Revista subversa 3ª ed.

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SUSANA MACHADO | FRANCISCA RODRIGUES RUI MACHADO | NORBERTO DO VALE CARDOSO MORGANA RECH| BRUNA GIRARDI DALMAS ANDRÉ VICTOR MARQUES | TÂNIA ARDITO 3ª Edição | OUT /1 2014

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SUSANA MACHADO | FRANCISCA RODRIGUES

RUI MACHADO | NORBERTO DO VALE CARDOSO

MORGANA RECH| BRUNA GIRARDI DALMAS

ANDRÉ VICTOR MARQUES | TÂNIA ARDITO

3ª Edição | OUT /1 2014

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SubVersa

| literatura luso-brasileira |

© originalmente publicado em 01 de Outubro de 2014 sob o título de

SubVersa ©

3ª Edição

Responsáveis técnicas:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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4ª Edição

Outubro de 2014

SUSANA MACHADO | O VELHO E O VENTO | 4

FRANCISCA RODRIGUES |MIGUÉ LAÇA ALMA E O DIA EM QUE

FEZ MÚSICA DAS CORES | 9

RUI MACHADO | O QUE VAI SER |12

TÂNIA ARDITO | O HUMOR E O ASSUNTO SÉRIO EM “OS VIVOS,

O MORTO E O PEIXE-FRITO”, DE ONDJAKI* | 16

MORGANA RECH | SE VOCÊ É JOVEM AINDA | 20

BRUNA GIRARDI DALMAS | CONVERSAS QUE EMAGRECEM | 22

NORBERTO DO VALE CARDOSO | FRONTEIRAS DOS DARDOS | 24

ANDRÉ VICTOR MARQUES | DITADURA ROTULAR | 28

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SUSANA MACHADO

PORTO, PORTUGAL.

Lá longe, numa terra bem distante, onde as montanhas se cruzam

com o mar, vivia um homem, solto e livre como o próprio ar.

Há quanto tempo vivia ali ninguém sabia, ao certo, dizer. Muitos eram

os que o viam caminhar até à praia, todos os dias, mas poucos havia que

privassem com ele, lhe dirigissem duas palavras ou que percebessem

sequer o motivo que o levava a traçar esse caminho com tanta

frequência.

A verdade é que o homem - o velho, se assim o preferirem chamar -

era um solitário, desses espíritos que, de tão livres, acabam por cortar até

as amarras das relações pessoais.

Mas, ao contrário do que acontecia com aqueles que o viam

deambular sem saber o que lhe dizer ou fazer, esse facto não o

mortificava. Há muito que aprendera a ouvir as vozes da Natureza e

achava infinitamente mais interessante e útil ouvir o que estas tinham para

O VELHO E O VENTO

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lhe dizer, do que a voz de muitos humanos.

Descia, por isso, todos os dias até à praia, onde se sentava no topo

de uma rocha, para ouvir o vento falar.

O vento, de há muito seu conhecido, tinha sempre imensas histórias

para lhe contar. Trazia novidades de tempestades marítimas e das terras

do além-mar. Outras vezes, contava histórias de sereias e marinheiros ou

simplesmente lhe falava do tempo que fazia nas terras longínquas que ele

nunca haveria de visitar.

Fossem novas corriqueiras ou as mais eloquentes novidades, o vento

trazia sempre algo para lhe narrar. E não era só o velho que desfrutava

com este ritual. O próprio vento degustava cada um desses momentos

passados a contar histórias ao homem. Rodopiava em seu redor, ora lenta,

ora agitadamente, sibilando aos seus ouvidos as notícias do mundo, que

trazia consigo e que não gostava de guardar.

E, assim, todos os dias se juntavam, naquela mesma praia, à mesma

hora. Por vezes o vento falava baixinho, contando segredos que não

queria espalhar, e sussurrava numa brisa leve, quase impossível para o

velho, já com a audição afectada pela idade, decifrar. Mas em certos

dias, de tanta empolgação, não se conseguia conter e bradava os

acontecimentos, com fortes vergastadas que cortavam a face do

homem.

A população, em redor, apenas ouvia o vento soprar ou uivar, mas

do que ele dizia, nada podiam compreender. Apenas o velho tinha

ouvido para estas conversas.

Quer trouxesse lufadas quentes tropicais, ou rajadas frias polares, as

conversas com o vento aqueciam sempre o coração do velho homem,

que não tinha mais com quem falar.

Mas um dia o vento não veio…

À mesma de hora de sempre, o homem desceu até à praia, onde se

sentou no topo da mesma rocha de sempre e esperou. Mas o vento não

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chegou. Esperou horas e horas a fio, convencido que este se atrasara.

Talvez numa aventura das montanhas do Atlas ou no meio de um

qualquer oceano…como saber por onde ele andaria?! Porém, as horas

passaram e o dia deu lugar à noite e o sol reflectiu-se na lua e o velho,

cansado e fraco de fome, levantou-se e regressou a casa. Triste e curvado

percorreu o caminho que separava a praia da montanha onde vivia,

sempre olhando para trás, na esperança de ouvir uma voz chamar.

Quando chegou a casa deixou a janela aberta, não fosse ele, por acaso

querer entrar…não que isso outrora tivesse acontecido, mas também

nunca antes deixara de aparecer. Mas ele não apareceu. O velho

adormeceu, com a janela aberta pensando: Amanhã volto à praia e ele

vai lá estar.

Mas, o facto, é que o vento não apareceu. Nem na manhã seguinte,

nem nos dias que se sucederam. O velho, com medo que ele viesse na

sua ausência e não soubesse onde o encontrar, deixou de ir para casa e

ali, na mesma rocha de sempre, se deixou ficar.

Os vizinhos, ainda que habituados a ver o homem ali parado várias

horas por dia, começaram a estranhar. Havia quem jurasse a pés juntos

que, na última semana, ele passara as noites na praia, mas não havia

vivalma com coragem para o ir confirmar. Há tanto tempo que na vila

ninguém lhe falava, que ninguém sabia que lhe havia de ir dizer. Porém, as

conversas sobre ele multiplicavam-se no café, na mercearia, na praça…

“Alguém tem de fazer alguma coisa!”, diziam uns. “Será que

enlouqueceu completamente?”, questionavam outros. Mas, os dias iam

passando e ninguém fazia nada.

E o velho ali ficava e esperava, esperava.

Não conseguia compreender porque o vento tinha desaparecido…e

o resto das pessoas, será que não se apercebiam da ausência do vento?!

Ao fim de vários dias, semi-adormeceu e foi acordado pelo que

julgou ser uma ténue aragem. Fora apenas um ligeiro salpico de uma

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onda que o acordara, porém. Desiludido pelo quebrar da esperança que

este momento lhe trouxera suspirou, de forma tão profunda e magoada,

que a própria onda não foi capaz de conter a pergunta:

- Que se passa velho? Porque suspiras assim?

- Há vários dias que o vento não sopra por aqui. Não saberás o que

lhe terá acontecido? – Perguntou o homem, lembrando-se que as ondas e

o vento, por vezes se cruzam em grandes viagens.

- Olha que ouvi dizer que o vento não vai voltar! O vento é o ar em

movimento e, o que consta por aí, é que o ar deixou de se movimentar.

Houve quem o ouvisse contar que estava cansado de passar pelos lugares

e pelas gentes e ser o único em movimento. Que os edifícios, árvores e

rochas tenham uma vida praticamente inerte, ele até conseguia

aceitar…afinal foi dessa forma que foram originalmente criados. Mas, nas

suas longas viagens o ar começou a perceber que o Homem deixou de se

movimentar, como costumava fazer. As pessoas já não saem de casa

para se falar, pois têm aparelhos que o permitem fazer sem se cansarem.

Não saem de casa para se divertirem, pois têm máquinas que os divertem

em casa. Muitos, até já nem saem para trabalhar, porque a tecnologia o

permite fazer sem sair. Enfim, o Homem vive agora parado em frente às

máquinas, sem se movimentar.

E o ar movimentava-se, enquanto vento, para se cruzar com as

pessoas, para ver o mundo agitar-se. Corria pelo mundo, soprando ao

ouvido deste e daquele, as histórias que tinha para contar. Agora as

pessoas estão muito ocupadas para o escutar, para se escutarem umas às

outras… Creio que, no mundo inteiro, tu eras o único que ainda tinha

tempo para o ouvir.

O velho ficou a reflectir nas palavras da onda, enquanto esta se

afastava pelo mar dentro. O que poderia fazer para contrariar esta

situação?! O que mudar, para o vento voltar?!

Então, em muitos anos, resolveu olhar à sua volta e observar o mundo

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que o rodeava e no qual há muito tinha deixado de participar.

Viu, ao longe, um e outro vulto olhando a praia. O vulto das pessoas

que há dias se preocupavam com ele, mas não tinham coragem de o

abordar. Viu que a vida continuava na vila, que apesar de ter perdido as

conversas com o vento, tinha ainda muita gente com quem falar.

Levantou-se e começou a dirigir-se aos vultos que, ao verem a sua

iniciativa perderam o receio e foram ao seu encontro. Depressa uma

mulher veio com comida para o alimentar, uma menina com uma manta

para o agasalhar e um homem com um ombro amigo para o apoiar.

Rodeado por uma pequena multidão, o velho deixou a praia, da

qual não saía há semanas e fê-lo para não mais voltar. Nas gentes da vila

aprendeu a ouvir o valor das histórias que estas tinham para partilhar.

Contam as vozes, porém, que nessa mesma noite, o vento regressou

para falar com o homem, mas não o encontrou. Por isso, todos os dias, à

mesma hora de sempre regressa àquele lugar, fustigando com as suas

rajadas a rocha onde este se costumava sentar, e nessa mesma rocha, vai

deixando marcadas as histórias mais eloquentes ou corriqueiras, que traz

das suas viagens, só para lhe contar.

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FRANCISCA RODRIGUES

SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL

Migué Laça Alma estava dançando os pés um na frente do outro

há dias. Sentiu que precisava colocá-los em longo conforto. Lumiou seu

cigarrinho de fumo pretíssimo e esbravejou:

“Necessito de um teto altinho para eu deitar meu esqueleto num

macio leitoso e de bom aroma.”

Seguiu adiante e avistou uma casa já beijando a lua. Pôs motor

nos pés e findou.

Ficou frente à porta e já veio a imagem anuviada desenhando às

vezes de quando fez som melodioso, doce em época de presságio. E

fez doçura de novo na porta amadeirada. “Tenho dó de mim em dar ré

e muito estou precisado”.

Aí, dois passarinhos azuis desceram do amarelão circundante da

lua com graça num rodopio de dar medo! Simpatizaram com Migué

MIGUÉ LAÇA ALMA

E O DIA EM

QUE FEZ

MÚSICA DAS

CORES

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Laça Alma e assoviaram bonito até abrir caminho de luzes coloridas em

cada ombro de Migué para, então, pousarem.

Lançaram seus corpinhos magros para direita e esquerda bem

ensaiados dizendo um deles:

“Põe teu chapéu! Não tira! A casa é grande e tu pode se perder!”

“Grande? Só avistei a porta e uma ventania!”, disse Migué com

desdém já mirando seus pés de dedos cogumelo pensando lavá-los em

transparência.

“Quando abrir a porta, vai estrear uma mulher de vestido branco

com esferinhas coloridas, muitas. Cada corzinha é uma vontade! Não

apague de sua memória!”, alertou um dos passarinhos.

O fato é que a porta dançou. Mas Migué Laça Alma quase voou

por causa da luz grande que pegou ele! Quando deu fé estava

sentado à frente de uma mesa de comida farta que ele lembrou de

quando era só Miguelzinho… Os passarinhos assoviavam em seus

ouvidos, mas nada escutava!

A mulher de vestido branco e esferinhas coloridas saiu de um

portal grande e dourado da sala trilhando caminho de diamantinhos

brilhantes e com grande branco sorriso bradou:

“Quer comer? Coma! Quer os pés com dedos cogumelo em

transparência? Mergulhe! Quer macio leitoso e de bom aroma?

Repouse! Mas antes escolha uma esferinha colorida de meu vestido!”

“Por causa de que?”

“Pra escrevinhar com a ajuda das estrelas teu norte.”

“Venho do sul e minha sina é o oeste. Agradecido!”

Migué só viu pinicar seus ombros como quando as galinhas

ciscam o milho espalhado no chão costurando tapete amarelo: Eram os

passarinhos azuis tilintando uma música de boa toada…

Quando viu chegou uma mulher de altura até a árvore de

mangas. Era alva de doer os olhinhos dos olhões e manto azulzinho,

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bem azulzinho… aí bradou:

“Tu tem que escolher a esferinha azul!”

“Me agrada o azul mais que o céu azul clarinho do sol e escurinho

da lua!”

Dito isso, a ceia disposta na mesa cheirou mais que bufa do cão e

os bichinhos pequenininhos voadores e verdinhos encontraram morada.

As esferinhas coloridas do vestido branco caíram cada uma no

chão dando caminho açucarado para o norte.

Migué num conseguia botar os pés dedo cogumelo pra

caminhar… Ficou com os olhinhos sujos espichados para a mulher de

manto azulzinho que mal se via.

Resolveu cochichar pedindo aos passarinhos azulzinhos que

rapidinho voassem no corpo das esferas. Feito isso, abriram um buracão

no céu com cores variadas que ainda nem existem! Mergulharam nele

e cada vez que voltavam eram diferentes! Pra livrar Migué começaram

a cuspir lá do céu muitas cores traçando um arco íris que levava sina

para o oeste. Migué fez mundungos em graça e delicadeza aos dois

passarinhos! Rapidinho veio o chapéu para a cabeça dele e desceu

escorregando em gargalhada traqueada e alta pelo arco íris.

Ao dar fé era o céu abaixando em plenitude e com promessas,

muitas.

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RUI MACHADO

ERMESINDE, PORTO, PORTUGAL

O sol estava quente e fê-los ir para debaixo de uma árvore. Eles

não a olharam sequer, era um carvalho ou outra coisa qualquer que

saía do chão e se espanhava no alto para defender do sol os que

gostam de se Amar por todo o lado. E é por isso que devia haver mais

árvores pelas cidades. A história de que dão oxigénio e que purificam o

ar é importante, mas proteger os que se Amam deve ser a razão maior,

para que se comece a plantar desalmadamente por essas cidades

afora. Depois sim, se houver espaço para estradas e prédios, pois

contruam-se estradas e prédios. Esta questão é absolutamente

essencial, amar faz calor, fazê-lo ao sol do verão é impossível e há

urgências de Amor que podem surgir e têm de se cumprir quando se

está fora de quatro paredes.

Debaixo da sombra e por cima do muro, que marcava o fim

daquele parque verde no meio do cinza da cidade, ele colocava o

cabelo dela atrás da sua orelha, pequena e perfeita, como ela era

inteira. Fazia-o para a beijar de seguida, como refere claramente o

protocolo dos apaixonados. Quer dizer, não refere nada. Mas referiria,

O QUE VAI SER

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se alguém já se tivesse dado ao trabalho de fazer tal protocolo. Logo

nas primeiras páginas - estarei certo com certeza - estaria a negrito

qualquer coisa assim: “Nunca toques o cabelo de quem amas, sem que

a beijes de seguida”.

– Precisava de um café, minha cerejinha - disse ele cansado, mas

feliz.

– Queres ir então à esplanada? - perguntou ela, também

cansada, mas a difarçar melhor.

– Podemos ir, se quiseres – respondeu, para lhe dar sempre a

decisão.

– Temos que ir, ainda me cais em cima – e sorriu como se não

soubesse que era o que ele mais gostava nela.

– Como se isso não fosse bom – lembrou o malandro.

– És tão estúpido – concluiu, enquanto deu um pequeno salto

para fora do muro.

O vestido foi insinuante no movimento. Ela sabia que assim seria e

nada fez para evitar. Ele também não evitou olhar. Na verdade,

ninguém evitou olhar. Mas o assunto era só entre eles. Ela queria que a

quisesse e ele quere-a. Tudo estava certo.

Ele seguiu-lhe o exemplo, abandonou também aquele muro, mas

vocalizando algo que sugeria ter dado um salto de metros, não sem

deixar de fazer uma pose digna de um super-herói quando os pés

tocaram o chão. Ela abanou a cabeça, pressionando os seus lábios um

contra o outro, para os soltar de seguida para um sibilino “enfim”. E

esticou o braço com a mão bem aberta, para lhe pedir a dele. Ele deu-

lha claro e seguiram o caminho da esplanada que devia ter quase 100

metros.

Iam bem devagar. Estavam, de facto, ambos cansados. A noite

anterior, como todas as que não estavam juntos, foi passada ao

telemóvel, sem dar conta que a noite também se acaba. Se lhes

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perguntassem sobre o que conversaram, por certo não saberiam

responder direito. Sabiam que falaram muito, mais ela é certo, sobre

muita coisa e variada, sobre tudo quanto lhes apeteceu e lhes permitiu

estar a ouvir a voz um do outro, e a respiração, a respiração também,

ao ouvido, como quando faziam amor.

– Quando tivermos a mesma morada, cerejinha, vamos ter um

destes – informou ele, enquanto olhava para um beagle passeado pelo

seu dono ou o contrário, não se percebia bem.

– Sabes bem que prefiro gatos a cães – retorquiu, quando o

beagle procurava lebres pelos arbustos do parque. Nem uma. Mas

continuava na certeza de que as orelhudas por ali se encondiam.

– Gato é animal de solteira, quando te puser o anel na mão

esquerda, essa preferência muda, vais ver. Se bem que deste gato

aqui, nunca deixarás de gostar – e fez que estava a lamber a mão

esquerda, enquanto que com a direita enrolava os bigodes felinos

imaginários.

Ela abanou a cabeça a sorrir e disse:

– És tão palhacinho que não sei o que te hei-de fazer.

– Começa por um beijo, pode ser que melhore.

Não melhorou, mas ambos achavam que era importante insistir

nesse tratamento, pelo menos até ao resto da vida. Tratamento

intensivo, aliás. Molhado e doce. Quente e tumultuoso. Desejado e

temoroso. Por ser tudo isto, era de insistir, o mais que se pudesse.

Já estavam quase a chegar quando ela, ao passarem por dois

pares de miúdos a jogarem à bola, disse:

– Agora não dizes que queres um, pois não?

– Pois não cerejinha. Por uma razão muito simples. Eu não quero

um, quero uma catrefada deles. Por mim, serás uma bolinha geradora

de catraios, a tempo inteiro, olha assim – clarificou, enquanto arqueava

a pernas, os braços, enchia as bochechas de ar e andava como um

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pêndulo de um relógio de parede.

Ela soltou uma gargalhada junta com um “nem pensar!”

E chegaram. As mesas e cadeiras eram metálicas, as sombras

eram asseguradas por grandes guarda-sóis de pano bege. Escolheram

uma mesa livre e acomodaram-se. Ela cruzou as pernas morenas e ele

quando deu por si, apertou-lhe a perna pouco acima do joelho, com a

mão, com força, talvez demasiada. Ela queixou-se:

– Ai! Parvalhão!

– Coisa boa! – respondeu ao largar a perna.

– O que vai ser? – era o empregado que perguntava como se

não tivesse visto, nem ouvido nada.

– Para mim um café. E tu cerejinha, o que queres?

Ela mergulhou os seus olhos nos dele e respondeu:

– Eu quero passar o resto da minha vida contigo.

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TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO – PORTO

Criado originalmente para uma emissão radiofônica transmitida

pela RDP África no âmbito do África Festival 2006, “os vivos, o morto e o

peixe-frito”1 é apresentado ao leitor, utilizando aqui das palavras de

Abderrahmane Ualibo2 como um “exercício literário sobre aparência de

texto teatral”, este exercício através da sátira trata sobre a vida dos

imigrantes africanos em Portugal. A sátira começa com a denominação

do autor para o prédio onde as personagens se conhecem: Migrações

Com Fronteiras, para quem não sabe o atual SEF- Serviço de

Estrangeiros e Fronteiras era denominado Migração Sem Fronteiras, com

a pequena mudança de “sem” para “”com” o autor nos mostra como

as fronteiras estão bem presentes. Enquanto esperam pelo atendimento

formam uma verdadeira “confraternização palopiana”, termo utilizado

para demonstrar a união, os conflitos, as variedades de culturas e as

1 Ondjaki. “os vivos, o morto e o peixe-frito” Lisboa: Caminho, 2014.

2 Texto apresentado na contracapa da publicação portuguesa.

O HUMOR E O

ASSUNTO SÉRIO EM

"OS VIVOS, O

MORTO E O PEIXE-FRITO",

DE ONDJAKI*

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especificidades linguísticas deste verdadeiro mosaico de urgências,

problemas em comum e afetos que se formam na condição de

imigrantes em terras portuguesas. Obrigadas a adaptarem-se para

sobreviver destacamos dentre as personagens um bom exemplo J.J.

Mouraria, que reflete a tentativa de adaptabilidade linguística, dono de

um português muito específico, consultor de dicionários, mas também

um tipo de “bom malandro” que consegue ganhar na conversa a

simpátia dos demais:

JJMOURARIA:

Atendo pelo internacional nome de Jota Jota Mouraria, originário

barrigalmente das terras de S. Tomé e Príncipe, mas já vindo ao

mundo nesta capital lisboeta de frios e tanta africanidade. É

verdade: Jota Jota Mouraria… (pausa) O “Jota Jota” é de raízes

familiares, o “Mouraria” é de afinidades urbanas, muito prazer

minha senhora…?

MANA SÃO:

Conceição, mais conhecida por MANA SÃO, e este (aproxima-se

de TITONHO) é o seu António, mais conhecido por TITONHO.

JJMOURARIA:

E as coordenadas geográficas, já agora?

TITONHO:

Eu sou de cabo-verde, Santo Antão e a minha prima (olhando

para o segurança) Mana São, é do sul de Angola, província de

Benguela.

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JJMOURARIA:

Verdadeiramente encantado por esta repentina confraternização

palopiana. (pausa) Então o amigo é um “morabezístico

juramentado”, e a prima Mana São vem das correntes frias de

Benguela… Que maneira mais optimística de começar o dia, folgo

muito em vê-los aqui nesta nossa cidade afro-europeia.

O pano de fundo da história tem a 1ª participação de Angola

em Mundial de Futebol, confrontando justamente Portugal, com as

personagens oriundas de diversas partes “palopianas” que se juntam

dentro de um pequeno apartamento para tentar acompanhar o jogo,

tarefa que se mostra no mínimo invulgar quando a única maneira de

acompanhar o resultado é através do rádio sem pilhas do morto que

mesmo em sua condição mortuária ainda é um fanático por futebol,

além de desenrolarem-se outras histórias paralelas, como uma gravidez

indesejada, uma pistola para garantir um casamento, cervejas para

animar e diamantes dentro da barriga do padrinho, além da procura

pela iguaria do peixe-frito para alimentar a todos. O humor é utilizado

para tratar de forma séria os assuntos dos imigrantes como a

precariedade das condições de alguns, além das dificuldades da

legalização:

MÁRIO ROMBO

(DESESPERADO.)

Eu não acredito nisto… querem me matar do coração… primeiro é

porque não há peixe frito… depois é que para conseguir um rádio

tenho que trazer um morto e ainda por cima o rádio não funciona

e o morto fica aqui a assistir o jogo…

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MINA

Calma, pai…

MÁRIO ROMBO

E agora, mesmo estando na Tuga, a pagar imposto com 21 por

cento mais a segurança social… a luz vai… e eu não posso ver o

jogo da minha selecção… (MUITO TRISTE.) Mas eu fiz quê a Deus?!

Ondjaki consegue nos fazer rir e refletir, garantindo ao público

leitor um texto bem cuidado, leve, mas longe de ser superficial e

mostrando mais uma vez porque é cada vez um nome a ser levado em

consideração dentro da literatura não só “palopiana” mas também

mundial.

*Ondjaki nasceu em Luanda, prosador e poeta, co-realizou um documentário

sobre a cidade de Luanda “Oxalá cresçam pitangas – histórias de Luanda” (2006).

Licenciado em Sociologia, atualmente é um dos membros da União dos Escritores

Angolanos, traduzido para diversas línguas, dono de uma obra já reconhecida e

ganhadora de diversos prêmios entre eles, o Prémo José Saramago por “os

transparentes” em 2013.

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SE VOCÊ É

JOVEM AINDA

MORGANA RECH

PORTO ALEGRE,

RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

A noite é carioca e não poderia ser outra.

Não é fácil viver uma noite carioca com tudo o que ela dá direito,

a começar pelos ritmos da bossa nova que vão marcando

compassadamente o batimento cardíaco.

Porque só numa noite legitimamente carioca a gente olha um pro

outro numa profundeza que está em sintonia com o Atlântico,

equivalente a duas horas de meditação, em pleno movimento dos

pulmões e das cordas vocais.

Isso porque em noites como a carioca a fome desaparece na

gente, os líquidos que entram e saem do corpo são cada vez mais

refrescantes. Lavam a alma e reiniciam o nosso modo de ver a

realidade ao redor.

Os assuntos são um emaranhado de fios brilhantes e hilários.

A memória está cada vez mais fresca. A gente quer explicar

como nasceu, e o outro compreenderá.

Na noite carioca, táxis aparecem com a força do pensamento.

Não faltará dinheiro. Podemos ganhar o mundo com as nossas

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ideias, que estão todas conectadas.

Esbanjamos nosso ser sedutor e toda a inteligência finalmente

despertará.

A música é ambiente e está em toda a parte. Com ela, nos

tornamos ainda mais belos.

Na noite carioca, o nosso trabalho do dia seguinte se transporta

para outra dimensão de tempo. Jamais amanhecerá.

São noites como a carioca que confirmam: Estamos no lugar

certo.

Os astros se ajeitam um pouco no ar, as contas se ajustam com a

certeza de que saímos ganhando.

A pele faz uma esfoliação pelo riso, o corpo recupera todas as

horas que perdeu procurando as chaves do carro.

Na noite carioca, o mundo reaparece um pouco e nos dá o luxo

de ser visto de perto, dá um banho de alegria na gente, atirado de um

balde na nossa cabeça, que não doerá no dia seguinte.

É quando números são deixados na mesa, promessas não

precisarão ser cumpridas, apostas são gestos de carinho e o beijo

roubado é a única certeza de querer ficar mais um pouco e

rejuvenescer quantas vezes for preciso.

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BRUNA GIRARDI DALMAS

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Há conversas que fazem a gente emagrecer pelo menos uns dez

quilos. Aquelas conversas de velhas botas ou novas fazem a gente se

lembrar o motivo pelo qual vale à pena continuar a nadar. De uns

tempos para cá venho colecionando mais dúvidas do que certezas.

Venho andando mais confuso, mas não menos cauteloso. Dando

menos vazão aos meus sentimentos e tentando varrer os meus

fantasmas. Até que paro e escuto algumas coisas que ficam ali

pairando sobre a minha mente como nuvens de tempestade.

O tempo é o que vai dar as respostas que a gente precisa

escutar. Muitas vezes não existem respostas para as nossas perguntas,

afinal o grande barato da vida é esse mistério de aleatórios que de vez

em quando se unem e formam o que somos. Viver é como um

apanhado de ingredientes de uma receita, olhando eles ali separados,

você nem imagina o resultado final, se é que tem um. Assim, como isso

o tempo também é diferente para cada pessoa. Todos nós temos o

CONVERSAS

QUE

EMAGRECEM

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nosso próprio tempo e com certeza com isso dá entender uma porção

de coisas.

Uma das coisas que dá para entender é que tudo na vida tem

um tempo para cicatrizar e tem certas coisas que vão se transformando

em cicatrizes invisíveis Tem pessoas que continuarão a existir dentro da

gente mesmo que elas já não façam mais parte. Há de não se perder a

hora com a pessoa errada. Há de se aprender a dizer não quando

queremos dizer não e dizer sim quando queremos dizer sim. Seria tudo

bem mais simples se a gente começasse a escutar aquela voz dentro

da gente que nos dá sempre uma noção se é uma cilada, se é um tiro

no escuro ou se estamos indo na direção certa.

Conversas que emagrecem são as frutas da estação. Elas

precisam entrar no cardápio das pessoas para que elas possam

emagrecer suas consciências. Afinal o mundo está lotado de almas

obesas e almas anoréxicas. Fico aqui me perguntando se faço uma

dieta ou me conformo com os quilos a mais. Na hora que me peso na

balança a consciência está mórbida, o orgulho inflado, o remorso

inchado para não falar da preguiça esta que consome. Entretanto

preferi ir lá emagrecer, conversas que emagrecem a minha alma,

afinam a minha consciência, afrouxam o meu orgulho, reduzem os

meus níveis de mentira e o principal aliviam minha alma.

Quem sabe um dia a gente perceba que emagrecer seja mais do

que estética ou status. É preciso emagrecer as desavenças, as

discussões sem motivo, as implicâncias bobas, os ciúmes doentios e

começar a conversar.

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NORBERTO DO VALE CARDOSO

CHAVES, PORTUGAL

Parti, atravessei a fronteira. Parti, eu juro, para não mais voltar.

Estava cansado. Farto, para dizer a verdade. Farto dos meus fardos

dolentes. Farto. Mais do que isso até. Não sei explicar. O meu espaço

na vida um compartimento iníquo. Como hei-de explicar? Era uma

saturação dos homens, das suas presenças desconjuntadas, das suas

sequências. Das suas formas de não viver e de, com elas, não

permitirem que os outros vivessem.

Parti. Porque fazia a vida como se esta fosse um carreiro e me

assemelhasse a uma formiga carregando suas pargas, suas espigas,

seus fardos, calcorreando as versas, errando pelos prados.

A vida: um empilhado de inutilidades, trabalhos precários,

tratados pouco auspiciosos. A vida igual a fatuidade. A vida à minha

frente, uma nótula sem importância. A vida atrás de mim, um escrutínio

de obrigações, de comportamentos pré-concebidos, de caminhos por

traçar sem remédio, um pouco assim como os novelos. Translineio-me,

desculpa, mas é para sempre, porque serei sempre um hemistíquio do

que quis ser.

A FRONTEIRA

DOS DARDOS ______________________________________

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A fronteira era um campo matizado, ainda que

maioritariamente amarelo, tantos eram os cardos, de tal modo que, no

limite, se me embutiu o receio de que um odor tão forte me pudesse

levar à letargia. Tapava o nariz, de modo a não inalar o odor das flores

dos cardos.

O posto fronteiriço era um conjunto de anexos abandonados,

votados à degradação, onde as ervas cresciam por dentro e por fora,

de fora para dentro e de dentro para fora, enquanto as aranhas

teciam suas teias à velocidade da costura, remendando os espaços

quebrados. Junto ao antigo posto, carros abandonados, partidos,

queimados. Porventura, alguns habitados, se à habituação se pode

chamar habitação. Nos anexos, vidros partidos. E escuridão. Quem

sabe se vultos na escuridão, rostos olhando-me, e, nas trevas de onde a

luz nasce, só a luz dos olhos dos lobos uivando, isto no tempo em que

ainda havia as serras, qualquer coisa que se parecesse com os prédios

de agora, cada vez menos serras, cada vez mais desertos muros de

areia e sal, alcatrão e desabitação.

Passaram por ele dois guardas a cavalo, não deviam ir em

direção à fronteira, nostalgicamente a cavalo no tempo lento dos não

acontecimentos, isto é, no tempo em que os abandonos são vidros

partidos e só uivos de lobos dentro dos nossos vales. O tempo em que

ninguém mais parte, percebes?

Lojas abandonadas. Comércio estagnado. Velhos fumando

cigarros fétidos à porta das casas de vidros partidos, velhos, só velhos.

(E eu um velho, sempre houve um velho dentro de mim desde

que me lembro de existir. Tomo nota, e tu?)

Velhos nos cais das serras. Os mesmos velhos que antes viam os

rapazes atravessar a fronteira para ir às putas, para fazerem

contrabando ou para não mais voltarem, com medo das fronteiras.

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Nesse tempo os anexos tinham luz e guardas revistando os bolsos - e a

vida.

Este tempo tem espinhos. Este tempo fere-me. Resisto. Este

tempo em que passei a fronteira para não mais voltar. Porquê? Porquê

passar a fronteira? Era esta a questão que eu gostava que colocasses:

Para quê? Para contrabandear? Para abrir a mala e descobrir bocados

de sonhos que esventrei a cada dia destes dias em que os espinhos

nascem dentro dos meus olhos e dos ninhos nascem pássaros que já

não sabem voar?

(Os pássaros já não sabem voar, sabias?)

Parti.

A fragrância das flores consumia-lhe o pensamento. Grandes

rochas se interpunham no percurso. Os velhos viram-no, olharam para

ele, nada disseram, como se soubessem já o fim desta história e

tivessem noção de que esse epílogo era desagradável, ainda que

inevitável. Eram os mesmos velhos que já eram velhos quando ele era

um puto. Sorriram para ele. Porquê? Por que razão não o denunciaram?

Porque ficaram impávidos e sorriram? Terão visto no seu rosto os

espinhos da idade? Os espelhos das mãos calejadas de tanto as

apertar de tanto sofrer, de tanto pensar?

Seria ele já outro ou de outra maneira? Onde estivera então

todo aquele tempo? Onde, entre o tempo em que os velhos eram

velhos e os velhos que eram velhos continuavam em suas velhices? É

que ele não andava com os rapazes a atravessar as fronteiras a ver os

velhos, os cigarros, as bebidas, as putas. Onde é que estivera aquele

tempo todo?

Não te perguntas? Que teria sido feito dele? Os colegas da

escola, noutra geração, deveriam ter construindo casas como quem

constrói pó.

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E ele, teria ele sido o pó da estrada?

Nunca tinha partido. Nunca tinha atravessado a fronteira.

Nunca, nunca. Sempre tivera medo, medo de atravessar a fronteira,

mais medo do que dos uivos dos lobos nas noutes de breu da aldeia,

do que as parcas luzes das lanternas nos caminhos dos montes. Mas

tinha medo. Por que é que só agora partira? Pode ser estranho, mas só

agora partira. Para não mais voltar.

Perdera o medo.

(Nótula: estava pronto.)

E então os dardos começaram a penetrar na sua pele, e as

feridas foram dardejando. Os dardos que não conseguia sequer ver,

que, se calhar, eram a adulteração de si pelo odor das flores do maior

cardo que algum dia vira, dos campos que tardava em atravessar

eternizando-se.

Naquele momento só foi capaz de se lembrar da avó e das suas

novenas. Não sabia porquê, mas essa era a imagem que, naquele

instante, lhe irradiara a mente.

Os dardos (que já não sabia se nas flores se na sua pele) iam-lhe

polinizando a dor, de membro para membro, de órgão para órgão. Na

sua cabeça, sem saber porquê, outra coisa: perdera o medo. Por isso,

mesmo que os dardos nas iniquidades corpo, a fronteira podia ser no

cabo do mundo. A dor cada vez maior. E então só o tempo de correr.

De partir. Mas de uma partida definitiva. Afinal, tinha prometido que era

para sempre que atravessaria o sorriso dos velhos.

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ANDRÉ VICTOR MARQUES

RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL

O rótulo ainda será a maior ditadura já vivida no mundo. Ter que

se encaixar em algum lugar é um dos piores regimes impostos todos os

dias, a todos os seres humanos. Somos desde os primórdios

impulsionados a procurarmos o que seremos, onde estaremos, o que

seguiremos, o que somos, onde estamos e o que seguimos.

Somos classificados em negros, brancos, pardos, índios, amarelos.

Como se nossa cor fizesse alguma diferença, como se nossa cor fosse

quem dissesse nosso caráter, nossa índole, nosso pensamento. Somos

classificados em homens e mulheres. Como se nosso sexo fosse dizer

quem é o mais forte, o mais inteligente, o mais superior. Somos

classificados em crianças, velhos, adolescentes, adultos. Como se o

mais novo fosse tão desprovido de ensinamento quanto o mais velho,

como se o adulto não fosse tão inconsequente e imaturo quanto o

jovem. Somos classificados em heterossexuais, homossexuais, lésbicas.

Como se nossa condição sexual fosse quem regesse nossa atitude

DITADURA ROTULAR

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desafiadora, nosso pensamento progressista, nossa visão esclarecedora.

Somos classificados em classe baixa, classe média, classe alta. Como se

nosso momento financeiro fosse o “abridor” ou o “fechador” de

caminhos, como se o dinheiro fosse a solução ou a falta dele fosse o

problema. Somos classificados em altos, feios, gordos, baixos, bonitos,

magros. Como se nossa aparência física fosse quem realmente dissesse

quem nós somos, como se o corpo fosse nosso cartão postal. Somos

classificados em estudantes, operários, aposentados, vagabundos.

Como se nossa tarefa diária fosse responsável pela visão que terão de

nós, como se fizéssemos alguma coisa ou não fizermos nada, nos

desfavorecerão ou nos idolatrarão.

Seremos sempre rotulados, seremos sempre julgados. Nunca

seremos somente nós mesmos. Antes, terá sempre um nome

classificador, um nome que me dá outra cara, me dá novo

pensamento, nova visão. Ainda sim viveremos nessa ditadura rotular,

que critica sem piedade, que desmembra, que destrói, que exclui.

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Edição e revisão:

MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO

Recepção de originais:

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Diretrizes para publicação:

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