
Jairnilson Paim (BA)
Gasto Wagner Campos (SP)
Ligia Giovanella (RJ)
Edmundo Gallo (DF)
Francisco Campos (MG)
Paulo Buss (RJ)
Eleonor Conill (SC)
Emerson Merhy (SP)
Naomar de Almeida Filho (BA)
Jos Carlos Braga (SP)
EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR
Marlia Correia
INDExAO / INDExATION
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Cin- cias da Sade (LILACS)
Os artigos sobre Histria da Sade esto indexados pela Base HISA Base Bibliogrfica em Histria da Sade Pblica na Amrica Latina e Caribe
ENDEREO PARA CORRESPONDNCIA
Avenida Brasil, 4036 sala 802 Manguinhos21040-361 Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]
Apoio
REVISO DE TExTO,CAPA, DIAGRAMAO E EDITORAO ELETRNICA
Zeppelini Editorial
IMPRESSO E ACABAMENTO
Corb Editora Artes Grficas
TIRAGEM
2.000 exemplares
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.
Capa em papel carto supremo 250 gr
Miolo em papel kromma silk 80 gr
PROOFREADINGCOVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING
Zeppelini Editorial
PRINT AND FINISH
Corb Editora Artes Grficas
NUMBER OF COPIES
2,000 copies
This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.
Cover in premium card 250 gr
Core in kromma silk 80 gr
Sade em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Sade, Centro Brasileiro de Estudos de Sade, CEBES v.1 (out./nov./dez. 1976) So Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Sade, CEBES, 2008.
v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104
1. Sade Pblica, Peridico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Sade, CEBES
CDD 362.1
-
Rio de Janeiro v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008
RGO OFICIAL DO CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Sade
ISSN 0103-1104
-
EdItorIal / EDITORIAL
aPrESENtao / PRESENTATION
artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES
Ensaioreforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir
do materialismo dialticoPsychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination
based on the dialectical materialismAlice Hirdes
REvisoPsicologia e Sade Mental: trs momentos de uma histria
Psychology and Mental Health: three moments of a historyJoo Leite Ferreira Neto
Ensaioa Estratgia ateno Psicossocial: desafio na prtica dos novos
dispositivos de Sade MentalEaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health
Silvio Yasui, Abilio Costa-Rosa
Ensaioalgumas reflexes sobre as bases conceituais da Sade Mental e a
formao do profissional de Sade Mental no contexto da promoo da sade
Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion
Walter Ferreira de Oliveira
EnsaioBreve histria da reforma Psiquitrica para uma melhor
compreenso da questo atualBrief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the
current debateRichard Couto, Sonia Alberti
REvisoSade do trabalhador de Sade Mental: uma reviso dos estudos
brasileirosThe health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific
literatureTatiana Ramminger
Ensaioa Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosrio arte
ContemporneaThe Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosrio Arte
contemporneaRicardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino
EnsaioSade Mental e cultura: que cultura?
Mental Health and culture: what culture?Alexandre Simes Ribeiro
Ensaioa dimenso sociocultural da reforma Psiquitrica e a Companhia
Experimental Mu...danaThe socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia
Experimental Mu...danaMyrna Coelho
PEsquisaa ao territorial do Centro de ateno Psicossocial em sua natureza
substitutivaThe territorial action of the centro de Ateno Psicossocial as indicator
of its substitutive natureRenata Martins Quintas, Paulo Amarante
RElato dE ExPERinciagrupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em Sade Mental para alm do sintomagroup of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptomsMilena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann
PEsquisaPanorama do tratamento dos usurios de drogas no rio de JaneiroAn overview of treatment service for drug-addicts in Rio de JaneiroMagda Vaissman, Marise Rama, Artemis Soares Viot Serra
PEsquisaHomens-carrapatos e suas mulheres: relato de experincia em Sade Mental na Estratgia Sade da FamliaTick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health StrategyIonara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares
EnsaioSade Mental e ateno Bsica Sade: o apoio matricial na construo de uma rede multicntricaMental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric netMariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos
PEsquisaa crise na rede: o SaMU no contexto da reforma PsiquitricaThe crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform contextKatita Jardim, Magda Dimenstein
RElato dE ExPERinciaa construo de um servio de base territorial: a experincia do Centro Psiquitrico rio de JaneiroThe construction of a territorial base service: the experience of the centro Psiquitrico Rio de JaneiroAlexandre Keusen, Andra da Luz Carvalho
RElato dE ExPERinciaarticulando planejamento e contratos de gesto na organizao de servios substitutivos de Sade Mental: experincia do SUS em Belo HorizonteLinking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas geraisSerafim Barbosa Santos-Filho
doCUMENtoS HIStrICoS / HISTORIcAL DOcUMENTS
Sade Mental: condies de assistncia ao doente mentalComisso de Sade Mental dos Cebes
artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES
Ensaioa crise de dominao no sistema pblico de sadeThe domination crisis in the Brazilian public health systemArlene Laurenti Monterrosa Ayala
EnsaioFranois dagognet, por uma nova filosofia da doenaFranois Dagognet, for a new philosophy of diseaseSabira de Alencar Czermak
artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE
EnsaioModelo de salud colombiano: exportable, en funcin de los intereses de mercadocolombian health model: exportable, depending on the interest of the marketMauricio Torres Tovar
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S U M R I O SUMMARY
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008
EdItorIal 3
ambiciosa e revolucionria, a declarao de alma-ata completou 30 anos sem que seus objetivos fossem totalmente concretizados. o Centro Brasileiro
de Estudos de Sade (cEbEs) dava seus primeiros passos
quando, em setembro de 1978, a organizao Mundial
da Sade (oMS) e o Fundo das Naes Unidas para a
Infncia (unicEf) reuniram no Cazaquisto os represen-
tantes de 137 pases que ungiriam a meta de acesso
sade digna por todos, no mais tardar at o ano 2000.
a promessa era desenvolver aes urgentes baseadas
na participao social e na promoo da ateno bsica
sade. o apelo maior era em relao necessidade
de uma ordem econmica mundial mais justa e mais
solidria.
a essncia da alma-ata foi perdida, pois os resul-
tados sanitrios nunca foram to desiguais no mundo,
assim como nunca foi to precrio e injusto o acesso
sade. Hoje, de mais de 40 anos a diferena na
expectativa de vida entre as naes mais pobres e as
mais ricas. os gastos pblicos com a sade nesses pa-
ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dlares por
pessoa e por ano. Muitos governos deram respostas
inadequadas em relao a esse setor, alm de terem sido
incapazes de antecipar os problemas e impotentes na
busca de solues.
Em ano de efemrides 20 anos de Sistema nico
de Sade (SUS), 30 anos de alma-ata, 60 anos da de-
clarao Universal dos direitos Humanos o Brasil tem
bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na
tentativa de melhoria da sade de seu povo. o relatrio
anual da oMS de 2008 voltou a recomendar a adoo da
ateno primria sade em todos os pases e destacou
o Brasil como exemplo. os avanos na construo da
poltica nacional de Sade Mental, um dos temas desta
Sade em Debate, representam bem essa conquista.
Mesmo nesse Brasil de tantos avanos no con-
sensual o lugar da ateno primria sade, tampouco
so uniformes as abordagens em sua implementao.
Vista por alguns gestores como programa seletivo que
oferta uma cesta restrita de servios e por outros,
meramente como um dos nveis de ateno sade,
ainda no foi viabilizada em sua concepo descentra-
lizada, mais abrangente e integral. Estratgica porta de
entrada do sistema, a ateno primria tem um papel
preponderante no processo de implementao do novo
modelo assistencial do SUS, desde que superadas a
superposio de redes de assistncia, a falta de unifor-
midade na execuo do Programa Sade da Famlia
(PSF), as desigualdades no acesso e na utilizao dos
servios, a pouca valorizao e formao inadequada dos
profissionais, a focalizao e seletividade de ofertas do
pronto-atendimento mnimo incluem-se nesse tpico
as assistncias Mdicas ambulatoriais (aMa) na cidade
de So Paulo e as Unidades de Pronto-atendimento
(UPa) no municpio do rio de Janeiro, alimentadas,
na verdade, pelo marketing eleitoral.
desde que proposta a re-fundao do cEbEs, tem-se
voltado muito a ateno para a necessidade de retomada
do esprito crtico, do debate propositivo que deu origem
ao projeto da reforma Sanitria brasileira. No se trata
de insistir na ressurreio da reforma em si, mas de reco-
nhecer o seu grande xito na construo do SUS.
da mesma forma, no se trata de reinventar o
passado, mas de manter o clima dos movimentos que
se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,
capazes de exercitar a crtica, de reconhecer as deficin-
cias, de reorientar os compromissos institucionais e de
radicalizar a democracia.
a dIrEtorIa NaCIoNal
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008
EDITORIAL4
ambitious and revolutionary, the alma-ata decla-ration has completed 30 years, without the total fulfillment of its objectives. the Centro Brasileiro de
Estudos de Sade (cEbEs) was taking its first steps when,
in September, 1978, the World Health organization
(WHo) and the United Nations Childrens Fund (uni-
cEf) brought together in Kazakhstan 137 representatives
of countries that would reach the goal of providing access
to a deserving health for all, until 2000, at the latest.
the promise was to develop urgent actions based on
social participation and on the promotion of basic atten-
tion to health. the greatest plea was related to the need
for a fairer and more solidary economic world order.
the essence of the alma-ata was lost, because the
sanitary results have never been so unequal in the world,
as well as the access to health, which has never been so
precarious and unfair. Nowadays, the difference of life
expectation rates between the poorest and the richest
nations is of more than 40 years. Public expenses with
health in these countries vary, respectively, from 20 to
6 thousand dollars per person and per year. Many go-
vernments have given inadequate answers regarding this
sector, and have also been incapable of anticipating the
problems and impotent in the search for solutions.
on an ephemerides year 20 years of National
Health System (SUS), 30 years of alma-ata, 60 years of
the Universal declaration of Human rights Brazil has
good reasons to be proud of the work accomplished in
the attempt to improve peoples health. the World Health
report 2008 has once again recommended the adoption
of primary attention to health in all countries, and poin-
ted Brazil as an example. the advances in constructing a
Mental Health national policy, one of the subjects of this
Sade em Debate, clearly represent this achievement.
Even in Brazil, with so many advances, the placing
of primary attention to health is not consensual, and nei-
ther are uniform the approaches in its implementation.
Considered by many managers as a selective program
that offers a restricted basket of services and, by others,
as merely one of the levels of attention to health, it hasnt
been made possible in its decentralized concept, more
extensive and complete. as a strategic front door of the
system, primary attention plays a preponderant role
in the process of implementing a new SUS assistance
model, as long as some issues can be overcome, such
as the superposition of assistance networks, the lack
of uniformity to execute the Family Health Program
(PSF), the inequalities to access and to use the services,
the little importance given to professionals and their
inadequate qualification, the focalization and selectivity
of minimum emergency room offers in this topic are
included the ambulatory Medical Care (aMa), in So
Paulo, and the Emergency rooms (UPa), in rio de
Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.
Since the proposal of re-founding cEbEs, there has
been a lot of attention into the need to retake the critical
spirit, the preposition debate that originated the Bra-
zilian Sanitary reform project. It is not about insisting
on the resurrection of the reform itself, but recognizing
its great success in constructing SUS.
also, it is not about reinventing the past, but
keeping the atmosphere of the movements that were
organized around collective ideas and projects, which
were able to exercise the criticism, recognize deficien-
cies, reorient institutional commitments and radicalize
democracy.
THE NATIONAL DIREcTORATE
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
aPrESENtao 5
Esta revista surge num momento muito especial, afinal, comemoram-se os 30 anos da reforma Psi-quitrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos
uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um
hospital psiquitrico. o objetivo desta imagem provo-
cativa demarcar a distncia histrica, tica e poltica
entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenrio atual
de participao dos usurios na construo da poltica,
servios e estratgias em Sade Mental.
No incio deste ano, em meio s comemoraes dos
30 anos de reforma, foi realizado, no rio de Janeiro,
o II Frum Internacional de Sade Coletiva, Sade
Mental e direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas,
militantes das mais diversas reas da sade e dos direi-
tos humanos, participaram desse Frum debatendo e
construindo um novo cenrio para a Sade Mental no
Brasil e em vrias partes do mundo.
Para encerrar o ano com chave de ouro, lanamos
este nmero especialmente dedicado ao tema da Sade
Mental, no I Congresso Brasileiro de Sade Mental,
organizado pela recm-criada associao Brasileira de
Sade Mental (abRasmE).
H um consenso na rea da sade coletiva sobre a
importante contribuio que o campo da Sade Mental
tem trazido para a sade de forma geral, problematizan-
do a relao instituio-usurio e de institucionalizao,
destacando a importncia do trabalho e do envolvimento
da famlia, bem como a importncia do trabalho no
territrio. Enfim, so muitas, e reconhecidas, as contri-
buies. Sabemos que uma revista sobre Sade Mental
no ser consultada apenas por profissionais da rea,
mas de toda a sade pblica.
a revista iniciada com uma srie de artigos de
natureza conceitual. aqui se incluem os artigos de
alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquitrica
e da reabilitao psicossocial a partir do materialis-
mo dialtico, de Joo leite Ferreira Neto, com uma
anlise histria de trs momentos da psicologia em
Belo Horizonte, de Silvio Yasui e abilio Costa-rosa,
que discorrem sobre a estratgia e os desafios do novo
modelo de ateno psicossocial, de Walter oliveira
que aborda as bases conceituais da Sade Mental
e sua relao com a formao dos profissionais no
contexto da promoo da sade. o artigo de richard
Couto e Sonia alberti apresenta um histrico sobre
o conceito de reforma Psiquitrica e a tenso entre
clnica e ateno psicossocial e, para finalizar a srie,
uma importante reviso de estudos brasileiros sobre
Sade Mental do trabalhador, de autoria de tatiana
ramminger.
a interveno no campo da cultura tem assumido
um papel importante no processo da reforma Psiqui-
trica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos
dedicado relao entre cultura e Sade Mental.
o texto de ricardo aquino trata dos fundamentos e
princpios da Escola livre de artes Visuais do Museu
Bispo do rosrio de arte Contempornea. alexandre
ribeiro aborda as articulaes entre Sade Mental
e cultura e Myrna Coelho tece comentrios sobre a
dimenso sociocultural da reforma Psiquitrica a
partir das experincias vivenciadas na companhia
Experimental Mu...dana.
os Centros de ateno Psicossocial (caPs), dispo-
sitivos estratgicos da poltica pblica de Sade Mental
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
aPrESENtao6
brasileira, so objetos de pesquisa no artigo de renata
Quintas e Paulo amarante que discorrem sobre as
caractersticas inovadoras e substitutivas de tais dispo-
sitivos. o artigo de autoria de Milena leal Pacheco e
luiz Zielgman traz algumas reflexes sobre a terapia em
grupo em um caPs especializado em dependncia qu-
mica; contemplamos, ainda, uma anlise do tratamento
dos usurios de drogas no rio de Janeiro no texto de
Magda Vaissman et al.
outro tema importante diz respeito s relaes e
possibilidades entre a rea da Sade Mental e a Sade
da Famlia que, de formas distintas, est presente nas
abordagens dos artigos de Ionara rabelo e rosana
Carneiro tavares, atravs dos resultados de uma in-
terveno psicossocial em mulheres que faziam uso de
ansiolticos, e de Mariana dorsa Figueiredo e rosana
onocko Campos, que traz algumas observaes acerca
do apoio matricial Sade Mental na ateno bsica
sade.
a ateno aos usurios em crise um dos aspectos
mais srios e que coloca em xeque todo o processo da
reforma Psiquitrica. trs artigos so dedicados a esse
tema: o de Katita Jardim e Magda dimenstein, que traz
um anlise das prticas do Servio de atendimento M-
vel de Urgncia (samu) em aracaju e suas articulaes
com a rede de ateno psicossocial; o artigo de alexandre
Keusen e andra da luz Carvalho relata a trajetria de
um centro de ateno em Sade Mental que atende
crise e se baseia na lgica do trabalho territorial. Serafim
Santos-Filho aborda a rica experincia de planejamento
e gesto da rede de servios de sade e Sade Mental
em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos
para os gestores.
Na seo de documentos Histricos, republicamos
uma das primeiras manifestaes polticas do processo
de reforma Psiquitrica no Brasil, um marco da pro-
duo crtica em Sade Mental no pas. trata-se de um
documento elaborado pelo Comisso de Sade Mental
do cEbEs, intitulado condies de assistncia ao doente
mental que, trazendo uma anlise bastante precisa das
caractersticas de desassistncia e violncia institucional
do modelo psiquitrico de ento, foi apresentado no
I Simpsio de Polticas de Sade da Cmara dos de-
putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpsio,
o cEbEs apresentou sociedade brasileira a proposta
do Sistema nico de Sade (SUS) a partir do histrico
texto A questo democrtica na rea da sade. a capa da
presente edio traz uma das ilustraes desse texto.
temos uma pauta bastante ampla e variada, que
caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimenso
do campo da Sade Mental.
Na seo de temas gerais, publicamos os artigos de
arlene laurenti ayala com uma instigante anlise sobre a
crise de dominao ou controle das instituies de sade
por parte dos trabalhadores de sade e da populao. o
texto de Sabira de alencar traz as reflexes do filsofo,
mdico e epistemlogo Franois dagognet, o precursor,
a seu modo, da tradio de seu mestre georges Cangui-
lhem. Na seo internacional, Maurcio torres analisa
em seu artigo os aspectos relacionados estrutura, ao
financiamento e funcionamento do modelo de sade
colombiano.
Boa leitura!
Paulo amaRantE
EditoR ciEntfico
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
PRESENTATION 7
this magazine appears at a very special moment, after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric reform in Brazil is commemorated. to celebrate this
date, we have selected a strange cover: a picture of prison
cell bars of a psychiatric hospital. the purpose of this
provocative image is to delimit the historical distance,
ethics and politics between the initial moment, 1978
and 1979, and the current scenery of users participation
in the construction of Mental Health politics, services
and strategies.
In the beginning of this year, during celebrations
for the thirty years of the reform, the 2nd International
Forum about Collective Health, Mental Health and
Human rights took place in rio de Janeiro. More than
3 thousand people, militants in different fields of health
and human rights, have participated in this Forum,
debating and constructing a new scenery for Mental
Health in Brazil and around the world.
to end the year with a cherry on top, we have
released this issue, specially dedicated to the theme of
Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental
Health, organized by the recently created associao
Brasileira de Sade Mental (abRasmE).
there is consensus in the collective health area
about the important contribution brought by the
Mental Health field for health in general, rendering
problematic to the relation institution-user and institu-
tionalization, accentuating the importance of health and
family involvement, as well as the importance of field
work. anyway, there many recognized contributions.
We know that a magazine about Mental Health will
not be consulted only by professionals of the field, but
by the whole public health.
the magazine starts with a series of articles of
conceptual nature. Here are included articles by alice
Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-
social rehabilitation from dialectic materialism; by Joo
leite Ferreita Neto, with historical analysis of three
moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio
Yasui and abilio Costa-rosa, who discourse about the
strategies and challenges of the new model of psychoso-
cial attention; by Walter oliveira, who approaches the
conceptual basis of Mental Health and its relation to
the graduation of professionals in the context of pro-
moting health. the article by richard Couto and Sonia
alberti presents the history of the Psychiatric reform
concept and the tension between clinic and psychosocial
attention and, to end the series, an important review of
Brazilian studies about Mental Health of workers, by
tatiana ramminger.
the intervention in the culture field has been
assuming an important role in the process of the Bra-
zilian Psychiatric reform and, because of that, another
block of articles is dedicated to the relation between
culture and Mental Health. a text by ricardo aquino
about the fundamentals and principles of the Escola
livre de artes Visuais from the Museu Bispo do ro-
srio de arte Contempornea is presented. alexandre
ribeiro approaches the articulations between Mental
Health and culture and Myrna Coelho comments on
the sociocultural dimension of the Psychiatric reform
from experiences seen in the dancing group companhia
Experimental Mudana.
the Psychosocial Care Centers (the so called caPs
in Brazil), strategic devices from the public policy of
Brazilian Mental Health, are objects of research in the
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
PRESENTATION8
article by renata Quintas and Paulo amarante, who
discourse about the innovative and substitutive charac-
teristics of these institutions. the article by Milena leal
Pacheco and luiz Zielgman brings subjects to reflect
about group therapy at a caPs that is specialized in
chemical dependence; we also contemplate an analysis
of drug users` treatment in rio de Janeiro, in the text
by Magda Vaissman et al.
other important theme argues about the relations
and possibilities between the field of Mental Health and
Family Health that, in distinct ways, is present in the
analysis of articles by Ionara rabelo and rosana Carnei-
ro tavares, through results of a psychosocial intervention
in women who were on anxiolytics, and by Mariana
dorsa Figueiredo and rosana onocko Campos, that
brings some observations about matricial support to
Mental Health in the primary health care.
the attention to users in crisis is one of the most
serious aspects and jeopardizes the whole process of the
Psychiatric reform. three articles are dedicated to this
subject: the one by Katita Jardim and Magda dimens-
tein, which brings an analysis of practices of the Mobile
Urgency Service (the so called samu in Brazil) in aracaju
and its articulations with the net of psychosocial atten-
tion; the article by alexandre Keusen and andra da luz
Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care
Center that attends to the crisis and is based on the logic
of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the
rich experience in planning and managing the net of
services of health and Mental Health in Belo Horizonte,
pointing out important directions for managers.
In the section of Historical documents, we have
republished one of the first political manifestations on
the process of Psychiatric reform in Brazil, a mark of
critical production on Mental Health in the country. It
is a document developed by the Mental Health Com-
mittee of cEbEs, entitled condies de assistncia ao
doente mental, that, by bringing a very precise analysis
of the characteristics of unassistance and institutional
violence of the early psychiatric model, was presented
at the 1st Symposium of Health Policies in the deputys
in october, 1979. In this symposium, cEbEs presented
to the Brazilian society the proposal of the Unified
National Health System (the so called SUS in Brazil)
from the historical text A questo democrtica na rea da
sade. the cover of the present edition has one of the
illustrations of this text.
the subjects are very broad and varied, which cha-
racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension
of the Mental Health field.
In the general themes section, we have published
the articles by arlene laurenti ayala with a provoking
analysis about the domination crisis or the control of the
health institutions by the health workers and the popu-
lation. the text by Sabira de alencar brings reflections
of the philosopher, doctor and epistemologist Franois
dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition
of his master georges Canguilhem. In the international
section, Maurcio torres analyzes the aspects related to
the structure, financing and functioning of the Colom-
bian health model.
Enjoy your reading!
Paulo amaRantE
sciEntific EditoR
-
Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 9
reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial:
uma leitura a partir do materialismo dialticoPsychiatric Reform and psychosocial rehabilitation:
an examination based on the dialectical materialism
RESUMO Este estudo traz uma reflexo terica acerca da utilizao do referencial
terico metodolgico do materialismo dialtico como suporte para interpretao
e discusso do processo de Reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial no
contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialtica e a dialtica do
concreto como substrato terico para analisar os movimentos que se desenvolveram
historicamente no campo da Sade Mental e assim como na rea da reabilitao
psicossocial.
PALAVRAS-CHAVE: Sade Mental; Servios de Sade Mental;
Desinstitucionalizao; Marxismo.
ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological
theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss
the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The
laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical
support to the analysis of the movements that have taken place in the field of
mental health as well as in psychosocial rehabilitation.
KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization;
Marxism.
alice Hirdes 1
1 Mestre em Enfermagem pela
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC); docente de Sade Mental
da Universidade luterana do Brasil
(UlbRa).
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
10 HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
I N T R O D U O
Este artigo tem como objetivo realizar uma re-
flexo terica sobre o tema da reforma Psiquitrica
e da reabilitao psicossocial a partir do materialismo
dialtico. recorreu-se a autores como lukcs (1979),
Konder (1981), Kosik (1995) e lefebvre (1991), a fim
de se resgatarem os princpios e leis da dialtica que
sustentam uma interpretao dos fenmenos com base
materialista. Para tais autores, nada que existe eterno,
fixo, absoluto. toda vida humana social e est sujeita
a transformaes, ou seja, est historicamente condi-
cionada. o sujeito humano essencialmente ativo e
interfere na realidade. Para a histria sociolgica (ou
sociologia histrica), os seres humanos no so apenas
objeto de investigao, mas sujeitos em relao ao pro-
cesso investigatrio.
UMA BREVE VISO HISTRICA DO
MATERIALISMO DIALTICO
a lgica dialtica, conforme Minayo (1998),
introduz na compreenso da realidade o princpio
do conflito e da contradio como algo permanente
que explica a transformao (p. 68). outra tese
fundamental da dialtica o carter total da exis-
tncia humana e da ligao indissolvel entre histria
dos fatos econmicos e sociais e histria das idias
(p. 69-70).
a partir do conceito de totalidade, que busca reter
a explicao do particular no geral e vice-versa, ocorre
o processo de pesquisa. o princpio metodolgico da
totalidade significa:
compreender as diferenas numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreenso das conexes orgnicas, isto , do modo de relacionamento entre as vrias instncias da realidade e o processo de constituio da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em anlise, as determinaes essenciais e as condies e efeitos de sua manifestao. (minayo, 1988, p. 70).
ao abordar a dialtica da totalidade concreta, Kosik
(1995) d nfase idia de que esse no um mtodo
que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um
panorama total da realidade, mas uma teoria da realidade
e do conhecimento que se tem dela como realidade.
a partir do entendimento da realidade como concretude
possuidora de uma estrutura prpria que se desenvolvem
concepes da realidade. dessas concepes decorrem
concluses metodolgicas que se convertem em princpios
epistemolgicos para o estudo de temas da realidade ou
de prticas relativas organizao da vida humana e da
situao social. Kosik enfatiza que
a totalidade concreta no um mtodo para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relaes e processos da realidade; a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44).
Pontua, tambm, que totalidade no significa conhe-
cer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um
todo estruturado, dialtico, no qual um fato ou conjunto
de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. o
conhecimento de fatos acumulados da realidade no sig-
nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunio
de determinados fatos no constitui ainda a totalidade.
Se compreendidos como partes estruturais de um todo
dialtico, os fatos so conhecimentos da realidade.
Konder (1981) tambm ressalta a caracterstica
totalizante do conhecimento na dialtica marxista. Essa
teoria decompe o todo em partes para depois recomp-
lo e chegar totalidade. Entretanto, o autor salienta que
tal totalidade no simplesmente a soma das partes do
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
11HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitao de-
senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis-
ciplinar, os conhecimentos se entrelaam e os resultados
obtidos certamente sero mais ricos do que o trabalho
realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta ltima,
o trabalho realizado em equipe, entretanto os saberes e
prticas so executados de forma isolada, estanque, cada
um com um papel fixo, pr-determinado. Isso que dizer
que o resultado dessa interveno ser um, ao passo que
a ocorrncia simultnea de vrias abordagens articuladas
entre si, ser outra.
Este autor chama ateno para o fato de que a apro-
ximao da realidade no a realidade, e que a realidade
sempre mais rica do que o conhecimento que se tem
dela. outra noo diz respeito viso de conjunto da
realidade. Esta viso sempre provisria, pois a reali-
dade no esttica, mas dinmica e em est constante
transformao; no se pode pretender o esgotamento
da realidade de determinado contexto. ou seja, nunca
a realidade alcana uma forma definitiva, acabada.
a dialtica, enquanto conceito grego da arte do
dilogo utilizada cotidianamente pelos profissionais
de Sade Mental nas negociaes com os usurios e seus
familiares, assim como pela interlocuo estabelecida
entre profissionais de equipes interdisciplinares. a dia-
ltica enquanto conceito moderno do modo de pensar
as contradies da realidade e modo de compreender
a realidade em constante transformao nos remete
busca constante de novas formas de abordagem da
complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por
formas mais completas nas quais, atravs da construo
de novas possibilidades, o portador de sofrimento ps-
quico reencontre e reescreva a sua histria.
Por outro lado, dialtica, enquanto modo de pen-
sar as contradies da realidade, a histria humana e a
transformao da sociedade, nos leva a uma permanente
inquietao, porque no se satisfaz com a aparncia
das coisas, est sempre procura de sua essncia. Para
isso necessrio que sejam desveladas as partes, em um
constante caminho traado do concreto ao abstrato
e vice-versa. Mas isso no significa, de modo algum,
deixar de lado a totalidade, a conexo e interligao dos
fenmenos do todo. a complexidade da dialtica se d
pela busca constante da superao, pela no-satisfao
com o j atingido, pela busca por formas mais elevadas
de apreenso da realidade e a explicitao que as contra-
dies da realidade e dos fenmenos encerram.
de acordo com lukcs:
o conhecimento, que est em condies de apreender dialeticamente as astcias da evoluo histrica, s v-lido e eficaz quando suas aquisies forem outros tantos expedientes para a ao prtica, cujas experincias viro, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma fora sempre nova. (1979, p. 237).
Entendo que o conhecimento dever ser passvel de
ser traduzido em uma prtica; prtica essa transforma-
dora e que, se entendida a partir do conceito marxista
de prxis unio da prtica com a teoria pode levar
emancipao do ser humano. Nessa perspectiva, o
estudo de outras formas de tratamento e recuperao
de portadores de transtornos psquicos emerge como
uma fora que se empenha na busca de solues mais
completas e complexas, visualizando a totalidade do
ser humano. Na perspectiva dialtica, a transformao
das idias acerca da realidade e a transformao dessa
realidade devem caminhar juntas.
de acordo com Kosik (1995) o homem no est
emparedado na subjetividade, mas tem com a sua
existncia a capacidade de conhecer as coisas como elas
realmente so. E este conhecimento se d atravs da
prxis. a dialtica, para o autor, trata da totalidade do
mundo revelada pelo homem na histria e o homem
que existe na totalidade do mundo (p. 248).
o princpio metodolgico da investigao dialtica
da realidade social , para o autor anteriormente referido,
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12 HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa
que cada fenmeno pode ser compreendido como um
momento do todo. ressalta-se que um fenmeno social
um fato histrico que desempenha dupla funo: definir
a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser
revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con-
quistar o prprio significado e conferir um sentido a algo
mais. Essa conexo das partes e do todo demonstra que
os fatos isolados so momentos artificiosamente separa-
dos do todo, os quais s adquirem verdade e concretude
quando inseridos no todo correspondente. assim como
o todo, se os momentos no forem separados tornam-se
um todo vazio e abstrato (KosiK, 1995).
Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filsofo
alemo e um dos expoentes do pensamento dialtico, o
trabalho a mola propulsora do desenvolvimento hu-
mano atravs da qual pode ser compreendida a atividade
criadora do ser. Hegel introduziu a concepo de supe-
rao dialtica utilizando a palavra alem aufheben, que
significa suspender. o filsofo emprega trs diferentes
sentidos palavra: o primeiro sentido negar, anular,
cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mant-la
suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a
passagem de alguma coisa para um plano superior. a su-
perao dialtica, para Hegel, a ocorrncia simultnea
da negao de uma determinada realidade, a conservao
do essencial que existe na realidade negada e a elevao
dela a um nvel superior (KondER, 1981).
abstraindo da concepo dialtica a questo
negao-superao para o referencial de reabilitao
psicossocial, trago a negao da realidade assistencial
dos portadores de transtornos mentais centrado no
modelo do dano, nos dficits, assim como o resgate
e a centralizao do foco nas habilidades e a busca do
trabalho para se atingirem os objetivos de reinsero
social, cidadania e qualidade de vida. ou seja, nega-se
a primeira realidade, a centralizao do foco nos sinais
e sintomas; em suma, na doena resgata-se e centraliza-
se a ateno nos aspectos sadios e concomitantemente
busca-se melhorar a vida do ser humano portador de
transtornos psquicos atravs de prticas de reabilitao
psicossocial.
aos novos servios dever corresponder uma clnica
renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual
simultnea ou seqencialmente, sejam desenvolvidos
projetos teraputicos que contemplem as necessidades
psicossociais das pessoas envolvidas. Isto o que poder
efetivamente trazer uma pessoa a ser cidad. Importante
se faz pontuar que os projetos no podem ser modelos
construdos a partir dos profissionais; devem ser cons-
trudos coletivamente com os maiores interessados: os
usurios.
PRINCIPAIS LEIS
Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-
to dialtico de Hegel ser considerado abstrato, vago,
idealista, Marx e Engels reescreveram a dialtica dentro
de uma perspectiva materialista. as trs leis da dialtica
formuladas por Engels com base em Hegel so: lei da
passagem da quantidade qualidade (e vice-versa); lei
da unidade e luta dos contrrios e lei da negao da
negao.
alguns autores contemporneos como lefebvre
e Konder entendem que as leis da dialtica no se
deixam reduzir a trs. Esse reducionismo, na viso
de Konder (1981), arbitrrio, mas isso no significa
que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com
precauo. lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis
do mtodo dialtico devero ser universais e concre-
tas. Para este autor o mtodo representa o universal
concreto. E estas leis devero ser, ao mesmo tempo,
leis do real e do pensamento. devero ser concretas
para atingir toda a realidade, mas no podem subs-
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
13HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
tituir a investigao e o contato com o contedo.
atravs da investigao das realidades particulares,
da experincia e do contato com o contedo pode-se
chegar essncia, ao conceito e s relaes das leis
particulares. o autor ressalta:
o mtodo alternadamente a expresso das leis uni-versais e o quadro de aplicao delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237).
as grandes leis do mtodo dialtico para lefebvre
so: lei da interao universal (da conexo, da media-
o recproca de tudo que existe); lei do movimento
universal; lei da unidade dos contrrios; transformao
da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de-
senvolvimento em espiral (da superao).
a lei da interao universal prev que nada
isolado. o isolamento dos fatos e fenmenos significa
uma privao de sentido, de explicao, de contedo.
a pesquisa dialtica considera cada fenmeno no
conjunto da inter-relao com os demais fenmenos
e, tambm, o conjunto da realidade na qual ele
fenmeno.
Essa lei estabelece uma conexo importante dos
processos de institucionalizao/ desinstitucionalizao
e da discusso da reabilitao psicossocial. Sem o enten-
dimento anterior sobre a conformao do instituciona-
lismo em psiquiatria e dos saberes e prticas que durante
dcadas legitimaram essa especialidade, no haver o
entendimento ulterior da reabilitao psicossocial em
sua totalidade. a reabilitao psicossocial nasceu de
um conjunto de situaes: a diminuio dos pacientes
internados em hospitais psiquitricos a partir dos anos
1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes
ainda hospitalizados e a evoluo dos conhecimentos
psiquitricos (saRacEno, 1999). dessa forma, a rea-
bilitao psicossocial no pode ser tratada como um
fenmeno isolado.
E esta lei encontra-se atrelada lei do movimento
universal, que reintegra o movimento interno dos fatos
e fenmenos e o movimento externo, que os envolve no
devir e vir-a-ser universal. a pesquisa dialtica considera
cada fenmeno no conjunto de suas relaes com os
demais fenmenos e com a realidade. Nessa lei, compre-
endemos a reintegrao dos fenmenos institucionali-
zao/desinstitucionalizao/reabilitao psicossocial em
seu movimento prprio. atravs do movimento destes
fenmenos se estabelece o entendimento essencial e a
conexo entre eles.
a lei da unidade (interpretao) dos contrrios nos
fornece a idia de que a contradio dialtica uma
incluso concreta dos contraditrios um no outro e,
simultaneamente, uma excluso ativa. diferentemente
da lgica formal que conserva os dois contraditrios
margem um do outro, que estabelece uma relao de
excluso. a contradio dialtica se situa no universal
concreto, enquanto a contradio formal permanece na
generalidade abstrata.
O mtodo dialtico busca captar a ligao, a unidade, o movimento que engendra os contraditrios, que os ope, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (lEfEbvRE, 1991, p. 238).
Nessa lei, situo a institucionalizao e a desins-
titucionalizao em psiquiatria (intrinsecamente
contraditrias), como dois lados opostos um ao
outro, mas com uma unidade em comum: o foco na
abordagem da doena mental. Conforme o contexto,
prevalecer um ou outro a institucionalizao ou
a desinstitucionalizao. as idias contidas em um
e em outro modelo entram em choque na realidade
concreta atravs das prticas executadas. a realidade
da desinstitucionalizao no pode ser compreendida
sem o prvio entendimento da institucionalizao,
assim como a conexo estabelecida com a reabilitao
psicossocial.
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
14 HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
as modificaes quantitativas, lentas e graduais
desembocam em uma modificao qualitativa que apre-
senta caractersticas bruscas, tumultuosas, expressam a
crise e a metamorfose atravs da intensificao de todas
as contradies. a transformao da quantidade em
qualidade, tambm chamada lei dos saltos. o salto
dialtico implica, simultaneamente, a continuidade e a
descontinuidade. ou seja, o movimento que continua
e o aparecimento do novo.
trago, nesta lei, as mudanas ocorridas com o
processo de desinstitucionalizao identificadas em
alguns lugares do mundo a partir da dcada de 1960 e
no Brasil mais tardiamente, aps a redemocratizao. as
transformaes polticas, a redemocratizao no pas, a
Constituio de 1988, a luta pelos direitos humanos e
o Movimento pela reforma Sanitria desembocaram
em um movimento pela reforma Psiquitrica no Bra-
sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram
mudanas bruscas, o salto dialtico, atravs das de-
nncias expostas opinio pblica e o surgimento de
novas experincias em Sade Mental, com caractersticas
desinstitucionalizantes. observa-se como caracterstica
do salto dialtico a continuidade, ou seja, o hospital
psiquitrico como realidade ainda presente, os saberes
e prticas hegemnicos de excluso e segregao ainda
no superados; e a descontinuidade, que compreende
o aparecimento de novos servios respaldados pelas
iniciativas das polticas pblicas de Sade Mental.
Uma caracterstica da lei se refere ao fato de as coisas
no mudarem sempre no mesmo ritmo. transpondo
para a questo da reforma Psiquitrica, foi possvel
observar, nas ltimas dcadas, alguns perodos em que se
intensificaram as discusses e o surgimento de novos ser-
vios, assim como perodos em que houve uma desace-
lerao do processo. Historicamente, podemos situar as
dcadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas
discusses pela reestruturao da assistncia psiquitrica
no pas. Em 1987, ocorreu a 1a Conferncia Nacional de
Sade Mental; em 1990, realizou-se a Conferncia para
a reestruturao da ateno Psiquitrica, em Caracas,
que resultou na Declarao de caracas. Finalmente, em
1992, aconteceu a 2 Conferncia Nacional de Sade
Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere
s conferncias e legislao (porque os servios conti-
nuaram sendo constitudos) at a aprovao, em abril
de 2001, da lei de reforma Psiquitrica. Em 2001, Foi
estabelecido um novo frum de discusses por meio da
3 Conferncia Nacional de Sade Mental.
a lei do desenvolvimento em espiral defende que
h um salto dialtico entre a vida e a matria sem vida,
e no uma descontinuidade absoluta. H uma unidade
sempre renovada entre o individual e o universal, que
submete esse individual s leis universais. na sociedade
e no pensamento que se revela o movimento em espiral:
o retorno acima do esperado, para aprofund-lo e elev-
lo em nvel, libertando-o de seus limites. a contradio
dialtica da negao da negao.
APLICAO DO MATERIALISMO
DIALTICO NA REFORMA PSIQUITRICA E
REABILITAO
Considero esta lei fundamental para a compreenso
das mudanas e movimentos que o processo de reforma
Psiquitrica encerra, pois ela contempla os refinamentos
conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-
renciao entre tratamento e reabilitao, o enfoque do
trabalho teraputico sobre os aspectos da histria de vida
das pessoas portadoras de sofrimento psquico. No mo-
delo tradicional biomdico, centraliza-se no diagnstico,
nos sinais e sintomas, nos dficits. atravs da modificao
da centralizao do trabalho teraputico, no no modelo
da doena, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,
permitiu-se aprofundar a questo do sofrimento psquico,
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
15HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o
usurio/paciente e o profissional desses limites. ocorre a
um salto dialtico e no uma descontinuidade absoluta, j
que o tratamento continua a ser realizado, mas associado
com tcnicas de reabilitao psicossocial. a partir da
unio tratamento-reabilitao psicossocial a compreenso
do indivduo portador de transtorno psquico torna-se
aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais
completas. a lei da negao da negao promove refina-
mentos que so introduzidos aos poucos como estratgia
para se promover a superao dialtica.
dentro de uma perspectiva mais ampla, de to-
talidade, considera-se de fundamental importncia o
diagnstico de vida de uma pessoa e o conseqente
estabelecimento de um projeto teraputico a partir do
contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi-
cientemente flexvel para que incorpore mudanas e d
margem a possveis redimensionamentos. ressalta-se
a necessidade de leitura do contexto dentro de uma
mudana de ptica: comumente, tal leitura realizada
em cima dos dficits, dos aspectos negativos. Sublinhar
as foras e os aspectos sadios constitui uma transio
importante no processo de tratamento e reabilitao,
assim como a noo de indissociabilidade de ambos.
lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialticas
constituem uma anlise do movimento e no movimento
real esto implicadas a continuidade e a descontinui-
dade, o aparecimento e choque de contradies, saltos
qualitativos e superao. Encontram-se a os aspectos
do movimento. as leis dialticas pressupem uma uni-
dade fundamental, que encontrada no movimento,
no devir universal. o que ocorre, segundo o autor, a
nfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de
estudo realizado.
a partir desta constatao, utilizo como referncia
para o processo analtico neste estudo a lei do desenvolvi-
mento em espiral, representado pela negao superao
dialtica. Muitos avanos ocorreram com as experincias
de desinstitucionalizao. Entretanto, penso que, a des-
peito de muitos servios que trabalham sob a gide da
reforma Psiquitrica em nosso pas, h a necessidade de
constantemente redimensionarmos o olhar para as prticas
em curso para que aos novos servios correspondam as
balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial
da reforma Psiquitrica italiana. Sabe-se que os projetos
de reforma no so homogneos, pois as prticas so exe-
cutadas conforme a concepo terica dos profissionais
da rea. dessa forma, possvel visualizar a existncia de
princpios orientadores gerais, mas que em ltima anlise
esto subordinados aos settings especficos das prticas.
atravs da negao da negao, ou seja, a negao de uma
determinada realidade centrada na excluso (na doena)
para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,
na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento
psquico, dever prevalecer a superao dialtica.
os servios se constituem, para Saraceno (1999),
como a varivel que influi no processo reabilitativo.
o autor assinala como caracterstica de um servio de
alta qualidade a capacidade do servio em se ocupar de
todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de
reabilitao. Saraceno pontua, ainda, que os servios
que no oferecem essas possibilidades acabam gerando
hierarquias de interveno, e os menos dotados so
excludos do processo. o autor ressalta que um servio
de alta qualidade dever ser permevel e dinmico, com
alta integrao interna e externa:
[...] um servio onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separao dos mesmos e em que a organizao est orientada s necessidades do paciente e no s do servio.(1999, p. 96-97).
a integrao interna e externa tambm dever
acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-
to e a reabilitao psicossocial. Essa integrao se far
possvel e concreta se os profissionais visualizarem a
importncia da no-dissociao e assumirem ambos,
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16 HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
o tratamento e a reabilitao. a idia contida nessa
proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas
vezes no cotidiano dos servios: o tratamento execu-
tado por uns e a reabilitao, por outros. ou seja, h
a necessidade de no-separao do trabalho manual do
intelectual reproduzido dentro dos servios para que
haja a superao dialtica.
Saraceno (1999) alerta que, na integrao interna
de um bom servio devem ser contempladas estratgias
organizativas e afetivas. a permeabilidade dos recursos
e dos saberes deve superar a sua separao. Compreen-
demos que esse patamar deveria se constituir no ideal
a ser alcanado pelos servios. os movimentos nos ser-
vios, quando encaminhados s questes organizativas
e afetivas concomitantemente, conduziro superao
dialtica. da mesma forma, quando os conflitos e
contradies forem dialeticamente trabalhados, e no
ocultados, ser promovida a descontinuidade; o apa-
recimento do novo e a explicitao das contradies
conduzir a saltos qualitativos que processaro mudanas
reais nos servios.
Saraceno, asioli e tognoni (1997) destacam a
atitude de integrao da equipe como uma das muitas
variveis que determinam a enfermidade e a eficcia da
interveno. tais variveis, relacionadas organizao e
ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favorveis ou
desfavorveis. os autores conceituam uma equipe inte-
grada com varivel favorvel e que deve ter as seguintes
caractersticas: distribuio do poder; importncia dos
conhecimentos; comunicao clara e no-contraditria;
discusso e planificao do trabalho; socializao dos
conhecimentos; autocrtica e avaliao peridica dos
resultados. Entre os fatores que colcoam obstculos
integrao interna, os autores apontam a separao
prtica entre os diferentes papis profissionais, os dife-
rentes nveis de capacitao e de aspectos culturais dos
papis profissionais e os conflitos ou frustraes entre
os membros da equipe.
acrescentam-se aqui as inquietaes que Basaglia
(1985) j enfatizava: no a redefinio da instituio
em termos estruturais, atravs de novos esquemas,
que garantir aes teraputicas, mas as relaes
que se estabelecero dentro das novas organizaes
assistenciais. os novos servios devero atentar para
as possveis (e concretas) contradies que podem se
configurar no seu interior. Uma dessas contradies
se refere ao discurso sobre a prtica muitas vezes no
ser condizente com a prtica desenvolvida. Basaglia
postula que as contradies do real devero ser
dialeticamente vividas. importante ressaltar que,
nessa tentativa de criao de um mundo ideal, se as
contradies no forem ignoradas ou postergadas,
mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se
tornar teraputica. Para isso, devem existir alterna-
tivas, possibilidades.
CONSIDERAES FINAIS
resgato a lei da dialtica, defensora de que a nega-
o a fora motriz do progresso. Negao essa, enten-
dida como a negao de uma determinada realidade e
a fora, como aquela que se empenha na construo de
outra realidade mais rica e completa. Essa lei poder ser
empregada no campo da Sade Mental, mais especifi-
camente na rea da reabilitao psicossocial. resgata-se,
neste processo, toda a potencialidade para a produo
de vida significativa ao ser humano. Nesse momento
ocorre um salto qualitativo significativo, atravs de
uma prxis transformadora que vislumbra todas as
possibilidades que se descortinam frente ao cuidado
pessoa portadora de transtorno psquico. Isso permite
alcanar refinamentos conceituais que, em ltima anli-
se, proporcionaro um olhar crtico em relao prxis
da reforma Psiquitrica.
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Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
17HIrdES, a. reforma Psiquitrica e reabilitao psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialtico
o foco do trabalho teraputico sobre a escuta, a
validao da identidade dos usurios, bem como a abor-
dagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos
conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos
servios pautada na gide da reforma Psiquitrica. Esses
diferenciais que contornam as aes introduzem saltos
qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pesso-
as. a superao dialtica alcanada no momento em
que so reunidos, no mesmo sujeito histrico, aspectos
subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares
de cada pessoa.
Enquanto as prticas tradicionais objetalizavam o
doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora,
na qual a subjetividade reintegrada com o corpo social
dos portadores de sofrimento psquico. Essa tomada
de conscincia sobre a importncia dessas intervenes
produz movimentos de superao da objetalizao a que
foi submetido o doente e, tambm, a reconstruo de
um corpo fsico, subjetivo e social.
R E F E R N C I A S
basaglia, F. (org.). A instituio negada: relato de um hospital psiquitrico. rio de Janeiro: graal, 1985.
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE18
Psicologia e Sade Mental: trs momentos de uma histriaPsychology and Mental Health: three moments of a history
RESUMO Neste artigo so apresentados e analisados trs momentos da trajetria
dos psiclogos no Sistema nico de Sade (SUS), a partir do campo da Sade
Mental, no municpio de Belo Horizonte, Minas gerais. O primeiro aqui
chamado de implantao, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio
matricial. Trabalha-se com reviso de literatura e com documentos da rea.
conclui-se que o psiclogo na Sade Mental tem, por um lado, uma formao
clnica que no o preparava para a opo prioritria do Programa de Sade
Mental e, conseqentemente, sua formao ocorreu em servio. Por outro lado, a
nfase presente em sua formao para prticas grupais o capacita para a presente
prtica matricial.
PALAVRAS-CHAVE: Sade Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial;
Apoio matricial; Psicoterapia de grupo.
ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists
trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field
of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas gerais, Brazil. The first
moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third,
matrix support. This paper is examines a literature review and documents of
the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical
training which wasnt enough to prepare him to the priority option of the Mental
Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis
in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand,
enables the professional to work with present-day practice in matrix support.
KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix
support; Psychotherapy, group.
Joo lei te Ferre i ra Neto 1
1 Professor do Programa de Ps-
graduao em Psicologia da Pontifcia
Universidade Catlica de Minas gerais
(PUC Minas); doutor em psicologia da
PUC So Paulo.
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FERREIRA NETO, J.L. Psicologia e sade mental: trs momentos de uma histria
I N T R O D U O
Quando a psicologia foi reconhecida como profis-
so em 1962, suas trs reas de atuao eram: as psicote-
rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultrio,
a organizacional e a educacional. a sade pblica ainda
no era tratada como campo de atuao, e aps 44 anos
essa situao mudou drasticamente.
Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca-
dastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES)
contabilizou 14.407 psiclogos no Sistema nico de
Sade (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos
profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi-
cologia (sPinK, 2007). diversos estudos apontam que a
crescente presena dos psiclogos na sade pblica no
Brasil aconteceu em associao com a reforma psiquitri-
ca e com a criao do campo chamado de Sade Mental
(dimEnstEin, 1998; fERREiRa nEto, 2004).
o objetivo deste artigo a apresentao de al-
guns elementos da histria da entrada e do percurso
dos psiclogos no SUS, a partir do campo da Sade
Mental, no municpio de Belo Horizonte, Minas
gerais. as fontes bibliogrficas e documentais pesqui-
sadas indicam que a construo desse percurso nesse
municpio ocorreu em trs momentos, marcados por
caractersticas prprias, em que a noo de Sade
Mental sofreu variaes quanto a seu sentido e suas
diretrizes, na direo de sua consolidao e de sua
integrao no contexto do SUS. Na dcada de 1980,
ocorreu o primeiro perodo chamado de implantao,
seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,
respectivamente nas dcadas de 1990 e 2000. Essa
anlise histrica abordar com maior ateno a pre-
sena de duas polaridades que atravessam este campo.
a polaridade entre abordagens individuais e coletivas,
e a composta pela especificidade da Sade Mental e
da reforma psiquitrica so o contexto mais amplo
da sade geral e reforma sanitria. alm da necess-
ria reviso de literatura sobre o tema, nossa fonte de
dados ser um conjunto de documentos produzidos
no decorrer da histria mineira e da nacional.
MOMENTO IMPLANTAO ANOS 1980
o Programa de Sade Mental foi oficialmente
implantado em Minas gerais, na regio Metropolitana
de Belo Horizonte, em 1984, durante a gesto do go-
vernador tancredo Neves pelo Partido do Movimento
democrtico Brasileiro (PMdB). Nesse perodo, um
nmero expressivo de profissionais de sade com perfil
progressista ocupou postos importantes na Secretaria de
Estado de Sade. importante lembrar que o perodo
de abertura democrtica no pas consolidou uma
[...] ttica desenvolvida inicialmente no seio do mo-vimento sanitrio, de ocupao de espaos pblicos de poder e de tomada de deciso como forma de in-troduzir mudanas no sistema de sade. (amaRantE, 1998, p. 91).
a chamada Nova repblica tornou-se o apogeu
dessa ttica de ocupao, quando o movimento sanitrio,
juntamente com o da reforma psiquitrica, se confundiu
com o prprio Estado.
os antecedentes dessa iniciativa so: o Programa
Integrado de Sade Mental (Pisam), proposto na VI
Conferncia Nacional de Sade, que teve curta durao
entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados
atendendo em centros de sade sem ligao com um
projeto ou programa que organizasse aes em Sade
Mental.
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FERREIRA NETO, J.L. Psicologia e sade mental: trs momentos de uma histria
a proposta do Pisam parte da avaliao de uma
prevalncia de transtornos mentais de 18% e uma
demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem
aes de preveno primria, integrao da Sade
Mental nas atividades bsicas de sade, utilizao de
leitos em hospitais gerais e a integrao de profissionais
no-mdicos na assistncia psiquitrica. Na preveno
primria era considerada eficaz a realizao de grupos
operativos de gestantes, mes, professores e o atendi-
mento a crises (mEndona filho; alKimin, 1998, p.
25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser
conduzido por psiclogos.
Quanto ao atendimento clnico individual, os
pacientes egressos de hospitais psiquitricos e os casos
graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma
franca diviso nesses atendimentos: os egressos com os
psiquiatras e, os neurticos e as crianas com a psico-
logia. o Pisam teve curta durao devido, entre outras
causas, falta de apoio poltico e presso dos grupos
privados (mEndona filho; alKimin, 1998).
Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde
1984, havia 12 psiclogos distribudos por oito centros
de sade. No relatrio de atividades de 14 de dezembro
de 1984, possvel observar que nesse ano ocorreram
as primeiras reunies dos psiclogos que atuavam em
centros de sade no municpio. a atuao na poca era
voltada para a demanda infantil, para a participao em
outros programas em andamento nas unidades (pueri-
cultura, pr-natal) e conselhos de sade e, para atuao
junto a instituies comunitrias. Existe uma indicao
no documento pela priorizao do trabalho em grupos,
por permitir uma melhor resposta a demanda (sEcRE-
taRia municiPal, 1984, p. 2). Nenhuma meno feita
ao paciente psictico ou mesmo ao egresso hospitalar,
eixo fundamental da reforma psiquitrica. Em suma,
a expresso Sade Mental era tomada de um modo
genrico, sem relao com as propostas da reforma
psiquitrica.
Nos antecedentes oficializao do Programa
de Sade Mental, temos uma compreenso ampliada
e genrica do que poderia ser definido como Sade
Mental na rede pblica. algumas vezes, era entendida
como parte mental da sade geral, incluindo tanto o
doente grave, como as aes preventivas e a participao
nos programas prevalentes de sade pblica. Contudo,
mesmo quando as aes incluam o paciente grave, ainda
pertencia ao domnio exclusivo do psiquiatra.
J no Programa de aes da Sade Mental da re-
gio Metropolitana realizado em 1985, incio oficial do
programa na regio metropolitana de Belo Horizonte,
Minas gerais, e anterior municipalizao da sade, fo-
ram apresentadas 23 equipes de Sade Mental divididas
em 18 centros de sade e em cinco unidades em servios
de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria
com algumas prefeituras. as equipes so estabelecidas
como referncia secundria, ou seja, como atendimento
especializado. a princpio, o Programa de Sade Men-
tal buscava formular, de modo ainda primrio, uma
concepo integral de sade o famoso trinmio do
bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Sade
Mental respeitavam essa conformao: psiquiatra (bio),
psiclogo (psico) e assistente social (social). a falta de
experincia para uma formulao mais sofisticada do
que seria um trabalho em equipe multiprofissional e
interdisciplinar, conduziu a essa opo por uma alter-
nativa mais bvia.
o documento retoma o histrico anterior do Pisam
e faz referncia s prticas isoladas de psiclogos com
muitos pacientes em centros de sade, afirmando seu ob-
jetivo de sistematizao das aes em Sade Mental.
Sua atuao preconiza seis eixos: atendimento
demanda especfica (doena mental), apoio aos demais
programas dos centros de sade integrando a Sade
Mental no contexto global da sade, apoio tcnico
ao nvel primrio, articulao com os recursos das
comunidades (escolas, creches, hospitais e associaes
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de bairro), atendimento criana e avaliao peridica
do programa. apenas no primeiro eixo mencionada a
necessidade de uma ateno especial aos egressos. Final-
mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de
integrao com os hospitais psiquitricos, no sentido
de evitar internaes desnecessrias (sEcREtaRia dE
Estado dE sadE, 1985, p. 8). ainda no se falava em
substituio do modelo hospitalar.
a nfase nas aes coletivas permanecia: o aten-
dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma
de abordagem das questes de Sade Mental (sEcRE-
taRia dE Estado dE sadE, 1985, p. 7). aponta ainda
que a interveno em grupos um trabalho que exige
constante discusso e aprofundamento por parte dos
profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por
avaliao de seus impactos.
a partir desse perodo os psiclogos continuam
envolvidos com as prticas coletivas nos programas dos
servios, mas tambm comeam a receber a clientela
prioritria do Programa de Sade Mental e os pacientes
com transtornos graves e persistentes. Como notificado
no documento, a formao em servio por meio de su-
pervises de casos clnicos passa a ser uma prtica mais
constante. alm disso, inicia-se o curso de Especializa-
o em Sade Mental, formando os primeiros grupos
de psiquiatras, psiclogos e assistentes sociais da rede,
oferecido pela Escola de Sade de Minas gerais (Esmig),
com forte acento na prtica clnica de base psicanaltica
lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente
ao Simpsio do Campo Freudiano, que mais tarde se
tornar Escola Brasileira de Psicanlise.
Conclui-se que o momento de implantao por-
tador de algumas caractersticas. anterior implantao
oficial temos a presena da ao dispersa de profissionais
de Sade Mental, com uma concepo genrica desse
campo. No caso dos psiclogos, a nfase nos progra-
mas gerais de promoo da sade j desenvolvidos e na
ateno clnica voltada criana. Mesmo no perodo do
Pisam, quando a questo do atendimento aos casos gra-
ves aparece, essa clientela aparece ainda como domnio
da psiquiatria. Somente quando Programa de aes
implantado, em 1984, esse quadro comea a se alterar,
e o momento seguinte antimanicomial consolidar a
atuao dos psiclogos aos pacientes graves.
Nesse momento, marcante a preocupao da
integrao da Sade Mental no contexto geral da sade
e a participao de seus profissionais em aes cole-
tivas com outros profissionais do servio. as prticas
de grupo se constituem numa importante diretriz de
trabalho, tendo nos psiclogos um de seus principais
agentes. alm disso, preconizado o apoio tcnico ao
nvel primrio, estratgia que somente se consolidar
no terceiro momento de apoio matricial.
MOMENTO ANTIMANICOMIAL ANOS 1990
a passagem entre os dois primeiros momentos
analisados est atravessada por alguns importantes
eventos. o primeiro deles, no ano de 1987, foi o II
Encontro Nacional dos trabalhadores em Sade Mental
em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por
uma sociedade sem manicmios e institudo o dia 18 de
maio como o dia Nacional da luta antimanicomial. os
psiquiatras j no so mais maioria entre os trabalhadores
presentes, grande parte desses so psiclogos. Contando
com a participao de intelectuais de diversas reas, ela-
borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar
a luta pela reforma psiquitrica, visando autonomia do
movimento em relao ao Estado. as diretrizes apon-
tavam para um caminho de alargamento das fronteiras
da luta para uma ao no interior da prpria cultura,
trazendo a discusso sobre a loucura para o cotidiano
da sociedade, numa estratgia que ampliava a atividade
puramente assistencial e criava pontes entre as aes no
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FERREIRA NETO, J.L. Psicologia e sade mental: trs momentos de uma histria
mbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,
desde ento, um iderio de desinstitucionalizao ou
da desconstruo/inveno (amaRantE, 1998, p. 93),
induzindo a uma disjuno com o movimento sanitarista
e sua ttica de ocupao da mquina estatal. desde essa
nova direo, seriam visadas alianas com a sociedade
civil e os movimentos populares e com as associaes de
usurios e de familiares, em busca da rua, da imprensa
e da opinio pblica.
atravs do segundo evento, em 1989, a reforma
psiquitrica assumiu repercusso nacional com a inter-
veno da Secretaria de Sade do Municpio de Santos
na Casa de Sade anchieta e a seqente criao de dis-
positivos antimanicomiais na cidade, numa gesto que
inspirou vrias experincias posteriormente conduzidas
por todo o pas (amaRantE, 1998, p. 83).
Finalmente, no mesmo ano temos a apresentao
ao Congresso do Projeto de lei 3.657/89 visando re-
gulamentar o processo de reestruturao da ateno
Sade Mental no pas, de autoria do deputado federal
Paulo delgado (Partido dos trabalhadores de Minas
gerais, Pt/Mg).
Em Belo Horizonte, somente durante a gesto
municipal do prefeito Patrus ananias, do Pt (1993
a 1996), a Secretaria de Municipal de Sade (SMSa)
de Belo Horizonte definiu e conduziu suas aes para
priorizar, essencialmente, o atendimento clnico dos
pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos
profissionais ficassem comprometidas e congestionadas
com a inesgotvel demanda espontnea ou encaminha-
da de crianas com dificuldade escolar, pacientes com
quadros de ansiedade, aqueles pertencentes clientela
cativa dos centros de sade. Nessa gesto, foi nomeado
para a Smsa o psiquiatra Csar Campos, engajado, j
de longa data, com os movimentos de luta contra o
aparato asilar. Iniciou-se a construo de dispositivos
substitutivos ao hospital, os centros de convivncia e os
centros de referncia em Sade Mental (CERsam, verso
mineira dos Centros de ateno Psicossocial caPs).
Um importante documento que avalia esse perodo
foi publicado numa coletnea organizada por tcnicos
da sade, com a assessoria do professor Emerson Merhy,
sobre a gesto da sade. o captulo que nos interessa
assinado pela coordenadora do Frum Mineiro de
Sade Mental e pela coordenadora da Sade Mental
da Smsa (lobosquE; abou-yd, 1998). Nesse docu-
mento, intitulado A cidade e a loucura entrelaces, o
projeto de Sade Mental apresentado em uma verso
marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva
a extino do hospital psiquitrico e sua substituio
por outro modelo de ateno (p. 244).
o texto, que possui uma funo de relatrio da
gesto, possui um marcado tom poltico de ruptura
comparado ao de anteriormente. Essa ruptura afirmada
em pelo menos quatro aspectos. o primeiro deles, de
cunho mais ideolgico e organizacional, era a postulao
de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-
mento sanitrio com seu acento nos cuidados primrios,
em detrimento do tratamento das doenas. Segundo as
autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritrio,
estabelecida uma diviso indesejada
[...] nos hospcios, os loucos; nos centros de sade, os pequenos desviantes crianas ditas problemticas, mulheres ditas deprimidas e as prticas preventivistas em geral. (1998, p. 245).
o projeto prope o abandono do modelo america-
no de psiquiatria comunitria, adotado anteriormente
pelo Programa da regio Metropolitana de 1985, com
seus nveis primrio (rede bsica), secundrio (servios
especializados) e tercirio (hospital), pois valida a perma-
nncia do hospital no topo do modelo assistencial. Por
isso, afirma que os cERsam no se caracterizam como
servios intermedirios ou secundrios (p. 252), mas
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FERREIRA NETO, J.L. Psicologia e sade mental: trs momentos de uma histria
compem uma rede de assistncia que visa substituir
os hospitais psiquitricos, sem hierarquizar os nveis
de ateno.
o segundo tem componentes de gesto de pessoal,
uma vez que a coordenao encontrou certa oposio
por parte de profissionais de Sade Mental, os quais
se mostravam resistentes a assumir as novas diretrizes
do trabalho (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 253). a
proposta aponta uma mudana de foco da ateno das
crianas robustas e gestantes saudveis, consideradas
clientela majoritria das unidades bsicas, para os
psicticos e neurticos graves, que passam a ser quali-
ficados como prioridades assistenciais (p. 247). Isso
acarretou, por parte da gesto, uma ao de desestmulo
ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem
como a presena em grupos de outros programas, como
aqueles voltados para gestantes ou diabticos (p. 246).
o tom depreciativo de avaliao do trabalho em grupos
e da participao em outros programas de promoo da
sade, questionvel, deve ser entendido a partir desse
contexto de uma gesto que se compromete com a
direo antimanicomial da Sade Mental. No presente
momento o debate se faz no esforo de evitar a dissocia-
o entre aes clnicas e de promoo de sade.
o terceiro aspecto, de carter poltico-adminis-
trativo, configurou-se como passo fundamental para
garantir a reorganizao da assistncia a partir das di-
retrizes antimanicomiais: a nova relao da SMSa com
os hospitais psiquitricos. Isso envolveu a gesto dos
hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.
Nesse sentido, foram realizadas vrias aes visando efe-
tivar a desmontagem do aparato manicomial: superviso
hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados
ao SUS, proibio de novas internaes fora dos dois
hospitais pblicos, disponibilizao de todos os leitos
hospitalares privados conveniados na central de inter-
nao municipal. Uma das medidas mais eficazes para
a organizao da nova rede de assistncia em Sade
Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,
antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,
via distrito Sanitrio, com um profissional de Sade
Mental no centro de sade mais prximo de sua casa. a
organizao desse fluxo impediu que os pacientes em alta
ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-
ternados aps nova crise. garantiu tambm a chegada
dos egressos nas unidades bsicas de sade, rompendo o
circuito: alta, residncia, crise e nova internao.
Pacientes e familiares passaram a conhecer uma
nova possibilidade de ateno profissional, prxima de
suas casas. decorridos alguns anos aps esse conjunto
de aes, possvel deduzir que para romper com o cir-
cuito hospitalar no suficiente somente a implantao
de equipes nas unidades, necessrio uma poltica de
organizao do fluxo da demanda. Caso contrrio, os
profissionais permaneceriam com sua atividade drenada
com a clientela cativa do servio, sem que os egressos se
tornassem parte de sua clientela habitual.
o quarto aspecto, de carter tico e tcnico, diz
respeito concepo de clnica que subsidia um projeto
antimanicomial. de um lado, existe o destaque psica-
nlise: sem a psicanlise, [...] sem a referncia que nos
inspira, nossas prticas de pensamento e de trabalho no
seriam o que so (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 249).
as autoras reconhecem que a psicanlise usualmente no
est presente em momentos polticos incisivos, sendo,
portanto esta uma rara articulao. ainda necessrio
se fazer uma anlise mais acurada dos limites e dificul-
dades oriundos da hegemonia da psicanlise no campo
da Sade Mental (fERREiRa nEto, 2008).
de qualquer modo, a contribuio da psicanlise,
isoladamente, no suficiente para se pensar sobre
a atuao na sade pblica. Permanece a dificuldade
presente no despreparo para conduzir uma clnica
sem setting definido. necessrio, ento, desfazer sua
colagem com a clnica de consultrio, uma vez que os
espaos da primeira so mltiplos, ou seja, abordagem
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FERREIRA NETO, J.L. Psicologia e sade mental: trs momentos de uma histria
de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.
Isso no se apresenta como tarefa simples, uma vez que
a formao prevalente ainda atende a esse modelo. as
autoras reconhecem que os profissionais no receberam
anteriormente este tipo de formao e perguntam:
quem a recebe, alis?! (p. 263).
o texto relata tambm duas importantes aes
extraclnicas desenvolvidas pela Sade Mental junto