Revista +Soma #23

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Nesta edição: Alexandre Vianna, Jarbas Mariz, Luisa Ritter, Koudlam, Edu Monteiro, Justin Bartlett, Alexandre Colchete, Adriana Marto, Bárbara Malagoli. Flor Menezes, Orelha Negra, Hallogallo, Macaco Bong, Brendan Canning, DonCesão, Daniel Tamenpi, Adriano Lemos, MZK, Nik Neves, Rafael Campos, John Coltrane, A Tribe Called Quest.

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+SOMA . #23

“ERRO E RISCO FAZEM PARTE DE TODA OBRA RADICAL”, lembra Flo Me-

nezes, professor e compositor de música erudita experimental brasileira. Na

música e na arte, como na vida, a relação da sociedade ocidental com o

dissonante e o feio é antiga, controversa e passou por fases distintas. Por

séculos, as notas que causavam ruído nas escalas musicais diatônicas foram

evitadas pela tradição musical europeia, por serem consideradas literalmente

a manifestação de forças diabólicas, sempre à espreita, procurando o me-

nor sinal de fraqueza para quebrar a harmonia do homem com Deus. Na

arte, se o Renascimento significou o começo do fim das trevas medievais,

implicou também o abandono da iconografia perturbadora de uma série de

pintores pré-renascentistas, que passariam a ser vistos como “primitivistas”,

em detrimento do resgate de um conceito estético apolíneo clássico. Mas o

feio, como todo vaso ruim, nunca quebra. Nesta edição, duas entrevistas de

pontos distintos da cultura tratam, à sua maneira, das interferências na arte

causadas por elementos fora dos padrões do belo. FLO MENEZES fala sobre

como a música eletroacústica radicalizou a ideia de instrumento musical para

se apropriar de todo e qualquer som. Mais do que uma aula sobre composi-

ção contemporânea, sua entrevista é um convite ao conhecimento e a uma

compreensão musical além dos limites do senso comum.

O artista gráfico estadunidense JUSTIN BARTLETT, mais conhecido como

VBERKVLT, passa em revista anos de trabalho como ilustrador de dezenas de

discos de metal, de todas as vertentes possíveis. Uma entrevista marcada por

4JARBAS MARIZ POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

seu senso de humor inteligente, de quem fala do diabo com a intimidade de

quem dá um pescotapa em um amigo da escola. Ao lado de Tom Zé, Jackson

do Pandeiro e outros gênios, JARBAS MARIZ também explorou como poucos

os caminhos tortuosos da música brasileira. Em entrevista rara a um veículo

de imprensa do país, Mariz deitou em sua banheira psicodélica e narrou epi-

sódios perdidos nas entranhas da nossa cultura. Quase contemporâneo de

Mariz, MICHAEL ROTHER borrou contornos no rock do outro lado do Atlântico,

em bandas como Neu! e Harmonia. Em passagem pelo Brasil com seu projeto

Hallogallo, ele enfrentou uma gripe para contar sua história. No ensaio de

fotos, EDUARDO MONTEIRO abre mão de sua identidade para encarnar o feio

em máscaras perturbadoras. A SOMA 23 ainda traz a pintora LUÍSA RITTER, o

mestre da nova música eletrônica francesa KOUDLAM, o hip-hop instrumental

português do ORELHA NEGRA, o rock instrumental brasileiro do MACACO BONG

e o rap circense de DON CESÃO.

VIRE A PÁGINA, QUE O RESTO É RUÍDO.

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4JARBAS MARIZ POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

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+CONTEÚDO

SHUFFLE . ALEXANDRE VIANNA

JARBAS MARIZ

LUISA RITTER

KOUDLAM

ENSAIO DE FOTOS . AUTORRETRATO SENSORIAL

VBERKVLT

ENTRE (OUTROS)

FLO MENEZES

ORELHA NEGRA

HALLOGALLO

MACACO BONG

BRENDAN CANNING

DONCESÃO

QUEM SOMA . DANIEL TAMENPI

SELETA . ELETRODOMÉSTICOS

QUADRINHOS

OBRAS PRIMAS . LOVE IS IN THE AIR

REVIEWS

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4ILUSTRAÇÃO POR JUSTIN BARTLETT

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O PROJETO +SOMA É UMA INICIATIVA DA KULTUR, ESTÚDIO CRIATIVO COM SEDE EM SÃO PAULO.

PARA INFORMAÇÕES ACESSE: MAISSOMA.COM

KULTUR STUDIO . SOMA

Rua Fidalga, 98 . Pinheiros

05432 000 . São Paulo . SP

kulturstudio.com

REVISTA SOMA #23 . MAIO 2011

Fundadores . KULTUR

ALEXANDRE CHARRO, FERNANDA MASINI, RODRIGO BRASIL e TIAGO MORAES

Editor . MATEUS POTUMATI

Editor Site . AMAURI STAMBOROSKI JR.

Revisão . ALEXANDRE BOIDE

Fotografia . FERNANDO MARTINS FERREIRA

Projeto gráfico . FERNANDA MASINI

Direção de Arte . RODOLFO HERRERA e JONAS PACHECO

Conteúdo áudio-visual . ALEXANDRE CHARRO, FERNANDO STUTZ e

FERNANDO MARTINS FERREIRA

Colunistas . TIAGO NICOLAS, RICARDO “MENTALOZZZ” BRAGA, DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG,

PEDRO PINHEL, RAFAEL CAMPOS, MZK e NIK NEVES.

GOSTARÍAMOS DE AGRADECER A SESC, Leonardo Franco e Thiago “Índio” Silva, Ana Ferreira Adão.

a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha,

anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram

para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Publicidade . CRISTIANA NAMUR MORAES . [email protected]

Para enviar sugestões e material para review, entre em contato

através do e-mail [email protected].

Periodicidade . Bimestral

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros

culturais, shows, eventos e casas noturnas.

Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Impressão . Prol Gráfica

Tiragem . 10.000 exemplares

2CAPA . THE SECRET . VBERKVLT

Page 9: Revista +Soma #23

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2CAPA . THE SECRET . VBERKVLT

artes visuais

educação, cultura e artejornalismo cultural

Promovemos reflexão

Estão abertas as inscrições para professores e estudantes de jornalismo e comunicação social.

Estudantes podem se inscrever com reportagens sobre o universo cultural. Professores, com ensaios sobre as possíveis relações entre instituições de ensino e jornalísticas. Os selecionados participarão de programas de aprimoramento e desenvolverão projetos com apoio financeiro. Participe!

Conheça também os editais

Rumos Itaú Cultural Artes Visuais 2011-2013inscrições até 29 de maio

Rumos Itaú Cultural Educação, Cultura e Arte 2011-2013

inscrições até 30 de junho

Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural 2011-2012inscrições até 15 de julho itaucultural.org.br/rumos

avenida paul ista 149 são paulo sp [estação br igadeiro do metrô] terça a sex ta das 9h às 20h sábados domingos fer iados das 11h às 20h atendimento@itaucultural .org.br

itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural youtube.com/itaucultural facebook.com/itaucultural

Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural 2011-2012

C

M

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CM

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CY

CMY

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anuncio_IC_rumos2011_soma_AF.pdf 1 4/19/11 5:41 PM

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Daniel Tamenpi

Jornalista, pesquisador musical

e DJ especializado em soul, funk

e hip-hop. Escreve o blog Só

Pedrada Musical, onde apresenta

lançamentos e clássicos da

música negra.

Raquel Setz

Jornalista musical apaixonada

por barulhos, experimentações

e esquisitices em geral - e por

melodias bonitas também, porque

não tenho coração de pedra.

Velot Wamba

Velot Wamba, 32, é a favor do

céu pelo clima e do inferno pelas

companhias. The Ex, João Antonio,

Tina Modotti, Robert Crumb e

Jackson Pollock - tudo junto e

misturado. Crê que as ideias são

imprescindíveis, os rostos não.

Michaël Patin

Tem 29 anos e é mestre em

sociologia das mídias. É também

crítico musical e realiza entrevistas

para a revista francesa Magic,

cuja especialidade é o pop

contemporâneo, desde 2003.

+COLABORADORES

Lauro Mesquita

Jornalista, foi vocalista e guitarrista

do Space Invaders. Nas horas

vagas escuta um som e aproveita

a vida em Belo Horizonte, Pouso

Alegre e na idílica Heliodora.

Apesar de negar com veemência,

é roqueiro brasileiro nato.

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Helena Sasseron

Produtora e stylist nascida em SP,

acredita no “cada um com seu

cada qual”. Filmes e arte sempre

que sobra um tempo.

Música o tempo todo.

Vakka

Death Banger profissional formado

pela Uni-Led Slay e pós-graduado

em Death Metal Oldschool por

diversos cursos online e livros de

procedência duvidosa. Empresário

fracassado, mantém um site para

intimação online, o Intervalo Banger,

alimentando assim a chama do Rei

das Sete-Coroas.

Fotonauta

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

Marques, Daryan Dornelles e

Eduardo Monteiro.

Debora Pill

Jornalista, produtora e

investigadora musical. Em pleno

processo de desenvolvimento do

ouvido de dentro. Acredito no

caminho do bem e ainda ouço

rádio.

Marina Mantovanini

Nascida em São Paulo, pindense

de coração. O lado hippie sempre

pensa em arrumar as malas e viver

na praia, mas os shows e a vida

agitada da metrópole ainda falam

mais alto.

Page 12: Revista +Soma #23

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Page 13: Revista +Soma #23

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DISCO TRILHA SONORA

DA ÉPOCA DE OURO DA

DIRTY MONEY

Gil Scott Heron – The

Revolution Will Not

Be Televised. Quando

resolvi fazer o vídeo de

skate Dirty Money, em 1991, queria que o vídeo

tivesse o título “The Revolution Will Not Be

Televised, Brother”. Por algum motivo que não

lembro mais, acabei ficando com Dirty Money

mesmo. Mas as palavras do Gil Scott Heron,

naquela época de ouro dos anos 90, sempre

me levantavam da cama mais inspirado.

DISCO QUE CONSEGUE

TRANSPOR ESSA

ÉPOCA PRA HOJE

Twinpines – Niagara

Falls. Hoje em dia sou

muito influenciado

pelo sentimento e pela

verdade que o ser humano por trás das obras

transmite, seja nas artes plásticas, na fotografia,

no skate ou na música. O Twinpines é uma

banda nova, e seus integrantes me transmitem

bastante o sentimento dos anos 90.

DISCO QUE VOCÊ

LEVAVA PRA CORRER

NOS CAMPEONATOS

OU PRA FAZER DEMOS

Fugazi – Repeater. Teve

muitas fases, mas esse

nunca podia faltar.

DISCO DE QUEM FAZ

SNOWBOARD

Shawn Lee’s Ping Pong

Orchestra – Moods

and Grooves. Grande

parte da minha escola

musical é através de

vídeos, e no snowboard não foi diferente. Os

vídeos de snowboard também têm trilhas

sonoras bem elaboradas.

DISCO PRA DERRUBAR

SEU ARQUIRRIVAL

NUMA VOLTA

O skate pra mim

sempre foi meio de

superação individual.

Meu arquirrival sempre

foi o meu próprio corpo: os músculos doloridos

do dia anterior ou um medo não dominado

dentro da mente. Principalmente a cabeça

desconcentrada da ressaca de uma boa balada.

Pra derrubar a ressaca: Joanna Newsom – The

Milk-Eyed Mender.

DISCO QUE VOCÊ

MAIS GOSTOU DE

TER FEITO A FOTO

DA CAPA

De Menos Crime –

De Menos Crime. Nada

de estúdio, armas de

brinquedo ou balas de festim.

EXTRAORDINARIAMENTE, A MINHA ESCOLHA

DESTA VEZ É MAIS UMA PERGUNTA. E

DAS DEZ PERGUNTAS QUE FIZ A QUE EU

MAIS CHAPEI FOI ESTA: DISCO QUE TÁ

NO SEU PASSAPORTE, QUE REVELA SUA

VERDADEIRA NACIONALIDADE

Garotos Podres – Mais Podres do que Nunca.

Nasci em Teerã, no Irã, mas fui registrado

na embaixada brasileira para ser, de fato,

brasileiro nato. Saí do Irã com um ano de idade

e não tenho nenhuma ligação com o país ou

sua cultura. Sou brasileiro por opção, e não

por fatalidade!

DISCO SOLO DE UM

SKATISTA

Tommy Guerrero – Loose

Grooves and Bastard

Blues. Em meados

dos anos 90, tive a

oportunidade de fazer

uma sessão de street com o Tommy Guerrero

em San Francisco e ganhei um CD com as

músicas que ele estava compondo. Era ainda

um CD demo, sem gravadora. Em 1998 o disco

foi oficialmente lançado, e impulsionou a

carreira dele como músico.

DISCO PRA OUVIR

ENGESSADO EM CASA

Silversun Pickups – Pikul.

Quanto mais energia na

música e quanto mais

alto o volume, melhor

pra qualquer momento

de recuperação do corpo e da alma.

DISCO QUE VOCÊ

MAIS GOSTOU DE TER

RESENHADO

Dinosaur Jr – Green

Mind. Pela foto da

capa! E pelo rock. Por

ter fotografado várias

imagens de capa de discos ao longo dos anos

– e por ter comprado diversos discos (também)

pela foto da capa.

POR TIAGO NICOLAS

Ele nasceu quase em Belém, e o pobrezinho dropou no Brasil pra fazer história e contar a história do skate nacional. ALEXANDRE VIANNA sempre foi envolvido e inteirado com toda a cultura do skate, e continua no jogo, disparando seus flashes e recentemente estreando o emocionante Dirty Money. Como o Alê também edita a revista 100%Skate, foi bem solidário e generoso nas respostas. Confiram:

FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

COM ALEXANDRE VIANNA

2TIAGO NICOLAS É 1/3 DA ESPARRELA

Page 14: Revista +Soma #23

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JARBAS MARIZ é um camarada de sorte. Nasceu roqueiro, mas o dom do ritmo o levou a passear por onde ele bem entendesse: psicodelia, forró, baião, eletrônico, xote, post-rock, coco, indie, xaxado, ciranda e por aí vai. Paraibano prestes a completar seis décadas de vida, tem muita história pra contar. Mais do que isso: tem história que merece ser conhecida. Viveu capítulos com os maiores criadores da música popular brasileira, como a santíssima trindade Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale. Há vinte anos, Jarbas é parceiro das aventuras musicais de Tom Zé. É também um dos artistas mais inventivos do nosso tempo. Coisa de gente enxerida e arretada. 1

POR DEBORA PILL . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

PSICODELIA FOR ALL

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Você teve algumas bandas de baile e depois foi

tocar com o Zé Ramalho. Conta essa história.

Pra mim, a música da Paraíba é antes e depois

de Zé. Foi ele que trouxe, no começo dos 70, um

show profissional, com estrutura. Era o “Atlântida,

o Continente Desaparecido”.

Era Zé Ramalho e os Filhos de Jacó, e eu era um

dos filhos. Tocava guitarra base, percussão e fazia

vocal com ele. Foi nessa época que o Zé conheceu

o pessoal de Recife, e queria me levar pra lá de

qualquer jeito. Ele falava: “Bicho, participei de umas

gravações com esses caras pro disco do Marconi

Notaro”. Quando o disco ficou pronto, ele me levou

pra Recife. Foi aí que eu conheci Lula [Côrtes],

Alceu [Valença], todo o pessoal… Foi nessa época

que saíram os clássicos Satwa, Marconi Notaro no

Sub-reino dos Metazoários e Paebirú.

Você tocou no Paebirú, né?

Eu fiz berimbau, mas nem tocava! Eu tinha ido à

Bahia pra aprender a tocar. E, como eles queriam

berimbau de todo jeito, acabei tocando na

“Não Existe Molhado Igual ao Pranto”. Depois disso

fizemos o Rosa de Sangue, do Lula, que eu toquei

também, em três faixas. Mas esse disco nunca saiu

aqui – eu tenho uma fita aqui que gravei lá

na Rozenblit.

Isso foi antes de você lançar seu primeiro

compacto.

É. Depois disso fui pra Belém visitar meu

irmão. Só que sofri um acidente lá e acabei

ficando mais tempo. Então resolvi procurar

uma gravadora que estava de olho em artistas

novos. Eu tinha uma fita de um show que tinha

gravado com o Zé lá em João Pessoa, que era

o “Três Aboios Diferentes”. Todas composições

minhas, só a “Paragominas” eu fiz em Belém.

Levei pra Erla, a gravadora de lá. O cara

achou estranho, eles tinham uma pegada mais

carimbó, sirimbó, samba. Mas um maestro lá

convenceu o dono que era importante ter um

som diferente. E o cabra acabou investindo no

meu primeiro compacto.

Conta mais do Transas do Futuro.

A gente fez o disco em 78. As letras das

canções tinham muito a ver com a época. Era

uma linguagem que hoje em dia não tem mais

validade. Mas as pessoas não têm noção, tem

loucuras bem legais ali. Eu gosto de dizer que,

quando é verdadeiro, me dá o direito. Por

exemplo, na música “Eu Quero Jogar Cartas com

a Humanidade”, em que falo “Eu traço planos com

a mente, eu carrego nas costas seus discípulos.

Por isso não tente me enganar, a verdade está

naqueles que a sabem usar”.

E a gravação?

Era tudo ao vivo. A gente gravava a base e

depois botava uma voz – às vezes a voz-guia

já valia. Eram as condições da época. A gente

sabe que o disco é mal gravado e tal, mas o

barato está aí. Eu gosto de ouvir esse som hoje

em dia. É um som verdadeiro demais. Naquela

época era tudo na luta, você ensaiava até

morrer… E um, dois, três, ninguém podia errar.

Essa garra toda aparece nas letras também.

Tem muita coisa otimista, tipo “Tudo que vem

da natureza merece ser curtido”. Pode até ser

ingênuo, mas é de verdade. Outra coisa que

eu falo que merece ser ouvida é a “Valsa dos

Cogumelos”, mas nesse caso estou falando de

uma música do primeiro disco do Lula, o Satwa.

O Lula me deu o disco, eu me identifiquei e

coloquei nessa letra.

Lula, grande mestre que nos deixou há pouco…

Vou sentir muito a falta dele. Eu inclusive queria

regravar essa música e ia pedir pro Lula, tem

a cara dele. Além de ser criativo pra caralho,

era um ser humano da porra. E não parava

um minuto. Bicho elétrico! Aquele quadro ali,

grandão, verde, é dele. Maluco pra caramba:

um relógio de madeira abandonado na beira de

um pântano, que de tanto tempo que ficou lá

acabou brotando.

E depois de Belém?

Voltei pra João Pessoa, chamei Lula pra ser

convidado especial no meu show, tem inclusive

um cartaz que eu guardei. Os meninos (DJ Nuts

e Craifer, da Mopho Discos) ficaram malucos

quando viram isso.

Foi nessa época que você tocou com Jackson

do Pandeiro?

Foi logo depois. Eu estava no Rio com Catia

de França gravando, e a gente foi chamado

pra fazer o Pixinguinha (projeto que promovia

shows a preços acessíveis). Os convidados eram

Jackson do Pandeiro e Anastasia. Tudo acabou

sendo uma surpresa pra mim, porque eu estava

chegando ao Rio todo matuto…

Eu sou autodidata, não tinha aquela manha de altos acordes, de estudar música profundamente. Minha coisa era mais simples, mais de emoção mesmo.

4CONCEITO ORIGINAL E A VERSÃO FINAL DA CAPA DE TRANSAS DO FUTURO

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aquelas bonecas de pano, que você puxa, roda

pra cá e pra lá. Eu aconselho a ir ver baião de

verdade, lá em Caruaru, Campina Grande ou

João Pessoa, onde o couro come. Aqueles

zabumbeiros, o bacalhau, que é a varinha que

toca na zabumba embaixo, o contraponto. Os

cabras tocam aquilo de uma forma que você

fica maluco! Pega os discos da Marinês, é uma

pauleira só! Forró lá é pra lascar, por isso se fala

“a poeira subiu, o chinelo arrastou”. O Jackson

falava: “É um baião apressado demais!”. E a

quadrilha? É mais rápido ainda! Uma vez fui

tocar aqui e me falaram: “Meu irmão! Aqui é o

pessoal da melhor idade! Você quer matar os

velhinhos?” (risos). Eu tive que tocar mais lento.

E o Luiz Gonzaga?

Conheci quando Marinês gravou uma música

minha. Ela tocava triângulo com ele, com um

suingue que você não acredita! A gente foi

fazer uma homenagem a Luiz Gonzaga no

programa de Walmor Chagas e tocamos juntos.

Além da cozinha de Gonzagão, os convidados

especiais eram Marlene, Ivon Curi, Marinês

e Altamiro Carrilho na flauta. Só isso! E Luiz

Gonzaga cantando “Asa Branca”, é claro!

Conta sobre as suas experimentações com o

eletrônico.

Foi o M4J que veio com essa ideia. Os meninos

da minha banda entortaram a cara, não

achavam que ia dar certo.

Eu sou autodidata, não tinha aquela

manha de altos acordes, de estudar música

profundamente. Minha coisa era mais simples,

mais de emoção mesmo. Aí no ensaio o

Jackson olhou pra mim e falou “Ô nego! Você

não vai tocar comigo?”. E eu respondi, tímido

pra caramba: “Não, eu vim tocar com a Catia”.

E ele, “Eu tô vendo que você é bom de rrritmo,

venha tocar comigo, o Severo vai lhe passar

as harrrmonias”. Ele falava muito explicado, o

Jackson, bem assim com o “r” puxado. Eu fui.

Comecei a pegar minha célula rítmica, peguei

as harmonias com Severo e fiquei fazendo os

vocais. Tocava com Catia e com ele, fazia todos

os vocais e a viola base.

Você tem registro disso?

Tenho tudo documentado. Tenho muito

material dessa época, Jackson, Catia, Elba,

João do Vale…

Fala do João.

Ah, ele era aquela figura forte. Tomava

uma cachaça boa! Chegava no teatro todo

arrumado, de camisa. Começava a tomar uma,

outra, ia abrindo a camisa, ficando suado...

Chegava a hora do show e ele tava no ponto!

Tirava o sapato, ficava com a camisa aberta e

mandava brasa. Era uma figura.

Foi na década de oitenta que saiu o Bom

Shankar Bolenath.

Esse disco saiu em 89. Foi a minha fase mais

criativa com o Lula. A gente ficou muito

amigo, ele me apresentou muito músico daqui,

Roberto Lazzarini, Bocato… Esse disco é como

se fosse uma versão do Satwa, com Lula no

tricórdio e Lailson na viola de doze. Aqui era

ele no tricórdio e eu na viola de doze, só que

com a tecnologia da época. Esse disco quer

dizer “Acordemo-nos Deuses e Deusas à nossa

própria divindade”. Só saiu em vinil, e é um

instrumental diferente. Porque muitas vezes

instrumental brasileiro tem aquela pegada jazz,

um entrega pro outro solar e tal. Esse disco não.

É uma viagem, a gente gravou todo mundo e

depois foi mixar.

O Lula era o Oriente e eu o Ocidente. A gente fez

uma coisa bem diferente. Tem um baião, o “Forró

pro Mundo Inteiro”, que no lugar da zabumba

a gente colocou tabla. O produtor achava que

estava jogando dinheiro fora. A velha história da

lucidez e da loucura, ou da loucura lúcida, não sei.

E a homenagem ao Jackson?

Foi uma responsabilidade danada. Eu tive essa

ideia e fui pesquisar o repertório, porque queria

misturar músicas conhecidas e desconhecidas.

O mais importante era não perder a célula

rítmica do Jackson, o suingue dele, era um

compromisso meu. Se ele fazia na introdução

uma coisa simples com sanfona, a gente fazia

com metais mas com sanfona também, sem

perder aquela cozinha do triângulo, agogô,

zabumba e pandeiro. Sempre tendo essa linha

da base do violão, e mais alguns arranjos.

Vários amigos participaram: Bocato, Mestre

Ambrósio, Chico César, Ferragutti.

Qual a diferença entre forró e baião?

Na minha concepção é o seguinte: dentro

do forró tem baião, xote, xaxado, coco. Nos

discos antigos, de Marinês, Jackson, Gonzagão,

eles davam o ritmo da música em cada faixa.

Por isso eu acredito que todos esses ritmos

formam o forró. Mas muita gente confunde.

Aqui em São Paulo tem mais xote que baião, o

povo dança mais devagar. Vai lá no Nordeste

ver essas bandas tocar! O baião é que nem

4JARBAS COM JIMMY PAGE

Page 19: Revista +Soma #23

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O Manoel veio aqui em casa, levou os discos

de Geraldo Mouzinho e Cachimbinho, de dois

emboladores de coco, gravou uns pontilhados

de repentista também. Levou pro estúdio,

sampleou e gravou o primeiro disco. Aí a Trama

gostou da investida, e no segundo disco eles

me procuraram. Gravei triângulo, pandeiro,

um monte de percussão, cantei uma música

inédita…. E “Forró com F”, que foi bem gravada

por aí, eles cortaram no computador, ficava

Fo…Ff..Ff… Engraçado foi eu aprender a cantar

isso ao vivo assim, todo cortado!

Outra experimentação foi com o Tortoise.

Isso. O David Byrne juntou as duas coisas

porque achava que o som do Tortoise era

estranho e do Tom Zé também! (risos) A gente

fez uma turnê com eles por várias cidades

nos EUA. Mas foi duro, eu passei quinze dias

na casa do John McEntire. Tinha que ensinar

aquele samba troncho e aqueles arranjos

malucos pros caras! Eu ficava com as pernas

tremendo, eram oito horas por dia de ensaio.

Mas eles são bem versáteis, tocam todos

os instrumentos. Um sai da bateria, pega

o teclado, outro pega o vibrafone, outro a

percussão…

Falando em instrumento, conta sua história

com eles.

Eu vim da escola de baile, como já te falei.

Mas sempre toquei de palheta, desde pequeno.

Não aprendi com violão de nylon, já comecei

com guitarra base. Essa é minha parada.

Aí, quando assumi sair dos bailes e virar Jarbas

Mariz, tive que escolher um instrumento que

pudesse tocar com palheta. E escolhi a viola

de doze, porque não dá pra dedilhar. Até dá,

mas não é minha praia. Minha praia é ritmo,

e eu acabei me aperfeiçoando em cima da

minha mão direita. No começo, eu tinha muita

influência da bossa e da tropicália, mas a

maioria das pessoas estudava música.

E, como eu sou um autodidata, me safei com

minha mão direita.

E se safou mesmo?

No começo eu ficava cismado, porque achava

que tinha que ir além dos acordes simples,

tinha que fazer aquele negócio dissonante.

Aí depois eu entendi que pra fazer suingue,

que era o estilo que eu gostava de fazer, esses

acordes simples eram uma maravilha! Se eu

fizesse acordes dissonantes jamais seria um

ritmista. Sou cantor, compositor e, antes de

mais nada, um ritmista, porque minha mão é

percussiva.

E a sua história com o Tom Zé?

Foi justamente por conta disso que entrei na

banda de Tom Zé. Eu toco percussão, cordas,

meu bandolim é percussivo. Eu peguei toda

minha bagagem de ritmo e coloquei nesses

instrumentos pra trabalhar com o Tom Zé.

E acabou dando certo. Quando cheguei aqui

em São Paulo, no final da década de 80,

conheci Tom Zé. Estou com ele há vinte anos.

É um casamento danado!

E sigo gravando meus discos em paralelo

ao trabalho com ele. Este ano deve sair uma

coletânea dos meus seis discos.

Tem mais novidades na área?

Eu passei pela vida desse pessoal todinho:

Jackson, João do Vale, Catia, Zé, Quinteto

Violado, Lula… E levei todo esse material pro

rapaz da gravadora Discobertas. Ele vai lançar

tudo. Eu pensei: “Vou guardar pra quem? É

melhor deixar pras pessoas ouvirem.” Demorei

um tempo pra entender que era assim. Meus

amigos falavam que eu era doente. Eu dizia:

“Rapaz, eu não sei disso, não. Tudo que acho

bonito eu guardo”. Depois comecei a entender

que é bom pra mim e pras pessoas que vão

pesquisar um dia isso aí. Eu fico feliz que os

meninos estejam começando a se identificar

com esse tipo de trabalho. 3

2SAIBA MAIS

jarbasmariz.com.br

4JARBAS COM OS SELENITAS

Page 20: Revista +Soma #23

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AS

R E L Í Q U I A S

DE

L U Í S A R I T T E RPOR MARINA MANTOVANINI . RETRATOS POR SAMUEL ESTEVES

COM UM CONHECIMENTO matemático sobre suas pinceladas, LUÍSA

RITTER consegue revelar suas obras em detalhes sem nos fazer perder o encanto por seus quadros impressionistas e nostálgicos. Figuras e cores, ambas ofuscadas por tinta acrílica e outros materiais como lápis grafite, aparecem repetidamente em suas telas e formam uma cena familiar com cheiro de algo antigo, que já ficou para trás. Sem se intimidar com as agruras de viver de arte no Brasil, a artista plástica gaúcha mudou-se para São Paulo em 2008. Desde então, divide um apartamento no bairro de Pinheiros com mais dois artistas de seu estado natal, Carla Barth e Luciano Scherer – amigos impor-tantes para o amadurecimento artístico de Luísa. “Foi em São Paulo que comecei a me preocupar com o meu portfólio. Isso aconteceu quando larguei a publicidade e resolvi me dedicar ao meu trabalho. Eu queria ter alguma coisa autoral para apresentar e até então tinha um banco de dados de vários estudos, uma produção intensa de mui-tas coisas, mas nada pronto”, conta. 1

4DETALHE DA OBRA - LENÇOL TURQUESA/22, TÉCNICA MISTA SOBRE LENÇOL ANTIGO . 2010

Page 21: Revista +Soma #23

21

AS

R E L Í Q U I A S

DE

L U Í S A R I T T E R

Page 22: Revista +Soma #23

22

4BLUMENAU, MAS PARECE TÓQUIO, TÉCNICA MISTA SOBRE CAPA DE DISCO . 2010

Page 23: Revista +Soma #23

23

Durante o período de produção e de organiza-

ção do portfólio, Luísa foi conquistando espaço

no acanhado circuito artístico brasileiro, e hoje

tem suas obras representadas pela galeria pau-

listana Emma Thomas. “Tudo começou a mudar

depois de participar de uma revista de arte e

moda, a Gudi. Uma das curadoras, a Juliana

Freire, era uma das sócias da Galeria Emma

Thomas. Foi aí que recebi o convite para parti-

cipar de duas exposições no final de 2009, no

antigo espaço da Galeria”, relembra. Hoje ela

segue em direção ao reconhecimento pelo seu

trabalho autoral, em que o diferencial fica por

conta do modo como representa o que vê e

transforma suas histórias pessoais em relí-

quias do passado.

Você sempre desenhou?

A minha infância foi privilegiada, era repleta de

natureza, sensações de estar livre para se diver-

tir. Meus irmãos e primos sempre estavam juntos

na casa do meu avô materno. Passávamos boa

parte do tempo no pátio, íamos descobrindo

por todo canto algo para se divertir. Criávamos

um mundo que ia se abrindo conforme desco-

bertas eram feitas – livros, objetos e fotos guar-

dados despertavam a curiosidade de saber a

história que estava por trás dessas memórias.

Sempre via meu irmão mais velho desenhando,

e sempre o acompanhava para ajudar. Mesmo

que ele fosse até o telhado desenhar, eu ia atrás.

Via também meu pai desenhar umas casas de

campo em papéis quadriculados, isso me cha-

mava muito a atenção. Junto com as milhares de

tralhas que meu pai ia acumulando lá em casa,

se criou um universo muito rico de materiais. Fo-

ram os meus primeiros contatos com a arte, de

uma forma básica e espontânea, sem a menor

pretensão. Além de ter na escola a arte como

uma das únicas matérias em que me interessava.

Sempre me via desenhando no caderno.

Você disse que a faculdade abriu novos ca-

minhos na sua arte, e que a Cláudia Barbisan

(artista plástica gaúcha) foi a figura central.

Em que pontos ela é referência em suas telas?

Comecei a frequentar um curso semanal de

desenho, orientado pela Cláudia, que passou

a me dar dicas e a me orientar informalmente.

Algumas vezes ia visitar o ateliê dela e pegava

emprestado algum livro de arte. A Cláudia che-

gava a cada aula trazendo uma mala repleta de

livros, uma seleção de apresentações de formas

de criar, que foi evoluindo junto com o curso

de desenho que ela dava. A influência sempre

vai existir. Ela deixou presença em espaços que

ainda estavam sendo construídos. Era o olhar

de alguém que levantava questões, alternativas

para encaminhar o seu trabalho. Sempre vejo

pequenos detalhes na minha pintura – existem

VEJO O TEMPO PASSADO COMO RELÍQUIAS . HOJE SÃO POUCAS AS COISAS QUE RESISTEM AO TEMPO. ESSAS RARIDADESDO PASSADO ME FASCINAM .

encontros de pinceladas feitas com movimentos

intensos, como nas pinturas da Cláudia. É uma

coisa feita involuntariamente.

Como você cria?

Na verdade, meu processo de criação nunca é

pré-definido, tudo depende do que for aconte-

Page 24: Revista +Soma #23

24

cendo, de como estará o dia, a minha disposição

e o nível de concentração. Meu trabalho começa

primeiro na busca de referências, na soma de

motivação, estímulos e inspiração, que surgem

a partir da pesquisa diária em livros, na internet,

no convívio com outros artistas, no comparti-

lhamento de conhecimentos, desde pintura até

música. Já pintei doze horas seguidas, mas per-

cebi que era necessário sair para ver o que es-

tava fazendo, observar mais. Hoje tento acordar

cedo sempre, e usar a luz do dia, pintando de

quatro a sete horas. É sempre difícil, é preciso

estar presente diariamente para poder evoluir. É

uma obrigação que me dou, e que segue pelo

convívio diário com os outros artistas com quem

divido o ateliê, um empurra o outro.

Um ponto forte do seu trabalho é a reflexão

subjetiva do seu mundo interior na reutilização

de fotos antigas de família. É a partir delas que

você recria imagens deformadas da realidade.

Foi procurando em minhas referências que en-

contrei um mundo muito rico de imagens, fotos

e filmes em Super 8 produzidos ao longo da vida

pela minha família. Vejo o tempo passado como

relíquias. Hoje são poucas as coisas que resistem

ao tempo. Essas raridades do passado me fasci-

nam. Não tanto como algo saudosista, mas para

poder reutilizar de uma nova forma, mais criativa,

resgatar um lado mais orgânico. Levo [as antigas

fotografias] como inspiração para criar, fotogra-

fando e filmando de forma experimental, com

câmeras analógicas e em Super 8.

Resgato essas lembranças que vejo nas fotos de

uma forma quase cronológica. É uma experiên-

cia de resgatar o passado. Quem dera poder vol-

tar no tempo com toda essa bagagem já vivida.

Certamente, iríamos deixar mais lembranças de

momentos bem vividos, registrando os mesmos

passos para serem vistos no futuro.

Ao mesmo tempo que têm características

expressionistas, as suas pinceladas retomam

também o Impressionismo – tanto na textura

como na composição de cores. Como é essa

relação com as duas escolas artísticas?

Para mim é impossível não ter visionários como

eles entre minhas principais referências, assim

como os pré-rafaelitas e os pós-impressionistas.

Os expressionistas manifestavam-se ao mostrar

subjetivamente a natureza e o ser humano, prio-

rizando os sentimentos. Com uma visão metafí-

sica que defendia uma liberdade individual, de-

formando a realidade, uma abertura ao mundo

interior. Foi naturalmente que encontrei essas

duas escolas. A cultura que veio dos primeiros

imigrantes alemães permaneceu com o tempo

nos costumes e hábitos de toda uma região do

Sul do Brasil, que trouxe na bagagem aconteci-

mentos históricos vividos na Europa. À medida

que fui desenvolvendo e avançando o meu de-

senho, cada vez mais acentuava os traços dessa

herança cultural.

Você sempre fala sobre a importância de sua

herança cultural e do convívio com a natureza

em Montenegro (cidade próxima a Porto Ale-

gre) na concepção de suas telas.

Eu cresci sabendo a história do meu estado. Era

algo muito vivo nas famílias, nas escolas, apren-

der a cantar o hino rio-grandense e a história do

Rio Grande do Sul fazia parte da educação. Nas-

ci e cresci numa cidade com forte influência ale-

mã, com pequenas colônias de imigrantes no in-

terior, onde minha família viveu. Até os oito anos

de idade o meu avô paterno só falava alemão.

Era comum nos dois lados da família ouvir pe-

quenas palavras do dialeto, tanto no Ritter como

no Zimmer. Os imigrantes europeus deram uma

importante contribuição à formação do gaúcho.

A ética do trabalho, o cultivo da terra, os vá-

rios pratos da nossa culinária, cucas (pão/bolo

doce) com schimier (doce de frutas) e nata, e na

salada com maionese que acompanha um ver-

dadeiro churrasco gaúcho, com costela de gado

e uma bela ovelha. É uma educação que se tem

junto à natureza, à terra, nos seus devidos valo-

res. Não tem como se desvincular disso.

. . . MEU PROCESSO DE CRIAÇÃO NUNCA É PRÉ-DEFINIDO, TUDO DEPENDE DO QUE FOR ACONTECENDO, DE COMO ESTARÁ O DIA, A MINHA DISPOSIÇÃO E O NÍVEL DE CONCENTRAÇÃO.

Os seus desenhos já foram parar em um clipe

da música “Antes de Você”, dos Titãs. Como foi

essa experiência?

Uma amiga de Porto Alegre que mora aqui em São

Paulo lembrou de mim quando estava trabalhando

na produção. Ela perguntou se eu estava a fim de

pintar uns sacos de papel para um trabalho.

No primeiro momento, confesso que achei es-

tranho e disse que não. Em seguida ela me con-

tou que era para o clipe dos Titãs. Foi algo bem

informal mesmo, as pessoas que estavam fazen-

do os outros desenhos eram da própria equipe

da produtora. No mesmo dia em que recebi o

convite, comecei a produzir com uma pequena

ajuda de custo para os materiais. A reação deles

foi bem positiva. Não imagino o que eles espe-

ravam, se algo mais simples de canetão, mas a

pintura em camadas, bem expressiva, eu sabia

que iria se destacar. Queria tirar aquele padrão

de saco de papel. Fiz bem tranquila, não tinha

ideia de como estaria inserido no clipe, e o

quanto iria repercutir a minha pequena partici-

pação na produção.

Como você enxerga os trabalhos mais comerciais?

É importante ter liberdade de escolha, fazer tudo

em seu estilo. Levei o meu trabalho a sites na

internet desde que entrei na faculdade e come-

cei a desenhar. Ia salvando no Flickr, o primeiro

passo para publicar em revistas e ilustrar jornais.

É um passo para começar a se movimentar pelo

mundo, um portal para referências e contatos,

para aprender e evoluir. Passei a criar a partir de

briefing em São Paulo, quando as oportunidades

foram surgindo. Aos poucos produzia minhas

telas e ao mesmo tempo ilustrava para revistas

e jornais. A reação de quem vai receber a minha

arte faz parte da decisão de fazer ou não um

trabalho, mas sei que de alguma maneira sou

retribuída, tendo oportunidades posteriores,

convites para entrevistas e exposições. É preciso

saber a importância do trabalho, se vale a pena

unir a sua imagem com a marca em questão.

A melhor forma de enxergar essas oportunidades

é ver o trabalho como um desafio, uma chance

de ser reconhecia. Atualmente tenho o apoio

da agência Möve para trabalhos comerciais.

Lá tenho a chance de querer ou não, e o contato

com o cliente fica intermediado por eles, solucio-

nando várias questões burocráticas em que não

preciso me envolver.

Defina o seu trabalho.

Acredito estar sempre evoluindo, modificando

a forma de me expressar e fazendo com que

vários pontos aleatórios se unam. Mostro algo

realista mas obscuro, sem entregar totalmente

a imagem, deixando somente rastros e lem-

branças que fazem sentido combinados com

outras formas. 3

2SAIBA MAIS

flickr.com/photos/luisaritter

Page 25: Revista +Soma #23

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4LITTLE JOY, TÉCNICA MISTA SOBRE TELA . 2010

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k o u d l a m

Com sabor de eletrônico mundial, Koudlam instaura sua visão monumental do techno world no coração da nossa ofegante civilização pós-milênio. Após o inesgotável Goodbye (2009, relançado em formato digital este ano) e antes de um novo EP chamado Alcoholic’s Hymns, previsto para maio, tentamos compreender por que sua música nos faz fantasiar tanto. Uma obra de origem marginal também pode encontrar formidável repercussão em sua época. 1

A obra de Koudlam cultiva já há cinco anos essa capa-

cidade. Apaixonado por paisagens, monumentos,

culturas, ritos, a alteridade sob todas as for-

mas, ele perscruta nossa pós-modernidade

cansada de si mesma e impõe sua gran-

de visão do eletrônico neste mundo de

mensagens tão vazias. E faz isso com

ares de conquistador e xamã; de he-

rói, enfim. Emergido das ruínas, pro-

jeta sobre elas os fantasmas con-

temporâneos que o ultrapassam.

Intimado a encarná-los, quiçá pre-

encher ele mesmo essas lacunas,

Koudlam esforçou-se para guardar

um certo mistério sobre si mesmo –

uma forma de mostrar que ainda não

está pronto para levar sua arte à altura

do homem, o que incomoda, fascina e

impõe respeito. É por isso que sentimos

uma certa pressão antes de encontrá-lo

pela primeira vez. O sentimento é de que nada

conseguiremos tirar desse encontro. Atitude exa-

gerada, humor violento, silêncio sepulcral? Por já ter-

mos nos deparado com sua silhueta passiva-agressiva

nas casas de show, temíamos nos chocar contra uma

armadura de cinismo na superfície do gênio. Por sorte,

bastava ouvir sua música novamente – que além do

citado inclui Nowhere (2006) e Live At Teotihuacán

(2008) – para que a vontade de confrontá-lo voltasse.

Tentamos, então, elaborar o interrogatório da melhor

forma possível, a fim de revelar um pouco de íris por

debaixo dos óculos escuros.

Descemos ao segundo subsolo de um prédio do déci-

mo-primeiro arrondissement de Paris, um labirinto de

portas idênticas que davam para os porões. Avista-

mos Arthur, jovial patrão da gravadora Pan European

Recording. “Você não teve problemas para nos achar?

Tem que tomar cuidado, tem um clube SM hardcore

logo ali em cima.” Ele não estava brincando. No es-

túdio, um forte cheiro de maconha toma conta da at-

mosfera, indicando que chegamos ao nosso destino.

POR MICHAËL PATIN, DE PARIS . TRADUÇÃO DE ANA FERREIRA ADÃO4FOTO POR ALICE KNIGHT

Page 28: Revista +Soma #23

28

É aqui que Koudlam prepara seu novo EP, assim

como seu terceiro álbum. Logo no início da con-

versa, as nossas antigas apostas caem por terra:

palavras generosas e calmas de um jovem abra-

çando plenamente a vida de artista. Sem piadas

internas para os descolados, sem literatura de

slogan, mas atitudes e engajamentos que con-

firmam seu papel de desbravador.

A trajetória de Koudlam não poderia ser con-

vencional. Depois de uma passagem forçada

pelo conservatório durante a infância, montou

grupos de rock e foi rapidamente iniciado por

seu irmão mais velho no manejo de instru-

mentos eletrônicos. Ao ingressar no mundo

das raves hardcore, despejou sua “música de

guerra” por quase dez anos, antes de ser aco-

metido pelo cansaço (“muitas drogas, muitos

babacas violentos”). Daquele período, ele

conservou o apelido (Koudlam é uma corrup-

tela de “coup de lame”, ou “golpe de lâmina”)

e o gosto pelos sons que atacam o cérebro

das multidões. Nowhere, seu primeiro sinal

de vida, foi criado como questão de urgên-

cia. “Produzi o Nowhere sozinho, porque as

músicas estavam se acumulando e eu queria

passar pra outra coisa. Pra dizer a verdade, eu

temia na época que o mundo estivesse com-

pletamente fodido e que ninguém se interes-

sasse pela minha música.” Nesse álbum, sua

música já estava poderosamente formulada:

um tecnho world entre transe, raiva, caos e

iluminação. “Esse álbum é um massacre”, re-

conhece hoje. Mas o estalo viria de outro lu-

gar, de uma galáxia aparentemente distante: a

arte contemporânea. Em uma temporada no

Vietnã, encontrou-se com o artista plástico

Cyprien Gaillard, que lhe abriu portas para no-

vas e extraordinárias perspectivas. Uma forte

e recíproca admiração entre dois artistas, en-

tão desconhecidos, que pensam grande. “Nós

trabalhamos juntos no Desniansky Raion, um

vídeo para o qual eu compus uma trilha sono-

ra de trinta minutos e que levei meses e meses

para criar. Teve também o Crazy Horse, que

fala dos índios e de suas montanhas dinami-

tadas por um escultor polonês. Eu fiz essas

performances em lugares que correspondiam

à nossa estética, quando era possível e quan-

do nos proporcionavam os meios. Terraços de

prédios, topos de guindastes, pirâmides, flo-

restas, teatros italianos, ruínas e precipícios

pelo mundo inteiro.”

Enquanto seu sócio entrava no rol dos grandes

(prêmio Marcel Duchamp em 2010, com vendas

chegando aos cem mil euros), Koudlam execu-

tava seu número de ginasta com uma

desenvoltura desconcertante. “Eu

não via isso como um desvio

muito grande. Na época,

estava convencido de que

a minha carreira artísti-

ca funcionaria melhor

na pintura. Mas me

dei conta de que,

sem dúvidas, eu era

melhor nas melodias

e no canto, que eu

devia fazer só isso.”

Como Serge Gains-

bourg já havia feito

antes, Koudlam deixou

de lado os pincéis para

abraçar uma “arte menor”. O

talento da composição, que ele

evoca modestamente, conta muito

para o sucesso de seu diálogo com imagens

e paisagens, talvez ainda mais que a performan-

ce dos instrumentos eletrônicos que usa. Seu

desejo, atualmente, é ser ouvido pelo máximo

possível de pessoas e de abrir novos horizontes

a todos, uma ilusão que ele endossa com espíri-

to cavalheiresco. “A dimensão monumental me

agrada, mas acho que a minha música é de fácil

acesso. Muitas das minhas canções são bastan-

te universais, leves e envolventes.” Goodbye,

seu disco mais bem finalizado até hoje, prova

que ele tem razão: de amplitude e clareza ra-

ras, ouvimos esse disco como se estivéssemos

sonhando com um mundo outro, que devemos

(re)povoar juntos.

LIVE AT TEOTIHUACAN Um segundo momento fundador é seu encontro

com Arthur Peschaud, um ano antes da criação

da Pan European Recording. Fiel a sua primeira

intuição, Peschaud publica o EP-vinil Live At Teo-

tihuacan como primeira referência da gravadora

“NÃO ME CONSIDERO UM

ARTISTA PARISIENSE, NEM MESMO FRANCÊS.

TRABALHO EM PARIS HÁ ALGUNS ANOS, MAS MEU

CORAÇÃO E MINHA CULTURA NÃO SÃO DAQUI. EU ME SINTO

MAIS EM CASA NA ÁFRICA OCIDENTAL, NO MÉXICO OU NOS ALPES FRANCESES QUE

EM PARIS, AINDA QUE EU GOSTE MUITO DESTA

CIDADE.”

4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD

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lançada em 2008. No mesmo ano, os violinos sin-

téticos ansiosos de See You All encontram um lu-

gar digno na trilha original do filme Un Prophète

(2009), obra-prima de Jacques Audiard, que re-

cebeu muitas premiações. Koudlam continua, no

entanto, a cultivar sua singularidade, alheio aos

efeitos de modas e clãs, escapando de todos os

atalhos estéticos ou geográficos. “Não me consi-

dero um artista parisiense, nem mesmo francês.

Trabalho em Paris há alguns anos, mas meu co-

ração e minha cultura não são daqui. Eu me sinto

mais em casa na África Ocidental, no México ou

nos Alpes Franceses que em Paris, ainda que eu

goste muito desta cidade.”

Esse nomadismo materializado

é a chave para entender o

impacto de suas criações.

Se ele se furta de exibir

uma atitude reacionária

em vista da tecnolo-

gia (não há culto ao

sintetizador vintage,

o que faz dele uma

exceção até mesmo

em sua gravadora),

furta-se também de

chafurdar nas facilida-

des permitidas por ela.

“Quando comecei a fazer

música eletrônica, comprei

um monte de máquinas enor-

mes – samplers, sintetizadores,

mesas de mixagem… Quando vieram

os plug-ins e o PC se tornou um home-studio

por si só, eu nem hesitei em vender meu an-

tigo material. Eu perdia na qualidade do som,

mas ganhava na liberdade de movimentos, o

que, pra mim, é o mais importante.” Tirando o

melhor do nomadismo em sua acepção tradi-

cional (gosto pela aventura, antissedentaris-

mo) e pós-moderna (essas tecnologias que,

paradoxalmente, permitem que as pessoas fi-

quem imóveis diante da tela do computador),

ele repõe o risco no centro de sua abordagem,

evidenciando esse paradoxo contemporâneo.

Nos tempos atuais, o artista deve ser móvel;

ele se reapropria do território para comba-

ter a ilusão de estar em todos os lugares ao

mesmo tempo. “Estou em guerra contra o

desaparecimento da cultura e das línguas, a

decadência da nossa civilização, contra o bom

pensamento, que está em todo lugar. Acho

que devemos defender a sociedade, mas en-

fim, eu sou só um músico.”

Esse último traço de modéstia nos espanta; ele,

que ainda recentemente imaginávamos um me-

galômano descomplexado. “A verdade é que eu

tenho, ao mesmo tempo, a maior e a mais mise-

rável autoestima. Um grande clássico.” Franque-

za e lucidez em vez de autoficção e autofelicita-

ção. E o controle drástico que ele parece impor

a sua imagem? Nada mais que a expressão de

uma necessidade de independência. “Se você

deixa os outros fazerem as coisas por você, pode

acabar cheio de plumas enfiadas no rabo, ves-

tido de Hugo Boss. Sempre tem uns diretores

artísticos, uns estilistas cujo estilo você odeia.

Eu tento evitar isso, mesmo que o meu agente

não fique muito feliz. Também procuro conser-

var uma opacidade para deixar a minha música

viver, não limitar a sua extensão dando explica-

ções. A música supera o artista, ela provém de

estados mentais que lhe escapam.” Ele persevera

nessa posição a cada dia que Deus, o Diabo, ou

a Serpente Cósmica, lhe oferecem, sem se pre-

ocupar com as fronteiras físicas ou midiáticas.

“Eu terminei há pouco uma trilha original para

um documentário gravado no Senegal, dirigido

por dois austríacos. Quase terminei o EP que sai

em maio e estou avançando no meu próximo ál-

bum, previsto para fim de novembro. Depois da

minha temporada na Bolívia e de algumas idas a

Londres, suspendi todos os meus shows, porque

quero preparar um novo live, em que certamente

estarei acompanhado. Também tenho em vista

um projeto de vídeo experimental que vai se pas-

sar nas montanhas com o Frederik Jacobi, que

era alpinista. Sou apaixonado por alpinismo e fiz

com que ele voltasse ao seu antigo ambiente…

A mulher dele deve me detestar.”

Uma última e breve gargalhada e ele enfim nos

convida a ouvir suas novas demos. Na sua cabi-

ne de espaçonauta, o som é imenso. As chuvas

de melancolia arpoam nosso peito, os prédios

desmoronam em ondas, uma alegria pegajosa se

instala. Aliviados dos fantasmas redutores que

concernem ao homem, é tempo de declarar nos-

so amor incondicional ao artista Koudlam. Pelo

que ele cumpre e quer cumprir, seus combates

e suas visões, por todas as majestosas vertigens

– musicais e ontológicas – que ele oferece ao

homem do terceiro milênio. Um gosto doloroso

de paraíso no coração do nosso inferno. 3

“ESTOU EM GUERRA CONTRA O

DESAPARECIMENTO DA CULTURA E DAS LÍNGUAS, A DECADÊNCIA DA NOSSA

CIVILIZAÇÃO, CONTRA O BOM PENSAMENTO, QUE ESTÁ EM

TODO LUGAR. ACHO QUE DEVEMOS DEFENDER A

SOCIEDADE, MAS ENFIM, EU SOU SÓ UM MÚSICO.”

2SAIBA MAIS

koudlam.com

4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD

Page 32: Revista +Soma #23

Tal qual um homem-bomba, que abre mão da sua identida-de em nome de uma ideologia, Edu Monteiro esconde o rosto sob máscaras, obscurecendo sua condição humana à medida que se transforma em um ser híbrido. A diferença, entretanto, reside na poética que o artista alcança, brutal por um lado, re-

pleta de humor por outro.

As texturas que o fotógrafo busca em

elementos orgânicos – plantas, pimen-

tões e carvões – aproximam sua pes-

quisa daquilo que Archimboldo fazia

na pintura: retratos que confundem os

sentidos ao deturpar a própria natureza.

Já as imagens que ele obtém através da

fusão do corpo humano com o corpo ar-

tificial – cigarros e bichinhos de pelúcia –

remetem a um futuro sombrio ou deca-

dente, habitado por criaturas mutantes.

De uma forma ou de outra, a carga

política é intrínseca ao trabalho do

artista, seja nas mutações orgânicas

que suscitam discussões ecológicas,

seja naquelas em que o consumo se

sobrepõe ao indivíduo, modificando

suas feições, como se houvesse adul-

terado sua carga genética.

Os híbridos construídos na série de au-

torretratos são tão plurais quanto ex-

cludentes, evidenciando e ocultando

as complexas facetas que forjam e tão

bem caracterizam a espécie humana.

BERNARDO JOSÉ DE SOUZA

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2S

AIB

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Page 42: Revista +Soma #23

42

V B E RK V L T

POR THIAGO VAKKA . FOTOS ACERVO DO ARTISTA

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44

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45

é um artista com traço particular e facilmente reconhecível. Além de ter produzido ilustrações para bandas como Sunn O))), Boris, Moss e Trap Them, entre toneladas de outras, tem no portfólio coisas como o rótulo de um vinho e um comercial para

a marca de roupas Anti Sweden. E exposições, inúmeras delas. Na entrevista a seguir, Bartlett fala sobre assuntos diversos como seu processo criativo, briefings comerciais, materiais que usa, o dilema arte digital x arte manual, sua relação com o guitarrista Stephen O´Malley e outros designers que admira. Tudo com um puta

bom humor. Ah, sim: ele também fala sobre metal. Pra caralho. 1

J U S T I N B A R T L E T T ,

O U V B E R K V L T ,

Justin, Qual foi seu primeiro trampo pra uma

banda? Como aconteceu?

O primeiro trabalho de verdade foram a capa/

layout dum disco do Cadaver Inc., chamado Dis-

cipline, de 2001, saiu pela Earache e tal. Antes

disso, tinha feito alguns outros trampos pra eles,

mas esse foi o primeiro álbum completo que fiz

para um selo e que me rendeu pagamento. Dei um

jeito de entrar em contato com o Anders Odden,

meio que o chefão do Cadaver, lá pelos idos de

98, quando soube que a banda

estava voltando. A primeira vez

que ouvi o Cadaver foi naquela

compilação Grindcrusher e de-

pois em Hallucinating Anxient

e In Pains, muitos anos antes,

e eles me impressionaram pra

cacete, por serem diferentes

da maioria de seus contem-

porâneos. De qualquer forma,

Anders tocava no Apoptygma

Berzerk e no Magenta e sen-

tiu uma necessidade de tocar

metal de novo. Aí, junto com

o Lasse [Johansen], do Dis-

gusting, mais o Agressor e o Apollyon, do Aura

Noir, ressucitaram o Cadaver como Cadaver Inc. e

lançaram uma puta demo dum death metal ultra-

-rápido/voivodiano/grindeiro chamada Primal.

Fiz toda a arte dela e do morbidamente bem-

-humorado cadaverinc.com, que era um site de

mentira promovendo um serviço de limpeza de

cenas de crime e remoção de cadáveres. A polícia

norueguesa conduziu uma investigação sobre isso

e caiu até no MTV2 News! Como você pode ima-

ginar, fiquei do lado dos caras e fiz a arte do de-

but deles, Discipline, bem como uma porrada de

camisas, coisas pra web e também o outro disco,

Necrosis, que é um negócio do além!

Em uma outra entrevista sua que li, você afir-

mava que não desenhava fazia tempo, que

costumava criar aleatoriamente, apesar de seu

trabalho ser muito detalhado. Algum dia você

imaginou que poderia vender essas artes?

Eu desenhava demais quando era moleque e

também fiz parte dos “artistas” responsáveis

pelo anuário do 2º grau por uns dois anos.

Larguei tudo no último ano, porque os caras

eram uns cretinos arrogantes. Além disso,

também estudei na classe

mais avançada de artes da

minha escola (que era uma

piada). Nunca levei muito a

sério o que fazia. Uns anos

depois, mudei da faculdade

de biologia pra design gráfi-

co e senti aquela vontade de

desenhar de novo. Construir

ilustrações digitais através

de outros materiais ou fazer

colagens meio que deixava a

desejar, em termos de criati-

vidade. Acabei fazendo um

curso de desenho, que era

requerimento para me formar. Após retomar

o contato com artes, foi natural voltar a dese-

nhar. Houve um lapso de tempo enorme, coisa

de uns 13 anos, entre desenhar nos tempos de

escola e o que faço atualmente, o que já dura

uns cinco ou seis anos. Nunca desenvolvi um

estilo ou aprimorei minhas habilidades, tudo

simplesmente fluiu assim. Também não levei

em consideração a parte de “negócios” do meu

trabalho ou sequer pensava em vendê-lo até

recentemente, o que é bacana. Meio que vivo

das minhas ilustrações e ainda faturo um extra

vendendo os originais.

4PRIMEIRA CRIA

Page 46: Revista +Soma #23

46

Page 47: Revista +Soma #23

47

Page 48: Revista +Soma #23

48

Você recebe algum briefing ou tem liberdade

total pra criar?

Em pouquíssimas vezes houve um briefing cria-

tivo, digamos, oficial. Um deles foi pra marca de

jeans Anti Sweden, outro foi para o rótulo dos vi-

nhos Wongraven (sim, do vocalista do Satyricon).

Ainda assim, era tudo bem livre. Quando se é um

ilustrador relativamente conhecido, os clientes

vêm até você por conta do seu estilo e já têm

uma ideia pré-estabelecida do que você fará – ao

menos em termos de técnica. Eu diria que planejo

o direcionamento visual na maioria dos trampos

que faço. Tudo baseado nas letras de música, no

nome do disco ou na temática envolvida, mas

são minhas interpretações da ideia de terceiros.

Como vou fazer é domínio exclusivo meu. Alguém

me pede pra desenhar um bode, mas não aceito

instruções específicas a menos que estejam me

pagando e tratando tudo num nível estritamente

profissional, o que dificilmente acontece quando

você lida com o mundo da música.

Você poderia nos falar um pouco do seu proces-

so de trabalho? Normalmente, quanto tempo se

passa entre seu primeiro contato com o cliente

e a entrega da arte?

Após a ingestão de uma saudável mistura de

sangue podre de porco e veneno fermentado

de cobra, medito sob um eclipse de lua cheia.

As imagens surgem do vácuo negro do centro

de minha mente. Transmutando-se através de

barreiras físicas de carne, o sangue negro pu-

trescente de bodes pretos emana das pontas

de minhas canetas, feitas de bicos de corvos e

passadas a papel colhido de pinheiros transil-

vanos de 666 anos de idade. Não há forma de

expressar a duração de meus projetos através

de convenções humanas como espaço e tempo.

Vi alguns rascunhos no seu blog e deu pra sacar

que você usa bastante nanquim. Poderia falar

um pouco mais do seu “arsenal”?

Nanquim? Nunca ouvi falar de tal coisa. Em con-

junto com os bicos de corvo, tinta de sangue de

bode e papel ancião, costumo usar lápis com

pontas de chumbo minadas das mais profundas

e obscuras tumbas abaixo do Gólgota.

Boa parte do seu trabalho tem alguma relação

com Stephen O’Malley (Sunn O))), Burning Wi-

tch) e vice-versa. E todos sabemos que o rapaz,

além de músico, também é um artista com vá-

rias grandes criações em seu portifólio. Como

foi trabalhar com ele? Ficou preocupado em

receber alguma crítica negativa?

Conheço o Stephen há uns doze anos e somos

amigos – não melhores-amigos-desde-a-infância,

mas saímos juntos quando nossos caminhos se

cruzam. Nos falamos muito pela internet, trocan-

do alguns dos trabalhos em progresso e mp3, coi-

sa e tal. Quando voltei a desenhar, mandei pra ele

uns desenhos que tinha feito e ele me pediu pra

fazer a capa do EP La Mort Noir, do Sunn O))).

Nada mal para um primeiro projeto. Já conhecia o

Stephen fazia algum tempo, então não foi nada de

outro mundo, como se um deus do design/drone

me resgatasse das profundezas da internet. Mui-

ta da suposta “aura” ao redor de várias bandas e

músicos foi desmistificada comigo. Então nem me

preocupei com qualquer forma de crítica negativa

que poderia receber dele. O rapaz conhecia o meu

trabalho, e eu quase sempre faço tudo certinho.

Somente uma vez desenhei algo que nós dois de-

cidimos não usar. Sempre faço um rascunho preli-

minar das minhas ideias e passo pros clientes.

Ainda sobre sua parceria com o SOMA (nome

artístico de O’Malley), muito do que você faz se

relaciona com doom/drone. São gêneros que

você escuta? O que você acha de ligarem seu

trampo a isso?

Sim, há uma parte do meu trabalho que tem a ver

com drone, como Sunn O))) e outros como Gra-

vetemple, Pentemple, Locrian e Detritivore (devo

estar esquecendo de alguma coisa, então me per-

doe se você ler isso), mas também trabalhei com

vários outros gêneros. Mas parece mesmo que

meu trabalho se fixa em drone e também “hardco-

re metálico” (seja lá o que isso for!). Curiosamente,

não escuto nenhum dois com frequência. Através

dos anos, explorei (creio) quase tudo que é forma

de música underground que você possa imagi-

nar: eletrônico, noise, punk. Em termos de metal

extremo, tudo começou com death metal. Apa-

rentemente, retornei às minhas raízes musicais.

Apesar de curtir muito black metal, algo de drone,

hardcore, punk e noise, eu AMO death metal.

Não essas bandas mega punheteiras lixo

moshcore ou death metal ultrabrutal. Falo dos

sons da velha guarda, death sueco (mais pra

Estocolmo e não Gotemburgo!), death/black

bárbaro feito por homens das cavernas, qual-

quer coisa que soe como ou faça referência a

Incantation, Autopsy, Carcass, Morbid Angel,

Cadaver, Bolt Thrower, Repulsion, VON, Entom-

bed... E também Discharge, Motörhead, Sodom,

Voivod, Mercyful Fate e Slayer.

“ A p ó s a i n g e s t ã o d e u m a

m i s t u r a d e s a n g u e p o d r e d e

p o r c o e v e n e n o f e r m e n t a d o

d e c o b r a , m e d i t o s o b u m

e c l i p s e d e l u a c h e i a . A s

i m a g e n s s u r g e m d o v á c u o

n e g r o d a m i n h a m e n t e .

T r a n s m u t a n d o - s e a t r a v é s d e

b a r r e i r a s f í s i c a s d e c a r n e ,

o s a n g u e n e g r o p u t r e s c e n t e

d e b o d e s p r e t o s e m a n a d a s

p o n t a s d e m i n h a s c a n e t a s ,

f e i t a s d e b i c o s d e c o r v o s e

p a s s a d a s a p a p e l c o l h i d o

d e p i n h e i r o s t r a n s i l v a n o s d e

6 6 6 a n o s d e i d a d e . N ã o h á

f o r m a d e e x p r e s s a r a d u r a ç ã o

d e m e u s p r o j e t o s a t r a v é s d e

c o n v e n ç õ e s h u m a n a s c o m o

e s p a ç o e t e m p o . ”

4VINHO DO VOCALISTA DO SATYRICON

Page 49: Revista +Soma #23

49

Do outro lado do espectro musical, pós-punk e

eletrônico como The Cure, Joy Division, Depe-

che Mode, Death In June, Swans... São esses os

dois “reinos” de música que mais aprecio.

Sobre relacionarem minha arte ao drone? Não

me incomoda, é melhor do que ser associado ao

nu-metal ou emo ou brutal death metal super

retardado com partes mosh louconas e vocais

de porquinho e breakdowns. Acho que, como o

estilo e mesmo a fluidez da música é meio va-

porosa e difícil de definir, combina com minhas

criações. Pelo jeito, meu trabalho transcende vá-

rios gêneros, enquanto os artistas que conheço

trabalham apenas em um tipo de música (o que

é ok, aliás). Tenho um projeto bem old-school

vindo por aí, na veia do metal que escuto... Tô

bem empolgado com isso.

Hoje em dia, boa parte do processo relaciona-

do à produção do artwork de bandas é feito

digitalmente. Você gosta de trabalhar dessa

forma? Em algum momento o processo digital

te atrapalha ou incomoda?

Há arte digital boa e arte digital ruim. Todo ar-

twork atual é digitalizado em algum grau. Sim,

sei que algumas bandas continuam fazendo

tudo 100% analógico e kvlt, com xerox, colagens

em fitas k-7, mas creio que seja uma porcenta-

gem muito, muito pequena. Até coisas old-scho-

ol são, em algum momento, escaneadas e ma-

nipuladas através de software e transformadas

“ S o b r e r e l a c i o n a r e m m i n h a

a r t e a o d r o n e ? N ã o m e

i n c o m o d a , é m e l h o r d o q u e

s e r a s s o c i a d o a o n u - m e t a l o u

e m o o u b r u t a l d e a t h m e t a l

s u p e r r e t a r d a d o c o m p a r t e s

m o s h l o u c o n a s e v o c a i s d e

p o r q u i n h o e b r e a k d o w n s .

A c h o q u e , c o m o o e s t i l o e

m e s m o a f l u i d e z d a m ú s i c a

é m e i o v a p o r o s a e d i f í c i l d e

d e f i n i r , c o m b i n a c o m m i n h a s

c r i a ç õ e s . ”

Page 50: Revista +Soma #23

50

em PDF. Trabalho digital bom tem sua origem

em formato analógico. Fotos escaneadas, pin-

turas, desenhos, texturas alteradas e fodidas no

Photoshop – ainda assim com origem no mundo

real. Arte digital ruim é normalmente criada em

algum renderizador 3D com muito brilho, efeitos

cromados e fogo (risos).

Sinceramente, a questão é artistas bons x artis-

tas ruins. Computadores e pincéis são apenas

ferramentas – se você é ruim, cria merda inde-

pendentemente do que está usando. Tem uma

tonelada de discos que usa artwork tradicional

e fica um lixo horrendo (cópias de Mark Riddick,

por exemplo) e por outro lado existem discos

com maior uso de software que são foda (Sel-

don Hunt, Travis Smith, Stephen O’Malley, Kevin

Yuen, Broken Press). Ainda assim, se encontram

porcarias como umas capas do Monstrosity e

do OV HELL, ugh!

E sobre o vinho lá do Satyr, como foi o pro-

cesso criativo? Vocês já se conheciam? Você

provou o vinho?

Não sei ao certo quanto tempo e esforço foram

necessários antes do meu envolvimento com

esse lance do vinho. Só fui chamado para de-

senhar o rótulo, quase no final. Martin Kvamme,

o designer norueguês responsável pelos logos,

texto e embalagem teve meio que um bloqueio

na hora de fazer a ilustração. Aí ele mostrou

uma lista com vários ilustradores pro Sigurd

(Wongraven, nome de batismo de Satyr) e

acabei sendo escolhido pra desenhar o bestial

mascote. Foi tudo bem direto, o Sigurd queria

um sátiro, basicamente, não muito malvado ou

metal, mas algo entre fantástico e assustador.

Claro que há alguma referência a Labirinto do

Fauno, mas não creio que seja tão derivativo

assim. Se você prestar atenção, pode ver o S do

Satyricon ali, num pingente de colar, por trás

dos braços e cabelo... Foi ideia minha! E não,

não provei o vinho.

Há alguma banda que você acredita casar com

sua arte e com a qual você gostaria de traba-

lhar, mas ainda não teve a oportunidade?

Voivod ou Rudimentary Peni? (risos) Não

pensei muito nisso, mas sempre tive esse pro-

jeto, que planejo há anos e ainda vai demorar

pra cacete pra acontecer mesmo, então não

vejo por que diabos não falar sobre ele ago-

ra... Recentemente, o Darkthrone lançou um

concurso para que os fãs refizessem a arte

do relançamento de Goatlord (demo de 1991

lançada em 1997). É um dos meus discos favo-

ritos e já penso há um tempo em criar um de-

senho pra cada faixa do disco e lançar como

uma espécie de tributo. O que caga tudo é

Page 51: Revista +Soma #23

51

Posso dizer que sou leitor assíduo do seu blog,

e você parece ter muitos vinis, alguns inclusive

à venda no eBay. Você se considera um colecio-

nador? Há algum disco que você não passaria

pra frente de forma alguma?

Acho que sou um colecionador, sim, talvez não

tão ávido quanto antes. Não tenho frescura em

admitir que baixaria um CD ou daria um jeito de

ouvi-lo online antes de decidir comprar.

Tem muita música por aí hoje em dia, e o aces-

so é cada vez mais fácil. Cá entre nós, 80% do

que é lançado é uma bosta ou completamente

redundante. Até metal! Existem bandas demais.

Prefiro música country/pop a metal ruim, sério!

Caralho, a maioria dos filmes, programas de TV,

artes e até pessoas são lixo.

Durante os anos, juntei uma quantidade razoá-

vel de discos, EPs e CDs e acabei chegando à

conclusão de que o que importa é qualidade e

não quantidade. Quero uma vida mais simples

e com menos cacarecos, então algumas coisas

tiveram que ir. Tem um monte desses mesmos

cacarecos que eu não vendo de forma alguma,

a não ser que seja um caso de vida ou morte.

Vendi meu boxset do Burzum há uns seis anos

pra poder pagar o aluguel, depois de ter voltado

a estudar e estar desempregado por uns meses.

Não que eu fique chorando toda noite porque

não posso ouvir o Filosofem em vinil, mas seria

bom ainda tê-lo na minha coleção. E por falar

nisso, vendi meu Black Earth do Bohren und der

Club of Gore e uns Assück e Autopsy que preci-

so readquirir! (risos)

Uma curiosidade, ainda sobre o seu blog: um

tempo atrás, o seu gato Dio participou de uma

espécie de concurso, e, como também tenho ga-

tos, votei nele (risos). Como terminou a votação?

(Risos) Não sei, nunca recebi nenhum e-mail

ou aviso sobre qualquer coisa, mas pra mim ele

sempre será um campeão. (risos)

Justin, agradeço pelo seu tempo, agora o espaço

o final é seu pra dizer o que bem entender pra

quem estiver lendo esta entrevista.

Bem, valeu por me entrevistar… Só queria mandar

aquele alô pra Jesus Cristo, porque sem ele nada

disso seria possível! 3

que mal tenho tempo pro meu trabalho de

fato e ainda nem consegui mandar nenhum

desenho pro concurso, entende? Bem, talvez

daqui um ano eu consiga terminar minha pe-

quena homenagem a Goatlord.

Há algum trabalho seu que você considera um

favorito e outro que não curta tanto?

Não fico ruminando sobre o que eu gosto

mais ou não. Na real, eu penso nas coisas que

mais gosto e tento desenvolver essas ideias.

Digamos que, quando você trabalha como

designer ou ilustrador em período integral

(no meu caso, não é um extra ou coisa do

tipo), tem que aceitar projetos com os quais

não vai se empolgar muito. Sabe como é, con-

tas, aluguel e comida te fazem trabalhar só

pelo dinheiro mesmo. Tento dar meu melhor,

ainda assim.

“ S ó q u e r i a m a n d a r a q u e l e

a l ô p r a J e s u s C r i s t o ,

p o r q u e s e m e l e n a d a d i s s o

s e r i a p o s s í v e l ! ”

2SAIBA MAIS

vberkvlt.com

Page 52: Revista +Soma #23

E N T R E ( o U t r o s )

entre (oUtros)

ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE

MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A

ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.

APOIO

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço?

Mande um email para [email protected] com amostras

da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

Page 53: Revista +Soma #23

4FLAVORS.ME/ALEXANDRECOLCHETE

ALEXANDRE COLCHETE

Nascido em Campinas e criado no Rio de Janeiro, ALEXANDRE COLCHETE, de 24 anos,

chegou a flertar com o graffiti quando era adolescente, mas foi mergulhar de verdade

no mundo da arte apenas mais tarde, influenciado pela cultura musical do remix e por

artistas como Basquiat e Manet. “Macacus”, abaixo, é um dos poucos trabalhos em tela

do artista, que costuma usar tinta acrílica, papel e materiais menos tradicionais em suas

composições.

Page 54: Revista +Soma #23

54

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/ADRIANAMARTO

ADRIANA MARTO

A arquiteta paulistana ADRIANA MARTO, de 23 anos, desenha desde que ganhou sua

primeira caixa de lápis de cor, aos 4 anos. Influenciada pelas linhas finas e hachuras de

M. C. Escher e pelo realismo de Audrey Kawasaki e Renzo Piano, faz suas ilustrações

ultradetalhadas em papel Canson utilizando o mais fino bico de nanquim possível

Page 55: Revista +Soma #23

55

Page 56: Revista +Soma #23

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Page 57: Revista +Soma #23

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4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/BABYC

BÁRBARA MALAGOLI

A ilustradora BÁRBARA MALAGOLI, de 21 anos – natural de Santos e radicada em São Paulo

– começou a rabiscar com desenhos da Disney. Buscando influências em nomes como

Junko Mizuno, Mark Ryden e Naoko Takeuchi (e sob a inspiração da irmã mais velha

Bruna, que tinha seu próprio fanzine), baby c. trabalha com lápis de cor, nanquim e tinta

acrílica para criar desenhos no bom e velho papel Canson creme.

Page 58: Revista +Soma #23

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fLO MeNezes

4CRASE, PARTITURA PÁGINA 27

POR ALEXANDRE CHARRO . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

E ARQUIVO PESSOAL

Se pensarmos sobre quais são os sentidos do corpo mais relevantes para nossas relações de afeto, em primeira análise, podemos dizer que todos. Mas, ao estabelecermos uma hierarquia de acontecimentos, a visão é geralmente mais importante a princípio, num momento em que tudo é incerteza, e só depois “ouvimos” (um pouco) os outros sentidos. Muito, e de maneira imperativa, dedica-se ao olhar, mesmo sem conseguir ver. O pesquisador e crítico musical Joachim-Ernst Berendt, em seu livro Nada Brahma, afirma que “as pessoas que sabem ouvir são mais receptivas, ao passo que as pessoas que olham quase sempre são mais agressivas”. O que aconteceria então se nos dedicássemos mais à escuta?

O professor e compositor de música erudita

experimental brasileira Flo Menezes, 49, dedica

sua vida à música, ao som e à filosofia, e procura

a raiz dessas questões. Ficou anos fora do Brasil,

estudou com Pierre Boulez, Luciano Berio e

Karlheinz Stockhausen. Em 1994 fundou o Studio

PANaroma, junto com a UNESP de São Paulo,

para suas experimentações radicais de música

eletroacústica. Criou o Concurso Internacional

da Música Eletroacústica de São Paulo (Cimesp)

e a Bienal Internacional de Música Eletroacústica

(Bimesp), entre tantos outros projetos. Um

criador que recoloca o papel do pensamento

do som como uma reflexão acerca do sentido

musical, um campo de ações da subjetividade,

criadoras de sentido. 1

Música para Ouvir (e Ver)

Page 59: Revista +Soma #23

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Page 61: Revista +Soma #23

61

“Radical é um termo que implica considerar

as coisas pela raiz, mergulhar fundo e buscar

onde as coisas estão realmente nascendo para

poder brotar. Confunde-se muito ‘radicalismo’ com

‘sectarismo’.”

Impossível passar ileso por uma experiência num

concerto de música eletroacústica. Na câmara,

o espaço é escutado e preenchido por uma

simultaneidade de sensações que alimentam

uma escuta imagética. Experiência que radicaliza

e estimula o desenvolvimento de outras formas

de percepção para a apreciação da música.

O que é ser radical?

Radical é um termo, como o próprio nome

diz, e como Karl Marx dizia, que implica

considerar as coisas pela raiz, mergulhar

fundo e buscar onde as coisas estão

realmente nascendo para poder brotar.

Confunde-se muito “radicalismo” com

“sectarismo”. Sectário é quando você, sem

levar às últimas conseqüências questões

específicas que colocam dúvidas sobre você,

isola seu comportamento dos demais a

partir de algum julgamento predeterminado,

seccionando as coisas. Já o radical é aquele

que vai fundo, se pergunta, se questiona o

tempo todo. Um tipo de busca pela essência

das coisas que tem a ver com uma índole

especulativa muito profunda.

Num texto seu você diz que uma escritura

musical seria o resultado de elaboração e “labor”

na raiz dessa atitude diante dos sons. Então,

a prática desse labor seria necessária para

conseguir atingir, talvez, a profundidade da raiz...

Algo que se questiona na música eletroacústica

é o fato de ela não ter uma escrita, uma

notação. Entretanto, uma coisa é a escrita, com

seus símbolos convencionais, que veiculam a

processualidade da composição, e outra é a

processualidade em si. Desde os primórdios

da escrita musical, que se deu a partir da Ars

Nova na Idade Média, tem-se a possibilidade do

registro do pensamento musical pela notação,

para que isso seja decodificado e refeito em

diversas circunstâncias. Essa escrita possibilitou

o desenvolvimento do pensamento musical,

mas não se confunde com ele! E precisamente

essa processualidade é o que chamamos de

escritura: elaboração que se aloja na escrita, mas

que independe dessa mesma escrita. Ela nasce

mediada pela notação, mas toma independência

como essência do próprio pensamento

musical. E a música eletroacústica, num certo

sentido, leva ao apogeu essa independência.

Prescinde da notação, mas não do pensamento

musical! Por isso disse certa vez que na música

eletroacústica existe uma apoteose da escritura:

ela é levada às últimas consequências, sem

mediação da escrita. Você até pode ter uma

“escrita” (uma partitura de realização ou uma

áudio-partitura), mas na realidade a escritura se

dá na cabeça e nos sons.4L’ITINÉRAIRE DES RÉSONANCES, PARTITURA PÁGINA 4 E

FLO NO ESTÚDIO KOELN, 1987.

P ara entender a música eletroacústica,

é preciso vivenciar um concerto

repleto de caixas acústicas. Mas

podemos dizer que é uma música criada em

estúdio a partir da manipulação dos sons de

instrumentos musicais ou eletrônicos, e sua

difusão é feita por uma orquestra de alto-

falantes, que privilegiam a espacialidade e

a espectralidade dos sons em uma sala de

concerto. Como diz Flo em um de seus livros,

Música Maximalista – Ensaios Sobre a Música

Radical e Especulativa: “A eletroacústica liberta

o compositor das imposições articulatórias de

cunho métrico-rítmico”. Ao ouvinte presencial,

permite uma viagem sinestésica. “Para tanto,

o único pré-requisito é abrir os ouvidos e a

cabeça: deixar que os sons e seus itinerários

internos (espectros sonoros) e externos

(espaciais) conduzam a mente a uma espécie

de hipnose, em que se duvida do que se ouve

e de seu próprio estado: se está dormindo e

sonhando, ou sonhando acordado.”

E a discussão vai além dos conceitos da música,

provocando uma reflexão mais profunda: a

relação com o sonoro em geral e com a gama

de significados gerados pela escuta. Uma

filosofia não só da música, mas do próprio som,

já que “na percepção da espacialidade dos sons,

percebe-se que o ritual da performance ocupa

todo o espaço; o nosso corpo toma parte de um

tempo corrido e de um espaço percorrido, em

permanente e caleidoscópica transformação.

Por tal viés, almejo a beleza, pelas vias de uma

sublime abstração”, completa Flo.

Page 62: Revista +Soma #23

62

Tenho uma questão sobre atitudes musicais

com lógica capitalista voltada ao mercado

como meio e como fim. O que te incomoda

nisso? Você acha que existe uma maneira de

não fazer concessões na arte?

A música não tem que se voltar ao mercado.

Estratégias de difusão de nossas ideias são

necessárias, porque somos seres sociais. Adorno

falava que “o discurso mais solitário de um

artista vive do paradoxo de falar aos homens”;

você pode estar na sua torre de marfim, mas

estará pensando numa interlocução, o que é

natural e salutar. Mas dialoga-se com as pessoas

que sabem dialogar com você. Essa ideia do

Público, no singular, é uma ideia capitalista,

típica da indústria de massas. Toda arte que se

destina a um consumo de massa não merece

nem ser chamada de Arte: é uma concessão ao

fácil, ao vendável. Busco uma autenticidade de

meus ouvidos pensantes para veicular minha

música, mediante elos afetivos, às pessoas que

têm esse pensamento aberto para mergulhar

fundo comigo em coisas que eu não sei, que

descubro, não as que eu sei! Se eu achasse que

“soubesse”, estaria fazendo meus padrõezinhos.

A concessão obrigatória que se faz no

capitalismo é de ordem profissional, necessária

para a sobrevivência. Se você me perguntar

se sou “compositor” profissionalmente,

diria que não! Sou, profissionalmente,

professor universitário de composição. Se a

Universidade acabar, perco a minha profissão

e meu emprego. Mas o ato, existencial, de ser

compositor, desse não consigo me desvincular:

é uma necessidade interna, de minha alma.

Portanto, um tipo de concessão é a do ganha-

pão; outra é a que diz respeito à linguagem

musical. Mas esta é uma concessão mais sem

vergonha, porque não é a da sobrevivência,

é a do lucro, do reconhecimento, dinheiro,

inserção em mídia, públicos, pro ego ficar

bem alimentado... Todo compositor tem o

ego inflamado, mas prefiro que o meu seja

alimentado em decorrência de uma profunda

especulação, sem concessão musical. Quem

vier ao encontro de minha obra é por ter se

interessado pelo que faço e acredito.

A eletroacústica, como música erudita, não

acaba se tornando inatingível às pessoas que

não têm um certo domínio sobre os aspectos

técnicos da composição?

A questão da

acessibilidade da música

é sobretudo econômica

e social. Obviamente

também depende de

uma sensibilidade e de

interesses individuais,

mas em primeira

instância depende

de infraestruturas

e superestruturas

ideológicas. O ser

humano precisaria ser

educado e ter acesso

à tecnicidade da arte

desde pequeno, e isso

envolvendo todas as

artes e a filosofia. Mas a música é, admitamos,

a mais difícil das artes: vive de um jogo

interno muito específico e não alça voos

extramusicais sem que se baseie em questões

eminentemente técnicas da linguagem

musical, às quais se deveria ter acesso

desde o ensino básico, em graus distintos

de profundidade. Não é, portanto, somente

a música eletroacústica que é “inacessível”;

é também o caso de todo o saber mais

profundo, inacessível às pessoas “normais”,

espoliadas por um sistema produtivo.

Você fala constantemente de entidades e de

arquétipos na música. Poderia discorrer um

pouco sobre isso?

Ao longo da história da música, sempre se

produziu uma dialética entre a instituição de

novas ideias e sua cristalização. Isso é muito

claro no domínio harmônico. Existem tanto

recursos quanto instituições harmônicas, que

ora são formações harmônicas locais, ora são

recursos do tempo, do discurso musical, que

vão se instituindo como entidades. A entidade

é o delineamento de alguma singularidade que

passa a ser nomeada e que se distingue de um

pano de fundo geral como uma particularidade

muito clara. Quando é recorrente, verte-se em

arquétipo e passa a fazer parte de um legado,

de um repertório. Diria que toda entidade

tende a se tornar um arquétipo, na medida

em que essa entidade passa a ser repetida e

se firma como algo quase coletivo. Por sua

insistência e reiteração, começa a fazer parte

de um arsenal mítico da cultura musical.

Com relação, por exemplo, aos acordes tonais

maior, menor e mesmo diminuto, eles fazem

emergir alguma emoção, algum sentimento.

Dentro de uma composição complexa, como

aconteceria essa sensação?

Às vezes brinco e causo risos quando me refiro

ao “arrepio tonal” que sinto em certas passagens

de minha obra musical: a tensão e relaxamento

que são muito bem feitos no sistema tonal,

talvez o mais genial sistema de referência

comum que jamais existiu, tendo vigorado por

cerca de trezentos anos! E com muita sabedoria:

uma sabedoria que não era, claro, tanto do

sistema, mas mais de quem o reinventava! Uma

invenção coletiva muito genial, mas que foi

superada, se alargou, se transformou, e hoje,

de alguma maneira, ainda existe como um

dos ramos no meio de um bosque muito mais

complexo e expandido. Esse tipo de sensação –

tensão e relaxamento – é totalmente possível em

outros tipos de harmonia, contanto que alguns

elementos estejam presentes, como por exemplo

a direcionalidade, ou seja, como se conduz

a escuta de um estado sonoro para outro.

Os fenômenos de tensão e relaxamento não

dependem apenas de acordes tonais. Podem

existir em vários outros contextos, de modo bem

semelhante ao que ocorria com a música tonal.

4LUCIANO BERIO E FLO MENEZES EM SALZBURG, 1987

Page 63: Revista +Soma #23

63

4P

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57

“Erro e risco fazem parte de toda obra radical. A diferença da política com relação à arte é que o erro, na política, é a morte.

Na ciência, o erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta involuntária. Já na arte, às vezes almeja-se o próprio erro, dialoga-se com ele,

avaliam-se as imperfeições, enaltecem-se as ‘rugosidades’, os pequenos desvios. A imprevisibilidade é um elemento

fundamental na música.”

Page 64: Revista +Soma #23

64

Como você se apropria dos sons em suas obras?

A música eletroacústica radicalizou a noção de

instrumento musical, ainda que o instrumento

tradicional continue mais vivo do que nunca.

Luciano Berio falava que um instrumento

possui uma “história psicológica”, porque lida

com estados de afeto e de elaboração que se

cristalizaram em seu repertório ao longo dos

tempos. Entretanto, a música eletroacústica

estendeu e radicalizou essa noção, a ponto

de você se apropriar, salutarmente, de todo e

qualquer som. Todo som pode ser incorporado

como veículo expressivo na elaboração

do afeto e da linguagem musical. Mas,

dependendo do som e do tipo de tratamento

que você dá a ele, tem-se uma maior ou

menor referencialidade embutida no objeto

sonoro, e essa referencialidade, quando é

“A concessão obrigatória que se faz no capitalismo é de ordem profissional, necessária para a sobrevivência. Se

você me perguntar se sou ‘compositor’ profissionalmente, diria que não! Sou,

profissionalmente, professor universitário de composição. Se a Universidade acabar, perco a minha profissão e meu emprego. Mas o ato,

existencial, de ser compositor, desse não consigo me desvincular: é uma necessidade

interna, de minha alma.”

Page 65: Revista +Soma #23

65

muito literal, reporta a uma situação anedótica

que é, a meu ver, pouco interessante para a

música. As realizações eletroacústicas mais

interessantes são aquelas mais distantes do

caráter anedótico, quando então os sons

adquirem um potencial radicalmente abstrato.

Quando isso ocorre, o som não se reporta

a nada, mas ao mesmo tempo também não

provém de nenhum instrumento reconhecível.

Aí, sim, instaura-se uma situação acusmática:

termo proveniente da escola pitagórica –

os “acusmáticos”, que procuravam ouvir e

perceber as palavras do mestre e entender

seus ensinamentos sem olhar para as causas

materiais dos sons. Atingia-se assim uma

alta concentração na abstração dos sons e,

quando se dá essa situação, algo da ordem da

sinestesia acontece, não propriamente ligado a

uma situação visual ou ambiental. E esse é um

transe muito interessante, porque você começa

a penetrar de fato na escuta do âmago dos

espectros, podendo ser induzido a situações de

concentração quase hipnóticas, num estado que

chamo de intertensão, de dentro dos sons, bem

distante das distrações dos entretenimentos...

No nosso estúdio temos conversado sobre

a questão da improvisação e do jazz.

Você poderia fazer alguma relação entre a

improvisação de um free jazz, por exemplo,

e a que ocorre numa música complexa,

como a eletroacústica?

A questão da improvisação é delicada. Berio

disse certa vez, com pertinência, que “a

improvisação pode chegar no máximo a uma

articulação silábica, enquanto na composição

escrita chega-se a uma articulação fonêmica”.

A improvisação está para o fracionamento

do gesto especulativo assim como a não-

improvisação e a composição estão para

um tempo dilatado dos gestos, em que,

paradoxalmente, o fracionamento do sonoro

pode atingir estágios ainda mais radicais,

já que se entra nos meandros dos poros da

composição, até sua articulação fonêmica,

trabalhando no nível dos detalhes, não da

superfície. Há, contudo, situações específicas

na composição em que perderíamos um tempo

enorme e faríamos os intérpretes sofrerem para

que se atingisse um resultado muito parecido ou

mesmo pior do que o que atingiríamos pelas vias

de uma “improvisação dirigida”. Nesses casos,

lançamos mão da improvisação, desde que

regulada por um controle minucioso do sonoro.

Quanto do erro da improvisação existe no seu

processo de composição?

O erro independe da improvisação. Erro e

risco fazem parte de toda obra radical. A

diferença da política com relação à arte é

que o erro, na política, é a morte. Trotsky

podia ter eliminado Stalin na década de 1920,

deixou barato, e acabou levando a picaretada

na cabeça no México, em 1940. Na ciência, o

erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às

vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta

involuntária, como por exemplo foi o caso

com a descoberta da penicilina. A ciência

busca acertar o tempo todo, mas às vezes

acerta através de um erro impremeditado.

Já na arte, às vezes almeja-se o próprio

erro, dialoga-se com ele, avaliam-se as

imperfeições, enaltecem-se as “rugosidades”,

os pequenos desvios. A imprevisibilidade é

um elemento fundamental na música. Aí, a

previsibilidade é que é a morte! Schoenberg

dizia, no Tratado de Harmonia, que o erro

tem, na música, um lugar de honra, porque

sem o erro alcançaríamos a Verdade, e

seria insuportável se a conhecêssemos. E

realmente, imagine se soubéssemos o que

é a Verdade... O ser humano move-se por

espirais, e o mais gostoso da vida é poder

ressignificar as coisas! Reler as coisas,

revisitar os afetos, rever suas convicções pelo

prisma do já vivido, do ainda por viver e do

já vivido por outras vidas. Acendemos nossas

lanternas e, naqueles eixos espiralados das

curvas que fazemos, lançamos novos jatos

de luz, que se refletem nas bordas de várias

espirais de outros tempos. Espirais lá de

baixo refletem nas curvas mais atuais. É

esse pensamento espiralado que move tudo.

Estamos falando e não falando as mesmas

coisas o tempo todo! Stockhausen tem uma

frase interessante: “Ao passear na Lua, será

mais interessante encontrar uma maçã do

que uma pedra lunar”. A maçã, ali, é tudo: é o

antigo no ambiente novo, e esse olhar é uma

ressignificação. Porque poder redizer

as coisas é um dos exercícios mais

deliciosos que existe!

Você é um aficionado pelas palavras...

Bem, talvez a maior invenção coletiva das

civilizações sejam mesmo as línguas, que

para mim são como composições coletivas,

como músicas impuras. Por isso domino seis

línguas, e ainda acho pouco; as estudei com

enorme prazer, como se estivesse estudando

uma partitura de Beethoven. Da mesma forma

como a maior invenção coletiva na música foi a

orquestra, em que os planos de simultaneidade

foram expandidos na maior radicalidade

possível, a maior invenção monofônica da

humanidade foi a língua falada. E nela temos um

curioso paradoxo: falar, como disse antes, é um

ato de monofonia; você fala com todos porque

fala uma linguagem de todos, mas ao mesmo

tempo fala sozinho o tempo todo, porque do

contrário ninguém te entenderia! Essa dicotomia

entre o polifônico e o monofônico, na orquestra

e nas línguas, muito me intriga... 3

“A música eletroacústica radicalizou a noção de instrumento musical,

ainda que o instrumento tradicional continue mais vivo do que nunca. Todo

som pode ser incorporado como veículo expressivo

na elaboração do afeto e da linguagem musical.”

2SAIBA MAIS

Leia a entrevista na íntegra no maissoma.com

flomenezes.mus.br

Page 66: Revista +Soma #23

66

Formado por músicos e produtores que ditam tendência na música europeia atual, a banda Orelha Negra é uma das melhores novidades vindas de Portugal nos últimos anos. Os gajos foram escolhidos a dedo para acompanhar a turnê do último álbum de Sam The Kid (o rapper mais famoso e bem-sucedido de Portugal) e, durante os ensaios e jams, surgiu a ideia de uma banda instrumental que passeasse entre o funk, soul, rock e eletrônico, tendo o hip-hop como base, mas com uma identidade local, usando samples, colagens e vozes populares da cultura lusitana. O grupo conta com Sam The Kid, DJ Cruzfader, Fred Ferreira (Buraka Som Sistema), Francisco Rebelo e João Gomes (ambos da banda Cool Hipnoise), e seu álbum de estreia homônimo foi um dos mais vendidos de Portugal em 2010, rendendo uma indicação ao MTV Europe Music Awards e shows por toda a Europa. O baterista Fred Ferreira falou um pouco sobre o projeto, a cultura dos sleevefaces, a parceria com o artista plástico Vhils e a recém-lançada mixtape. 1

O Orelha Negra reúne grandes nomes da música

portuguesa contemporânea. Como aconteceu

essa união e como rolou a ideia da banda?

Aconteceu quando estávamos fazendo a turnê

do Sam the Kid. Nós já éramos a banda dele nas

apresentações ao vivo e durante as passagens

de som íamos fazendo muitas jams. Quando

terminaram as apresentações, combinamos uns

ensaios para curtir um som juntos e começou a

nascer a Orelha Negra.

E o nome, como surgiu?

Também em um ensaio. Foi muito rápida a de-

cisão. Achamos o nome muito bom e fazia todo

o sentido com a música que estávamos fazen-

do, já que a nossa principal fonte de inspiração

é a black music.

Confesso que, na primeira vez em que escutei

o álbum, me lembrou muito o som do RJD2 e

de produtores que usam o hip-hop como base

para criar um som mais abrangente. Essa foi a

intenção de vocês?

Nunca pensamos muito dessa forma. Claro

que quando fazemos música o objetivo é che-

gar ao máximo de pessoas possível. Ficamos

contentes de termos chegado a muita gente,

mas o objetivo principal é sempre criar um

som com que nos identificamos, e realmente

gostamos do som que estamos criando. Tal-

vez tu sintas que isso acontece porque, de

fato, somos um grupo bastante heterogêneo,

e há várias influências e percursos diferentes

entre os músicos da banda, mas o hip-hop é o

ponto de partida. Talvez até uma técnica, mais

que uma estética.

Portugal tem uma das melhores cenas hip-hop

da Europa. Vocês acham que o Orelha Negra

está abrindo espaço também para o lado ins-

trumental da música urbana portuguesa?

Realmente em Portugal não existem muitas ban-

das de hip-hop instrumental, mas ainda assim

temos nomes como o DJ Ride, o Bling Project

e alguns outros que também têm uma vertente

instrumental dentro do hip-hop. Nós somos mais

um a representar o nosso país e estamos tentan-

do levar a nossa música o mais longe possível.

As músicas trazem muitos elementos: samples,

arranjos, colagens. Além de usarem influências

de diversos estilos como funk, soul e rock. Como

funciona a composição das músicas para vocês?

Varia muito. Tem muitas músicas que surgem

de uma base do Sam the Kid na MPC, outras se

iniciam com os instrumentos, mas acaba sendo

tudo criado com os cinco na sala tocando por

cima de ideias de cada um.

Vocês imaginavam que iriam ter um dos álbuns

mais vendidos de Portugal, além da indicação

ao MTV Europe Awards? Acha que é um sinal de

mudança positiva na música popular europeia?

Foi uma grande alegria para todos nós esse reco-

nhecimento e sucesso do nosso primeiro álbum.

Permitiu que fizéssemos shows em muitos lugares,

levando a nossa música a muita gente. Temos tido

um feedback muito grande não só de Portugal,

mas de vários países da Europa, Estados Unidos

e, agora, do Brasil também. Talvez haja muitas pes-

soas que estão fartas do mainstream atual na mú-

sica e procure coisas novas, novas direções. Uma

banda de hip-hop instrumental, cheia de groove,

samples e vozes em português pode ser a solução!

“ S o m o s u m g r u p o b a s t a n t e h e t e r o g ê n e o , e h á v á r i a s

i n f l u ê n c i a s e p e r c u r s o s d i f e r e n t e s e n t r e o s m ú s i c o s d a b a n d a , m a s o h i p - h o p é o p o n t o d e p a r t i d a .

T a l v e z a t é u m a t é c n i c a , m a i s q u e u m a e s t é t i c a . ”

Page 67: Revista +Soma #23

67

O R E L H A N E G R A

A V i a g e m I n s t r u m e n t a l P o r t u g u e s a

POR DANIEL TAMENPI . FOTOS DIVULGAÇÃO

Page 68: Revista +Soma #23

68

Page 69: Revista +Soma #23

69

Além da ótima música, outro grande destaque

é a capa do álbum, em que a banda toda apa-

rece em sleevefaces. Como surgiu a ideia e por

que esconder o rosto de vocês, que são artistas

conhecidos na cena portuguesa? Teve alguma

segunda intenção nisso?

A ideia do sleeveface foi sendo desenvolvida ao

mesmo tempo em que íamos fazendo o disco.

Convidamos o nosso amigo Pedro Claudio, que

fez um trabalho incrível nas fotos e chegou ao

resultado que queríamos. Decidimos aparecer

dessa forma nas fotos para que a música falasse

mais alto. Não queríamos que fizessem nenhum

tipo de julgamento pelos músicos que estavam

ali, apenas pela música. Também queríamos fa-

zer uma homenagem ao vinil, como represen-

tante da época do analógico, da era de ouro da

música soul, funk e do nascimento do hip-hop.

Sendo o nosso primeiro disco, teria que repre-

sentar quem somos na essência. Daí optamos

por essa técnica de que somos grandes fãs.

Uma coisa muito interessante foram os samples

de nomes da música portuguesa como Fer-

nando Tordo, além de nomes populares como

Henrique Mendes e Julio Isidro. Isso criou um

diferencial no som de vocês, dando uma iden-

tidade local forte. Foi proposital?

Foi intencional no sentido de criar uma identi-

dade nossa, do Orelha Negra, porque tínhamos

consciência de que o universo da música portu-

guesa não é devidamente explorado pelos pro-

dutores de hip-hop daqui, o que não faz muito

sentido, já que é uma das principais referências

em termos de cultura urbana para a nossa gera-

ção, e também a dos nossos pais. São os discos

que mais se encontram nas feiras de discos e

sebos. São os samples que estão à nossa dis-

posição e com os quais todos, pelo menos em

Portugal, se identificam. Esse pode ter sido um

dos segredos para o nosso som ter tido uma

aceitação tão transversal.

Percebe-se coisas da música brasileira também.

Qual a relação de vocês com a nossa música?

Em Portugal existe uma grande ligação com a

música brasileira. Todos nós já tivemos experi-

ências com músicos brasileiros como o Marcelo

Camelo – fazemos inclusive uma versão de um

tema dele (“Saudade”) no nosso disco –, o Kas-

sin, o Marcelo D2, a Orquestra Imperial, entre

outros. E todas essas boas influências e boas ex-

periências que passamos serviram de inspiração

para o processo de criação do álbum.

Como começou a parceria com o Vhils? Além

do clipe, vocês estão com outros planos juntos?

O Vhils é uma pessoa que já conhecíamos de

outros trabalhos e é nosso amigo há muito tem-

po. No ano passado surgiu a oportunidade de

tocarmos em um grande festival daqui (Festival

Sudoeste) e propusemos ao Vhils participar da

nossa apresentação. A parceria foi perfeita, to-

dos ficamos muito contentes e com vontade de

fazer mais coisas juntos. Logo em seguida sur-

giu a hipótese de fazer o clipe da “M.I.R.I.A.M”

(lançado em fevereiro de 2011) e neste momento

ainda estamos desfrutando desse novo trabalho

em conjunto, mas já estamos pensando em algo

especial para um futuro próximo também.

E como são as apresentações ao vivo da banda?

Seguem um pouco o formato do disco, já que,

pelo fato de compormos as músicas em grupo,

como uma banda de rock, conseguimos tocar em

tempo real todos os sons, vozes, loops e efeitos

que você ouve no disco. A diferença é que temos

liberdade para interpretar os temas como uma

música instrumental, sem ser sequenciada como

no álbum. Temos também vários momentos em

que homenageamos nossos heróis em clássicos

do hip-hop e outros estilos, com versões e va-

riações sobre breaks e samples clássicos. Como

não temos um vocal, esse papel se complementa

com o DJ Cruzfader e o Sam The Kid com vozes e

colagens através da MPC e scratches. E, por esse

mesmo motivo, investimos bastante também na

parte cênica e visual do show.

Agora vocês lançaram a mixtape com diversos

remixes e versões rimadas e cantadas com gran-

des MCs como Valete, Xeg, NBC, além de nomes

de fora do hip-hop como Lucia Moniz e Orlando

Santos. Vocês sentiam uma necessidade de letrar

os instrumentais?

Não sentíamos propriamente necessidade, mas

fomos recebendo algumas músicas nossas com

letras do pessoal daqui e decidimos então fazer

uma mixtape. São vários cantores amigos nossos,

e é uma pena não termos conseguido colocar to-

das as músicas que recebemos, ficaram coisas

muito boas de fora. É muito bom ouvir a interpre-

tação que cada um faz ao ouvir a nossa música.

Demos total liberdade a todos para fazerem o

que quisessem, e o resultado foi muito bom. 3

“ T e m o s t i d o u m f e e d b a c k m u i t o g r a n d e n ã o s ó d e

P o r t u g a l , m a s d e v á r i o s p a í s e s d a E u r o p a , E s t a d o s U n i d o s e , a g o r a , d o B r a s i l

t a m b é m . T a l v e z h a j a m u i t a s p e s s o a s q u e e s t ã o

f a r t a s d o m a i n s t r e a m a t u a l n a m ú s i c a e p r o c u r e

c o i s a s n o v a s , n o v a s d i r e ç õ e s . U m a b a n d a d e h i p - h o p i n s t r u m e n t a l ,

c h e i a d e g r o o v e , s a m p l e s e v o z e s e m p o r t u g u ê s p o d e

s e r a s o l u ç ã o ! ”

2SAIBA MAIS

myspace.com/orelhanegra

Page 70: Revista +Soma #23

70

KRAUTPARA O

FUTURO

POR AMAURI STAMBOROSKI JR. . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Para um ídolo do rock alternativo, citado como influência crucial por artistas tão díspares como LCD Soudsystem e Simple Minds, Michael Rother parece bem tímido e até mesmo pouco consciente de sua importância na história da música pop.

N o final do ano passado, em meio a sua turnê pelo

Brasil com o Hallogallo – projeto completado pelo

baixista Aaron Mullan (Tall Firs) e pelo baterista

Steve Shelley (Sonic Youth) –, o guitarrista alemão, ex-

-membro dos grupos Neu! e Harmonia, confessou que

assistiu a seu primeiro show de um Beatle no dia anterior,

quando viu Paul McCartney no estádio do Morumbi. “Eu era

muito fã dos Beatles nos anos 60, foi incrível ver Paul ao

vivo”, ele contou nos camarins do teatro do SESC Vila Ma-

riana, em São Paulo. No palco, o Hallogallo funciona como

um relógio, tocando faixas dos grupos anteriores de Rother,

além de material inédito, sempre impulsionado pela bateria

de Shelley, inspirada no ritmo constante criado por Klaus

Dinger (a outra metade do Neu!, morto em 2009) e apelida-

do de “motorik” pela crítica britânica nos anos 70. Em uma

conversa de 20 minutos – Rother estava com febre e queria

descansar antes da apresentação – o pioneiro do krautrock

rejeitou o rótulo de “lenda” e lembrou da companhia nem

sempre agradável de Dinger, além das dificuldades em re-

produzir a música do Neu! ao vivo no início da carreira. Ao

revelar seus planos para o futuro, ele parece descrever as

paisagens intermináveis de músicas como “Für Immer” e

“Negativland”, que estão entre as melhores produções do

Neu!: “Quero apenas seguir em frente”. 1

Quando você achou que era hora de revisitar a

música que fez com o Neu! e com o Harmonia

nesse novo projeto?

Eu tenho feito coisas próximas a esse tipo de

música há um bom tempo, então não foi algo

que apareceu do nada, que eu acordei pensan-

do um dia. Durante a reunião do Harmonia em

2007, com Hans-Joachim Roedelius e Dieter

Moebius, eu me senti um pouco limitado no

que poderia fazer, porque o equilíbrio entre

nós três era maior, cada um tinha a sua linha de

pensamento. Na verdade eu sempre quis vol-

tar a tocar as músicas do Neu!, mas meu foco

foi mudando ao longo dos anos, e acho que

vou seguir mudando. Há momentos em que eu

quero fazer algo experimental, lento, tranquilo,

mas agora não quero ser tão tranquilo – pelo

contrário, quero criar algo dinâmico com esses

dois grandes músicos.

Como você escolheu o Steve Shelley e o Aaron

Mullan para esse novo projeto?

Conheci o Aaron em 2008, no festival All Tomor-

row Parties, na Inglaterra. Ele estava trabalhando

como engenheiro de som para o festival, e a or-

ganização ofereceu ele para cuidar do show do

Harmonia. Ele sabia como era o nosso som e fez

um ótimo trabalho. Nós começamos a conver-

sar, tomamos umas cervejas e viramos amigos.

Alguns meses depois, ele cuidou do som do All

Tomorrow Parties em Nova York. Ele já havia con-

versado com o Steve sobre a ideia de gravarmos

uma sessão no estúdio do Sonic Youth, o que

acabamos fazendo. Seguimos mantendo conta-

to, conversando sobre a gravação e sobre a pos-

sibilidade de tocarmos ao vivo, e aqui estamos.

Page 71: Revista +Soma #23

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Page 73: Revista +Soma #23

73

Qual é a diferença entre tocar as mesmas músicas

com Klaus Dinger nos anos 70 e com eles agora?

A gente não tocou muito ao vivo nos anos 70,

esse era um dos maiores problemas que tínha-

mos na época. Éramos completamente depen-

dentes do estúdio para criar os sons que querí-

amos. Tentamos realizar uns seis ou sete shows

em 72 e meio show em 74. Ficamos bastante

frustrados com o resultado, porque era impos-

sível fazer uma música completa apenas com a

bateria de Klaus e a minha guitarra. Tentamos

adicionar mais músicos, mas não funcionou. A

música do Neu! era muito pessoal, e naquele

momento era impossível apresentar isso ao vivo.

E agora, tocando para plateias cheias de pes-

soas que não tinham nem nascido quando o

Neu! lançou seu primeiro disco, você percebe

melhor a influência do que vocês criaram?

O interesse pelo Neu! e pelo Harmonia cresceu

consideravelmente nos últimos anos. Nos anos

80 ninguém parecia interessado em ouvir Neu!

ou Harmonia, estávamos fora de moda. Come-

çou a ficar melhor a partir do meio dos anos

90, quando Julian Cope (escritor e músico bri-

tânico, ex-líder do grupo Teardrop Explodes)

lançou o livro Krautrocksampler, que fez com

que, pelo menos na Alemanha, algumas pesso-

as de repente se sentissem orgulhosas da nossa

música, começassem a pensar sobre ela, a per-

guntar “por que esse cara está tão empolgado

com esses alemães loucos?” (risos). Quando

relançamos os três primeiros álbuns, em 2001,

muita coisa mudou.

Nos anos 70 existia essa ideia, criada

por jornalistas britânicos, de que havia

todo um movimento na Alemanha, que

eles chamavam de “krautrock”, mas

quando lemos entrevistas de músicos

da época percebemos que não era

algo assim tão amplo.

Para mim e para o Klaus existia a ideia de

fazer algo completamente diferente do

que qualquer outra pessoa estivesse fa-

zendo, não queríamos fazer parte de uma

cena. Nós queríamos ser únicos.

E para vocês, Aaron e Steve, como tem

sido tocar com o Michael?

STEVE . É horrível (risos).

AARON . É impossível trabalhar com

ele (risos). Na verdade tem sido bem

divertido, poder viajar pelo mundo e

tocar essa música que amamos. Pas-

samos mais tempo saindo, jantando,

conhecendo as cidades, do que em

cima do palco.

Para um baterista deve ser um pouco

desafiador, não?

STEVE . Isso não é problema. O Neu! foi uma

banda importante para pessoas da minha ida-

de, para as pessoas da idade do Aaron – ele é

um pouco mais novo. Para muita gente, o Neu!

pode ter sido tão importante quanto o Velvet

Underground, o Television, os Stooges. Essa

música underground ajudou a formar muitas

coisas que apareceram depois. Às vezes esta-

mos em algum lugar e ouvimos alguma música

do Joy Division e eu acho que tenho que mos-

trar para o Michael: “Olha, acho que esses caras

eram grandes fãs do Neu!” (risos).

Hoje em dia você tem mais noção do quanto o seu

trabalho influenciou a música contemporânea?

Não é uma boa ideia se concentrar tanto em se

sentir um herói ou uma lenda. Às vezes as pes-

soas me perguntam “como você se sente sendo

uma lenda?”. Se eu não fosse educado, diria “isso

é idiotice”. Fico feliz em saber que a minha mú-

sica segue influenciando as pessoas depois de

tanto tempo, mas sei que as coisas já foram dife-

rentes, e que o futuro também vai ser diferente. É

ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a mi-

nha música, mas tento não levar isso tão a sério.

Li em algumas entrevistas você afirmando que

a sua relação com o Klaus era um pouco difí-

cil. As diferenças entre vocês eram pessoais

ou artísticas?

Os problemas aconteceram realmente no ní-

vel pessoal. Mesmo no começo, antes de Klaus

começar a ficar afetado pelas substâncias que

usou ao longo dos anos, ele era uma pessoa que

eu não queria ter por perto. Mas era ótimo criar

música com ele. Tive sorte por sua viúva ser uma

pessoa muito amável, que tornou possível o lan-

çamento da caixa. Ela podia ter vetado tudo, in-

cluindo a nova versão do disco Neu! 86 (lançado

por Klaus em 1995 como Neu! 4, sem o consenti-

mento de Michael). O Neu! era uma colaboração

artística, e tocar com um baterista como Klaus

era incrível. Foi a primeira vez que encontrei al-

guém com tanta determinação e vontade. Klaus

era uma força da natureza. Eu sempre me lem-

bro de um incidente: estávamos tocando com

o Kraftwerk no começo da carreira deles, e o

Klaus usava uns pratos quebrados – ele adorava

o som que conseguia tirar daquilo. Ele cortou a

mão em uma das pontas afiadas dos pratos – foi

um corte feio, que espalhava sangue para todo

lado. Eu olhei aquilo e depois vi a plateia, que

estava de queixo caído, e o Klaus não parou de

tocar nem por um instante. Se fosse eu teria pa-

rado, pelo menos para colocar um curativo. Isso

diz muito sobre ele. Ele tinha uma personalidade

muito forte. Isso de certa forma foi bom, porque

adicionou muita beleza e força ao que fizemos.

E depois da turnê, podemos esperar um disco

do Hallogallo?

Não estou muito bem de saúde, preciso descan-

sar um pouco. Não estou reclamando, nunca es-

tive na América do Sul nem no México. Os shows

são ótimos, esse projeto tem me levado por todo

o mundo. Fico surpreso em saber que minha

música chegou tão longe. Na verdade é o con-

trário, acho que ficaria surpreso se a minha mú-

sica fizesse sucesso na Alemanha (risos). Que-

ro descansar bastante e depois vamos ouvir as

gravações que fizemos – estamos gravando al-

guns shows, inclusive –, existe bastante interesse,

algumas gravadoras já fizeram propostas. Acho

que faz sentido registrar algo desse projeto. E

depois seguir em frente, fazendo mais música,

ou então... Não sei, apenas seguir em frente. 3

“Às vezes as pessoas me perguntam ‘como você se sente

sendo uma lenda?’. Se eu não fosse educado, diria ‘isso é idiotice’. Fico feliz em saber que a minha música

segue influenciando as pessoas depois de tanto tempo, mas sei

que as coisas já foram diferentes, e que o futuro também vai ser

diferente. É ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a minha

música, mas tento não levar isso tão a sério.”

2SAIBA MAIS

michaelrother.de

Page 74: Revista +Soma #23

74

Page 75: Revista +Soma #23

75

M A C A C O

B O N G

MÃO DIREITA

DO ROCK, MÃO

ESQUERDA DO JAZZ

“Música instrumental” é uma expressão que causa calafrios em quem logo imagina um sujeito engomadinho

debulhando escalas de nomes estranhos. Mas, felizmente, há uma nova geração de grupos instrumentais brasileiros que passa

longe desse estereótipo, criando uma música em que o som da banda como um todo é mais importante que a figura do solista – que muitas

vezes sequer existe. O Macaco Bong é um dos principais nomes dessa cena, que também inclui, entre outros, A Banda de Joseph Tourton, Satanique Samba

Trio, Hurtmold e o trabalho-solo de Maurício Takara. 1

Criado em Cuiabá no início de 2005, o

Macaco Bong consolidou a formação

atual no fim daquele ano, com Bruno

Kayapy na guitarra, Ney Hugo no baixo e Ynaiã

Benthroldo na bateria. Desde o começo, a banda

aposta no som instrumental, e as composições

são criadas no esquema jam session: entram no

estúdio, começam a tocar e dali vão surgindo

ideias que depois são encaixadas em outras

ideias. A música do Macaco é bastante fluida

e não se baseia na estrutura padrão da música

popular (estrofe-ponte-refrão ou, no caso da

instrumental, tema-solos-tema), característica

compartilhada pelos grupos do que se

convencionou chamar de pós-rock.

Outro aspecto em comum é a mistura de

estilos e influências, algo que pode ser bem

exemplificado pela guitarra do Macaco Bong,

como explica Bruno Kayapy: “A linguagem da

guitarra no jazz tem aquele lance de tocar os

acordes em bloco, com timbre mais fechadinho,

semiacústico e tal, só que eu faço isso com

drive, com distorção, com a pegada do rock.

Então misturo a mão direita do rock com a

mão esquerda do jazz”. Acrescente alguns

“dedinhos” de world music, heavy metal,

hardcore, música pop e Hermeto Pascoal e já

dá para ter uma ideia do som dos caras. “A

gente gosta de Ray Charles, Dave Mathews

Band a Morbid Angel, Canibal Corpse. Adoro

Pat Metheny, mas considero esteticamente o

Canibal Corpse uma das melhores bandas”,

revela o guitarrista.

Essa geleia geral sonora chamou atenção do

produtor Fabrício Nobre, que em 2008 teve a

ideia de organizar um show com Gilberto Gil

acompanhado pelo instrumental do Macaco

Bong. Como Gil ainda era ministro da Cultura

e estava com a agenda lotada, o projeto foi

abortado. Alguns meses atrás, o plano foi

ressuscitado. O Macaco Bong estreou com

Gilberto Gil no show Futurível, em novembro

de 2010. O resultado do encontro foi intrigante:

alguns clássicos ganharam arranjos mais duros,

sem o suingue e a alegria dos originais – o

que explicitou o conteúdo melancólico antes

encoberto pelo arranjo festivo de “Aquele

Abraço”, canção feita por Gil pouco antes

de se exilar. “Quando fui criar esses arranjos,

procurei entender a letra ao máximo e passar

isso no som, que já é o que a gente faz no

Macaco. A gente não tem vocalista, mas a

guitarra é a voz que diz quando é melancolia,

quando é afeto”, conta Kayapy.

Embora não haja mais datas fechadas para

esse show, o pessoal do Macaco espera repetir

a parceria com Gil mais vezes. “Tem uma

ideia estética e um conceito no show. A ideia

é uma banda de rock tocando com o Gil, o

conceito é a representação de um processo

histórico de renovação, de construção de novas

ordens”, teoriza Ynaiã. E, graças à internet e às

tecnologias digitais, essa nova ordem já está se

formando no mundo artístico, especialmente

o musical, como explica o baixista Ney Hugo:

“Acabou a fórmula, tanto na coisa de fazer o

som, fazer arte, quanto na gestão de carreira.

Antes tinha formulazinha: pagar jabá, ir na

rádio. Hoje a gente tem festivais, tem internet”.

Com uma estrutura de rede ligando coletivos

culturais e associações de música independente

de todo o país, não é mais imperativo o artista

ter contrato com gravadora ou viver em

uma metrópole. O Macaco Bong é um ótimo

exemplo desse processo de descentralização,

já que Ynaiã, Kayapy e Ney se conheceram

por meio do Espaço Cubo. A ideia inicial do

instituto era incentivar a música autoral em

uma época em que o meio musical de Cuiabá

estava dominado pelas infames bandas cover.

A iniciativa deu certo, e logo o Cubo passou

a abrigar outras manifestações artísticas,

como cinema e teatro. Com um espaço para

apresentações (a Casa Fora do Eixo), o festival

Calango e um esquema bem organizado de

troca de serviços entre músicos, produtores,

técnicos de som, fotógrafos etc., o Cubo vem

fomentando a cena cultural da capital mato-

grossense desde 2000. Os três integrantes

do Macaco Bong trabalham no instituto

(Ynaiã com produção de eventos, Bruno com

sonorização e Ney na parte de comunicação) e

acreditam ser importante investir na cena local,

como defende Ynaiã: “Pra consolidar a carreira

e até ter uma força maior se essa mudança

[para um grande centro] for necessária, é

preciso estruturar sua cidade”. 3

POR RAQUEL SETZ . FOTO POR FERNANDO

MARTINS FERREIRA

2SAIBA MAIS

myspace.com/macacobong

espacocubo.org.br

Page 76: Revista +Soma #23

76

E N T R E V I S T AC O M

Brendan Canning

do broken social scene

¤

ENTREVISTA POR HELENA SASSERON

FOTO POR D. GILLESPIE

Page 77: Revista +Soma #23

77

Com uma lista de integrantes que pode chegar a 25 pessoas – incluindo membros de algumas das principais bandas do indie canadense, como Metric, Stars, Do Make Say Think e a cantora Feist –, o Broken Social Scene poderia reivindicar com folga o título de “maior projeto paralelo de todos os tempos”. Apesar da fama de “supergrupo”, o BSS gira em torno dos seus dois fundadores, Brendan Canning e Kevin Drew. Na verdade, dificilmente mais do que nove pessoas estão envolvidas ao mesmo tempo no trabalho da banda, e as composições, em sua maioria, ficam a cargo dos líderes. Depois de lançar um dos discos de indie rock mais celebrados de 2010, Forgiveness Rock Record, o grupo chegou a ser convidado para se apresentar no Brasil em abril deste ano, mas acabou recusando a oferta – “infelizmente não tocaremos no país em 2011, mas quem sabe em 2012”, explicou Canning em seu perfil no Facebook.

Durante uma rápida passagem por Seattle,

no final do ano passado, nossa colabora-

dora e chick-in-charge Helena Sasseron

foi conferir um show do grupo e levou uma ideia

com Canning. Depois da passagem de som, ele

falou sobre como organizar tantas pessoas para

tocar e compor, gravar com John McEntire (Tor-

toise, Sea and Cake) e sobre as diferentes perso-

nalidades da banda. 1

O Broken Social Scene tem muitos membros e

convidados, que também estão em outros pro-

jetos ou projetos solo. Como vocês se organi-

zam na hora de gravar e sair em turnê?

Nós temos uma banda principal com quem

viajamos. Hoje somos nove pessoas no palco,

mas, quando precisamos, contratamos outros

músicos para tocar com a gente, saxofonis-

ta, percussionista etc. Nessa turnê o Jimmy

[Shaw], do Metric, resolveu vir tocar em alguns

shows... E assim a turnê vai se configurando... A

Feist vai tocar com a gente no México... A gen-

te vai selecionando e a turnê acontece!

E para colocar todo mundo

em estúdio...

A gente não entra todo mundo

em estúdio ao mesmo tempo,

gravamos parte por parte...

Mas vocês não compõem juntos?

Sim, alguns de nós, mas não

oito pessoas tentando compor

uma música... Diferentes for-

mações da banda compõem

cada música.

Como vocês encontram e es-

colhem os artistas convidados

para gravar?

Temos algumas ideias e pensa-

mos em alguém que se encaixe

com elas, ou então um de nós

escolhe de fato uma pessoa

para tocar em determinada

música. Por exemplo, tem o

Doug McComb, do Tortoise,

que assobia em uma das músicas do disco, o Eric

[Claridge], do The Sea and Cake, toca baixo nes-

sa mesma música, mesmo a gente tendo cinco

baixistas na banda...

E essas participações simplesmente aconte-

cem, não são super planejadas e tal...

Sim, nós convidamos as pessoas a participar ou

então tocamos parte de uma música para alguém

e a pessoa de repente tem uma boa ideia para ela...

E o mesmo aconteceu com o Sam Prekop, que

canta em uma faixa do disco?

Sim. Nós gravamos o disco com o John McEntire,

que é o líder do Sea and Cake, e o Sam aparecia

de vez em quando no estúdio e saíamos para jan-

tar... A música já estava escrita, e o Kevin [Drew]

queria que o Sam cantasse nela, e aí rolou.

E como foi gravar o disco com o John McEntire?

Foi ótimo, ele é legal... E começamos uma rela-

ção com ele... Ele teve a habilidade de nos deixar

livres no estúdio, como sempre gostamos de es-

tar, nos deu várias salas e espaço suficiente para

tentarmos diferentes ideias, que pareciam não

“ À S V E Z E S V O C Ê T E M Q U E

F A Z E R U M A C A M P A N H A P O R D E T E R M I N A D A S I D E I A S , G R A V A P A R T E D E U M A

I D E I A P A R A U M A M Ú S I C A . A L G U N S G O S T A M , O U T R O S

N Ã O , E D E P O I S D E U M M Ê S

A I N D A E S T A M O S D I S C U T I N D O S E

V A L E A P E N A M A N T E R E S S A

I D E I A . É U M P R O C E S S O . É C O M O

S E E S T I V É S S E M O S N U M

L A B O R A T Ó R I O . ”

ter sentido no começo, mas no final poderiam ser

peças que estavam faltando no quebra-cabeça.

Ele foi incrível nisso, nos deixou muito à vontade.

Mas depois de tanto tempo, quando você tem

alguma ideia já sabe mais ou menos o que o

resto da banda vai pensar, não?

Mais ou menos... Mas é meio que uma questão po-

lítica... As vezes você tem que fazer uma campa-

nha por determinadas ideias, grava parte de uma

ideia para uma música.

Alguns gostam, outros

não, e depois de um

mês ainda estamos dis-

cutindo se vale a pena

manter essa ideia. É

um processo. É como

se estivéssemos num

laboratório.

Do que você mais gos-

ta no BSS?

Acho que das várias

personalidades... E do

fato de o show ser di-

ferente em relação ao

álbum. O disco pode

soar sério, mas acho

que o show não che-

ga nem perto dessa

seriedade – é uma ce-

lebração, vai por um

caminho diferente.

Que bandas você está ouvindo agora?

Eu compro bastante coisa de bandas anti-

gas, mas gosto das novas também... Comprei

o disco da Budos Band outro dia; gosto do

Michael Leonheart and The Avramina 7, que

foi lançado pelo selo Truth & Soul, que faz um

som meio estranho, funkeado, gosto bastante.

Tem também o Atlas Sound, projeto solo do

cara do Deerhunter.

Quando vocês tocam em festivais, você tenta

ver as outras bandas e conhecer novos artistas?

Sim! [Em 2010] vi uma banda da qual gosto mui-

to, Here We Go Magic – eles são na verdade uma

das bandas novas favoritas. Tocamos juntos em

alguns festivais. Eu vi o Cypress Hill, foi divertido...

Pavement também – tocamos em alguns festivais

juntos esse ano, então os vi tocando algumas ve-

zes. Acho que vi bastante coisa... Nem consigo me

lembrar direito... Ah! Sim! Vi The Specials! Foi bem

legal. E aquele cara árabe, Omar Souleyman. 3

2SAIBA MAIS

brokensocialscene.ca

Page 78: Revista +Soma #23

78

“É só o fim do começo, seja bem-vindo ao circo.” Essa frase encerrava o disco Primeiramente, lançado em 2008 por César Tavares, mais conhecido na cena do rap brasileiro como DonCesão. Em sua estreia sonora já dava para perceber um letrista de talento, que contava boas histórias em suas composições. Com novo álbum na praça, Bem Vindo Ao Circo, Cesão se afirma com um trabalho conceitual, permeado por narrativas bem amarradas, usando o imaginário circense como pano de fundo. Um disco que poderia facilmente virar filme. Em um papo rápido com a SOMA, o rapper contou detalhes sobre o trabalho. 1

Sejam bem-vindos ao meu circo

Page 79: Revista +Soma #23

79

No fim do seu primeiro disco, Primeiramente,

você já dava o gancho do Bem Vindo ao Circo.

Como surgiu essa ideia, e como foi criado o

conceito nesse meio-tempo?

Quanto terminei Primeiramente, quis criar um

contexto. Foi minha primeira experiência musical,

e pensei “o que fazer a partir daqui?”. A primeira

história que me veio foi o circo. Fui analisando os

personagens e como poderia relacionar eles com

a vida real. Desenvolvi os sons um por um, até

encaixar em uma história completa.

Por que o circo? Qual a sua relação com o tema?

Está no imaginário das pessoas desde a

infância. Cada pessoa tem uma coisa que marca

mais, seja um animal, ou o mágico, então dá pra

fazer várias analogias e gera muito repertório. E

a ideia era render personagens, então o circo já

dava uma história quase pronta.

Você fez algum tipo de pesquisa ou laboratório

pra ficar mais por dentro desse assunto?

Sim. De 2008 pra cá, tudo que eu via

relacionado a circo me interessava. Fui atrás da

história do circo, lendo livros, descobrindo as

origens, me envolvendo no assunto, ouvindo

músicas. Devo ter ido umas seis vezes ao circo

nesse tempo pra buscar inspiração.

O disco tem um conceito meio

cinematográfico, como se fosse um roteiro.

Além disso, ainda tem um enredo narrado que

acompanha e complementa as músicas. Como

você definiu essa ideia?

Desde o começo eu penso nisso, roteirizar as

músicas. Primeiro elas têm que fazer sentido uma

por uma. A ideia do narrador foi primordial pra

amarrar tudo. Eu tinha um certo medo de ficar

uma coisa meio abstrata, mas rolou numa boa.

Fala um pouco sobre as participações do álbum.

Encarei como se fosse a minha obra-prima.

Quis trazer pessoas que eu tinha como

influência. Quando estava separando os beats

que queria pro álbum com o DJ Caíque, já iam

surgindo as ideias. "Malabares" tinha a cara

da Lurdez da Luz, "Cego, Surdo & Mudo" tem

tudo a ver com o Elo da Corrente. Ainda tem o

Pizol e o Dr. Caligari, que são meus parceiros da

360 Graus. O Ogi e o Rodrigo Brandão fazem

o encerramento, com "O Show Já Terminou".

O Mi e o Elliot, da Banda Glória, são meus

amigos de infância, e as ideias surgiram de

forma natural. Foi muito legal e importante esse

trabalho com os amigos.

Você brinca com os títulos e os personagens

de uma maneira muito original, relacionando

as atrações circenses com o cotidiano. Fale

um pouco sobre essa analogia.

Contar história em primeira pessoa é legal,

emociona. É como um filme, você vê o que a

pessoa tá vivendo e acaba sentindo um pouco

também. Quando a criancinha fala no começo

do disco e vem a música dos malabares,

você já imagina a criança no farol e toda a

evolução dela. O personagem traz a imagem

na cabeça da pessoa, e eu dou a minha visão

em cima. Às vezes combina, às vezes conflita.

E a ideia era relacionar esses personagens de

uma maneira diferente, sem ser óbvio. Como

o mágico, que é aquela coisa que sempre

dá certo, consegue atos espetaculares. Na

música é uma coisa mais sofrida, de ser um

herói da vida real. Ou o palhaço, que já remete

a brincadeira, tem uma associação fácil. No

caso da música é uma tiração de sarro, porque

ele tomou um pé na bunda da mulher e está

sendo feito de palhaço, saca?

O lançamento do disco vai ser dentro de um

circo, né? Como está sendo montada essa ideia?

Em todo o processo de escrita eu já pensava

nisso. No circo as pessoas vão viver aquilo de

verdade. Eu tô trabalhando muito no visual. Vai

ter atores trabalhando, todos os convidados.

Vamos fazer uma interação bem visual.

Por que você resolveu colocar o álbum

diretamente pra download gratuito? Acha que

o formato de CD e venda já está ultrapassado?

Eu vou fazer uma tiragem em CD, mas só porque

não tenho condição de fazer em vinil. Quero

lançar esse trabalho físico. A música já está

aí, registrada. A gente tem que encarar o rap

como um mercado, e acompanhando o rap lá

fora. Você vê que tem grandes álbuns saindo,

de gente nova como Curren$y, Cool Kids, em

formato de mixtapes lançadas na internet. E eles

ganham o mundo se tornando populares. Então,

se eu lanço o CD e fico segurando o trabalho, o

primeiro cara que comprar vai jogar na internet

e eu não vou conseguir a atenção que consegui

com o download. O que iria se dispersar em

quantidades homeopáticas por meio das pessoas

que fossem comprando ou de downloads piratas,

eu trago direto pro meu nome fazendo uma

promoção maior. Esse é o meu pensamento.

Quem gostar de verdade compra o CD. Vou

fazer uma tiragem a cinco reais e uma especial

acompanhada de um livro e uma camiseta

com preço justo. E, como estou com essa

preocupação visual do show, isso é a parte mais

importante. Vender a arte como um todo.

Dentro dessa analogia que você fez, o que o

circo e o hip-hop têm em comum?

Se o hip-hop fosse um personagem do circo,

seria uma mutação de vários. Tem que ser um

pouco equilibrista pra viver da sua arte. O circo

tem aquela coisa do amor à arte, de fazer com as

próprias mãos. Junta um pessoal, põe as coisas

nas costas e vai de cidade em cidade passando

a mensagem. O hip-hop tem isso também. As

pessoas se juntam pela mensagem. Acho que é

a maior semelhança. É um trabalho árduo e de

longo prazo. Nós temos que fazer as coisas sem

depender de ninguém. Fazer o nosso cirquinho

se transformar no Cirque du Soleil, tá ligado? 3

POR DANIEL TAMENPI . FOTO POR ASSIS176

2SAIBA MAIS

myspace.com/doncesao

Page 80: Revista +Soma #23

80

+QUEM SOMA . DANIEL TAMENPI / SÓ PEDRADA MUSICAL . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira

S orte, sozinha, não resolve nada. Mas va-

mos combinar: ela também não atrapa-

lha. E Daniel Reis da Costa não é exa-

tamente um cara azarado. Nascido no bairro de

Santa Teresa, uma das áreas com maior concen-

tração de artistas por metro quadrado no Rio

de Janeiro, de pais progressistas (ambos profis-

sionais liberais, com histórico de engajamento

contra a ditadura e alta formação universitária),

Daniel teve seu envolvimento com música não

só facilitado, mas incentivado. “Meu pai era

amigo de uma galera da bossa nova, minha mãe

conhecia Novos Baianos, Caetano, Gil. Eu tinha

uma coisa com música desde cedo, eles sempre

apoiaram”, conta. Logo menino, foi estudar na

Escola Senador Correia, em Laranjeiras, reduto

de filhos da geração paz e amor como ele, onde

teve contato precoce com a música. “Com 8, 9

anos eu já tinha noção de flauta, violão, piano

e percussão. Pirei em percussão e meu pai me

deu uma bateria. Com 12 eu já estava tocando

em banda punk rock de moleque.” O espírito

arredio rendeu ao capeta em forma de guri o

apelido de “Pimenta”, que na adolescência vi-

rou “Tamenpi” por causa de uma mania carioca

de inverter as sílabas – especialmente oportuna

quando a molecada do asfalto começou a subir

o morro para frequentar bailes funk.

Mas, a partir de um ponto, algumas coisas sepa-

raram Daniel Tamenpi de ser só mais um garoto

de uma família legal. Unindo uma voracidade

rara para a pesquisa musical a um talento natural

como DJ, ele se tornou não só um dos nomes mais

requisitados da noite paulistana, como está há 5

anos (completados em 14 de maio) à frente de um

dos blogs de referência musical mais acessados

da internet brasileira, o Só Pedrada Musical. Nesse

tempo, o Só Pedrada se firmou como uma fonte

rica de novidades e pesquisas de origens, nota-

damente sobre música negra, que vem formando

novos ouvintes e facilitando a vida de muito ma-

caco velho. O estalo, segundo Tamenpi, veio “lá

por 93, 94, quando, quando ouvi Racionais pela

primeira vez”. “Eu era um moleque meio politiza-

do, meu pai sempre foi do PT e tal. E as letras do

Mano Brown me bolaram”, ele lembra. Começava

ali um caminho sem volta pelas entranhas do rap,

que depois se ramificou exponencialmente. Afe-

tado pelos Racionais, GOG e Thaíde, ele só ou-

via rap brasileiro: “Achava rap gringo uma merda

(risos).” Mudou de opinião anos depois, quando

ares mais esfumaçados trouxeram grupos como

Cypress Hill e Wu-Tang Clan. “Mas a virada mes-

mo veio em 96, quando ouvi The Roots. Aquilo

foi um soco na cara, vi que o rap podia ser muito

musical.” Dali em diante, começou a reparar no

trabalho dos DJs de hip-hop e não demorou mui-

to para decidir que era aquilo que queria fazer.

“SÓ TOMEI UMA NOÇÃO DO TAMANHO QUE TINHA TOMADO QUANDO MUDEI PRA SÃO PAULO. AS PESSOAS ME RECONHECIAM NAS FESTAS, ERA SINISTRO.”

Page 81: Revista +Soma #23

81

2SAIBA MAIS

sopedradamusical.com

Vendeu a bateria, comprou dois toca-discos e

começou a praticar em casa. Aos poucos, foi ga-

nhando espaço como DJ na noite carioca.

Paralelamente, a relação com as pickups intensi-

ficou mais ainda sua pesquisa musical. E em se-

guida, claro, veio o Napster. “Imagina como era,

né? Só existia internet discada, e a gente tinha

que entrar depois da meia-noite. Então eu vara-

va noite atrás de música.” Em 2002, finalmente,

Tamenpi resolveu começar a desovar um pouco

do que vinha descobrindo por conta própria.

Nascia ali o embrião do Só Pedrada: “Ainda não

existiam blogs pra baixar música, então abri um

Fotolog onde eu colocava capas de disco, ficha

técnica e escrevia reviews.” Os anos passaram, o

Fotolog virou reduto de gente que gastava mais

dinheiro com tinta de cabelo do que com dis-

cos, mas Tamenpi seguiu em frente. “Comecei

a frequentar blogs gringos e brasileiros como o

Saravá Clube, que abriu muito minha cabeça.

Era ótimo para procurar sample de disco.”

Em 2006, a moda dos blogs para baixar mú-

sica começava a pegar, e o que mais chamava

a atenção do então formando em jornalismo

era a quantidade de blogs dedicados a gêne-

ros específicos. Ele decidiu então abrir a pri-

meira versão do Só Pedrada, adicionando links

de downloads às resenhas. “Muita gente vinha

pedir pra copiar meus discos, aí eu botei tudo

lá no blog.” O que era para ser uma coisa en-

tre amigos ganhou proporções muito além das

imaginadas: o blog registra hoje algo entre 2 e

3 mil visitantes diários. “Só tomei uma noção

do tamanho que tinha tomado quando mudei

pra São Paulo. As pessoas me reconheciam nas

festas, era sinistro.” A vinda para a capital pau-

lista, em 2008, foi um passo fundamental no

caminho do homem-pedrada. “No Rio, eu ga-

nhava uma merreca pra tocar o que eu odiava.

Aqui, toco o que quero e ganho bem”, ele resu-

me, sem esquecer o papel fundamental que o

DJ Primo teve no processo. “Além de me colo-

car no circuito, o Primo fez toda a fita de eu vir

pra cá, me falou qual bairro era mais barato pra

morar, ajudou na mudança”, detalha. “E morreu

1 mês depois.” O choque o fez cogitar voltar

para o Rio, mas os amigos que tinha feito em

São Paulo o impediram. “Me falaram ‘fica aí, faz

tua base aqui que uma hora vai rolar’.” E rolou,

para deleite dos paulistanos e dos fãs de música

boa pelo mundo.

Hoje, aos cinco anos de idade, o Só Pedrada

não posta mais discos para download, mas viu

sua função educativa se ampliar. O volume de

reviews cresceu, surgiram podcasts e mixtapes

semanais e vários projetos musicais estão em

curso. A sorte, agora, é toda nossa.

Page 82: Revista +Soma #23

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Coisas que Gostamos de Guardar

FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Page 83: Revista +Soma #23

Parecer do dr. Jacob Pinheiro Goldberg

POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG

No colecionismo são vários os motivos que levam uma pessoa a querer guardar objetos. No caso do artista plástico ADRIANO LEMOS, o entrevistado desta edição da Seleta, foi o design que motivou sua paixão por eletrodomésticos. Sua história está profissionalmente ligada ao colecionismo, já que seu principal ganha-pão é restaurar de tudo, de lambretas a móveis, para colecionadores. Mas a conversa com ele revelou também uma tentativa não muito bem-sucedida de produção industrial de toy art no Brasil. Como ele mesmo diz: "Faço de tudo, só não faço dinheiro".

Como começou o seu interesse por

objetos antigos?

O primeiro objeto que chamou minha atenção,

lá na infância, foi o desenho do Fusca, com

suas formas arredondadas. Eu já desenhava

muito, sempre assistia TV com um caderno

na mão e gostava de desenhar Transformers,

mas as linhas arredondadas do Fusca

determinaram uma predileção.

E como chegou aos eletrodomésticos?

Foi quando saí de casa, 15 anos atrás, e tive

que comprar uma geladeira. Acabei adquirindo

um modelo antigo da GE da década de 50

porque tinha os cantos arredondados. Quando

me dei por conta já estava adquirindo outros

eletrodomésticos antigos. Percebi a beleza

do desenho envolvido e também a qualidade

superior e menos descartável deles. Comprei

alguns que eu nem precisava, tipo uma

batedeira da Walita que é também espremedor

de suco, moedor de carne e amolador de facas

– tudo num produto só.

Quantos eletrodomésticos você tem na

sua coleção?

Não sei bem porque estou sempre comprando

trocando e vendendo para outros colecionadores

do Brasil todo. É um mercado bem ativo.

Qual objeto você procura para a sua coleção e

não encontra?

Estou há um tempo buscando exatamente

o amolador de facas para completar minha

batedeira da Walita, mas tá difícil.

Você também tentou desenvolver um

boneco industrializado. Como começou esse

processo?

Sempre pintei quadros de bonecos coloridos

com a temática punk, skate etc., e logo passei

a modelá-los primeiro em epóxi, e depois

em biscuit, técnica que vi na Ana Maria

Braga. Comecei a vendê-los, principalmente

dois gatinhos trepando pintados com tinta

fosforescente. Eles vendiam bem...Isso bem

antes da onda da toy art.

Como resolveu produzir o boneco em vinil?

Eu havia desenvolvido alguns personagens

para a campanha publicitária de uma indústria

de medicamentos, e eles gostaram tanto dos

bonecos que pediram para que eu produzisse

em série. Assim, tive que aprender o processo

de produção industrial de brindes em vinil.

Quando surgiu o conceito de toy art no Brasil,

eu já não aguentava mais fazer manualmente

meus bonecos, porque os pedidos aumentaram,

e foi então que conheci o Munny (boneco

em vinil que pode ser customizado) e resolvi

fazer o Fooze, utilizando o mesmo conceito.

Vendi meu carro e alguns eletrodomésticos

da minha coleção e mandei fazer o molde em

uma indústria que fabricava brindes. Produzi

trezentos bonecos inicialmente.

Você ganhou dinheiro com a venda deles?

Distribuí os bonecos em algumas lojas. Até que,

para a minha surpresa, em uma delas, o dono

me falou que já haviam oferecido o mesmo

boneco para revender, por um preço bem

mais baixo que o meu. Foi então que percebi

que a fábrica estava usando o meu molde e

vendendo o meu boneco por aí. Fui pirateado...

Modelei e paguei o molde para eles... Hoje

brigo na Justiça para reaver meu molde e ser

indenizado, mas essa história ainda deve se

arrastar por um bom tempo.

A Revolução Industrial criou uma relação curiosa

entre a pessoa e o mundo do produto fabricado

em série, e que se torna especialmente

marcante no caso do eletrodoméstico, que virou

um objeto imprescindível, quase uma extensão

da pessoa dentro de casa. Algumas pessoas não

se desfazem de seus eletrodomésticos antigos,

nem ao menos em favor de uma tecnologia mais

moderna e qualificada, porque desenvolvem

carinho e amor pelos aparelhos.

A mesma relação entre a pessoa e o produto

fabricado é a que impulsiona determinados

indivíduos a se tornar empreendedores. Fabricar

produtos pode ser extremamente desanimador

quando se percebe os descompassos e

desencontros do mercado. Tudo isso gera

frustrações, que de forma nenhuma, porém,

devem ser encaradas como derrotas.

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Page 84: Revista +Soma #23

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+QUADRINHOS

Page 85: Revista +Soma #23

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Page 90: Revista +Soma #23

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John Coltrane . A LOVE SUPREME . IMPULSE!, 1964

Gravado ao final de 1964, A Love Supreme reúne todas as inovações musicais

experimentadas por John Coltrane durante a década anterior aplicadas em

“apenas” três faixas; “A Love Supreme PT. 1 – Acknowledgement”, “A Love

Supreme PT. 2 – Resolution” e “A Love Supreme PT. 3 – Pursuance / Psalm”.

Um dos discos mais espirituais já gravados, ainda que cheio de lógica em sua

composição, A Love Supreme reuniu o Dream Team do jazz em uma formação

de fazer inveja ao USA For Africa: Elvin Jones na bateria, McCoy Tyner no

piano e Jimmy Garrison no baixo, além do sax impecável de Coltrane como fio

condutor. Musicalmente e espiritualmente alinhados, os quatro músicos criaram

uma obra-prima do jazz, e também um dos discos mais celebrados da história

do gênero – alem do LP mais vendido da carreira de JC.

Com seus pouco mais de trinta minutos, A Love Supreme pode ser considerado

um disco de curta duração, embora a história constantemente nos diga o

contrário. Instrumental do início ao fim, influenciou músicos de todos os estilos,

épocas e gerações, provando ser a meia hora mais revolucionária da música

contemporânea. O free jazz (muitas vezes descrito por entusiastas em geral

como avant-garde jazz ou hard bop) tomaria novos rumos a partir de seu

lançamento, e John Coltrane certamente adicionou dois ou três adjetivos ao

significado da palavra “amor” nos dicionários modernos.

Love is in the air, baby.

Não é de hoje que artistas de todos os gêneros musicais conhecidos pelo ser humano falam sobre amor em suas composições. Jazzistas, soul men, rappers, funkeiros, sambistas, pagodeiros e sertanejos costumam destilar paixões, amores, faíscas, lampejos e seus respectivos desdobramentos em seus trabalhos, dos mais simplórios e honestos às supertrilhas vencedoras de Grammys. Artistas tão diferentes quanto John Coltrane e A Tribe Called Quest jamais poderiam ser exceções a uma regra tão clássica. No caso da obra-prima concebida pelo monstruoso saxofonista John Coltrane no distante ano de 1964, o amor em questão se traduz em doses cavalares de espiritualidade que, harmoniosamente distribuídas ao longo de três faixas-operetas, revolucionaram todo um gênero musical, mudando para sempre a forma de pensar, criar e executar um dos estilos mais ricos e

OB

RA

S P

RIM

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Page 91: Revista +Soma #23

91

A Tribe Called Quest . THE LOVE MOVEMENT . JIVE, 1998

Muito menos espiritual que a obra-prima de Coltrane, The Love Movement é uma

ode dos MCs Q-Tip e Phife Dawg e do produtor Ali Shaheed Mohammad ao amor.

Obviamente, um amor menos requintado, menos metafórico e muito mais objetivo,

visceral e aplicado à vida cotidiana. Em The Love Movement os MCs falam sobre

experiências pessoais, amadurecimento, decepções, frustrações e... mulherada na bota,

obviamente – problema que assola onze entre dez rappers desde que Big Bank Hank

e Wonder Mike escreveram os primeiros garranchos da hoje mitológica “Rapper’s

Delight”. A produção, seca, direta e cheia de timbres perfeitos – evolução natural do

ótimo Beats, Rhymes & Life, de 96 –, garante momentos espetaculares, como a ótima

“Find A Way”, parceria entre o ATCQ e o finado produtor James “Yancey” Dilla, que

tem até sample da Bebel Gilberto, e a sincera “Common Ground”, que descreve com

simplicidade e de forma verdadeira as angústias e as alegrias de um relacionamento

prestes a completar um ano. O flow espetacular e os one-two punches aparentemente

perfeitos entre Tip e Phife escondem uma triste verdade: a relação desgastada entre

os membros do grupo gerou uma prematura separação entre seus membros logo

apos a turnê de The Love Movement, separação que durou até o ano de 2009, quando

os bolsos falaram mais alto que as ideologias e o trio finalmente cogitou voltar a

dividir o mesmo palco, ainda que sem previsão de novos álbuns.

O amor juntou, o amor separou, o amor reagrupou. E o fruto do amor do ATCQ

é um dos melhores discos de rap do final dos anos 90 - um disco sobre amores,

desamores e todos os respectivos estágios intermediários.

complexos da música contemporânea. Menos badalados e muito menos celebrados por especialistas e connoisseurs que discutem verborragicamente as mazelas do jazz, embora tão influentes quanto, o trio de rappers A Tribe Called Quest criou, à sua maneira, uma homenagem bastante sincera ao conceito de amor. Obviamente, o amor cantado por essa rapaziada do Brooklyn (NY) é objetivamente associado à paixão, ao romance, ao sexo e ao sensual rebolado, a.k.a. vai-e-vem, das pessoas do sexo feminino em geral. Espiritual ou carnal, passional ou platônico, o amor se faz presente em discos de diferentes gêneros, em diferentes épocas e com diferentes conotações. Experiências são minuciosamente descritas, divididas, transformadas em melodias, partituras, belas poesias ou rimas cheias de sinceridade. E o maior beneficiado, meu amigo, é você!

2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE.

PO

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Page 92: Revista +Soma #23

92

Polly Jean Harvey é uma da poucas roqueiras

que consegue se reinventar sem fazer com que

sua obra perca sentido. Desde o primeiro álbum,

Dry, em que predominavam as guitarras cruas

e letras autobiográficas, passando por Stories

From The City, Stories From The Sea, em que fler-

tou com a música pop, ao penúltimo disco White

Chalk, em que encostou as guitarras e assumiu o

piano, PJ vem mostrando novas facetas criativas.

Em Let England Shake, ela manteve a trajetória

com um disco que equilibra as experimentações

dos últimos álbuns e a simplicidade dos primei-

ros. Além disso, ousou temperar as músicas com

vocalizações (quase) eruditas, desafiando a sua

voz em todos os momentos e dividindo as gra-

vações entre uma igreja do século XIX em Dorset

e um estúdio ao vivo. As letras também seguem

um novo caminho: temas concretos que questio-

nam a política de guerras seguida pela Inglaterra

ao longo dos séculos A faixa-título “Let England

Shake” foi a escolhida para iniciar a atmosfera

sombria do álbum. A trinca “The Glorious Land”,

“All and Everyone” e “In The Dark Places” po-

tencializa a escuridão com arranjos pesados e

fortes. Em “The Works that Maketh Murder”, ela

narra as barbáries da guerra em um rock/folk

menos obscuro, trazendo um respiro aos ouvin-

tes. Outra canção que suaviza o peso do disco

é “Written on the Forehead”, composta sobre

samples do reggae “Blood and Fire”, do jamai-

cano Niney The Observer. Os agudos da artista

em “On Battleship Hill” deixam dúvida de como

ela irá se sair ao vivo, mas talvez isso não tenha

tanta importância diante da grandeza de Polly.

3POR MARINA MANTOVANINI

+REVIEWS

Cantora da nova MPB falando sobre sua geração: “O legal é que agora todo

mundo tá se amando”. Corte para álbum de um rapper, se valendo de di-

versos gêneros, com sanha e tino de auteur raro, mandando uma pedrada

soul à la Cassiano cujo refrão é “Não existe amor em SP”. Esse cara é o

Criolo (ex-Doido), mestre do rap paulistano, chutando bundas acomodadas

em seu álbum Nó Na Orelha, com produção de Daniel Ganjaman e Marcelo

Cabral. Trata-se de uma obra com gosto e vocação para falar de seu tempo,

exercendo o que seria caro ao formato canção (o mesmo que perdera razão

de ser com o advento do rap, segundo Chico Buarque), exatamente o que a

tal da nova MPB da primeira frase mais evita. Criolo se expõe, conversa ao

pé do ouvido, denuncia, chora, tudo ao mesmo tempo, vertiginoso.

O álbum é prenhe de palavra, de força de interpretação, mas acolhe escor-

regadelas como o excesso de maneirismo que começa na primeira faixa, o

afrobeat “Bogotá” e finaliza com o sambão “Linha de Frente”. Paradoxal-

mente, é em bolero tomado de referências bregas, radiofônicas, que Criolo

brilha, assim como nas faixas por ora já paradigmáticas, como “Grajauex”,

“Subirusdoitiozin” e “Não Existe Amor em SP”, todas previamente divul-

gadas. Afora sua voz forte, dicção cortante, carregada de interpretação a

cada fonema, Criolo traz, ao domínio da música popular, a sintaxe, objeti-

vidade e virulência do mais curtido rap nacional – aquele que, se excluindo

a atmosfera FM eleita por Criolo, foi amplamente ignorado/execrado pela

audiência classe média que deve lotar seus shows.

Assim como Brown colocou o gangsta na casa dos bacanas através das

ondas do rádio, Criolo coloca parte constituinte do imaginário rap brasileiro

em condições de brigar com a MPB mais deslumbrada Brasil afora. Parece

que a primeira frase dita pelo cantor no álbum baliza a negociação que ele

inflige à audiência: “fique atento, irmão, quando te oferecem o caminho

mais curto”. A epifania vem, mais em uma latente educação pela pedra – e

poucos discos, sendo assim, representam tão fielmente nosso tempo, seja

pelo vigor de sentimento, pela falta de desfaçatez (em “Sucrilhos”: “cantar

rap nunca foi pra homem fraco / saber a hora pra parar é coisa de homem

sábio”), pela fragmentação à moda de uma mixtape. A mais pura Força

Bruta. 3POR VELOT WAMBA

2CRIOLO

NÓ NA ORELHA

Independente

2011

2PJ HARVEY

LET ENGLAND

SHAKE

Island

2011

1DISCOS

Page 93: Revista +Soma #23

93

Depois de dez anos de retração da gigantesca

máquina de marketing das majors, a localização

dos gêneros pop está mais forte do que nunca.

Mais até que o rap, o R&B talvez seja o último

exemplo de música pop global, presente nas rá-

dios de Nova Déli, Seul, Oakland e Niterói. É essa

qualidade ubíqua que parece atrair sensibilida-

des como a de Abel Tesfaye, cantor por trás do

projeto canadense The Weeknd. A mixtape de

estreia do artista, House of Balloons, flerta com

o lado mais melancólico do gênero em um clima

de fim-de-festa confuso, dopado e até perigoso.

As drogas são pesadas, o sexo é um exercício

de estranhamento e poder, e a diversão acabou

de se transformar em arrependimento – é a tri-

lha sonora da sua manhã de ressaca moral. Com

samples de Beach House e Siouxsie & The Ban-

shees, andamento arrastado e letras como “traga

o seu amor, baby, e eu posso trazer a minha ver-

gonha/ traga as drogas, baby, e eu posso trazer a

minha dor” (de “Wicked Games”), a mix é quase

um trabalho de R&B gótico. Mas então vem “The

Morning”, com uma guitarrinha safada de surfista

californiano, e amanhecer na balada não parece

uma má ideia. 3AMAURI STAMBOROSKI JR.

Se o punk partiu de uma necessidade de refletir e sintetizar de maneira

crítica o que até então havia acontecido no rock, nenhuma banda foi tão

efetiva nesse sentido como o Minutemen. Inspirados pelo clássico Pink

Flag, do Wire, o trio partiu para suas longas reflexões sobre a música em

composições de pouco mais de 60 segundos. Coisa que só amigos ob-

cecados por som poderiam fazer. Ao longo da carreira, começaram a ela-

borar esses pequenos fragmentos em composições maiores e em outros

tipos de canção, sempre refletindo sobre o rock e sobre o impacto da

cultura independente na sociedade. D. Boon, guitarrista do Minutemen,

definia o punk, em tradução livre, como qualquer coisa que queremos

que assim seja. Após a sua morte, essa noção de liberdade continuou

permeando as carreiras dos dois remanescentes da banda de San Pedro

– do baixista Mike Watt, principalmente. Sua trajetória errática no cená-

rio independente americano fez com que ele passasse por formações

que vão dos Stooges aos experimentalismos dos Ciccone Youth. Mas,

em seus trabalhos solo, sempre parecia que o baixista mais influente da

música independente americana estava tateando um caminho. Isso até

este incrível Hyphenated-Man.

O disco é chamado por Watt de sua “terceira ópera”, mas não espere uma

narrativa com começo, meio e fim, ou uma interpretação roqueira de al-

gum modelo clássico. Inspirado pelo pintor flamenco do século XV Hyero-

nimous Bosch, o álbum é composto de 30 pequenos fragmentos musicais

(só uma canção tem mais de dois minutos), que soam como se olhássemos

para uma tela cheia de personagens caricaturais e situações bizarras. São

peças com significados particulares – como os personagens-provérbio de

Bosch –, mas que têm um sentido comum entre elas.

É nesse painel que Watt recupera muito do poder de síntese do Minute-

men (são só três instrumentos!), dialogando com a estética que o grupo

construiu nos anos 80 (as canções foram compostas em uma antiga tele-

caster de D. Boon) e com muito da música que formou a sua geração – de

Captain Beefheart e Credence a Wire, Black Flag, Gang of Four. O resul-

tado é esclarecedor para entender um dos personagens que ajudaram a

dar forma ao rock como nós o conhecemos hoje. 3POR LAURO MESQUITA

2MIKE WATT

HYPHENATED-MAN

Org / Clenchedwrench

2011

2THE WEEKND

HOUSE OF

BALLOONS

Independente

2011

Page 94: Revista +Soma #23

94

Obaro Ejimiwe é Ghostpoet, um inglês de 24

anos, de origem nigeriana e dominicana, que deu

as caras em 2010 com o EP digital The Sound Of

Strangers, um cartão de visitas em que mostrava

em quatro faixas um hip-hop experimental e ele-

trônico. O rapaz chamou a atenção de diversos

meios especializados, como The Guardian e URB,

além de conquistar o DJ e radialista Gilles Peter-

son com seu estilo peculiar de rimar/cantar, que

remete a uma mistura entre Roots Manuva e Gil

Scott-Heron. Após assinar com a Brownswood

Recordings (selo de Peterson), o rapaz começou

a arquitetar sua estreia, que chegou agora no ál-

bum Peanut Butter Blues And Melancholy Jam.

O disco é surpreendente, unindo os diversos es-

tilos da música urbana contemporânea inglesa –

desde a semente plantada por Massive Attack e

Portishead nos anos 90, que gerou o trip-hop,

passando pelo hip-hop, grime, crunk, até os dias

atuais do dubstep. As músicas têm diferentes

propostas, mas se encadeiam bem: produções

sombrias e melancólicas desenhadas pela sua

levada spoken word melódica. Ao lado de James

Blake, Ghostpoet é uma das grandes novidades

inglesas em 2011. 3POR DANIEL TAMENPI

+REVIEWS

O revival da música produzida na década de 1990 é provavelmente a “previsão”

mais sopa no mel que poderia ser proposta a respeito da vida cultural ocidental

nos anos 10 – qualquer zé mané pode se gabar de estar por dentro da “regra

dos 20 anos” que dita os ciclos dos revivals musicais e que seria responsável

por todas as belezas e atrocidades cometidas em nome dos anos 80 durante

a primeira década do século XXI. Derivado das teorias que regem o universo

da moda, talvez o axioma não se sustente mais com tanta certeza, uma vez

que os mesmos anos 00 que reavivaram os 80 também trouxeram o MP3, que

legou ao consumidor a escolha de seu revival favorito, ao alcance de qualquer

bom programa de partilha de arquivos. Por outro lado, é certo que não faltam

esforços para reabilitar a década do grunge no imaginário coletivo, e bandas

“menores” no panteão do indie rock do final dos 00 – numa lista que vai do The

Pains of Being Pure At Heart ao Deerhunter – fizeram a sua parte nessa cruza-

da, ajudados especialmente pelas dezenas de reformas de grupos responsáveis

por inúmeros clássicos noventistas. Apesar desse contexto, o álbum de estreia

do Yuck ainda é uma agradável surpresa, um passeio musical que mais parece

uma fita VHS velha com uma edição perdida do Lado B (programa da MTV Bra-

sil dedicado ao indie rock) gravada em 1997. Se a habilidade do grupo britânico

em ser um Black Crowes da geração X, emulando luminares como Superchunk,

Teenage Fanclub, Yo La Tengo e Elliott Smith é o que chama a atenção do ou-

vinte no primeiro momento, é o que eles fazem com essas referências que faz

a audição do disco seguir até o fim e se repetir infinitamente. As características

mais caras ao indie rock da época – a produção lo-fi, a ironia, a obsessão pela

guitarra – poderiam ser reproduzidas facilmente por qualquer outro grupo, mas

o Yuck consegue se sobressair e afirmar sua identidade apesar das referências

aos 90, resgatando aquela fantasmagórica capacidade de evocação emocional

que marca os melhores trabalhos de grupos como Guided By Voices e Buffalo

Tom. Ouvir as melhores faixas do grupo – da sujeira de “Get Away” à fofura de

“Sunday” – é ser transportado diretamente para aquele estado semibeatífico

da adolescência em que nada estava bem, mas também nada estava tão mal,

até porque tudo estava para acontecer e o tempo ainda não havia passado. É o

equivalente sonoro de ser transportado a uma tarde de quarta-feira, matando

aula em algum banco de praça com uma cerveja na mão sob o sol de um outo-

no qualquer. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

2YUCK

YUCK

Fat Possum

2011

2GHOSTPOET

PEANUT BUTTER

BLUES AND

MELANCHOLY JAM

Brownswood

Recordings

2011

Page 95: Revista +Soma #23

95

Blubell, nome artístico de Bel Garcia, figura en-

tre as novidades da atual cena musical paulista.

Dona de uma voz meio analasada, mas muito

sensual e doce, ela lançou no começo deste

ano o seu segundo disco, Eu Sou do Tempo Em

Que A Gente Se Telefonava. O título, que já abre

evocando o passado, mantém o tom retrô tanto

nos arranjos como no visual. As canções são ba-

nhadas de melodias de jazz, blues e bossa-nova,

cheias de pianinhos e metais. As letras nonsense

são cantadas em francês, português e inglês e

levam a mente pra longe. A moça assina quase

todas as letras e melodias e conta com os inte-

grantes do grupo de jazz À Deriva para interpre-

tar os arranjos. O álbum coleciona belas canções

como “1,2,3,5”, em que Baby do Brasil (sogra de

Blubell) canta e colore ainda mais a música.

Outra participação muito especial é a de Tulipa

Ruiz em “Good Hearted Woman”, uma das me-

lhores canções do disco. “Mão e Luva” e “Triz”

também merecem atenção pelos arranjos bem

construídos, que se encaixam perfeitamente

com a voz da moça. Um álbum sem pretensões,

muito bem produzido, e que vai na contramão

do que costuma ser feito pelas novas cantoras.

Longe do samba ou da vanguarda paulista, Blu-

bell produz um CD com jeito de noite de cabaré.

3POR MARINA MANTOVANINI

Dois discos e mais de dez anos depois da gru-

denta “Brimful of Asha”, os indo-britânicos do

Cornershop parecem não conseguir fugir do

estigma de one-hit-wonder – mas Cornershop &

The Double O Groove Of, gravado com a can-

tora punjabi Bubbley Kaur, pode ser a garantia

da volta do grupo às pistas de dança em tem-

pos de “global”. Dessa vez nada de guitarrinhas

ou remixes do Fatboy Slim: Double Groove é o

disco mais dançante da música indiana desde a

redescoberta de 10 Ragas To a Disco Beat, de

Charanjit Singh, em 2010. Em vez de proto-acid-

-house, a brincadeira aqui reúne breakbeats de

tabla, ataques de cítara (em “Double Digit” e

“Topknot”) e baixos cavernosos. A voz da es-

treante Kaur (nascida em Nova Déli e criada em

Lancashire) abrilhanta também os momentos

menos balançantes do álbum, como “Double

Decker Eylashes”, que revisita com estilo o amor

da psicodelia sessentista pelo cravo. A melhor

faixa, “The 911 Curry”, é um microcosmo do dis-

co: trilha de Bollywood, sintetizadores analó-

gicos, percussão frenética, um drone de cítara

escondido no fundo de tudo. Econômico, claro,

assobiável, mas ao mesmo tempo soando em

contato direto com as tradições musicais india-

nas, o álbum parece a sua viagem dos sonhos ao

subcontinente. É claro que querer resumir o som

de um país com um bilhão de pessoas em um

único disco é papinho para turista, mas o que

importa em Double Groove é o movimento dos

seus quadris, e dificilmente eles vão querer ficar

parados. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

Mais do que seu talento como instrumentista e

compositor, o que sempre me surpreendeu em J

Mascis, nos seus mais de 25 anos de carreira, é a

completa disparidade entre o que ele é capaz de

expressar em suas letras e seu abissal laconismo

pessoal. É quase como se ele guardasse os sen-

timentos que nega revelar ao mundo – aí incluído

seu círculo pessoal – para se expor exclusivamente

em suas músicas. “Several Shades of Why”, primei-

ro disco que o artista assina como solo, leva isso a

um novo limite. Nas 10 faixas do disco, totalmente

acústico a não ser por alguns efeitos fortuitos de

guitarra, é como se Mascis defendesse ao mesmo

tempo uma busca zen pelo seu direito ao silêncio

(“I can’t speak my mind / I can’t even speak / I’m

fine”, ele canta em “Very Nervous and Love”) e

uma abertura completa com seu semelhante (“Can

we be loved / Can we explain / Can we be all these

things and hold the pain?”, em “Not Enough”). Tra-

ta-se de um disco triste e melancólico, como não

poderia deixar de ser no caso de um autor em um

dilema aparentemente insolúvel, mas construído

com beleza comovente. É como se a transparência

cegante de um Robert Smith se harmonizasse ao

vigor de um Neil Young, em um equilíbrio dialético

histórico. Por força de seu talento exímio com o

violão – enriquecido por uma escolha muito feliz

de convidados, que inclui Kurt Vile, Ben Bridwell

(Band of Horses) e a violinista Sophie Trudeau –,

Mascis alcança mais nuances sonoras até do que

um Elliott Smith, ainda que não chegue à profundi-

dade lírica deste. Em um cenário com tantos nova-

tos que já nascem com cara de velhos, é no mínimo

inspirador ver um veterano ousar tanto e alcançar

resultado tão bom. 3POR MATEUS POTUMATI

2BLUBELL

“EU SOU DO TEMPO

EM QUE A GENTE

SE TELEFONAVA”

YB Music

2011

2CORNERSHOP

CORNERSHOP &

THE DOUBLE O

GROOVE OF FEAT.

BUBBLEY KAUR

Ample Play

2011

2J MASCIS

SEVERAL SHADES

OF WHY

Sub Pop

2011

Page 96: Revista +Soma #23

96

Em poucos momentos uma HQ conseguiu unir

poesia e vocação cinematográfica e não soar

como um mínimo denominador de ambas as ar-

tes. Cicatrizes, de David Small, é um momento

privilegiado nesse sentido e, dentro desse subgê-

nero de quadrinhos autobiográficos tão incensa-

dos, uma obra a se observar. O álbum transmite,

com profusão de sugestivas imagens e frases

raras e definitivas, um mundo em eterno estado

de desmoronamento. Nisso, lembra tanto a lite-

ratura de O’ Henry como os filmes de Gus Van

Sant. O drama pessoal vivido por Small não é de

fato tão casual: Edward, o pai do autor, certo de

que poderia curar os problemas respiratórios de

seu filho, o trata com altas doses de radiação, o

que possivelmente causou o seu câncer. Daí ad-

vém toda uma miríade de questões com as quais

nem a família nem o garoto sabem lidar – e nessa

inadequação das partes é onde entra o brilho da

narrativa gráfica, impondo sequências nas quais

a HQ se faz sentir como linguagem e transmite o

mundo interior e exterior do narrador. E em um

mundo de fatos não discutidos, sublimação e anu-

lação de emoções, o autor criou um todo por fim

unificado, amealhando imagens de grande carga

emocional que acabam não por nos levar a uma

catarse redentora, mas à compreensão de atmos-

fera tão hostil. O que seria pesadelo ganha ares de

contos de fada moderno às avessas, realista, gra-

ças ao talento de Small com as imagens, talhado

no universo dos livros infantis, onde fez carreira.

As imagens ternas do quadrinista dão justamente

a noção dessa apreensão mais dilatada e menos

simplista que as crianças de fato têm ao lidar com

situações difíceis. 3POR VELOT WAMBA

+REVIEWS

Não costumo me guiar por releases ou orelhas de livros, mas quando um

álbum como a Fierro Brasil diz que apresentará “o melhor dos quadrinhos

argentinos e brasileiros em 160 páginas” e é isso mesmo que você encon-

tra, faz até com que você releve o proibitivo valor sugerido da publicação.

Semestral, nos faz lembrar do mercado de HQs de meados dos 80, que

permitia aventuras similares nas bancas, a preços convidativos, informan-

do e educando toda uma geração de leitores – provavelmente o público

maior dessa antologia hoje.

Gênios do quadrinho de nossos hermanos como Horacio Altuna, Max Ca-

chimba, Carlos Trillo, El Tomi, Carlos Nine, Copi e Alberto Breccia convi-

vem com novos e fabulosos autores como Lucas Varela, Salvador Sanz,

Gustavo Sala e Kioskerman, por exemplo. Neste primeiro número, o Brasil

está bem representado por Santiago, Fabio Zimbres (este devidamente

apresentado em matéria na mesma revista), Adão Iturrusgarai, Eloar Gua-

zzelli, Gustavo Duarte e Danilo Beyruth – o mais jovem de todos e respon-

sável pelo bom álbum Bando de Dois, publicação da mesma Zarabatana

responsável pela Fierro no Brasil.

Para quem não sabe, a Fierro é uma revista importantíssima no mercado

argentino, tendo circulado de 1984 a 92 e voltado às bancas em 2006. A

se observar certa “tradição” às histórias fantásticas e policiais que deram

ótimos frutos por lá e escasseiam por aqui. Usando o mesmo jargão dos

releases, como o citado no início, o mínimo que você encontra no livro é a

tal da diversão garantida. 3POR VELOT WAMBA

2VÁRIOS AUTORES

FIERRO BRASIL

Zarabatana Books

2011

2CICATRIZES

DAVID SMALL

Barba Negra

2011

1LIVROS

Page 97: Revista +Soma #23

97

+ENDEREÇOS

Agência Möve .

move.art.br

Casa de Costumes .

casadecostumes.com.br

Casa Fora do Eixo .

casa.foradoeixo.org.br

CemPorCento Skate .

cemporcentoskate.uol.com.br

Converse .

converseallstar.com.br

Fotonauta .

fotonauta.com.br

Galeria Emma Thomas .

emmathomas.com.br

Itaú Cultural .

itaucultural.org.br

Jacob Pinheiro Goldberg .

jacobpinheirogoldberg.blogspot.com

Nike Sportswear .

nikesportswear.com.br

Soma .

maissoma.com

Southern Lord Records .

southernlord.com

Vhils .

alexandrefarto.com

Volcom .

volcom.com

Page 98: Revista +Soma #23

98

converseallstar.com.br/linhapremium

Page 99: Revista +Soma #23

99

converseallstar.com.br/linhapremium

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