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REVISTA TRIMESTRALDE JURISPRUDÊNCIA

abril a junho de 2016

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(Supremo Tribunal Fe deral — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Revista Trimestral de Jurisprudência / Supremo Tribunal Fe deral. – V. 1, n. 1 (abr./jun. 1957) - . – Brasília : STF, 1957- .

v. ; 22 x 15 cm.

Trimestral.

Título varia: RTJ.

Repositório Oficial de Jurisprudência do Supremo Tribunal Fe deral.

Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Fe deral, 1957 a 2001; Editora Brasília Jurídica, 2002 a 2006; Supremo Tribunal Fe deral, 2007- .

Disponível também em formato eletrônico a partir de abr. 1957: http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

ISSN 0035-0540.

1. Tribunal supremo, jurisprudência, Brasil. 2. Tribunal supremo, periódico, Brasil. I. Brasil. Supremo Tribunal Fe deral (STF). Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. II. Título: RTJ.

CDD 340.6

Edição Secretaria de Documentação / Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência

Capa e projeto gráfico Eduardo Franco Dias

Diagramação Camila Penha Soares, Eduardo Franco Dias, Neir dos Reis Lima e Silva e Patrícia Amador Medeiros

Livraria do SupremoSupremo Tribunal Fe deral, Anexo II-A, Cobertura, Sala 624 Praça dos Três Poderes – 70175-900 – Brasília-DF [email protected] Fone: (61) 3217-4780

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SU PRE MO TRIBUNAL FEDERAL

Mi nis tro Enrique Ricardo Lewandowski (16‑3‑2006), Presidente

Mi nis tra Cármen Lúcia Antunes Rocha (21‑6‑2006), Vice‑Presidente

Mi nis tro José Celso de Mello Filho (17‑8‑1989), Decano

Mi nis tro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)

Mi nis tro Gilmar Ferreira Mendes (20‑6‑2002)

Ministro José Antonio Dias Toffoli (23‑10‑2009)

Ministro Luiz Fux (3‑3‑2011)

Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa (19‑12‑2011)

Ministro Teori Albino Zavascki (29‑11‑2012)

Ministro Luís Roberto Barroso (26‑6‑2013)

Ministro Luiz Edson Fachin (16‑6‑2015)

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SUMÁRIO

Acórdãos � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 7

Decisão monocrática � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 321

Índice alfabético � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 333

Índice numérico � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 345

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ACÓRDÃOS

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AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.943 — DF

Relatora: A sra. ministra Cármen LúciaRequerente: Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – ConampInteressados: Presidente da República

Congresso NacionalAmici curiae: Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep

Associação Nacional dos Defensores Públicos Da União – ANDPU Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – Ibap Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE� LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART� 5º, INC� II, DA LEI N� 7�347/1985, ALTERADO PELO ART� 2º DA LEI N� 11�448/2007)� TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS� DEFENSORIA PÚBLICA: INS‑TITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL� ACESSO À JUSTIÇA� NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART� 5º, INCS� XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA� INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZA‑MENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA� AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA� AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE�

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ADI 3.943

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski, o Tribunal, por maioria, em reconhecer a legitimidade ativa da requerente, vencido o Ministro Marco Aurélio� Por maioria, o Tribunal rejeitou a preliminar de prejudicialidade da ação, vencido o Ministro Teori Zavascki� No mérito, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou improcedente o pedido formulado na ação� Ausentes o Ministro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, de palestra e compromissos na República Italiana e do Programa de Visitantes Internacionais, por ocasião das Eleições para a Câmara dos Comuns do Reino Unido, e, justificadamente, o Ministro Luiz Fux�

Brasília, 7 de maio de 2015 — Cármen Lúcia, Relatora�

RELATÓRIO

A sra. ministra Cármen Lúcia: 1. Ação Direta de Inconstitucionalidade, sem requerimento de medida cautelar, ajuizada pela Associação Nacional dos Mem‑bros do Ministério Público – Conamp, em 16‑8‑2007, na qual se questiona a validade constitucional do art� 5º, inc� II, da Lei n� 7�347/1985, alterada pela Lei n� 11�448, de 15 de janeiro de 2007, que estabelece:

“Art. 1º Esta Lei altera o art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legitimando para a sua propositura a Defensoria Pública.

Art. 2º O art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:(...)II – a Defensoria Pública;(...)’

Art. 3º Esta Lei entra e vigor na data de sua publicação.” (Fl� 3�)

2� A Autora argumenta que a norma questionada apresenta “vício material de inconstitucionalidade, já que inclui a Defensoria Pública no rol de legitimados para a propositura de ação civil pública, [em] clara afronta aos arts. 5º, LXXIV, e 134, ambos da Constituição da República” (fl� 5)�

Alega que a Defensoria Pública teria sido “criada para atender, gratuitamente, aos necessitados, aqueles que possuem recursos insuficientes para se defender

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ADI 3.943

judicialmente ou que precisam de orientação jurídica (...) portanto, devem ser, pelo menos, individualizáveis, identificáveis (...)” (fl� 6)�

Por isso, pondera que a Defensoria Pública não poderia “atuar na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos” (fl� 6)�

Pede a procedência da presente ação, declarando‑se a inconstitucionalidade do inciso II do art� 5º da Lei n� 7�347/1985, alterado pela Lei n� 11�448, de 15‑1‑2007, ou, “alternativamente, se dê interpretação conforme ao texto constitucional, para excluir a legitimidade ativa da Defensoria Pública, quanto ao ajuizamento de ação civil pública para defesa de interesses difusos” (fl� 8)�

3. A Associação Nacional dos Defensores Públicos da União – ANDPU, a Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep e o Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – Ibap foram admitidos na presente ação como amici curiae (fls� 203, 131 e 1�166‑1�167, respectivamente), defendendo a constituciona‑lidade da norma impugnada (fls� 136‑147; 556‑596 e 1�133‑1�150, respectivamente)�

4. Em 19‑9‑2007, adotei o rito do art� 12 da Lei n� 9�868/1999�5. Em suas informações, o Senado sustentou a constitucionalidade da norma

e ponderou, em preliminar, que esta “não se aplica e em nada afeta (...) a classe representada” pela Autora, do que decorreria faltar‑lhe um dos requisitos para propor a presente ação direta de inconstitucionalidade, consubstanciado na pertinência temática (fls� 215‑216)�

No mérito, argumentou ser “útil à sociedade e ao interesse público que a inicia-tiva contra ‘danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico’ (...) seja ampliada ao maior número possível de legitimados” e que o art� 134 da Constituição da República não estipulou limites às atribuições da Defensoria Pública (fl� 217)�

6. Também o Presidente da República sustentou a ausência de pertinência temática, ao argumento de que a norma impugnada está “dissociada de even-tual representatividade da [Autora], que, a priori, tem sua margem de atuação restrita às normas legais que, de alguma forma, repercutem na organização e funcionamento da entidade a que estão vinculadas as pessoas representadas pela mesma” (fl� 262, grifos no original)�

Para ele, concluir em sentido contrário seria negar ou restringir o “ direito à assistência jurídica integral e gratuita – assegurado aos necessitados – uma vez que excepcionaria os interesses difusos dessa garantia, colidindo frontalmente com o (...) dever de se extrair das garantias constitucionais ‘a maior carga possível de eficácia e de efetividade’” (fl� 259)�

7. Em 9‑10‑2007, o Advogado‑Geral da União manifestou‑se pela improce‑dência da presente ação (fls� 539‑554)�

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ADI 3.943

8. Em sentido contrário, o Procurador‑Geral da República opinou pela pro‑cedência desta ação, por reconhecer que a norma impugnada teria afrontado o art� 134 da Constituição da República�

É o relatório, cuja cópia deverá ser encaminhada a cada um dos eminentes Ministros deste Supremo Tribunal Federal (art� 9º da Lei n� 9�868/1999 e art� 87, inc� I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal)�

EXTRATO DE ATA

ADI 3�943/DF — Relatora: Ministra Cármen Lúcia� Requerentes: Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp (Advogado: Aristi‑des Junqueira Alvarenga)� Interessados: Presidente da República (Advogado: Advogado‑Geral da União) e Congresso Nacional� Amici curiae: Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep (Advogado: Pierpaolo Cruz Bottini), Associação Nacional dos Defensores Públicos da União – ANDPU (Advogado: Rafael da Cás Maffini), Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – Ibap (Advo‑gado: Fernando Cavalcanti Walcacer), Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR (Advogada: Juliana Lôbo de Almeida Santos), Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos (Advogados: Marcos Roberto Fuchs e outros), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB (Advogados: Oswaldo Pinheiro Ribeiro Junior e outros)�

Decisão: Após o relatório e as sustentações orais, pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp, do Dr� Aristides Junqueira Alva‑renga; pela Advocacia‑Geral da União, da Dra� Grace Maria Fernandes Men‑donça, Secretária‑Geral de Contencioso; pelo amicus curiae Associação Nacio‑nal dos Defensores Públicos da União – ANDPU, do Dr� Rafael da Cás Maffini; pelo amicus curiae Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos, do Dr� Marcos Roberto Fuchs; pelo amicus curiae Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep, do Dr� Pedro Lenza; e, pelo Ministério Público Federal, do Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros, o julgamento foi suspenso� Ausentes o Ministro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, de palestra e compromissos na República Italiana e do Programa de Visitantes Internacionais, por ocasião das Eleições para a Câmara dos Comuns do Reino Unido, e, justificadamente, o Ministro Luiz Fux� Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski�

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen

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ADI 3.943

Lúcia, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Procurador‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros�

Brasília, 6 de maio de 2015 — Fabiane Pereira de Oliveira Duarte, Assessora‑‑Chefe do Plenário�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): 1. Como relatado, na presente ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp, em 16‑8‑2007, questiona‑se a validade consti‑tucional do art� 5º, inc� II, da Lei n� 7�347/1985, alterado pela Lei n� 11�448/2007�

2. A Autora argumenta que as normas impugnadas contrariam os arts� 5º, inc� LXXIV, e 134 da Constituição da República�

3. Alega conter a norma questionada “vício material de inconstitucionalidade, já que inclui a Defensoria Pública no rol de legitimados para a propositura de ação civil pública, [em] clara afronta aos arts. 5º, LXXIV, e 134, ambos da Consti-tuição da República” (fl� 5), asseverando não possuir a Defensoria competência para “atuar na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos [porque] pode, somente, atender aos necessitados que comprovarem individual-mente, carência financeira” (fl� 6, grifos nossos)�

A Autora sustenta, subsidiariamente, a aplicação da técnica de interpreta‑ção conforme a Constituição da República, para, reconhecida a legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar a ação civil pública, a respectiva atuação restringir‑se à defesa de direitos coletivos e individuais homogêneos�

Preliminares de pertinência temática e de legitimidade ativa4. Congresso Nacional (fls� 215‑216), Advocacia‑Geral da União (fls� 542‑544)

e Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep (fls� 559‑561 – amicus curiae) argumentaram carente de pertinência temática entre a norma impug‑nada e os interesses e direitos titularizados pelos integrantes da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp�

O art� 2º do Estatuto da Autora prevê:

“Art. 2º São finalidades da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP:

I – defender os direitos, garantias, autonomia, prerrogativas, interesses e reivindi-cações dos membros do Ministério Público da União, dos Estados, ativos e inativos.

II – defender o fortalecimento do Ministério Público, instituição permanente,

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ADI 3.943

essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurí-dica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis;

III – defender os princípios e garantias institucionais do Ministério Público, sua independência e autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, bem como os predicamentos, as unções e os meios previstos para seu exercício.” (Fl� 9�)

Ao assentar a legitimidade das associações para a o ajuizamento de ação de controle concentrado, este Supremo Tribunal Federal tem cotejado as normas do estatuto constitutivo com o impacto e as consequências jurídicas que as normas impugnadas causam nos direitos dos respectivos associados (ADI 4�441 AgR/SE, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 7‑10‑2014; ADI 4�400/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, Plenário, DJ de 3‑10‑2013; ADI 3�413/RJ, Relator o Ministro Marco Auré‑lio, Plenário, DJ de 1º‑8‑2011; ADI 3�288/MG, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ de 24‑2‑2011, entre outras)�

A peculiaridade do caso vertente, no qual se discutem supostos prejuízos institucionais suportados pelo Ministério Público pelo reconhecimento da legi‑timidade da Defensoria Pública para ajuizar ação civil pública, impede análise daquela alegação sem se adentrar o mérito da causa�

5. Saber se a norma impugnada causa ou não prejuízo às atribuições institu‑cionais do Ministério Público, a evidenciar a pertinência temática e justificar a legitimidade ativa da Autora impõe a análise da constitucionalidade do art� 5º, inc� II, da Lei n� 7�347/1985, motivo pelo qual voto no sentido de prosseguimento do julgamento da presente ação.

Preliminar de prejudicialidade6. Em 24‑6‑2014, ao argumento de, com a promulgação da Emenda Consti‑

tucional n� 80, de 4‑6‑2014, “vislumbra[r]-se a perda superveniente do objeto da presente ADI, (���) (a Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP) requer[eu] a extinção desta ação abstrata sem o julgamento de mérito nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil”�

7. Com a Emenda Constitucional n� 80, alterou‑se o art� 134 da Constituição, que dispunha:

“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV,”

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ADI 3.943

O dispositivo passou a prever:

“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdi-cional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime demo-crático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”

8. A jurisprudência deste Supremo Tribunal assenta o prejuízo da ação em casos nos quais a norma constitucional tida por contrariada seja alterada por emenda constitucional superveniente:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUI-MENTO DA AÇÃO DIRETA. PREJUDICIALIDADE. ARTIGO 48, INCISO XV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. REDAÇÃO DO PRECEITO ANTERIORMENTE MODIFICADA PELA EC 19/1998 E NOVAMENTE ALTERADA PELA EC 41/2003. ALTERAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL. 1. O texto do artigo 48, inciso XV, da CB foi alterado primeiramente pela EC 19/1998. Após a propositura desta ação direta o texto desse preceito sofreu nova modifica-ção. A EC 41/2003 conferiu nova redação ao inciso XV do artigo 48 da CB/1988. 2. A alteração substancial do texto constitucional em razão de emenda superveniente prejudica a análise da ação direta de inconstitucionalidade. O controle concentrado de constitucionalidade é feito com base no texto constitucional em vigor. A modi-ficação do texto constitucional paradigma inviabiliza o prosseguimento da ação direta. Precedentes. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada prejudicada.” (ADI 2�159/DF, Relator o Ministro Eros Grau, Plenário, DJ de 7‑12‑2007�)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 1.246, DE 06.09.01, DO ESTADO DE TOCANTINS. SERVIDORES INATIVOS E PENSIONISTAS. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 41/2003. ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DO REGIME PREVI-DENCIÁRIO DOS SERVIDORES PÚBLICOS E DE SEUS PENSIONISTAS. PREJUDICIALIDADE. 1. A alteração superveniente do paradigma necessário à verificação da procedência ou improcedência do pedido formulado gera situação caracterizadora de total prejudicialidade da presente ação direta. 2. Precedentes: ADI nº 2.197, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 2-4-2004 e ADI nº 2.062, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 22-3-2004. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada prejudicada.” (ADI 2�670/TO, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Redatora para o acórdão a Ministra Ellen Gracie, Plenário, DJ de 4‑2‑2005�)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PREJUDICIALIDADE. Por efeito de alte-ração substancial do regramento constitucional sobre a matéria, veiculada pela

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ADI 3.943

Emenda nº 45/2004, é de se reconhecer a prejudicialidade da ação.” (ADI 3�404/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ de 16‑11‑2006�)

No mesmo sentido: ADI 2�197/RJ, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Plená‑rio, DJ de 2‑4‑2004; ADI 15/DF, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 31‑8‑2007; ADI 396/RS, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 5‑8‑2005; ADI 2�062/DF, Relator o Ministro Celso de Mello, decisão monocrática, DJ de 22‑3‑2004�

9. Entretanto, a exemplo do que ocorreu em julgamentos mais recentes (ADI 509/MT, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Plenário, DJ de 16‑9‑2014; ADI 1�835/SC, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 17‑10‑2014; ADI 2�158/PR, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 16‑12‑2010; ADI 2�189/PR, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 16‑12‑2010), há situações nas quais o Plenário deste Supremo Tribunal superou essa preliminar de prejuízo sob o fundamento de não ser possível desconsiderar os efeitos produzidos pelas normas impugnadas e seguiu no julgamento das ações diretas�

Como destaquei no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n� 2�158/PR:

“É preciso verificar em cada caso, porque, em alguns casos, o prejuízo é inexorável. Então, há apenas a possibilidade de, no caso concreto, verificar-se que não fiquemos vinculados a uma situação em que, às vezes, a superveniência de uma nova norma constitucional possa, realmente, deixar um prejuízo patente (...).

A única ressalva que faço é que não se entenda aqui – e eu imagino que o Ministro Toffoli não esteja propondo isso – uma verticalidade tal que haja a obrigatoriedade de se levar adiante uma ação direta, mesmo quando o paradigma já patenteia que não há mais como prosseguir. Esse juízo é preciso ser feito, porque, em alguns casos, realmente, os Ministros têm decidido até monocraticamente.

Com essa ressalva, estou acompanhando o Relator. Com essa ressalva: isso aqui não é obrigatório que siga, nem obrigatório que pare, e fim.” (Plenário, DJ de 6‑12‑2010�)

10. Trago à ponderação para decisão deste Plenário se, com a alteração citada, seguindo os precedentes firmados na década de 2000, haveria de se declarar o prejuízo desta ação�

Encaminho a solução no sentido da continuidade do julgamento da presente ação�

Após análise do caso, para aferir se a alteração do parâmetro do controle de constitucionalidade teria substancial a ponto de obstar a atuação jurisdicional deste Supremo Tribunal Federal em controle concentrado, concluo que, a des‑peito de “ser irretocável, no âmbito lógico-jurídico, a exigência da atualidade do

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ADI 3.943

parâmetro de controle” (trecho do voto do Ministro Dias Toffoli na Ação Direta de Inconstitucionalidade n� 2�158/PR, Plenário, DJ de 16‑12‑2010), a questão cons‑titucional posta em apreciação nesta ação deve ser enfrentada porque importa em delinear o modelo constitucional brasileiro de acesso à Justiça, delimitando‑‑se as atribuições da Defensoria Pública, instituição essencial à construção do Estado Democrático de Direito�

O pedido subsidiário de interpretação como veiculado na inicial, pelo qual se pretende limitar a atuação da Defensoria Pública tão somente à tutela dos direi‑tos coletivos (strictu sensu) e individuais homogêneos, excluídos os difusos, que também integram o gênero “direitos coletivos”� Ainda que tenha havido a altera‑ção da norma constitucional de forma a incluir, entre as prerrogativas daquele órgão, a defesa dos direitos coletivos, impõe‑se assentar o alcance dessa tutela�

11. Assim, sem desconsiderar as consequências decorrentes dessa alteração constitucional (EC n� 80/2014), voto no sentido de avançar no julgamento de mérito desta ação.

Mérito12. A discussão sobre a validade do art� 5º, inc� II, da Lei n� 7�347/1985, alterado

pela Lei n� 11�448/2007, que reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar ação civil pública, em típica tutela dos direitos transindividuais e individuais homogêneos, ultrapassa os interesses de ordem subjetiva e tem fun‑damento em definições de natureza constitucional‑processual afetos à tutela dos cidadãos social e economicamente menos favorecidos da sociedade brasileira�

13� Ao aprovar a Emenda Constitucional n� 80/2014, o constituinte derivado fez constar de forma expressa no Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Jus‑tiça, do Título IV – Da Organização dos Poderes, da Seção IV, que a Defensoria Pública, expressão e instrumento do regime democrático, é instituição perma‑nente e essencial para a edificação do Estado Democrático de Direito:

“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdi-cional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime demo-crático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”

Consta das justificativas apresentadas pelos Deputados Mauro Benevides e outros, anexadas à Proposta de Emenda Constitucional n� 247/2013 (PEC 4/2014 no Senado Federal):

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“A Defensoria Pública é uma instituição pública que representa a garantia do cida-dão em situação de vulnerabilidade de ter acesso à justiça, por meio de serviços inteiramente gratuitos e de qualidade. Elevada à categoria de instituição consti-tucional em 1988, apenas em 2004 o Congresso Nacional lhe conferia a necessária autonomia administrativa, financeira e orçamentária.

Passadas mais duas décadas, a Defensoria Pública ainda não está instalada em todos os Estados da Federação. Em alguns casos, sequer o primeiro concurso público para o cargo de defensor público foi iniciado ou concluído.

De modo geral, o panorama da Defensoria Pública no Brasil ainda é marcado por uma grande assimetria, com unidades da federação onde seus serviços abrangem a totalidade das comarcas – com defensores públicos e funcionários em quantidade razoável – e outros onde nem ao meros 10% das comarcas são atendidas.

Recentemente, a exata dimensão da falta do serviço da Defensoria Pública na maior parte das cidades brasileiras foi detectado no estudo denominado ‘Mapa a da Defensoria Pública no Brasil’, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, fundação pública vinculada à Presidência da República, junta-mente com a Associação Nacional dos Defensores Públicos — ANADEP e Ministério da Justiça.

De acordo com esse estudo, no Brasil há 8.489 cargos criados de defensor público dos Estados e do Distrito Federal, dos quais apenas 5.054 estão providos (59%). Esses 5.054 defensores públicos se desdobram para cobrir 28% das comarcas brasileiras, ou seja, na grande maioria das comarcas, o Estado acusa e julga, mas não defende os mais pobres.

Na Defensoria Pública da União a situação não é diversa: São 1270 cargos criados e apenas 479 efetivamente providos, para atender 58 sessões judiciárias de um total de 264, o que corresponde a uma cobertura de 22%.

A Constituição Federal de 1988, portanto, precisa ser mais enfática, no sentido de assegurar a todos os cidadãos brasileiros, em todo o seu território, o acesso aos serviços da Defensoria Pública.

Esse é o primordial objetivo dessa Proposta de Emenda à Constituição, estabele-cendo uma meta concreta, legítima e plenamente factível de ser alcançada, para que número de defensores públicos na unidade jurisdicional (comarca ou sessão judiciária, conforme o caso) seja proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

Ainda, a presente PEC propõe a fixação de um prazo de oito anos, para que a União, os Estados e o Distrito Federal se organizem para poder contar com defen-sores públicos em todas as unidades jurisdicionais.

É certo que esse comando já decorre do próprio direito fundamental de acesso à justiça, previsto no inciso LVXXIV do art. 5º da Constituição Federal segundo o qual ‘o Estado prestará assistência jurídica integrai e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos’. Porém, a experiência concreta de quase duas décadas sem a efetiva instalação da Defensoria Pública em todos os estados e a abrangência de seus serviços em todas as comarcas e sessões judiciárias demonstra que esse

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princípio constitucional deve ser explicitado por meio de normas constitucionais que estabeleçam, de modo ‘mais claro, a obrigação dos Estados e da União em ofe-recer os serviços da Justiça de modo integral, com juiz, promotor e defensor público.

Além disso, a presente Proposta de Emenda à Constituição incorpora ao Texto Constitucional as mais importantes normas gerais previstas na Lei Orgânica Nacio-nal da Defensoria Pública — Lei Complementar n. 80, de 1994, com redação deter-minada pela Lei Complementar n. 132, de 2009.

A alteração do caput do art. 134 incorpora importante elementos estruturantes e conceituais à definição do papel e da missão da Defensória Pública, torno o Seu caráter permanente e ontologicamente atrelado ao modelo de Estado democrático de direito. Explicita-se, tentem, sua vocação para a solução extrajudicial dos lití-gios, para a defesa individual ou coletiva, conforme a necessidade do caso, e para a promoção dos direitos humanos.

Também são trazidos para o Texto Constitucional os princípios da Defensoria Pública, já positivados na Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, tratando--se de norma com forte vocação de norma constitucional.

Ao constitucionalizar os princípios da Defensoria Pública, cabe também estender-lhe a aplicação dos importantes avanços democráticos e modernizantes introduzidos no Poder Judiciário através da Reforma Constitucional do Judiciário (EC n. 45, de 2004).

Através das alterações ao art. 93, a EC n. 45/2004 estabeleceu a regra da fixação dá residência do juiz na respectiva comarca, salvo com autorização do tribunal. Também criou normas mais objetivas para aferir a promoção por merecimento — seja de entrância para entrância ou na carreira —, inclusive com a obrigatoriedade de participação de cursos e aperfeiçoamento e a aferição por meio de critério de desempenhe e produtividade.

Aliás, o art. 93 da CF — introduzido pela EC n. 45/2004 já dispõe que ‘o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população’, norma essa que em boa hora deve ser aplicada também à Defensoria Pública.

Por fim, a PEC estabelece uma sessão própria para a Defensoria Pública. Como se sabe, o capítulo que trata das ‘Funções Essenciais à Justiça’ (Cap. IV do Título III) se divide em três sessões: ‘Do Ministério Público’, ‘Da Advocacia Pública’ e ‘Da Advocacia e da Defensoria Pública’. Portanto, assim como a Advocacia Pública constitui uma sessão própria, com suas normas e estatuto jurídicos próprios, o mesmo ocorre com a Defensoria Pública. A alteração proposta traz sistematiza-ção mais adequada à realizada jurídica das distintas e complementares funções essenciais à justiça.” (Grifos nossos�)

No Parecer n� 312/2014, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal afirma:

“Em termos de juridicidade, não há ofensa a outras normas ou princípios jurídicos em vigor, sendo a Proposta a via jurídica adequada ao fortalecimento da instituição

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da Defensoria Pública, em relação às demais funções essenciais à Justiça, e à efeti-vidade do direito fundamental dos necessitados à assistência judiciária. (...)

No que se refere ao mérito, entendemos que as alterações propostas ao texto cons-titucional são de extrema importância para a sociedade brasileira, pois a Defenso-ria Pública é uma instituição que promove a garantia dos necessitados ao acesso à justiça, por meio de serviços gratuitos e de qualidade. A CF/1988, portanto, deve ser enfática em assegurar a todos os cidadãos, brasileiros a utilização dos serviços da Defensoria. Nesse sentido, a Proposta estabelece uma meta concreta e legítima quanto ao número de defensores públicos na unidade jurisdicional (comarca ou sessão judiciária), de forma proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defen-soria Pública e à respectiva população. (...)

Quanto à alteração do texto em si, a redação proposta ao art. 134 constitucionaliza importantes elementos relativos à Defensoria Pública, como o caráter permanente, a vocação para a solução judicial e extrajudicial dos litígios, a defesa individual ou coletiva dos necessitados e a promoção dos direitos humanos, conferindo a tais pre-ceitos maior estabilidade normativa e à instituição a adequada relevância política e finalística. Do mesmo modo, a inserção dos princípios da Defensoria Pública na Constituição fortalece esse órgão, como já ocorre com o Ministério Público, conforme o § 1º do art. 127 da Carta Política. (...)

Destaque-se que, no atual estágio do nosso Estado Democrático de Direito, não podemos conceber que as instituições que compõem a Justiça brasileira (Estado--Juiz, Estado-Acusação e Estado-Defesa) estejam em patamares diferenciados, em desequilíbrio, sob pena de uma das funções se esvaziar em relação às demais e restar desfigurado o sistema concebido pelo constituinte originário. Portanto, é imperioso que seja assegurada a ‘paridade de armas’ entre essas funções, com instrumentos, garantias e prerrogativas, dentro e fora do processo, que viabilizem o efetivo acesso à Justiça aos que dela necessitam.” (Grifos nossos�)

14. Entre as alterações promovidas por essa Emenda, a que causa maior impacto no julgamento desta ação direta consiste na inclusão taxativa da defesa dos direitos coletivos no rol de incumbências da Defensoria Pública, cuja atua‑ção vem‑se consolidando desde o reconhecimento da respectiva legitimidade para ajuizar ação civil pública (Lei n� 7�347/1985, com a alteração promovida pela Lei n� 11�448/2007)�

15. O art� 1º da Lei Complementar n� 80/1994, alterada pela Lei Complementar n� 132/2009, já previa:

“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrá-tico, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e

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coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal,”

Cuida‑se de norma idêntica à do atual art� 134 da Constituição da Repú‑blica, alterado pela Emenda Constitucional n� 80/2014� O constituinte deri‑vado, apropriando‑se de norma vigente no ordenamento jurídico nacional desde 2009 (art� 1º da Lei Complementar n� 80/1994, alterado pela Lei Complementar n� 132/2009), de forma inusitada, constitucionalizou, sob o ponto de vista formal, o que já era materialmente constitucional�

Esse contexto evidencia ter sobrevindo a Emenda Constitucional n� 80/2014 como reforço máximo da incontestável legitimidade construída pela Defenso‑ria Pública no Brasil, resultado de trabalho responsável e incessante na defesa dos que muito necessitam – em especial da dignidade apregoada no art� 1º da Constituição da República – e normalmente não têm a quem se socorrer quando o desafio é fazer valer os próprios direitos e deveres�

16. A legitimidade estatuída no art� 5º, inc� II, da Lei n� 7�347/1985, alterado pela Lei n� 11�048/2007, constitucional por força da interpretação dos artigos 5º, inc� LXXIV, e 134 da Constituição da República (antes da EC n� 80/2014), fun‑dada nos princípios da máxima efetividade da Constituição e da dignidade da pessoa humana (acesso à justiça), estava prevista no art� 1º da Lei Comple‑mentar n� 80/19941 e agora tem assento constitucional pelo reconhecimento expresso e taxativo do dever titularizado pela Defensoria Pública de defender os direitos coletivos�

17. Não se trata do fenômeno de constitucionalização superveniente, inadmi‑tido pela pacífica jurisprudência deste Supremo Tribunal, para o qual a norma inconstitucional não pode se convalidar com alteração posterior do parâmetro normativo constitucional:

“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. AMB. Lei nº 12.398/1998-Paraná. Decreto estadual nº 721/1999. Edição da EC nº 41/2003. Substancial alteração do parâmetro de controle. Não ocorrência de prejuízo. Superação da jurisprudência da Corte acerca da matéria. Contribuição dos inativos. Inconstitucionalidade sob a EC nº 20/1998. Precedentes. 1. Em nosso ordenamento jurídico, não se admite a figura da constitucionalidade superveniente. Mais relevante do que a atualidade do parâmetro de controle é a constatação de que a inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se

1 O art. 1º da Lei Complementar n. 80/1994, alterado pela Lei Complementar n. 132/2009, não é objeto desta ação (ajuizada em 16-8-2007), tampouco é objeto outra ação de controle con-centrado ajuizada no Supremo Tribunal Federal.

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encontram mais em vigor. Caso contrário, ficaria sensivelmente enfraquecida a pró-pria regra que proíbe a convalidação. 2. A jurisdição constitucional brasileira não deve deixar às instâncias ordinárias a solução de problemas que podem, de maneira mais eficiente, eficaz e segura, ser resolvidos em sede de controle concentrado de normas. 3. A Lei estadual nº 12.398/1998, que criou a contribuição dos inativos no Estado do Paraná, por ser inconstitucional ao tempo de sua edição, não poderia ser convalidada pela Emenda Constitucional nº 41/2003. E, se a norma não foi convali-dada, isso significa que a sua inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor, alterados que foram pela Emenda Constitucional nº 41/2003. Superada a prelimi-nar de prejudicialidade da ação, fixando o entendimento de, analisada a situação concreta, não se assentar o prejuízo das ações em curso, para evitar situações em que uma lei que nasceu claramente inconstitucional volte a produzir, em tese, seus efeitos, uma vez revogada as medidas cautelares concedidas já há dez anos. 4. No mérito, é pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que é inconstitucional a incidência, sob a égide da EC nº 20/1998, de contribuição previdenciária sobre os proventos dos servidores públicos inativos e dos pensionistas, como previu a Lei nº 12.398/1998, do Estado do Paraná (cf. ADI nº 2.010 MC/DF, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 12-4-2002; e RE nº 408.824 AgR/RS, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJ de 25-4-2008). 5. É igualmente inconstitucional a incidência, sobre os proventos de inativos e pensionistas, de contribuição compulsória para o custeio de serviços médico-hospitalares (cf. RE nº 346.797 AgR/RS, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, Primeira Turma, DJ de 28-11-2003; ADI nº 1.920 MC/BA, Relator o Ministro Nelson Jobim, DJ de 20-9-2002). 6. Declaração de inconstitucionalidade por arrastamento das normas impugnadas do decreto regulamentar, em virtude da relação de dependência com a lei impugnada. Precedentes. 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente.” (ADI 2�158/PR, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 16‑12‑2010�)

E ainda: ADI 2�189/PR, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ de 16‑12‑2010; RE 491�825 AgR/MG, Relator o Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJ de 13‑5‑2014; AI 620�557 AgR/BA, Relator o Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ de 10‑4‑2014; RE 571�986 AgR/MG, Relator o Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, DJ de 13‑2‑2014; AI 789�678 AgR/MG, Relator o Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 5‑12‑2012; RE 343�801 AgR/PR, Relator o Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, DJ de 26‑6‑2012; RE 490�676 AgR/MG, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 25‑11‑2010; RE 390�840/MG, Relator o Ministro Marco Aurélio, Plenário, DJ de 15‑8‑2006�

18. Considero a norma aqui impugnada constitucional desde 2007, data da promulgação da Lei n� 11�448� A Emenda Constitucional n� 80/2014, coerente

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com as novas tendências e crescentes demandas sociais, confirma o movimento surgido na década de 1960 de ampliação de garantia de acesso integral à Justiça�

19. Cumpre‑me, portanto, demonstrar a improcedência dos argumentos trazidos pela Autora�

Do acesso à Justiça20. Referências mundiais na questão afeta ao acesso à Justiça, Mauro Cap‑

pelletti e Bryan Garth lecionam:

“O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram mais ou menos em sequência cronológica. Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso — a primeira ‘onda’ desse movimento novo — foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às refor-mas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘ difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro — e mais recente — é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso à justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo.

(...)O segundo grande movimento no esforço de melhorar o acesso à justiça enfrentou

o problema da representação dos interesses difusos, assim chamados os interesses coletivos ou grupais, diversos daqueles dos pobres. Nos Estados Unidos, onde esse mais novo movimento de reforma é ainda provavelmente mais avançado, as modi-ficações acompanharam o grande quinquênio de preocupações e providências na área da assistência jurídica (1965-1970).

Centrando seu foco de preocupação especificamente nos interesses difusos, esta segunda onda de reformas forçou a reflexão sobre noções tradicionais muito bási-cas do processo civil e sobre o papel dos tribunais. Sem dúvida, uma verdadeira ‘revolução’ está-se desenvolvendo dentro do processo civil. Vamos examiná-la breve-mente antes de descrever com mais detalhes as principais soluções que emergiram.

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a res-peito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.

As reformas discutidas a seguir são a prova e os resultados das rápidas mudanças que caracterizaram essa fase. Verifica-se um grande movimento mundial em direção

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ao que o Professor Chayes denominou litígios de ‘ direito público’ em virtude de sua vinculação com assuntos importantes de política pública que envolvem grandes grupos de pessoas. Em primeiro lugar, com relação à legitimação ativa, as reformas legislativas e importantes decisões dos tribunais estão cada vez mais permitindo que indivíduos ou grupos atuem em representação dos interesses difusos.

Em segundo lugar, a proteção de tais interesses tornou necessária uma transfor-mação do papel do juiz e de conceitos básicos como a ‘citação’ e o ‘ direito de ser ouvido’. Uma vez que nem todos os titulares de um direito difuso podem comparecer a juízo — por exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região — é preciso que haja um ‘representante adequado’ para agir em benefício da coletividade, mesmo que os membros dela não sejam ‘citados’ individualmente. Da mesma forma, para ser efetiva, a decisão deve obrigar a todos os membros do grupo, ainda que nem todos tenham tido a oportunidade de ser ouvidos. Dessa maneira, outra noção tradicional, a da coisa julgada, precisa ser modificada, de modo a permitir a proteção judicial efetiva dos interesses difusos. A criação norte-americana da class action, abordada a seguir, permite que, em certas circunstâncias, uma ação vincule os membros ausentes de determinada classe, a despeito do fato de eles não terem tido qualquer informação prévia sobre o processo. Isso demonstra as dimensões surpreendentes dessa mudança no pro-cesso civil. A visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos ‘ direitos públicos’ rela-tivos a interesses difusos.

(...)O progresso na obtenção de reformas da assistência jurídica e da busca de meca-

nismos para a representação de interesses ‘públicos’ é essencial para proporcionar um significativo acesso à justiça. Essas reformas serão bem sucedidas — e, em parte, já o foram — no objetivo de alcançar proteção judicial para interesses que por muito tempo foram deixados ao desabrigo. Os programas de assistência judi-ciária estão finalmente tornando disponíveis advogados para muitos dos que não podem custear seus serviços e estão cada vez mais tornando as pessoas conscientes de seus direitos. Tem havido progressos no sentido da reivindicação dos direitos, tanto tradicionais quanto novos, dos menos privilegiados. Um outro passo, também de importância capital, foi a criação de mecanismos para representar os interesses difusos não apenas dos pobres, mas também dos consumidores, preservacionistas e do público em geral, na reivindicação agressiva de seus novos direitos sociais.

O fato de reconhecermos a importância dessas reformas não deve impedir-nos de enxergar os seus limites. Sua preocupação é basicamente encontrar representação efetiva para interesses antes não representados ou mal representados. O novo enfo-que de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além, Ela centra sua atenção no con-junto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para

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processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denomina-mos ‘o enfoque do acesso à Justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá--las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.

(...)A representação judicial — tanto de indivíduos, quanto de interesses difusos —

não se mostrou suficiente, por si só, para tornar essas mudanças de regras ‘vanta-gens tangíveis’ ao nível prático. Tal como reconhecido pelo Brent Community Law Center de Londres, ‘o problema de ... execução das leis que se destinam a proteger e beneficiar as camadas menos afortunadas da sociedade é geral’. Não é possível, nem desejável resolver tais problemas com advogados apenas, isto é, com uma representação judicial aperfeiçoada. Entre outras coisas, nós aprendemos, agora, que esses novos direitos frequentemente exigem novos mecanismos procedimen-tais que os tornem exequíveis. Como afirma Jacob: ‘São as regras de procedimento que insuflam vida nos direitos substantivos, são elas que os ativam, para torná--los efetivos. Cada vez mais se reconhece que, embora não possamos negligenciar as virtudes da representação judicial, o movimento de acesso à Justiça exige uma abordagem muito mais compreensiva da reforma.

Poder-se-ia dizer que a enorme demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento — o sistema judiciário.

(...)Ademais, esse enfoque reconhece a necessidade de correlacionar e adaptar o

processo civil ao tipo de litígio. Existem muitas características que podem distin-guir um litígio de outro. Conforme o caso, diferentes barreiras ao acesso podem ser mais evidentes, e diferentes soluções, eficientes. Os litígios por exemplo dife-rem em sua complexidade. E geralmente mais fácil e menos custoso resolver uma questão simples de não-pagamento, por exemplo, do que comprovar uma fraude. Os litígios também diferem muito em relação ao montante da controvérsia, o que frequentemente determina quanto os indivíduos (ou a sociedade) despenderão para solucioná-los. Alguns problemas serão mais bem ‘resolvidos’ se as partes simples-mente se ‘evitarem’ uma à outra. A importância social aparente de certos tipos de requerimentos também será determinante para que sejam alocados recursos para sua solução. Além disso, algumas causas, por sua natureza, exigem solução rápida, enquanto outras podem admitir longas deliberações.

Tal como foi enfatizado pelos modernos sociólogos, as partes que tendem a se envol-ver em determinado tipo de litígio também devem ser levadas em consideração. (...)

Por fim, é preciso enfatizar que as disputas têm repercussões coletivas tanto quanto individuais. Embora obviamente relacionados, é importante, do ponto de vista con-ceitual e prático, distinguir os tipos de repercussão, porque as dimensões coletiva e individual podem ser atingidas por medidas diferentes. (...)

Mecanismos tais como os que já discutimos para a proteção dos interesses difu-sos são especialmente apropriados para a abordagem desses problemas. Alguns

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mecanismos, tais como a ‘class action’, podem ser utilizados tanto para dar amparo aos indivíduos, quanto para impor os direitos coletivos duma classe. Muitos e impor-tantes remédios, no entanto, tendem a servir apenas a uma ou outra das funções.

É necessário, em suma, verificar o papel e importância dos diversos fatores e barreiras envolvidos, de modo a desenvolver instituições efetivas para enfrentá-los. O enfoque de acesso à Justiça pretende levar em conta todos esses fatores. Há um crescente reconhecimento da utilidade e mesmo da necessidade de tal enfoque no mundo atual.” (CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryan� Acesso à Justiça. Trad� Ellen Gracie Northfleet� Porto Alegre: Frabis, 1988� p� 31/49‑51/67‑73�)

Ada Pelegrini Grinover anota:

“Nos anos 70 a doutrina jurídica italiana introduzia no mundo de ‘civil law’ a preo-cupação com a conceituação e a defesa dos direitos difusos, com um amplo debate sobre sua tutela processual, que empenhou autores como Mauro Cappelletti, Andrea Proto Pisani, Vittorio Denti, Vincenzo Vigoriti, Nicoló Trocker.

Os primeiros estudos publicados no Brasil sobre a matéria foram de José Carlos Barbosa Moreira (“A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos – 1977); Waldemar Mariz de Oliveira Junior (“Tutela jurisdicional dos interesses coletivos” – 1978) e Ada Pellegrini Gri-nover (“A tutela jurisdicional dos interesses difusos” – 1979).

Esses estudos motivaram o debate que se instaurou no Brasil sobre a tutelabili-dade judicial dos interesses supraindividuais, centrado sobretudo no problema da titularidade da ação, tendo sido apresentadas propostas concretas capazes de superar os esquemas rígidos da legitimação para agir, fixados pelo art. 6º do CPC. Também se começou a entender que a indivisibilidade do objeto dos interesses difusos permitiria o acesso à justiça, sobretudo por parte do membro do grupo.

Em 1982, realizou-se na FacuIdade de Direito da USP o primeiro seminário sobre a tutela dos interesses difusos, coordenado por Ada Pellegrini Grinover. No encer-ramento, o desembargador Weiss de Andrade propôs, em nome da Associação Paulista de Magistrados, que o grupo de juristas ali reunido formasse um grupo de estudos objetivando a apresentação de um anteprojeto de lei relativo à matéria. O grupo, formado por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Dinamarco, Kazuo Wata-nabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, preparou um anteprojeto que, depois de apresentado à APAMAGIS, foi discutido em vários congressos e seminários jurí-dicos, ao longo do ano de 1983.

No início de 1984, o Projeto foi levado ao Congresso Nacional pelo Deputado Flávio Bierrenbach, do PMDB paulista, acompanhado de uma justificativa assinada pelos próprios autores do anteprojeto. O projeto de lei tomou, no Congresso Nacional, o n. 3.034/84.

Paralelamente, integrantes do Ministério Público também discutiam o assunto. No XI Seminário Jurídico dos Grupos do Ministério Público de Estado de São Paulo, realizado em 1983 em São Lourenço, foi aprovada a proposta, formulada por A.

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M. de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Junior, no sentido da elaboração de uma proposta de lei sobre a ação civil pública. Embora os autores tenham decla-radamente tomado como ponto de partida o anteprojeto do grupo constituído pela APAMAGIS, o resultado foi uma proposta que resultava no fortalecimento do MP (à época, parte integrante do Poder Executivo), em detrimento da sociedade civil.

Em junho de 1984, o Procurador-Geral da Justiça de São Paulo, Paulo Salvador Frontini, encaminhou o projeto elaborado pelo MP ao – Presidente da Confederação Nacional do Ministério Público, Luiz Antonio Fleury Filho, para encaminhamento ao Congresso Nacional. Dada a ligação do MP com o executivo, à época, Fleury enca-minhou o projeto ao Ministro da Justiça do Governo Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel que, após alguns estudos, enviou o projeto ao Congresso Nacional, com mensagem do Executivo. O projeto do Executivo, apesar de ter chegado ao Congresso depois, andou mais rapidamente do que o do Deputado Flávio Bierrenbach, tendo sido aprovado em meados de 1985, transformando-se na Lei n. 7.347/85, sancionada em julho pelo Presidente Sarney, sendo que o veto presidencial recaiu sobre a proteção de “qualquer outro interesse difuso”, contida no projeto do MP. Segundo afirmação constante de Edis Milaré, a lei aprovada manteve 90% do anteprojeto elaborado pelo grupo de trabalho da APAMAGIS.

Vale a pena lembrar que, antes da promulgação da Lei n. 7347/85, viera a lume a Lei n. 6938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, prevendo o monopólio do MP para a ação de responsabilidade civil e criminal. Logo após, a Lei Complementar n. 40 definiu como uma das funções institucionais do MP “pro-mover a ação civil pública, nos termos da lei”, sendo seguida pela Lei Orgânica do Ministério Público estadual n. 304, de 1982, que ampliou significativamente o leque de direitos difusos passíveis de defesa pela instituição. Mas, antes da Lei n. 7347/85, não havia regras sobre o regime processual da “ação civil pública” – privativa do MP nem tratamento da legitimação concorrente, da coisa julgada, dos controles sobre o exercício da ação.

O minissistema brasileiro de processos coletivos, assim, foi moldado pela Lei n. 7.347/85, complementada pelo Código de Defesa do Consumidor. (...)

Foi assim que o Código de Defesa do Consumidor veio coroar o trabalho legislativo, ampliando o âmbito de incidência da Lei da Ação Civil Pública, ao determinar sua aplicação a todos os interesses difusos e coletivos, e criando uma nova categoria de direitos ou interesses, individuais por natureza e tradicionalmente tratados apenas a título pessoal, mas conduzíveis coletivamente perante a justiça civil, em função de sua homogeneidade e da origem comum, que denominou direitos individuais homogêneos.” (Fls� 1189‑1191/1193�)

Nas palavras do Ministro Teori Zavascki:

“As modificações do sistema processual civil operaram-se em duas fases, ou ‘ondas’, bem distintas. Uma primeira onda de reformas, iniciada em 1985, foi caracterizada pela introdução, no sistema, de instrumentos até então desconhecidos do direito

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positivo, destinados (a) a dar curso a demandas de natureza coletiva, (b) a tutelar direitos e interesses transindividuais, e (c) a tutelar, com mais amplitude, a própria ordem jurídica abstratamente considerada. E a segunda onda reformadora, que se desencadeou a partir de 1994, teve por objetivo não o de introduzir novos, mas o de aperfeiçoar ou de ampliar os já existentes no Código de Processo, de modo a adaptá-lo às exigências dos novos tempos.” (ZAVASCKI, Teori Albino� Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos� São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014� p� 14‑15�)

Humberto Theodoro Júnior assevera:

“O surgimento das ações coletivas é fruto da superação, no plano jurídico-institu-cional, do individualismo exacerbado pela concepção liberal que o Iluminismo e as grandes revoluções do final do século XVIII impuseram à civilização ocidental. O século XX descobriu que a ordem jurídica não podia continuar disciplinando a vida em sociedade à luz de considerações que focalizassem o indivíduo solitário e isolado, com capacidade para decidir soberanamente seu destino. A imagem que se passou a ter do sujeito de direito, em sua fundamentalidade, é a ‘ da pessoa humana dotada de um valor próprio, mas inserido por vínculos e compromissos, na comunidade em que vive’.

Essa visão destacou não apenas o ‘ homem social’, pois o próprio ‘grupo’ impôs-se à valoração jurídica. Primeiro realçou-se o papel conferido a associações, sindicatos e outros organismos para ensejar o melhor exercício das franquias individuais e coletivas. Depois, reconheceram-se direitos subjetivos que, a par dos individuais, eram atribuídos diretamente ao grupo e, que, por isso mesmo, teriam de ser quali-ficados como coletivos, e, como tais, haveriam de ser exercidos e protegidos.

Por meio da ação popular concebeu-se, entre nós, o primeiro procedimento judicial de tutela de direitos coletivos. Por seu intermédio qualquer cidadão foi legitimado a pleitear em juízo contra atos ilícitos de autoridade pública, lesivos ao patrimônio público (Constituição de 1934,art. 113, n. 38).

A ampliação da tutela jurisdicional, para introduzir as autênticas ações coletivas, ou de grupo, no direito processual pátrio, ocorreu com a instituição da ação civil pública por meio da Lei Complementar n. 40, de 13-12-81, e Lei n. 7.347, de 27-07-85.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto� Curso de Direito Processual Civil: procedimen‑tos especiais� Vol� III� 41� ed� Rio de Janeiro: Forense, 2009� p� 479�)

21. No julgamento do Recurso Extraordinário n� 163�231/SP, o Ministro Celso de Mello assentou:

“O sistema normativo brasileiro, tendo presentes a natureza e a alta significação de determinados valores sociais suscetíveis de proteção estatal – e observando, ainda, uma tendência que então se verificava no plano do direito comparado, no sentido da crescente coletivização dos instrumentos de índole processual – veio a

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instituir mecanismo ágil destinado a viabilizar, de modo eficaz, imediata tutela jurisdicional dos interesses metaindividuais, cuja noção conceitual resultou de um demorado processo de elaboração teórica. A construção doutrinária em torno desse tema, que é recente no Brasil (1976), tem a sua origem histórica vinculada ao gênio jurídico de Roma.” (DJ de 29‑6‑2001�)

22. A Lei n� 7�347/1985 estabelece:

“LEI N. 7.347, DE 24 DE JULHO DE 1985Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio--ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências.

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).

I – ao meio-ambiente;II – ao consumidor;III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Incluído pela Lei nº 8.078 de

1990)V – por infração da ordem econômica; (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).VI – à ordem urbanística. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos. (Incluído pela

Lei nº 12.966, de 2014)VIII – ao patrimônio público e social. (Incluído pela Lei nº 13.004, de 2014).”

23. Desde o advento da Lei de Ação Civil Pública (Lei n� 7�347/1985), passando‑‑se pela promulgação da Constituição, até a presente data, não foram poucas as leis aprovadas com o objetivo de regulamentar as chamadas ações civis públicas voltadas para a tutela de direitos transindividuais e individuais homogêneos (Lei n� 7�853/1989 – pessoas com deficiências; Lei n� 8�069/1990 – crianças e ado‑lescentes; Lei n� 8�078/1990 – consumidores; Lei n� 8�429/1992 – probidade da administração; Lei n� 8�884/1994 – da ordem econômica; e Lei n� 10�741/2003 – interesses das pessoas idosas)�

A percepção de que essas leis não seriam aplicadas sem que as medidas nelas previstas pudessem ser tomadas e exigidas por quem de direito justificou o movimento de ampliação do rol de legitimados inicialmente excluídos�

24. Para Barbosa Moreira:

“legitimação é a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formulada perante o órgão judicial, e a situação legitima-mente prevista na lei para a posição processual que a essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretenda assumir. Diz-se que determinado processo se constitui entre

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partes legítimas quando as situações jurídicas das partes, sempre consideradas in statu assertionis – isto é, independentemente da sua efetiva ocorrência, que só no curso do próprio processo se apurará –, coincidem com as respectivas situações legitimantes.” (MOREIRA, Barbosa� Ensaios e pareceres de direito processual civil – Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária� Rio de Janeiro: Borsoi, 1971� p� 59�)

25. A modernização dos instrumentos de tutela jurídica dispostos às insti‑tuições, em especial as responsáveis pela efetivação dos direitos fundamentais, foi também passo importante na construção desse sistema de processo coletivo que se pretende ver organizado e eficiente�

Para a Autora, a Defensoria Pública não poderia defender, por ação civil pública, direitos coletivos (difusos e coletivos estrito senso – transindividuais) tampouco direitos individuais homogêneos porque a atuação da Defensoria está condicionada à identificação dos que comprovarem a insuficiência de recursos�

Partindo da afirmativa de que, em ação civil pública, não são identificáveis e individualizáveis os hipossuficientes que poderiam se beneficiar dos serviços da Defensoria, esse instrumento processual não se adequaria aos limites impos‑tos à instituição pela Constituição da República, pelo que a norma impugnada deveria ser declarada inconstitucional�

Parece‑me equivocado o argumento, impertinente à nova processualística das sociedades de massa, supercomplexas, surgida no Brasil e no mundo como reação à insuficiência dos modelos judiciários convencionais� De se indagar a quem interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional‑‑democrático do processo coletivo�

A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando‑se‑lhe a legi‑timidade para o ajuizamento de ação civil pública?

A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da pro‑cessualística civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos e individuais homogêneos do consumidor, portadores de necessidades especiais e dos idosos)? A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecurató‑rias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas limitações? Por que apenas a Defensoria Pública deveria ser excluída do rol do art� 5º da Lei n� 7�347/19852?

2 Atualmente, são legitimados para ajuizar a ação civil pública a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias, as empresas públicas, as fundações, as sociedades de economia mista, as associações e, ainda, a Ordem dos Advogados do Brasil (art. 54, inc. XIV, da Lei n. 8.906/1994).

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A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito�

Das instituições essenciais à justiça27. A Defensoria Pública (HC 90�423/MG, Relator o Ministro Ayres Britto, Pri‑

meira Turma, DJ de 11‑2‑2010; ADI 3�643/RJ, Relator o Ministro Ayres Britto, Ple‑nário, DJ de 16‑2‑2007, HC 76�526/RJ, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ de 30‑4‑1998; RE 135�328/SP, Relator o Ministro Marco Aurélio, Plenário, DJ de 20‑4‑2001) como o Ministério Público (RE 163�231/SP, Relator o Ministro Maurício Corrêa, DJ de 29‑6‑2001; ADI 3�028/RN, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ de 26‑5‑2010; RE 511�961/SP, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Ple‑nário, DJ de 13‑11‑2009; RE 472�489 AgR/RS, Relator o Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJ de 29‑8‑2008; ADI 2�378/GO, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Redator para o acórdão o Ministro Celso de Mello, Plenário, DJ de 6‑9‑2007; ADI 2�831 MC/RJ, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Plenário, DJ de 28‑5‑2004) foram objeto de cuidado constitucional em seções distintas do Capítulo IV, intitulado das funções essenciais à Justiça�

A despeito das diferenças funcionais e de organização entre essas duas insti‑tuições, como vem sendo confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Defensoria Pública e Ministério Público têm atuado harmonicamente sempre em respeito e segundo as respectivas atribuições constitucionais� Repre‑sentam ambas instituições assecuratórias dos direitos e garantias previstos na Constituição da República�

28. A análise da validade constitucional de normas sobre a Defensoria Pública da União e as Defensorias Públicas estaduais não é nova neste Supremo Tri‑bunal (ADI 3�892/SC e ADI 4�270/SC, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, Ple‑nário, julgadas em 14�3�2012; ADI 3�965/MG, de minha relatoria, Plenário, DJ de 30‑3‑2012; ADI 4�056/MA, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Plenário, julgada em 7‑3‑2012; ADI 4�163/SP, Relator o Ministro Cezar Peluso, Plenário, julgada em 29‑2‑2012; ADI 4�246/PA, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ de 30‑8‑2011; ADI 3�700/RN, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ de 6‑3‑2009; ADI 3�043/MG, Relator o Ministro Eros Grau, Plenário, DJ de 27‑10‑2006; ADI 2�229/ES, Relator o Ministro Carlos Velloso, Plenário, DJ de 25‑6‑2004; AI 598�212 ED/PR, Relator o Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJ de 24‑4‑2014, entre outras), tendo sido sempre afirmada e reafirmada a importância institucional e a necessidade de se assegurar a autonomia dessas instituições�

29. Ao votar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n� 3�965/MG, de que fui Relatora, ponderei:

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“4. As Ordenações Filipinas, que formam a origem do direito português e que também vigoraram no Brasil de 1603 até 1830, também preceituaram o que se pode denominar de isenção dos pobres, conforme dispunha seu Livro III, Título 84, § 10:

‘Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o agravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma Del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como se pagasse os novecentos réis, con-tanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o agravo.’

Em 1866, Nabuco de Araújo, então Presidente do Instituto da Ordem dos Advoga-dos Brasileiros já se preocupava com o acesso à Justiça aos desprovidos de recursos e perguntava:

‘Se não se pode tudo, faz-se o que é possível. No estado atual da nossa legislação, e atendendo às despesas que uma demanda custa, pode-se dizer, sem medo de errar, que a igualdade perante a lei não é não uma palavra vã. Que importa ter direito, se não é possível mantê-lo? Se um outro pode vir privar-nos dele? Que importa ter uma reclamação justa, se não podemos apresentá-la e segui-la por falta de dinheiro? A lei é, pois, para quem tem dinheiro, para quem pode suportar as despesas das demandas (NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. V. II. 5. ed. Topbooks: Rio de Janeiro, 1997, p. 1017).’

Passados quase 30 anos daquela afirmativa, com a edição do Decreto 2.457, em 8-2-1897, criou-se a Assistência Judiciária na antiga capital federal do Rio de Janeiro (Estado da Guanabara).

A Constituição Imperial não cuidou do tema, que somente se entronizou no cons-titucionalismo positivo brasileiro em 1934, ao dispor a Constituição, promulgada naquele ano, sobre a possibilidade dos cidadãos de obter gratuitamente o acesso à Justiça:

‘Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a isenção de emolu-mentos, custas, taxas e selos.’

A Carta de 1937 omitiu a matéria e a Constituição de 1946 dispôs:‘Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

35 – O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.’

A regra se repetiu na Carta de 1967:‘Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 32. Será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei.’Aquela regra foi repetida na Emenda Constitucional n. 1/69 (art. 153, § 32).”

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No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n� 2�903/PB, Relator o Ministro Celso de Mello, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu:

“DEFENSORIA PÚBLICA – RELEVÂNCIA – INSTITUIÇÃO PERMANENTE ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO – O DEFENSOR PÚBLICO COMO AGENTE DE CON-CRETIZAÇÃO DO ACESSO DOS NECESSITADOS À ORDEM JURÍDICA.

– A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função juris-dicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo incon-sequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado.

– De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberda-des, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação cons-titucional (CF, art.134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República.

DIREITO A TER DIREITOS: UMA PRERROGATIVA BÁSICA, QUE SE QUALIFICA COMO FATOR DE VIABILIZAÇÃO DOS DEMAIS DIREITOS E LIBERDADES – DIREITO ESSENCIAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA, ESPECIALMENTE ÀQUELAS QUE NADA TÊM E DE QUE TUDO NECESSITAM. PRERROGATIVA FUNDAMENTAL QUE PÕE EM EVIDÊNCIA – CUIDANDO--SE DE PESSOAS NECESSITADAS (CF, ART 5º, LXXIV) – A SIGNIFICATIVA IMPORTÂNCIA JURÍDICO-INSTITUCIONAL E POLÍTICO-SOCIAL DA DEFENSORIA PÚBLICA.” (DJ de 19‑9‑2008 – Grifos no original�)

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello assentou:

“O exame deste litígio constitucional impõe que se façam algumas considerações prévias em torno da significativa importância de que se reveste, em nosso sistema normativo, e nos planos jurídico, político e social, a Defensoria Pública, elevada à dignidade constitucional de instituição permanente, essencial à função jurisdi-cional do Estado, e reconhecida como instrumento vital à orientação jurídica e à defesa das pessoas desassistidas e necessitadas.

É imperioso ressaltar, desde logo, Senhor Presidente, a essencialidade da Defen-soria Pública como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que também são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por esse motivo

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que a Defensoria Pública foi qualificada pela própria Constituição da República como instituição essencial ao desempenho da atividade jurisdicional do Estado.

Não se pode perder de perspectiva que a frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pela injusta omissão do Poder Público – que, sem razão, deixa de adimplir o dever de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura, aos necessitados, o direito à orientação jurídica e à assistência judiciária –, culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável.

Lamentavelmente, o povo brasileiro continua não tendo acesso pleno ao sistema de administração da Justiça, não obstante a experiência altamente positiva dos Juizados Especiais, cuja implantação efetivamente vem aproximando o cidadão comum do aparelho judiciário do Estado. É preciso, no entanto, dar passos mais positivos no sentido de atender à justa reivindicação da sociedade civil que exige, do Estado, nada mais senão o simples e puro cumprimento integral do dever que lhe impôs o art. 134 da Constituição da República.

Cumpre, desse modo, ao Poder Público, dotar-se de uma organização formal e material que lhe permita realizar, na expressão concreta de sua atuação, a obriga-ção constitucional mencionada, proporcionando, efetivamente, aos necessitados, plena orientação jurídica e integral assistência judiciária, para que os direitos e as liberdades das pessoas atingidas pelo injusto estigma da exclusão social não se convertam em proclamações inúteis, nem se transformem em expectativas vãs.

A questão da Defensoria Pública, portanto, não pode (e não deve) ser tratada de maneira inconsequente, porque, de sua adequada organização e efetiva institu-cionalização, depende a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão que as coloca, injus-tamente, à margem das grandes conquistas jurídicas e sociais.

De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titula-rizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República.

É preciso reconhecer, desse modo, que assiste, a toda e qualquer pessoa – espe-cialmente quando se tratar daquelas que nada têm e que de tudo necessitam –, uma prerrogativa básica que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades.

Torna-se imperioso proclamar, por isso mesmo, que toda pessoa tem direito a ter direitos, assistindo-lhe, nesse contexto, a prerrogativa de ver tais direitos efetiva-mente implementados em seu benefício, o que põe em evidência – cuidando-se de

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pessoas necessitadas (CF, art. 5º, LXXIV) – a significativa importância jurídico--institucional e político-social da Defensoria Pública.

É que, Senhor Presidente, sem se reconhecer a realidade de que a Constituição impõe, ao Estado, o dever de atribuir aos desprivilegiados – verdadeiros marginais do sistema jurídico nacional – a condição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e merecedoras do respeito social, não se tornará possível construir a igualdade, nem realizar a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, frustrando-se, assim, um dos objetivos fundamentais da República (CF, art. 3º, I).” (DJ de 19‑9‑2008 – Grifos no original�)

Da utilidade/possibilidade de ampliação do rol de legitimados aptos a defender a cole-tividade

30. Em Estado marcado por inegáveis e graves desníveis sociais e pela con‑centração de renda, uma das grandes barreiras para a implementação da demo‑cracia e da cidadania ainda é o efetivo acesso à Justiça�

Estado no qual as relações jurídicas importam em danos patrimoniais e morais de massa devido ao desrespeito aos direitos de conjuntos de indivíduos que, consciente ou inconscientemente, experimentam viver nessa sociedade complexa e dinâmica, o dever estatal de promover políticas públicas tendentes a reduzir ou suprimir essas enormes diferenças passa pela criação e operacio‑nalização de instrumentos que atendam com eficiência as necessidades dos seus cidadãos�

31. Ao traçar parâmetros imprescindíveis para a efetividade do princípio da dignidade humana, Ana Paula de Barcellos anota:

“O direito subjetivo de acesso à Justiça é o instrumento sem o qual qualquer dos três elementos anteriores [educação fundamental, saúde básica e assistência aos desamparados] torna-se inócuo, um ‘sino sem badalo’, na imagem inspirada do Professor José Carlos Barbosa Moreira. Em um Estado de direito, como já se referiu, não basta a consagração normativa: é preciso existir uma autoridade que seja capaz de impor coativamente a obediência aos comandos jurídicos. Dizer que o acesso à Justiça é um dos componentes do núcleo da dignidade humana significa dizer que todas as pessoas devem ter acesso a tal autoridade: o Judiciário.

A eficácia jurídica desse direito, todavia, apresenta ao jurista uma série de ques-tões, que podem ser ordenadas, para fins sistemáticos, em três categorias: (i) as que envolvem o acesso sob o ponto jurídico; (ii) as que dizem respeito ao acesso físico; e, por fim, (iii) as relacionadas com o acesso jurídico da pretensão material, que embora não se confunda com o direito autônomo de ação não pode ser dele totalmente desvinculado.

A previsão constitucional de que a lei não poderá excluir da apreciação do Judi-ciário lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, XXXVI) é a etapa fundamental

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para a garantia jurídica do acesso à Justiça, inviolável por qualquer poder consti-tuído no âmbito do Estado. Entretanto, a eficácia positiva ou simétrica do acesso à Justiça envolve uma evidente dificuldade básica.

Como já referido, a eficácia positiva significa que o indivíduo poderá exigir, judi-cialmente, o direito em questão, o efeito pretendido pelo comando de forma simé-trica. Ora, no momento em que o indivíduo se dirige ao Poder Judiciário, o acesso à Justiça, ao menos em seu conteúdo mais básico, já foi encontrado e realizado, transformando-se em um instrumento para uma outra pretensão material. O pro-blema está, na verdade, quando o indivíduo não se dirige ao Judiciário, sem que isso signifique uma opção consciente por outra alternativa de solução de confli-tos, como ocorre com a decisão de submeter sua controvérsia a um juízo arbitral, ou quando as partes firmam um acordo extrajudicial. Lembre-se que o acesso à Justiça é um meio, um instrumento para os demais direitos, mas não há um outro meio que viabilize o próprio acesso à Justiça. Estas, porém, são as questões envol-vendo o segundo aspecto acima identificado, o acesso físico ao Judiciário, de que se tratará a seguir. (...)

No que diz respeito à segunda ordem de questões — as que envolvem o acesso físico ao Judiciário —, os aspectos jurídicos e meta-jurídicos entrelaçam-se de tal modo que é impossível dissociá-los. Isso porque, se o indivíduo não tem contato real com o Judiciário, o direito subjetivo ao acesso à Justiça permanece inerte, assim como os demais direitos, que igualmente não podem utilizar-se da coação jurisdicional. Nesse particular, o que importa são os caminhos que podem conduzir o indivíduo ao Judiciário, ou impedi-lo de encontrá-lo.

Como já se expôs acima, são dois os maiores obstáculos físicos que separam o Judiciário do indivíduo no Brasil: o custo e a desinformação. No que diz respeito ao custo, a Constituição de 1988 procurou eliminar os obstáculos e pavimentar o melhor possível, quanto a este aspecto, a via que leva ao Poder Judiciário, consagrando a assistência jurídica gratuita para os necessitados, bem como institucionalizando a Defensoria Pública, e ainda criando os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com a finalidade de baratear e tornar mais célere a resposta jurisdicional. Que eficácia jurídica, entretanto, têm os comandos que preveem essas estruturas?

A assistência jurídica gratuita certamente apresenta a modalidade positiva ou simétrica, que aliás vem sendo amplamente utilizada no âmbito dos processos judiciais. (...)

Quanto à organização propriamente dita da Defensoria Pública e dos Juizados Especiais, bem como seu adequado aparelhamento, há algumas observações a fazer. Em primeiro lugar é preciso remarcar que tais providências são um dever constitucional da Administração – não lhe cabe decidir acerca de sua conveniên-cia ou oportunidade.” (BARCELLOS, Ana Paula� A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana� 2� ed� Rio de Janeiro: Renovar, 2008� p� 325‑327/330�)

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32. Ao contrário do sustentado pela Autora da presente ação, “não há refe-rência constitucional à forma e limite de exercício da defesa desses necessitados. Assim, não há, expressamente, a limitação do exercício das atribuições da Defen-soria, exclusivamente, em demandas individuais, nem, tampouco, menção à pos-sibilidade da defesa coletiva dos interesses metaindividuais que envolvam os des-tinatários de suas funções” (fl� 546, manifestação da Advocacia‑Geral da União)�

33. Estaria, pois, limitada a atuação da Defensoria Pública às demandas indi‑viduais dos necessitados, únicas em que se poderia demonstrar a insuficiência de recursos exigida no art� 5º, inc� LXXIV, da Constituição da República?

O art� 5º, inc� LXXIV, da Constituição estabelece:

“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”

Como declarado pelo Ministro Eros Grau no julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental n� 153/DF:

“Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.” (Plenário, DJ de 6‑8‑2010�)

34. O objetivo da Defensoria Pública é a eficiência da prestação de serviços e o efetivo acesso à Justiça por todos os necessitados, para garantia dos direitos fundamentais previstos no art� 5º, incs� XXXV, LXXIV e LXXVIII, da Consti‑tuição da República�

A constatação de serem normalmente mais graves as lesões coletivas, aliada à circunstância de tender o tempo gasto em processos coletivos a ser menor, evidencia que a opção por ações coletivas racionaliza o trabalho pelo Poder Judiciário e aumenta a possibilidade de assegurar soluções uniformes e igua‑litárias para os diferentes titulares dos mesmos direitos, garantindo‑se não apenas a eficiência da prestação jurisdicional, a duração razoável do processo e a justiça das decisões, que se igualam em seu conteúdo sem contradições jurisprudenciais não incomuns em demandas individuais�

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35. Em trabalho doutrinário sobre o tema, o Ministro Teori Zavascki esclarece:

“ à medida que os novos instrumentos vão sendo experimentados na prática e que os valores por eles perseguidos vão ganhando espaço na consciência e na cultura dos juristas, fica perceptível a amplitude e o grau de profundidade das mudanças que o ciclo reformador dos últimos anos produziu no processo civil brasileiro. Não mudou apenas o Código de Processo: mudou o sistema processual. A estrutura origi-nal do Código de 1973, moldada para atender demandas entre partes determinadas e identificadas, em conflitos tipicamente individuais, já não espelha a realidade do sistema processual civil. (...)

Por outro lado, (...) podemos, hoje, classificar os mecanismos de tutela jurisdicional em três grandes grupos: (a) mecanismos para tutela de direitos subjetivos indivi-duais, subdivididos entre (a.1) os destinados a tutelá-los individualmente pelo seu próprio titular (disciplinados, basicamente, no Código de Processo) e (a.2) os des-tinados a tutelar coletivamente os direitos individuais, em regime de substituição processual (as ações civis coletivas, nelas compreendido o mandado de segurança coletivo); (b) mecanismos para tutela de direitos transindividuais, isto é, direitos pertencentes a grupos ou a classes de pessoas indeterminadas (a ação popular e as ações civis públicas, nelas compreendida a chamada ação de improbidade administrativa); e (c) instrumentos para tutela da ordem jurídica, abstratamente considerada, representados pelos vários mecanismos de controle de constitucio-nalidade dos preceitos normativos e das omissões legislativas.

Bem se vê, mesmo a um primeiro olhar sobre esse modelo classificatório da tutela jurisdicional, que, à medida que se passa de um para outro dos grupos de instru-mentos processuais hoje oferecidos pelo sistema do processo civil, maior ênfase se dá à solução dos conflitos em sua dimensão coletiva. É o reflexo dos novos tempos, marcados por relações cada vez mais impessoais e mais coletivizadas. O conjunto de instrumentos hoje existentes para essas novas formas de tutela jurisdicional, decorrentes da primeira onda de reformas, constitui, certamente, um subsistema processual bem caracterizado, que se pode, genérica e sinteticamente, denominar de processo coletivo. Mas, sem a tradição dos mecanismos da tutela individual dos direitos subjetivos, os instrumentos de tutela coletiva, trazido por leis extravagan-tes, ainda passam por fase de adaptação e de acomodação, suscitando, por isso mesmo, muitas controvérsias interpretativas.” (ZAVASCKI, Teori Albino� Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014� p� 34‑35– Grifos nossos�)

Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira

“com a expressão ‘ações coletivas’ (...) estou aludindo à matéria litigiosa, não à estrutura subjetiva do processo, mas ao próprio litígio que vai ser objeto da aprecia-ção judicial; e até diria que um dos traços característicos dessas chamadas ações coletivas consiste, precisamente, na possibilidade, que em geral se assegura, de que

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a lide seja posta sob a cognição judicial por iniciativa de uma única pessoa, física ou jurídica.” (MOREIRA, José Carlos Barbosa� “Ações coletivas na Constituição Federal de 1988�” Revista de Processo, São Paulo, v� 16, n� 61, p� 187‑200, jan�/mar� 1991� p� 187�)

É de J� J� Gomes Canotilho a lição segundo a qual:

“Num Estado de direito democrático, o trabalho metódico de concretização é um trabalho normativamente orientado. Como corolários subjacentes a esta postura metodológica assinalam-se os seguintes.

O jurista concretizador deve trabalhar a partir do texto da norma, editado pelas entidades democrática e juridicamente legitimadas pela ordem constitucional. A norma de decisão, que representa a medida de ordenação imediata e concreta-mente aplicável a um problema, não é uma ‘grandeza autônoma’, independente da norma jurídica, nem uma ‘decisão’ voluntarista do sujeito de concretização; deve, sim, reconduzir-se sempre à norma jurídica geral. A distinção positiva das funções concretizadoras destes vários agentes depende, como é óbvio, da própria constitui-ção, mas não raro acontece que no plano constitucional se verifique a convergência concretizadora de várias instâncias: (a) nível primário de concretização-, os princí-pios gerais e especiais, bem como as normas da constituição que ‘densificam’ outros princípios; (b) nível político-legislativo: a partir do texto da norma constitucional, os órgãos legiferantes concretizam, através de ‘ decisões políticas’ com densidade normativa – os actos legislativos –, os preceitos da constituição; (c) nível executivo e jurisdicionais com base no texto da norma constitucional e das subsequentes concretizações desta a nível legislativo (também a nível regulamentar, estatutário), desenvolve-se o trabalho concretizador, de forma a obter uma norma de decisão solucionadora dos problemas concretos.” (CANOTILHO, J� J� Gomes� Direito Cons-titucional e Teoria da Constituição. 7� ed� Coimbra: Almedina, 1997� p� 1222‑1223�)

Entre os princípios da interpretação constitucional, aquele autor ressalta:a) o princípio da unidade da Constituição, segundo o qual “a constituição

deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre suas normas. Como ponto de orientação, guia de discussão e fator herme-nêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (...) Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios” (CANOTILHO, J� J� Gomes� Direito Constitucional e Teoria da Constituição� 7� ed� Coimbra: Almedina, 1997� p� 1223‑1224)�

b) o princípio do efeito integrador a indicar que “na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que

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favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Como tópico argumentativo, [esse princípio] não assenta numa concepção integracio-nista de Estado e da sociedade (conducente a reducionismos, autoritarismos, fun-damentalismos e transpersonalismos políticos), antes arranca da conflituosidade constitucionalmente racionalizada para conduzir a soluções pluralisticamente integradoras” (CANOTILHO, J� J� Gomes� Direito Constitucional e Teoria da Cons-tituição. 7� ed� Coimbra: Almedina, 1997� p� 1224)�

c) o princípio da máxima efetividade, “também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. E um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)” (CANOTILHO, J� J� Gomes� Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7� ed� Coimbra: Almedina, 1997� p� 1224)�

É ainda o Professor Canotilho a ensinar, à luz do princípio da força norma‑tiva da Constituição, que a “solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei funda-mental. Consequentemente, deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a atualização normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência” (CANOTILHO, J� J� Gomes� Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7� ed� Coimbra: Almedina, 1997� p� 1224)�

36. A interpretação sugerida pela Autora desta ação tolhe, sem razões de ordem jurídica, a possibilidade de utilização de importante instrumento pro‑cessual (a ação civil pública) capaz de garantir a efetividade de direitos funda‑mentais de pobres e ricos a partir de iniciativa processual da Defensoria Pública�

Salientam Bruno Freire e Silva e outros:

“ diante da supremacia das normas constitucionais, sobretudo aquelas de direito fundamental, para todos os ramos do ordenamento jurídico, o que parece ser, na moderna concepção do constitucionalismo, inquestionável, o mesmo padrão deve ser adotado, com maior medida de razão, no âmbito processual, em que se desen-volve a atuação de uma das mais relevantes funções estatais, a função jurisdicional, toda delineada na Constituição Federal, que alastra sobre a atuação da jurisdição, todos os fundamentos e diretrizes que devem ser seguidos pelo Estado brasileiro.

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Inegável, portanto, que o direito processual, aí incluído todo o regramento referente às ações coletivas, deve ser interpretado e compreendido, contemporaneamente, a partir da Constituição Federal, em postura que vê nas disposições constitucionais, sobretudo aquelas de caráter fundamental, quando aplicadas no campo do exer-cício da jurisdição, inclusive coletiva, um autêntico modelo constitucional a ser seguido, conformador de toda a legislação situada em patamar inferior.” (SILVA, Bruno Freire, DUZ, Clausner Donizeti, e LIMA FILHO, Sérgio Franco� “Alguns pontos sensíveis da tutela jurisdicional coletiva brasileira: legitimidade ativa e coisa julgada. Breves comparações com as class action�” In: DIDIER JR� Fredie, MOUTA, José Henrique, MAZZEI, Rodrigo (Coords)� Tutela jurisdicional coletiva: 2ª série� Salvador: Juspodium, 2012� p� 95 – Grifos nossos�)

37. No caso em pauta, há de assentar este Supremo Tribunal interpretação que, a um só tempo, “potencialize a defesa dos necessitados e (...) minimize as hipóteses de restrição dessa mesma atuação” (fl� 549, manifestação da Advoca‑cia‑Geral da União), em nome da denominada eficácia ótima da Constituição (SARLET, Ingo Wolfgang� “Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade no atual marco jurídico-constitucional brasileiro.” In: LEITE, George Salomão, SARLET, Ingo Wolfgang (Coords�) Direitos funda-mentais e Estado Constitucional: estudos em homenagem a J� J�Gomes Canotilho� São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009� p� 213‑253)�

Como posto na manifestação da Advocacia‑Geral da União:

“a exegese que conduz à conclusão mais efetiva das atribuições da Defensoria Pública é aquela segundo a qual sua legitimidade para o ajuizamento de ações coletivas está presente quando, entre os eventuais beneficiados, haja necessitados (...). Contrariamente, restringir a legitimidade sob exame seria inviabilizar o pró-prio acesso à justiça dos hipossuficientes que, possuindo interesses convergentes com os dos demais cidadãos, não poderiam ser assistidos em pleito coletivo pela Defensoria Pública. (...)

Na verdade, a máxima efetividade com que deve ser interpretada a implementa-ção dos direitos fundamentais realiza-se quando o Poder Público protege os mais pobres, mesmo que seus interesses sejam indissociáveis ou estejam agrupados aos de pessoas mais abastadas.” (Fls� 549/552�)

38. Não se está a afirmar a desnecessidade de observar a Defensoria Pública o preceito do art� 5º, inc� LXXIV, da Constituição, reiterado no art� 134 (antes e depois da Emenda Constitucional n� 80/2014)� No exercício de sua atribuição constitucional, deve‑se sempre averiguar a compatibilidade dos interesses e direitos que a instituição protege com os possíveis beneficiários de quaisquer das ações ajuizadas, mesmo em ação civil pública�

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À luz dos princípios orientadores da interpretação dos direitos fundamentais, acentuados nas manifestações do Congresso Nacional, da Advocacia‑Geral da União e da Presidência da República, a presunção de que, no rol dos afetados pelos resultados da ação coletiva, constem pessoas necessitadas é suficiente a justificar a legitimidade da Defensoria Pública, para não “esvaziar, totalmente, as finalidades que originaram a Defensoria Pública como função essencial à Jus-tiça” (fl� 550, manifestação da Advocacia‑Geral da União)�

Condicionar a atuação da Defensoria Pública à comprovação prévia da pobreza do público‑alvo diante de situação justificadora do ajuizamento de ação civil pública (conforme determina a Lei n� 7�347/1985) parece‑me incon‑dizente com princípios e regras norteadores dessa instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, menos ainda com a norma do art� 3º da Constituição da República:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...)III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais

e regionais;IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade

e quaisquer outras formas de discriminação.”

Para consecução desses objetivos, “a melhor interpretação que se pode dar a qualquer direito ligado ao acesso à justiça é aquela que não cria obstáculo à sua efetivação. Que o torne elástico a ponto de alcançar o maior número de pessoas possíveis; que solucione os conflitos de massa da sociedade moderna” (NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno� “A nova Defensoria Pública e o Direito Fundamental de acesso à Justiça em uma neo-hermenêutica da hipossuficiência�” Repertório de Jurisprudência da IOB� V� III� Civil, Processual Civil, Penal e Comercial� Jan� 2011� p� 29)�

O conceito de necessitado, lembra Ada Pellegrini Grinover,

“nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado propiciar condições, a todos, de amplo acesso à justiça [evidencia a importância d]a garantia da assis-tência judiciária. E ela também toma uma dimensão mais ampla, que transcende o seu sentido primeiro, clássico e tradicional. Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos minus habentes. E este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez, mas não o único.

Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico, mas também existem os necessitados do ponto de vista organizacional. Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos,

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os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente etc.

E tanto assim é, que afirmava, no mesmo estudo, que a assistência judiciária deve compreender a defesa penal, em que o Estado é tido a assegurar a todos o contraditório e a ampla defesa, quer se trate de economicamente necessitados, quer não. O acusado está sempre numa posição de vulnerabilidade frente à acu-sação. Dizia eu:

‘Não cabe ao Estado indagar se há ricos ou pobres, porque o que existe são acu-sados que, não dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, não poderão ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais uma faceta da assis-tência judiciária, assistência aos necessitados, não no sentido econômico, mas no sentido de que o Estado lhes deve assegurar as garantias do contraditório e da ampla defesa10.’ (Grifei.)

Em estudo posterior, ainda afirmei surgir, em razão da própria estruturação da sociedade de massa, uma nova categoria de hipossuficientes, ou seja a dos carentes organizacionais, a que se referiu Mauro Cappelletti, ligada à questão da vulnera-bilidade das pessoas em face das relações sócio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea.

Da mesma maneira deve ser interpretado o inc. LXXIV do art. 5º da CF: ‘O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiên-cia de recursos’ (grifei). A exegese do termo constitucional não deve limitar-se ao recursos econômicos, abrangendo recursos organizacionais, culturais, sociais. (...)

Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da Defensoria Pública no campo da defesa dos necessitados e dos que comprovarem insuficiência de recursos, os conceitos indeterminados da Constituição autorizam o entendimento – aderente à ideia generosa do amplo acesso à justiça – de que compete à instituição a defesa dos necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os com-ponentes de grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.” (Fls� 1198‑1200�)

Ao explicar o que caracterizaria a insuficiência de recursos, enunciada no inc� LXXIV do art� 5º da Constituição brasileira, José Afonso da Silva afirma:

“Nem sempre o conceito de ‘ insuficiência’ pode ser definido a priori. O caso, a situa-ção jurídica concreta, especialmente quando se trate de defesa em juízo, é que vão indicar se o interessado está ou não em condições de organizar a defesa de seus direitos por conta própria. Não é necessário que o interessado seja absolutamente desprovido de recursos, seja miserável.” (SILVA, José Afonso da� Comentário con-textual à Constituição. 5� ed� São Paulo: Malheiros, 2008� p� 173�)

Esse entendimento confirma a constitucionalidade da norma impugnada, autorizativa da atuação da Defensoria Pública em prol da defesa de interesses

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coletivos e individuais homogêneos, porque, como adverte Vânia Márcia Damas‑ceno Nogueira:

“ já não basta peticionar. O acesso à justiça compreende uma gama de princípios paralelos a serem cumpridos. Celeridade, contraditório, ampla defesa, decisões justas, ações afirmativas que possam, no caso concreto, transformar a realidade, buscar a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza, que é origem de todas as mazelas sociais adjacentes à violência urbana.” (NOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno� “A nova Defensoria Pública e o Direito Fundamental de acesso à Justiça em uma neo-hermenêutica da hipossuficiência.” Repertório de Jurispru-dência da IOB. V� III� Civil, Processual Civil, Penal e Comercial� Jan� 2011� p� 30�)

39. Essa questão também foi enfrentada por este Supremo Tribunal�Em meados da década de 1990, no julgamento Plenário da Medida Cautelar

na Ação Direta de Inconstitucionalidade n� 558/RJ, o Ministro Sepúlveda Per‑tence assentou:

“(...) a própria Constituição da República giza o raio de atuação institucional da Defensoria Pública, incumbindo-a da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados. Daí, contudo, não se segue a vedação de que o âmbito da assistência judiciária da Defensoria Pública se estenda ao patrocínio dos ‘ direitos e interesses (...) coletivos dos necessitados’, a que alude o art. 176, da Constituição do Estado: é obvio que o serem direitos e interesses coletivos não afasta, por si só, que sejam necessitados os membros da coletividade. (...) A Constituição Federal impõe, sim, que os Estados prestem assistência judiciária aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal.” (Plenário, DJ de 26‑3‑1993 – Grifos nossos�)

40. A possibilidade de atuação da Defensoria Pública em ações coletivas é contemporânea ao julgamento dessa ação direta e tem respaldo legal desde o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, segundo o qual:

“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os

transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeter-minadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria

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ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decor-rentes de origem comum.

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:(...)III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda

que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código.”

O art� 21 da Lei n� 7�347/1985 prevê:

“Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e indivi-duais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”

Ao comentar as normas do Código de Defesa do Consumidor, Antônio Herman Benjamim adverte:

“As normas do CDC em matéria de proteção processual, tiveram, quando da sua promulgação como até hoje, profundo impacto sobre o processo civil. Isto porque, em primeiro lugar, afastam a tradicional perspectiva individualista do processo, permitindo a tutela simultânea de grandes contingentes ou mesmo de um número indeterminável de pessoas titulares de interesses reconhecidos. Da mesma forma, impõe ao juiz um papel ativo no processo, ampliando seus poderes instrutórios, de determinação da carga probatória, assim como apontando ao seu livre convenci-mento o valor das provas produzidas. E no esteio das transformações em curso desde a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), estabelece ao lado da indispensável pro-teção individual, uma espécie de vocação coletiva do processo civil contemporâneo.

O Código, ao prever a possibilidade de defesa individual e coletiva dos consu-midores, em boa medida contribui, legislativamente, para superação do próprio conceito clássico de direitos subjetivos, determinando uma nova classificação, útil para a identificação dos novos fenômenos sociais. A classificação operada pelo legislador do CDC para fins processuais é resultado direto da nova sociedade de massas, em que as relações jurídicas – contratuais ou não – se projetam não apenas entre sujeitos determinados, mas por intermédio de uma série de fenômenos como os denominados contratos cativos de longa duração, as redes contratuais, e ainda, na perspectiva extracontratual. nas novas espécies de dano, cuja aferição não é mais possível de ser verificada individualmente.

Assim, uma vez que não existe acordo doutrinário sobre a definição dos cha-mados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, o legislador do CDC optou por, ele próprio, fixar um conceito, de modo a permitir um razoável grau de previsibilidade quanto a sua utilização. Inspiram-se nas class actions do direito

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norte-americano e vão determinar um significativo diálogo entre as normas do Código e a Lei da Ação Civil Pública (v. os comentários aos arts. 90 e 117 do CDC).

A classificação do CDC, desse modo, se dá entre a tutela essencialmente coletiva. representada pelos interesses e direitos difusos e coletivos, e aquela que assume essa dimensão coletiva apenas quanto ao modo de postular os direitos em juízo, como é o caso dos denominados direitos individuais homogêneos.

Interesses e direitos difusos: Os interesses ou direitos difusos são identificados como aqueles relacionados a um número indeterminado de pessoas, vinculados por uma relação factual que merece ser acolhida pelo ordenamento jurídico. São de natureza indivisível, sendo esta indivisibilidade caracterizada pela impossibi-lidade de distinguir o titular da prestação jurisdicional ou mesmo individualizar a parcela, que lhe é cabível, daquele determinado interesse ou direito tutelado. O que caracteriza, portanto, seu caráter difuso é tanto a indeterminação dos seus titulares quanto a existência de uma ligação entre eles decorrente de uma cir-cunstância de fato. São exemplos de direitos difusos o direito à saúde e o direito à segurança (v. os comentários ao art. 8º). Entretanto não estão adstritos ao direito do consumidor, sendo caracterizado como difuso, igualmente, o direito ao meio ambiente sadio, previsto no art. 225 da Constituição da República, ou os direitos de proteção da criança e do adolescente estabelecidos na Constituição (art. 227) e nas leis especiais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Interesses e direitos coletivos: Os interesses ou direitos coletivos, de sua vez, carac-terizam-se pela circunstância de serem titulares dos mesmos um grupo, categoria ou classe de pessoas que guardem, entre si ou em relação a outra pessoa contra quem se pretende demandar, um vínculo jurídico decorrente de uma relação jurídica base. Neste sentido, os interesses e direitos coletivos diferenciam-se dos difusos à medida que exigem um vínculo jurídico que pode surgir pelo fato de serem sujeitos de uma mesma relação contratual ou ainda vinculados a partir de uma relação associativa em sindicatos, associações, dentre outros.

Interesses e direitos individuais homogêneos: Os interesses e direitos indivi-duais homogêneos são aqueles que possuem uma origem comum, segundo refere o inciso III do parágrafo único do art. 81. No caso destes, são direitos divisíveis, de modo que seus titulares podem ser identificados e determinados, assim como a quantificação de suas eventuais pretensões. Da mesma forma, trata-se de direitos disponíveis, podendo o titular do direito deixar de exercê-lo quando chamado a agir ou ainda exercê-lo paralelamente aos demais legitimados através de litiscon-sórcio ativo. Entretanto, ao conceituar tais direitos, o legislador do CDC identificou o seu caráter comum, homogêneo, justamente em relação à origem do pedido que se deverá postular em juízo (Nelson Nery, Aspectos do processo civil no Código de Defesa do Consumidor���, RDC 1/200). A partir da definição dos interesses indi-viduais homogêneos é que o legislador do CDC introduziu no sistema processual brasileiro a class action, prevista na regra n. 23 das Federal Rides of Civil Pro‑cedure no direito norte-americano. A principal finalidade destes direitos é a cie permitir a prestação jurisdicional, de maneira mais uniforme, ágil e eficiente, aos

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consumidores lesados em decorrência de um mesmo fato de responsabilidade do fornecedor, assim como i ampliação da legitimação para agir dos diversos órgãos e entidades previstos no art. 82 do CDC.” (MARQUES, Cláudia Lima, BENJAMIN, Antônio Herman V�, MIRAGEM, Bruno� Comentários do Código de Defesa do Consumidor. 2� ed� São Paulo: Revista dos Tribunais� 2006� p� 974‑976 – Grifos no original�)

41. No julgamento do Recurso Extraordinário n� 163�231/SP, Relator o Ministro Maurício Corrêa, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal assentou:

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINIS-TÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POS-TULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO. 1. A Constituição Federal con-fere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classifi-cam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requeri-mento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público inves-tido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento

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de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda--se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.” (DJ de 29‑6‑2001�)

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello afirmou:

“Os interesses metaindividuais, ou de caráter transindividual, constituem valores cuja titularidade transcende a esfera meramente subjetiva, vale dizer, a dimensão puramente individual das pessoas e das instituições. São direitos que pertencem a todos, considerados em perspectiva global. Deles, ninguém, isoladamente, é o titular exclusivo. Não se concentram num titular único, simplesmente porque concernem a todos, e a cada um de nós, enquanto membros integrantes da coletividade.

Na real verdade, a complexidade desses múltiplos interesses não permite sejam discriminados e identificados na lei. Os interesses difusos e coletivos não compor-tam rol exaustivo. A cada momento, e em função de novas exigências impostas pela sociedade moderna e pós-industrial, evidenciam-se novos valores, pertencentes a todo o grupo social, cuja tutela se revela necessária e inafastável. Os interesses tran-sindividuais, por isso mesmo, são inominados, embora haja alguns, mais evidentes, como os relacionados aos direitos do consumidor ou concernentes ao patrimônio ambiental, histórico, artístico, estético e cultural.

Em todas as formações sociais, com maior ou menor intensidade, a presença desses interesses, notadamente daqueles que ostentam caráter difuso, tem sido marcante: o direito à saúde, o direito à habitação, o direito a um ambiente eco-logicamente equilibrado, o direito a uma qualidade superior de vida, o direito ao aproveitamento racional dos recursos naturais, o direito à conservação da natureza, o direito à publicidade comercial honesta, o direito à utilização adequada do solo urbano e rural, o direito à intangibilidade do patrimônio cultural da Nação. (...)

Do claro texto da legislação trazida à colação, depreende-se que há traços comuns a ambas as categorias por primeiro elencadas (i�e�, quanto aos interesses ‘ difusos’ e ‘coletivos’), a saber: a sua transindividualidade e a sua indivisibilidade.

Sua indivisibilidade – E, a propósito da sobredita indivisibilidade, acentua o eminente Prof. J. C. BARBOSA MOREIRA, com a costumeira clareza e propriedade que lhe são peculiares, que ela diz respeito ‘a um bem (...) indivisível, no sentido de insuscetível de divisão (mesmo ‘ ideal’), em ‘quotas’ atribuíveis individualmente a cada um dos interessados; estes se põem numa espécie de comunhão tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica por força a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade’.

Bastante esclarecedor, ainda, o escólio de ADA PELLEGRINI GRINOVER, que mui apropriadamente pondera que o objeto dos interesses difusos (no sentido amplo, que também engloba os coletivos) é sempre um bem coletivo, insuscetível de divisão, sendo que a satisfação de um interessado implica necessariamente a satisfação

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de todos, ao mesmo tempo em que a lesão de um indica a lesão de toda a coletivi-dade.” (DJ de 29‑6‑2001�)

E nas lições do Ministro Teori Zavascki sobre o tema se tem:

“É preciso, pois, que não se confunda defesa de direitos coletivos com defesa coletiva de direitos (individuais). Direitos coletivos são direitos subjetivamente transindivi-duais ( = sem titular individualmente determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. Ou seja: embora indivisível, é possível conceber-se uma única unidade da espécie de direito coletivo. O que é múltipla (e indeterminada) é a sua titularidade, e daí a sua transindividualidade. ‘Direito coletivo’ é designação gené-rica para as duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu. É denominação que se atribui a uma especial categoria de direito material, nascida da superação, hoje indiscutível, da tradicional dicotomia entre interesse público e interesse privado. É direito que não pertence à administração pública nem a indivíduos particularmente determinados. Pertence, sim, a um grupo de pessoas, a uma classe, a uma categoria, ou à própria sociedade, considerada em seu sentido amplo. Na definição de Péricles Prade, são ‘os titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fálicos exsurgidos de alguma cir-cunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade’.

Já os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos indi-viduais. A qualificação de homogêneos não altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. É qualificativo utilizado para identificar um conjunto de direitos subje-tivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência com outros direitos individuais assemelhados. Há, é certo, nessa compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos tran-sindividuais; porém, diferentemente desses (que são indivisíveis e seus titulares são indeterminados), a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autónomas, com titularidade própria. Não se trata, pois, de uma nova espécie de direito material. Os direitos individuais homogêneos são, em verdade, aqueles mesmos direitos comuns ou afins de que trata o art. 46 do CPC (nomeadamente em seus incisos II e IV), cuja coleti-vização tem um sentido meramente instrumental, como estratégia para permitir sua mais efetiva tutela em juízo. Em outras palavras, os direitos homogêneos ‘são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural (interesses e direitos públicos e difusos) ou da organização ou existência de urna relação jurídica-base

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(interesses coletivos stricto sensu), mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais’. Quando se fala, pois, em ‘ defesa coletiva’ ou em ‘tutela coletiva’ de direitos homogêneos, o que se está qualificando como coletivo não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua defesa.” (ZAVASCKI, Teori Albino� Processo Cole‑tivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos� São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014� p� 34‑35�)

42. Sem desconsiderar as diferenças inerentes a cada qual das classes de direi‑tos – direito coletivo (o difuso e o coletivo stricto sensu) ou direitos individuais homogêneos –, o receio exposto pela Autora na peça inicial da presente ação não se sustenta, pois “a Defensoria Pública somente estará autorizada a prosseguir com a liquidação e execução da sentença proferida nas ações civis públicas em relação aos que comprovarem insuficiência de recursos, pois, nessa fase, a tutela de cada membro da coletividade ocorre separadamente, sendo possível atender apenas a esse grupo” (fl� 248, manifestação do Presidente da República)�

Da inexistência de norma de exclusividade, em favor do Ministério Público, para o ajui-zamento de ação civil pública

43� Não fosse suficiente a ausência de vedação constitucional da atuação da Defensoria Pública na tutela coletiva de direitos, inexiste também, na Cons‑tituição brasileira, norma a assegurar exclusividade, em favor do Ministério Público, para o ajuizamento de ação civil pública�

44. O art� 129 da Constituição da República estabelece:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevân-

cia pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patri-mônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência,

requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei comple-mentar respectiva;

VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei comple-mentar mencionada no artigo anterior;

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VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

§ 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Cons-tituição e na lei.”

45. Ao comentar essa norma, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins asseveram:

“O parágrafo agora sob comento deu fundamento constitucional para o exercício dessa colegitimação, resultando recepcionada a referida lei e amparadas consti-tucionalmente outras que lhe seguiram, como as Leis n. 7.853/89, 7.913/89, 8.096/90 e 8.078/90.

Essa colegitimação foi fruto de uma relativamente longa batalha judicial, come-çada quando da aprovação da Lei n. 7.347/85 havendo quem sustentasse a sua inconstitucionalidade. Hoje, cremos não haver espaço para esse tipo de discussão, uma vez que o uso pelo Ministério Público do seu inquérito civil e da sua ação civil pública não exclui o direito de nenhum outro legitimado. Nessa duplicidade de sujeitos legitimados, só pode surgir um benefício para aqueles que tiveram seus direitos lesados; mesmo que o Ministério Público deixe de atuar em uma deter-minada hipótese, ainda assim os referidos lesados estão na plena posse dos seus direitos de ação. É um reforço, portanto.” (BASTOS, Celso Ribeiro� MARTINS, Ives Gandra� Comentários à Constituição do Brasil. 4º Volume – Tomo IV� Arts� 127 a 135� 2� ed� São Paulo: Saraiva, 2000� p� 184‑185�)

E sobre esse ponto, Hugo Nigro Mazzilli afirma ser

“ da essência da legitimação do MP, no campo da ação civil pública, que sua ini-ciativa não seja exclusiva, mas concorrente. Assim, enquanto detém o monopólio da ação penal privada subsidiária, em caso de inércia sua legitimação para ações civis públicas não exclui a de terceiros, como, aliás, o assegurara a CR (art. 129, § 1º).” (MAZZILLI, Hugo Nigro� “O Ministério Público no Estatuto da Criança e do Adolescente�” Revista Jurídica. 181:21, Nov� 1992, ano 40�)

46. Da leitura do art� 129 da Constituição da República não é possível extrair deter o Ministério Público a exclusividade para o ajuizamento da ação civil pública�

Contrariamente, o § 1º daquele dispositivo constitucional contém autoriza‑ção expressa para que, nos termos da Constituição da República e da legislação vigente, terceiros possam ajuizar as ações cíveis previstas no artigo, devendo‑se

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destacar, seguindo Humberto Theodoro Júnior, que “na ordem jurídica não há preferência alguma entre os diversos legitimados” (THEODORO JÚNIOR, Hum‑berto� Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais� Vol� III� 41� ed� Rio de Janeiro: Forense, 2009� p� 483)�

47. Essa questão não passou despercebida no voto do Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do Recurso Extraordinário n� 163�321/SP:

“É certo que o art. 129, III, outorga ao Ministério Público a legitimação para a ‘ação civil pública’ na defesa, não apenas dos clássicos interesses difusos nominados, mas também a de ‘outros interesses difusos e coletivos’. E não demarca, nem dá critério de demarcação de quais seriam os interesses coletivos confiados à tutela do Minis-tério Público, ainda que em concorrência com outras entidades.” (DJ de 29‑6‑2001�)

Ada Pelegrini Grinover acrescenta que “a legitimação do MP não é exclu-siva, mas concorrente e autônoma, no sentido de que cada órgão ou entidade legitimados podem mover a demanda coletiva, independentemente da ordem de indicação” (fl� 1196, grifo nosso)�

48. Como apontado pela Advocacia‑Geral da União, “sob a égide da Lei nº 11.448, de 2007, o Parquet continua a deter todos os princípios, garantias, atri-buições e procedimentos que, anteriormente, configuravam seu instrumental de promoção da defesa social, em especial a ação civil pública” (fl� 544) e, “quando o Ministério Público não for o autor da ação, intervirá sempre como fiscal da lei”, exatamente como consta da Mensagem n� 123/1985 (Projeto de Lei n� 4�984/1985, origem da Lei n� 7�347/1985 – atual art� 5º, § 1º)�

49. A ausência de demonstração de conflitos de ordem objetiva decorrente da atuação dessas duas instituições igualmente essenciais à justiça (a Defensoria Pública e o Ministério Público) demonstra inexistir prejuízo institucional para a segunda, menos ainda para os integrantes da Associação Autora�

Noticia‑se que “a Defensoria Pública da União vem (...) atuando em parceria com o Ministério Público Federal em diversos procedimentos coletivos judiciais e extrajudiciais” (fl� 233, manifestação do Presidente da República), em litiscon‑sórcio (art� 94 da Lei n� 8�078/1990 e art� 46 do Código de Processo Civil) �

Inexiste, portanto, nos autos, comprovação de afetar essa legitimação con‑corrente e autônoma da Defensoria Pública as atribuições do Ministério Público, ao qual cabe “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (inc� I do art� 129 da Constituição da República)�

Afinal, como pondera Ada Pelegrini Grinover, “seria até mesmo um contrassenso a existência de um órgão que só pudesse defender necessitados individualmente,

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deixando à margem a defesa de lesões coletivas, socialmente muito mais graves” (fl� 1200) porque, como salienta Rodolfo Camargo Mancuso:

“A tendência contemporânea é pelo aproveitamento máximo da relação proces-sual instaurada e, por isso, aduz Cândido Dinamarco Rangel, com apoio em José Carlos Barbosa Moreira, que será muito bom que ‘ mediante um só procedimento e sentença única possa o juiz resolver uma série grande de litígios individuais da mesma ordem, com economia e sem o risco de decisões conflitantes (timor ne varie dicetur), inerente aos julgamentos isolados. A tendência, é, hoje pela ampliação da tutela jurisdicional mediante verdadeira transmigração do individual para o coletivo’.” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo� Jurisdição Coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 2� ed� São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007� p� 62�)

O dever do Estado de prestar assistência integral, como posto nas infor‑mações do Presidente da República, passa “pela assistência incondicional aos necessitados, ainda que, de forma indireta e eventual, essa atuação promova a defesa de direitos de indivíduos economicamente bem estabelecidos”.

O custo social decorrente da negativa de atendimento de determinada coletivi‑dade ao argumento de hipoteticamente estar‑se também a proteger direitos e inte‑resses de cidadãos abastados é infinitamente maior que todos os custos financeiros inerentes à pronta atuação da Defensoria Pública nas situações concretas que auto‑rizam o manejo da ação civil pública, conforme previsto no ordenamento jurídico�

55. Pelo exposto, julgo improcedente a presente ação direta de incons- titucionalidade.

VOTO (Sobre preliminar)

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, peço vênia para divergir� Não reco‑nheço à Conamp – e vejo que a Conamp tem receio da Defensoria Pública – a legitimidade universal� O que ocorre no caso? Impugna preceito da lei que dis‑ciplina a ação civil pública, no que prevê, entre diversos legitimados, a Defen‑soria Pública� Há pertinência temática? Haveria se se tratasse não da ação civil pública, mas da ação penal incondicionada, porque então se teria, como foi ressaltado da tribuna, a exclusividade� No caso, olvida a Conamp o disposto no § 1º do artigo 129 da Constituição Federal:

“§ 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis [aí tem‑se a ação civil pública] previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei�”

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Não há, Presidente, e não podemos estender o enquadramento como legiti‑mado universal, direito específico, direito peculiar, direito exclusivo dos repre‑sentados� Não havendo esse direito exclusivo, e atacado o inciso II do artigo 5º da Lei nº 7�347/1985 como se houvesse a legitimação universal� E, se entendermos que no caso é parte legítima, poderia ser também para atacar qualquer dos outros incisos� Certamente não impugnaria o inciso que versa a legitimação do próprio Ministério Público� Não estendo às associações a legitimação universal�

Por isso, assentando a inexistência de pertinência temática, proclamo a ile‑gitimidade da Conamp�

VOTO (Sobre segunda preliminar)

O sr. ministro Roberto Barroso: Presidente, estou de acordo com a eminente Relatora�

O interesse em agir, o sentido da continuidade de um processo diz respeito à sua utilidade e à sua necessidade� De modo que, se há dúvida razoável em relação a essa matéria, penso que um pronunciamento do Supremo faz sentido�

Por esta razão, estou acompanhando a Relatora; pela continuidade do jul‑gamento, passando‑se ao mérito�

VOTO (Sobre a segunda preliminar)

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, tenho dúvida sobre essa questão, que gostaria de dividir com os Colegas� Em se considerando o atual estágio da jurisprudência do Supremo, esta ação está realmente prejudicada�

Farei uma rememoração cronológica sobre a evolução legislativa a respeito do tema� O objeto da presente ação é o inciso II do artigo 5º da Lei nº 7�347/1985, que trata da ação civil pública para a tutela de direitos difusos e coletivos� Na sua redação original, de 1985, essa Lei não previa, como órgão legitimado, a Defensoria Pública� Todavia, em 2007, sobreveio a Lei nº 11�448, que deu nova redação ao artigo 5º da Lei 7�347/1985, acrescentando‑lhe o inciso II, segundo o qual tem legitimidade para promover a ação civil pública:

“II – a Defensoria Pública”;

Sobreveio a Lei Complementar nº 80, em janeiro de 94� Essa lei organizou a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreveu

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normas gerais para a organização da Defensoria Pública nos Estados� No seu artigo 4º, indicou as funções institucionais da Defensoria Pública� Não referia, nessa sua redação original, a legitimidade para propor ações civis públicas para tutela de direitos coletivos ou difusos� Não havia referência a respeito�

A novidade veio a ocorrer com a edição da Lei Complementar nº 132/2009, que operou profunda modificação da Lei Complementar nº 80, estabelecendo legitimidade da Defensoria Pública, entre outros, nos seguintes pontos, itens, incisos que interessam à presente Ação� Nesse artigo 4º ficou estabelecido:

“Art� 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:(���)VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de pro‑

piciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homo‑gêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;”

Houve, bem se percebe, uma alteração substancial na norma atacada na presente ADI�

Mas, diz mais a Lei:

“VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art� 5º da Constituição Federal�”

O artigo 5º, LXXIV, da Constituição é justamente o que trata da assistência jurídica aos necessitados� Aqui repete, praticamente, o artigo anterior�

Inciso X:

“X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela�”

E inciso XI:

“XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do ado‑lescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado�”

No meu entender, esses dispositivos deram novo tratamento à matéria objeto da norma aqui atacada� Assim, sem emenda à inicial, para nela incluir

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esses dispositivos, a ação direta em exame está prejudicada� É o que tem sido decidido, segundo a jurisprudência do Supremo�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Devo dizer, Ministro, que todo o material que nós temos, inclusive documentos chegados até a semana pas‑sada, deram notícia disso como repetição� Para eles, o núcleo e a dúvida tanto existem que, como nós sabemos, até hoje a Defensoria não está exercendo ple‑namente� Essa lei é de 2009; a ação foi ajuizada em 2007� Até agora, a questão está posta, a Defensoria não consegue exercer, porque o Ministério Público faz uma interpretação diferente dessas normas, e exatamente por isso, nós temos no processo inúmeras petições, memoriais dizendo que não precisaria, porque era a mesma questão�

Qual é a questão? A lei que criou a ação civil pública estabelecia – como acabou de lembrar o Ministro Marco Aurélio, fazendo remissão expressa à norma – expressou que competia ao Ministério Público, entre outras entidades, ajuizar ação civil pública� Sobreveio a Lei nº 11�448; e, posteriormente, na Lei da Defensoria Pública, e não na Lei da Ação Civil Pública, sobreveio a norma que tratava da legitimidade� Para dizer se essa ação comportava a aplicação plena dessas outras, e por isso eles trouxeram memoriais, trabalhos, ajunta‑mentos, dizendo: estamos questionando a quem compete entrar com a ação civil pública� E, quando a Lei estabelece a questão da Defensoria, não deixa de haver o conflito; por isso é que, no Brasil inteiro temos os Defensores Públicos com dificuldades para entrar com essas ações�

Então, prossegui, porque acho que o papel do Supremo é exatamente pacificar onde há conflito� O conflito, na matéria, continua como em 2009�

O sr. ministro Teori Zavascki: Não ponho em dúvida que a matéria objeto da norma desperta conflito de entendimento� Acontece que a jurisprudência do Supremo é clara no sentido de que, havendo modificação da lei objeto da ação direta – e, no caso, houve modificação da lei, sem sombra de dúvida –, é indis‑pensável emenda à inicial� Essa é a questão� Se Vossa Excelência está dizendo que houve essa emenda, e que as normas supervenientes também são objeto da ação, eu concordo com Vossa Excelência�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): É, tanto que estão como referência em meu voto, pelo seguinte: o que se pôs em discussão foi a própria Lei da Ação Civil Pública com consequências para as atribuições dos agentes indicados, e não a Lei da Defensoria�

O sr. ministro Teori Zavascki: Sim, mas a Lei da Defensoria a que me referi é superveniente; ela é de 2009� A Lei que estamos tratando é de���

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ADI 3.943

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Sim, mas ela tratava da carreira, e, aqui, o que nós estamos discutindo é: a ação civil pública no Brasil comporta a presença como legitimado ativo para atuação a Defensoria Pública? Por isso é que eles entraram com documentos, memoriais, petições, sem achar ser neces‑sário formalizar aditamento, porque eles estavam questionando a própria con‑cepção do que era ação civil pública, e por isso eu trato disso no meu voto com referência à Lei nº 132, porque o conflito continua�

O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite? A Lei nova não se mostrou específica quanto à ação civil pública�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Não, ela trata da carreira�O sr. ministro Marco Aurélio: A Lei nova apenas se referiu a interesses cole‑

tivos� Isso não quer dizer que, necessariamente – e aparteio já muito confortado, porque conheço o voto de mérito, já que Sua Excelência a relatora me passou, isso uma vez iniciado o julgamento –, a Lei nova apenas reforçou a previsão da legitimidade da Defensoria para a propositura da ação civil pública���

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Ao tratar da carreira, e não na concepção do que é ação civil pública no Brasil�

O sr. ministro Marco Aurélio: E não especificamente�E a Emenda Constitucional, quando deu novo teor ao artigo 134, apenas se

mostrou pedagógica, explícita, pois o que veio à balha com a emenda se conti‑nha na redação primitiva�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Questionamento sobre a própria Emenda Constitucional�

O sr. ministro Roberto Barroso: Presidente, eu, mantendo a minha posição, registro que o Ministro Teori e a observação que ele faz está consentânea, eu diria, com uma certa jurisprudência clássica e tradicional do Supremo Tribu‑nal Federal�

Mas o que eu vejo da observação da Ministra Cármen Lúcia é que a questão jurídica continua pendente, a despeito da superveniência da Lei Complementar�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Igual, não é, Ministro?O sr. ministro Roberto Barroso: E, se a questão jurídica, a mesma, con‑

tinua subsistente, acho que o Supremo não deveria, por uma questão formal, abdicar de se pronunciar; e aí fazendo um pouco uma diferença, Presidente, na aferição dos requisitos processuais quando se trate de um processo subjetivo e quando se trate de um processo objetivo� Aqui a definição dessa tese jurídica e a importância dela ultrapassam os interesses apenas das partes envolvidas nesse processo objetivo� De modo que acho que seria ruim que o Supremo dei‑xasse de sanar essa dúvida, tendo a oportunidade de, razoavelmente, fazê‑lo�

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De modo que, reconhecendo que a jurisprudência do Supremo, classicamente, exige a emenda formal da inicial – que não houve aqui –, mas, pelo que entendi da exposição da Ministra Cármen Lúcia, ela foi debatida e a questão jurídica está em aberto, acho que o interesse público em sanar essa questão sobrepuja o formalismo de se exigir a emenda neste caso�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Neste caso, Ministro, e até, mais uma vez, para esclarecer – esclarecer não, porque o Ministro tem o pleno conhe‑cimento dessa circunstância –, mas as normas posteriores não alteram, elas confirmam o que na questionada se contém, que é diferente da exigência que nós fazemos�

O sr. ministro Marco Aurélio: Indiretamente confirmam�A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Então, o conflito continua�O sr. ministro Roberto Barroso: Ministra Cármen, e nós fizemos isso num

caso em que o Ministro Gilmar era Relator���O sr. ministro Marco Aurélio: Ao cogitar do trato dos interesses coletivos,

reforça a previsão da legitimidade da Defensoria Pública�O sr. ministro Roberto Barroso: A diferença de tratamento no processo

objetivo, há um precedente nosso de Plenário, em que era uma repercussão geral, em que o caso concreto estava prejudicado pela prescrição, mas, tendo em vista o interesse público na definição da tese jurídica, nós, a despeito do problema do caso concreto, fomos adiante para nos pronunciarmos sobre o mérito� Eu acho que é uma analogia possível na situação que estamos enfren‑tando aqui, Presidente�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu tenho a impressão de que temos até um precedente específico em caso de alteração de parâmetro�

O sr. ministro Teori Zavascki: Mas aqui não se trata de alteração do parâmetro�O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu sei� Mas em relação à alteração do parâ‑

metro em que nós admitimos até a possibilidade de fazer a primeira verificação em face do primeiro parâmetro e, depois, do segundo� Aqui, o que se discute é a alteração do próprio objeto�

O sr. ministro Teori Zavascki: Como disse, estou seguindo a jurisprudência tradicional do Supremo, fundada no sentido lógico e prático� Não é a questão de interesse público� Óbvio que há interesse público na solução do tema� A contro‑vérsia a respeito subsiste e é muito importante� Eu conheço o voto de mérito da Ministra Relatora, que teve a gentileza de me adiantar� Seria importante superar essa preliminar para ouvir esse voto� Ocorre que de nada adiantaria declarar a inconstitucionalidade da Lei de 1985 sem declarar também a inconstitucio‑nalidade da Lei nº 132� Essa é a razão prática e lógica da jurisprudência do STF�

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Agora, a Ministra Cármen está afirmando que o artigo 132, no inciso IV, também compõe o objeto desta ação; quer dizer, se tiver que se declarar a incons‑titucionalidade, declare‑se também a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei, é isso?

O sr. ministro Roberto Barroso: Se nós afirmarmos a tese jurídica, está resolvido o problema� Eu acho que não dá para declarar inconstitucional o que não foi discutido�

O sr. ministro Teori Zavascki: Está resolvido em termos� Nós temos aqui como objeto da ação um dispositivo específico da Lei nº 7�347� Se nós pudermos, nessa discussão, alcançar dispositivos supervenientes sem a emenda à inicial, eu concordo�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Conforme o resultado, nem se cogitará disso�

O sr. ministro Roberto Barroso: Ministro Teori, a ação direta tem uma natu‑reza dúplice� Se nós declararmos, julgarmos improcedente o pedido de incons‑titucionalidade, nós estaremos declarando a constitucionalidade� Ao declarar‑mos a constitucionalidade, nós estaremos dizendo que há legitimação ativa da Defensoria Pública para propor a ação civil pública� Então, teremos resolvido o problema em geral� Eu acho que seria excesso de formalismo nós termos que afirmar isso novamente numa outra ação�

O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência me permite? Na conclusão sobre a defesa de interesses coletivos, não se tem proclamada a legitimidade para a ação civil pública� Basta que consideremos o dissídio coletivo, a legiti‑midade dos sindicatos�

O sr. ministro Teori Zavascki: A Ministra‑Relatora está dizendo que, fazendo juízo sobre o artigo 5º, II, da Lei nº 7�347, estaremos fazendo juízo também sobre os dispositivos da Lei Complementar nº 132, que é superveniente, e não teve emenda à inicial�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): O cerne da questão é o mesmo� Permanece�

O sr. ministro Marco Aurélio: Necessariamente, não, porque a Lei Comple‑mentar não versou a legitimidade, especificamente� O critério da especialidade se faz presente�

Não posso, Presidente, ler na referência à defesa de interesses coletivos a legitimação para a ação civil pública, porque há outros meios de defendê‑los�

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, se não é necessariamente, eu vou pedir todas as vênias à Ministra Relatora para julgar prejudicada esta ação, porque o único dispositivo que compõe seu objeto, o inciso II do art� 5º,

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está revogado pela lei superveniente (LC 132/2009) que deu outro tratamento ao tema� E de nada adianta fazer juízo sobre a inconstitucionalidade ou não desse dispositivo se não fizermos juízo semelhante aos demais dispositivos da superveniente da Lei Complementar nº 80, com as modificações da Lei Com‑plementar nº 132�

Assim, na linha da uniforme jurisprudência do STF em casos análogos, vou pedir vênia para julgar prejudicado o objeto da ação, por não comportar em seu objeto essa legislação superveniente�

O sr. ministro Marco Aurélio: O objeto, a meu ver, Presidente, é único: é o inciso II do artigo 5º da lei que disciplina a ação civil pública�

VOTO

O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, também cumprimento a ministra Cármen Lúcia pelo brilhante voto e, como Sua Excelência, julgo impro‑cedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade�

VOTO

O sr. ministro Roberto Barroso: Senhor Presidente, igualmente, cumprimento o voto da Ministra Cármen Lúcia, pela pesquisa, pelo empenho e, sobretudo, pela sensibilidade e pela clara demonstração de apreço e de carinho pela instituição da Defensoria Pública, que compartilho� Considero que a necessidade de estru‑turação da Defensoria Pública nos Estados da Federação é um mandamento constitucional o qual não pode mais ser retardado� A Defensoria Pública é um diferencial brasileiro de inclusão social, de defesa dos interesses dos necessita‑dos� De modo que elogio e me integro a essa visão subjacente ao voto da Ministra Cármen Lúcia, a propósito da Defensoria Pública�

É que observo também, ao julgar improcedente o pedido, que o fato de se estabelecer que exista uma legitimação em tese não exclui a possibilidade de, num eventual caso concreto, não se reconhecer como se tem feito com o Ministério Público� Quando o Ministério Público, por exemplo, por via de ação coletiva, pretendeu tutelar interesses individuais que não eram indisponíveis, como exige a Constituição, o próprio Supremo já rechaçou essa possibilidade, por exemplo, em algumas questões, em matéria tributária, antes da mudança legislativa� O mesmo pode acontecer com a Defensoria Pública, se entrar com ação coletiva em defesa dos sócios do Iate Clube, talvez não seja o caso, ou dos

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titulares de contas no Itaú Personnalité� Mas, fora essas situações extremas, a legitimação, em tese, parece‑me evidentemente existente�

Assim, louvo o admirável voto da Ministra Cármen Lúcia e também julgo improcedente o pedido, sem deixar de louvar as múltiplas sustentações orais empenhadas e compreensíveis, a começar pela do eminente e querido amigo de todos nós Aristides Junqueira, passando pelos eminentes profissionais que se alternaram na tribuna� Mas penso ser fora de dúvida a legitimação da Defen‑soria Pública nesta hipótese�

Acompanho a Relatora, Presidente�

VOTO (Antecipação)

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, gostaria de louvar a excelên‑cia do voto da Ministra Cármen Lúcia, que trouxe aqui uma lição aprofundada sobre a questão debatida, bem como sobre a natureza das ações coletivas e dos direitos coletivos e difusos� Estou de pleno acordo com Sua Excelência� Quando integrante do STJ, apresentei voto‑vista em julgamento dessa matéria (REsp 912�849, Min� José Delgado, 1ª Turma, DJE de 28‑4‑2008)� Isso ocorreu em 2008, antes, portanto, do advento da LC 132/2009� O foco era, na oportunidade, o mesmo dispositivo que compõe o objeto da presente ação� Afirmei, a propósito:

2� As normas infraconstitucionais de legitimação ativa da Defensoria Pública devem ser interpretadas levando em consideração as funções institucionais esta‑belecidas na Constituição� Nos termos do art� 134 da CF, “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”� Esse dispositivo a que se reporta a norma estabelece, por sua vez, que “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Considerado o princípio da máxima efetividade da Constituição e, especialmente, dos instrumentos de tutela dos direitos por ela criados, não há dúvida de que os dispositivos transcritos conferem à Defensoria Pública legiti‑mação ativa ampla no plano jurisdicional, tanto sob o aspecto material, quanto no instrumental� Não há razão para, no plano material, excluir as relações de consumo ou de, no âmbito processual, limitar seu acesso ao mero plano das ações individuais� Portanto, é legítima, do ponto de vista constitucional, a disposição do art� 4º, XI, da Lei Complementar 80, de 1994, segundo a qual “São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras (���) patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado”� E nada impede que, para o adequado exercício

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dessa e das suas outras funções institucionais, a Defensoria Pública lance mão, se necessário, dos virtuosos instrumentos de tutela coletiva�

3� Se é certo que a Defensoria Pública está investida desses poderes, também é certo que a Constituição estabelece, sob o aspecto subjetivo, um limitador que não pode ser desconsiderado: à Defensoria cumpre a defesa “dos necessitados” (CF, art� 134) , ou seja, dos “que comprovarem insuficiência de recursos” (art� 5º, LXXIV)� Essa limitação, que restringe a legitimidade ativa a ações visando à tutela de pessoas comprovadamente necessitadas, deve ser tida por implícita no ordenamento infraconstitucional, como, v.g., no art� 4º da LC 80⁄94 e no art� 5º, II da Lei 7�347⁄85� Sustentamos esse entendimento também em sede doutrinária (Processo Coletivo, 2ª ed�, SP: RT, p�77)� E foi justamente assim que entendeu o STF quando apreciou a constitucionalidade do art� 176, § 2º, V, e e f, da Constituição Estadual do Rio de Janeiro, que trata de legitimação dessa natureza� (ADI 558‑8 MC, Pleno, Min� Sepúlveda Pertence, DJ de 26‑3‑1993�)

Pois bem, essa orientação acabou sendo expressamente adotada pela legis‑lação superveniente, nomeadamente pela Lei Complementar 132/2009, que deu nova redação ao art� 4º da Lei Complementar 80/1994, deixando expressamente consignado, nos incisos que tratam da ação civil pública para tutela de direitos coletivos e difusos, que a legitimação ativa da Defensoria Pública é admitida quando for veiculada em favor de pessoas necessitadas�

Assim, louvando o seu aprofundado voto, acompanho Sua Excelência a Minis‑tra relatora�

VOTO (Antecipação)

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, eu também cumprimento a eminente Relatora pela beleza do voto e acompanho Sua Excelência no sen‑tido da improcedência da ação� Juntarei também aos autos algumas anotações escritas, mas, para não ser repetitiva, eximo‑me de aqui lançá‑las, em especial no que tange à necessidade ou à possibilidade de o juízo aferir a necessidade de adequação, na linha – a doutrina não é, digamos assim, unânime a respeito, mas eu tenho essa compreensão – do que agora foi inclusive destacado pelo eminente Ministro Teori�

Acompanho a Relatora, Presidente�

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ADI 3.943

VOTO (Antecipação)

O sr. ministro Teori Zavascki: CANCELADO�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Pois é! Vossa Excelência

tem toda a razão� Eu acho que a Lei Complementar 132 delimitou o âmbito de ação, o âmbito de cognoscibilidade da ação civil pública impetrada, ou ajui‑zada, pela Defensoria�

O sr. ministro Teori Zavascki: CANCELADO�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Sim, pois não! Acho que

é muito oportuna essa sua intervenção, Ministro Teori�O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, subscrevo tudo que foi dito no

tocante à Defensoria Pública: o efeito da criação do órgão, ou melhor, da ascen‑são do órgão a nível constitucional, no campo dos direitos fundamentais�

A Relatora, ao nos proporcionar o estudo que fez sobre a matéria, sobre a legitimação da Defensoria Pública para propor a ação civil pública, acabou por nos levar a uma lição, a um trecho da jurista Ada Pellegrini Grinover, calcado, inclusive esse trecho, na lição de José Carlos Barbosa Moreira e Cândido Dina‑marco, citados por Mancuso, segundo o qual seria até mesmo um contrassenso a existência de um órgão que só pudesse defender necessitados individualmente, deixando à margem a defesa de lesões coletivas, socialmente muito mais graves�

Presidente, endosso todas as linhas do voto de mérito de Sua Excelência, a ministra Cármen Lúcia, e julgo improcedente o pedido formulado na inicial desta ação direta de inconstitucionalidade�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello: Acompanho, Senhor Presidente, o magnífico voto proferido pela eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, quer no que se refere ao reconhecimento da legitimidade ativa da CONAMP para instauração deste processo de controle normativo abstrato, quer no que concerne à superação da alegada prejudicialidade da presente ação direta, quer, finalmente, quanto à improcedência do pedido, eis que a norma legal ora impugnada não trans-gride a cláusula inscrita no art� 129, III, da Constituição da República, pois, como se sabe, a legitimação do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública, que não é exclusiva do “Parquet”, não impede que a lei a estenda a terceiros, como a Defensoria Pública, nas mesmas hipóteses previstas na legislação processual�

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ADI 3.943

A regra legal objeto de impugnação nesta sede de fiscalização concentrada de constitucionalidade, além de se revelar plenamente compatível com o texto da Constituição da República, atende ao mais elevado interesse social, consi‑derada a relevância que assume, no plano de nosso ordenamento positivo, a instituição da Defensoria Pública�

Quanto a esse aspecto, já tive o ensejo de assinalar, em julgamento proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (ADI 2�903/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO), que a Defensoria Pública como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concreti-zação dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas� É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada orga‑nização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado�

É por isso, Senhor Presidente, que tenho para mim que o exame deste litígio constitucional impõe que se façam algumas considerações prévias em torno da significativa importância de que se reveste, em nosso sistema normativo, e nos planos jurídico, político e social, a Defensoria Pública, elevada à dignidade constitucional de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e reconhecida como instrumento vital à orientação jurídica e à defesa das pessoas desassistidas e necessitadas�

É imperioso ressaltar, desde logo, Senhor Presidente, a essencialidade da Defensoria Pública como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que também são titulares as pessoas carentes e necessitadas� É por esse motivo que a Defensoria Pública foi qualificada pela própria Cons‑tituição da República como instituição essencial ao desempenho da atividade jurisdicional do Estado�

Não se pode perder de perspectiva que a frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pela injusta omissão do Poder Público – que, sem razão, deixa de adimplir o dever de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura aos necessitados o direito à orientação jurídica e à assistência judiciária –, culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável�

A questão da Defensoria Pública, portanto, não pode (e não deve) ser tratada de maneira inconsequente, porque de sua adequada organização e efetiva institu‑cionalização depende a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes

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ADI 3.943

e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão que as coloca, injustamente, à margem das grandes conquistas jurídicas e sociais�

De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir‑se‑ão as liber‑dades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcio‑nado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art� 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art� 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art� 134, ambos da Constituição da República�

É preciso reconhecer, desse modo, que assiste a toda e qualquer pessoa – especialmente quando se tratar daquelas que nada têm e que de tudo neces‑sitam – uma prerrogativa básica que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades�

Torna-se imperioso proclamar, por isso mesmo, que toda pessoa tem direito a ter direitos, assistindo-lhe, nesse contexto, a prerrogativa de ver tais direitos efetivamente implementados em seu benefício, o que põe em evidên-cia – cuidando-se de pessoas necessitadas (CF, art� 5º, LXXIV) – a significativa importância jurídico‑institucional e político‑social da Defensoria Pública�

É que, Senhor Presidente, sem se reconhecer a realidade de que a Constitui‑ção impõe ao Estado o dever de atribuir aos desprivilegiados – verdadeiros marginais do sistema jurídico nacional – a condição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e mere-cedoras do respeito social, não se tornará possível construir a igualdade nem realizar a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, frustrando--se, assim, um dos objetivos fundamentais da República (CF, art� 3º, I)�

A outorga à Defensoria Pública de legitimidade ativa “ad causam” para ajuizar a ação civil pública traduz significativo avanço institucional de nosso ordenamento jurídico, além de representar, notadamente em face das pes‑soas socialmente desassistidas e financeiramente despossuídas, um marco significativo no processo de afirmação dos direitos metaindividuais, cuja pro‑teção tem, naquele instrumento processual, um poderosíssimo meio de tutela e amparo, em sede jurisdicional das comunidades que reúnem pessoas carentes e totalmente marginalizadas�

O brilhante voto da eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, Relatora da pre‑sente causa, mostra-se sólido em seus fundamentos jurídicos e afasta, por

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ADI 3.943

isso mesmo, com absoluta propriedade, a pretensão de inconstitucionalidade ora em exame neste julgamento�

Por tal razão, e acompanhando, integralmente, esse pronunciamento, também julgo improcedente o pedido�

É o meu voto�

VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Eu também, louvando o belíssimo voto da Ministra Cármen Lúcia, em breves palavras, gostaria de salientar que o art� 2º da nossa Constituição estabelece que um dos objetivos da República Federativa do Brasil, dentre outros, é acabar com as desigualdades sociais� A meu ver, a Defensoria Pública, em boa hora, foi criada justamente para auxiliar a cumprir, a dar efetividade a esse dispositivo constitucional, que se complementa com o inciso LXXIV do art� 5º da nossa Carta Magna:

“LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que com-provarem insuficiência de recursos;”

A Ministra Cármen Lúcia, em voto muito denso, didático e realmente para‑digmático, discorre sobre esse importante papel da Defensoria Pública� Chamou‑‑me também a atenção, tal como a do Ministro Marco Aurélio, duas citações de dois eminentes professores da Universidade de São Paulo, da Faculdade de Direito daquela academia tradicional� Primeiro, o da Professora Ada Pel‑legrini Grinover – aqui transcrito no voto da Ministra Cármen – que mostra exatamente isso; seria um contrassenso atribuir a defesa dos necessitados, de forma individual, à Defensoria Pública, e, de outro lado, afastar a possibilidade de ingressar com as ações civis públicas� E, de outro lado, também citando o Professor Rodolfo Camargo Mancuso, que se apoia em Carlos Barbosa Moreira e no próprio Professor Cândido Rangel Dinamarco, também da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mostrando que hoje a tendência mundial é a de se prestigiar as ações coletivas, porque o juiz, com uma só decisão e sem risco de que o Judiciário profira decisões conflitantes, ele atende realmente o maior número de pessoas� Portanto, hoje, é uma tendência mundial, atende ao Princípio da Economia Processual�

Eu acho que Vossa Excelência, Ministra Cármen, esgotou o assunto, como deve ser mesmo no âmbito do Supremo Tribunal Federal� Chegou à conclusão, que vejo ser unânime no sentido da improcedência da Ação Direta de Incons‑titucionalidade, a qual eu acompanho e subscrevo in totum.

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ADI 3.943

EXTRATO DE ATA

ADI 3�943/DF — Relatora: Ministra Cármen Lúcia� Requerentes: Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp (Advogado: Aristi‑des Junqueira Alvarenga)� Interessados: Presidente da República (Advogado: Advogado‑Geral da União) e Congresso Nacional� Amici curiae: Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep (Advogado: Pierpaolo Cruz Bottini), Associação Nacional dos Defensores Públicos da União – Andpu (Advogado: Rafael da Cás Maffini), Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – Ibap (Advogado: Fernando Cavalcanti Walcacer), Associação Nacional dos Procuradores da Repú‑blica – ANPR (Advogada: Juliana Lôbo de Almeida Santos), Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos (Advogados: Marcos Roberto Fuchs e outros), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB (Advogados: Oswaldo Pinheiro Ribeiro Junior e outros)�

Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, reconheceu a legitimi‑dade ativa da requerente, vencido o Ministro Marco Aurélio� Por maioria, o Tribunal rejeitou a preliminar de prejudicialidade da ação, vencido o Ministro Teori Zavascki� No mérito, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou improcedente o pedido formulado na ação� Ausentes o Minis‑tro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, de palestra e compromissos na República Italiana e do Programa de Visitantes Internacionais, por ocasião das Eleições para a Câmara dos Comuns do Reino Unido, e, justificadamente, o Ministro Luiz Fux� Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski�

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Vice‑Procuradora‑Geral da República, Dra� Ela Wiecko Volkmer de Castilho�

Brasília, 7 de maio de 2015 — Fabiane Pereira de Oliveira Duarte, Assessora‑‑Chefe do Plenário�

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AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.007 — SP

Relatora: A sra. ministra Rosa WeberRequerente: Governador do Estado de São Paulo Interessados: Governador do Estado de São Paulo

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE� LEI Nº 12�282/2006 DO ESTADO DE SÃO PAULO� ÓRGÃO ESTADUAL RESPONSÁVEL PELA EMIS‑SÃO DA CARTEIRA DE IDENTIDADE� OBRIGAÇÃO DE REGISTRAR TIPO SANGUÍNEO E FATOR RH QUANDO SOLICITADO PELO INTERESSADO� ALEGADA USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO CIVIL E REGISTROS PÚBLICOS� ART� 22, I e XXV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA� INOCORRÊNCIA�

1� O art� 2º da Lei Federal nº 9�049/1995 autoriza aos órgãos esta‑duais responsáveis pela emissão da Carteira de Identidade regis‑trarem o tipo sanguíneo e o fator Rh, quando solicitados pelos interessados�

2� A disciplina da atuação administrativa do órgão estadual res‑ponsável pela emissão da Carteira de Identidade veiculada na Lei nº 12�282/2006 do Estado de São Paulo observa fielmente a conforma‑ção legislativa do documento pessoal de identificação – cédula de identidade – delineada pela União, inocorrente usurpação da sua competência privativa para legislar sobre registros públicos (art� 22, XXV, da Constituição da República)�

3� Nada dispondo a Lei nº 12�282/2006 do Estado de São Paulo sobre direitos ou deveres de particulares, tampouco há falar em invasão

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ADI 4.007

da competência privativa da União para legislar sobre direito civil (art� 22, I, da Constituição da República)�

Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigrá‑ficas, por maioria e nos termos do voto da Relatora, em julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, vencido o Ministro Luiz Fux� Ausente, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes� Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski, Vice‑Presidente no exercício da Presidência�

Brasília, 13 de agosto de 2014 — Rosa Weber, Relatora�

RELATÓRIO

A sra. ministra Rosa Weber: Trata‑se de ação direta de inconstitucionalidade proposta em face da Lei nº 12.282/2006 do Estado de São Paulo, que “dispõe sobre a inclusão dos dados sanguíneos na Carteira de Identidade emitida pelo órgão de identificação do Estado e dá outras providências”�

Aprovado pela Assembleia Legislativa, o projeto de lei que resultou no diploma normativo impugnado foi sancionado pelo Governador antecessor ao exercente do cargo no momento da propositura da ação�

O autor sustenta a inconstitucionalidade formal do diploma normativo esta‑dual atacado por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre direito civil e registros públicos, a teor do art. 22, I e XXV, da Lei Maior, destacando que, diante do “relevantíssimo efeito que é atribuído à identificação civil pela própria Constituição da República, não se conceberia que a normatiza-ção da matéria pudesse ser diferente em cada unidade federada”�

Requisitadas informações ao órgão do qual emanou a lei impugnada, na forma do art. 6º da Lei nº 9.868/1999, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo manifestou‑se no sentido de que a Lei nº 12�282/2006 foi “editada com fundamento na competência exclusiva dos Estados-membros para legis-larem acerca de seus serviços administrativos (CF, art. 25, caput), nada tendo feito (...) senão clarificar a aplicação de lei federal análoga (Lei federal nº 9.049, de 18 de maio de 1995), que já facultava a adição dos dados relativos ao tipo san-guíneo no documento de identidade”, inocorrendo, em consequência, afronta

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à Constituição da República� Assevera que “a inserção de dados em carteira de identidade não é matéria regida pelo direito civil”, na medida em que con‑substanciadora de “uma relação entre a pessoa civil e o poder público”, sujeita, portanto, ao direito administrativo�

Refere que a expedição de documento pessoal de identidade é atividade administrativa típica, exercida pelo próprio poder público, não por serviços de registros públicos ou notariais�

Alega que a Lei nº 12�282/2006 do Estado de São Paulo, além de inserida na competência do Estado‑membro para se organizar administrativamente (art� 25 da CF), veicula norma sobre proteção e defesa da saúde, de competência legislativa concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, a teor do art� 24, XII, da Carta Política�

O Advogado-Geral da União manifesta‑se pela procedência do pedido, por afronta ao art� 22, I, da Carta Política, ao argumento de que “a normatização a respeito dos requisitos para emissão de Carteira de Identidade, bem como dos elementos que ela deve conter, é tema que se relaciona intimamente com o direito à identidade, o qual, por sua vez, é consagrado pelo Direito Civil como direito da personalidade”�

O Procurador-Geral da República opina pela procedência do pedido na ação direta de inconstitucionalidade, ao registro de que “parece enquadrar-se dentro do rol dos direitos da personalidade, ligando-se à prova de um determi-nado caracter pessoal, que individualiza, junto com outros elementos, o portador do documento”�

Procedida a substituição da relatoria, nos termos do art� 38, IV, a, do RISTF, vieram‑me conclusos os autos�

É o relatório.

VOTO

A sra. ministra Rosa Weber (Relatora): O autor, Governador do Estado de São Paulo, ostenta legitimidade ativa para impugnar, mediante ação direta de inconstitucionalidade, ato normativo produzido no âmbito dessa unidade da Federação�

Eis o teor da Lei nº 12.282/2006 do Estado de São Paulo, que “dispõe sobre a inclusão dos dados sanguíneos na Carteira de Identidade emitida pelo órgão de identificação do Estado e dá outras providências”, diploma normativo impug‑nado na presente ação direta:

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“Art� 1º O órgão estadual responsável pela emissão da carteira de identidade fica obrigado a incluir o tipo sanguíneo e o fator RH.

Art� 2º A inclusão a que se refere o art� 1º dar‑se‑á desde que o interessado a solicite e dependerá exclusivamente da apresentação do respectivo documento comprobatório�

Art� 3º As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta das dotações próprias consignadas no orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art� 4º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da data de sua publicação�

Art� 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação�” (Destaquei�)

Insurge‑se o autor contra a obrigação, que reputa introduzida pela legislação estadual questionada, de fazer constar do documento pessoal de identifica-ção – Carteira de Identidade – emitido pelo órgão estadual responsável, quando solicitado pelo interessado, informação sobre o tipo sanguíneo e o fator Rh�

Funda‑se, a pretensão declaratória de inconstitucionalidade de lei estadual, em alegada afronta ao art. 22, I e XXV, da Carta Política, cuja dicção, relem‑bro, é a de que compete privativamente à União legislar sobre direito civil – inciso I – e registros públicos – inciso XXV�

O devido equacionamento da distribuição constitucional de competências legislativas entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios há de ser feito sempre à luz do princípio federativo, que, vocacionado à instrumenta-lidade requerida pela dinâmica das relações entre as instituições republicanas, ora tende a afirmar a autonomia, ora legitima a uniformização institucional e a cooperação dos entes federados sob uma União soberana�

Nessa ótica, a exigência de conformação legislativa uniforme da matéria no território nacional emerge da própria finalidade social da manutenção de registros públicos – conferir autenticidade, publicidade, segurança e, con‑sequentemente, eficácia a situações e fatos reconhecidos como juridicamente relevantes�

E, revestindo‑se o documento pessoal de identificação – cédula de iden-tidade – da natureza jurídica de registro público, a sua disciplina legislativa sem dúvida compete privativamente à União, forte no art. 22, XXV, da Cons-tituição da República�

Ao fixar a competência privativa da União no tocante à natureza, à forma, à validade e aos efeitos dos registros públicos em geral e, logo, da Carteira de Identidade em particular, a Constituição da República constrange os Estados, o Distrito Federal e os Municípios à observância do quanto disciplinado pela União sobre a matéria�

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Nessa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitu‑cional, por usurpação da competência legislativa da União, a Lei nº 863/1975 do Estado de São Paulo, que, sem amparo em legislação federal, exigia atestado de vacinação contra meningite como requisito para matrícula em estabelecimentos de ensino, admissão no serviço público e obtenção de cédula de identidade, em decisão assim ementada:

“Representação de inconstitucionalidade� Caráter supletivo da competência legislativa estadual em matéria de defesa e proteção da saúde� Lei Estadual incompatível com a sistemática estabelecida por diploma federal editado anteriormente, e que, ainda quando posterior àquela, haverá de prevalecer, uma vez que a precedência cronológica não redime o vício de inconstitucionalidade�” (Rp 945, Relator Ministro Cunha Peixoto, Tribunal Pleno, DJ de 11‑8‑1978�)

Especificamente no que tange ao documento pessoal de identificação, é o art. 1º da Lei Federal nº 7.116/1983 que, ainda hoje, assegura validade e fé pública em todo o território nacional às Carteiras de Identidade emitidas pelos órgãos de identificação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territó-rios� O art. 3º desse diploma legislativo relaciona os elementos que a Carteira de Identidade deverá conter obrigatoriamente e o art. 4º faculta a inclusão de outros dados no documento, desde que solicitado pelo interessado, in verbis:

“Art� 4º Desde que o interessado o solicite a Carteira de Identidade conterá, além dos elementos referidos no art. 3º desta Lei, os números de inscrição do titular no Programa de Integração Social – PIS ou no Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP e no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda�

§ 1º O Poder Executivo Federal poderá aprovar a inclusão de outros dados opcionais na Carteira de Identidade�

§ 2º A inclusão na Carteira de Identidade dos dados referidos neste artigo poderá ser parcial e dependerá exclusivamente da apresentação dos respectivos docu-mentos com probatórios.” (Destaquei�)

O rol das informações cujo registro nos documentos pessoais de identifica‑ção é facultado ao cidadão foi ampliado pela Lei Federal nº 9.049/1995, que assim dispõe:

“Art� 1º Qualquer cidadão poderá requerer à autoridade pública expedidora o registro, no respectivo documento pessoal de identificação, do número e, se for o caso, da data de validade dos seguintes documentos:

1� Carteira Nacional de Habilitação;2� Título de Eleitor;

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3� Cartão de Identidade do Contribuinte do Imposto de Renda;4� Identidade Funcional ou Carteira Profissional;5� Certificado Militar�Art� 2º Poderão, também, ser incluídas na Cédula de Identidade, a pedido

do titular, informações sucintas sobre o tipo sanguíneo, a disposição de doar órgãos em caso de morte e condições particulares de saúde cuja divulgação possa contribuir para preservar a saúde ou salvar a vida do titular�” (Destaquei�)

Verifica‑se, assim, que o Poder Legislativo da União, no exercício da compe‑tência prevista no art. 22, XXV, da Carta Política, introduziu no ordenamento jurídico pátrio, mediante o art. 2º da Lei nº 9.049/1995, autorização para que as autoridades públicas expedidoras – precisamente, os órgãos estaduais res-ponsáveis pela emissão das Carteiras de Identidade – registrem, quando solicitado pelos interessados, informações relativas ao tipo sanguíneo e ao fator Rh nos documentos pessoais de identificação�

Ressalto, por oportuno, que a Lei nº 9�454/1997, ao instituir o número único de Registro de Identidade Civil (RIC) visando à centralização do cadastro de registros de identificação pessoal no Sistema Nacional de Registro de Iden‑tificação Civil, e ainda em fase inicial de implementação, em nada alterou o panorama legislativo federal pertinente, mesmo porque o art� 10, parágrafo único, do Decreto nº 7�166/2010, que a regulamenta, dispõe expressamente que “a implementação do RIC não comprometerá a validade dos demais documentos de identificação”�

Ao determinar que o órgão responsável pela emissão da carteira de iden-tidade no âmbito daquela unidade federativa inclua no documento, quando solicitado pelo interessado, o registro do seu tipo sanguíneo e fator Rh, a Lei nº 12�282/2006 do Estado de São Paulo guarda absoluta conformidade material com a disciplina da União relativamente ao documento pessoal de identifica-ção, particularmente o disposto no art. 2º da Lei Federal nº 9.049/1995, e apenas torna obrigatória, ao órgão estadual responsável pela emissão da Carteira de Identidade, a inclusão do tipo sanguíneo e do fator Rh, desde que solicitado�

Na dicção do art� 2º da Lei Federal nº 9�049/1995, poderão ser incluídas, no documento pessoal de identificação, a pedido do titular, informações sucintas sobre o tipo sanguíneo� Resulta, desse modo, autorizado, permitido, avalizado pela norma federal o registro, pela autoridade pública expedidora do documento pessoal de identificação, de informações relativas ao tipo sanguíneo e ao fator Rh�

Ao dispor que o órgão estadual responsável pela emissão da carteira de iden‑tidade fica obrigado a incluir no documento, quando solicitado pelo interes‑sado, o tipo sanguíneo e o fator Rh, o comando emitido pelo diploma estadual

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impugnado, destinado a ser cumprido pela autoridade pública responsável no âmbito daquela unidade da Federação, está amparado no espaço de normati‑vidade criado pela lei federal, e é por ela legitimado�

Ainda que vedado aos entes federados legislar sobre registros públicos pro‑priamente (forma, natureza, validade, efeitos etc�), insere‑se no âmbito de sua competência legislativa a disciplina da organização e da atuação dos órgãos integrantes das estruturas administrativas dos Estados e do Distrito Federal, aos quais cometida a expedição dos documentos pessoais de identificação. Nesse sentido já pontuava Manoel Gonçalves Ferreira Filho ao comentar o art� 8º, XVII, e, do diploma constitucional anterior, que albergava regra de competência de teor equivalente à hoje inscrita no art� 22, XXV, da Lei Maior:

“Só a União pode legislar sobre a competência, bem como sobre a forma e o regime dos registros públicos� Isto é, só a ela cabe reger essa função pública� Entretanto, é essa função exercida por órgãos estaduais. Assim, é competente o Estado federado para as normas administrativas referentes aos registros públicos, entendidos como órgãos, conquanto não o seja para regular-lhes a função.” (Comentários, 6ª ed�, 1986, p� 87 – Destaquei�)

A Lei nº 12.282/2006 do Estado de São Paulo observa fielmente a confor-mação legislativa do documento pessoal de identificação – cédula de identi-dade – tal como delineada pela União no exercício da competência privativa prevista no art. 22, XXV, da Carta Política� Limita‑se, o diploma legislativo estadual, repito, a orientar a atuação administrativa do órgão estadual res‑ponsável pela emissão da Carteira de Identidade, no tocante ao cumprimento do disposto no art. 2º da Lei Federal nº 9.049/1995, em absoluto incorrendo, a meu juízo, em usurpação de competência privativa da União, porque não está a legislar sobre registros públicos�

Agrego ao voto, nesse passo, os fundamentos esgrimidos no Plenário pelos ilustres pares, no sentido de que, no caso, amparada a atividade legislativa do Estado‑membro, ainda, no legítimo exercício da competência concorrente para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art� 24, XII, da Lei Maior), estabele‑cendo regras que em absoluto atritam, materialmente, com os padrões definidos na legislação federal� Nada há na lei estadual que possa conduzir à invalidade ou ineficácia do documento de identidade expedido pelo órgão estadual incum‑bido dessa atribuição�

Cumpre destacar que o único conteúdo normativo original da Lei nº 12�282/2006 do Estado de São Paulo corresponde à regra contida no seu art� 3º, segundo o qual “as despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta das dotações

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próprias consignadas no orçamento vigente, suplementadas se necessário” – norma restrita a dispor sobre a necessária alocação orçamentária para as despesas da administração local�

Esse entendimento converge com a orientação adotada pelo Plenário desta Suprema Corte ao indeferir integralmente a medida cautelar requerida na ação direta de inconstitucionalidade nº 2.254/ES (Relator Ministro Sepúlveda Per‑tence, DJ de 26‑9‑2003), na qual impugnada, à alegação de afronta ao art. 22, XXV, da Constituição da República, lei estadual determinando, aos ofícios do registro civil, o envio de cópias das certidões de óbito (i) ao Tribunal Regional Eleitoral e (ii) ao órgão estadual responsável pela emissão da carteira de iden‑tidade� Eis a ementa:

“Estado Federal: discriminação de competências legislativas: lei estadual que obriga os ofícios do registro civil a enviar cópias das certidões de óbito (1) ao Tribunal Regional Eleitoral e (2) ao órgão responsável pela emissão da carteira de identidade: ação direta de inconstitucionalidade por alegada usurpação da competência privativa da União para legislar sobre registros públicos (CF, art. 22, XXV): medida cautelar indeferida por falta de plausibilidade dos fun‑damentos, quanto à segunda parte da norma impugnada, por unanimidade de votos – pois impõe cooperação de um órgão da Administração estadual a outro; e, quanto à primeira parte, por maioria – por entender‑se compreendida a hipótese na esfera constitucionalmente admitida do federalismo de coopera-ção.” (ADI 2�254 MC/ES, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 26‑9‑2003�)

Na oportunidade, assentou o eminente decano da Corte, Ministro Celso de Mello, em seu voto:

“Tenho para mim que a determinação constante de legislação estadual, des-tinada ao cumprimento por órgão que atua no âmbito do próprio Estado--membro, revela-se prescrição normativa revestida de plena legitimidade jurídico-constitucional.

É certo que o Supremo Tribunal Federal – embora em contexto diverso – já declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que impunha atribuições à Jus‑tiça Eleitoral, por entender que, em tal hipótese, falece competência ao Estado‑‑membro para formular prescrições normativas destinadas a incidir sobre órgãos situados na estrutura institucional do Poder Judiciário da União, como ocorre com a Justiça Eleitoral�

Não é, porém, o que acontece na espécie ora em exame, pois o diploma legis-lativo em causa veicula cláusula impositiva dirigida, unicamente, a órgão do próprio Estado-membro.

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De outro lado, também vislumbro, na determinação constante da lei estadual em referência, uma típica manifestação normativa que se ajusta, de modo exem‑plar, aos postulados que informam o federalismo de cooperação, que representa, no contexto da nossa organização federativa, um expressivo instrumento de atuação solidária e de cooperação institucional entre as diversas pessoas esta‑tais e instâncias do poder a que se refere, em seu art� 1º, o texto da Constituição da República�” (Destaquei�)

É o que ocorre na espécie, em que os arts. 1º e 2º da Lei nº 12.282/2006 do Estado de São Paulo veiculam comando e instruções endereçados unicamente ao órgão estadual responsável pela emissão do documento, no sentido de que observem o regramento federal�

Inocorrente, pelo mesmo motivo, vício de iniciativa na origem do diploma impugnado, na medida em que uma vez já facultado, por norma federal, o regis‑tro do tipo sanguíneo e do fator Rh na carteira de identidade, a norma estadual concretizadora não implica, ela mesma, aumento de despesa�

A vigência da norma federal autorizando as autoridades públicas expedidoras a registrar, quando solicitadas pelos interessados, informações relativas ao tipo sanguíneo e ao fator Rh nos documentos pessoais de identificação, aliás, delimita a eficácia do diploma estadual impugnado�

Por fim, nada dispondo, a Lei estadual impugnada, sobre direitos ou obri‑gações dos particulares, limitado o seu escopo a disciplinar a organização e a atuação do órgão da Administração estadual responsável pela emissão da Car‑teira de Identidade, tampouco há falar em afronta à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da Constituição da República)�

Ante o exposto, julgo improcedente o pedido de declaração de inconstitu‑cionalidade da Lei nº 12.282/2006 do Estado de São Paulo�

É como voto.

VOTO

O sr. ministro Roberto Barroso: Senhor Presidente, eu estou acompanhando integralmente o voto da Ministra Rosa Weber, pelos fundamentos que Sua Exce‑lência expôs, por achar que há fundamento razoável em se entender que essa provisão estadual se insere na proteção à saúde, o que justificaria a competência do Estado, pela ausência de incompatibilidade material entre a lei estadual e a federal, e porque, Presidente, o Supremo já tem, como regra geral, uma juris‑prudência tão restritiva, em matéria federativa, que acho que, quando haja

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teses razoáveis capazes de legitimar a atuação do Estado‑membro, é por elas que nós devemos optar�

De modo que eu estou acompanhando a Ministra Rosa Weber, a quem cum‑primento pelo seu voto�

VOTO

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, tenho algumas dúvidas que gostaria até de partilhar com os Colegas�

Há aqui duas normas que, segundo o voto da eminente Relatora, são absolu‑tamente de mesmo conteúdo material� A única diferença entre uma e outra é em relação ao dispositivo que trata das despesas� No mais, elas são absolutamente de mesmo conteúdo, do ponto de vista material� Não é caso de competência concorrente�

A sra. ministra Rosa Weber (Relatora): Permita‑me, só para um esclareci‑mento� Não é bem o mesmo conteúdo, porque a Lei Federal autoriza – “poderão incluir” – e a norma estadual determina que a autoridade estadual encarregada, na hipótese de requerimento, cumpra, ela insira� Então, tem uma nuance, uma peculiaridade�

O sr. ministro Teori Zavascki: Eu parti do voto de Vossa Excelência que diz que a lei de São Paulo guarda absoluta conformidade material com a disciplina da União�

A sra. ministra Rosa Weber (Relatora): Entendi que quanto à conformidade material não há atrito�

O sr. ministro Teori Zavascki: Certo� A minha dúvida, não sendo o caso de competência concorrente nem supletiva, é: qual é a natureza jurídica de uma lei estadual ou de uma lei municipal que reproduza integralmente um dispositivo de uma lei federal, editada por legislador estadual ou legislador municipal sem competência normativa sobre a matéria�

No caso, não há dúvida de que a competência é da União� E, aparentemente, o voto da Ministra Relatora está julgando improcedente o pedido justamente porque há essa conformidade material, basicamente�

O sr. ministro Roberto Barroso: Ministro Teori, se considerar o meu argu‑mento de que a norma é de proteção e defesa da saúde, aí, há competência concorrente, pelo artigo���

O sr. ministro Teori Zavascki: Não, mas o conteúdo seria o mesmo�O sr. ministro Roberto Barroso: Aí, não tem problema�

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O sr. ministro Teori Zavascki: Um teria norma geral, outro norma especial� Mas se o conteúdo é o mesmo���

O sr. ministro Roberto Barroso: Mas não é incomum a legislação estadual repetir a legislação federal, mesmo a constituição estadual repete�

O sr. ministro Marco Aurélio: Uma ponderação: segundo o preceito que versa o tipo sanguíneo, teríamos, na lei geral, que é a federal, uma faculdade� E a estadual obriga, compele, o lançamento�

A sra. ministra Rosa Weber (Relatora): A autoridade expedidora estadual a inserir� E a lei federal, se for requerida, poderá�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Mas obriga a pedido

do interessado� Portanto, não há discrepância, em tese, com o disposto na Lei 9�049, de 18 de maio de 1995�

A sra. ministra Rosa Weber (Relatora): Entendi que há uma conformidade material de conteúdo� E, naquilo que diz respeito ao Estado, o que diz a lei? “Olha, se requererem, conforme previsto na Lei Federal, está obrigado, há obri‑gação de inserir”� E não há faculdade de inserir� Eu compreendi assim�

O sr. ministro Teori Zavascki: Vou acompanhar a Ministra Relatora, mas deixo explicitada a minha dúvida a respeito dessa situação, ou seja, da natureza ou da legitimidade da legislação estadual que reproduza uma legislação federal, sem ter competência formal para isso�

A questão é diferente quando uma norma reproduz, por exemplo, outra de hierarquia superior: uma lei que reproduza uma norma constitucional; ou um decreto que reproduza uma lei� Nessas hipóteses, eventuais antinomias se resol‑vem pela hierarquia� Mas, aqui, não há hierarquia� A legitimidade, em caso de antinomia, resolver‑se‑ia pela competência legiferante� Todavia, considerando que a Ministra Relatora afirmou ser possível identificar um certo comando administrativo interno por parte da legislação estadual, o problema parece não se colocar�

Com essa dúvida, e sem me comprometer com a tese, vou acompanhar a Ministra Relatora neste caso específico�

VOTO

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, eu também queria fazer uma observação� Eu anotei que, ainda que não fosse o caso, o fato de a legislação local reproduzir a federal não minimiza ou corrige o vício da inconstitucio‑nalidade formal�

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Eu também entendo, como o Ministro Teori, que a competência é exclusiva da União� E assenta assim: A outorga constitucional de competência legislativa privativa a certo ente federativo interdita a atuação legiferante de todos os demais, ainda que esses últimos editem normas idênticas àquela válida, isso porque a questão da inconstitucionalidade formal é logicamente anterior ao exame do con-teúdo da lei. Essa questão da competência é logicamente antecedente� É a mesma coisa, mutatis mutandis, quando falamos de coisa julgada, pouco importa que um outro juiz venha a julgar igual ao juiz anterior a mesma causa� A decisão é idêntica, mas havia uma coisa julgada anterior� Então, não pode o juiz posterior julgar a mesma causa�

Por outro lado, Presidente, faço algumas digressões no sentido de que esses documentos de identificação que atinem à cidadania devem ter uma uniformi‑dade nacional� Essa inclusão, no meu modo de ver, do grupo sanguíneo, é algo que diz respeito, de maneira bifronte, a duas matérias de competência privativa da União� A primeira, dos direitos da personalidade, que eu encaro diferente‑mente do Ministro Barroso; e a segunda, com relação aos registros públicos, que têm de ser uniformes no Brasil inteiro� Já imaginou cada Estado ter um modelo de carteira de identidade, cada Estado eventualmente legislar? Eu citei aqui vários exemplos� Na verdade, já há uma lei federal regulando essa matéria�

Então, realmente eu também fiquei com essa perplexidade� E sem preocupa‑ção de isolamento, mas respeitando o belíssimo voto da Ministra Rosa Weber, estou concluindo pela inconstitucionalidade dessas leis�

O sr. ministro Roberto Barroso: Presidente, só um breve comentário: eu entendo os argumentos do Ministro Fux e se eu concordasse com as premis‑sas, eu concordaria com a conclusão� Porém, o que move o meu raciocínio? O Estado tem competência concorrente em matéria de proteção e defesa à saúde� A inclusão do tipo sanguíneo e do fator RH pode ser decisivo em matéria de saúde, sobretudo num caso de acidente ou de uma providência médica emer‑gencial� Como a norma estadual, no exercício dessa competência que eu alvitro, está abrangida pelo elenco de possibilidades deixados pela lei federal, que diz que é possível este acréscimo, eu acho que, da conjugação da competência con‑corrente do Estado e a harmonia com a legislação federal, eu acho que valida a lei estadual� De modo que, a gente deve ser um tanto deferente à legislação estadual, pelo princípio federativo, se não for indispensável declará‑la inválida�

Essa é a minha linha de entendimento, entendendo e respeitando a posição do Ministro Fux�

O sr. ministro Luiz Fux: Eu entendo� Na verdade, essa posição ideológica do Ministro Barroso é exatamente prestigiar a Federação, para que ela seja

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uma Federação unitária, totalitária e, portanto, já em outra oportunidade, manifestou uma certa aversão, que eu também tenho, em alguns exageros do princípio da simetria�

Mas, aqui no caso específico, o parecer do Ministério Público, ele é bem con‑tundente nesse sentido� Veja o que diz o Ministério Público:

“11� De fato, isolando‑se o mérito da intenção dos parlamentares estaduais, é de se atender a um regime apropriado de repartição de competências legislati‑vas, dentro do qual se possa esperar que os documentos pessoais de identidade, por constituírem valioso instrumento de exercício de cidadania dos brasileiros, atendam a padrões rígidos de confecção� A uniformidade, dentro desse esquema, é elemento essencial à utilidade desses documentos, que, para maior eficácia, devem ter composição similar em todas as unidades da Federação�

12� A matéria, como aqui tratada, parece enquadrar‑se dentro do rol dos direitos da personalidade, ligando‑se à prova de um determinado caracter pessoal, que individualiza, junto com outros elementos, o portador do documento� A violação ao art� 22, I, da Lei Fundamental, nesse caso, se evidencia, realmente�”

Eu fiquei bem convencido com essas razões do Ministério Público, pedindo vênia, evidentemente à eminente Ministra Rosa, que trouxe um voto bastante���

Declaro procedente a ação direta�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, eu acompanho a Minis‑tra‑Relatora, apenas fazendo uma ponderação que não me leva, neste caso, a divergir: é que a norma, a lei questionada, em seu artigo 1º, ao determinar que o órgão estadual responsável fica obrigado a incluir o tipo sanguíneo, dá a ordem a um órgão estadual, e essa lei é de iniciativa parlamentar� Nossa jurisprudên‑cia consolidada é no sentido de que essas matérias seriam de competência do titular do Poder Executivo� Entretanto, estou acolhendo a fundamentação da Ministra Rosa Weber no sentido de que, aqui se tem uma “repetição” do que já foi determinado por uma norma nacional, o que significaria que não haveria alteração, porque se faculta ao cidadão o direito de pedir que isso conste� Esta possibilidade já estava aventada�

Portanto, não há realmente alteração da competência, porque, se houvesse, se fosse só da lei estadual, pediria vênia para divergir�

Entretanto, estou acolhendo exatamente a fundamentação, tal como tão bem exposta pela Ministra Rosa Weber, no sentido de que aqui se tem o que

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já estava previsto como autorização, “poderão”� Então, na verdade, o órgão já deveria estar devidamente organizado para fazer face a essa demanda�

Essa a razão pela qual – apenas chamando a atenção para este ponto – acom‑panho, com as vênias do Ministro Luiz Fux, o voto da Ministra Relatora�

VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, estivesse no Plenário o ministro Célio Borja, certamente ficaria muito satisfeito com as palavras do ministro Luís Roberto Barroso� Precisamos reconhecer a existência de uma federação: precisamos reconhecer aos estados autonomia governamental e – admito que relativa – uma certa autonomia normativa�

No caso concreto, Presidente, temos que a saúde – e estamos no campo da intangibilidade da saúde – é direito de todos e dever do Estado, gênero� Mais do que isso: a Lei federal nº 9�049/1995, quanto ao artigo 2º, que versa a possibilidade de inserção do dado sanguíneo, encerra princípio geral, não obstaculizando a atuação dos estados quanto à obrigatoriedade, uma vez pretenda o cidadão, da inserção do tipo sanguíneo e do fator RH na carteira de identidade�

Essa obrigação foi a criada pela lei do Estado de São Paulo, aliás, dando um pontapé inicial na disciplina louvável, tanto assim que, três anos depois, houve a repetição, praticamente a pura repetição, na normatividade pelo Estado de Santa Catarina�

O fato de os demais Estados, até aqui, não terem legislado a respeito não é óbice, não é fator que conduza à declaração de inconstitucionalidade dos dois diplomas que estão em mesa para apreciação�

Por isso, louvando o cuidadoso voto da ministra Rosa Weber, e que, até certo ponto, justifica a origem de Sua Excelência – digo sempre que credito à Justiça do Trabalho alguma sensibilidade que tenho na arte de julgar –, declaro a cons‑titucionalidade dos dois diplomas�

ESCLARECIMENTO

O sr. ministro Roberto Barroso: Senhor Presidente, só um brevíssimo comen‑tário porque esse é um tema que me aflige, o Ministro Marco Aurélio suscitou a questão da federação no Brasil� Atento à jurisprudência do Supremo, verifico que há uma tensão relativamente contínua, em matéria de federação, entre o princípio republicano e o princípio federativo�

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O que acontece? Muitas vezes, as oligarquias locais legislam de maneira abusiva, pelo autofavorecimento� Diante desses antecedentes, o Supremo criou uma jurisprudência centralizadora na defesa dos ideais republicanos e acabou comprimindo, de maneira exacerbada, a meu ver, a autonomia governamental dos estados a que se referiu Vossa Excelência, inclusive a legislativa�

De modo que, na medida em que se consiga elevar o patamar político da legis‑lação estadual, é preciso reconhecer a ela mais espaço para que nós possamos ter até um pouco de experimentalismo democrático no âmbito estadual e não ficarmos todos mimetizados por um modelo federal que nem sempre prova bem� De modo que esse equilíbrio entre republicanismo e federalismo é que tem marcado a dificuldade de se firmar a interpretação ideal nessa matéria� Vossa Excelência bem lembrou o eminente, querido Ministro Célio Borja, que honrou este Tribunal e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro�

O sr. ministro Marco Aurélio: E a Câmara dos Deputados�O sr. ministro Roberto Barroso: E a Câmara dos Deputados�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, vejam como tenho razão: sob

pena de profundo prejuízo para a memória do Tribunal, não podemos perder o que é veiculado – e não podemos perder, em termos de documentação – pelo ministro Celso de Mello, o nosso decano�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Apoio Vossa Excelência integralmente nesse aspecto�

ESCLARECIMENTO

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, apenas uma observação, respei‑tando as opiniões em contrário: é que, efetivamente, eu não vejo a existência desse condomínio legislativo; acho até interessante esses novos rumos que o Plenário tem tomado no sentido de prestigiar a autonomia estadual� Acho que seria isso o ideal, não para criar uma desarmonia nesse campo, entre Estados e União�

Agora, eu também coloco em dúvida que, se essa lei tivesse o teor diverso do teor da lei federal, se o Plenário legitimaria a sua constitucionalidade� Tenho certeza de que não�

Por isso eu mantenho o meu voto�

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VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Eu vou pedir vênia a Vossa Excelência, Ministro Fux, e acompanhar integralmente o voto brilhante da Ministra Rosa Weber, pelas razões enunciadas� Mas queria aduzir rapidamente que tenho em mãos aqui o parecer do Ministério Público Federal, subscrito pelo Procurador à época, Dr� Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, que pugnava pela procedência das duas ações, invocando a existência de ofensa aos direitos da personalidade�

A mim me parece, com o devido respeito e com a vênia necessária, que não há ofensa aos direitos da personalidade no caso, que seriam basicamente direito ao nome, à honra, à imagem, à privacidade, porque, aqui, o que fizeram essas duas leis estaduais foi realmente aprovar medidas de caráter salutar, benfazejo, de plena razoabilidade, porquanto se destinam à proteção da saúde, que se situa, como muitos disseram, no campo da competência concorrente, constitucional‑mente garantida aos membros da Federação em termos legislativos�

Haveria, sim, a meu ver, Ministro Fux – e Vossa Excelência é um especialista em Direito Privado, Direito Processual, especialmente –, ofensa aos direitos da personalidade se essas leis tivessem introduzido uma nota depreciativa com relação ao portador da carteira de identidade� Suponhamos, por exemplo, que obrigassem o registro de uma doença incurável ou de uma deficiência física, ou, quiçá, de antecedentes criminais� Aí, sim, nós estaríamos diante de uma, não só ofensa aos direitos da personalidade, mas, também, a uma ofensa ao conteúdo material da Constituição, o que protege justamente a intimidade, a privacidade, a honra, a imagem etc�

O sr. ministro Luiz Fux: Eu compreendo essa preocupação de Vossa Exce‑lência, mas, a seguir o entendimento que aqui foi firmado, inserir na carteira de identidade que alguém é portador do HIV é uma medida de prevenção à saúde pública�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Bem, mas seria uma medida, de certo modo, estigmatizante, porque, de certo modo, nós sabemos que, hoje, felizmente, essa doença é curável ou, pelo menos, é possível que exis‑tam medidas paliativas, conservadoras, para manter o portador dessa doença com vida durante muitos anos�

Mas, de qualquer maneira – eu até fiz essa observação quase que corrobo‑rando com a argumentação de Vossa Excelência –, se outro fosse o conteúdo, eu me animaria a dizer que as normas estaduais seriam inconstitucionais� Mas,

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aí, eu creio que há plena coincidência com aquilo que a Constituição regula‑menta e disciplina�

EXTRATO DE ATA

ADI 4�007/SP — Relatora: Ministra Rosa Weber� Requerente: Governador do Estado de São Paulo (Advogado: PGE‑SP – Marcos Fábio de Oliveira Nusdeo)� Interessados: Governador do Estado de São Paulo e Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo�

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto da Relatora, julgou improcedente a ação direta, vencido o Ministro Luiz Fux� Ausente, neste jul‑gamento, o Ministro Gilmar Mendes� Falou, pelo Estado de São Paulo, o Dr� Thiago Luís Sombra� Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski, Vice‑Presidente no exercício da Presidência�

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, Vice‑Presidente no exercício da Presidência� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Procurador‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros�

Brasília, 13 de agosto de 2014 — Fabiane Pereira de Oliveira Duarte, Assessora‑‑Chefe do Plenário�

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AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE SEGURANÇA 31.769 — DF

Relator: O sr. ministro Celso de MelloAgravante: Salem Jorge CuryAgravado: Conselho Nacional de Justiça – CNJLitisconsorte passiva: União

MANDADO DE SEGURANÇA – DELIBERAÇÃO NEGATIVA EMANADA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) – INEXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE, DE QUALQUER RESOLUÇÃO DESSE ÓRGÃO DE CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO QUE HAJA DETERMINADO, ORDENADO, INVALIDADO, SUBS-TITUÍDO OU SUPRIDO ATOS OU OMISSÕES EVENTUALMENTE IMPUTÁ‑VEIS A TRIBUNAL DE JURISDIÇÃO INFERIOR – NÃO CONFIGURAÇÃO, EM REFERIDO CONTEXTO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – HIPÓTESE DE INCOGNOSCIBILIDADE DA AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBU‑NAL FEDERAL – RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO�

– O pronunciamento do Conselho Nacional de Justiça que con-substancie recusa de intervir em determinado procedimento, ou, então, que envolva mero reconhecimento de sua incompetência, ou, ainda, que nada determine, que nada imponha, que nada avoque, que nada aplique, que nada ordene, que nada invalide, que nada des‑constitua, não faz instaurar, para efeito de controle jurisdicional, a competência originária do Supremo Tribunal Federal�

– O Conselho Nacional de Justiça, ao não determinar a adoção de qualquer medida ou a execução de qualquer providência no caso concreto, não pratica, em tal contexto, ato qualificável como lesivo ao direito vindicado pela parte interessada�

MS 31�769 AgR

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MS 31.769 AgR

– O Conselho Nacional de Justiça, em tais hipóteses, considerado o próprio conteúdo negativo de suas resoluções, não revê, não supre nem substitui, por qualquer deliberação sua, atos ou omissões even-tualmente imputáveis a órgãos judiciários em geral, inviabilizando--se, desse modo, o acesso ao Supremo Tribunal Federal, que não pode converter‑se em instância revisional ordinária dos atos e pronuncia‑mentos administrativos emanados desse órgão de controle do Poder Judiciário� Precedentes�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Dias Tof‑foli, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por una-nimidade de votos, em negar provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator� Não participou, justificadamente, deste julgamento, o Senhor Ministro Gilmar Mendes� Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Cármen Lúcia�

Brasília, 1º de setembro de 2015 – Celso de Mello – Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Celso de Mello (Relator): Trata-se de recurso de agravo que, tempestivamente interposto, insurge-se contra decisão, por mim proferida, que não conheceu do mandado de segurança impetrado pelo ora recorrente�

Como tive o ensejo de assinalar na prolação da decisão recorrida, cuida-se de mandado de segurança impetrado contra deliberação que, proferida pelo Conselho Nacional de Justiça nos autos do Pedido de Providências nº 0007002‑31�2012�2�00�0000, Rel� Cons� BRUNO DANTAS, está assim fundamentada:

“Malgrado os argumentos apresentados pelo Requerente em sua peça de ingresso, não vislumbro, na espécie, a presença dos requisitos autorizadores da concessão de provimento liminar, sobretudo porque o seu direito ao reaproveita-mento não se afigura tão óbvio e absoluto como informado, não sendo passível de ser atestado numa análise preliminar.

Ademais, o Recurso Especial 1.177.612 interposto no STJ ainda não transitou em julgado, pois restam dois embargos de declaração pendentes de apreciação.

Por outro lado, uma vez que o Requerente já se encontra em disponibilidade

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desde o ano de 2006, percebendo proventos proporcionais ao tempo de serviço, não vislumbro a presença do ‘periculum in mora’.

Assim, diante dos elementos trazidos aos autos, não considero demonstrada a presença de suporte fático-jurídico ensejador de concessão de medida liminar, nem tampouco a ocorrência de qualquer ilegalidade ou irregularidade clara praticada pelo Tribunal requerido que justifique a concessão da medida liminar pleiteada, razão pela qual a indefiro.” (Grifei.)

Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça, em decisão colegiada de que resultou a confirmação do julgamento realizado pelo E� Tribunal Regio‑nal Federal da 3ª Região, “conheceu do pedido como procedimento de controle administrativo e, no mérito, negou provimento ao recurso” (grifei) em acórdão assim ementado:

“RECURSO ADMINISTRATIVO. RETRATAÇÃO. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS CONHECIDO COMO PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL REGIONAL FEDE-RAL DA 3ª REGIÃO. JUIZ FEDERAL COLOCADO EM DISPONIBILIDADE PELO ÓRGÃO ESPECIAL EM RAZÃO DE PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. INSURGÊNCIA QUANTO À AUSÊNCIA DE FIXAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA SANÇÃO IMPOSTA. PEDIDO DE REAPROVEITAMENTO NEGADO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE.

1. Recurso Administrativo interposto com vistas a reformar decisão mono-crática que não conheceu do pedido e determinou o arquivamento liminar do procedimento, em virtude da ausência de interesse geral da matéria discutida.

2. Entendimento do Plenário do CNJ de que o interesse geral é presumido quando a matéria subjacente for de natureza disciplinar.

3 . Retratação da decisão monocrática proferida quanto ao juízo de admissibilidade.

4. Ilegalidade não demonstrada.5. Pedido julgado improcedente.” (Grifei.)

A parte impetrante, ora agravante, alega, em síntese, em suas razões, o que se segue:

“41. – Ocorre que Vossa Excelência, através de decisão datada de 17 de agosto do corrente ano, entendeu que a competência para processamento e julgamento do feito não seria do E. Supremo Tribunal Federal.

42. – Inicialmente, foi trazida à baila, dentro do ‘decisum‘ em debate, que ‘o Con-selho Nacional de Justiça não determinou a adoção de qualquer medida nem impôs a execução de qualquer providência no caso em análise, não lhe sendo imputável, por isso mesmo, qualquer ato qualificável como lesivo ao direito vindicado pela parte impetrante’.

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43. – Todavia, ‘ data máxima vênia’, deixou de ser observado na v. decisão que a manutenção da situação ‘a quo’ no caso em tela tem caráter tão lesivo quanto a alteração de uma situação realizada de forma equivocada.

44. – A negativa da liminar em apreço prolonga a situação angustiante do ora Agravante, sendo certo que o principal argumento que justifica a decisão do Conse-lheiro é a visão unilateral quanto à ótica financeira da problemática apresentada.

45. – Isso porque o ilustre Conselheiro Bruno Dantas aponta não entender exis-tência de ‘periculum in mora’ – ‘uma vez que o Requerente já se encontra em disponibi-lidade desde o ano de 2006, percebendo proventos proporcionais ao tempo de serviço’.

46. – Ademais, o tempo havido entre o afastamento do Agravante e a data atual é uma pilastra que fortalece ainda mais a imprescindibilidade da urgência quanto ao reaproveitamento de seu cargo.

47. – Evidente que, ao ingressar com pedido de reaproveitamento de seu cargo, o Agravante não o faz objetivando satisfação meramente financeira, mas especial-mente objetiva seu contentamento pessoal e profissional.

48. – Também é sabido que o Agravante passou por uma situação bastante delicada com o falecimento de todos os seus familiares, e que isso chegou a abalar fortemente suas condições.

49. – Neste contexto, verifica-se que o reaproveitamento do cargo, ‘ in casu’ ultra-passa a disponibilidade e necessidade, que são facilmente observadas ao se anali-sar a abertura de diversos concursos públicos para o cargo do Agravante desde seu afastamento, mas também aborda o lado humanitário da questão.

50. – Insta reforçar que a demora quanto à finalização de processo que defi-nirá esta possibilidade lançada e, ainda mais grave, a ausência de prazo quanto a esta sanção imposta ao Agravante, apenas agravam ainda mais a situação em que se encontra.

51. – Desta feita, há que se considerar que, apesar de se tratar de decisão que não alterou o ‘status a quo’ do ora Agravante, a sua manutenção pode ter efeitos tão prejudiciais quanto a imposição de nova situação lesiva em outro determinado caso.

52. – Ademais, verifica-se que o art. 102, I, ‘r’ da Constituição Federal, incluído através da Emenda Constitucional nº 45, não teve em seu corpo a condicionante apresentada, conforme se verifica:

‘Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacio-

nal do Ministério Público.’53. – Resta evidente que não houve a intenção de se restringir o processamento e

julgamento de determinadas ações quando da elaboração e aprovação da Emenda Constitucional que admitiu a alínea ‘r’ no inciso I do art. 102 da Constituição Federal.

54. – Caso fosse objetivada a admissão de ‘mandamus’ tão somente em casos em que se observasse caráter modificativo quando da decisão proferida pelo órgão apontado, certamente essa condicionante estaria expressa no texto constitucional.

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55. – Ademais, como exaustivamente demonstrado acima, a manutenção da situação anterior é de prejuízo imensurável, e revela imprescindível a busca de guarida nesta E. Corte.

56. – Assim, conforme o exposto acima, para se alcançar a Justiça, mostra-se imperioso o conhecimento do presente recurso para o conhecimento e processa-mento do ‘mandamus’ impetrado anteriormente.

(ii) Do ato atacado – Conselho Nacional de Justiça – decisão contra qual se insurgiu acostada aos autos

57. – Conforme exposto acima, inicialmente há de se conhecer o Mandado de Segurança em debate, independente do cunho modificativo que carregou a liminar atacada no bojo do referido ‘writ’.

58. – Outrossim, caso esse não seja o entendimento de Vossa Excelência, o que é aqui admitido a fim de se desenvolver o debate, ainda há que se verificar o segundo ponto trazido no bojo da r. decisão combatida, qual seja o fato de ‘o Supremo Tri-bunal Federal não dispor de competência originária para apreciar mandados de segurança que se insurjam’, na realidade, ‘contra atos ou omissões imputáveis a Tribunais judiciários em geral (como o E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no caso), pelo fato de não constarem do rol exaustivo constante do art. 102, I, ‘ d’, da Constituição, torna-se incognoscível a presente ação mandamental (Súmula 624/STF)’.

59. – Inicialmente, cumpre observar que o exmo. Ministro aponta que ‘o Supremo Tribunal Federal não dispor de competência originária para apreciar mandados de segurança que se insurjam, na realidade, contra atos ou omissões imputáveis a Tribunais judiciários em geral (como o E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no caso)’.

60. – Quanto a esta primeira parte da argumentação trazida a embasar a r. ‘ decisum’ proferida nos autos do Mandado de Segurança nº 31.769, importa salientar que não se trata de decisão imputável ao E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

61. – Embora tenha existido um procedimento Administrativo Discipli-nar que tramita perante o E. Tribunal Regional Federal, qual seja o PAD nº 2003.03.00.007098-0, o Mandado de Segurança em debate foi impetrado contra ato do Conselho Nacional de Justiça, como já apostado anteriormente.

62. – A decisão atacada através do referido ‘mandamus’ fora colacionada quando de sua impetração, justamente a fim de se demonstrar que o ato insurgido no bojo do ‘writ’ se limitava às colocações apresentadas pelo Conselheiro que lavrou a decisão referente à medida liminar pleiteada pelo ora Agravante.

63. – Embora inicialmente o afastamento do Agravante tenha se dado por conta de decisão proferida no PAD supracitado, a manutenção de sua situação decorreu da decisão proferida pelo Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, de forma que a competência indicada através da Constituição Federal para impe-tração, processamento e julgamento do ‘writ’ é desta C. Corte.

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64. – Não se trata de ataque direto à decisão proferida por aquele E. Tribunal Regional Federal, mas insurgência à r. ‘decisum’ proferida pelo exmo. Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.

65. – Embora ambas as decisões tenham sido proferidas dentro de uma mesma linha argumentativa, não deve ser desconsiderada a segunda decisão, a qual negou a medida liminar intentada, apoiando-se totalmente na primeira decisão, proferida pelo E. TRF da 3ª Região.

66. – Ademais, embora apenas a primeira decisão, proferida pelo E. Tribunal Regional Federal, tenha tido efeitos práticos modificativos, evidente que a apre-sentação de Pedido de Providências perante o Conselho Nacional de Justiça, com pedido liminar, não pode ser desconsiderada do mundo jurídico.

67. – Vale ressaltar que, conforme anteriormente exposto, ainda que a decisão atacada no Mandado de Segurança não tenha modificado o ‘status a quo’ do Agra-vante, sua manutenção possui cunho tão prejudicial quanto uma decisão modifi-cativa igualmente injusta.

68. – Assim, resta claro que não se trata de competência originária do C. STF para apreciar ‘mandamus’ que se insurge contra omissão imputável ao E. TRF da 3ª Região, mas de competência determinada pelo art. 102, I, ‘r’, da Constituição Federal.

69. – Nesta toada importa analisar o segundo pilar argumentativo apresen-tado pelo exmo. Ministro Celso de Mello, que afasta a competência do C. STF para processamento e julgamento do ‘mandamus’ ‘pelo fato de não constarem do rol exaustivo constante no art. 102, I, ‘ d’, da Constituição’.

70. – Inicialmente, cumpre esclarecer que de fato não se trata de decisão impu-tável ao E. Tribunal Federal da 3ª Região, como colocado através das razões de direito colocadas acima.

71. – Isso porque a decisão atacada no mandamus nº 31.769 é oriunda do Con-selho Nacional de Justiça, de forma que a competência constitucionalmente esta-belecida para impetração do remédio constitucional em comento é do C. Supremo Tribunal Federal.

72. – Vale ressaltar que não se trata de descabimento do art. 102, I, ‘d’, mas total adequação ao expresso no mesmo artigo e inciso, na alínea ‘r’, que aponta que é de competência do C. STF julgar e processar ‘as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público’.

73. – Desta feita, resta claro que se trata de ‘mandamus’ cuja competência para processamento e julgamento é exclusivamente do C. Supremo Tribunal Federal, de forma que se mostra imperioso o conhecimento e provimento do presente Agravo Regimental.” (Grifei.)

O Ministério Público Federal, em manifestação da lavra do eminente Senhor Procurador‑Geral da República, Dr� RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS,

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ao opinar pelo não provimento do recurso de agravo, assim resumiu e apreciou a questão:

“MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. ATUAÇÃO NEGATIVA. INCOM-PETÊNCIA DO STF. DECISÃO SUPERVENIENTE SUBSTITUINDO O ATO APONTADO COMO COATOR. PERDA DE OBJETO.

1. Mandado de Segurança interposto contra decisão do Conselheiro Relator no Pedido de Providências 0007002-31.2012.2.00.0000, que negou o pedido de medida liminar formulado pelo ora impetrante.

2. É pacífica a jurisprudência do STF no sentido de que, tratando-se de ato praticado pelo CNJ que não possui o condão de modificar a situação jurídica do interessado, o que se amolda ao presente caso, não há instituição de competência da Suprema Corte.

3. Resta prejudicado o pedido, por perda de objeto, em razão da superveniência de decisão de mérito substituindo o ato apontado como coator.

4. Parecer pelo não conhecimento do ‘writ’.Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado

por Salem Jorge Cury, juiz federal em disponibilidade, contra decisão do Conselho Nacional de Justiça nos autos do Pedido de Providências n. 0007002-31.2012.2.00.0000, que negou o pedido de medida liminar, formulado pelo ora impetrante naqueles autos, por ausência de requisitos autorizadores, nos seguintes termos:

‘Vistos, etc.Trata-se de Pedido de Providências formulado por Salem Jorge Cury – juiz

federal posto em disponibilidade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço, por decisão unânime do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) proferida nos autos do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) nº 2003.03.00.007098-0 –, por meio do qual pretende, liminarmente, o seu retorno à função jurisdicional (reaproveitamento), ao argumento de que:

a) o órgão Especial do TRF3 não estabeleceu limite de prazo para o cumpri-mento da sanção de disponibilidade;

b) já se transcorreram mais de seis anos em que sofre as consequências da disponibilidade; e

c) obteve decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.177.612, que decidiu pela não manutenção da penalidade de perda de cargo.

Por reputar fundamental a manifestação do Tribunal requerido a respeito dos fatos narrados na inicial antes de decidir acerca do pedido liminar, deter-minei sua intimação ‘ad cautelam’ (Evento 11), tendo esse defendido a ausência de plausibilidade do direito do Requerente e pugnado pelo indeferimento da liminar pleiteada.

É o relatório, decido.Malgrado os argumentos apresentados pelo Requerente em sua peça de

ingresso, não vislumbro, na espécie, a presença dos requisitos autorizadores da

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concessão de provimento liminar, sobretudo porque o seu direito ao reaproveita-mento não se afigura tão óbvio e absoluto como informado, não sendo passível de ser atestado numa análise preliminar.

Ademais, o Recurso Especial 1.177.612 interposto no STJ ainda não transitou em julgado, pois restam dois embargos de declaração pendentes de apreciação.

Por outro lado, uma vez que o Requerente já se encontra em disponibilidade desde o ano de 2006, percebendo proventos proporcionais ao tempo de serviço, não vislumbro a presença do ‘periculum in mora’.

Assim, diante dos elementos trazidos aos autos, não considero demonstrada a presença de suporte fático-jurídico ensejador de concessão de medida liminar, nem tampouco a ocorrência de qualquer ilegalidade ou irregularidade clara praticada pelo Tribunal requerido que justifique a concessão da medida liminar pleiteada, razão pela qual a indefiro.’

Inicialmente, discorre o impetrante sobre os fatos que originaram o Processo Administrativo n. 2003.03.00.007098/0 perante o Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, que lhe aplicou a sanção disciplinar de disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

Narra que o Órgão Especial do TRF da 3ª Região não teria delimitado o período de cumprimento da sanção disciplinar, já havendo transcorrido mais de 6 anos em disponibilidade, e que o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 177.612 teria cassado a pena de perda do cargo público do ora impetrante.

Inconformado, o ora impetrante apresentou reclamação ao Conselho Nacional de Justiça, que foi autuada como Pedido de Providências n. 0007002-31.2012.2.00.0000, no qual o Conselheiro Relator negou o pedido de medida liminar.

Sustenta, em síntese, que o ato apontado como coator, que negou a liminar plei-teada no referido Pedido de Providências, teria violado seu direito líquido e certo de reaproveitamento nos quadros da Justiça Federal da 3ª Região (i) por excesso de prazo na sanção de disponibilidade imposta; (ii) pela conveniência à administração pública no pronto reaproveitamento do impetrante, e (inconstitucionalidade) pelo atendimento ao princípio da eficiência.

Requer a concessão de medida liminar no presente ‘writ para suspender os efeitos do acórdão proferido pelo Órgão Especial do TRF da 3ª Região nos autos do processo administrativo n. 2003.03.00.007098-0, bem como a inscrição do impetrante no Concurso de Remoção de Juiz Federal da 3ª Região.

Por fim, no mérito, requer seja determinado o imediato reaproveitamento do impetrante, por excesso de prazo na sanção de disponibilidade imposta e por con-veniência da administração pública.

O Ministro Relator indeferiu o pedido de medida liminar e determinou ao impe-trante que juntasse aos autos as faltantes e indispensáveis provas documentais neles referidas.

A União ingressou nos autos como litisconsorte passiva.Vieram os autos à Procuradoria Geral da República para parecer.É o breve relatório.

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O parecer é pelo não conhecimento do ‘writ’.Insurge-se o impetrante contra decisão do Conselho Nacional de Justiça, profe-

rida no Pedido de Providências n. 0007002-31.2012.2.00.0000 por ele formulado, que indeferiu o pedido de medida liminar para suspender o acórdão do Órgão Especial do TRF da 3ª Região que julgou improcedente seu pedido de aproveitamento.

Preliminarmente, incumbe registrar que, em consulta ao sítio eletrônico do CNJ, verifica-se que o pedido de reaproveitamento do ora impetrante foi negado no mérito pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça, mantendo-se, assim, a decisão do TRF da 3ª Região, com a seguinte ementa:

‘RECURSO ADMINISTRATIVO. RETRATAÇÃO. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS CONHE-CIDO COMO PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL REGIO-NAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. JUIZ FEDERAL COLOCADO EM DISPONIBILIDADE PELO ÓRGÃO ESPECIAL EM RAZÃO DE PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. INSURGÊNCIA QUANTO À AUSÊNCIA DE FIXAÇÃO DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA SANÇÃO IMPOSTA. PEDIDO DE REAPROVEITAMENTO NEGADO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE.

1. Recurso Administrativo interposto com vistas a reformar decisão mono-crática que não conheceu do pedido e determinou o arquivamento liminar do procedimento, em virtude da ausência de interesse geral da matéria discutida.

2. Entendimento do Plenário do CNJ de que o interesse geral é presumido quando a matéria subjacente for de natureza disciplinar.

3. Retratação da decisão monocrática proferida quanto ao juízo de admissibilidade.

4. Ilegalidade não demonstrada.5. Pedido julgado improcedente.’

Como se observa, o ato apontado como coator – que limitou-se a negar o pedido de medida liminar – foi substituído pelo julgamento de mérito do Pedido de Provi-dências n. 0007002-31.2012.2.00.0000 pelo Conselho Nacional de Justiça.

Resta, assim, prejudicado o pedido constante da presente ação, por perda de objeto, uma vez o ato impugnado, que era o móvel do ‘writ’, deixou de existir.

Ainda se eventualmente superada a preliminar de prejudicialidade da pre-sente ação, melhor sorte não assiste ao impetrante.

Verifica-se uma contradição na inicial do presente mandado de segurança, que aponta decisão do Conselho Nacional de Justiça como sendo o ato coator, mas requer providências com relação à decisão do TRF da 3ª Região.

É de se anotar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem restringido o alcance da regra contida no art. 102, I, ‘r’, da Constituição, em ordem a não trans-formar a Corte em instância revisora das decisões do Conselho Nacional de Justiça.

Ao suscitar a questão de ordem nos MS n. 26.710 e 26.749, o Ministro Sepúlveda Pertence bem expôs o tema:

‘Estou em que é de proceder a uma redução teleológica da letra dessa nova cláusula de competência do Supremo Tribunal, de modo a não convertê-lo,

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mediante o mandado de segurança, em verdadeira instância ordinária de revi-são de toda e qualquer decisão do Conselho Nacional de Justiça.

É preciso distinguir entre as deliberações do CNJ que impliquem interven-ção na órbita da competência ordinária confiada, em princípio, aos juízos ou tribunais submetidos ao seu controle daquelas que, pelo contrário, traduzam a recusa de intervir.

Quanto às primeiras, as positivas, não há dúvida de que o CNJ se torna respon-sável pela eventual lesão ou ameaça de lesão a direito consequentes, submetidas ao controle jurisdicional do Supremo Tribunal Federal: assim, por exemplo, as que avoquem processos disciplinares em curso nos tribunais, apliquem san-ções administrativas, desconstituam ou revejam decisões deles ou lhes ordene providências.

Diversamente, com as da segunda categoria, as negativas, o Conselho não substitui por ato seu o ato ou omissão dos tribunais, objeto da reclamação, que, por conseguinte, remanescem na esfera de competência ordinária destes.’

Veja-se no mesmo sentido:‘MANDADO DE SEGURANÇA – DELIBERAÇÃO NEGATIVA EMANADA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) – INEXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE, DE QUALQUER RESOLU-ÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA QUE HAJA DETERMINADO, ORDENADO, INVALIDADO, SUBSTITUÍDO OU SUPRIDO ATOS OU OMISSÕES EVENTUALMENTE IMPUTÁVEIS A TRIBUNAL DE JURISDIÇÃO INFERIOR – NÃO CONFIGURAÇÃO, EM REFERIDO CONTEXTO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – HIPÓTESE DE INCOGNOSCIBILIDADE DA AÇÃO DE MANDADO DE SEGU-RANÇA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

– O pronunciamento do Conselho Nacional de Justiça que consubstancie recusa de intervir em determinado procedimento, ou, então, que envolva mero reconhecimento de sua incompetência, ou, ainda, que nada determine, que nada imponha, que nada avoque, que nada aplique, que nada ordene, que nada invalide, que nada desconstitua não faz instaurar, para efeito de controle juris-dicional, a competência originária do Supremo Tribunal Federal.

– O Conselho Nacional de Justiça, em tais hipóteses, considerado o próprio conteúdo negativo de suas resoluções (que nada provêem), não supre, não subs-titui nem revê atos ou omissões eventualmente imputáveis a órgãos judiciários em geral, inviabilizando, desse modo, o acesso ao Supremo Tribunal Federal, que não pode converter-se em instância revisional ordinária dos atos e pro-nunciamentos administrativos emanados desse órgão de controle do Poder Judiciário. Precedentes.’

(MS 27.712-AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Plenário, DJe 31.8.2011)No mesmo sentido, confiram-se, ainda, as seguintes decisões monocráticas:

MS 31.970/DF (DJe 10/05/2013) e MS 26.252/DF (DJe 14/08/2009), Relator Minis-tro Ricardo Lewandowski; MS 26.580/DF (DJe 04/06/2010) e MS 26.778/DF (Dje 09/05/2008), Relator Ministro Celso de Mello; MS 27.895/GO (DJe 07/04/2009),

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MS 28.792/DF (DJe 10/05/2010) e MS 30.435/DF (DJe 22/03/2011), todos de relatoria da Ministra Ellen Gracie.

O objeto do presente ‘mandamus’ consiste em deliberação negativa do Conselho Nacional de Justiça que, ao negar o pedido de medida liminar formulado pelo ora impetrante, não substituiu o ato originalmente questionado do TRF da 3ª Região, de modo que não se vislumbra qualquer ilegalidade ou abusividade na decisão do próprio Conselho. Na verdade, o que se pretende é reverter o ato praticado pelo TRF da 3ª Região no âmbito administrativo.

Ausente, ‘ in casu’, a prolação de ato positivo pelo CNJ, a atrair a competência originária desta Suprema Corte para o processamento da presente ação, impõe-se seu não conhecimento, conforme jurisprudência desta Suprema Corte.

Ante o exposto, o parecer é pelo não conhecimento do presente mandado de segurança.” (Grifei.)

Sendo esse o contexto, submeto os presentes autos à apreciação desta colenda Turma�

É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello (Relator): Não assiste razão à parte agravante, eis que a decisão agravada – cujos fundamentos são ora reafirmados – ajusta--se, com integral fidelidade, à diretriz jurisprudencial firmada pelo Supremo Tribunal Federal na matéria em exame�

Impende destacar, desde logo, tal como já o fizera na decisão recorrida, que o Conselho Nacional de Justiça, na deliberação impugnada em sede mandamen‑tal, não determinou a adoção de qualquer medida ou a execução de qualquer providência no caso em análise, não lhe sendo imputável, por isso mesmo, qual-quer ato qualificável como lesivo ao direito vindicado pelo recorrente�

Isso significa que a alegada violação seria atribuível, se fosse o caso, ao E� Tribunal Regional Federal da 3ª Região, e não ao Conselho Nacional de Justiça�

Impõe-se reconhecer, desse modo, a evidente falta de competência do Supremo Tribunal Federal para, em sede originária, processar e julgar este mandado de segurança�

Sendo taxativas as hipóteses pertinentes à impetrabilidade originária de mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal, revela-se evidente a incompetência absoluta desta Corte para apreciar o presente “writ”, eis que o órgão de que emanou a alegada transgressão constitucional não é o Conselho Nacional de Justiça, mas, como já ressaltado, o Tribunal Regional Federal da

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3ª Região, que não figura, contudo, entre os órgãos previstos no rol exaustivo inscrito no art� 102, I, “d”, da Constituição da República�

Cumpre rememorar, neste ponto, a advertência feita pelo eminente Ministro GILMAR MENDES no exame do pedido de medida cautelar no MS 27.077/DF, Rel� Min� AYRES BRITTO, quando enfatizou, no que tange às deliberações negativas do Conselho Nacional de Justiça, a questão pertinente à incognosci-bilidade do mandado de segurança impetrado contra esse órgão:

“É de se destacar a necessidade de proceder a uma redução do âmbito de prote-ção do art. 102, I, ‘r’, da Constituição de 1988 (tal como proposta pelo Min. Sepúlveda Pertence em QO nos MS nº 26710 e MS nº 26749), pois o Supremo Tribunal Fede-ral não pode ser transformado em instância revisora das decisões do Conselho Nacional de Justiça. Nesse sentido, afirmava o Ministro Sepúlveda Pertence: ‘(...) é preciso distinguir as deliberações do CNJ que implicam intervenção na órbita da competência ordinária confiada, em princípio, aos juízos ou tribunais submetidos ao seu controle das que traduzem a recusa de intervir. Esclareceu, quanto às primeiras, as positivas, não haver dúvida de que o CNJ se torna responsável pela eventual lesão ou ameaça de lesão a direito conseqüentes, submetidas ao controle jurisdicional do Supremo, como, por exemplo, as que avoquem processos discipli-nares em curso nos tribunais, apliquem sanções administrativas, desconstituam ou revejam decisões deles ou lhes ordene providências, mas que, diversamente, quanto às segundas, as negativas, o Conselho não substitui por ato seu o ato ou a omissão dos tribunais, objeto da reclamação, que, por conseguinte, remanescem na esfera de competência ordinária destes. MS 26710 QO/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 2.8.2007. (Informativo 474, 1º a 3 de agosto de 2007).’

Assim, como no presente caso houve deliberação negativa por parte do Conselho Nacional de Justiça e estão pendentes de apreciação, pelo plenário deste Supremo Tribunal Federal, as Questões de Ordem nos MS nº 26.710 e MS nº 26.749, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, nas quais o relator do feito levou à apreciação da Corte seu entendimento de que, nestes casos (deliberação negativa do CNJ), não cabe a esta Corte conhecer do mandado de segurança, apresenta-se, no mínimo, duvidosa a plausibilidade jurídica do pedido.

Ora, em prevalecendo a tese do Min. Sepúlveda Pertence, haverá de se reconhecer a inexistência de qualquer ato coator praticado pelo CNJ em situações como a dos autos. Isso porque, na verdade, o ato que se busca reverter, no presente mandado de segurança, é uma Portaria do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (Portaria nº 3.068/2007 – TJ/AM) (fl.38), o que não se admite.

Ademais, ressalte-se que a ordem constitucional assegura ao Conselho Nacio-nal de Justiça espectro de poder suficiente para o exercício de suas competências (art. 103-B, CF/88), não podendo esta Corte substituí-lo no exame discricionário dos motivos determinantes de suas decisões, quando estas não ultrapassem os limites da legalidade e da razoabilidade. (…).” (Grifei.)

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Cabe registrar, ainda, por necessário, que o Plenário do Supremo Tribu‑nal Federal, ao apreciar questão essencialmente idêntica à versada nesta sede recursal, fixou entendimento que desautoriza a pretensão jurídica deduzida pela parte ora agravante (MS 27.148-AgR/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO – MS 28.202-AgR/DF, Rel� Min� RICARDO LEWANDOWSKI – MS 29.118-AgR/DF, Rel� Min� CÁRMEN LÚCIA, v.g.):

“1. No pedido de revisão administrativa da pontuação de títulos obtida pelo Impe-trante, o Conselho Nacional de Justiça entendeu que nada havia a decidir, porque a questão fora apreciada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Deliberação negativa do Conselho Nacional de Justiça que não substituiu o ato originalmente questio-nado. Ausência de abuso ou ilegalidade na decisão do Conselho Nacional de Justiça.

2. Não conhecimento desse pedido por incompetência do Supremo Tribunal Fede-ral para processar e julgar mandado de segurança que tem por ato coator decisão do Tribunal de Justiça estadual.

3. Impossibilidade de se transformar o Supremo Tribunal Federal em instância revisora das decisões administrativas do Conselho Nacional de Justiça.

4. Ausência de direito líquido e certo do Impetrante para a oferta de serventias vagas, não constantes no edital.

5. Na parte conhecida, segurança denegada.”(MS 27.026/DF, Rel� Min� CÁRMEN LÚCIA – grifei.)

É importante referir, neste ponto, que a orientação plenária ora exposta tem sido observada em julgamentos proferidos por ambas as Turmas desta Suprema Corte (MS 27.713-AgR/DF, Rel� Min� TEORI ZAVASCKI – MS 30.324-AgR/DF, Rel� Min� DIAS TOFFOLI – MS 31.453-AgR/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO – MS 31.836-AgR/DF, Rel� Min� TEORI ZAVASCKI – MS 32.648-AgR/DF, Rel� Min� CÁRMEN LÚCIA – MS 32.727-AgR/DF, Rel� Min� ROSA WEBER – MS 32.729-AgR/RJ, Rel� Min� CELSO DE MELLO – MS 32.961-AgR/DF, Rel� Min� LUIZ FUX – MS 33.246-AgR/DF, Rel� Min� CÁRMEN LÚCIA, v.g.):

“AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DE JUS-TIÇA. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. APURAÇÃO DE IRREGULA-RIDADE NA COMPOSIÇÃO DO ‘QUORUM’ DE DELIBERAÇÃO SOBRE A INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E AFASTAMENTO DE MAGISTRADO. ‘QUORUM’ FORMADO PELO NÚMERO DE MEMBROS EFETIVOS APTOS A VOTAR. EXCLU-SÃO DE JUÍZES CONVOCADOS. MANUTENÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA SEGUNDA REGIÃO. SITUAÇÃO JURÍDICA DO IMPETRANTE INALTERADA. DELIBERAÇÃO NEGATIVA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. NÃO CABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.”

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(MS 27.980-AgR/DF, Rel� Min� CÁRMEN LÚCIA – grifei.)

“MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ATO DE DELIBERAÇÃO NEGATIVA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. DESCABIMENTO. PRECEDENTES DO PLENÁRIO.

1. É firme a jurisprudência do STF no sentido de que não cabe mandado de segurança contra ato de deliberação negativa do Conselho Nacional de Justiça, por não se tratar de ato que importe a substituição ou a revisão do ato praticado por outro órgão do Judiciário.

2. Agravo regimental a que se nega provimento.”(MS 28.046-AgR/SP, Rel� Min� RICARDO LEWANDOWSKI�)

“AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. DELIBERAÇÃO NEGATIVA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. NÃO CABIMENTO DA IMPETRAÇÃO.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que a previsão constitucional estabelecida no art. 102, I, ‘r’, da Constituição Federal exclui os casos em que a deliberação proferida pelo CNJ ou CNMP, dentro das competên-cias de tais órgãos, resulta na manutenção dos provimentos administrativos oriundos das instâncias fiscalizadas pelos Conselhos. Precedente.

Agravo regimental conhecido e não provido.”(MS 32.717-AgR/DF, Rel� Min� ROSA WEBER – grifei.)

Torna-se claro, portanto, que, não obstante impetrado este mandado de segurança contra o Conselho Nacional de Justiça, a impugnação (se cabível) deveria insurgir‑se, na realidade, não contra referido órgão, mas contra o E� Tribunal Regional Federal da 3ª Região, pois é deste o ato que, supostamente, teria transgredido o direito vindicado pelo ora recorrente�

No caso em análise, a deliberação do Conselho Nacional de Justiça traduziu mera confirmação da decisão proferida nos autos do Pedido de Providências nº 0007002‑31�2012�2�00�0000, nada determinando, nada impondo, nada avocando, nada aplicando, nada ordenando, nada invalidando nem desconstituindo, a significar que o Conselho Nacional de Justiça, órgão ora apontado como coator, não substituiu nem supriu, por qualquer resolução sua, atos ou omissões even-tualmente imputáveis ao E� Tribunal Regional Federal da 3ª Região�

Desse modo, e pelo fato de o Supremo Tribunal Federal não dispor de com‑petência originária para apreciar mandados de segurança que se insurjam, na realidade, contra ato do E� Tribunal Regional Federal da 3ª Região, órgão estranho ao rol constante do art� 102, I, “d”, da Constituição, torna-se incog-noscível a ação mandamental (Súmula 624/STF)�

Sendo assim, e em face das razões expostas, nego provimento ao presente recurso de agravo, mantendo, em consequência, por seus próprios fundamen-tos, a decisão ora questionada�

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É o meu voto�

EXTRATO DE ATA

MS 31�769 AgR/DF — Relator: Ministro Celso de Mello� Agravante: Salem Jorge Cury (Advogados: Raquel Botelho Santoro e outros)� Agravado: Conselho Nacional de Justiça – CNJ (Advogado: Advogado‑geral da União)� Litisconsorte passiva: União (Advogado: Advogado‑geral da União)�

Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator� Não participou, justificadamente, deste julgamento, o Senhor Ministro Gilmar Mendes� Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Cármen Lúcia� Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli�

Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli� Presentes a sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Teori Zavascki� Ausente, justificada‑mente, a Senhora Ministra Cármen Lúcia� Subprocurador‑Geral da República, Dr� Paulo Gustavo Gonet Branco�

Brasília, 1º de setembro de 2015 — Ravena Siqueira, Secretária�

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HABEAS CORPUS 106.172 — MS

Relator: O sr. ministro Gilmar MendesPaciente: Marcos Aurélio Correia de AndradeImpetrante: Defensoria Pública da UniãoCoator: Superior Tribunal de Justiça

Habeas corpus. 2� Concurso de agravantes e atenuantes� Preponde‑rância da reincidência sobre a confissão espontânea� Art� 67 do CP� Constrangimento ilegal não caracterizado� 3 Ordem denegada�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráfi‑cas, por unanimidade de votos, indeferir a ordem, nos termos do voto do Relator�

Brasília, 22 de fevereiro de 2011 — Gilmar Mendes, Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Gilmar Mendes: Trata‑se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União, em favor de Marcos Aurélio Correia de Andrade, contra acórdão formalizado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Jus‑tiça, nos autos do HC 147�073/MS, rel� Min� Gilson Dipp� Eis o teor da ementa desse julgado:

“HABEAS CORPUS� ANÁLISE� OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO� VIA INADEQUADA� NECESSIDADE DILAÇÃO PROBATÓRIA� PENA� REDUÇÃO� CONFISSÃO ESPONTÂNEA E

HC 106�172

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HC 106.172

REINCIDÊNCIA� CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE� PREPONDERÂNCIA� INTELIGÊNCIA DO ART� 67 DO CP� CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO� ORDEM PARCIAL‑MENTE CONHECIDA E DENEGADA�

I� O habeas corpus não pode, como se fosse um segundo recurso de apelação, analisar a argüida ofensa ao princípio acusatório, ou inocência do acusado, uma vez que descabida na via eleita ampla dilação probatória� Precedentes�

II� O réu se defende dos fatos e não da capitulação dada ao crime� Assim, opor‑tunizado o contraditório, descabe falar em nulidade do decisum, na hipótese de mero ajustamento do nomen juris�

III� Reconhecer a atipicidade da conduta ou proceder à análise da alteração na dosimetria da pena, demanda, inevitavelmente, profundo reexame do material cognitivo produzido nos autos, o que não se coaduna com a via estreita do writ, salvo em caso de evidente ilegalidade� Precedentes�

IV� A lei assegura a preponderância da reincidência, dos motivos do crime e da personalidade do agente sobre quaisquer outras circunstâncias como, no caso em apreço, a confissão espontânea�

V� Ordem parcialmente conhecida, e denegada�”

Conforme consta dos autos, o paciente foi condenado à pena de 7 (sete) anos de reclusão, em regime fechado, e ao pagamento de 46 (quarenta e seis) dias‑‑multa, pela prática dos crimes tipificados nos art� 155, caput, do Código Penal e 14 da Lei 10�826/2003�

Contra essa decisão, a defesa interpôs recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, ao qual foi negado provimento�

Inconformada, a defesa impetrou ordem de habeas corpus no Superior Tri‑bunal de Justiça, cuja ordem foi indeferida, consoante se depreende da ementa transcrita�

Neste writ, a defesa requer, em síntese, a compensação da circunstância agra‑vante da reincidência com a circunstância atenuante da confissão�

Alega que a confissão espontânea, relacionada a um aspecto positivo da per‑sonalidade do agente, deve ser compensada com a agravante da reincidência, a teor do que determina o art� 67 do Código Penal�

A Procuradoria‑Geral da República manifestou‑se pela denegação da ordem�É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Gilmar Mendes (relator): Conforme relatado, a defesa requer, em síntese, a compensação da circunstância agravante da reincidência com a circunstância atenuante da confissão�

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HC 106.172

Alega que a confissão espontânea, relacionada a um aspecto positivo da per‑sonalidade do agente, deve ser compensada com a agravante da reincidência, a teor do que determina o art� 67 do Código Penal�

Entendo não assistir razão à defesa�Conforme preceitua o art� 67 do Código Penal:

“Art� 67 ‑ No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar‑se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo‑se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência�”

Como se vê, a reincidência é uma circunstância agravante que prepondera sobre as circunstâncias atenuantes, com ressalva daquelas que decorram dos motivos determinantes do crime ou da personalidade do agente, o que não é o caso da confissão espontânea�

Nesse sentido, colho lição da doutrina:

“Preceitua o art�67 do Código Penal que, no concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar‑se do limite indicado pelas circunstâncias preponderan‑tes, considerando‑se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência�

Portanto, na segunda fase da fixação da pena, o magistrado deve fazer prepon‑derar a agravante da reincidência, por exemplo, cobre a atenuante da confissão espontânea�” [NUCCI, Guilherme de Souza� Manual de direito penal: parte geral: parte especial� 4� ed� São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008�]

Esse também é o entendimento desta Corte:

“HABEAS CORPUS� PENA� FIXAÇÃO� Concurso de atenuante e agravante� Preponde‑rância da reincidência sobre a confissão espontânea� Ausência de ilegalidade� O tribunal de origem, ao reformar a sentença de primeira instância, elevou a pena acima do minimo legal a vista do que dispõe o artigo 67 do Código Penal� Ine‑xistência de ilegalidade� Habeas corpus indeferido� [HC 71094, Relator(a): Min� FRANCISCO REZEK, SEGUNDA TURMA, julgado em 29‑3‑1994, DJ de 4‑8‑1995 PP‑22442 EMENT VOL‑01794‑01 PP‑00192]

HABEAS CORPUS� CONSTITUCIONAL� PENAL� CONCURSO DE ATENUANTE E AGRA‑VANTE� ALEGAÇÃO DE QUE A CONFISSÃO ESPONTÂNEA É CIRCUNSTÂNCIA PREPON‑DERANTE� PEDIDO DE COMPENSAÇÃO COM A REINCIDÊNCIA: IMPOSSIBILIDADE� PRECEDENTES� 1� Pedido de compensação, na segunda fase da imposição de pena ao réu, da agravante da reincidência com a atenuante da confissão espontânea� 2� A reincidência é uma circunstância agravante que prepondera sobre as ate‑nuantes, com exceção daquelas que resultam dos motivos determinantes do

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HC 106.172

crime ou da personalidade do agente, o que não é o caso da confissão espontâ‑nea� Precedentes� 3� A confissão espontânea é ato posterior ao cometimento do crime e não tem nenhuma relação com ele, mas, tão somente, com o interesse pessoal e a conveniência do réu durante o desenvolvimento do processo penal, motivo pelo qual não se inclui no caráter subjetivo dos motivos determinantes do crime ou na personalidade do agente� 4� Ordem denegada� [HC 102486, Relator(a): Min� CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 6‑4‑2010, DJE‑091 DIVULG 20‑05‑2010 PUBLIC 21‑05‑2010 EMENT VOL‑02402‑05 PP‑01094]

HABEAS CORPUS� ROUBO� CONCURSO DE ATENUANTES E AGRAVANTES� ARMA NÃO APREENDIDA E NÃO PERICIADA� PREPONDERÂNCIA DA REINCIDÊNCIA SOBRE A CONFISSÃO ESPONTÂNEA� ORDEM DENEGADA� 1� A questão de direito tratada nos autos deste habeas corpus diz respeito à possível exclusão da causa especial de aumento de pena decorrente do uso de arma de fogo, que não foi apreendida nem periciada, e à preponderância da reincidência sobre a atenuante da confissão espontânea� 2� O reconhecimento da causa de aumento prevista no art� 157, § 2º, I, do Código Penal prescinde da apreensão e da realização de perícia na arma, quando provado o seu uso no roubo, por outros meios de prova� 3� A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que não se exclui a causa de aumento prevista no art� 157, § 2º, I, do Código Penal por falta de apreensão da arma, quando comprovado o seu uso por outro meio de prova� Precedentes� 4� Corretas as razões do parecer da Procuradoria‑Geral da República ao concluir que o artigo 67 do Código Penal é claro “ao dispor sobre a preponderância da reincidência sobre outras circunstâncias, dentre as quais enquadram‑se a con‑fissão espontânea� Afinal, a confissão não está associada aos motivos determi‑nantes do crime, e ‑ por diferir em muito do arrependimento ‑ também não está relacionada à personalidade do agente, tratando‑se apenas de postura adotada pelo réu de acordo com a conveniência e estratégia para sua defesa”� 5� Não há ilegalidade quando a circunstância agravante da reincidência prevalece sobre a atenuante da confissão espontânea na aplicação da pena� Nestes termos, HC 71�094/SP, rel� Min� Francisco Rezek, Segunda Turma, unânime, DJ 04�08�95� 6� Habeas Corpus denegado” (HC 99446, Relator(a): Min� ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 18‑8‑2009, DJE‑171 DIVULG 10‑09‑2009 PUBLIC 11‑09‑2009 EMENT VOL‑02373‑02 PP‑00330 RT v� 98, n� 890, 2009, p� 535‑541)�

Ante o exposto, por reputar irretocável o acórdão exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, denego a ordem de habeas corpus.

É como voto�

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HC 106.172

EXTRATO DE ATA

HC 106�172/MS - Relator: Ministro Gilmar Mendes� Paciente: Marcos Aurélio Correia De Andrade� Impetrante: Defensoria Pública Da União (Procurador: Defensor Público‑Geral Federal� Coator: Superior Tribunal De Justiça

Decisão: Indeferida a ordem, nos termos do voto do Relator� Decisão unânime� Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa�

Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes� Presentes à sessão a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Ayres Britto� Ausentes, justificada‑mente, os Senhores Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa� Subprocurador‑‑Geral da República, Dr� Paulo da Rocha Campos�

Brasília, 22 de fevereiro de 2011 - Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador�

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HABEAS CORPUS 111.081 — RS

Relator: O sr. ministro Luiz FuxPaciente: Marcelo Chaves da SilvaImpetrante: Defensoria Pública da UniãoCoator: Superior Tribunal de Justiça

Execução penal� Habeas corpus� Tráfico de entorpecentes (Art� 33 da Lei n� 11�343/2006)� Detração na pena relativa a crime posterior de período de prisão provisória por crime ante‑rior, do qual resultou absolvição: Interpretação do art� 42 do Código Penal�

1. A detração pressupõe a custódia penal pelo mesmo crime ou por delito posterior, por isso que inadmissível empreender a opera‑ção do desconto em relação a delitos anteriores, como se lícito fosse instaurar uma “conta‑corrente” delinquencial, viabilizando ao impu‑tado a prática de ilícitos impuníveis amparáveis por créditos de não persecução�

2. O artigo 42 do Código Penal determinava, em seu parágrafo único, o desconto do tempo de prisão provisória indevidamente cum‑prido, relativo à condenação por crime posterior, invalidada em deci‑são judicial recorrível�

3. A detração, nesse caso, resultaria em uma espécie de bônus em favor do réu, ou seja, em um crédito contra o Estado, e representaria a impunidade de posteriores infrações penais�

4. A supressão do parágrafo único do artigo 42 inaugurou exe‑gese que admite a detração por prisão em outro processo (em que houve absolvição ou extinção da punibilidade), desde que a prática

HC 111�081

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HC 111.081

do delito em virtude do qual o condenado cumprirá pena tenha sido anterior�

5. O artigo 42 do Código Penal, no seu parágrafo único, veiculava norma condizente com a realidade da época, mas inimaginável nos dias atuais, porquanto é, data venia, surrealista admitir a possibili‑dade de o réu creditar‑se de tempo de prisão provisória para abater na pena relativa a crime que eventualmente venha a cometer�

6. A detração na pena de crime posterior do tempo de prisão pro‑visória relativa a crime anterior, ainda que haja absolvição é tese já interditada pela jurisprudência da Suprema Corte: RHC 61�195, Rel� Min� Francisco Rezek, DJ de 23‑9‑1983 e HC 93�979, Rel� Min� Cármen Lúcia, DJE de 19‑6‑1998�

7. In casu, o paciente cumpre pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime fechado, por crime de tráfico de drogas praticado em 30-9-2009, e requereu a detração dos períodos de 2-2-2006 a 15-2-2006 e 18-3-2008 a 28-4-2008, relativos à prisão provi‑sória cumprida em outro processo�

8. Ordem denegada�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator�

Brasília, 28 de fevereiro de 2012 — Luiz Fux, Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Luiz Fux (Relator): Trata‑se de habeas corpus impetrado contra acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal cuja ementa possui o seguinte teor:

“EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. DETRAÇÃO. ANTERIOR PRISÃO CAUTELAR EM PROCESSOS DISTINTOS. IMPOSSIBILIDADE.

1. À luz do disposto no arts. 42 do Código Penal e 111 da Lei de Execução Penal, somente se admite a detração de prisão processual ordenada em outro processo em que absolvido o sentenciado ou declarada tenha sido a extinção

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HC 111.081

da sua punibilidade, quando a data do cometimento do crime de que trata a execução seja anterior ao período pleiteada (Precedentes: HC nº 155.049/RS, SEXTA TURMA, DJE de 21-3-2011; HC nº 152.366/RS, QUINTA TURMA, DJE de 21-6-2010).

2. Na hipótese dos autos, o fato ilícito que ensejou a condenação do paciente se deu em 30-9-2009, depois, portanto, de sua segregação cautelar ocorrida nos períodos de 2-2-2006 a 15-2-2006 e 18-3-2008 a 28-4-2008, pela suposta prática de delitos distintos, não se revelando, assim, merecedora de guarida sua pretensão de detração penal.

3. Ordem denegada.”

Colhe‑se da inicial que “O Juízo da Vara de Execução Criminal Regional de Novo Hamburgo (PEC 58365008) indeferiu o pedido de detração referente aos períodos de 2-2-2006 a 15-2-2006 e 18-3-2008 a 28-4-2008, tempos estes que o paciente esteve preso provisoriamente por outros processos”.

Seguiu‑se agravo em execução ao qual o Tribunal de Justiça negou provi‑mento, mantendo a decisão a qua.

Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça sustentando, em síntese, que “O nosso ordenamento jurídico não traz nenhuma vedação legal para que seja deferida a detração da pena por delito come-tido posteriormente à segregação cautelar”, porquanto “nos casos onde houve a prisão processual de forma injusta, com a posterior absolvição da acusação que a embasava, surge uma dívida por parte do Estado para com o apenado, pois inexiste a possibilidade de ‘recuperar’ o tempo em que foi injustamente privado de sua liberdade”.

Reproduzindo as razões refutadas pelo Tribunal a quo, a impetrante requer a concessão da ordem “para reformar o acórdão recorrido, que negou a detração da pena ao paciente, referente à prisão processual anterior ao cometimento dos delitos dos quais hoje cumpre pena”.

A PGR opina no sentido da denegação da ordem�É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Luiz Fux (Relator): A detração da pena está prevista no artigo 42 do Código Penal1�

1 CP, art. 42. “Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.”

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HC 111.081

Segundo Heleno Cláudio Fragoso, “Entende-se por detração penal o abatimento na pena a ser cumprida do tempo de prisão já cumprido pelo condenado”. E pros‑segue o eminente penalista: “...a jurisprudência se orienta no sentido de admitir a detração sempre que se trate de outro crime anteriormente cometido”2.

Anotando que em outros países exige‑se a identidade entre o fato delituoso em que incide a condenação e aquele que motivou a custódia processual (cone-xão material), à exceção da legislação alemã, que exige apenas a conexão formal para que se aplique a detração penal, José Frederico Marques observou que o Código Penal pátrio foi omisso a respeito do assunto e consignou que a legislação germânica é “mais convinhável e acertada”, justificando e ilustrando a assertiva com o seguinte exemplo3:

“Desde que os fatos puníveis foram objeto de um só processo, ou porque conexos, ou por força da continência de causa, a detração deve operar-se, mesmo que o réu tenha sido absolvido pelo crime a ele atribuído e em que ocorreu a prisão cautelar. Suponha-se que um indivíduo tenha atirado em outro, praticando assim crime de homicídio. O juiz decreta sua prisão preventiva, de acordo com a regra no artigo 312 do Código de Processo Penal. Logo após o crime, aquele homicida desfere violento soco em uma terceira pessoa que pretendia detê-lo, causando-lhe lesões corporais de natureza leve. Se o Tribunal do Júri reconhecer que o réu praticou o homicídio por erro de proibição (legítima defesa putativa) e o condenar pelo crime de feri-mentos leves (ambos foram processados e julgados em simultaneos processus), na pena imposta, quanto a este, deve ser computado o tempo de prisão cautelar decorrente do delito de homicídio�”

Luiz Regis Prado4 observa que o artigo 42 do Código Penal possuía parágrafo único dispondo: “computa-se, igualmente, o tempo indevidamente cumprido, relativo à condenação por crime posterior, invalidado em decisão judicial irrecorrível”, e conclui que “em se admitindo a detração nesse caso, estaria se estabelecendo uma espécie de ‘conta corrente’, em favor do réu, que, com um ‘crédito’ contra o Estado, a ser usado para a impunidade de posteriores infra-ções penais” [grifei]. Com a supressão do parágrafo único do artigo 42, instalou‑‑se, segundo o citado autor “uma tendência que admite a detração por prisão em outro processo (em que houve absolvição ou extinção da punibilidade), desde

2 Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, ed., rev. por Fernandes Fragoso. – Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 303.

3 Tratado de Direito Penal, volume III, 1ª edição atualizada, Milennium Editora, Campinas – SP, ps. 186/187.

4 Luiz Regis Prado, Comentários ao Código Penal, 4ª edição revista, atualizada e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, p. 203.

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HC 111.081

que a prática do delito em virtude do qual o condenado cumprirá pena tenha sido anterior à sua prisão”.

Destarte, o suprimido parágrafo único do artigo 42 do Código Penal veicu‑lava norma condizente com a realidade da época, mas inimaginável nos dias atuais, porquanto é, data venia, surrealista a possibilidade de o réu creditar‑se de tempo de prisão provisória para abater na pena relativa a crime que even‑tualmente venha a cometer�

Esta Primeira Turma, ao julgar o HC n� 93�979, Rel� Min� Cármen Lúcia, j� em 22‑4‑2008, sem adentrar a questão envolvendo a conexão material ou formal, fixou o entendimento de que não cabe descontar na pena imposta pela prática de crime posterior o tempo de prisão provisória pelo cometimento de crime anterior e do qual resultou absolvição, sob pena de creditar‑se um bônus para que o réu desconte na pena resultante de condenação futura, consoante se vê da ementa do julgado:

“HABEAS CORPUS� DETRAÇÃO PENAL� CÔMPUTO DO PERÍODO DE PRISÃO ANTERIOR À PRÁTICA DE NOVO CRIME: IMPOSSIBILIDADE� PRECEDENTES� HABEAS CORPUS INDEFERIDO�

1� Firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que ‘não é possível creditar-se ao réu qualquer tempo de encarceramento anterior à prática do crime que deu origem a condenação atual’ (RHC 61�195, Rel� Min� Fran‑cisco Rezek, DJ de 23‑9‑1983)�

2� Não pode o Paciente valer‑se do período em que esteve custodiado – e pos‑teriormente absolvido – para fins de detração da pena de crime cometido em período posterior�

3� Habeas Corpus indeferido�”

Rememoro o debate instaurado no referido julgamento:

“O sr. ministro Marco Aurélio (Presidente): Aquele que delinque não fica com crédito para ver compensado, em termos de custódia, considerada nova prática criminosa�

Evidentemente, a detração pressupõe período de custódia após o cometimento do crime e ligado a este� Claro, não confundo essa visão com a problemática alu‑siva ao tempo máximo em que o cidadão pode ficar preso�

Não� Pretende‑se a detração, levando‑se em conta a pena ligada a crime ante‑rior� Evidentemente, não há o direito, a não ser que se parta para o denominado ‘Direito Alternativo’�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Apena como curiosidade, interessou‑‑me o assunto; anotei a jurisprudência de aproximadamente onze tribunais: todos seguem o Supremo Tribunal, menos o Tribunal do Rio Grande do Sul�

O sr. ministro Marco Aurélio (Presidente): Custo até a perceber que se tenha

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HC 111.081

feito tamanha confusão entre o instituto da detração e o instituto da perma‑nência máxima da cadeia� Pode ser perquirido o período máximo, levando em conta o tempo alusivo a crime anterior praticado pelo condenado no processo subsequente, observado o § 2º do artigo 75 do Código Penal�

O sr. ministro Menezes Direito: Só para poder entender, porque a questão é até interessante� Quer dizer, então vamos admitir que uma pessoa mate outra e seja condenada a trinta anos de cadeia� Quer dizer, se matar uma outra e já tiver trinta anos, ele não vai mais ser condenado?

O sr. ministro Marco Aurélio (Presidente): Ministro, não foi isso que disse� Por gentileza, perceba o alcance do meu voto� Não junto períodos distintos, inter‑calados pelo espaço de tempo em que a pessoa esteve em liberdade� Assento que, de forma contínua, não se pode ficar sob a custódia do Estado por mais de trinta anos� De forma intercalada, pode‑se, desde que tenha idade para cumprir a pena e continue vivo�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): A tese, no caso, é de que os artigos 42 do Código Penal e 111 da Lei de Execuções Penais não vedariam a possibilidade de detração em processos distintos�

O sr. ministro Marco Aurélio (Presidente): Não cabe detração� É algo diverso� A detração seria uma compensação� Quer dizer, alguém, após haver cumprido pena, ficaria com um crédito a ser considerado, posteriormente, no caso de um outro crime� O passo mostra‑se demasiadamente largo�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): “Compensação” é a palavra certa� Imagine que alguém, depois de haver cumprido um período de pena, seja absol‑vido e tenha ficado preso um ou dois meses preventivamente� Ele teria, então, um crédito com o Estado? Quer dizer, já sabe que pode delinquir, porque, por dois meses, não ficará preso?

O sr. ministro Marco Aurélio (Presidente): E, absolvido, pode ingressar contra o Estado, visando a indenização�

A sra. ministra Cármen Lúcia (Relatora): Encontrei apenas uma menção no Direito norte‑americano, no qual não se pode ser condenado pelo mesmo fato duas vezes� Então, se uma pessoa for condenada por matar alguém, e depois des‑cobre que não foi ela, se viesse a matar efetivamente, ela não seria mais julgada� Quer dizer, é um sistema completamente diferente�”

O tema ora ventilado é idêntico ao analisado no julgamento acima referido, no sentido de que não cabe descontar na pena do crime posterior o tempo de prisão cautelar resultante da prática de crime anterior pelo qual o réu restou absolvido�

In casu, o paciente cumpre pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime fechado, por crime de tráfico de drogas praticado em 30‑9‑2009, e requereu a detração dos períodos de 2‑2‑2006 a 15‑2‑2006 e 18‑3‑2008 a 28‑4‑2008, relativos à prisão provisória cumprida em outro processo�

Ex positis, denego a ordem�

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HC 111.081

VOTO

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, trago hoje, entre os meus habeas corpus, uma situação idêntica: a detração da pena de um período de prisão provisória anterior à própria prática dos delitos pelos quais a pena está sendo cumprida�

Acompanho o eminente Relator�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, é assim, não é? Quanto mais se “veve”, mais se aprende, porque está querendo criar o quê? O cartão fidelidade prisão? Soma de pontos para usar lá na frente? Convenhamos, realmente, enfim�

Também denego a ordem�O sr. ministro Marco Aurélio: Abatimento quanto a um delito futuro!A sra. ministra Cármen Lúcia: Então, um cartão fidelidade prisão�O sr. ministro Marco Aurélio: O acusado ficaria com um crédito!A sra. ministra Cármen Lúcia: Ele fica com pontos para usar quando quiser�Enfim, estou denegando a ordem, porque a fidelização também tem limites�

VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, a erronia do Estado, quanto ao processo, quanto à prisão anterior, resolve‑se em outro campo, o do ato comis‑sivo, o ato de serviço, considerada a indenização, não cabendo a compensação� O sistema não fecharia, ou seja, não se pode levar em conta prisão provisória relativa a delito futuro�

O sr. ministro Dias Toffoli (Presidente): Seria concessão pelo Estado de um crédito para praticar um ato ilícito, o que é um absurdo�

O sr. ministro Marco Aurélio: Acompanho o relator, Presidente, mas, de qualquer forma, faço‑o admirado pela criatividade humana na interpretação da lei�

EXTRATO DE ATA

HC 111�081/RS — Relator: Ministro Luiz Fux� Paciente: Marcelo Chaves da Silva� Impetrante: Defensoria Pública da União (Procurador: Defensor Público‑Geral Federal)� Coator: Superior Tribunal de Justiça�

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112 | Revista Trimestral de Jurisprudência

HC 111.081

Decisão: A Turma denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator� Unânime� Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli�

Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli� Presentes à Sessão os Senhores Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber� Subprocurador‑‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot�

Brasília, 28 de fevereiro de 2012 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, Coordenadora�

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 567.985 — MT

Relator: O sr. ministro Marco AurélioRelator para o acórdão: O sr. ministro Gilmar MendesRecorrente: Instituto Nacional do Seguro Social – INSSRecorrida: Alzira Maria de Oliveira SouzaInteressadas: União

Defensoria Pública da União Anis – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero

Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente� Art� 203, V, da Constituição�

A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamen‑tar o art� 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não pos‑suir meios de prover a própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família�

2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucio-nalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232.

Dispõe o art� 20, § 3º, da Lei 8�742/1993 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”�

O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constituciona‑lidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente�

RE 567�985

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RE 567.985

Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1�232‑1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art� 20, § 3º, da LOAS�

3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos prees-tabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS�

Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram‑se maneiras de se contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes�

Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10�836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10�689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10�219/2001, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9�533/1997, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que insti‑tuírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas�

O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade dos critérios objetivos�

Verificou‑se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos pata‑mares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro)�

4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993.

5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a presidência do Senhor Ministro Joa‑quim Barbosa, na conformidade da ata do julgamento, das notas taquigráficas

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e nos termos do voto do Relator, por maioria, negar provimento ao recurso e declarar, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do parágrafo único do art� 34 da Lei 10�741/2003 (Estatuto do Idoso)�

Brasília, 18 de abril de 2013 — Gilmar Mendes, Relator para o acórdão�

RELATÓRIO

O sr. ministro Marco Aurélio: A Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado do Mato Grosso, ao negar provimento a recurso interposto pelo Instituto Nacio‑nal do Seguro Social – INSS, assentou que a recorrida teria direito ao recebi‑mento do benefício assistencial de prestação continuada, mesmo não preen‑chendo os requisitos previstos no artigo 20, § 3º, da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei nº 8�742/1993)� Consignou não ser absoluto o parâmetro de um quarto do salário mínimo estabelecido na mencionada lei, devendo o Judiciário adequar tal critério à diretriz constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e às peculiaridades do caso concreto, de forma a dar cum‑primento ao disposto no artigo 203, inciso V, da Carta da República� Concluiu estar configurada a condição de miserabilidade da recorrida, tendo em vista conclusão de perícia socioeconômica realizada no processo�

Eis a ementa da decisão recorrida (fl� 97):

“PREVIDENCIÁRIO LATO SENSU – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CON‑TINUADA – CONCESSÃO – REQUISITOS VERTIDOS NO ART� 20 DA LEI 8�742/93 – IDOSO – RENDA “PER CAPITA” FAMILIAR INFERIOR A 1/2 SALÁRIO MÍNIMO – BENE‑FÍCIO DEVIDO�

I – O critério objetivo de miserabilidade previsto no art� 20, § 3º, da Lei 8�742/93 restou modificado para 1/2 salário mínimo, por força das Leis nº 9�533/97 e nº 10�689/2003�

II – Recurso improvido�”

No extraordinário de folha 100 a 131, interposto com alegada base na alínea a do permissivo da Carta, o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS argui transgressão dos artigos 203, inciso V, e 205, § 5º, do Texto Maior� Afirma que o Colegiado de origem não poderia adotar, na aferição do estado de pobreza, critério diverso daquele previsto na lei de regência, porquanto a norma cons‑titucional instituidora do benefício de prestação continuada possuiria eficá‑cia limitada, devendo‑se atentar para o diploma integrador� Sustenta, à luz do que decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1�232/DF, não caber ao juiz alargar o âmbito de incidência da Lei nº 8�742/1993, ao argumento de a

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miserabilidade poder ser comprovada por outros meios� Anota ter o Supremo, no julgamento da mencionada ação direta, afastado qualquer possibilidade de dar ao artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993 interpretação conforme à Constituição� Cita pronunciamentos deste Tribunal em que assentada, quanto ao benefício de prestação continuada, a necessária observância das regras estritamente estabelecidas pela Lei nº 8�742/1993 e a inaplicabilidade das Leis nº 9�533/1997 e 10�689/2003� Assevera, por fim, que a Turma Recursal, ao afastar a incidência do artigo 20, § 3º, da Lei Orgânica da Assistência Social, acabou por declará‑lo inconstitucional�

A recorrida, nas contrarrazões de folha 133 a 141, aduz, preliminarmente, a ausência de prequestionamento da matéria constitucional� No mérito, evoca precedentes do Superior Tribunal de Justiça e de Turma Recursal de outro Estado da Federação no sentido da decisão ora impugnada� Menciona, ainda, o Enun‑ciado nº 11 da Súmula da Turma Nacional de Uniformização� Insiste em estar devidamente comprovada a existência, no caso, dos requisitos para a concessão do pleiteado benefício assistencial�

O extraordinário foi admitido na origem (fl� 143)�O Tribunal reconheceu a repercussão geral da questão constitucional ver‑

sada no processo (fl� 148):

“REPERCUSSÃO GERAL – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA – IDOSO – RENDA PER CAPITA FAMILIAR INFERIOR A MEIO SALÁRIO MÍNIMO – ARTIGO 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL� Admissão pelo Colegiado Maior�”

Mediante os atos de fls� 169 e 170, 207 bem como 271 e 272, admiti a partici‑pação do Defensor Público‑Geral da União, da União e do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero�

O Defensor Público‑Geral da União sustenta a necessidade de o Supremo rever o pronunciamento concernente à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1�232/DF, uma vez que, diante do atual contexto socioeconômico do país, um quarto do salário mínimo não se mostra mais como padrão adequado à aferição de miserabilidade preconizada no artigo 203, inciso V, do Texto Maior� Afirma ser possível a utilização de outros critérios para tal fim, a exemplo daqueles trazidos pelas Leis nº 9�533/1997 e 10�689/2003 e pelo Decreto nº 3�997/2001, que trata do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza� Menciona decisões deste Tribunal no sentido da tese sustentada�

Consoante ressalta o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, quanto maior o valor fixado como parâmetro para fins de concessão do benefício

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de prestação continuada, mais fácil se evitaria a indevida inclusão de benefi‑ciários� Defende que a alteração do critério de renda, de um quarto para meio salário mínimo, e o consequente aumento da população legalmente beneficiária representaria crescimento real de 48% no orçamento público, correspondente a custo adicional de 8,9 bilhões de reais� Tal quantia não chegaria sequer a 3% do orçamento previdenciário total, consistindo em gasto absorvível pela capacidade financeira da União� Requer, ao final, edição de verbete vinculante consignando como parâmetro, para concessão do benefício assistencial pre‑visto no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993, renda per capita familiar de meio salário mínimo�

A Procuradoria Geral da República, no parecer de fls� 184 a 194, manifesta‑‑se pelo não conhecimento do recurso e, caso ultrapassada a preliminar, pelo desprovimento� Afirma que a análise das razões do extraordinário demanda‑ria exame da matéria fático‑probatória, inviável nesta sede – Verbete nº 279 da Súmula do Supremo – porquanto a Turma Recursal atestou a condição de miserabilidade da recorrida no laudo socioeconômico produzido no curso do processo� Cita, quanto ao tema de fundo, decisões deste Tribunal no sentido de que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1�232/DF, não se assentou estar o juiz, na análise de situação concreta, impedido de averiguar outros elementos a levarem à conclusão do estado de pobreza do postulante do benefício versado na Lei Orgânica da Assistência Social�

É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio: Na interposição deste recurso, observaram‑se os pressupostos de recorribilidade� A ciência pessoal quanto ao acórdão recor‑rido aconteceu em 24 de agosto de 2007, sexta‑feira (fl� 99)� A peça, subscrita por procurador federal, foi protocolada em 21 de setembro de 2007, dentro do prazo legal� Quanto à óptica da Procuradoria, não se pode confundir revolvimento da prova com o enquadramento jurídico da situação revelada na decisão atacada mediante o extraordinário� E é disso que se trata� Conheço�

A Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, imbuída de espírito inclu‑sivo e fraternal, fez constar o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Carta da República� É uma especialização dos princípios maiores da solidariedade social e da erradicação da pobreza, versados no artigo 3º, inci‑sos I e III, do Diploma Maior� Concretiza a assistência aos desamparados, estam‑pada no artigo 6º, cabeça, da Carta Federal� Daí ostentar a natureza de direito

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fundamental� O constituinte assegurou a percepção de um salário mínimo por mês aos portadores de deficiência – hoje designados, em linguajar mais ade‑quado à quadra, portadores de necessidades especiais – e aos idosos, exigindo‑‑lhes a comprovação de não possuírem meios de prover a própria manutenção ou de tê‑la provida pela família, conforme dispuser a lei�

Ante a necessidade de integração legislativa, haja vista a referência feita pelo poder constituinte à normatização, veio à balha a Lei nº 8�742/1993, em cujo artigo 20, § 3º, delimitou‑se o benefício àqueles idosos e portadores de neces‑sidades especiais cuja renda familiar, por cabeça, não ultrapasse a quantia de um quarto do salário mínimo� Em sequência, houve o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1�232, relatada pelo Ministro Ilmar Galvão, em que o Supremo assentou, com efeito vinculante, a compatibilidade entre o referido dispositivo e a Carta da República� Estive ausente do julgamento do mérito, razão pela qual não pude externar posição quanto à questão de fundo, o que passo a fazer agora�

Ao remeter à disciplina legislativa, penso ser razoavelmente claro que o cons‑tituinte não buscou dar ao legislador carta branca para densificar o conteúdo da Lei Fundamental� Pode‑se, então, indagar: se pretendia outra coisa, por que assim o fez? Mostra‑se natural e desejável que certos conteúdos constitucio‑nais sejam interpretados à luz da realidade concreta da sociedade, dos avanços culturais e dos choques que inevitavelmente ocorrem no exercício dos direitos fundamentais previstos apenas de modo abstrato na Carta� A lei tem papel cru‑cial na definição dos limites necessários� E mais: essa é uma atividade essencial à manutenção da normatividade constitucional, que, para ter efetividade, pre‑cisa estar ancorada no espírito, na cultura e nas vocações de um povo� O autor alemão Konrad Hesse, no clássico ensaio A força normativa da Constituição, vertido para português pelo Ministro Gilmar Mendes, explora isso muito bem:

“Tal como acentuado, constitui requisito essencial da força normativa da Consti‑tuição que ela leve em conta não só os elementos sociais, políticos e econômicos dominantes, mas também que, principalmente, incorpore o estado espiritual de seu tempo� Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e a defesa da consciência geral�” (A força normativa da Constituição, 1991, p� 20�)

Todavia, ao lado da interpretação constitucional feita pelos outros Poderes da República, o intérprete último da Carta é o Supremo� Cumpre ao Tribunal sopesar, com fase nos preceitos do Diploma Maior, as concretizações efetuadas pelo legislador� Nessa relação de tensão entre a normatividade constitucional, a infraconstitucional e a facticidade inerente ao fenômeno jurídico, incumbe‑lhe

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conferir prioridade à tarefa de resguardar a integridade da Carta� Sem esse controle, prevaleceria a interpretação do texto constitucional conforme à lei, a revelar abandono da rigidez própria àquele� Descabe olvidar que a posição do Supremo é de garantia, exercida sempre em favor da sociedade, embora às vezes contra a visão das maiorias� Afinal, a história prova que a confiança cega no processo político majoritário pode produzir resultados trágicos�

Como, então, deve ser interpretada a cláusula constitucional “não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família”? O objetivo do constituinte foi único: conferir proteção social àqueles incapazes de garantir a respectiva subsistência� Os preceitos envolvidos, como já asseverado, são os relativos à dignidade humana, à solidariedade social, à erradicação da pobreza e à assistência aos desamparados� Todos esses elementos fornecem razões para uma interpretação adequada do benefício assistencial estampado na Lei Maior�

O conteúdo do princípio da dignidade humana é matéria que suscita con‑trovérsias doutrinárias e até mesmo jurisprudenciais – refiro‑me, no particu‑lar, ao voto do Ministro Dias Tofolli proferido no Recurso Extraordinário nº 363�889, no qual Sua Excelência consignou: “se para tudo há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para nada servirá�” Afirma‑se, então, que o princípio permitiria a defesa de qualquer posição jurídica quando a lide refletir os denominados “desacordos morais razoáveis”, caracterizados pela contraposição de óptica igualmente plausível por meio de argumentos de índole pública� A ubiquidade do uso da dignidade na argumentação jurídica, embora seja crítica legítima, merece exceção no caso em apreço� Explico�

Em recente estudo, Luís Roberto Barroso (Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional, texto inédito em língua portuguesa) destaca que o substrato do conceito de dignidade humana pode ser decomposto em três elementos, a saber: (i) valor intrínseco, (ii) auto‑nomia e (iii) valor comunitário�

Como “valor intrínseco”, a dignidade requer o reconhecimento de que cada indivíduo é um fim em si mesmo, nos termos do amplamente divulgado impera‑tivo categórico kantiano: “age de modo a utilizar a humanidade, seja em relação à tua própria pessoa ou qualquer outra, sempre e todo o tempo como um fim, e nunca meramente como um meio”� Impede‑se, de um lado, a funcionalização do indivíduo e, de outro, afirma‑se o valor de cada ser humano independentemente de suas escolhas, situação pessoal ou origem� Ensina o citado autor:

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“É por ter o valor intrínseco de cada pessoa como conteúdo essencial que a digni‑dade humana é, em primeiro lugar, um valor objetivo que não depende de qual‑quer evento ou experiência e que, portanto, não pode ser concedido ou perdido, mesmo diante do comportamento mais reprovável�” (P� 3�)

Soa inequívoco que deixar desamparado um ser humano desprovido inclusive dos meios físicos para garantir o próprio sustento, considerada a situação de idade avançada ou deficiência, representa expressa desconsideração do men‑cionado valor� Não consigo alcançar, nesse particular, argumentos para uma conclusão divergente� Observem que a insuficiência de meios de que trata a Carta não é o único critério, porquanto a concessão do benefício pressupõe, igualmente, a incapacidade de o sustento ser provido por meio próprio ou pela família, o que reforça a necessidade de proteção social�

Como “autonomia”, a dignidade protege o conjunto de decisões e atitudes que concernem especificamente à vida de um indivíduo� O Supremo, ao emprestar interpretação conforme à Constituição aos dispositivos do Código Civil que dispõem sobre as uniões estáveis, para neles incluir as uniões homoafetivas, protegeu, segundo penso, exatamente essa concepção de dignidade� No julga‑mento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, relator Ministro Ayres Britto, fiz ver:

“O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos pro‑jetos pessoais de vida, que traduzem o livre e pleno desenvolvimento da perso‑nalidade� (���) A dignidade da vida requer a possibilidade de concretização de metas e projetos� Daí se falar em dano existencial quando o Estado manieta o cidadão nesse aspecto�”

Ora, para que uma pessoa seja capaz de mobilizar a própria razão em busca da construção de um ideal de vida boa – que, no final das contas, nos motiva a existir –, é fundamental que lhe sejam fornecidas condições materiais mínimas� Nesse aspecto, a previsão do artigo 203, inciso V, da Carta Federal também opera em suporte dessa concepção de vida digna�

O autor – Luís Roberto Barroso – entende a dignidade ainda como um “valor comunitário”� Atuaria o instituto não apenas como proteção da esfera indivi‑dual, mas como limitador do exercício de direitos individuais, resguardando‑o coletivamente� Tais aspectos estão ancorados, em alguma medida, nas com‑preensões morais coletivas e nas práticas arraigadas no meio social�

Nesse último ponto, está incluída a ideia maior de solidariedade social, alçada à condição de princípio pela Constituição� Observem que a ninguém foi dada a escolha de nascer nessa quadra e nessa sociedade, mas, a despeito disso, estamos

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todos unidos na construção de um destino comum� Esse laço de irmandade, fruto, para alguns, do fortuito e, para outros, do destino, faz‑nos, de algum modo, responsáveis pelo bem de todos� O escritor inglês John Donne conseguiu descre‑ver o sentimento em linguagem poética, ao afirmar que a “morte de cada homem diminui‑me, porque sou parte da Humanidade� Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti” (in Devotions Upon Emergent Occasions, disponível em: http://www�poetryfoundation�org/bio/john‑donne)�

Esse é o sentido de solidariedade estampado no artigo 3º, inciso I, da Lei Maior� Sobre o tema, assim se pronuncia o jurista espanhol Gregorio Peces‑‑Barba Martinez:

“O ponto de partida da solidariedade é o reconhecimento da realidade do outro e a consideração de seus problemas como não alheios, mas suscetíveis de reso‑lução com intervenção dos Poderes Públicos e dos demais� O objetivo político é a criação de uma sociedade na qual todos se considerem membros da mesma, e resolvam em seu seio as necessidades básicas, na qual não haja saltos qualita‑tivos nos grupos em que os seres humanos desenvolvam suas vidas e suas ati‑vidades, enfim, aquela em que todos possam realizar sua vocação moral, como seres autônomos e livres�” (Lecciones de derechos fundamentales, 2004, p� 178‑9�)

No direito pátrio, vale referir à construção de Maria Celina Bodin de Moraes:

“A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador constituinte, esta‑belece em nosso ordenamento um princípio jurídico inovador, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução de políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação e aplicação do Direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, por todos os membros da sociedade�” (“O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo”� In: Constituição, direitos fundamentais e direitos privados, 2003, p� 138�)

Mostra‑se possível discordar, em tese, do arranjo sistemático antes revelado, mas não se pode negar a relação entre a dignidade e (i) a proteção jurídica do indivíduo simplesmente por ostentar a condição humana e (ii) o reconhecimento de uma esfera de proteção material do ser humano, como condição essencial à construção da individualidade e à autodeterminação no tocante à participação política� Com base nessa visão, conclui‑se que existe certo grupo de prestações essenciais básicas que se deve fornecer ao ser humano para simplesmente ter capacidade de sobreviver e que o acesso a tais bens constitui direito subjetivo de natureza pública� A isso a doutrina vem denominando mínimo existencial�

Ora, a eliminação dessa forma aguda de pobreza é pré‑condição da constru‑ção de uma sociedade verdadeiramente democrática, da estabilidade política,

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enfim, do desenvolvimento do país como um todo� Sem condições materiais, não pode haver um cidadão pleno, apto a participar nos debates públicos, a produzir argumentos e críticas� Se há algum consenso no âmbito da filosofia moral, é a respeito da existência do dever do Estado de entregar um conjunto de prestações básicas necessárias à sobrevivência do indivíduo, reconhecida tanto pelos defensores do liberalismo, entre os quais se destaca John Rawls (Liberalismo político, 1999, p� 32‑33), como por aqueles que extraem os direitos fundamentais da teoria do discurso, caso de Jürgen Habermas (Direito e demo-cracia entre facticidade e validade, v� I, 2006, p� 159‑160)� Mesmo os que defendem a integração maior entre o Direito e a comunidade, conferindo a esta papel pre‑ponderante na definição dos limites dos direitos fundamentais, não escapam a essa compreensão� A propósito, afirma o filósofo do Direito Michael Walzer:

“Nenhuma comunidade pode permitir que seus membros morram de fome quando há alimentos disponíveis para eles; nenhum governo pode permanecer passivo numa ocasião dessas – se alega ser governo da comunidade, por ela e para ela�” (Esferas de justiça – uma defesa do pluralismo e da igualdade, 2003, p� 105�)

A visão está igualmente no direito brasileiro, do qual cito as obras de Ana Paula de Barcellos (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princí-pio da dignidade da pessoa humana, 2008), Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2010), Ricardo Lobo Torres (O direito ao mínimo existencial, 2009) e Maria Celina Bodin de Moraes (“O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo”� In: Constitui-ção, direitos fundamentais e direitos privados, 2003, p� 105‑147)� Com diferentes pressupostos, todos concordam com a necessidade de proteção do mínimo existencial� Sobre o tema, ensina Ana Paula de Barcellos:

“Ao lado do campo meramente político, uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contida naquela esfera do consenso mínimo assegurada pela Constituição e transformada em matéria jurídica� É precisamente aqui que reside a eficácia jurídica positiva ou simétrica e o caráter de regra do princípio constitucional� (…) Não é possível ponderar um princípio, especialmente o da dignidade da pessoa humana, de forma irres‑trita, ao ponto de não sobrar coisa alguma que lhe confira substância: também a ponderação tem limites�” (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana, 2008, p� 282�)

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Enfim, independentemente da posição que o intérprete do Direito assuma acerca desses temas, há consenso básico e essencial sobre a necessidade de proteger e dignificar o indivíduo� Nesse sentido, anota Gustavo Zagrebelsky:

“(���) as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a tarefa de realizar as condições de possibilidade da mesma�” (El derecho dúctil, 2011, p� 13�)

Mesmo que tais elementos não convençam, o constituinte instituiu o dever do Estado de prover assistência aos desamparados� Com base no artigo 6º da Carta, compele‑se os poderes públicos a realizar políticas públicas para reme‑diar, ainda que minimamente, a situação de miséria daqueles que infelizmente acabaram relegados a essa condição�

São esses, alfim, os parâmetros materiais dos quais há de partir a interpre‑tação da regra questionada� Indago: a concretização legislativa dos referidos princípios foi suficiente? À luz do caso concreto, tem‑se que a resposta é desen‑gadamente negativa� Observem o retratado no acórdão recorrido:

“Conforme o laudo sócio‑econômico de fls� 45/47, constata‑se que a Recorrida mora com seu esposo e um filho deficiente, sendo a renda familiar proveniente da aposentadoria recebida por seu cônjuge, no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais), advinda da previdência do Estado de Mato Grosso�” (Fl� 96�)

Com isso, calcula‑se a renda de R$ 133,00 (cento e trinta e três reais) por pessoa� O salário mínimo no ano de 2006 esteve fixado em R$ 350,00 (trezentos e cinquenta reais) pela Lei nº 11�321, de 7 de julho de 2006� Para que fosse possível alcançar o benefício, a renda por cabeça deveria equivaler a R$ 116,00 (cento e dezesseis reais)� Em suma: por R$ 17,00 (dezessete reais) mensais, mediante aplicação estrita da regra legal, afirma‑se que a requerente – ora recorrida – não tem jus ao benefício�

O problema central encontra‑se na base móvel escolhida pelo legislador� Ao vincular a renda familiar ao salário mínimo, obteve‑se a mudança, ano após ano, da linha de pobreza alcançada� Hoje, por exemplo, tem‑se o mínimo estabelecido em R$ 622,00 (seiscentos e vinte e dois reais) – Decreto nº 7�655, de 23 de dezembro de 2011 –, o que elevaria o patamar para R$ 155,50 de renda mensal individual mínima� Todos os idosos e deficientes com renda inferior a isso gozariam o benefício� Esse valor – o atual – está muito além da linha da pobreza estipulada pelo Banco Mundial, hoje fixada em US$ 1,25 (um dólar e vinte e cinco centavos) de renda diária, cerca de R$ 75,00 por mês (estatística

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disponível em: http://data�worldbank�org/contry/brasil)� Portanto, à luz do salário mínimo em vigor, o critério pode ser considerado razoável, mas não diante do salário vigente quando o processo foi iniciado�

Ao declarar a constitucionalidade do dispositivo da Lei nº 8�742/1993, o Tri‑bunal o fez a partir de certo parâmetro, revelado pelo valor do salário mínimo em vigor à época do julgamento� Com o avanço da inflação e os reajustes do mínimo, é possível que outra situação fática se desenhe e que o novo quadro se apresente absolutamente discrepante dos objetivos constitucionais� O caso concreto fornece um exemplo vívido: uma família composta por um casal de idosos e uma criança deficiente� O critério escolhido pelo legislador para apurar a pobreza, embora objetivo, não dá concretude à Constituição�

Ao fixar‑se apenas no critério “renda”, o legislador olvidou outros elementos do mundo dos fatos que são relevantes para o exame do parâmetro “miserabi‑lidade”� Por exemplo: uma família com duas ou três pessoas deficientes, além de diversos idosos com situação de saúde debilitada, possui maiores necessi‑dades que uma família composta por apenas um idoso� Observem que, de todo modo, a legislação proíbe a percepção simultânea de mais de um benefício de assistência social – artigo 20, § 4º, da Lei nº 8�742, com a redação que lhe foi atribuída pela Lei nº 12�435/2011�

Mostra‑se patente que o artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993, embora não seja, só por si, inconstitucional, gerou situação concreta de inconstitucionalidade� A incidência da regra traduz falha no dever, criado pela Carta, de plena e efe‑tiva proteção dos direitos fundamentais, resultante da eficácia positiva de tais direitos, cuja concretização é condição essencial à construção de uma sociedade mais justa e, portanto, civilizada� Como se sabe, os direitos fundamentais tanto possuem uma faceta negativa, que consiste na proteção do indivíduo contra as arbitrariedades provenientes dos poderes públicos, quanto cria deveres de agir� Refiro‑me à denominada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que tem como um dos efeitos a imposição de deveres permanentes de efetividade, sob pena de censura judicial� Sobre esse ponto, anota Ingo Wolfgang Sarlet:

“Outro desdobramento estreitamente ligado à perspectiva objetivo‑valorativa dos direitos fundamentais diz com o que se poderia denominar de eficácia dirigente que estes (inclusive os que precipuamente exercem a função de direitos subjetivos) desencadeiam em relação aos órgãos estatais� Nesse contexto é que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos direitos fundamentais�” (A eficácia dos direitos fundamentais, 2007, p� 163�)

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Em suma, está‑se diante de situação em que a concretização do princípio da dignidade humana e do dever específico de proteção dos hipossuficientes – idosos e deficientes – encontra‑se aquém do texto constitucional� Embora ainda pouco utilizado pelo Supremo, emerge como parâmetro de aferição de constitu‑cionalidade da intermediação legislativa de direitos fundamentais o chamado princípio da proibição da concretização deficitária, cujo fundamento último radica‑se no dever, imputável ao Estado, de promover a edição de leis e ações administrativas efetivas para proteger os direitos fundamentais (ver Gilmar Ferreira Mendes, Inocência Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco, em Curso de direito constitucional, 2007, p� 323)�

Diante de tal situação, de evidente falha no dever de concretização, cabe indagar: existe solução hermenêutica para a questão? Penso que sim e passo a versá‑la�

Eis o que há, objetivamente, no caso em apreço: de um lado, acórdão de Turma Recursal de Juizado Especial que suplantou a regra legal citada e também o precedente do Supremo formalizado em controle concentrado de constitucio‑nalidade, e assim o fez em interpretação que, na minha óptica, afigura‑se mais consentânea com os princípios maiores da Carta Federal, já consignados ante‑riormente� De outro lado, a certeza de que a aplicação meramente subsuntiva da regra do artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993 à situação concreta levaria ao provimento do extraordinário interposto�

Posta a questão em jargão técnico, o Poder Judiciário derrotou uma regra� O dispositivo legal fornecia relato preciso e acabado da hipótese efetiva de atua‑ção, o qual ficou suplantado pelo aplicador em favor de concepção mais ampla de justiça� Além disso, não se teceu sequer consideração quanto à validade da regra, que permanece hígida em abstrato� Desse quadro, é possível asseverar que se tem a constitucionalidade em abstrato do preceito legal, consoante assentado pelo Supremo, mas a inconstitucionalidade em concreto na aplicação da norma, consideradas as circunstâncias temporais e os parâmetros fáticos revelados�

Surge claro que os enunciados normativos, previstos em abstrato, podem resultar em incidências concretas que desatendam aos comandos constitucio‑nais� Nesse sentido proclamou, no âmbito acadêmico, a professora Ana Paula de Barcellos:

“É possível cogitar de situações nas quais um enunciado normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidências, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias concretas, produz uma norma inconstitucional� Lembre‑se que, em função da complexidade dos efeitos que pretendam produzir e/ou da mul‑tiplicidade de circunstâncias de fato sobre as quais incidem, também as regras

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podem justificar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteúdo a normas diversas� Cada uma dessas normas opera em um ambiente fático próprio e poderá ser confrontada com um conjunto específico de outras incidências normativas, justificadas por enunciados diversos�” (Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005, p� 231‑232�)

É preciso analisar o contraponto a esse raciocínio� Sabe‑se que a forma como os dispositivos constitucionais e legais são redigidos encerra decisões do poder constituinte e do Poder Legislativo� Tais atos cristalizam acordos sociais a res‑peito de dilemas morais ou questões práticas do cotidiano sobre as quais recaem disputas� Permitir que sejam reabertas à discussão a cada novo processo judicial é arriscado sob duas perspectivas�

Primeiro, por viabilizar que o Juízo desconsidere soluções adotadas con‑soante o processo político majoritário e faça prevalecer as próprias convicções em substituição às adotadas pela sociedade� Sem que haja verdadeiro funda‑mento constitucional relevante, esse proceder acaba por retirar a legitimidade da função jurisdicional, calcada, conforme concepção clássica, no respeito às respostas moldadas de antemão pelo legislador�

Segundo, por trazer grande margem de insegurança ao sistema� Com efeito, as regras têm o objetivo de reduzir a incerteza na aplicação do Direito, permitindo que as pessoas pautem as condutas pela previsão abstrata, além de assegurar que a solução do sistema jurídico seja observada de modo isonômico� Na inte‑ressante ideia de Thiago Cardoso Araújo, as espécies normativas formariam uma “regra de três”: “os princípios estão para a justiça, assim como as regras estão para a segurança jurídica” (Jogando com a proporcionalidade, dissertação de mestrado, 2009, p� 69)�

Portanto, diferentemente da ponderação de princípios, que envolve o conflito entre dois valores materiais, a “derrota” de regras (ou ponderação de regras, para os que assim preferem) exige do intérprete que sopese não só o próprio valor veiculado pelo dispositivo como também os da segurança jurídica e da isonomia� Nesse sentido se manifesta, por exemplo, Humberto Ávila:

“Sendo as regras instrumentos de solução previsível, eficiente e geralmente equânime de conflitos, sua superação será tanto mais flexível quanto menos imprevisibilidade, ineficiência e desigualdade geral ela provocar�” (Teoria dos princípios, 2011, p� 115�)

Com base em alguns fundamentos, entendo ser possível assentar a prevalên‑cia da leitura constitucional impugnada pela recorrente sobre tais elementos sistêmicos� Como já relatado, a decisão veiculada na regra infralegal não se

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sobrepõe à estampada na Carta Federal� No confronto de visões, há de preva‑lecer aquela que melhor concretiza o princípio constitucional da dignidade humana – cuja aplicação é prioritária no ordenamento jurídico� Quanto às considerações concernentes à segurança jurídica e isonômica, também elas hão de ceder frente àquele princípio maior� Descabe comungar com enfoque que, a pretexto de assegurar as expectativas no tocante à aplicação do Direito, acaba por colocar seres humanos na mais completa situação de indignidade�

Pode‑se dizer que, ao afastar a regra legal, os magistrados estariam confron‑tando a dignidade do postulante, no caso concreto, com a dos demais cidadãos, também carentes de prestações públicas� É o conhecido argumento da reserva do possível� Três razões levam‑me a assentar a improcedência da crítica�

A uma, porque o benefício de assistência social tem natureza restrita, não basta a miserabilidade, impõe‑se igualmente a demonstração da incapacidade de buscar o remédio para tal situação em decorrência de especiais circuns‑tâncias individuais� Essas pessoas, obviamente, não podem ser colocadas em patamar de igualdade com os demais membros da coletividade� Elas gozam de evidente prioridade na ação do Estado, assentada pelo próprio texto cons‑titucional� O artigo 203 da Carta atribuiu à coletividade a tarefa de amparar o idosos e assegurar‑lhes a dignidade� Quanto aos portadores de necessidades especiais, são muitos os dispositivos que incumbem ao Estado e à sociedade deveres de proteção – artigos 7º, inciso XXXI; 23, inciso II; 24, inciso XIV; 37, inciso VIII; 40, § 4º, inciso I; 201, § 1º; 203, incisos IV e V; 208, inciso III; 227, § 1º, inciso II, e § 2º; e 244 da Lei Maior�

A duas, porquanto a superação da regra legal há de ser feita com parcimônia� Observem que cumpre presumir aquilo que normalmente acontece na inter‑pretação do Direito: que juízes bem‑intencionados vão apreciar, consoante a prova produzida no processo, a presença do estado de miséria, considerados os demandantes� O normal é a atuação de boa‑fé� Além disso, vale ressaltar que o critério de renda atualmente fixado está muito além dos padrões para fixação da linha de pobreza internacionalmente adotados� Esse elemento faz crer que a superação da regra será realmente excepcional�

A três, finalmente, porque o orçamento, embora peça essencial nas socie‑dades contemporâneas, não possui valor absoluto� A natureza multifária do orçamento abre espaço para encampar essa atividade assistencial que se mostra de importância superlativa no contexto da Constituição de 1988� É preciso ter presente o que o saudoso jurista argentino Bidart Campos denominou de prio‑ridade orçamentária dos direitos fundamentais, consubstanciada no dever “de destinar aos direitos sociais e aos condicionamentos que os fazem viáveis uma

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dotação de recursos e gastos na maior dimensão possível” (El orden socioeco-nomico en la constitución, 1999, p� 354)�

No mais, acerca da obediência cega à lei, cito as agudas palavras de Gustav Radbruch, o primeiro filósofo do Direito a defender, no pós‑guerra, uma con‑cepção mais próxima do valor justiça e menos apegada ao formalismo jurídico� Assevera ele:

“Esta concepção de lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas� Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro�” (“Cinco minutos de filosofia do direito”� In: Filosofia do direito, 1974, p� 415�)

Não chego ao extremo de sugerir a superação da decisão proferida pelo Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1�232, por crer que o parâ‑metro abstrato possui valia� A declaração de inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993 teria o condão imediato de retirar o suporte de legalidade que deve nortear a atividade administrativa – artigo 37, cabeça, da Carta Federal� O Supremo vem se negando a proclamar a nulidade de lei que padece de vício de inconstitucionalidade por omissão parcial, pois significaria piorar situação que já não se adequa plenamente à Constituição� Sobre o ponto, averba a doutrina:

“A técnica da declaração de nulidade, concebida para eliminar a inconstitucio‑nalidade causada pela intervenção indevida no âmbito de proteção dos direitos individuais, mostra‑se insuficiente como meio de superação da inconstitucio‑nalidade decorrente da omissão legislativa�” (Gilmar Ferreira Mendes, Inocência Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de direito constitucional, 2007, p� 1134�)

É certo que as prestações básicas que compõem o mínimo existencial – esse conjunto sem o qual o ser humano não tem dignidade – não são as mesmas de ontem, e certamente não serão iguais às de amanhã� Assim, embora as defi‑nições legais nessa matéria sejam essencialmente contingentes, não chegam a mostrar‑se desimportantes� Fixam os patamares gerais para a atuação da Administração Pública, além de permitir razoável margem de certeza quanto ao grupo geral de favorecidos pela regra, o que terá impactos na programação financeira do Estado�

Vale frisar que não comungo com a óptica do colegiado prolator da decisão recorrida, no sentido da derrogação do artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993 pelas Leis nº 9�533/1997 e nº 10�689/2003� Consoante salienta a União, embora o critério

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objetivo de aferição da miserabilidade adotado mediante as referidas leis seja diverso – meio salário mínimo –, o fato é que se destinam a outros tipos de bene‑fícios – a primeira cuida de programa de renda mínima municipal e a segunda do programa nacional de alimentação, ambos com menor alcance� Na Lei nº 9�533/1997, o valor do benefício é bem inferior ao salário mínimo, sendo o pata‑mar inicial estabelecido em R$ 15,00 (artigo 1º, § 4º)� Na Lei nº 10�689/2003, não há sequer a fixação de quantia, deixando‑se tal tarefa a cargo do Poder Execu‑tivo (artigo 2º, inciso III)� Ainda que a argumentação fosse correta, tem‑se que o parâmetro revelado no § 3º do artigo 20 da Lei nº 8�742/1993 foi reiterado ante a edição da Lei nº 12�435/2011�

A solução que proponho não é heterodoxa, nem exorbita da jurisprudência do Tribunal� Cabe lembrar que o Supremo indeferiu a liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 223, relator Ministro Paulo Brossard, redator do acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence, na qual se buscava suspender os efeitos da Medida Provisória nº 173, de 18 de março de 1990, que proibira a concessão de cautelares em ações alusivas a dez medidas provisórias, disciplinando vários assuntos� Consignou que a proibição, em tese, da concessão de medidas cautela‑res é viável, mas que os magistrados, no exercício do controle difuso, poderiam dizer da inaplicabilidade da regra em caso de incidência inconstitucional� É o que consta no voto do Ministro Sepúlveda Pertence:

“Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restri‑ção, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplica‑ção, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva�”

Nas diversas reclamações envolvendo a matéria, foi possível antever a solução para o problema� Refiro‑me, em particular, à decisão proferida pelo Plenário ao apreciar o Agravo Regimental na Reclamação nº 3�963/SC, relator Ministro Ricardo Lewandowski, e também aos pronunciamentos monocráticos atinentes às Reclamações nº 4�422, relator Ministro Celso de Mello, nº 4�133, relator Minis‑tro Ayres Britto, e nº 4�366, relator Ministro Ricardo Lewandowski� Na apre‑ciação da medida cautelar no Recurso Extraordinário nº 564�347, assentou o Ministro Gilmar Mendes:

“O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de ¼ do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado

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de miserabilidade do indivíduo e de sua família, para concessão do benefício assistencial de que trata o art� 203, inciso V, da Constituição�

Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2�303, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742, de 1993, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família, como exige o art� 203, inciso V, da Constituição�

A meu ver, toda essa reinterpretação do art� 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742, de 1993�

Diante de todas essas perplexidades sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá‑lo novamente�”

Em síntese, consigno que, sob o ângulo da regra geral, deve prevalecer o cri‑tério fixado pelo legislador no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993� Ante razões excepcionais devidamente comprovadas, é dado ao intérprete do Direito cons‑tatar que a aplicação da lei à situação concreta conduz à inconstitucionalidade, presente o parâmetro material da Carta da República, qual seja, a miserabili‑dade, assim frustrando os princípios observáveis – solidariedade, dignidade, erradicação da pobreza, assistência aos desemparados� Em tais casos, pode o Juízo superar a norma legal sem declará‑la inconstitucional, tornando preva‑lecentes os ditames constitucionais�

Nesse contexto, consideradas as circunstâncias excepcionais reveladas na decisão recorrida, nego provimento ao recurso� É como voto�

VOTO (Antecipação)

O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, eu sei que Vossa Excelên‑cia quer antecipar o fim da sessão, eu vou tentar ser pontual, breve, porque eu tinha trazido, para este caso, o voto na Reclamação nº 4�734� Eu vou apontar rapidamente alguns tópicos�

Senhor Presidente, eu repasso todas essas questões a partir do debate que foi posto aqui no brilhante voto do Ministro Marco Aurélio, e eu já foco a questão da eventual revisão da ADI 1�232�

Lembro‑me, certa feita, de que o Ministro Cezar Peluso propôs que nós até editássemos uma súmula, diante da avalanche de reclamações que tínhamos� Eu, então, chamava a atenção de Sua Excelência dizendo que, àquela altura, nós já não tínhamos talvez maioria, porque foi apontado aqui, na sustentação oral da douta Subprocuradora, que talvez já nós não tivéssemos maioria para

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uma súmula, porque eram tantos os indeferimentos nas diversas reclamações a partir de circunstâncias específicas� E se nós verificarmos as manifestações dos diversos Ministros, e Vossa Excelência mesmo está trazendo uma lista de casos de reclamação, muito provavelmente no sentido do indeferimento, portanto, está se dando um esvaziamento da decisão tomada na ADI nº 1�232�

Eu repasso todas essas questões� Chamo a atenção para a possibilidade de uma inconstitucionalização� Nós já tivemos até aqui o caso da progressão de regime, em que nós declaramos a constitucionalidade da lei e, depois, nós viemos a declarar a sua inconstitucionalidade, seja por mudança nas circunstâncias fáticas, seja por mudanças nas circunstâncias jurídicas, seja por mudança no plexo de relação entre circunstâncias fáticas e jurídicas� Portanto, eu digo que isso é possível e acontece no sistema� E aí, então, repasso todas essas questões, e chamo a atenção que o debate sobre a omissão já ficara presente lá quando do julgamento da ADI nº 1�232, o Ministro Sepúlveda Pertence já apontava déficit no modelo adotado�

Eu ressalto, então, todos esses aspectos e digo mesmo: o fato é que hoje o Supremo, muito provavelmente, não tomaria a mesma decisão que foi proferida em 1998 na ADI 1�232, a partir desses robustos indícios que estão aí� A jurispru‑dência atual supera, em diversos aspectos, os entendimentos naquela época adotados pelo Tribunal quanto ao tratamento da omissão inconstitucional, inclusive quanto à possibilidade, por exemplo, de, em caso de omissão parcial, nós valermos da modulação de efeitos, por exemplo, de aplicarmos o artigo 27, deixarmos a lei em vigor, mas não declararmos a sua nulidade, que é um ponto importante para o qual chama a atenção o Ministro Marco Aurélio, declarar a nulidade aqui é agravar o estado de inconstitucionalidade, distanciar‑se ainda mais� Mas, hoje, já dispomos, então, dessa alternativa�

Depois, eu repasso todas as decisões legislativas, normativas, que foram tomadas, adotando critérios outros que não o de um quarto do salário mínimo, para essas bolsas que já foram citadas� Então, chamo a atenção, inclusive a questão que não vou nem versar do RE, da minha relatoria, mas que prepara um grave embaraço do ponto de vista da isonomia� Porque, veja Vossa Excelência, o que diz essa lei, mas eu estou usando apenas como ponto de argumentação� A Lei nº 10�741, artigo 34:

“Art� 34� Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê‑la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário‑mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas�

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Parágrafo único� O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput, não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita, a que se refere a Loas�”

Então, aqui o legislador abriu uma exceção para dois benefícios recebidos pelo casal em relação à LOAS� Qual é a argumentação trazida da tribuna? Bom, isto vale para benefício da LOAS, mas, se for qualquer outro benefício previden‑ciário, não, ou, se for um benefício, por exemplo, de idoso e deficiente, também não� Veja, aqui o legislador incorreu em grave equívoco: ou é possível, quer dizer, em situação absolutamente idêntica, fazer a exclusão, pouco importa a origem do benefício, se nós estivermos nesse plano de salário mínimo, ou nós vamos, realmente, para uma situação insustentável, conferindo ao legislador não um poder discricionário, mas um arbítrio, porque, vejam, em situações, do ponto de vista numérico, absolutamente idênticas, nós vamos chegar a resultado díspar�

Por isso, Presidente, fazendo um rápido resumo, eu chego à conclusão também consistente do voto do Ministro Marco Aurélio, mas eu estou afir‑mando que houve um processo de inconstitucionalização que se deflagrou, um processo de inconstitucionalização do parágrafo 3º, e cito, então, todas essas bolsas com base num quarto do salário mínimo: A criação do Bolsa Família, outros programas de ações de transferência da renda do governo foram uni‑ficados, Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à educação, Bolsa Escola, Programa Nacional de Acesso a Alimentação, Programa Nacional de Renda Mínima, todos esses agora com o critério de meio salário mínimo� Porque também eu entendo, louvo a solução do Ministro Marco Aurélio, mas eu gos‑taria de opor um reparo: é que a solução de Sua Excelência devolve ao juiz a adoção de critérios, e, obviamente, retira aquilo que da tribuna se aponta, retira a possibilidade de que o legislador fixe um critério, quer dizer, estabelecendo um mínimo de segurança jurídica�

Eu me lembro bem da jurisprudência do Ministro Sepúlveda Pertence naquele caso – o caso, inclusive, é expressivo, porque era o Plano Collor –, e veio, então, uma fórmula que dizia o seguinte: ficava proibida a concessão de liminares em relação a todo o Plano Collor, todas as medidas do Plano Collor� Ora, era basicamente blindar o Plano Collor, quer dizer, em relação a qualquer impug‑nação, inclusive em relação àquela grave medida que foi a retenção dos ativos financeiros, não é? Então, o que fez o Tribunal? O Tribunal não quis declarar a inconstitucionalidade, mas disse: “O juiz, no caso concreto, poderá fazer a aferição”� E, portanto, foi esta a decisão em sede de liminar� O problema é que aqui nós estamos diante de uma situação muito peculiar, por quê? Nós vamos

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dizer: “Fica em vigor a lei até que o juiz, no caso concreto, decida não aplicar”� E veja, nós estamos hoje com uma���

O sr. ministro Ayres Britto (Presidente): Vossa Excelência tem matéria de fato a suscitar?

O sr. Luís Inácio Lucena Adams (Advogado‑Geral da União): Só esclarecendo um fato à Corte� Os benefícios todos citados que foram referidos, eles estão absorvidos, hoje, no Bolsa Família, que corresponde a R$ 140,00 (cento e qua‑renta reais), e não meio salário mínimo�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Presidente, eu prossigo para mostrar que há um problema, então, neste contexto, por isso, divergindo quanto ao resultado, eu encaminharia o meu voto no sentido de declarar a inconstitucionalidade, mas sem pronúncia da nulidade, fixando um prazo que eu fixaria, mas essa é apenas uma proposta para exercício institucional, mantendo a vigência do modelo até 31 de dezembro de 2014�

Se formos verificar, há muitas incongruências hoje no sistema, a partir deste caso que não está sendo objeto agora de discussão, que é a discussão do Esta‑tuto dos Idosos, que provoca essa incongruência no sistema: exclui o benefício para efeito da renda per capita quando se tratar de concessão de benefício de LOAS para um dos cônjuges, mas não admite em relação aos demais� Como justificar isso, do ponto de vista da racionalidade jurídica, não de racionali‑dade econômica? Como explicar que alguém que tenha se aposentado regular‑mente pela Previdência com o valor de um salário mínimo também não pretenda essa exclusão para efeito do cálculo? Ou a questão que já está posta e que está chegando aqui: os deficientes, que também recebem� Por que eles não foram contemplados? É claro que a gente vai explicar isso do ponto de vista variado: houve uma pane legislativa ou qualquer coisa do tipo� Mas é fundamental que a gente examine essa questão à luz de uma coerência normativa, sob pena de provocarmos realmente��� Mas era só isso�

Portanto, eu estou votando – na fundamentação, creio que nós estamos con‑cordando nas linhas básicas, e eu louvo o voto do eminente Ministro Marco Aurélio –, mas, diferentemente de Sua Excelência, eu encaminho no sentido de declarar a inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade, também atento ao problema de que nós não podemos declarar a nulidade�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, Vossa Excelência permite duas ponderações?

Sabemos que fatores políticos norteiam a atuação do Congresso Nacional e verificamos uma certa inapetência para enfrentar determinados temas� Se con‑cluirmos pela inconstitucionalidade da lei, no que fixa, a meu ver, em termos

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de piso, parâmetro para se aferir a miserabilidade, teremos vácuo normativo considerado sistema que já vem funcionando�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, mas, no caso, eu estou assegurando a aplicação da lei�

O sr. ministro Ayres Britto (Presidente): Ele assegura a sobrevida do modelo até maio de 2014�

O sr. ministro Gilmar Mendes: É, ou até dezembro de 2014�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Por isso, no meu voto, busquei con‑

ciliar o pronunciamento pretérito do Supremo – não participei do Colegiado à época, como não participaram também os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello – com a necessidade de ter‑se, em situações concretas devidamente demonstradas, comprovadas no processo, a concretude da assistência preco‑nizada pela Constituição� Mas, como o preceito não é, de início, autoaplicável, porque tem a cláusula “na forma da lei”, declarada a inconstitucionalidade, ficará um vácuo normativo� Por isso, creio que se deve deixar a comprovação da insuficiência dos parâmetros da lei, para o julgamento de caso concreto�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas veja Vossa Excelência, apenas para com‑plementar esse raciocínio: a gente conhece todos os casos que têm chegado em reclamação, em que os juízes fazem a análise das situações concretas, fazendo perícias e até mostrando que���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Nesse caso, em que sou relator, houve uma perícia socioeconômica�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Exatamente� Medicamentos que essas pes‑soas precisam� Em suma, situações muito especiais, que agravam a situação determinada�

Agora, o problema que se coloca neste outro caso que nós estaríamos a julgar é o critério adotado pelo Estatuto do Idoso, que aumentou então a insegurança jurídica, porque, ao excluir, no caso dos idosos, apenas em relação ao rece‑bimento e percepção de benefício da LOAS, por uma das partes do casal, ele acabou por agravar uma discussão sobre isonomia, porque, como eu disse: e se alguém, na mesma conformação, recebe um benefício da Previdência Social, por contribuição, no valor de um salário mínimo, e o outro pretende LOAS? Vai haver ou não a possibilidade de exclusão� Ele vai argumentar que é inconstitu‑cional� E, aí ,a discussão é a seguinte: esse modelo���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): É difícil delimitar, de forma mate‑mática, a insuficiência�

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O sr. ministro Gilmar Mendes: Esse é difícil� O caso do deficiente, são os casos que já estão surgindo também� É a mesma hipótese� Por que também não fazer a exclusão nesses casos?

Então, nós temos que contemplar essas situações, porque, do contrário, nós vamos ficar realmente sem parâmetro, mas, como nós estamos a encerrar, apenas para efeito de esclarecimento�

PEDIDO DE VISTA

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, dois votos brilhantes foram aqui proferidos, com conclusões parcialmente divergentes� Por outro lado, também foi trazida à tribuna uma questão consagrada constitucionalmente, que é essa questão atuarial em relação a essa intervenção judicial� Evidentemente – se o Ministro Marco Aurélio não participou, que é o nosso decano, e o Ministro Celso de Mello – nenhum de nós participou desse debate que, basicamente lavrado na ADI, criou um critério objetivo para se viabilizar essa política pública�

Eu sempre tive em mente que, na questão da invasão da política pública, o Judiciário deveria ter uma posição de contenção judicial, e os votos aqui foram votos muito densos, muito bem convincentes, mas estão divergindo na con‑clusão� Essas ponderações que ambos os Ministros, Marco Aurélio e Gilmar Mendes, fizeram me levaram a repensar aqui o modelo de proposição que eu tinha� Se o Plenário admitir, eu gostaria de pedir vista antecipada, até porque o Ministro Lewandowski perguntou se iriam ser colhidos os votos, eu pediria vista antecipada, sem demora de trazer o voto novamente�

DEBATE

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Fico com receio, Presidente, que se repita, até mesmo, o ocorrido em um governo anterior, no qual o Supremo decla‑rou a inconstitucionalidade por omissão do Executivo quanto à reposição do poder aquisitivo dos vencimentos� Encaminhou‑se – no governo daquela época, e me refiro aos últimos 10 anos – projeto prevendo reposição irrisória, quando se tinha inflação de cerca de 6%�

O sr. ministro Gilmar Mendes: O problema aqui é que já temos essa opção feita pelo legislador de permitir a exclusão desse benefício quando tiver origem���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Já é um ponto de partida substancial�O sr. ministro Gilmar Mendes: E é isso que está gerando uma grande inse‑

gurança jurídica�

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A opção do Ministro Marco Aurélio nos dá um certo conforto espiritual, mas certamente instaura uma grande (inaudível) em primeiro grau, porque será um estímulo para buscar‑se situações� A falta de parâmetros também é um problema, porque o que se quer é uma lei, tanto é que, naquele caso, o Ministro Nelson Jobim enfatizava: “Ah, é preciso ter um critério�” É o problema que, a toda hora, a Advocacia está enfrentando�

E veja que Vossa Excelência traz hoje uma lista de alguma coisa como dez ou quatorze reclamações� E, no nosso caso, nós estamos – muitos de nós, quase todos – indeferindo as reclamações, reconhecendo que o juiz analisou a cir‑cunstância fática, peculiar, e nós não fazemos, então, nenhuma análise� Isso também não conforta o quadro de segurança jurídica da União e da Previdência� Em suma, temos que tentar buscar uma solução�

Só um ponto aqui que acho importante: o Ministro Marco Aurélio chamou a atenção para o problema do legislador, tem que haver alguma coerência na elaboração dessas políticas sociais, porque senão vai se produzindo esse tipo de fagulha� Mexe‑se no Estatuto do Idoso, mas claro que isso repercute sobre o sistema como um todo, como nós estamos a ver�

Em se tratando de LOAS, por que não também o deficiente? Por que não con‑templar a situação de pessoas que também recebem o benefício da Previdência? Qual é o critério? Agora, isso tem conta para fazer, o Ministro Fux tem razão�

EXTRATO DE ATA

RE 567�985/MT — Relator: Ministro Marco Aurélio� Recorrente: Instituto Nacio‑nal de Seguro Social – INSS (Procurador: Procurador‑Geral Federal)� Recorrida: Alzira Maria de Oliveira Souza (Advogados: Giselda Natalia de Souza Winck Rocha e outros)� Interessadas: União (Advogado: Advogado‑Geral da União), Defensoria Pública‑Geral da União (Procurador: Defensor Público‑Geral Fede‑ral) e Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Advogados: Joelson Dias e outros)�

Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator), despro‑vendo o recurso, e o voto do Senhor Ministro Gilmar Mendes, negando‑lhe provimento e declarando a inconstitucionalidade do § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742/1993, sem pronúncia de nulidade, dando pela sua validade até dezembro de 2014, o julgamento foi adiado pelo pedido de vista do Senhor Ministro Luiz Fux� Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Dias Toffoli� Falaram: pelo recor‑rente, a Dra� Luysien Coelho Marques Silveira, Procuradora Federal; pela Advo‑cacia‑Geral da União, o Ministro Luís Inácio Lucena Adams, Advogado‑Geral

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da União; pela interessada Defensoria Pública‑Geral da União, o Dr� Haman Tabosa de Moraes e Córdova; e, pelo Ministério Público Federal, a Dra� Debo‑rah Macedo Duprat de Britto Pereira, Vice‑Procuradora‑Geral da República� Presidência do Senhor Ministro Ayres Britto�

Presidência do Senhor Ministro Ayres Britto� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber� Vice‑Pro‑curadora‑Geral da República, Dra� Deborah MacedoDuprat de Britto Pereira�

Brasília, 6 de junho de 2012 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

VOTO-VISTA

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, na mesma linha de pensar do Minis‑tro Gilmar Mendes, mister que se estabeleça prazo razoável para que o Con‑gresso Nacional, órgão a quem compete legislar, delibere acerca de critérios mais adequados à concretização das finalidades constitucionais subjacentes ao art� 203, V, da Lei Maior� Enquanto não implementada a necessária raciona‑lidade interna na legislação pelo Congresso Nacional, caberia adotar uma linha de interpretação da Carta Magna que fortalecesse os Direitos Fundamentais�

O princípio da isonomia e o princípio da dignidade humana foram expli‑citados na CF/1988 e reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal� E exata‑mente para que não permaneçam essas violações, é que o juiz pode, durante esse período de vácuo legislativo, avaliar o que deve ser feito no caso concreto� Mutatis mutandis, é isso o que aqui se estabelece�

Por outro lado, é necessário assentar que o direito não pode viver distante da realidade, e a realidade hoje é exatamente essa, que reclama efetivamente essa modulação� Portanto, é preciso estabelecer até que momento vamos tolerar esse estado de inconstitucionalidade� Esse é o papel da Corte�

Ex positis, nego provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Ins‑tituto Nacional do Seguro Social (INSS) e proponho a declaração de inconsti‑tucionalidade por omissão do parágrafo 3º do art� 20 da Lei nº 8�742/1993, sem pronúncia de nulidade, fixando o prazo até 31‑12‑2015 para que o Congresso Nacional edite novo ato jurídico�

É como voto�

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VOTO

O sr. ministro Teori Zavascki: 1. A controvérsia dos autos tem como tema de fundo o benefício de prestação continuada assegurado pelo art� 203, V da Constituição Federal (“Art� 203� A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (���) V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família, conforme dispuser a lei”)�

A Lei a que faz referência o dispositivo constitucional foi editada em 1993� É a Lei 8�742/1993 (LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social), em cujo art� 20, § 3º, dispôs, em sua redação original, o seguinte:

“§ 3º Considera‑se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de defi‑ciência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo�”

Esse parágrafo foi mantido, com mínima alteração de texto, pela Lei 12�470/2011, que lhe conferiu a seguinte redação:

“§ 3º Considera‑se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário‑mínimo�”

2. A constitucionalidade, o sentido e o alcance desse parágrafo foram defi‑nidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1�232/DF, decidida em 1998� É importante rememorar o cerne da discussão então travada� O Minis‑tro Ilmar Galvão, relator originário, sustentou tese assim exposta no seu voto:

“O sr. ministro Ilmar Galvão (Relator): Sobre o cerne da questão posta nos autos, assim se pronunciou o ilustrado parecer da douta Procuradoria‑Geral da República (fls� 83/87):

‘É momento, portanto, de se verificar se, efetivamente, o disposto no § 3º do art� 20 da Lei federal nº 8�742, de 1993, veio a ferir o preceito constitucional que, lembre‑se, assim estatui:

Art� 203� A assistência social será prestada a quem dela necessitar, inde‑pendentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(���)V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa porta‑

dora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover

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à própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família, conforme dis‑puser a lei�

Tem‑se como inequívoco, então, primeiramente, que a regra geral, expressa no caput da regra constitucional sob exame, é de que a assistência social – a qual se presta, entre outros modos, através da garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência – haverá de ser confe‑rida ‘a quem dela necessitar�’

Incumbe‑se o inciso V do mesmo dispositivo constitucional de explicitar que são considerados necessitados da assistência social a pessoa portadora de deficiência e o idoso ‘que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família’�

Concomitantemente, o mesmo inciso V do art� 203 da Carta Magna conteve a eficácia de tal regra, condicionando‑a à edição de lei: ‘Conforme dispuser a lei’�

Adveio, finalmente, a LEI exigida pelo art� 203, V, da Constituição da República: a Lei federal nº 8�742, de 1993�

Veja‑se, no entanto, que, da interpretação de tal Lei federal nº 8�742, de 1993 – conforme seja tal exegese –, é que pode resultar o desrespeito ao mandamento constitucional�

Com efeito, se se entender – como parece ter entendido a representação acolhida pelo Exmo Sr� Procurador‑Geral da República – que o § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742, de 1993, esgota o rol das possibilidades de comprovação de falta de meios, para o deficiente se manter ou ser mantido por sua família, então, realmente, essa norma há de ser tida inconstitucional, na medida em que se terá revelado flagrantemente limitadora (‘considera‑se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ���a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo’) de garantia constitucional ilimitada (‘a quem dela necessitar’)�

Entretanto, se se entender que o mesmo § 3º do art� 20 da Lei federal nº 8�742, de 1993, ao contrário de estar instituindo caso único de possibilidade de prova de tal falta de meios e de estar excluindo outras possibilidades, nada mais faz do que meramente instituir caso de PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE de insuficiência de meios familiares, para manutenção de portador de deficiência, então nenhuma inconstitucionalidade poderá ser entrevista�

Em verdade, o entendimento que ora o Ministério Público Federal abraça – e que foi sustentado, muito eficientemente, nas informações prestadas pelo Exce‑lentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal (fl� 66) – parece ser a única exe‑gese correta�

É que a referência do art� 203 da Constituição Federal à disciplina através de LEI não consta do caput daquele preceito – onde deveria figurar, se tivesse por missão restringir a cláusula ‘a quem dela necessitar’ –, mas, ao reverso, ficou inserida, apenas, em um de seus cinco incisos: o V�

Forçoso se faz, portanto – quando menos, por amor à lógica e às regras da hermenêutica –, concluir que a expressão ‘conforme dispuser a lei’, constante

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do inciso V do art� 203 da Carta de 1988, tem relação, exclusivamente, com OS MEIOS DE COMPROVAÇÃO da situação de fato prevista pelo preceito constitu‑cional, como condição para a concessão do benefício instituído, matéria essa, por isso mesmo, imediatamente anterior a inserção da cláusula que a submeteu ao regime da LEI:

‘V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa porta‑dora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meio de prover à própria manutenção ou de tê‑la provida por sua família, conforme dispuser a lei�’ (destaques nossos)

Por isso, ao estabelecer que, em se tratando de ‘família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo’, AUTOMATICAMENTE ‘Considera‑se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiên‑cia’, o § 3º do art� 20 da Lei federal nº 8�742, de 1993, nada mais estava fazendo, senão instituindo típica PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE, ou seja, DISPENSANDO DE QUALQUER COMPROVAÇÃO, NO ESPECÍFICO CASO CONSIDERADO – con‑tinuando OS DEMAIS CASOS submetidos à regra geral de COMPROVAÇÃO –, no que não extrapolou a outorga que lhe foi conferida pelo texto constitucional�

Em sendo assim, está‑se na típica presença de caso no qual se faz invocável o entendimento dessa Suprema Corte, segundo o qual, existindo duas ou mais formas de se interpretar o texto constitucional, e revestindo‑se apenas uma delas de constitucionalidade, essa Excelsa Corte não declara a inconstitucionalidade, mas proclama a ‘interpretação conforme a Constituição, técnica que:

‘���só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpre‑tações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente�’ (ADIn 1�344‑1‑Medida Liminar‑ES, Rel� Min� Moreira Alves, in DJ de 19‑4‑1996, p� 12212�)

O parecer é, por conseguinte, de que a Ação Direta de Inconstitucionalidade deva ser julgada procedente, porém exclusivamente para o efeito de ser procla‑mada a interpretação conforme a Constituição, segundo a qual, o § 3º do art� 2º da Lei federal nº 8�742, de 1993, limitou‑se a instituir caso de presunção juris et de jure, sem excluir a possibilidade de serem comprovados outros casos de efetiva falta de meios para que ‘o portador de deficiência possa prover a própria manu‑tenção ou tê‑la provida por sua família�’

Na realidade, não se pode vislumbrar inconstitucionalidade no texto legal, posto revelar ele uma verdade irrefutável, seja, a de que é incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo�

A questão que resta é a de saber se com a hipótese prevista pela norma é a única suscetível de caracterizar a situação de incapacidade econômica da família do portador de deficiência ou do idoso inválido�

Revelando‑se manifesta a impossibilidade da resposta positiva, que afastaria grande parte dos destinatários do benefício assistencial previsto na Constituição, outra alternativa não resta senão emprestar ao texto impugnado interpretação

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segundo a qual não limita ele os meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idoso�

Meu voto, portanto, com o parecer, julga procedente apenas em parte a ação, para o efeito acima explicitado�”

O voto, entretanto, restou vencido, eis que a maioria seguiu a orientação adotada pelo Ministro Nelson Jobim, nos seguintes termos:

“O sr. ministro Nelson Jobim: Sr� Presidente, data vênia do eminente Relator, compete à lei dispor a forma da comprovação� Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei� O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma� Portanto não há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição�

Com todas as vênias, julgo improcedente a ação, na linha do voto da rejeição da liminar�”

Explicitou voto também o Ministro Sepúlveda Pertence, a saber:

“O sr. ministro Sepúlveda Pertence: Sr� Presidente, considero perfeita a inteli‑gência dada ao dispositivo constitucional, no parecer acolhido pelo Relator, no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter‑se o idoso ou o deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art� 203 da Constituição� A meu ver, isso não a faz inconstitucional nem é preciso dar interpretação conforme à lei que estabeleceu uma hipótese objetiva de direito à prestação assistencial do Estado� Haverá, aí, inconstitucionalidade por omis‑são de outras hipóteses? A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta�

Julgo improcedente a ação�”

3. Ficou assim redigida a ementa do acórdão:

“CONSTITUCIONAL� IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART� 203 DA CF� INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO� ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO� AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE�”

4. Essa decisão do Supremo Tribunal Federal mereceu muitas reservas pelas instâncias ordinárias, especialmente porque, no âmbito dos Juizados Especiais

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Federais, havia sido aprovada, pela Turma Nacional de Uniformização, uma súmula (n� 11) segundo a qual “a renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assis‑tencial previsto no art� 20 § 3º da Lei 8�742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”�

Embora essa súmula tenha sido cancelada, em 15‑5‑2006, em virtude da deci‑são do STF na ADI 1�232/DF, o certo é que, mesmo assim, a sua orientação con‑tinuou sendo seguida em muitos julgados posteriores, com desprezo à decisão da Suprema Corte� Essa tendência se acentuou a partir do momento em que o próprio STF, em vários julgados monocráticos, deixou de acolher reclamações formuladas pelo INSS tendentes a fazer valer a autoridade da decisão proferida na ADI 1�232/DF (v.g�: Rcl 4�374 MC/PE, rel� Min� Gilmar Mendes, j� 1º‑2‑2007, DJ de 6‑2‑2007, p� 111; Rcl 3�805/SP, rel� Min� Cármen Lúcia, j� 9‑10‑2006, DJ de 18‑10‑2006, p� 41; Rcl 4�280/RS, rel� Min� Sepúlveda Pertence, j� 20‑6‑2006, DJ de 30‑6‑2006, p� 42; Rcl 4�145/RS, rel� Min� Marco Aurélio, j� 30‑4‑2006, DJ de 10‑5‑2006, p� 36)�

O Plenário, todavia, continuava mantendo o que foi decidido na ADI 1�232/DF (v.g�: Rcl 4�427 MC‑AgR/RS, Pleno, rel� Min� Cezar Peluso, j� 6‑6‑2007, DJ de 29‑6‑2007, p� 23; Rcl 2�323/PR, Pleno, rel� Min� Eros Grau, j� 7‑4‑2005, DJ de 20‑5‑2005, p� 8; Rcl 2�303 AgR/RS, Pleno, rel� Min� Ellen Gracie, j� 13‑5‑2004, DJ de 1º‑4‑2005, p� 5)�

5. Nesse ambiente é que se apresenta agora o exame da matéria, e o que se tem, mutatis mutandis, é a reprodução da mesma discussão estabelecida quando do julgamento da ADI 1�232/DF�

6. Ora, aqui não cabe aqui fazer juízo sobre o acerto ou não da decisão tomada na referida ADI� O que importa é que se trata de uma decisão do Supremo Tribu‑nal Federal, com eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, insuscetível de ataque por ação rescisória (Lei 9�868/1999, art� 26), menos ainda por via de recurso extraordinário ou de reclamação�

7. Para subtrair‑se à autoridade da decisão do STF na ADI 1�232/DF, relati‑vamente à constitucionalidade e ao sentido do art� 20, § 3º, da Lei 8�742/1993 (LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social), cogita‑se da sua possível incons‑titucionalidade superveniente ou da sua revogação, em face de leis posteriores, nomeadamente do art� 5º, I, da Lei 9�533/1997 e do art� 2º, § 2º, da Lei 10�689/2003� Com todo o respeito, não se mostram convincentes essas linhas de raciocínio�

8. Se a norma foi declarada constitucional por decisão do Supremo Tribu‑nal Federal, tomada em controle concentrado de constitucionalidade, insus‑cetível de rescisão, qualquer juízo em sentido contrário – para afirmar a sua

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ilegitimidade – dependeria da configuração de algum pressuposto de inconsti‑tucionalidade superveniente: ou a mudança da realidade social em que atuam a norma constitucional e a norma infraconstitucional, ou a mudança do parâme‑tro normativo constitucional, que pudesse acarretar a não recepção (e, portanto, a revogação) do art� 20, § 3º da Lei 8�742/1993� Nada disso, todavia, ocorreu, no caso� Não há sustento algum, portanto, para um juízo de inconstitucionalidade superveniente�

9. Não há, do mesmo modo, razão para afirmar a revogação desse disposi‑tivo por lei ordinária posterior com ele incompatível� O benefício decorrente do art� 203, V, da Constituição, de natureza individual, disciplinado no art� 20, § 3º da Lei 8�742/1993, tem configuração e pressupostos normativos próprios, insuscetíveis de equiparação com outros benefícios sociais, de natureza familiar, como o da Lei 10�689/2003, que cria o Programa Nacional de Acesso à Alimen‑tação, ou o da Lei 9�533/1997, que incentiva a criação de programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas� Por isso mesmo, não se pode supor que a mudança na legislação em relação aos requisitos ou pressu‑postos para a concessão de um desses benefícios, autorize a conclusão de que os mesmos pressupostos ou requisitos devam ser aplicados aos demais� Nesse sentido, não há como supor que o art� 5º, I, da Lei 9�533/1997 tenha comprome‑tido a vigência ou do dispositivo aqui em causa� Essa Lei 9�533/1997, segundo sua ementa, “autoriza do Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Muni‑cípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas”� É nesse contexto que seu artigo 5º, I, estabelece:

“Art� 5º Observadas as condições definidas nos arts� 1º e 2º, e sem prejuízo da diversidade de limites adotados pelos programas municipais, os recursos fede‑rais serão destinados exclusivamente a famílias que se enquadrem nos seguintes parâmetros, cumulativamente:

I – renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo;II – filhos ou dependentes menores de catorze anos;III – comprovação, pelos responsáveis, da matrícula e frequência de todos os

seus dependentes entre sete e catorze anos, em escola pública ou em programas de educação especial�”

Não há como afirmar, portanto, sem atentar contra princípios básicos de her‑menêutica e interpretação (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB, art� 2º, § 1º), que esse dispositivo, tratando de matéria tão diversa, possa ter operado a revogação do art� 20, § 3º da Lei 8�742/1993 (LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social)� O equívoco se mostra ainda mais manifesto quando se

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adota a prática de retirar, desse texto normativo, apenas um dos seus incisos iso‑ladamente, sem considerar a norma em seu contexto integral e sistemático, que exige, para o usufruto do benefício, a conjugação cumulativa de todos eles�

O mesmo se diga do art� 2º, § 2º, da Lei nº 10�689/2003� Trata‑se de Lei que cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação e o citado dispositivo tem o seguinte enunciado:

“Art� 2º O Poder Executivo definirá:I – os critérios para concessão do benefício;II – a organização e os executores do cadastramento da população junto ao

Programa;III – o valor do benefício por unidade familiar;IV – o período de duração do benefício; eV – a forma de controle social do Programa�§ 1º (���)§ 2º Os benefícios do PNAA serão concedidos, na forma desta Lei, para unidade

familiar com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo�§ 3º Para efeito desta Lei, considera‑se família a unidade nuclear, eventualmente

ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros�

§ 4º O recebimento do benefício pela unidade familiar não exclui a possibilidade de recebimento de outros benefícios de programas governamentais de transfe‑rência de renda, nos termos de regulamento�

§ 5º Na determinação da renda familiar per capita, será considerada a média dos rendimentos brutos auferidos pela totalidade dos membros da família, excluí‑dos os rendimentos provenientes deste Programa, do Bolsa‑Alimentação, e do Bolsa‑Escola�”

Aqui também, em face da absoluta diversidade da matéria, não há como supor que esse art� 2º tenha operado a revogação, por incompatibilidade (art� 20, § 3º, da Lei 8�742/1993)�

Por fim, ainda que se admitisse ter havido a afirmada revogação, por incom‑patibilidade com as Leis supervenientes de 1993 e de 2003, é certo que, a partir de 2011, a norma alegadamente revogada foi restaurada, por força do que estabe‑leceu a Lei 12�470/2011, que, no seu art� 3º, lhe deu a seguinte redação (destinada a adaptar o seu texto à Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Decreto 6�949/2009):

“§ 3º Considera‑se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário‑mínimo�”

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Não se pode duvidar, nessas circunstâncias, da vigência dessa norma, cujo sentido e alcance estão definidos – certa ou erradamente, aqui não cabe discu‑tir – pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1�232/DF, cuja auto‑ridade deve ser respeitada, por sua eficácia erga omnes e seu efeito vinculante�

VOTO (Notas)

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, também faço esse registro� Entendo que a matéria, tal como posta, especialmente no Recurso Extraordi‑nário nº 567�985, seria de natureza infraconstitucional, porque nada mais se fez do que dar a solução à controvérsia, à luz da legislação infraconstitucional de regência� Mas a questão do conhecimento está superada, pois foi reconhecida a repercussão geral�

Nessa linha, com todo o respeito aos entendimentos contrários, acompanho o voto do Relator, o Ministro Marco Aurélio, bem como o exarado pelo Ministro Gilmar, no processo 580�963, e o do Ministro Fux, pedindo vênia ao Ministro Teori, no sentido de negar provimento a esses recursos extraordinários� São processos subjetivos, nos quais nada mais fez, a meu juízo, o julgador do que interpretar a lei� E o fez, especificamente no primeiro deles, o 567�985, à com‑preensão de que o parâmetro, o critério objetivo de miserabilidade, previsto no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8�742/1993, havia sofrido ou revogação ou não mais poderia subsistir como um único parâmetro, a compreensão de que a misera‑bilidade jurídica poderia ser interpretada de uma outra forma�

Com relação ao fundamento respeitabilíssimo trazido pelo Ministro Teori de que, na verdade, na discussão travada neste plenário, ficou vencida a posição que sustentava a possibilidade de, por outras formas, ser comprovada a mise‑rabilidade jurídica, pedindo vênia à essa compreensão, compartilho da que foi defendida pela Ministra Cármen Lúcia, em voto inclusive também lembrado pelo Ministro Fux, no sentido de que o fato de o Supremo ter declarado a constitucio‑nalidade daquela norma não significa que sejam inconstitucionais as decisões que observem outros parâmetros para a definição da miserabilidade jurídica�

Em função de todos os impactos, também tenho o voto escrito, Senhor Pre‑sidente, mas todos os fundamentos já foram expostos nas diferentes mani‑festações, eu voto no sentido de negar provimento a ambos os recursos, mas endosso a compreensão do Ministro Gilmar no sentido de declarar a inconsti‑tucionalidade, porque estamos no caminho da inconstitucionalidade, ela não se

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tornou, ela está em vias de se tornar inconstitucional, e, por isso, sem decretar a ação de nulidade�

DEBATE

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, eu só tenho uma dúvida com relação ao prazo proposto, porque temos, assim, essa experiência de que o prazo seria, se bem me recordo, 2014, nós teremos um ano e pouco e tempus fugit�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Obviamente, em razão da própria interrup‑ção do julgamento e da retomada, ontem eu recebi a manifestação da Advocacia‑‑Geral da União exatamente nessa mesma linha, manifestando que, tendo em vista a possibilidade de parcial procedência do pedido, o prazo hoje, no mínimo, se fixado a partir desta data, seria extremamente exíguo, e aí surgiria mais um ano� Depois, eu vou fazer a consideração�

Eu estava até conversando com o Ministro Celso de Mello a propósito exa‑tamente das situações concretas, porque eu ouvi com toda a atenção o voto do Ministro Fux e também o do Ministro Teori, eu não me animo, embora me fascine a ideia trazida pelo Ministro Fux, e acho que está até na posição do legislador ter um critério, e aí os 5%, mas, daqui a pouco, o juiz, obviamente, vai ter uma outra situação, etc�, e terá que fazer a avaliação in concreto� Nós já vimos que o próprio legislador aqui, no caso do idoso, acabou por impor uma restrição que gera um impacto, porque, na medida em que se declara a incons‑titucionalidade do disposto no Estatuto do Idoso – e parece evidente que é inconstitucional –, quando se tratar de um idoso casado com outro que recebe assistência social, ele poderá também fazer jus à assistência social� Mas, se a fonte decorrer de uma outra causa, aí não, ainda que o valor seja idêntico, quer dizer, a lei criou uma exclusão que é arbitrária� Porém é claro que isso tem um impacto sério no sistema, é preciso que se façam os devidos ajustes�

Por outro lado, em relação ao voto do Ministro Teori, eu acho importante des‑tacar que, depois da decisão do Supremo que afirmou a constitucionalidade com base no voto do Ministro Jobim e com as ressalvas que já foram feitas naquele julgamento, ao longo desses últimos anos – e eu fiz até um levantamento que eu acho que aparece no meu voto –, o Tribunal, pelo menos na composição quando do julgamento, vinha, quase que sistematicamente���

A sra. ministra Cármen Lúcia: Abrindo exceções�O sr. ministro Gilmar Mendes: Abrindo exceções e, mais do que isso,

negando, portanto, conhecer ou mesmo julgar procedentes as reclamações, o que indicava que era uma validação das decisões de primeiro grau, as decisões

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que estavam sendo tomadas no sentido da concessão, pela avaliação concreta que se fazia� Por isso até que eu estava resgatando essa discussão, e relembrando aqui com o Ministro Celso um debate que ocorreu quando o Tribunal discutiu a Medida Provisória nº 173, que se referia ao Plano Collor, depois chamado Plano Collor I� O que dizia essa medida provisória? Que ficava vedada a concessão de liminar que envolvesse a não observância das regras estabelecidas no Plano Collor, tanto é que eram citadas especificadamente todas as medidas provisó‑rias depois convertidas em lei�

O Tribunal se viu às voltas com a seguinte situação: ou declarava inconstitu‑cional – eu acho que era a proposta do Ministro Brossard, claramente incons‑titucional a���

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Gilmar Mendes: Exatamente, o que a gente chama uma pro‑

porcionalidade em concreto� Eu estava, aqui, refazendo essa visita a esse tema, e eu me lembro, aqui, o que o Ministro Pertence dizia, se referindo à medida provisória:

“(���) essa generalidade e essa imprecisão, que a meu ver, podem vir a condenar, no mérito, a validez desta medida provisória, dificultam, sobremaneira, agora, esse juízo sobre a suspensão liminar dos seus efeitos, nesta ação direta�”

“Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, veto a priori, a toda e qualquer restrição que se faça a concessão de liminar (���)”

Isso se dizia porque o Tribunal, tradicionalmente, aceitava, pelo menos em tese, a restrição de liminar, mas eram casos muito específicos, por exemplo, na tradição dos anos 50, a vedação à liminar, nos casos de liberação de produtos em alfândega; ou depois, a questão de aumento de vencimentos por força de liminar – coisas que depois foram incorporadas ao Direito Positivo de forma muito ampla�

Então, ele dizia:

“Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, veto a priori, a toda e qualquer restrição que se faça à concessão de liminar, é impossível, no cipoal de medidas provisórias que se subtraíram ao deferimento de tais cautela‑res, initio litis, distinguir, em tese, e só assim poderemos decidir neste processo até onde as restrições são razoáveis, até onde são elas contenções, não ao uso regular, mas ao abuso de poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a consequente afronta a jurisdição legítima do Poder Judiciário�

Por isso, (���) depois de longa reflexão, a conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos precedentes, é que a solução adequada às graves

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preocupações que manifestei – solidarizando‑me nesse ponto com as ideias manifestadas pelos dois eminentes Pares – não está na suspensão cautelar da eficácia, em tese, da medida provisória�

O caso, a meu ver, faz eloquente a extrema fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar o velho sistema difuso americano de controle de constitucionalidade ao novo sistema europeu de controle direto e concentrado�

O que vejo, aqui, embora entendendo não ser de bom aviso, naquela medida provisória que há na grave decisão a tomar, da suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose constitucional a que me referi, dos dois sistemas de controle de cons‑titucionalidade da lei, permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar em caso onde – segundo as premissas que tentei desenvolver e melhor do que eu desenvolveram os Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello – exatamente nessa linha – a vedação da liminar, porque desarrazoada, porque incompatível com o art� 5º, XXXV, porque ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder Judiciário, se mostre inconstitucional�

Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva�”

Então, na verdade, eu tenderia, tendo em vista essa ponderação trazida pela AGU, até mesmo a fixar um prazo que iria ao fim de 2015�

A sra. ministra Cármen Lúcia: Talvez dois anos contados da data desse julgamento�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Ou isso, desse julgamento� E também pon‑deraria que o juiz, no caso concreto, poderá fazer essa aferição, o que até é ine‑vitável, diante do que já vem sendo decidido pela Corte em várias reclamações�

Tanto é, Presidente, eu tinha trazido também a Reclamação nº 4�374, exata‑mente para tentar dar um encaminhamento, até porque nós estamos vivendo um momento – vamos dizer assim, perdoe‑me a palavra – de uma certa esqui‑zofrenia institucional, porque, de um lado, dizemos que temos a ADI com efeito vinculante, ao mesmo tempo, nas reclamações, nós estamos julgando‑as de alguma forma improcedentes, ou indeferindo a liminar, e validando as decisões contrárias ao que foi decidido na ADI�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): A Declaratória de Constitucionali‑dade nº 16 foi uma declaratória e não uma ação direta de inconstitucionalidade�

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O sr. ministro Gilmar Mendes: Não foi ADI?O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não, foi declaratória, penso que foi

a Declaratória nº 16�O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, acho que foi�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Vossa Excelência me permite, Pre‑

sidente, como relator de um dos casos?No caso relatado pelo ministro Gilmar Mendes, há uma���O sr. ministro Gilmar Mendes: ADI 1�232�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Houve também a declaratória de

constitucionalidade quanto ao���O sr. ministro Luiz Fux: Não, acho que só ADI�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Vossa Excelência me permite,

apenas para refletirmos em voz alta?Penso que se acabou por desconhecer a inexistência da necessidade dos

idosos� Por que afirmo isso? Porque a Turma recursal admitiu, no acórdão – muito embora não seja órgão integrado a Tribunal, mas a Lei nº 9�099/1995 emprega essa nomenclatura “acórdão” –, que o marido teria uma aposentado‑ria de trezentos e cinquenta reais� Indago: por que, então, cogitou da LOAS, da assistência, desse benefício previsto no inciso V do artigo 203 da Constituição Federal? A resposta está no acórdão:

“Benefício de valor mínimo [que é o caso, aposentadoria no valor mínimo, salá‑rio mínimo] percebido, recebido, por idoso integrante do núcleo familiar, [vem a peculiaridade a discrepar da ordem jurídica] seja a título de LOAS, seja a título de aposentadoria, pensão ou qualquer outro benefício de valor mínimo, não deve ser computado no cálculo em questão�”

Fez referência à Lei nº 10�741, de 2003, que é o Estatuto do Idoso� Ao versar a matéria, a Lei do Idoso apenas excluiu a percepção sob o mesmo título� Vou proceder à leitura do artigo:

“Art� 34� Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê‑la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário‑mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas�”

O parágrafo prevê a exclusão de parcela específica, não alcançados proventos decorrentes da aposentadoria:

“Parágrafo único� O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput [ou seja, sob o ângulo da assistência prevista no inciso V do

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artigo 203] não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas�”

O que fez o Juízo? Estendeu essa exclusão, a ponto de alcançar o que recebido a título de proventos pela aposentadoria e o que percebido também a título de pensão, esta em decorrência do falecimento� Acabou por extravasar a premissa constitucional básica para ter‑se o benefício, que é a necessidade, visando a subsistência do núcleo familiar�

Então, nesse caso relatado por Vossa Excelência, ministro Gilmar Mendes, inclusive debati com Vossa Excelência na oportunidade, mas sem ter presente o pronunciamento impugnado mediante extraordinário, porque apenas dois os beneficiários cotados com quantitativo igual ao salário mínimo, provejo o recurso do Instituto� Provejo‑o porque, reafirmo, desprezou‑se – e está no acór‑dão – a circunstância de o marido, Antônio Dias, ter proventos no valor mínimo, à época, de trezentos e cinquenta reais� A família é constituída de marido e mulher apenas� A situação é diversa do caso relatado por mim, em que apre‑ciadas as circunstâncias, entendeu‑se que aquela percentagem, ou percentual, previsto na lei de regência, da assistência, um quarto do salário mínimo, seria, no tocante ao núcleo familiar, insuficiente para a subsistência dos integran‑tes� Nesse outro caso, não! Nesse outro caso, muito embora reconhecendo‑se a existência de proventos da aposentadoria iguais ao salário mínimo, mesmo assim, condenou o Instituto a satisfazer a prestação continuada de assistência�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Então, Vossa Excelência declara a inconsti‑tucionalidade do parágrafo único também?

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não� Porque, por exemplo, se os integrantes do núcleo forem dois, não admito que alguém possa sobreviver com dois quartos do salário mínimo� Por isso, digo���

O sr. ministro Luiz Fux: Se houver um gasto de medicamentos que absorva esse salário mínimo que a parte percebe, dentro da ideologia do voto de Vossa Excelência, que mais ou menos foi o que eu entendi, o juiz poderia aferir���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): A rigor, a rigor, o legislador partiu para a utopia, quando imaginou que, no caso, tendo cada integrante da família a percepção���

O sr. ministro Luiz Fux: Não, é a realidade que se passa nos Juizados Especiais�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Havendo esse valor de um quarto por cabeça, não se tem o direito à assistência, e essa família���

O sr. ministro Gilmar Mendes: Sem querer contestar o voto de Vossa Exce‑lência, mas aqui me parece o seguinte: para manter a coerência, então, a rigor,

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teria que declarar a inconstitucionalidade com nulidade do parágrafo único do artigo 34�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Admito que, se um integrante já percebe o benefício – um deles apenas –, se possa concluir – mas é o que digo, há de ser aferida a situação concreta – que esse quantitativo é insuficiente� Daria interpretação conforme para remeter a exclusão da regra do artigo 20 à apreciação do caso concreto�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas não se trata de um caso concreto, porque o legislador que estabeleceu�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Como se temos em mesa dois?O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas, o que nós temos, a rigor, a situação é

concreta, mas o que nós temos é uma definição na lei que diz que um idoso que receba LOAS permite que o outro também�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Será que prejudica os demais a percepção���

O sr. ministro Gilmar Mendes: Do benefício LOAS, do benefício de assistên‑cia social� Eu estou dizendo: se estivermos a falar de pensão ou se estivermos a falar de um benefício previdenciário, ou até aquela situação do deficiente, estaríamos, na verdade, a ferir o Princípio da Isonomia� Esse é um argumento�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, argumentei com o pará‑grafo para simplesmente apontar que o órgão julgador foi além da exclusão autorizada, no que excluiu também proventos� Foi o único argumento�

O sr. ministro Gilmar Mendes: A mim, me parece que a questão é relevante sob dois prismas: primeiro, a questão da evolução que se deu� Esse debate não tem nada a ver com o Estatuto do Idoso, porque é um debate que já estava presente quando do julgamento da ADI� O Ministro Ilmar inclusive suscitou já a incompletude ou a inconstitucionalidade� Então, esse é um ponto� Depois, tivemos as várias bolsas, os vários benefícios outros concedidos e que adotaram outros critérios� Por isso que falo� Não vou agora ler o voto� Inclusive, na reclama‑ção, estendo‑me sobre essa tendência num processo de inconstitucionalização�

O problema aqui é mais grave, por quê? Se disséssemos que é inconstitucional o parágrafo único do artigo 34, estaríamos fazendo exatamente o quê? É um caso de inconstitucionalidade que agrava a situação dessas pessoas, que o legis‑lador avaliou, quer dizer, fazendo todas as contas, tendo em vista os critérios da seguridade, considerando os critérios atuariais eventuais levados em conta, o legislador entendeu que os cofres públicos poderiam suportar essa opção� O problema é que, quando isso é tratado de forma assistemática, acontecem essas incongruências� Poderíamos também trilhar o outro caminho dizendo: “Já

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que ele optou por contemplar o idoso, nessa situação, que contemple também fazer uma sentença aditiva�” Mas não é esse o caminho que estou propondo�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Vossa Excelência quer um elemento mais complicador? No caso que relatei, a Turma Recursal considerou a Lei nº 10�689/2003 posterior, portanto, à regedora da espécie, ou seja, a que regula‑mentou o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal� Levou em conta a lei mediante a qual foi criado o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA), e que dispôs: “(���) É carente a pessoa cuja renda mensal não ultrapasse a soma de meio salário mínimo (���)”, quando a que veio regulamentar o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal considera um quarto do salário mínimo por cabeça do núcleo familiar�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Ministro Marco Aurélio, Minis‑tro Gilmar, noto que há uma discrepância na conclusão dos votos� Há um que declara��� Aliás, chamo a atenção dos que já proferiram voto� Ministro Gilmar�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu desprovejo os recursos e proponho que se declare a inconstitucionalidade�

A sra. ministra Cármen Lúcia: A inconstitucionalização�O sr. ministro Gilmar Mendes: É� Mas a inconstitucionalidade do parágrafo

único do artigo 34, fixando um prazo, mantendo‑a em vigor�A sra. ministra Cármen Lúcia: Do artigo 34, fixando o prazo�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Mas por que haveria a inconstitu‑

cionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso?O sr. ministro Gilmar Mendes: Porque contemplou exclusivamente o idoso

que recebe LOAS, e não outro que possa estar numa mesma condição�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Gilmar Mendes: É o caso clássico de exclusão de benefício

incompatível com o princípio da igualdade�A sra. ministra Cármen Lúcia: Aqui o fundamento é o princípio da igualdade�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Sim, mas não afasta a consideração

de peculiaridades que conduzam à conclusão de que aqueles componentes do núcleo familiar não têm condições próprias a uma subsistência digna� Apenas prevê que não se considere, para aferição da percentagem prevista na lei, um quarto do salário mínimo, a LOAS já percebida por um dos integrantes�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas ele mantém a exclusão em relação aos outros�

A sra. ministra Cármen Lúcia: Mantém�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): No meu voto, por exemplo, admito

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que, aferidas as situações concretas, possa o julgador, já acionando o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, apontar a insuficiência do que tarifado na lei�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Ministro, basta uma situação: se um deles recebe pensão, e o outro recebe LOAS���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Quanto à pensão, não� Quanto à pensão, bem como proventos, há a exclusão do direito a LOAS� Tanto que estou provendo o recurso do Instituto no caso que está sob a relatoria de Vossa Exce‑lência, para julgar improcedente o pedido formulado� Por quê? Porque, de forma clara e precisa, assentou‑se que um dos dois componentes da família já percebe da Previdência, ante aposentadoria, provento, embora no valor mínimo� Então, não temos, a não ser que digamos que o salário mínimo não é suficiente à manu‑tenção de duas pessoas, base para concluir pelo direito à parcela de assistência�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas, então, é inconstitucional� É o parágrafo único do artigo 34�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não, veja: se a lei que regulamentou, Presidente, o inciso IV do artigo 203 da Constituição Federal contenta‑se com um salário mínimo para a manutenção de quatro pessoas, sim, se é considerado um quarto por pessoa, chega‑se a quatro quartos, não posso dizer que, em uma situação concreta, em que os componentes da família, duas pessoas, tenham o salário mínimo, há a incidência do preceito constitucional�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas, então, o Estatuto do Idoso criou um privilégio�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Bom, vamos prosseguir na votação�

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Pois não!O sr. ministro Teori Zavascki: Apenas para fazer uma observação a respeito

do meu voto e do precedente do Supremo, que deu uma determinada solução no caso das leis que impedem a concessão de medidas liminares� Naquele caso, realmente, o Supremo considerou constitucional a lei que estabelecia essas res‑trições, sem prejuízo, todavia, de que, no exame de caso concreto, o juiz pudesse aferir as situações individuais e deferir liminar�

Talvez, essa solução, que foi muito sábia, devesse ter sido aplicada no caso concreto; e, aliás, era essa a solução proposta, no caso, pelo Ministro Ilmar Galvão�

A sra. ministra Cármen Lúcia: E foi do que eu me vali nas reclamações, Ministro, expressamente, nesta matéria�

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O sr. ministro Teori Zavascki: Mas, naquele caso, nesse caso da 1�232, o Supremo rejeitou expressamente essa solução, de modo que adotar essa solução significa, na prática, conferir efeitos rescisórios a uma decisão do Supremo em controle concentrado� Esse é no meu entender���

A sra. ministra Cármen Lúcia: Ministro, gostaria apenas, se Vossa Excelência me permite, de observar que, quando passei a decidir esta matéria, objeto deste recurso, nas reclamações, incluída aquela que foi mencionada pelo Ministro Fux, eu citei o que disse o Ministro Sepúlveda Pertence, na Ação Direta nº 1�232�

O sr. ministro Teori Zavascki: Eu reproduzi aqui o voto integral do Minis‑tro Sepúlveda���

A sra. ministra Cármen Lúcia: Exatamente�O sr. ministro Teori Zavascki: Li o voto de Vossa Excelência, mas faço uma

leitura diferente a respeito do que diz o Ministro Sepúlveda Pertence� O Minis‑tro Sepúlveda Pertence diz que a matéria está reservada à lei, que o art� 20, § 3º, pode ter vícios de inconstitucionalidade por omissão, mas que é o legislador que deve preencher essa omissão, e não o juiz� É isso que foi dito�

O sr. ministro Gilmar Mendes: E é o que estamos dizendo agora�A sra. ministra Cármen Lúcia: Estamos dizendo, apenas, que o juiz, no caso

concreto, vai aferir as situações individuais�O sr. ministro Gilmar Mendes: Estamos dizendo que se declara a constitu‑

cionalidade, deixa a lei em vigor, devolvemos ao legislador a possibilidade de reconformar o sistema�

A sra. ministra Rosa Weber: Por isso, se me permite, apenas para comple‑mentar o meu voto: peço vênia ao Ministro Fux para não estabelecer qualquer critério, porque, com todo o respeito, entendendo que aqui não é o fórum, o locus adequado�

O sr. ministro Luiz Fux: Apenas uma observação: quando nós estávamos decidindo a insuficiência constitucional porque havia uma omissão na regu‑lamentação do aviso prévio, aqui nós começamos a debater qual seria o prazo, etc�, e exortamos o legislador a regular� Então, a ideia teve esse escopo, mas evidentemente que a minha proposição está embutida nessa já assentada de que o legislador vai escolher os juízes, vão aferir no caso concreto�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, naquele caso concreto, o legislador atuou, mas o fez assustado com certas propostas que surgiram no Plenário� A minha, por exemplo, que, no caso, ia muito mais adiante quanto à proporcionalidade�

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VOTO (Aditamento)

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, acompanho o Relator no primeiro caso do Ministro Marco Aurélio, negando provimento, pelas razões exatamente expostas e que repetem de alguma forma o que já tinha decidido na Reclamação nº 3�805, como disse antes� Penso que foi declarada a incons‑titucionalidade, sem embargo de o juiz poder, no caso concreto, verificar que não estão atendidas as condições específicas da seguridade social, nos termos do princípio da dignidade da pessoa humana� Portanto, estou acompanhando o Ministro Relator�

VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, vou pedir vênia aos que pensam contrariamente e acompanhar o voto do Ministro Teori Zavascki�

Eu fiquei impressionado com os argumentos de Sua Excelência, já tinha me impressionado também, positivamente, com os memoriais que recebi da Advo‑cacia‑Geral da União, e recordo, em linhas muito gerais, posso até incorrer em algum equívoco interpretando o que disse o eminente Ministro Teori Zavascki, mas a verdade é que o artigo 203, inciso V, da Constituição, remete à lei a regu‑lamentação desse valor mínimo que deve ser conferido ao idoso em situação, como a própria lei chama, de miserabilidade� Ou seja, deferiu ao legislador ordi‑nário essa incumbência, que, por sua vez, adotou���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, mas não é uma carta branca�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim� Mas que, por sua vez, adotou um critério objetivo� Esse é um aspecto�

Ao fazê‑lo, levou em consideração aquilo que o eminente Ministro Gilmar Mendes trouxe à colação, que é exatamente a situação orçamentária da Pre‑vidência Social� E Sua Excelência mesmo disse que o legislador ordinário, o Congresso Nacional, deve ter feito uma série de cálculos e chegou à conclusão de que esse é o valor possível, é aquilo que os juristas chamam de reserva do possível, aquilo que o erário pode pagar, neste presente momento histórico, ao idoso� Então, esse é um aspecto que me parece relevante�

Na verdade, o Congresso Nacional estabeleceu uma política pública; boa ou má, é uma política pública� E as políticas públicas são instituídas pelo Congresso Nacional em conjunto com o Poder Executivo, e não cabe, em princípio, ao Poder Judiciário

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imiscuir‑se nessa área, estabelecer políticas públicas� A política pública com rela‑ção ao idoso foi exatamente estabelecida por essa Lei 8�742, no seu artigo 20, § 3º�

O INSS, em suas contrarrazões, traz argumentos que me parecem também extremamente relevantes� Quais são eles? Em primeiro lugar, que o acórdão recorrido teria afrontado o princípio da legalidade, porque claramente essa política pública está expressa na lei, e compete ao Congresso Nacional rever a lei a seu talante, como representante da soberania nacional, e verificar se está, ou não, defasada ao longo do tempo, com relação à realidade econômica em que vivemos, a independência dos Poderes e o princípio da reserva legal�

Mas há mais, Senhor Presidente� Permita‑se apenas concluir� Há um dado também trazido à colação pelo recorrente, o Instituto Nacional de Previdência Social, que é o seguinte: a afronta ao princípio da fonte de custeio, que está abrigado no artigo 195, § 5º, da Constituição Federal�

O que diz esse artigo, com todas as letras?

“§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”

Por que isso? Porque, nessa crise mundial econômica que estamos vivendo, a primeira vítima é sempre a previdência social dos países, quer sejam eles desenvolvidos, quer sejam subdesenvolvidos ou em desenvolvimento� O que está ocorrendo é que realmente – e nós vemos isso no mundo todo – os bene‑fícios previdenciários são os primeiros a serem cortados� E nós vivemos uma crise mundial que está se aproximando, lamentavelmente, do nosso País� E há um fenômeno demográfico interessante, está havendo uma mudança no perfil demográfico no sentido de que há o aumento de pessoas idosas, sobretudo nos países avançados, mais desenvolvidos economicamente e em desenvolvimento� Isso está acontecendo no Brasil também� Se nós aumentarmos ou deixarmos ao magistrado local criar, ao seu talante, um benefício previdenciário sem observar o que dispõe o artigo 195, § 5º, da Constituição, sem indicar recursos, o Brasil irá à falência, irá à bancarrota rapidamente�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência me permite? O que nós estamos a dizer é que são tantas as incongruências produzidas no sistema, a partir de decisões do próprio Legislativo, com a fixação, por exemplo, dessas bolsas, que traçou a linha de miserabilidade, não agora, em quatro salários mínimos, mas em meio salário mínimo para muitos benefícios, esse é um dado� Essa decisão do Estatuto do Idoso – claro que soa irônico –, se nós não fizermos uma interpretação, acaba soando como se fosse um privilégio, porque é o que resulta do parágrafo único do artigo 34� Esse é um dado importante� O que se

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diz no artigo 34? Que, se um dos componentes do casal recebe benefício de assistência social, aquilo será excluído para os fins do cálculo�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): O preceito refere‑se a um benefício específico�

O sr. ministro Gilmar Mendes: A assistência social�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Sob o mesmo título�O sr. ministro Gilmar Mendes: Sob o mesmo título�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Nesse caso relatado por Vossa Exce‑

lência, concluiu‑se que a renda seria zero porque excluídos os proventos da aposentadoria do cônjuge varão�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim� Por quê? Porque, no outro sistema, gera esse benefício� Veja, o valor é o mesmo, é valor do salário mínimo para a assistência social ou para a aposentadoria� Qual é a justificativa racional para essa opção do legislador? A não ser uma pane legislativa, não há explicação� Por outro lado, queria lembrar o seguinte� Presidente, não trouxe a reclamação a julgamento, mas, depois, pediria que fosse proclamado: eu fiz um levanta‑mento, e se indicava que a maioria dos Ministros – Ministro Celso, Ministro Ayres Britto, Ministro Ricardo Lewandowski – já vinha negando seguimento às reclamações, entendendo que a matéria não era susceptível mais de debate nessa sede, nesses casos em que o juiz fazia a aferição do caso concreto� O Ministro Marco Aurélio da mesma forma�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu não estou excluindo, o Ministro Teori também não exclui que o juiz de primeiro grau, ou, enfim, o tribunal���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, nesse caso, com a conse‑quência jurídica da manutenção do acórdão no caso, ter‑se‑á: núcleo de duas pessoas com dois salários mínimos� Um a título de Lei Orgânica da Assistência Social e outro a título de proventos da aposentadoria já alcançada�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Qual é a justificativa que Vossa Excelência encontra para manter a higidez do parágrafo único do artigo 34, se se tratarem de duas pessoas que recebem LOAS?

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): No caso por mim relatado, não está em jogo LOAS, nem nesse outro caso�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas está em jogo a constitucionalidade�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não, nem nesse outro caso, porque

a percepção por um dos integrantes é de aposentadoria, não é de LOAS�O sr. ministro Gilmar Mendes: Nós estamos discutindo as duas coisas�

Eu coloquei o § 3º do artigo 20 em discussão, porque disse que estamos num processo de inconstitucionalização� O que eu estou dizendo? Que sugiro e que se

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dê esse prazo para que o legislador faça uma reavaliação completa do sistema� O Tribunal não está, agora, genericamente fixando novos critérios� Por quê? Porque, de fato, precisa se fazer um reajuste, até, se for o caso, para rever esse modelo do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso� Do contrário, ele está criando um privilégio�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Vossa Excelência não está decretando a inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º, da Lei 8�742?

O sr. ministro Gilmar Mendes: Fixando prazo�O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ele, em si, a meu ver, não traz incons‑

titucionalidade, mas, tal como o Ministro Teori, se bem entendi, eu não afasto a possibilidade do juiz, no caso concreto, afastar essas���

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas é o que está ocorrendo sistematica‑mente, tanto é que o INSS���

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Mas eu não avanço a ponto de decla‑rar a inconstitucionalidade, porque, em si mesmo considerado, esse parágrafo não é inconstitucional, muito menos o dispositivo da Lei do Estatuto do Idoso, data venia�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, mas por isso que eu trouxe a Reclamação�O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Agora, se nós, eventualmente, fôssemos

caminhar para uma decretação de inconstitucionalidade, ou o dispositivo está a caminho de uma inconstitucionalização, eu acho que nós deveríamos respeitar, pelo menos, o plano plurianual, quer dizer, dar ao Estado a possibilidade de prever, no seu plano plurianual, a verba necessária para acorrer com essas despesas�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas nós não estamos nem mandando fixar valor, mas que se faça a revisão do sistema�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu, então, acompanho a divergência, e Sua Excelência está dando provimento aos recursos do instituto� É como voto�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Vossa Excelência dá provimento?

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Dou provimento� Portanto, não declaro inconstitucionais os dispositivos mencionados�

VOTO (Aditamento)

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Vossa Excelência me permite? Qual

é a consequência lógica da negativa de provimento do recurso extraordinário

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relatado pelo ministro Gilmar Mendes? Ter‑se‑á núcleo familiar de duas pessoas, em que uma delas já recebe da Previdência proventos ante aposentadoria, que perceberá, também, o benefício da assistência continuada da lei mediante a qual foi regulamentado o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal�

Não temos, diante das discussões, como deixar de prover esse recurso do Instituto� Por quê? Repito: está na decisão da Turma Recursal que o cônjuge varão já recebe da Previdência Social um salário mínimo a título de proventos decorrentes da aposentadoria� Mas, mesmo assim, esse núcleo de duas pessoas terá direito a mais um salário mínimo, considerada a assistência prevista no inciso V do artigo 203� É uma demasia� Por isso e por outras situações, é que o sistema vai por água abaixo�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Não é, desculpe‑me, porque o juizado especial já considerou a Lei nº 10�741� E vamos voltar? Na verdade, isso é um���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não, Ministro� Perdoe‑me� O Esta‑tuto do Idoso apenas excluiu uma parcela: benefício recebido sob idêntico título, a assistência do inciso V do artigo 203 da Constituição Federal� Na parte final do pronunciamento impugnado, tem‑se a notícia de que o que recebido é a título de proventos da aposentadoria�

O sr. ministro Gilmar Mendes: É por isso que estamos discutindo a questão da constitucionalidade�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Como se o preceito não versa proventos?

O sr. ministro Gilmar Mendes: Desculpe‑me� Que é isso? Veja: qual é a���O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro, perdão, mas não é� O pará‑

grafo único exclui o benefício percebido nos termos da cabeça� A cabeça versa LOAS, não proventos da aposentadoria� Em síntese, o caso concreto é estranho ao preceito�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Das duas, uma! Desculpe, das duas, uma: ou essa norma é inconstitucional e se deve excluir qualquer idoso que receba LOAS desse benefício do parágrafo único���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): No caso, não está em jogo�O sr. ministro Gilmar Mendes: Claro que está em jogo�O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Ministro, nós estamos criando um

sistema híbrido! Nós estamos criando um terceiro sistema, uma terceira via�O sr. ministro Gilmar Mendes: É disso que nós estamos a falar� Eu quero

ver é uma justificativa racional para essa norma, dizer que essa norma é constitucional���

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O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Temos a de Vossa Excelência� A nossa não é racional!

O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, não, desculpe� Eu quero ver como que eu digo que dois casais na mesma situação���

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não vamos adjetivar porque é muito perigoso�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência adjetiva toda hora, e vamos continuar adjetivando� Essa é a forma de debater aqui�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Sem dúvida, sem dúvida, é a sua concepção�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Vossa Excelência pode adjetivar e os outros não� Pelo amor de Deus! O que é isso?

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não fique nervoso, porque receio pelo seu coração�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Fico nervoso porque Vossa Excelência coloca o chapéu e não quer colocar nos outros�

Eu também receio pelo seu� Agora, vamos nos respeitar mutuamente� Vossa Excelência vive criticando os outros e não quer ser criticado�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não, Ministro, aceito a crítica quando construtiva�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Isso é o normal�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Aceito� Apenas gostaria que perce‑

bessem a situação concreta decidida pela Turma Recursal� Apenas isso�O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas é isso que nós estamos a discutir�

Um casal recebe um benefício previdenciário qualquer e LOAS� O outro recebe LOAS e LOAS� Num caso, a lei diz que é legítimo, e, noutro, que não� Como se justifica isso em face do princípio da isonomia?

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Não estou julgando um processo objetivo� Estou julgando processo com balizas próprias, e a decisão, na origem, não excluiu LOAS� Excluiu proventos da aposentadoria�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Foi por isso que a turma recursal invocou a lei do Estatuto do Idoso� Foi por isso�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Ministro Gilmar Mendes, eu proponho o seguinte: deixamos o Ministro Celso de Mello concluir o seu voto, eu vou pedir vista em mesa e trago amanhã, porque eu vejo uma dificuldade muito grande na proclamação desse resultado, muito provavelmente�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Gilmar Mendes: E sem que a Magistratura, sem que a Corte

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diga agora qual o critério a ser adotado, o legislador poderá reconformar todo esse sistema, mas estamos resolvendo o caso concreto�

O sr. ministro Celso de Mello: Senhor Presidente, peço vênia para negar provimento ao presente recurso extraordinário, declarando, no entanto, a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso, sem pronúncia de nulidade, mantida a vigência da regra por dois anos�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Dois anos a partir da decisão�

DEBATE

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu chamo a atenção do Tribunal, porque eu já acompanhei o Tribunal, a maioria, nessas decisões de fixação de prazo ao legislador, mas eu noto que isso serve para nos trazer conflito com o Legislativo, e, num certo sentido, desmoralizar, porque, se o legislador não cumpre esse prazo, nós trazemos o problema para cá, de novo, como aconteceu recentemente no caso do FPE�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Um desgaste inútil para o Supremo�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): O legislador, talvez, delibe‑

radamente, nada fez e o problema voltou para cá� E nós tivemos que, aliás, na minha ausência, o Ministro Ricardo Lewandowski fixou um novo prazo� O que acontecerá se esse novo prazo não for cumprido?

O sr. ministro Gilmar Mendes: Isso é um aprendizado, Senhor Presidente, diante de situações muito difíceis, porque a outra alternativa, no caso do FPE, era deitar por terra a lei�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Vossa Excelência mesmo já sugeriu aqui, algumas vezes, a emissão de um aviso claro ao legislador� Agora, fixar prazo?

O sr. ministro Gilmar Mendes: É isso o que eu estou dizendo� Mas aqui, neste caso, o drama está exatamente em quê? E o juiz invocou isso, e também a turma recursal� É que se trata de uma exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, por quê? Porque ela concede um benefício para o idoso no plano da assistência social� Se um recebe, o outro também poderá receber�

Agora, se se tratar daquele que recebe um outro benefício da Previdên‑cia Social, não� Por isso é que nós estamos devolvendo ao legislador essa possibilidade�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Ministro Celso, Vossa Exce‑lência julga improcedente ambos os recursos?

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O sr. ministro Celso de Mello: Nego provimento ao presente recurso extraordinário, declarando, no entanto, a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso, sem pronúncia de nulidade�

VOTO

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Senhores Ministros, o meu voto, no processo em que é Relator o Ministro Marco Aurélio, é no sentido de divergir de Sua Excelência e negar provimento�

Vossa Excelência provê o recurso� Não é isso, Ministro?O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): No processo em que sou relator,

desprovejo o recurso, porque o Juízo decidiu a partir das peculiaridades do núcleo familiar e assentou que a percentagem da Lei de Regência, um quarto do salário mínimo por cabeça, seria insuficiente�

No recurso extraordinário, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, estou provendo� Por quê? Porque se excluíram, para a consideração da denominada “miserabilidade”, proventos de aposentadoria pela Previdência Social igual ao salário mínimo� Isso ocorreu no tocante a uma família que tem dois membros: apenas o marido, aposentado, e a mulher�

O sr. ministro Gilmar Mendes: O argumento que estou expendendo, Presi‑dente, é exatamente o de que essas situações não são díspares� Tanto faz receber LOAS um e outro, como receber LOAS e um outro benefício mínimo, porque não há diferenciação para fins de isonomia, que é o que o juiz, no caso concreto, e o juizado especial decidiram�

DEBATE

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Indago à maioria que se formou, nesse caso, se todos concordam com essa fixação de prazo, porque já temos a maioria nesse caso em que vota o Ministro Toffoli�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Nesse caso, precisaremos fazer uma segunda votação quanto à modulação de efeito� Se não modularmos, teremos a decla‑ração tout court�

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, mas é o artigo 34, pará‑grafo único�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Então podemos fazer uma declaração com aviso muito explícito ao legislador das consequências que advirão�

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O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Presidente, apenas para explicitar� Tem‑se duas normas em xeque: a do Estatuto do Idoso – parágrafo único do artigo 34 – e a segunda, que é a lei regedora do benefício continuado – a do artigo 20 da Lei de regência� Há seis votos pela inconstitucionalidade?

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu não ouvi de todos em que sentido seria a conclusão de seus votos, ou seja, se seria pela declaração da inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º, ou do artigo 34� É essa a minha dúvida� Então consulto os senhores� O Ministro Teori não tem o que esclarecer� Minis‑tra Rosa?

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Meu voto, por exemplo, não implica a declaração de inconstitucionalidade de qualquer preceito�

O sr. ministro Luiz Fux: A Ministra Cármen também fixou prazo�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): E a Ministra Cármen?O sr. ministro Gilmar Mendes: Também acompanhou� A Ministra Cármen

já tem voto na reclamação em que ela levantava o problema das incongruências que vinham ocorrendo em relação ao § 3º do artigo 20, tanto é que ela propôs que, em ambos os casos, fizéssemos a modulação de efeitos de dois anos, a partir da data do julgamento�

A sra. ministra Rosa Weber: Exatamente�

EXPLICAÇÃO

A sra. ministra Rosa Weber: Eu acompanhei o voto do Ministro Gilmar, onde Sua Excelência declara a inconstitucionalidade do artigo 34, parágrafo único, da Lei do Idoso�

O sr. ministro Gilmar Mendes: E do artigo 20, § 3º �O sr. ministro Luiz Fux: Sem pronúncia de nulidade�A sra. ministra Rosa Weber: Sem pronúncia de nulidade�

EXPLICAÇÃO

O sr. ministro Luiz Fux: Eu também� Só acrescento o prazo a que se referiu, da tribuna, o Advogado‑Geral da União�

EXPLICAÇÃO

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, desprovejo o recurso extraordiná‑rio sob a minha relatoria e provejo o recurso extraordinário sob a relatoria do

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ministro Gilmar Mendes – e não há nenhuma implicância nisso – para julgar, nesse segundo recurso extraordinário, improcedente o pedido inicial� E não declaro a inconstitucionalidade de qualquer preceito�

SUSPENSÃO DE JULGAMENTO

O sr. ministro Celso de Mello: Senhor Presidente, tenho a impressão de que a Ministra Cármen Lúcia está ausente�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Sim, ela foi ao TSE�O sr. ministro Luiz Fux: Ela votou, acompanhando o Ministro Gilmar

Mendes�A sra. ministra Rosa Weber: Ela até propôs que a questão da modulação se

faça a partir do julgamento�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Nós não temos maioria em

nenhum sentido� Temos na declaração de inconstitucionalidade do artigo 20 do § 3º�

O sr. ministro Luiz Fux: Sem pronúncia de nulidade�O sr. ministro Gilmar Mendes: Naqueles termos da modulação com a decla‑

ração de constitucionalidade�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Com a declaração de consti‑

tucionalidade� Temos cinco votos num e quatro votos no outro�O sr. ministro Celso de Mello: O Plenário estabeleceu orientação no sentido

de que a modulação dos efeitos da decisão, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito do controle concreto, exige maioria qualificada de dois terços�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Para a declaração de inconstitu‑cionalidade há necessidade de seis votos em tal sentido�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Suspende e tomamos amanhã, com a pre‑sença da Ministra Cármen Lúcia�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Fica suspensa a proclamação do resultado do julgamento dos dois recursos�

EXTRATO DE ATA

RE 567�985/MT — Relator: Ministro Marco Aurélio� Recorrente: Instituto Nacio‑nal de Seguro Social – INSS (Procurador: Procurador‑Geral Federal)� Recorrida: Alzira Maria de Oliveira Souza (Advogados: Giselda Natalia de Souza Winck Rocha e outros)� Interessadas: União (Advogado: Advogado‑Geral da União), Defensoria Pública‑Geral da União (Procurador: Defensor Público‑Geral Federal)

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e Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Advogados: Joelson Dias e outros)�

Decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto do Ministro Marco Auré‑lio (Relator), que negava provimento ao recurso; os votos dos Ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que negavam pro‑vimento ao recurso e declaravam a inconstitucionalidade do § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742/1993, sem pronúncia de nulidade, mantendo sua vigência até 31 de dezem‑bro de 2014; o voto do Ministro Joaquim Barbosa (Presidente), negando provimento ao recurso e declarando a inconstitucionalidade, mas sem fixação de prazo, e os votos dos Ministros Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski, que davam provi‑mento ao recurso, o julgamento foi suspenso� Impedido o Ministro Dias Toffoli�

Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki� Procurador‑Geral da República, Dr� Roberto Monteiro Gurgel Santos�

Brasília, 17 de abril de 2013 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

DEBATE

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu indago se algum dos Senho‑res Ministros quer revisar o seu voto com relação a este primeiro: RE 567�985�

O sr. ministro Celso de Mello: Vossa Excelência está colhendo votos quanto à reclamação?

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Não, ainda não�O sr. ministro Celso de Mello: Pois não�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Todos mantêm os votos pro‑

feridos ontem, não é isso?O sr. ministro Celso de Mello: Sim�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Então, a proclamação seria:

foi declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 20���O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Há seis votos declarando a

inconstitucionalidade?O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Seis votos declarando a incons‑

titucionalidade do artigo 20, § 3º, da Lei, sem declaração de nulidade� E há uma dúvida com relação ao aviso ao legislador, ou à fixação de prazo, à modulação temporal�

Eu gostaria de colher os votos quanto a esse aspecto agora, a partir do Rela‑tor, Ministro Marco Aurélio, quanto à modulação�

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EXPLICAÇÃO

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Na minha consciência jurídica, Presi‑dente, não há espaço para a modulação� Ou bem a lei é harmônica, ou é contrária à Carta da República� Ante a higidez desta, surtindo efeitos com projeção no tempo, a lei – como dizia Rui Barbosa – é írrita, natimorta, e, portanto, deve ser fulminada�

Agora, como não integrei a corrente que concluiu pela inconstitucionalidade, não me cabe modular os votos alheios�

É o que assento�

VOTO (Sobre modulação – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, a proposta de modulação foi do Ministro Gilmar�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Entendo que não tenho voto na modulação�

O sr. ministro Teori Zavascki: Temos precedente do Pleno de que, mesmo quem foi vencido, participa da votação em relação à modulação, que exige dois terços para ser aprovada�

Eu não sei qual foi a proposta do Ministro Gilmar�O sr. ministro Celso de Mello: O Ministro Gilmar Mendes estabelecia efi‑

cácia diferida no tempo���O sr. ministro Teori Zavascki: Sim, quanto tempo?O sr. ministro Gilmar Mendes: Inicialmente, eu colocava 2014, mas a AGU

pediu que se estendesse até 2015, e nós ontem���O sr. ministro Teori Zavascki: Vossa Excelência concorda com isso?O sr. ministro Gilmar Mendes: Concordei�O sr. ministro Teori Zavascki: É preciso entender exatamente o que isso

significa, porque está se declarando a constitucionalidade do artigo 20���O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, estamos declarando inconstitucional�O sr. ministro Teori Zavascki: Mas mantendo a sua vigência?O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim�A sra. ministra Cármen Lúcia: Sem declaração de nulidade�O sr. ministro Gilmar Mendes: O artigo 27���O sr. ministro Teori Zavascki: Essa situação é que tem que ficar bem clara�

Estamos declarando a inconstitucionalidade por omissão do artigo 20, § 3º, mas

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estamos mantendo a sua vigência� Na verdade, não é o artigo que é inconstitu‑cional, é aquilo que ele não disciplinou�

O sr. ministro Gilmar Mendes: São situações das mais diversas� O fato é que, por princípio de segurança jurídica, nós entendemos que é inconstitucional, mas que autorizamos a sua aplicação por um período�

O sr. ministro Teori Zavascki: Certo� Estamos dizendo que o legislador está omisso�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): E fixando um prazo para que ele legisle�

O sr. ministro Teori Zavascki: Certo� Se o legislador está omisso, a questão que se coloca é de saber como é que, no interregno, vai se colmatar essa omissão�

O sr. ministro Gilmar Mendes: A Justiça de Primeiro Grau o fará, como já vem fazendo�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: A ofensa à dignidade humana fica suspensa durante dois anos?

O sr. ministro Teori Zavascki: Mas, então, não há omissão� Se é possível fazer justiça, não há omissão�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Para ele recompor o sistema�O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Ministro Teori Zavascki, Vossa

Excelência me permite?Veja como são as coisas: mesmo no processo objetivo – refiro‑me à ação

direta de inconstitucionalidade por omissão –, pelo texto claríssimo da Carta da República, não podemos fixar prazo para atuação de Poder� Podemos, sim, quando se trata de omissão de autoridade administrativa� Mas vamos esta‑belecer prazo para o Congresso legislar, desgastando o Supremo, como vem ocorrendo nos últimos tempos?

O sr. ministro Gilmar Mendes: A outra alternativa é declarar a inconstitu‑cionalidade, ponto, e deixar a situação mais grave�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim, assumir essa decisão com toda coragem, com todas as consequências que isso implica, porque nós só vamos diferir esse problema�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Desgastando o Supremo, como vem ocorrendo nos últimos tempos, ressoando a decisão apenas como um cascudo no Congresso Nacional�

O sr. ministro Teori Zavascki: A questão é justamente a especialidade dessa declaração� O Tribunal, na verdade, não está declarando a inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º� Está dizendo que há uma omissão inconstitucional� Ou seja,

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nós estamos adotando aqui aquilo que o Ministro Sepúlveda Pertence já dizia na ADI 1�232�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas estamos declarando a inconstitucio‑ nalidade�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Declarando a inconstitucio‑nalidade sem pronúncia�

O sr. ministro Luiz Fux: E dizendo que as coisas permanecerão tal como o Ministro Sepúlveda Pertence���

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Gilmar Mendes: Nós já fizemos isso no caso dos vereadores�

O que era o caso dos vereadores? O caso de Mira Estrela, que era também em controle incidental� O que nós dizíamos? Que o critério adotado era inconstitu‑cional� Vários tribunais, várias câmaras de vereadores tinham número elevado� O que nós dissemos? Ficam em vigor as leis que assim disponham; o TSE vai deliberar para o futuro sobre essa questão� Deixamos em vigor, a despeito da declaração de inconstitucionalidade� No FPE, o que nós dissemos? É inconsti‑tucional a falta de critérios, mas deixamos em vigor�

O sr. ministro Teori Zavascki: Por que é diferente, Ministro Gilmar Mendes? É diferente pelo seguinte: porque essas leis – o FPE, por exemplo – são declaradas inconstitucionais, as próprias, e elas deixarão de vigorar� Aqui, não�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Não foi isso que ocorreu no caso do FPE� No caso do FPE, ocorreu exatamente o que o Ministro Gilmar Mendes está propondo aqui�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Não, no FPE nós demos prazo também�O sr. ministro Teori Zavascki: Mas, no presente caso, não vejo por que esta‑

belecer modulação pelo modo como se colocou�O sr. ministro Gilmar Mendes: Então, vai resultar declarar inconstitucional�O sr. ministro Teori Zavascki: Não, está se mantendo a declaração de incons‑

titucionalidade por omissão, sem a declaração de nulidade da norma�O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Se me permitem uma observação, o

caso do número de vereadores e o caso de Fundo de Participação dos Estados tinham um substrato argumentativo completamente distinto deste que nós agora estamos examinando�

Aqueles que o estão fazendo, declarando inconstitucional o artigo 20, § 3º, fundamentalmente porque entendem que ele afronta, tal como aplicado, o Prin‑cípio da Dignidade da Pessoa Humana e o princípio basilar da isonomia� Se nós protrairmos no tempo a validade dessa lei, nós estamos dizendo, ou estaremos sinalizando, que nós podemos admitir que a dignidade da pessoa humana, no

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que tange aos idosos, pode ficar em suspenso dois anos� Isso me parece abso‑lutamente inaceitável, data venia� Esse é um aspecto� Tenho outros aspectos a ventilar oportunamente�

O sr. ministro Teori Zavascki: Entendo que, nesse caso específico, se o Tri‑bunal está afirmando que a lei vai continuar em vigor e que o legislador terá que suprir omissões, não vejo razão nenhuma para estabelecer prazo de modulação� Decorre da própria natureza da decisão que o legislador terá que legislar� Só teria sentido fixar um prazo se houvesse uma consequência pelo seu descumprimento�

O sr. ministro Marco Aurélio (Relator): Prazo sem sanção é inócuo� Em termos de cumprimento, é inexistente�

O sr. ministro Teori Zavascki: Nesse caso específico, pelo modo e no con‑texto dessa declaração de inconstitucionalidade, parece‑me que não cabe mesmo a modulação� Aliás, sequer se trata de modulação, mas de fixação de prazo para legislar�

Acompanho o Ministro Marco Aurélio�

VOTO (Notas – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, ontem votei acompanhando o eminente Ministro Gilmar Mendes� Mantenho o meu voto�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Estamos ainda no primeiro caso, o do Ministro Marco Aurélio�

A sra. ministra Rosa Weber: Sim, mas ali eu já havia acompanhado o Minis‑tro Gilmar Mendes�

Eu lembraria que esta Corte declarou a inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, do preceito da CLT que estipulava o salário‑mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Sim�A sra. ministra Rosa Weber: E até hoje continua sendo pago um salário‑

‑mínimo, apesar da reconhecida afronta à Constituição Federal, que veda a vinculação do salário‑mínimo para qualquer efeito� E até hoje� Então, com todo o respeito às compreensões contrárias, é salutar que pelo menos o Supremo, ainda que sem uma sanção, indique um norte – no caso, temporal�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Vossa Excelência vota, então, pela modulação�

A sra. ministra Rosa Weber: Exatamente: 31 de dezembro de 2015, acompa‑nhando o Ministro Gilmar Mendes�

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VOTO (Sobre modulação – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, tenho pouco tempo no Supremo Tribunal Federal, mas já o suficiente para ter assistido várias vezes o Supremo Tribunal Federal, que é a última instância – se não fizer, ninguém o fará –, exor‑tar o legislador a que cumpra a Constituição� Tivemos aqui problemas relativos às emendas constitucionais que não obedecem ao devido procedimento legal, medidas provisórias� Em todos esses casos, houve a necessidade de modular, porque a modulação é prevista na própria lei que regula a declaração de cons‑titucionalidade das leis� Então, o princípio da legalidade está sendo observado�

O que se pretende? Durante esse prazo de vácuo legislativo, não se pode ter coragem de assumir o caos� Ninguém tem o direito de assumir, por hombri‑dade, o caos legislativo, o apagão legislativo do país� A verdade é a seguinte: são tantas as situações, as violações aqui! O princípio da isonomia, o princípio da dignidade humana foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal� E exa‑tamente para que não permaneçam essas violações, é que o juiz pode, durante esse período de vácuo legislativo, avaliar o que deve ser feito no caso concreto� Mutatis mutandis, foi isso que se estabeleceu�

Em segundo lugar, o direito não pode viver distante da realidade; a realidade hoje é exatamente essa� É uma realidade que reclama que haja efetivamente essa modulação� Porque, se não houver essa modulação, o terror que atemoriza – digamos assim – aqueles que estão preocupados com custos atuariais será muito maior� Então, é preciso estabelecer até em que momento vamos tolerar esse estado de inconstitucionalidade� Esse é o papel da Corte� Isso já foi feito diversas vezes, Senhor Presidente�

De sorte que ninguém melhor do que o Advogado da União para esclarecer que, nessa qualidade e tendo relacionamento com os outros poderes harmô‑nicos e independentes, logrará, até o final de 2015, a obtenção do diploma a regular esse tema�

Mantenho o meu voto�

VOTO (Sobre modulação – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também mantenho o meu voto, com as vênias do Ministro Relator e do Ministro Teori, reiterando apenas que, como já foi feito em outras ocasiões, também neste caso a modulação

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cumpre o papel a que se referiu o Ministro Gilmar� E o que vai acontecer é que os juízes continuarão aplicando tal como vem acontecendo até agora�

VOTO (Sobre modulação – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, pelas razões que já expus, entendendo que não se pode deixar em suspenso a dignidade humana por dois anos, e considerando também que esta Corte, cada vez mais e mais, vai estabelecendo a pauta do Congresso Nacional, não bastasse o Executivo que já o faz por meio das medidas provisórias – e o Ministro Celso de Mello, numa deci‑são histórica, em boa hora, afastou o trancamento da pauta total do Congresso Nacional quando se tratava do exame de medidas provisórias, assentando, na linha do que, à época, o Presidente Deputado Michel Temer estabeleceu que elas trancariam a pauta apenas no que diz respeito às leis ordinárias –, e tendo em conta que devemos prestigiar a autonomia de fixação de pauta do Congresso, dentre outros argumentos, não me filio a esta proposta de modulação�

VOTO (quanto à modulação dos efeitos da decisão)

O sr. ministro Gilmar Mendes: Eu também, Presidente, também me manifesto; já me manifestei desde o começo�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Ministro Gilmar já propôs, não é?

O sr. ministro Gilmar Mendes: É, já� Venho defender, entendendo que, nesse caso, é uma forma de transição, como destacou bem, agora, o Ministro Fux e, ontem, o próprio Advogado‑Geral da União� Diante da inconstitucionalidade, há possibilidade de que o reajuste do sistema seja feito dentro de um prazo razoá‑vel, tendo em vista a necessidade de que se recomponham todos esses valores e benefícios que são concedidos a titulo de assistência social�

A mim me parece que o quadro atual hoje é realmente preocupante, como relatei no próprio voto da reclamação� Por quê? Porque, a rigor, os juízes já não vêm aplicando o entendimento adotado na ADI 1�232, e nós não estamos con‑cedendo as reclamações pedidas e, nos REs, estamos negando provimento aos pedidos feitos pelo INSS, como resultou nesses dois casos�

De modo que a mim me parece que, nesse caso, como em outros, recomen‑dava‑se a modulação�

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VOTO (Sobre modulação – quanto à modulação dos efeitos da decisão)

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu, de minha parte, não adiro a essa proposta de modulação temporal, pelos motivos que já declinei ontem� Esse tipo de proposta, no final, acaba por minar a credibilidade desta Corte, porque, se fixarmos prazo ao legislador, ele raramente será observado e a problemática retorna a este Tribunal, como pudemos experimentar há poucos meses�

EXTRATO DE ATA

RE 567�985/MT — Relator: Ministro Marco Aurélio� Relator para o acórdão: Ministro Gilmar Mendes� Recorrente: Instituto Nacional de Seguro Social – INSS (Procurador: Procurador‑Geral Federal)� Recorrida: Alzira Maria de Oliveira Souza (Advogados: Giselda Natalia de Souza Winck Rocha e outros)� Interes‑sadas: União (Advogado: Advogado‑Geral da União), Defensoria Pública‑Geral da União (Procurador: Defensor Público‑Geral Federal) e Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Advogados: Joelson Dias e outros)�

Decisão: O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso extraordi‑nário e declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 3º do art� 20 da Lei nº 8�742/1993� Vencidos, parcialmente, o Ministro Marco Aurélio (Relator), que apenas negava provimento ao recurso, sem declarar a inconstitucionalidade da norma referida, e os Ministros Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski, que davam provimento ao recurso� Não foi alcançado o quorum de 2/3 para modu‑lação dos efeitos da decisão para que a norma tivesse validade até 31‑12‑2015� Votaram pela modulação os Ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello� Votaram contra a modulação os Ministros Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa (Presidente)� O Relator absteve‑se de votar quanto à modulação� Impedido o Ministro Dias Toffoli� Redigirá o acórdão o Ministro Gilmar Mendes�

Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki� Procurador‑Geral da República, Dr� Roberto Monteiro Gurgel Santos�

Brasília, 18 de abril de 2013 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 593.443 — SP

Relator: O sr. ministro Marco AurélioRelator para o acórdão: O sr. ministro Ricardo LewandowskiRecorrente: Ministério Público FederalRecorridos: Frederico Carlos Jaña Neto

Ari de Azevedo Marques Neto Guilherme Novita Garcia Luis Eduardo Passarelli Tirico

Interessado: Tribunal de Justiça de São Paulo

RECURSO EXTRAORDINÁRIO� REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA� PRE‑LIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RE� QUESTÃO SUPERADA� HABEAS CORPUS� CONCESSÃO DA ORDEM PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA� ALE‑GAÇÃO DE TOLHIMENTO DE PRERROGATIVA EXCLUSIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROVAR A ACUSAÇÃO, MEDIANTE AJUIZAMENTO DE AÇÃO PENAL� ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA PROCEDIDA POR TRIBUNAL SUPERIOR, EM DETRIMENTO DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI� OFENSA AOS ARTS� 5º, XXXVIII, E 129, I, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL� NECES‑SIDADE DE REEXAME DE PROVAS� INCIDÊNCIA DA SÚMULA 279 DO STF� RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO�

I – Havendo a Corte, por meio de seu Plenário Virtual, reconhecido a repercussão geral do tema constitucional debatido nos autos, deve prosseguir no julgamento de mérito da causa�

II – Para se chegar à conclusão contrária à do acórdão recorrido seria necessário reexaminar o conjunto fático‑probatório dos autos� Incidência da Súmula 279 do STF�

RE 593�443

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RE 593.443

III – Decisão judicial de rejeição de denúncia, impronúncia de réu, de absolvição sumária ou de trancamento de ação penal por falta de justa causa, não viola a cláusula constitucional de monopólio do poder de iniciativa do Ministério Público em matéria de persecução penal e tampouco transgride o postulado do juiz natural nos proce‑dimentos penais inerentes ao Tribunal do Júri�

III – Recurso extraordinário não provido�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Joa‑quim Barbosa, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, preliminarmente, por maioria, conhecer do recurso, vencidas as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia� No mérito, por maioria, negar provimento ao recurso extraordinário, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator), Teori Zavascki e Joaquim Barbosa (Presidente)� Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux�

Brasília, 6 de junho de 2013 — Ricardo Lewandowski, Relator para o acórdão�

VOTO (Aditamento)

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, ontem, recebi petição subscrita pelos Batochios, José Roberto e Guilherme Otávio, apontando que, como advogados dos recorridos, não teriam sido intimados, e que, de qualquer forma, não con‑seguiram passagem aérea no trecho São Paulo/Brasília/São Paulo� Não sabia que Brasília é uma cidade de preferência para os feriados prolongados�

Busquei levantar dados a respeito do que evocado, não quanto à passagem aérea, mas às intimações, e me veio informação do Assessor‑Chefe do Plená‑rio – que nos assiste – de que o processo teve pauta publicada no Diário de Justiça Eletrônico de 31 de agosto de 2012� Entrou na pauta dirigida – que é a do sítio do Supremo na internet – em 23 de maio de 2013, quando poderia ter sido, portanto, julgado o recurso extraordinário� Voltou a entrar nessa mesma pauta hoje, 29 de maio de 2013�

Acontece que há um dado, para mim, de importância maior� O processo, muito embora com a roupagem de recurso extraordinário, consubstancia impetração, consubstancia habeas corpus� Todos sabemos que não existe parte

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RE 593.443

contrária no habeas corpus – costumo, quando há parte contrária, ouvir, sempre, a respeito do adiamento, o representante processual dessa parte� É recorrente, como fiscal da lei, o Ministério Público Federal�

Então, Presidente, neste caso, porque não vamos deixar de trabalhar nesta tarde, nesta Sessão, pronuncio‑me no sentido do adiamento para a sessão subsequente�

EXTRATO DE ATA

RE 593�443/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio� Relator para o acórdão: Minis‑tro Ricardo Lewandowski� Recorrente: Ministério Público Federal (Procurador: Procurador‑Geral da República)� Recorridos: Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto (Advogados: Guilherme Octávio Batochio e outros), Guilherme Novita Garcia (Advogados: Aloísio Lacerda Medeiros e outros), Luis Eduardo Passarelli Tirico (Advogados: Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco e outros)� Interessado: Tribunal de Justiça de São Paulo�

Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Relator, em face do reque‑rimento dos advogados dos recorridos� Ausentes, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia, em participação na Conferencia Internacional – El acceso indivi-dual a la justicia Constitucional en América Latina, em Arequipa, Peru, e, nesta assentada, o Ministro Celso de Mello� Presidência do Ministro Joaquim Barbosa�

Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki� Procurador‑‑Geral da República, Dr� Roberto Monteiro Gurgel Santos�

Brasília, 29 de maio de 2013 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

RELATÓRIO

O sr. ministro Marco Aurélio: Eis as informações prestadas pelo Gabinete:

O Superior Tribunal de Justiça, em habeas corpus impetrado em favor de Frederico Carlos Jaña Neto e Ari de Azevedo Marques Neto, trancou ação penal em que se imputa aos pacientes e a outros dois denunciados (Guilherme Novita Garcia e Luis Eduardo Passarelli Tirico) a prática de homicídio qualificado (artigos 121, §2º, inciso III, c/c 29, do Código Penal)� Entendeu o Tribunal, em votação majori‑tária, faltar à espécie justa causa para o prosseguimento da persecução criminal, tendo estendido a ordem de ofício aos últimos corréus referidos�

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RE 593.443

Na linha do voto vencedor, de autoria do ministro Paulo Gallotti, afirmou‑se não trazerem os elementos probatórios contidos no processo qualquer indicativo de que os denunciados, ora recorridos, teriam praticado as condutas descritas na peça acusatória, consistentes em impedir os recém‑ingressos na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo‑USP (“calouros”), entre os quais a vítima Edison Tsung Chi Hsueh, de emergir da piscina onde estava sendo aplicado o denominado “trote” universitário� Asseverou‑se, ainda, inexistir qualquer prova de que tais condutas teriam ocasionado a morte do estudante (provocada por asfixia mecânica por afogamento)� Assim, decidiu‑se à vista do exame necros‑cópico, do depoimento prestado pelo médico subscrevente de tal laudo perante a comissão de sindicância instaurada pela instituição de ensino, dos depoimen‑tos prestados pelas testemunhas nas fases policial e judicial, do depoimento de “calouro” efetuado perante a aludida comissão, da conclusão da própria sindi‑cância administrativa, e, por fim, do relatório final do inquérito policial� No mais, mencionou‑se fita contendo declaração do denunciado Frederico Carlos Jaña Neto admitindo ser o autor do homicídio� Concluiu‑se estar revelado que a suposta confissão não passou de uma “brincadeira de mau gosto” (folha 228), não tendo sido inclusive levada em conta pelo órgão de acusação�

O ministro Paulo Medina, não obstante ter formado na maioria no sentido de trancar a ação penal, assim o fez por outro fundamento� Salientou Sua Exce‑lência que, em virtude do extenso conjunto probatório produzido, a sinalizar a complexidade do caso, não haveria como se perquirir, em sede de habeas corpus, a eventual ausência de justa causa para a persecução criminal� Quanto à outra premissa, consistente na falta de individualização das condutas delituosas de cada um dos denunciados, assentou, à luz dos princípios do contraditório e da ampla defesa e do artigo 41 do Código de Processo Penal, a inépcia formal da denúncia, que não teria descrito os meios empregados para atingir o resultado criminoso e o modo pelo qual foi praticado o crime�

O ministro Hamilton Carvalhido, em voto vencido, consignou a regularidade da inicial acusatória, que teria se mostrado totalmente ajustada ao preceito inscrito no artigo 41 do Código de Processo Penal� Asseverou a validade de imputação genérica de fato criminoso quando carece o órgão de acusação, no início da persecução criminal, de elementos suficientes à individualização das condutas, sobretudo em casos de concurso de agentes� Referiu‑se ao artigo 569 do Código de Processo Penal, a autorizar que as omissões da denúncia possam ser supri‑das a todo tempo antes da sentença final� Mencionou jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça quanto à excepcionalidade do trancamento da ação penal na via do habeas corpus� Concluiu pela existência de elementos de prova idôneos à afirmação da justa causa da ação penal� Sustentou, ainda, que o Tribunal não poderia substituir‑se ao juiz natural de admissibilidade da acu‑sação, examinando o conjunto probatório, sobretudo em habeas corpus, no que se mostra inadequado para tal fim�

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RE 593.443

O Ministério Público Federal opôs sucessivos embargos declaratórios, ao final, acolhidos para esclarecer que o trancamento da ação penal mostrou‑se devida‑mente justificado, “não havendo que falar em violação do art� 5º, XXXVIII, ‘d’, ou do art�129, I, ambos da Constituição Federal” (fl� 323)�

No extraordinário interposto com base na alínea “a” do permissivo consti‑tucional, o recorrente articula com a transgressão dos artigos 129, inciso I, e 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, do Diploma Maior� Argumenta que o Ministério Público narrou com clareza conduta supostamente delituosa, descrevendo as respectivas circunstâncias, o que afasta a possibilidade de rejeição da denúncia (antigo artigo 43 do Código de Processo Penal, atual artigo 395)� Destaca que, em relação a crimes cometidos mediante concurso de agentes, como ocorre no presente caso, a individualização da conduta de cada autor pode ficar postergada para a fase da instrução criminal, não sendo exigível a especificação quando da instauração da ação penal� Afirma que o acórdão impugnado, ao implicar óbice ao seguimento da persecução criminal em tela, desatendeu comando consti‑tucional que confere ao Ministério Público a função institucional de promover privativamente a ação penal pública�

Defende apenas ser possível o trancamento da ação penal por falta de justa causa, em habeas corpus, nos seguintes casos: (i) atipicidade da conduta, (ii) flagrante inocência do acusado ou (iii) extinção da punibilidade, que sustenta inexistentes na espécie� Alega que o Tribunal de origem substituiu‑se ao juiz natural da causa – o Tribunal do Júri – quando procedeu a profundo exame dos elementos de prova� Cita, ainda, precedentes do Supremo no sentido da inviabi‑lidade de análise probatória na via estreita do habeas corpus e da competência do juízo natural para a apreciação da eventual ausência de justa causa�

Sob o ângulo da repercussão geral, anotou que a questão jurídica trazida se apresenta relevante do ponto de vista jurídico e social, transcendendo os inte‑resses subjetivos da causa, porquanto em jogo a soberania do Júri e as funções institucionais do Ministério Público�

A Procuradoria Geral da República, em parecer, opina pelo conhecimento e provimento do recurso, porquanto o Superior Tribunal de Justiça teria substi‑tuído, de forma indevida, o Juízo da 5ª Vara do Júri do Foro Regional XI Pinheiros, competente para pronunciar, impronunciar ou absolver sumariamente os réus, havendo emitido análise de mérito na via estreita do remédio constitucional�

O extraordinário foi admitido na origem (fls� 461 a 463)�Em 19 de março de 2009, o chamado “Plenário Virtual” reconheceu a reper‑

cussão geral do tema (fls� 473 a 480)�É o relatório�

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RE 593.443

VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Na interposição deste extraordinário, atendeu‑se aos pressupostos gerais de recorribilidade� A publicação do acór‑dão ocorreu em 18 de abril de 2008 – sexta‑feira (fl� 330)� A peça, subscrita por Subprocurador‑Geral da República, foi protocolada em 28 de abril seguinte – segunda‑feira (fl� 333) –, no prazo legal� Esclareço que o Ministério Público, na protocolação deste extraordinário, atua não como parte – que não o é no pro‑cesso revelador de habeas corpus –, mas como fiscal da lei�

Está em jogo saber a viabilidade de, à luz dos artigos 5º, inciso XXXVIII, e 129, inciso I, da Carta da República, juízo diverso do natural – no caso, o Tribunal do Júri –, em habeas corpus, avocar para si competência constitucionalmente atribuída ao citado tribunal para o julgamento de crimes dolosos contra a vida e, examinando fatos e provas, decidir pelo trancamento da ação penal, sem a instrução processual� Transcrevo os preceitos mencionados:

Art� 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan‑tindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;b) o sigilo das votações;c) a soberania dos veredictos;d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;Art� 129� São funções institucionais do Ministério Público:I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

Segundo o Ministério Público Federal, apenas é possível o trancamento de ação penal por falta de justa causa, na via estreita do habeas corpus, quando, diante da mera exposição dos fatos narrados na denúncia, verifica‑se, de plano, ou a atipicidade da conduta, ou a patente inocência do acusado, ou a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas, ou, ainda, a consu‑mação da prescrição punitiva�

De um lado, o Diploma Maior, ao versar a ação de habeas corpus, incluiu‑a no rol de garantias individuais e dispôs que haverá a concessão sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder (inciso LXVIII do artigo 5º)�

De outro lado, o Código de Processo Penal prescreve:

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RE 593.443

Artigo 648� A coação considerar‑se‑á ilegal:I – Quando não houver justa causa;II – Quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;III – Quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê‑lo;IV – Quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;V – Quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei

a autoriza;VI – Quando o processo for manifestamente nulo;VII – Quando extinta a punibilidade�

O cerne da questão reside na configuração da justa causa�Antes de tudo, consigno que, em face de razões de cunho prático, descabe

adentrar a seara da discussão doutrinária de a justa causa ser, ou não, condição da ação penal� Tal polêmica surgiu com a promulgação da Lei nº 11�719/2008, cujas disposições não apenas revogaram o artigo 43 do Código de Processo Penal, mas também incluíram expressamente a justa causa como questão pre‑liminar, consoante se verifica da leitura do artigo 395, inciso III, do mencionado Código�

E o que é justa causa?Para Afrânio Silva Jardim, eminente livre‑docente em processo penal pela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, justa causa é o lastro mínimo de prova que deve fornecer base à acusação, sendo desnecessária a existência de prova cabal, bastando constar, no inquérito policial ou nas peças de informação, algum elemento indiciário, “ainda que leve”� Dessa forma, o exame aprofundado das questões relacionadas à justa causa ficaria adstrito ao mérito do processo�

Compartilhando do pensamento de Afrânio Silva Jardim, Hélio Tornaghi, saudoso mestre da Faculdade Nacional de Direito, explicava não se tratar de saber se a coação dirigida ao paciente é justa ou injusta – reconhecimento esse que somente se dará na sentença –, mas de verificar se a dita coação mostra‑‑se legal ou não, acrescentando que “a prisão de um homicida é justa, mas será ilegal se não se der o flagrante delito ou por ordem escrita do juízo competente� Justa causa, assim, é a causa suficientemente baseada em lei”�

Rogério Lauria Tucci, ao discorrer acerca do tema, defende faltar justa causa quando ausentes os requisitos tidos como imprescindíveis à prolação de sen‑tença de mérito, que podem ser reduzidos a uma única condição, na esteira do pensamento sempre atual de José Frederico Marques, “inexistência de preten‑são viável, quer no plano objetivo, quer no plano subjetivo”� Corroborando tal visão, Darcy Arruda Miranda, já nos idos de 1969, afirmava com exatidão que “a falta de justa causa para a ação penal é a falta de amparo legal, é a restrição

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indevida da liberdade individual, é o abuso de direito, ou de poder, é a acusação injusta, arbitrária, sem fomento de direito”�

Revela‑se suficiente, portanto, que não se enquadre, em qualquer moldura legal (tipicidade), o fato narrado na acusação; ou que não se patenteie, de pronto, o interesse na prestação jurisdicional, com o estabelecimento da necessária correlação entre o conteúdo desta e a situação antijurídica noticiada na peça inicial da ação penal; ou que a acusação não tenha sido formulada por quem seja, segundo a legislação em vigor, expressamente autorizado a fazê‑lo e fique dirigida contra quem, por variados motivos, esteja livre de sofrê‑la�

Consoante Maria Thereza Rocha de Assis Moura, ministra do Superior Tri‑bunal de Justiça, há íntima ligação entre a justa causa, a legalidade e a legiti‑midade da acusação� Para alguém ser acusado em juízo, faz‑se imprescindível que a ocorrência do fato típico mostre‑se evidente, haja probabilidade – não mera possibilidade – de o sujeito incriminado ser o autor e exista um mínimo de culpabilidade� Pressupor, em exame de habeas corpus, que o membro do Ministério Público ofereceu denúncia e que o recebimento pelo Juízo competente aconteceu de modo completamente diverso da realidade fática apresentada nos autos do inquérito é presumir o extraordinário e contrariar o princípio da boa‑fé do agente público� Somente situações demonstradas e dotadas de excepcionalidade desafiam o deferimento da ordem�

A indagação a ser feita é quando se poderá observar a presença, ou não, de justa causa�

De antemão, anoto competir ao tribunal de justiça, sem sombra de dúvidas, a análise dos elementos configuradores da justa causa, desde que – repito – respeitados os parâmetros ressaltados pela doutrina e, principalmente, pela remansosa jurisprudência dos Tribunais Superiores�

Júlio Fabbrini Mirabete destaca cumprir a concessão de habeas corpus quando a falta de justa causa ficar evidenciada diante da simples exposição dos fatos ou se puder verificar, à primeira vista, a não participação do indiciado na prática do delito� Assinala ser suficiente ao recebimento da peça acusatória a presença de elementos que tornem verossímil a denúncia�

Afrânio Silva Jardim ensina não incumbir ao tribunal examinar prova, pois, além de não ser possível tal análise “em sede de habeas corpus, estaria substi‑tuindo função do juiz de 1º grau e suprimindo uma instância”� Também afasta a possibilidade de, ante o princípio do juízo natural, o tribunal “suspender” inquérito ou processo alegando a insuficiência de prova ou valorando‑a, para absolver indiretamente o réu no 1º grau de jurisdição por meio de habeas corpus impetrado no 2º grau�

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Conforme estampado no artigo 129, inciso I, da Carta da República, o Minis‑tério Público tem o direito e o dever de, em defesa da sociedade, tentar provar os fatos afirmados na denúncia� Caso tenha sustentado, na peça, possuir prova mínima – justa causa – de fato típico, antijurídico e culpável, somente depois de exaurida a prova a ser produzida no juízo natural, é que pode ocorrer a absolvição, ou não, do réu�

Descabe a tribunal, antecipadamente – em recurso ou em habeas corpus –, dizer que a prova é suficiente ao reconhecimento da excludente de ilicitude ou de culpabilidade� No julgamento de impetração, há de restringir‑se à apre‑ciação das condições para o exercício da ação, dos pressupostos processuais, relativamente ao processo cujo trâmite se dá em instância inferior� De outra forma, acabar‑se‑á, de maneira inconstitucional e não republicana, por afastar do Ministério Público a possibilidade de provar, no momento adequado, com o irrestrito respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, que o réu praticou conduta típica, ilícita e culpável, conforme descreveu na denúncia� A exigência de prova cabal é inoportuna nessa fase embrionária da ação penal, devendo‑se aguardar a instrução probatória, as alegações finais e a prolação de sentença�

Sendo obrigatória a ação penal pública, mostra‑se impróprio, nesse estágio, qualquer exame acerca da viabilidade da acusação, revelando‑se necessária apenas a descrição de fato, em tese, típico� Na ação penal, porque voltada à satisfação do bem comum, no que visa a punição de eventuais violadores da lei penal, impera a presunção relativa de que o interesse está presente�

Em vários pronunciamentos, tive a oportunidade de consignar a excepcio‑nalidade da suspensão de inquérito ou de ação penal mediante habeas corpus, proclamando sempre que o “trancamento da ação penal por órgão diverso do retratado como juiz natural pressupõe que os fatos narrados na denúncia não consubstanciem crime, ou que haja incidência de prescrição ou defeito de forma, considerada a peça inicial apresentada pelo Ministério Público”� Cito como precedentes os Habeas Corpus nº 84�738/PR, 92�089/MG, 91�518/SP e 89�585/PI, todos de minha relatoria�

Outra não é a jurisprudência reiterada de ambas as Turmas do Supremo� Recentemente, a Segunda Turma, ao julgar o Habeas Corpus nº 105�251/RJ, da relatoria da ministra Ellen Gracie, reafirmou o entendimento segundo o qual, “na fase de recebimento da denúncia, o julgador deve se pautar pelo princípio pro societate. Assim, para o recebimento da exordial (sic) acusatória, basta a presença da prova da materialidade delitiva e dos indícios suficientes de auto‑ria”� Em outra ocasião, os ministros integrantes da Primeira Turma aludiram ao

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fato de não se poder substituir o processo de conhecimento pela via excepcional do habeas corpus, “o qual se presta, precipuamente, para afastar a manifesta violência ou coação ilegal ao direito de locomoção”�

Igualmente, quando do recebimento da denúncia formalizada no Inquérito nº 3�108/BA, relator ministro Dias Toffoli, o Pleno assentou:

(���)2� A denúncia somente pode ser rejeitada quando a imputação se referir a fato

atípico, certo e delimitado, apreciável desde logo, sem necessidade de produção de qualquer meio de prova, eis que o juízo acerca da correspondência do fato à norma jurídica é de cognição imediata, incidente, partindo‑se do pressuposto de sua veracidade, tal como se dá na peça acusatória�

(���)

Vale realçar que, há várias décadas, essa tem sido a óptica do Supremo� Exem‑plo paradigmático é o Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 32�208, julgado em 24 de setembro de 1952, relator ministro Orozimbo Nonato, no qual ficou evidenciado só existir falta de justa causa:

(���) que justifica a concessão de habeas corpus, quando o fato, nem mesmo em tese, constitui crime, ou quando, configurando uma infração penal, resulta de pura criação mental da acusação� Essa tese se alicerça em sólidos fundamentos� Não é possível, sob a alegação de falta de justa causa, convocar o juiz a examinar os extremos do pedido, se a queixa reveste as condições legais e dá os elementos do delito� Quando a queixa foi lançada nesses termos e o Tribunal julga que há indícios de que os recorrentes são os autores desse fato, não há ausência de justa causa, de modo a trancar o processo�

O trancamento de ação penal pressupõe a inexistência de juízo de probabili‑dade da ocorrência da infração e da autoria� Como ensina o ex‑Procurador‑Geral da República Joaquim Canuto Mendes de Almeida, não se exige, de pronto, a certeza moral quanto à ocorrência do fato, da autoria e da culpabilidade� Essa será imprescindível ao final, como modo de autorizar a condenação�

Nas palavras de Marcellus Polastri Lima, o tribunal no qual impetrado o habeas não pode ir ao exame de fundo, na forma do artigo 386 do Código de Processo Penal, pois não se trata de aferir a procedência da imputação e sim de averiguar se esta se faz lastreada no menor suporte probatório, ou seja, se o fato narrado está embasado no mínimo de prova, se encontra correspondência em inquérito ou peça de informação� Ao tribunal descabe confrontar provas ou apontar se essas são boas ou não, mas apenas verificar se a acusação está lastreada em elementos colhidos, mesmo que isolados ou contraditados, sem

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emitir juízo de mérito, pois não pode haver imputação gratuita, carente de dados embasadores, ou reveladora de fato completamente diverso daquele apurado�

No habeas corpus, a cognição é ampla no tocante à extensão, porque, se juiz ou tribunal podem até conceder a ordem de ofício, não estarão impedidos de apreciar, inclusive, matérias não trazidas pelos interessados� Quanto à profun‑didade, o exame exauriente do mérito é dependente da clara demonstração da ilegalidade da coação ou da ameaça� Sem uma prova cabal dos fatos alegados, que deve acompanhar o pedido inicial ou resultar de eventual confirmação por parte do coator ou de diferentes elementos trazidos ao processo, o juiz se verá obrigado a indeferir a ordem� Isso não impede, entretanto, que, mediante outros meios, seja reconhecido o direito dos pacientes� Trata‑se de caso de cognição limitado à prova existente� É o que ocorre, por exemplo, em situação na qual se deixa de conceder a ordem para trancamento de ação penal por apontada ati‑picidade do fato imputado, o que não inviabiliza que, no julgamento da mesma ação penal, venha o juiz a decidir pela absolvição exatamente por não ser o fato típico� A prova dúbia, incompleta ou contrariada por outros elementos não autoriza pronunciamento favorável�

Sobre o tema, assim se manifesta Heráclito Antônio Mossin:

(���) o que é vedado ao julgador é o cotejo, o balanço da prova, notadamente� A prova que informa o mandamus deve ser clara e precisa, não ficando na depen‑dência de sua valoração com outros elementos de convicção, o que é próprio do processo penal comum�

Na espécie, ficou claro que o Superior Tribunal de Justiça, em posição contrá‑ria à ora defendida, terminou por substituir‑se, em primeiro lugar, ao Juízo e, em segundo, ao Tribunal do Júri, órgão cuja competência se encontra definida no artigo 5º, inciso XXXVIII, do Diploma Maior�

A valoração e o cotejo analítico de provas, testemunhos e perícias médicas indicam ter o Superior adentrado seara imprópria à ação de habeas corpus�

Diante da narrativa de fato típico, antijurídico e culpável, não alcançado pela prescrição punitiva, cabe apenas e tão somente permitir que a ação penal siga o curso natural, para, suplantada a fase de pronúncia, por ocasião da sentença de mérito, serem esquadrinhadas todas as provas e evidências pelo juízo natural�

Conheço do extraordinário e o provejo para reformar o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, determinando o prosseguimento da Ação Penal nº 230/99 perante o juízo competente, qual seja, a 5ª Vara do Júri do Foro Regional XI Pinheiros/SP�

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EXPLICAÇÃO

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Presidente, certamente o impetrante não acreditou no taco do juiz‑presidente do Tribunal do Júri, deixando de aguar‑dar, portanto, a decisão interlocutória ou terminativa que se daria sob o ângulo da pronúncia ou da impronúncia�

VOTO

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, quando, pela primeira vez, examinei esse caso, que já foi pautado há algum tempo, minha inclinação inicial era pelo não conhecimento do recurso, justamente porque o Superior Tribunal de Justiça, julgando habeas corpus, fez um exame detalhado de toda prova que, agora se viu, já estava até concluída� Fez um exame detalhado e chegou à conclusão, com base nesse exame aprofundado, a que chegou� Houve um voto vencido pelo menos, o que demonstra que havia divergência�

Todavia, meditando melhor sobre o tema, verifico que é justamente em função de ele ter feito esse exame aprofundado e exaustivo da prova – che‑gando a conclusões que se manifestam, do ponto de vista dos fatos e do mate‑rial probatório, divergentes no Tribunal –, é justamente esse exame feito pelo acórdão recorrido que propicia o conhecimento do recurso e, mais do que isso, o seu provimento, porque fica manifesto que o Tribunal se substituiu à função que a Constituição atribui ao júri neste caso�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Em um primeiro passo, ao juiz pre‑sidente quanto à submissão dos acusados ao tribunal do júri, tanto que não se trata, na espécie, de assentar base para uma sentença de pronúncia� Apenas no voto – como apanhou muito bem Vossa Excelência, e é a situação jurídica em exame pelo Colegiado –, digo que não podia o Superior Tribunal de Justiça, na via do habeas corpus, sopesar a prova e chegar a uma conclusão a que somente o juiz presidente poderia chegar, ao prolatar a sentença de pronúncia ou de impronúncia�

O sr. ministro Teori Zavascki: Mutatis mutandis, nós teríamos aqui uma espécie de excesso de linguagem�

O sr. ministro Gilmar Mendes: De qualquer sorte, é importante verificar qual é a lesão de que se cuida� Nós estamos a falar de lesão ao artigo 129? Estamos a falar da lesão ao princípio do tribunal do júri? Que são, na verdade, garantias institucionais que são definidas a partir da própria legislação�

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Vossa Excelência me permite respon‑der? O obstáculo criado à marcha do processo no sentido de chegar ao tribunal do júri, afastando‑se a possibilidade de ele, Juízo competente, pronunciar‑se, desde que havida uma sentença de pronúncia que não chegou a ocorrer�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sem adiantar o meu voto, eu estou aqui examinando o acórdão atacado do STJ e estou verificando que, pelo menos, à primeira vista, o STJ fez o que nós fazemos todas as terças‑feiras: examinamos os aspectos formais da denúncia, verificar se a denúncia está em conformidade com o artigo 41 do CPC� É disso que se trata�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Perdoe‑me, ficou vencido e isolado, nessa óptica, o ministro Paulo Medina�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu tenho aqui e peço vênia agora mais especificamente ao Ministro Teori, eu não estou vendo um incursão mais aprofundada nas provas por parte do STJ�

Até quando chegar a minha oportunidade, eu lerei alguns e pedirei licença para ressaltar alguns trechos exatamente nesse sentido, demonstrando que o STJ não desbordou dos lindes de sua extrema competência no que tange ao exame do mérito, habeas corpus, tal como formulado inicial�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, examinaram elementos físicos e os depoimentos colhidos� Valoraram esses dados em termos de indícios�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Sim, mas nós, em habeas corpus, todo dia, fazemos esse exame�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Fazemos isso�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Poderia fazê‑lo atropelando o Juiz

competente para prolatar até mesmo uma sentença de impronúncia?O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Bem, já que estamos em sede de

debate, eu me permito então adiantar algumas considerações que eu faria no momento que me coubesse� Mas vejo aqui do acórdão do STJ em que se diz o seguinte:

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Reconheço, Presidente, a carência maior de médicos no Brasil�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Diz aqui o eminente Paulo Gallotti, um grande Juiz, aliás, Juiz de carreira:

“Em nenhum momento alcançou o Ministério Público demonstrar – pois sequer men-cionou – que as práticas narradas foram direcionadas à produção do resultado. Não discorre sobre o animus necandi que estaria a governar as condutas dos Pacientes.

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Além disso – agora sob o prisma da causalidade – vê-se que não se imputa essas práticas a ninguém. Não se sabe, por isso, se foram os Pacientes ou outros veteranos que assim agiram.

Por outro lado, se foram os Pacientes a impedir a saída da água, não se mencio-nou, nem superficialmente, qual deles praticou a conduta. Quem pisou nas mãos e cabeças? Quem utilizou de baquetas? Quem aplicou os ‘caldos’? São afirmativas desprovidas da precisão necessária e exigida pelo art. 41, CPP.

E mesmo que tenham sido atribuídas aos Pacientes, poderiam ser responsabili-zados por homicídio doloso, ainda mais qualificado?

Além disso, o Parquet não logrou estabelecer a causalidade entre as condutas (que não se sabe quem praticou) e o resultado morte. Apenas afirma que a vítima fora compelida a entrar na água.

Ora, qual a conduta que deu causa ao evento? A coação sobre o calouro para que entrasse na piscina ou foram as pisadas sobre sua cabeça? Foram as pisadas sobre suas mãos ou as ‘ baquetadas’ recebidas?

Nem utilizando do método hipotético de eliminação de Thyrén chega-se à conclu-são de que foram os Pacientes os responsáveis pelo resultado danoso. Eliminando-se mentalmente as condutas, ainda assim o resultado continua a existir.

Aqui vislumbra-se que o nexo causal não foi estabelecido.Reina, pois, insuperável obscuridade na narrativa ministerial.Soma-se a tudo isso, tratar-se a questão de concurso de pessoas.O entendimento desta Corte é no sentido de declarar a inépcia da denúncia

quando não narradas, individualizadamente, as condutas dos corréus ou não não estabelecer o nexo causal entre elas e o resultado:

A denúncia expõe as circunstâncias em que se deu o ‘trote’, mas quando busca narrar os fatos que poderiam corresponder a delitos, não passa de um amontoado de afirmações sem qualquer nexo lógico a concluir pela existência de crime doloso, quando, intuitivamente, o máximo que se poderia atribuir – caso individualizadas as condutas – seria delito culposo.”

Aí tece considerações sobre o artigo 41 e diz que esta denúncia não se con‑forma aos ditames do artigo 41� É o que fazemos todas as terças‑feiras e as quintas‑feiras, quando examinamos a denúncia�

Então – perdão, agora já avanço um pouco mais –, disse o nobre Advogado da tribuna que nós estamos em face de um RE, cujos leagues são extremamente estreitos, angustos� Nós não podemos mergulhar na prova, tal como não o fez o STJ; nós temos que verificar o seguinte: diante da conclusão do STJ que assen‑tou que faltava a justa causa à denúncia – e a denúncia era inepta, porque não individualizava as condutas –, se, diante disso que assentou o STJ, nós estamos ou o STJ, Tribunal a quo, estaria ofendendo o artigo 129, cerceando o MP ou, mais ainda, ofendendo o artigo 5º, XXXVIII, da Carta Magna que, exatamente,

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é a soberania do júri� Eu penso que nós temos aqui que nos ater aos aspectos formais, porque se trata de um RE� O STJ extrapolou os limites de sua compe‑tência, adentrou na prova? Quer‑me parecer, data venia, que não, simplesmente fez – insisto – aquilo que nós fazemos cotidianamente: cotejou a denúncia com o artigo 41 do CPP�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Se Vossa Excelência me permite, eu tenho uma preocupação aqui, eu acho que a questão é muito séria, o debate é extre‑mamente relevante, como nós vimos no cuidadoso voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio e, agora, na manifestação do Ministro Teori�

A questão que realmente me preocupa é que, se entendermos plausível a afirmação de lesão ao artigo 129, fico a imaginar que qualquer fenômeno de trancamento de ação poderá dar ensejo, então, à arguição de lesão ao artigo 129� A absolvição sumária que ocorre no processo penal, que vem sendo desen‑volvida e que é fruto de uma modelagem institucional�

O sr. ministro Celso de Mello: Como bem destacado pelo eminente Minis‑tro RICARDO LEWANDOWSKI, a leitura do acórdão ora impugnado, tendo em vista os limites temáticos delineados no recurso extraordinário ora em julgamento, permite que esta Corte, sem revolver o conjunto fático‑probatório, possa reconhecer a inexistência, no caso, de elementos idôneos que, presentes, justificariam a instauração da “persecutio criminis” contra os ora recorridos�

Tal, porém, como revela o voto do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, não ocorre na espécie ora em julgamento, o que legitimava a concessão do “writ” constitucional em favor dos ora recorridos�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Vossa Excelência me permite?O sr. ministro Celso de Mello: Com prazer�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Aguardo Vossa Excelência terminar�O sr. ministro Celso de Mello: Ouço Vossa Excelência com prazer�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Como relator do processo: sejamos

minimamente acacianos e comecemos do início, fazendo justiça ao Ministério Público de São Paulo, que já teve, nos quadros, Vossa Excelência!

O sr. ministro Celso de Mello: As minhas observações não implicam crí‑tica ao Ministério Público paulista nem à instituição do Ministério Público�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Sim, sim� Apenas retrato o que consta, em termos de história, da peça primeira da Ação Penal� Procedo à lei‑tura de parte da denúncia:

“Noticiam os inclusos autos de Inquérito Policial que, no período vespertino do dia 22 de fevereiro de 1999, na sede da ‘Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz’ – A�A�A�O�C� –, localizada na Rua Artur de Azevedo, número 01, no bairro de

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Pinheiros, nesta cidade e comarca, os agentes” – houve a individualização, muitos participaram do trote, mas houve a individualização, a partir do inquérito, desses agentes mencionados na denúncia – “retro apontados, em concurso e mediante asfixia mecânica por afogamento, mataram Edison Tsung Chi Hsueh” – o Tri‑bunal do Júri dirá, se vier à balha a sentença de pronúncia – “consoante o laudo de exame de corpo de delito – exame necroscópico�

Apurou‑se que, na data e local do fato, os agentes, que eram veteranos do curso de Medicina da Universidade de São Paulo, reunidos para o mesmo desiderato, estavam recepcionando os calouros, dentre os quais a vítima, em prática deno‑minada “trote”�

Consistia o “trote” em ritual de atos praticados por veteranos nos calouros� Assim, após a aula inaugural ministrada no teatro da Faculdade, os calouros foram despojados de seus pertences mais perecíveis, guardados em sacos plás‑ticos previamente etiquetados com seus nomes� Em seguida, somente com vesti‑menta básica e atados com barbantes pelos pulsos, em grupos, foram submetidos a atos vexatórios, com arremesso de ovos, água e farinha, tendo, ainda, seus corpos pintados e levados para a Avenida Doutor Arnaldo, tudo pelos veteranos�

Rumaram, então, para a sede da aludida Associação Atlética onde, prosse‑guindo‑se no ritual, foram levados para o bosque ali existente e lavados com água e sabão em pó pelos veteranos� Ato contínuo, foram encaminhados e acomodados na arquibancada da piscina, para a realização do ‘batismo’, o ápice do ritual�

Nesse momento” – e vem a individualização das condutas; não sei se procedente ou não; isso caberá a ser deslindado na instrução do processo –”, os agentes LUÍS EDUARDO, GUILHERME e FREDERICO, ajustados que estavam na continuidade do ‘trote’, aguardaram o comando de ARY, também com eles conluiado, expres‑sando o grito de guerra para, então, compelir os calouros, em número aproximado de cem, a ingressarem na água, mesmo contra as suas vontades� Uma vez dentro da piscina, os calouros foram impedidos de sair, porquanto tinham suas mãos e cabeças pisoteadas, além de receberem golpes com ‘baquetas’ de instrumentos musicais, tudo de forma a impedir que emergissem� Foram, ainda, submetidos a abuso dentro da água, em prática conhecida por ‘caldo’, assumindo, pois, os agentes, indiscutivelmente, o risco de causar o resultado morte�

A vítima, caloura, submetida ao ritual de ‘trote’, foi compelida pelos agentes a ingressar na piscina, sofrendo, no interior desta, morte por asfixia mecânica por afogamento”�

Essa denúncia, ante os elementos primários coligidos na fase de inquérito, foi recebida, mas não se aguardou a sentença de pronúncia�

O que ocorreu, no âmbito que entendo impróprio, ou seja, da medida apre‑ciada no Superior Tribunal de Justiça? O exame aprofundado, não só do laudo – e posso proceder à leitura, porque inclusive é um trecho em que se diz que a morte foi precedida de agonia da ordem de minutos: os achados macro e microscópicos

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indicam luta prolongada� O que fez o Superior Tribunal de Justiça? Passou ao exame dos depoimentos na fase policial, depoimentos no processo administra‑tivo de sindicância, instaurado na Universidade de São Paulo, para dizer que não seriam conclusivos – talvez não sejam, e subscreveria essa óptica – a selar‑se a culpa dos acusados� E houve a análise em uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove folhas dos elementos de prova�

O sr. ministro Celso de Mello: E qual foi o resultado desses depoimentos testemunhais? Nenhum, pois ninguém viu nem presenciou a prática da conduta imputada aos ora recorridos, como se vê dos depoimentos prestados tanto na fase do inquérito policial quanto em juízo�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, certamente o Ministério Público não presenciou o trote!

O sr. ministro Celso de Mello: Não se pode ignorar o conteúdo dos depoi‑mentos prestados em juízo pelas testemunhas arroladas pelo próprio Ministério Público� Resulta claro de tais depoimentos que as testemunhas em questão nada viram, nada presenciaram, nada esclareceram a respeito dos fatos narrados na peça acusatória�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: E há um outro aspecto�O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Não parece a Vossa Excelência

que há um pacto aí?O sr. ministro Celso de Mello: Pacto?O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Um pacto de silêncio, é evidente�O sr. ministro Celso de Mello: Ah, por favor! Um pacto de silêncio? De

quem com quem?O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim, mas, quod non est in actis, non

est in mundo, quer dizer���O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Neste País, não duvido de nada�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Presidente, nas costas do Ministério

Público, estará a incumbência de comprovar os fatos� Mas que haja a instrução, chegando‑se pelo menos à sentença de pronúncia ou impronúncia�

O sr. ministro Celso de Mello: O Ministério Público não pode pretender nem sustentar mais do que aquilo que provas idôneas demonstram e evidenciam nos autos� Há depoimentos testemunhais prestados em juízo� E, em juízo, esses depoimentos nada esclareceram�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O STJ se excedeu� Ministro Celso, não cabia ao STJ esse exame?

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: E há um outro aspecto� Há um aspecto formal importante: temos a Súmula 279, que diz o seguinte: “Para

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simples reexame de prova, não cabe recurso extraordinário”� Ou seja, o Ministé‑rio Público que pretende���

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, faça‑me justiça!O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Faço justiça a Vossa Excelência,

sempre� Estou dizendo que o Ministério Público está utilizando de um RE para revolver fatos e provas, proibido pela Súmula 279�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Há vinte e três aqui e mais oito no Tribunal Superior do Trabalho, ao todo trinta e um anos atuando em sede extraordinária� Não fui à prova; quem foi à prova foi Vossa Excelência� Apenas disse que o Superior, julgando habeas corpus, não podia mergulhar – já que estamos falando de piscina – a fundo nessa prova� Não a examinei, tanto que não estou me substituindo ao juiz presidente do Tribunal do Júri� Não sei nem se, provido este recurso, virá à tona – e volto à piscina – uma sentença de pro‑núncia ou de impronúncia� Mas que venha!

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): E o Superior Tribunal de Jus‑tiça, excedendo‑se, substituiu‑se ao órgão constitucionalmente competente para o exame dessas provas� Agora, o Supremo se omite e deixa de censurar esse excesso do STJ�

O sr. ministro Celso de Mello: Não, não há omissão alguma que se possa imputar ao Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente� Não posso concordar com essa afirmação de Vossa Excelência�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): E ainda por cima sou apontado como progressista, libertário!

O sr. ministro Celso de Mello: O Poder Judiciário, no caso, está exercendo, como corretamente o fez o E� Superior Tribunal de Justiça, o poder de legitima‑mente efetuar o controle das acusações penais, impedindo que pretensões con‑testáveis, inviáveis ou inadmissíveis, porque destituídas de justa causa, tenham curso regular nas instâncias judiciárias�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Celso, a descri‑ção como esta, lida pelo ministro Marco Aurélio, caracteriza uma pretensão inviável?

O sr. ministro Celso de Mello: Denúncia que não encontra suporte em prova idônea produzida nos autos qualifica-se como expressão do exercício abusivo do poder de acusar, o que não pode ser tolerado nem admitido por qual‑quer órgão do Poder Judiciário, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): A descrição me parece claríssima�

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): A situação é semelhante à do crime societário, isso quanto à extensão da participação de cada qual� É elucidada durante a instrução processual penal�

O sr. ministro Celso de Mello: Sem a liminar demostração, pelo Ministério Público, de que a acusação penal se reveste de justa causa, torna-se inadmis-sível, pois arbitrário, o exercício do “ jus persequendi in judicio”�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Nos crimes societários, de diri‑gentes de empresa, nos crimes financeiros, também não há como, de início, individualizar‑se a conduta de cada qual dos dirigentes�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Mas não cabe ao STJ examinar essa prova� É este o problema� Não caberia ao STJ examinar esta prova; caberia ao Tribunal do Júri�

O sr. ministro Celso de Mello: Não apenas ao Júri� Caberia, antes de mais nada, ao magistrado de primeiro grau formular, se fosse o caso, um juízo de impronúncia, vale dizer, um juízo negativo de admissibilidade da acusação penal (CPP, art� 414, na redação dada pela Lei nº 11�689/2008)�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ao magistrado��� Pois é, mas ele foi impedido de fazê‑lo, ora!

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Aguardemos a sentença de pronún‑cia ou de impronúncia!

O sr. ministro Celso de Mello: Na realidade, o magistrado que impronun-cia o réu, valendo‑se de prerrogativa que lhe confere o próprio ordenamento positivo, não transgride, com tal comportamento processual, o monopólio da ação penal pública pelo “Parquet” nem ofende o postulado da soberania do veredicto do Júri�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Se Vossa Excelência tiver real‑mente uma questão de fato���

O sr. José Roberto Batochio (advogado): É o último esclarecimento que faço�O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Questão de fato� Se não for���O sr. José Roberto Batochio (advogado): É sobre fato�O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Sim�O sr. José Roberto Batochio (advogado): O Ministro Marco Aurélio se repor‑

tou a sinais de luta� Apenas olvidou‑se dimensionar que o perito disse que é luta contra a imersão, não é luta física� Apenas isso que gostaria de deixar claro�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Não estamos aqui a examinar essa prova� Essa prova não deveria ter sido examinada na Instância anterior e nem aqui ela pode ser�

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O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Como não posso, Presidente, jul‑gando o extraordinário, examinar a prova, limitei‑me ao que está no acórdão do Superior Tribunal de Justiça�

O sr. ministro Celso de Mello: O Superior Tribunal de Justiça não extra‑polou os limites de cognição que lhe condicionaram o exercício da atividade jurisdicional�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): A parte que li é a da transcrição do laudo constante do acórdão impugnado�

O sr. ministro Celso de Mello: Vale destacar fragmento do acórdão ora recorrido, no qual o E� Superior Tribunal de Justiça fez consignar o que se segue:

“(...) é importante ressaltar que a alegação de falta de justa causa há de ser exami-nada com a avaliação dos elementos de convicção que levaram ao oferecimento da denúncia, sem que se esteja a revolver o quadro fático.”

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sim, mas é o que nós fazemos aqui, sempre�

O sr. ministro Celso de Mello: Estamos, portanto, a examinar a controvérsia nos estritos limites materiais que pautaram o julgamento da questão pelo E� Superior Tribunal de Justiça, valendo‑nos, para tanto, dos mesmos elementos debatidos por aquela Alta Corte judiciária e que, coincidentemente, foram os mesmos elementos invocados pelo próprio Ministério Público�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministro Teori, conclua o seu voto, por favor�

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, como disse, eu fiquei em dúvida sobre o recebimento desse recurso do juízo de admissibilidade, justa‑mente, porque – no fundo – estamos aqui aparentemente discutindo prova� Mas esse recurso passou pelo crivo da repercussão geral�

Suponho que o que levou o Tribunal a aceitar esse recurso tenha sido justa‑mente a ofensa a um dos postulados invocados no recurso, ou seja: ou a com‑petência do Ministério Público, que me parece que não é o caso, ou ofensa à soberania do Júri, que me parece que seria o caso� Por que seria o caso? Seria o caso, porque, no meu entender, aparentemente, o que o Superior Tribunal de Justiça fez, em um habeas corpus, foi um juízo típico e próprio de Tribunal do Júri� O Relator, por exemplo, Ministro Paulo Gallotti, diz assim:

“(���) a leitura minuciosa dos autos, que contêm mais de 130 depoimentos, não permitiu reconhecer o mínimo de indícios de que os denunciados tenham pra‑ticado quaisquer dos atos detalhados na peça de acusação, vale dizer, impedir

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que os calouros emergissem da água com golpes de baquetas e pisadas em suas mãos, (���)�”

Já o Ministro Hamilton Carvalhido diz assim:

“A conduta, a imputação objetiva do resultado, a assunção, pelo menos, do risco da sua produção e o domínio dos fatos pelos agentes, mostram‑se, assim, indu‑vidosos, não havendo falar em inépcia formal da denúncia�”

Ou seja, são pronunciamentos absolutamente antagônicos sobre o conjunto de provas colhidas até então, e que foram examinadas exaustivamente�

O que se tem, portanto, salvo melhor juízo, é um pronunciamento que seria próprio do Tribunal do Júri, que foi antecipado por via de habeas corpus, que, aliás, é via, por si só, inadequada para um julgamento antecipado, pelo Superior Tribunal de Justiça�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Vossa Excelência me permite?Não se aguardou, sequer, a decisão de submissão, ou não, dos acusados ao

Tribunal do Júri, ou seja, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça tem contor‑nos de sentença de impronúncia�

O sr. ministro Teori Zavascki: Não sei quem é que tem razão aqui: se é o voto vencido ou o voto vencedor� A única convicção, a qual me parece que se pode extrair aqui, é que o Superior Tribunal de Justiça fez um juízo próprio do Tribunal do Júri�

Por isso, Senhor Presidente, estou acompanhando o Relator�

VOTO

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, o tema de fundo é extrema‑mente doloroso, não há a menor dúvida� É um processo que traz um aspecto, porque assim como os pacientes – hoje são médicos –, a vítima, quem sabe, também não seria, estaria na mídia, e prestando serviços tão relevantes à popu‑lação� Mas eu fico atenta ao juízo de conhecimento, pedindo vênia, sempre, às compreensões contrárias�

O próprio Ministério Público Federal, na preliminar de repercussão geral, diz – e eu farei a leitura da tese do Ministério Público Federal, na preliminar de repercussão geral ao Recurso Extraordinário – estamos em sede de Recurso Extraordinário:

“��� a questio iuris restringe‑se em saber se o v� acórdão concessivo, ao admitir que “os autos não contêm elementos suficientes para dar curso à ação penal movida contra os pacientes por homicídio qualificado”, violou os arts� 129, I,

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por ter sido cerceada a ação da Ministério Público, e 5º, XXXVIII, “d”, que reco‑nhece a instituição do júri, atribuindo‑lhe competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida� Assim prevê os dispositivos legais mencionados:

“Art� 5º � (���) omissisXXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der

a lei, assegurados:a) (���)b) (���)c) (���)d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”

Esse é um dos dispositivos invocados� Qual é o outro?

“Art� 129 � São função institucionais do Ministério Público:I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;”

Então, o recurso extraordinário é manejado por violação direta, esses dois preceitos constitucionais�

A jurisprudência desta Corte, por sua vez, admite, em sede de habeas corpus, ainda que em caráter excepcional, o trancamento de ação penal por ausência de justa causa, na forma toda regrada pela legislação infraconstitucional�

Então, com todo respeito, ouvindo os debates ricos e tão profundos, eu pen‑sava no Ministro Rider de Brito, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, que sempre dizia, com relação ao juízo de conhecimento: “como podemos ler sem abrir o livro?”

O exame dos requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade recursal pressupõe que ultrapassemos o juízo de conhecimento, para chegar ao provi‑mento ou não, o exame do mérito� E o mérito é terrível, não há a menor dúvida� Sinto‑me absolutamente tocada por toda essa descrição feita pelo Ministé‑rio Público� E faço questão de registrar: Presidente, se tivesse eu examinando recurso ordinário em habeas corpus, talvez o meu voto fosse diferente� Mas, se esta Corte – e o Ministro Gilmar aventou exatamente a linha que estava seguindo meu raciocínio – entender que um acórdão que afirma a ausência de justa causa, e por isso tranca ação penal em habeas corpus, e ela implica vio‑lação direta a uma desses preceitos, abre‑se a porta� É um precedente, porque eu só posso concluir, com todo respeito ao eminente Relator e aos que o estão acompanhando, se eu fizer revolvimento de fato e prova, se eu fizer exame da legislação infraconstitucional para entender que até o STJ revolveu fato e prova,

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o que não poderia ter feito, a meu juízo, em sede de habeas corpus. Mas, para chegar lá, tenho que abrir o livro� Eu não consigo�

Então, com todo respeito, Senhor Presidente, eu não conheço do Recurso Extraordinário�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia: Presidente, eu também peço vênia ao Ministro‑‑Relator e ao Ministro Teori, não sem fazer uma consideração rigorosamente na linha do que acaba de fazer a Ministra Rosa Weber�

Não acho que não tenha havido revolvimento de provas, não acho que o Superior Tribunal de Justiça tenha atuado sem, de muitas formas, atropelar aquilo que seria previsto para o habeas corpus, porque, mesmo quando nós decidimos aqui, em habeas corpus, que não podemos revolver provas – e neste caso mantemos a ação penal em curso exatamente para permitir isso –, não foi o que se deu�

Também não posso desconsiderar que a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao denegar a ordem impetrada, afastou as alegações de inépcia de denúncia, descrevendo tal como foi lido pelo Relator, rigorosamente, ponto por ponto, inclusive com referências: os agentes Luiz Eduardo, Guilherme, Frederico, ajustado que estava na continuidade do trote aguardavam o comando de Ary, também com eles conluiado� Então, eu acho que houve sim�

A minha dificuldade, Presidente, é ter havido a Repercussão Geral, o que me levou a estudar mais este caso, porque se houve tal reconhecimento haveria uma questão constitucional� E, portanto, era caso, sim, de recurso extraordi‑nário, e ficava vencida, assim, essa etapa� Entretanto, ao se por a questão da Repercussão Geral, o eminente Ministro Marco Aurélio, Relator, afirmou que a ação penal, na fase embrionária da apresentação de denúncia e audição de testemunha, veio a ser trancada pelo Superior Tribunal de Justiça, vencido o Ministro Hamilton Carvalhido�

O tema relativo a viabilizar‑se ao Ministério Público a prova dos fatos conti‑dos na denúncia ao juiz sumariante, submetendo ou não os acusados ao Tribu‑nal do Júri, não suscitava exame mediante habeas corpus, presentes os requi‑sitos para concluir‑se pela insubsistência da acusação�

Então, a minha dificuldade, Ministro Marco Aurélio, foi exatamente pelo fato de ter sido reconhecida a Repercussão Geral, o que indicava estar superado esse juízo de admissibilidade�

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Entretanto, a leitura que faço dos documentos não deixa que eu me ponha de acordo com a afirmação de que o Superior Tribunal de Justiça não teria aden‑trado a prova� A meu ver, adentrou demasiadamente, além da competência dele� Mas a minha dificuldade é de ir contra a nossa jurisprudência, que não admite exatamente essa mesma prática, de adotar o recurso extraordinário como um caminho apropriado, adequado constitucionalmente; quer dizer, o erro de lá não justificaria o nosso�

E, portanto, em que pese a gravidade do quadro, em que pese a circunstância de eu mesma não vislumbrar qual outro caminho teria o próprio Ministério Público para chegar até aqui e penso que o sistema de Justiça numa dada hora tem que acabar, portanto, tem que se finalizarem os processos� E não se pode tomar um caminho que não seja o apropriado, porque, a meu ver, com a devida vênia do Ministro‑Relator e do Ministro Teori, não seria o do recurso extraor‑dinário� Peço vênia, portanto, para não conhecer do Recurso Extraordinário�

VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, revendo agora os autos do processo, eu tenderia, sobretudo à luz da Súmula 279, que tem a seguinte dicção: “para simples reexame de provas, não cabe recurso extraordi‑nário “, a acompanhar a Ministra Rosa Weber e a Ministra Cármen Lúcia, não conhecendo do Recurso�

Ocorre que já houve uma decisão Plenária; essa decisão transitou em julgado e nós conhecemos do Recurso, entendemos que este Recurso tinha repercussão geral e, portanto, deveria ser conhecido por esta Corte� Assim, para mim, essa questão do conhecimento, com todo respeito, está superada neste momento�

Então, conheço do Recurso, mas lhe nego provimento pelas razões que já expus, mas, sobretudo, observando o seguinte: do que se trata aqui neste caso? Trata‑se de examinar se o Superior Tribunal de Justiça, ao declarar inepta a denúncia e ao assentar que falta justa causa à exordial acusatória, ofendeu artigo 129 e o artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal�

Eu entendo que o Superior Tribunal de Justiça agiu estritamente dentro de sua competência legal, confrontou a denúncia com os requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal e, evidentemente, teve que fazer, como nós fazemos aqui, um exame aligeirado da prova� Tangenciou a prova, que é o substrato da denúncia� Nós fazemos isso aqui, tanto em Plenário como nas Turmas� Nós temos que, de certa maneira, confrontar a denúncia com a prova, minimamente�

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Isso não significa que nós revolvemos fatos e provas, o que é vedado em sede de habeas corpus�

Então, entendo que, do ponto de vista formal e dessa análise que temos que fazer neste RE, o STJ agiu dentro da lei, dentro das competências que a Cons‑tituição lhe assinala�

Portanto, nego provimento ao recurso�

VOTO

O sr. ministro Gilmar Mendes: Senhor Presidente, realmente, como já foi des‑tacado aqui, este é um caso muito grave, no que diz respeito aos episódios subjacentes, é evidente, e é deplorável por todos os títulos�

A questão que me angustia desde sempre – e ainda discutia isso aqui, a latere, com a Ministra Cármen Lúcia –, é a caracterização da lesão ao artigo 129, porque, obviamente, toda vez que houvesse uma decisão que eventualmente trancasse um inquérito, que trancasse uma ação penal, caracterizar‑se‑ia, em princípio, a lesão ao artigo 129, porque o Ministério Público estaria sendo obs‑tado – o princípio do promotor natural em sentido mais amplo�

Por outro lado, especialmente em relação ao júri, que é do que se cuida – os crimes dolosos contra a vida –, qualquer ação que eventualmente afetasse o desenvolvimento do processo na ação por crime de homicídio doloso também caracterizaria a lesão a esse princípio do juiz natural� E parece‑me que isso, realmente, levaria a um resultado que não encontra base na nossa jurisprudên‑cia� A toda hora, fazemos esse tipo de exame e trancamos a ação penal, porque não houve descrição adequada� Aqui foram mencionados os crimes societários e, nesses casos, nós dizemos, depois de passar por todas as instâncias, que não houve descrição adequada� Ainda há pouco, discutíamos isso num crime socie‑tário, em um caso do Rio Grande do Sul, na Segunda Turma, em que se imputava a prática de crimes a empresários� E dizíamos: aqui não está descrita� Portanto, examinávamos esses fatos mínimos no âmbito do habeas corpus.

Por outro lado, levado esse argumento à última consequência, a própria absol‑vição sumária, por parte do juiz, já seria também inconstitucional� Então, esse é um ponto delicado do raciocínio� E aí o argumento da repercussão geral é muito sensível, porque, ao decidirmos este caso, estaremos emitindo uma decisão que se projeta para além de outros casos, em situações idênticas�

Então, parece‑me que, tendo em vista exatamente essas premissas, vou acom‑panhar a manifestação do Ministro Lewandowski no sentido do desprovimento do recurso�

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Eu vivo essa tortura, a toda hora, com uma questão que não se colocou aqui, porque o que se diz aqui, en passant, é que foi‑se além do que se pode fazer em sede de habeas corpus� Mas todo o dia – o Ministro Lewandowski lembrava isso muito bem – discutimos dosimetria� Agora a nova lei sobre o tráfico de drogas enseja esse exame� E dizemos: o juiz não fez o devido sopesamento� Retiramos determinadas imposições e mandamos que ele faça novamente� Esse exame nós fazemos cotidianamente�

Eu sou torturado – eu dizia – com os casos de, às vezes, flagrante má aplica‑ção da lei; um caso em que a interpretação da lei é feita de maneira, vamos dizer assim, idiossincrásica� Por exemplo, imaginemos um juiz que invente uma lei, que conceba uma lei que não existe� Que princípio ele feriu? Feriu o princípio da legalidade, claro� Agora, vamos aceitar o recurso extraordinário neste caso? Mas vamos imaginar que a hipótese não seja tão extrema, que ele aplicou de maneira tortuosa a lei� Nós podemos aceitar o recurso extraordinário? Precisa‑mos pensar nisso� Mas aqui nem disso se cuida� O que se diz é que não é típico fazer esse tipo de exame em habeas corpus.

Quando nós examinamos fundamentos da prisão preventiva, o que nós faze‑mos? Estão presentes os fundamentos ou não estão presentes os fundamentos? Claro que nós levamos em conta os fatos subjacentes para fazer essa análise, examinamos isso e fazemos esse contraste� Não seria o caso, então, de fazer essa análise, se tivesse, claro, houve uma má aplicação da disciplina legal que trata do Tribunal do Júri, flagrante por parte do STJ? Poderia� De fato, podería‑mos admitir aqui o recurso extraordinário, considerando a instituição do júri�

Mas, nesse caso, de forma genérica, simplesmente dizendo que houve uma exorbitância, porque houve exame ou contraste de provas� Mas isso nós não faze‑mos todo dia em sede de habeas corpus, eventualmente, para trancar inclusive as ações penais? E seria isso indevido?

Então, pedindo vênia ao cuidadoso voto proferido pelo Ministro Marco Auré‑lio, posiciono‑me no sentido do desprovimento do Recurso Extraordinário�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello: Confirmo a ordem concessiva de “habeas corpus” e, em consequência, com a devida vênia dos eminentes Ministros que pensam em contrário, nego provimento ao presente recurso extraordinário, acompanhando, no ponto, o douto voto proferido pelo eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI�

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É que também entendo, na linha de diversas decisões por mim proferidas nesta Corte Suprema, que não se revela lícito ao Poder Público fazer instaurar persecução penal contra quem quer que seja, se o órgão estatal de acusação não dispuser de prova lícita, consistente e idônea que possa dar suporte e legitimar a pretensão punitiva do Estado, sob pena de tal comportamento, por ser mani-festamente inadmissível, traduzir hipótese de ausência de justa causa�

Desse modo, e pedindo vênia, o meu voto acompanha o do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Na verdade, é o voto da ministra Rosa Weber�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ministra Rosa Weber�A sra. ministra Rosa Weber: Não, eu não conheço�O sr. ministro Celso de Mello: O voto que acompanho, Senhor Presidente, é

o do eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, pois o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI não conhece do presente recurso extraordinário�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Ah, a Ministra Rosa não conhece, é verdade�

A sra. ministra Rosa Weber: Eu não conheço�O sr. ministro Celso de Mello: O Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, ante-

cipando-se, proferiu voto conhecendo e negando provimento ao apelo extremo�A sra. ministra Rosa Weber: Com todo o respeito, eu não conheço�O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O Ministro Lewandowski

também não conhecia�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Mas é que alteramos a nomenclatura�

Quando adentramos a matéria de fundo, provemos ou desprovemos o recurso�O sr. ministro Celso de Mello: As eminentes Ministras ROSA WEBER e

CÁRMEN LÚCIA, em juízo preliminar, não conhecem do recurso extraordinário�O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Vencido na preliminar, o integrante

do Colegiado deve votar quanto ao mérito�O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Elas duas teriam que votar

quanto ao mérito�O sr. ministro Celso de Mello: Sim, essas ilustres magistradas, vencidas

na preliminar, deverão, agora, proferir juízo de mérito sobre o fundo da con‑trovérsia recursal�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Também eu conheço, sobre‑tudo pelo fundamento do artigo 5º, inciso XXXVIII�

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DEBATE

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Senhor Presidente, eu tenho a impressão que, se algum Ministro se limita a não conhecer, ele não pode ser obrigado a emitir um juízo de mérito� Ele não conhece, porque entende que a matéria não tem condições de alçar‑se���

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Nós ficaremos sem dois ou três votos de mérito�

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Ministro, em Colegiado, há um prin‑cípio básico: ultrapassada a preliminar – e tem‑se preliminar do recurso, não da causa –, cabe adentrar o mérito� Agora, evidentemente, estamos vivendo tempos muito estranhos, e tudo é possível�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Sim�

VOTO (Aditamento)

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, Vossa Excelência está me dando a palavra para votar com relação ao mérito?

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Mérito, porque Vossa Excelên‑cia e a Ministra Cármen ficaram vencidas quanto ao conhecimento�

A sra. ministra Rosa Weber: Eu compreendi perfeitamente: ficamos venci‑das no conhecimento, porque eu não vislumbro, com todo respeito, violação direta a qualquer dos dois dispositivos constitucionais invocados pelo Minis‑tério Público� Mas, na verdade, tendo que votar com relação ao mérito, eu nego provimento ao recurso�

VOTO (Aditamento)

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, também, como eu entendi� Eu já tinha sido vencida na repercussão geral� Vencida aqui no conhecimento, eu nego provimento, pelas mesmas razões�

EXPLICAÇÃO

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Eu acho que nós precisamos ter um pouco mais de rigor no reconhecimento da repercussão geral�

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Como disse o nosso futuro Colega perante o Senado Federal no dia de ontem: o Supremo Tribunal tem reconhecido tantos casos de repercussão geral que não terá tempo de julgá‑los� E me parece que esse é um dos casos que se enquadra‑riam nesta categoria�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Agora, é um caso de relevância, daí a impor‑tância do julgamento, independentemente do resultado�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Sem dúvida� Melhor julgar bem um caso do que vários sem aprofundar a matéria, data venia�

O sr. ministro Celso de Mello: A tese ora submetida ao exame do Plenário do Supremo Tribunal Federal consiste em reconhecer que qualquer decisão do Poder Judiciário que rejeite denúncia, que impronuncie ou absolva, sumaria-mente, os réus ou, ainda, que ordene a extinção, em sede de “habeas corpus”, de procedimentos penais não transgride o monopólio constitucional da ação penal pública (CF, art� 129, I) nem ofende os postulados do juiz natural (CF, art� 5º, inciso LIII) e da soberania do veredicto do Júri (CF, art� 5º, inciso XXXVIII, “c”)�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Essa é a tese que o Plenário afirma�O sr. ministro Celso de Mello: Tais são os aspectos importantes a ressaltar,

como consequência desse julgamento, e que transcendem os limites meramente subjetivos das partes aqui diretamente envolvidas�

VOTO

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): Senhores Ministros, como a maio‑ria, eu descarto o fundamento relativo ao monopólio do Ministério Público; também acho que não há violação a esse princípio constitucional�

Mas vou direto ao que interessa� É muito comum, nas nossas discussões, nós esquecermos do fundo da questão� Aqui, o que nós temos? Um jovem, saído de uma minoria étnica brasileira, foi vítima de uma grande, de uma imensa violên‑cia, que resultou na sua morte e no fim dos seus sonhos e da sua família� É isso o que deveríamos estar debatendo�

O Ministro‑Relator leu a denúncia feita pelo Ministério Público, e nela eu não vi nenhum vício; ela é claríssima� Ela descreve, com muita clareza, os fatos que ocorreram naquela noite fatídica� Eu pergunto: alguns desses jovens que foram denunciados não participaram, deixaram de participar?

O sr. ministro Marco Aurélio (relator): Certamente o Ministério Público não escolheu a dedo!

O sr. ministro Joaquim Barbosa (presidente): O Ministério Público não esco‑lheu a dedo� Eu não ouvi da tribuna, do ilustre Advogado, nenhuma alegação no

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sentido de que esses jovens – hoje médicos – denunciados não teriam partici‑pado daquele ato bárbaro� Não ouvi� A quem incumbiria examinar, verificar se eles são ou não culpados, já que houve morte? O Tribunal do Júri ou um órgão burocrático da Justiça brasileira situado aqui em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça? Falamos aqui, ouvi vários dizendo que não cabe exame de prova em habeas corpus; não cabe exame de prova no Recurso Extraordinário – que é o que estamos julgando� No entanto, o que mais se fez aqui hoje foi examinar prova� O que mais se fez aqui foi examinar prova� Para quê? Para confirmar uma decisão questionável do STJ� O que fez o STJ? O STJ fez aquilo que eu qualifica‑ria de uma fuite en avant, um salto para frente� Salto para quê? Para assegurar o não prosseguimento do processo criminal contra esses jovens� Por quê? Não sei; porque os fatos me parecem muito claros�

Olha, não é a primeira vez que, nesses meus dez anos de Supremo Tribunal Federal, presencio situação como aqui estamos vivendo hoje aqui: o Tribunal se debruçar sobre teorias, sobre hipóteses e esquecer aquilo que é essencial, a vítima� Não se fala da vítima� Não se fala da sua família� Repito, foi um jovem, que acabara de ingressar na universidade, que perdeu a sua vida�

Estamos aqui chancelando a impossibilidade de punição aos que cometeram esse crime bárbaro� Não quero com isso culpabilizar esses jovens que estão sendo acusados; quero dizer simplesmente que o Supremo Tribunal Federal está impedindo que essa triste história seja esclarecida� É só isso�

Parece‑me que o Superior Tribunal de Justiça, ao fazer essa fuite en avant, violou, sim, abertamente o art� 5º, XXXVIII, da Constituição; violou o princípio da soberania do Júri� Não cabia a ele, STJ, fazer esse exame aprofundado em oito, nove ou dez páginas como mostrou o eminente Relator� Fez para se precipitar, impedir que o Juiz‑Presidente do Júri pronunciasse a sua decisão�

Dou provimento, sim, ao recurso, acompanhando o Relator�

EXTRATO DE ATA

RE 593�443/SP — Relator: Ministro Marco Aurélio� Relator para o acórdão: Ministro Ricardo Lewandowski� Recorrente: Ministério Público Federal (Pro‑curador: Procurador‑Geral da República)� Recorridos: Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto (Advogados: Guilherme Octávio Batochio e outros), Guilherme Novita Garcia (Advogados: Aloísio Lacerda Medeiros e outros) e Luis Eduardo Passarelli Tirico (Advogados: Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco e outros)� Interessado: Tribunal de Justiça de São Paulo�

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Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Relator, em face do reque‑rimento dos advogados dos recorridos� Ausentes, justificadamente, a Minis‑tra Cármen Lúcia, em participação na Conferencia Internacional – El acceso individual a la justicia Constitucional en América Latina, em Arequipa, Peru, e, nesta assentada, o Ministro Celso de Mello� Presidência do Ministro Joaquim Barbosa� Plenário, 29�05�2013�

Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, conheceu do recurso, vencidas as Ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia� No mérito, o Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso extraordinário, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator), Teori Zavascki e Joaquim Barbosa (Presidente)� Redi‑girá o acórdão o Ministro Ricardo Lewandowski� Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux� Falaram, pelo Ministério Público Federal, a Dra� Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, Vice‑Procuradora‑Geral da República, e, pelos recorridos, o Dr� José Roberto Batochio�

Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Teori Zavascki� Vice‑Procuradora‑‑Geral da República, Dra� Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira�

Brasília, 6 de junho de 2013 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 600.817 — MS

Relator: O sr. ministro Ricardo LewandowskiRecorrente: Nancy Roman CamposRecorrido: Ministério Público Federal

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA� PENAL� PROCESSUAL PENAL� TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES� CRIME COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI 6�368/1976� APLICAÇÃO RETROA‑TIVA DO § 4º DO ART� 33 DA LEI 11�343/2006� COMBINAÇÃO DE LEIS� INAD‑MISSIBILIDADE� PRECEDENTES� RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO�

I – É inadmissível a aplicação da causa de diminuição prevista no art� 33, § 4º, da Lei 11�343/2006 à pena relativa à condenação por crime cometido na vigência da Lei 6�368/1976� Precedentes�

II – Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das refe‑ridas normas, para criar‑se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da separação de Poderes�

III – O juiz, contudo, deverá, no caso concreto, avaliar qual das mencionadas leis é mais favorável ao réu e aplicá‑la em sua integralidade�

IV – Recurso parcialmente provido�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Joa‑quim Barbosa, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, dar parcial provimento ao recurso extraordinário, nos termos do

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voto do Relator, vencidos os Ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que davam provimento integral ao recurso, e parcialmente o Ministro Marco Aurélio, que lhe negava provimento� Votou o Presidente, Minis‑tro Joaquim Barbosa� Ausente, justificadamente, o Ministro Roberto Barroso�

Brasília, 7 de novembro de 2013 — Ricardo Lewandowski, Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Trata‑se de recurso extraordinário cri‑minal interposto por NANCY ROMAN CAMPOS contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que entendeu inaplicável a norma constante do art� 33, § 4º, e art� 40, inciso I, ambos da Lei 11�343/2006, ao fato criminoso anterior à sua vigência�

A ementa desse julgado foi assim redigida, no que importa:

“PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. APELAÇÕES DA DEFESA E DA ACUSAÇÃO. MATERIALI-DADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA DA PENA. ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. INTERNACIONALIDADE. APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI Nº 11.343/2006: DESCABIMENTO. POSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO DE REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE, APÓS O ADVENTO DA LEI Nº 11.464/2007.

(…)8. A Lei nº 11.343, de 23-8-2006, estabeleceu para o crime de tráfico pena base mais

grave que a anteriormente constante da Lei 6.368/1976, diminui a causa de aumento de pena relativa à internacionalidade e criou causa de diminuição de pena, para o réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique à atividade criminosa nem integre organização criminosa, que não era prevista na lei anterior.

9. Incabível a aplicação retroativa das normas relativas às causas de aumento e diminuição de pena, porque tais dispositivos não podem ser dissociados da norma que estabeleceu pena base mais grave que a anterior.

10. Não é possível combinar a pena base da lei anterior com as causas de aumento e diminuição da lei nova, formando uma terceira lei, não prevista pelo legislador, sob o argumento de que parte da lei nova é mais benéfica e portanto deve retroagir para favorecer o réu, pois ao assim agir, o Juiz, na verdade, está legislando criando uma nova lei, de conteúdo híbrido, não prevista pelo ordenamento jurídico, nem intencionada pelo legislador, o que não lhe é lícito, sob pena de afronta ao princípio constitucional de separação de poderes.

11. Não se pode considerar que a Lei nº 11.343/2006 seja mais benéfica, uma vez que o réu que for condenado por crime cometido na sua vigência não estará neces-sariamente em situação melhor que aquele que praticou o delito na vigência da lei anterior: apesar da causa de aumento de pena da internacionalidade ser mais

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branda e haver previsão de uma causa de diminuição anteriormente inexistente, elas serão aplicadas sobre uma pena base mais grave.” (Fls� 227‑228�)

Insatisfeita, a ré interpôs recurso extraordinário com fundamento no art� 102, III, a, da Constituição Federal, em que alegou, em suma, violação ao art� 5º, XXXIX, XL e XLVI, da mesma Carta da República�

Em suas razões recursais sustentou a existência de repercussão geral do tema constitucional ventilado no extraordinário� Alegou, em preliminar, nuli‑dade do acórdão recorrido, ao argumento de que o “TRF3 negou a existência de contraditório após a publicação do acórdão e, ainda, o pedido de intimação da defesa após a acusação” (fl� 292)�

Quanto ao mérito, sustentou violação ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica, em síntese, sob o seguinte argumento:

“Levando-se em conta que a pena-base disposta no artigo 12 da Lei revogada é menos gravosa à Ré do que a exposta na Lei 11.343/2006, em razão do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, é imperioso concluir pela necessária aplicação desse dispositivo combinado com os artigos já transcritos da lei 11.343/2006, já que mais favorável à aplicação isolada da Lei 11.343/2006.

Cite-se, nesse passo, que estão preenchidos todos os requisitos para aplicação dos artigos acima conforme se demonstrará nos tópicos que se seguirão.

Assim, calculando-se a pena sob os preceitos acima e nas proporções aplicadas pelo v. Acórdão (pena-base na ordem de 5 anos, diminuição de 2/3 para o artigo 33, § 4º, e aumento de 1/6 para o artigo 40, I, da Lei 11.343/2006), esta equivaleria, ao final, a pena inferior aos 5 anos e 3 meses impostos judicialmente para o cumprimento da Recorrente.” (Fls� 307‑308�)

Admitido o recurso (fls� 369‑372), a Procuradoria‑Geral da República, em parecer da lavra do Subprocurador‑Geral Wagner Gonçalves, opinou pelo des‑provimento do RE (fls� 421‑425)�

Em 2‑8‑2010, determinei a devolução dos autos ao Tribunal de origem, para que fosse observado o art� 543‑B do CPC, uma vez que a matéria constitucional em debate teve a repercussão geral reconhecida no RE 596�152 RG/SP, de minha relatoria�

O RE 596�152 RG/SP, por seu turno, foi levado a julgamento na sessão plená‑ria de 13‑10‑2011� Ocorre que a votação terminou empatada, com cinco votos favoráveis à tese da possibilidade da pretendida combinação de leis e cinco votos contra�

Em face desse empate, o Tribunal proclamou a decisão mais favorável ao réu e, então, negou provimento ao RE 596�152 RG/SP� No entanto, a decisão valeu

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apenas para aquele caso concreto, não sendo extensível aos demais processos submetidos ao regime da repercussão geral�

Por essa razão, este recurso extraordinário que já havia sido devolvido ao Tribunal de origem, como afirmei, foi novamente remetido ao Supremo Tri‑bunal Federal para que a matéria nele versada, e que teve a repercussão geral reconhecida, tenha um posicionamento do Plenário�

É o relatório necessário�

VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Senhores Ministros, como relatado, a matéria já é conhecida deste Plenário, mas na última oportunidade em que o tema foi aqui trazido houve um empate na votação�

Após reexaminar os diversos argumentos trazidos pelas partes, bem como pelos Ministros desta Casa na Sessão Plenária de 13‑10‑2011, peço vênia aos que têm entendimento contrário para manter o posicionamento externado naquela assentada�

Na inicial deste apelo extremo sustenta‑se, em síntese, que o acórdão recor‑rido deu interpretação equivocada ao art� 5º, XL, da Constituição Federal, ao negar a combinação de leis no tempo�

A questão posta neste extraordinário, pois, é saber se é possível efetuar a dosimetria da pena com a aplicação combinada da Lei 11�343/2006 e da Lei 6�368/1976�

Com efeito, se por um lado a aplicação do princípio da irretroatividade da lei mais gravosa e, por consequência, a ultratividade da lei mais benéfica são pontos pacíficos tanto na doutrina quanto na jurisprudência, por outro a com‑posição de elementos colhidos de leis diferentes ainda é questão tormentosa�

O dissenso não é atual, a doutrina sempre esteve dividida em relação a esse tema�

Há quem defenda que a aplicação de tal medida isoladamente equivaleria à vedada prática de combinar leis, outorgando ao magistrado competência reservada ao legislador, com infração aos princípios da legalidade e da sepa‑ração dos poderes�

Essa corrente doutrinária argumenta que a conjugação de lei anterior com legislação posterior, para se extrair de cada uma delas o que melhor beneficiar o réu, seria totalmente inadmissível, pois o Poder Judiciário estaria criando uma terceira lei, invadindo, por consequência, competência reservada ao Poder Legislativo�

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Nesse sentido, o grande jurista Nelson Hungria já asseverava que:

“(...) cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais favorá-veis da lex nova como os da lei antiga, de outro modo, estaria o juiz, arvorado em legislador, formando uma terceira, dissonante no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de princípio pacífico em doutrina: não pode haver aplicação combinada de duas leis�”1

Nessa mesma linha, encontram‑se, ainda, Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Jair Leonardo Lopes, Paulo José da Costa Júnior, Von Lizt, Claus Roxin, entre outros�2

Em doutrina mais recente, Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli adotam, também, posicionamento contrário à mistura de preceitos legais mais benéficos� Sustentam que ao juiz é vedada a utilização de preceitos isolados, pois tal proibição não possui natureza apenas lógica, que seria em princípio superável, mas também racional, “vale dizer, democrático: o juiz não pode criar uma terceira lei porque estaria aplicando um texto que, em momento algum, teve vigência”.3

Há, no entanto, corrente diversa, que admite a combinação de leis, capita‑neada por doutrinadores de renome, tais como Cezar Bittencourt, Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus e Celso Delmanto� Invocando o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, concluem os citados jurisconsultos pela possibilidade de uma lex tertia, no intuito de favorecer o réu�

De acordo com essa corrente de pensamento, segundo a qual “quem pode o mais pode o menos”, se o juiz pode aplicar a lei por inteiro, também pode aplicá‑‑la parcialmente� Não se trataria, portanto, de criação de nova lei, mas segundo o saudoso José Frederico Marques:

“(...) o julgador, em obediência a princípios de equidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciário não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários do Código Penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. vol. 1. p. 120.

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 63.

3 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 220.

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material fornecido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o manda-mento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, a que lhe pareça mais benigna, não vemos por que se lhe vede a combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constituição. Se lhe está afeto escolher o ‘todo’, para que o réu tenha o tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste sele-cionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal. (...) A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação e o ecletismo da lei posterior não for aplicada pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem�”4

Assim, entendem cabível um verdadeiro recorte das legislações, admitindo que se combine partes de uma lei anterior com outras de uma lei nova, tudo sob pretexto de beneficiar o réu�

Contudo, a questão já foi objeto de análise por esta Corte em diversas opor‑tunidades, tendo o Tribunal firmado sua jurisprudência no sentido de não ser possível a combinação de leis no tempo�

Lembro, por oportuno, que há tempo esse entendimento vem se consolidando� Nessa esteira, observo que, desde o julgamento do Recurso Ordinário Criminal 1�381/SP, Rel� Min� Cordeiro Guerra, o Tribunal adota tal posição�

Nesse julgado, assentou‑se que:

“De fato, é lícito ao juiz escolher, no confronto das leis, a mais favorável, e aplicá‑la em sua integridade, porém não lhe é permitido criar e aplicar uma ‘terza legge diversa’, de modo a favorecer o réu, pois, nessa hipótese, se transformaria em legislador.” (Grifos meus�)

Foi nesse mesmo sentido que esta Corte julgou o HC 68�416/DF, Rel� Min� Paulo Brossard, no qual se discutia a pretensão de combinar disposições legais relativas ao livramento condicional que estavam em vigor após o advento da Lei 7�209/1984, que alterou a parte geral do Código Penal, consoante ementa abaixo transcrita:

“HABEAS CORPUS. ‘ lex mitior’. Execução de sentença. Livramento condicional. Combinação de normas que se conflitam no tempo. Princípio da isonomia. O prin-cípio da retroatividade da ‘ lex mitior’, que alberga o princípio da irretroatividade de lei mais grave, aplica-se ao processo de execução penal e, por consequência,

4 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Bookselleer, 1997. vol. 1. p. 256-257.

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ao livramento condicional, art. 5º, XL, da Constituição Federal e § único do art. 2º do Código Penal (Lei nº 7.209/84). Os princípios da ultra e da retroatividade da ‘ lex mitior’ não autorizam a combinação de duas normas que se conflitam no tempo para se extrair uma terceira que mais beneficie o réu. Tratamento desigual a situações desiguais mais exalta do que contraria o princípio da isonomia. Habeas corpus indeferido.”

Como se observa em trecho significativo de seu voto, o Relator, acompanhado pela unanimidade da Segunda Turma, entendeu que, no confronto das leis, é lícito ao juiz escolher a mais favorável e aplicá‑la em sua integridade, porém nunca criar uma terza legge, distinta das demais, como se legislador fosse:

“(...) em que pesem conclusões em sentido contrário a que chegaram ilustres tribu-nais e doutrinadores, entendo que os princípios da ultra e da retroatividade da lex mitior, tal como formulados, não autorizam a combinação de duas normas para se extrair uma terceira que mais beneficie o réu. Penso que o desígnio das normas postas foi o de reservar a aplicação da lex mitior na sua integridade, e não o de favorecer os agentes dos crimes praticados durante a vigência das normas que se conflitam no tempo, com uma terceira norma não legislada que traga benefícios que excedam os previstos nas outras duas consideradas de per si.” (Grifos no original�)

Também em outra oportunidade, durante a análise da Ext 925/República do Paraguai, Rel� Min� Ayres Britto, esta Corte enfrentou tema semelhante� Segundo relatório do Ministro Relator, a defesa sustentava o indeferimento do pedido de extradição em face da ocorrência da prescrição, conjugando, para tanto, diversas leis�

E o voto do Min� Ayres Britto, especificamente quanto à tese, acompanhado pela maioria do Pleno, assim assentou:

“(...) De saída, há que se fazer uma ressalva quanto à utilização do método de solução do conflito intertemporal de normas, adotado pela defesa e pela douta PGR. Como visto, foram pinçados os contrastantes dispositivos de variados diplomas legais que se seguiram no tempo, conjugando-os e criando um novo estatuto normativo para reger o caso concreto.

55. Ora, ninguém discute a possibilidade da ultra-atividade e da retroatividade da lei penal mais favorável ao acusado; postulado, esse, insculpido tanto na Cons-tituição da República do Paraguai (art. 14) quanto na Carta Política brasileira (art. 5º, XL). Todavia, coisa diversa de pinçar o conjunto mais favorável de normas de Direito Positivo é arbitrariamente combiná-las para compor um novo modelo legal. Uma lei imaginária. E a partir desse improvisado mosaico fazer as vezes de legislador. Fazer as vezes de legislador, acrescente-se, com o deliberado intuito de obstaculizar a persecução penal.

(...)

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59. Este Supremo Tribunal Federal brasileiro também não aceita a interpretação combinada de leis no tempo, com a criação de um terceiro ordenamento só para reger um caso específico. (...)

60. O que há de ser feito, então, ante um conflito de leis no tempo e da impossibili-dade da combinação de modelos legais para resolvê-lo é buscar-se, nos parâmetros de cada caso, qual das leis em confronto é de ser aplicada em face da sua condição de maior benignidade (...).”

Pois bem� Com a devida vênia daqueles que entendem de modo contrário, e fiel a jurisprudência desta Corte, penso que a aplicação do princípio da retroa‑tividade, isto é, da novatio legis in mellius, não autoriza a combinação de leis, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio�

Dessa forma, entendo que não é possível a conjugação de partes mais bené‑ficas de diferentes normas, para criar‑se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da separação de poderes�

Não vejo, com efeito, como possa o julgador transcender o seu papel de intér‑prete e, com base em argumentos meramente doutrinários, fragmentar leis a ponto de recortar delas frases, palavras, incisos, artigos, a pretexto de favorecer o acusado�

A hermenêutica jurídica e o processo de integração, típicos da atividade do julgador, demandam esforço no sentido de se alcançar a verdadeira intenção da norma, sem, todavia, criá‑la ex novo�

O âmago teleológico do princípio da retroatividade da lei penal mais benigna consiste na estrita prevalência da lex mitior, de observância obrigatória, para aplicação em casos pretéritos, como bem ressalta Mirabete:

“Em resumo, havendo conflito de leis penais com o surgimento de novos preceitos jurídicos após a prática do fato delituoso, será aplicada sempre a lei mais favorável. Isso significa que a lei penal mais benigna tem extratividade (é retroativa e ultra-tiva) e, contrario sensu, a lei mais severa não tem extratividade (não é retroativa ou ultrativa).”5

Trata‑se de uma garantia fundamental, albergada na Constituição de 1988, no inciso XL do art� 5º, o qual dispõe, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”�

Esse é também o conceito que se contém no âmbito normativo internacional, valendo registrar, nesse sentido, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em seu art� 9º, consigna o seguinte:

5 MIRABETE, Julio Fabbini. Manual de Direito Penal. vol. 1. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 43.

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“Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado.”

Nesse passo, a Constituição Federal dispõe apenas que a lei penal deve retroa‑gir para beneficiar o réu, não fazendo menção sobre sua aplicação para autorizar que apenas algumas partes de diversas leis posam ser aplicadas separadamente para favorecê‑lo� Assim, é necessário harmonizar este princípio com outros, em especial, o da legalidade e da separação de poderes, de modo a impedir que sua aplicação irrestrita possa afrontar esses preceitos fundamentais�

Ao tratar do tema, o Professor José Afonso da Silva ensina que o inciso XL do art� 5º do Texto Magno, na verdade, é complementado pelo princípio da legalidade penal previsto no inciso XXXIX, do mesmo artigo, esclarecendo que este dispositivo “contém uma reserva absoluta de lei formal, que exclui a possibilidade de o legislador transferir a outrem a função de definir o crime e de estabelecer penas”�6

Destaco, ainda, que a hipótese ora sob exame, diferencia‑se da simples apli‑cação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, pois conforme salientei no início do voto, esse ponto é incontroverso na doutrina e na juris‑prudência, bem como nos autos�

No caso concreto, o que se pretende é a combinação do caput do art� 12 da Lei 6�368/1976, com a causa de minoração da pena do art� 33, § 4º, da Lei 11�343/2006, sob a justificativa de dar ampla e irrestrita aplicação ao princípio da retroati‑vidade da lei penal mais favorável�

Com efeito, a Lei 6�386/1976 estabelecia para o delito de tráfico de drogas uma pena em abstrato de 3 a 15 anos de reclusão, sendo, posteriormente, revogada pela Lei 11�343/2006, que cominou, para o mesmo crime, pena de 5 a 15 anos de reclusão�

Vê‑se, pois, que a nova Lei de Drogas impôs uma reprimenda mais severa para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes, prevendo, contudo, no § 4º do art� 33, uma causa especial de diminuição de pena que beneficia o agente que for primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas, nem integrar organização criminosa�

Não restam dúvidas de que, no caso do § 4º do art� 33 da Lei de 11�343/2006,

6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 428.

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o legislador preocupou‑se em diferenciar o traficante organizado – que obtém fartos lucros com a direção de atividade altamente nociva à sociedade – do pequeno traficante, denominado de “mula” ou “avião”, utilizado como simples mão de obra de transporte e entrega de pequenas quantidades de drogas, muitas vezes para sustentar seu próprio vício, ou ainda, de situações que demonstrem eventualidade da traficância, como, por exemplo, a mulher que leva drogas para o marido preso�

Por oportuno, transcrevo trecho da manifestação do Deputado Paulo Pimenta, relator do PLS 115/2002 (que deu origem à Lei 11�343/2006), no parecer da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, extraído do voto‑vista do Ministro Cezar Peluso, no julgamento do HC 95�435/RS:

“Não nos olvidamos da diferença existente entre pequenos e grandes traficantes. Por isso, mantivemos uma causa especial de diminuição de pena para o agente que seja primário e de bons antecedentes e cuja conduta caracteriza por ausência de habitualidade e caráter não profissional.”

Porém, para aplicar esta causa de diminuição de pena, o legislador aumentou, de maneira considerável, a pena mínima para o delito de tráfico de drogas, de três para cinco anos� Assim, há uma correlação entre o aumento da pena‑base mínima prevista no caput do art� 33 da Lei 11�343/2006 e a inserção da causa de diminuição prevista no § 4º�

Não pode o julgador, portanto, aplicar isoladamente a pena mínima prevista na revogada Lei 6�368/1976 com a causa de diminuição do § 4º do art� 33 da nova Lei de Drogas, pois esta minorante foi prevista para incidir sobre uma pena‑base mais severa (cinco anos), prevista no caput do mesmo artigo�

Nesse ponto, cito os oportunos apontamentos doutrinários sobre o § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006:

“Este dispositivo, (...), foi criado para mitigar, de certa forma, o rigor da nova Lei de Drogas, que aumentou sensivelmente a pena mínima dos delitos previstos no art. 33 , caput e § 1º. Assim, há uma correlação lógica e necessária entre o aumento da pena mínima destes delitos e a criação da minorante. Justamente por isto, o intérprete não pode desconsiderar este elo, aplicando retroativamente apenas a nova causa de diminuição, sob pena de estar criando uma disposição não prevista pelo legislador.”7

7 MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de Drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Comentada artigo por artigo. São Paulo: Método, 2007. p. 99.

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Desse modo, não há falar que as causas de diminuição de pena são aplicadas separadamente, apenas na última fase da realização da dosimetria da pena, e, sendo, portanto, permitida sua aplicação com a pena‑base prevista na lei revogada�

É certo, ademais, que essa nova causa de diminuição de pena representaria um benefício para aqueles que praticaram crimes na vigência da Lei 6�368/1976� Mas, para ser aplicada aos casos anteriores, o correto seria considerar‑se a pena‑base da nova lei, não se mostrando lícito empregar‑se a pena mínima de uma norma com a causa minorante de outra, prevista para incidir sobre uma pena‑base maior�

Caso assim procedesse, o juiz estaria, definitivamente, criando uma nova lei; pois, embora o crime seja o mesmo (tráfico ilícito de entorpecentes), essa combinação de dosimetrias resultaria na criação de uma sansão diversa da previamente estabelecida pelo legislador� Ter‑se‑ia, por consequência, uma nova pena para o delito, não estabelecida em qualquer das duas leis�

Ressalto, ainda, que esta questão discutida nos autos já foi examinada por esta Corte em várias oportunidades, tendo o Tribunal firmado o entendimento de que é vedada a aplicação da causa de diminuição prevista no art� 33, § 4º, da Lei 11�343/2006 à reprimenda imposta em condenação por crime cometido na vigência da Lei 6�368/1976, sob pena de se estar criando uma terceira lei�

Nesse sentido, destaco os seguintes julgados de ambas as Turmas desta Corte:

“PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES (ART. 12 DA LEI N. 6.368/1976). PRETENSÃO DE INCIDÊNCIA RETROATIVA DA MINORANTE PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/2006 SOBRE A PENA COMINADA NO ART. 12 DA LEI 6.368/1976 (ART. 5º, INC. XL, DA CONSTITITUIÇÃO FEDERAL). IMPOSSIBILIDADE DE MESCLAR PARTES FAVORÁVEIS DE LEIS CONTRAPOSTAS NO TEMPO, SOB PENA DE SE CRIAR, PELA VIA DA INTERPRETAÇÃO, UM TERCEIRO SISTEMA (LEX TERTIA). USURPAÇÃO DE FUNÇÃO LEGISLATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI EM SUA INTEGRALIDADE, COM O QUE RESTA ATENDIDO O PRINCÍPIO DA RETROAÇÃO DA LEI BENÉFICA. CONCESSÃO DA ORDEM, EM PARTE, PELO STJ PARA QUE O TJ/RS EXAMINASSE O CASO CONCRETO E APLICASSE, EM SUA INTEGRALIDADE, A LEI MAIS FAVORÁVEL. MINORANTE DA LEI N. 11.343/2006 NEGADA PELA CORTE ESTADUAL EM RAZÃO DE O PACIENTE OSTENTAR MAUS ANTECEDENTES, EMERGINDO FAVORÁVEL A FIXAÇÃO DA PENA COMINADA NA LEI N. 6.368/1976. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. A minorante do § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 não incide sobre a pena cominada no art. 12 da Lei n. 6.368, posto não ser possível mesclar partes favoráveis de normas contrapostas no tempo para criar-se um terceiro sistema (lex tertia) pela via da interpretação, sob pena de usurpação da função do Poder Legislativo e, em consequência, de violação do princípio da separação dos poderes. 2. A aplicação da

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lei mais favorável, vale dizer a Lei n. 6.368/1976, sem a minorante do § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, ou a novel Lei de Entorpecentes, com a minorante do § 4º de seu art. 33, atende ao princípio da retroatividade da lei benéfica, prevista no art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal, desde que aplicada em sua integralidade. 3. In casu, o acórdão impugnado, perfilando o entendimento acima, concedeu parcialmente a ordem para determinar ao TJ/RS que verificasse qual a lei mais favorável, a Lei n. 6.368/1976, vigente à época dos fatos, ou a Lei n. 11.343/2006, com a minorante prevista no § 4º de seu art. 33, sendo certo que a Corte estadual entendeu inaplicá-vel a minorante da novel Lei de Entorpecentes sob o fundamento de que o paciente não preenche os requisitos exigidos, porquanto ostenta maus antecedentes, emer-gindo mais benéfica a Lei n. 6.368/1976, cuja pena mínima cominada é de 3 (três) anos, contrastando com a pena de 5 (cinco) anos cominada no art. 33 da Lei da Lei n. 11.343/2006. 4. Deveras, o § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 estabelece que ‘Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa’, a evidenciar o acerto da decisão do Tribunal de Justiça ao negar a aplicação da referida minorante, face à circuns-tância de que o paciente ostenta maus antecedentes. Por isso a pertinente anotação do Ministério Público Federal de que ‘diante dos registros de maus antecedentes do paciente, que cumpre pena de 30 (trinta) anos de reclusão, pela prática dos delitos de furto, estupro e tráfico de drogas, a aplicação do art. 33 da Lei 11343/2006 na integralidade lhe seria desfavorável, uma vez que incabível a minorante do § 4º do art. 33 da referida lei’. 5. Ausência de constrangimento ilegal. 6. Ordem denegada.” (HC 107�583/MG, Rel� Min� Luiz Fux�)

“Habeas corpus. Tráfico ilícito de entorpecentes. Crime cometido sob a vigência da Lei nº 6.368/1976. Impossibilidade de aplicação da redução de pena prevista no § 4º do art. 33 da nova Lei Antidrogas (Lei nº 11.343/2006). Ordem concedida de ofício. (...) 3. Nos termos do parecer do Ministério Público Federal, é inadmissível a conjugação da pena-base prevista na Lei nº 6.368/1976 e a causa de diminui-ção contida na Lei nº 11.343/2006, visto que, agindo deste modo, o juiz atuaria como legislador positivo, criando uma terceira lei, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico. 4. Habeas corpus denegado (...).” (HC 97�977/MG, Rel� Min� Dias Toffoli – Grifos meus�)

“HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA PENAL. QUANTIDADE DE ENTORPECENTES. LEGITIMI-DADE PARA ELEVAÇÃO DA PENA BASE. APLICAÇÃO PARCIAL DE LEI POSTERIOR, NA PARTE EM QUE BENEFICIA O RÉU. INVIABILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. É legítimo o aumento da pena base com fundamento na elevada quantidade de entorpecente encontrada em poder da paciente. 2. Não é permitida, nem mesmo para beneficiar o réu, a combinação de dispositivos de leis diversas, criando uma terceira norma não estabelecida pelo legislador, sob pena de violação aos princípios da legalidade,

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da anterioridade da lei penal (art. 1º do Código Penal) e da separação de pode-res. 3. Ordem denegada.” (HC 96.844/MS, Rel. Min. Joaquim Barbosa – Grifos meus.)

“HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTE. CRIME COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 6.368/1976. RETROATIVIDADE DO § 4º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/2006. COMBINAÇÃO DE LEIS. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTE DO STF. PACIENTE QUE OSTENTA MAUS ANTECEDENTES. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS. ORDEM DENE-GADA. 1. A paciente foi condenada à pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, pela prática da conduta tipificada no art. 12, c/c o art. 18, I, ambos da Lei 6.368/1976. 2. Requer o impetrante a concessão da ordem de habeas corpus para a aplicação retroativa da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006. 3. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento fixado no sentido de que não é possível a combinação de leis no tempo. Entende a Suprema Corte que agindo assim, estaria criando uma terceira lei (lex tertia). 4. Com efeito, extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal, e outro dispositivo de outro diploma legal, implica alterar por completo o seu espírito normativo, criando um conteúdo diverso do previamente estabe-lecido pelo legislador. (...). 6. Diante do exposto, denego a ordem.” (HC 96�430/SP, Rel� Min� Ellen Gracie – Grifos meus�)

“HABEAS CORPUS. CONTROVÉRSIA REFERENTE À APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006 AOS CRIMES COMETIDOS NA VIGÊNCIA DA LEI 6.368/1976. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. O entendimento deste Supremo Tribunal é no sentido de que não é possível aplicar a causa de diminuição pre-vista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 à pena-base relativa à condenação por crime cometido na vigência da Lei 6.368/1976, sob pena de se estar criando uma nova lei que conteria o mais benéfico dessas legislações. Precedentes. 2. Ordem denegada.” (HC 94�848/MS, Rel� Min� Cármen Lúcia – Grifos meus�)

No mesmo sentido, cito, ainda, os seguintes precedentes, entre outros: HC 100�437/MG e HC 100�122/SP, de minha relatoria; HC 98�766/MG, Rel� Min� Ellen Gracie; RHC 94�806/PR e RHC 101�278/RJ, Rel� Min� Cármen Lúcia; RHC 94�802/RS e RHC 95�615/PR, Rel� Min� Menezes Direito�

Assentou‑se nesses julgados que não é possível a conjugação de dispositi‑vos mais benéficos das referidas normas para criar‑se uma terceira hipótese, fixando‑se, por consequência, uma nova pena, porquanto tal prática não pode ser adotada em nosso ordenamento jurídico�

Concordo, pois, com a tese segundo a qual, caso fosse permitida a combinação das referidas leis para extrair‑se um terceiro gênero, os magistrados estariam atuando como legislador positivo, em total afronta aos princípios da separação de poderes e da reserva legal�

Além disso, poderíamos chegar à situação absurda em que o delito de tráfico

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de drogas será punido com uma pena de até um ano de reclusão, semelhante às sanções previstas para os crimes de menor potencial ofensivo�

Nessa linha, transcrevo abaixo trecho de voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia, em julgamento de caso análogo:

“(...) a pena do crime de tráfico anteriormente aplicada tinha o mínimo legal inferior ao da nova lei, o que levaria, se se pudesse cogitar da aplicação da causa especial de diminuição aos crimes ocorridos antes da vigência da nova lei, à aplicação de uma pena in concreto de até um ano de reclusão para os crimes de tráfico teríamos, na prática, um novo tipo de crime de tráfico, com penas equivalentes aos crimes de menor potencial ofensivo.

5. Não havendo identidade entre as penas das leis que tratam dos crimes de tráfico de drogas, não se pode falar na aplicação da causa especial de diminuição da pena, definida em parágrafo específico destinado exclusivamente aos fatos ocorridos na vigência da nova lei.” (RHC 101�278/RJ, Rel� Min� Cármen Lúcia�)

Por outro lado, nas situações em que há dúvidas sobre qual a legislação mais benéfica em determinada hipótese (Lei 6�368/1976 ou Lei 11�343/2006), deve‑se analisar o caso concreto e verificar qual lei, aplicada integralmente, será mais favorável ao réu, sem, no entanto, combiná‑las, para evitar‑se a criação de uma terceira lei�

Nessa mesma esteira, já ponderava o ilustre Heleno Cláudio Fragoso:

“A lei mais benigna deve ser determinada em face do caso concreto. O juiz deve con-siderar qual seria o resultado, aplicando hipoteticamente uma ou outra das leis, escolhendo então a que proporciona situação mais favorável ao réu. Uma lei poste-rior que, mantendo a incriminação do fato, aumente o máximo da pena cominada, e diminua o mínimo, será mais favorável, se for o caso de aplicar a pena mínima à hipótese em julgamento, e será mais severa no caso de se impor a pena máxima.

Em nenhum caso será possível tomar de uma e outra lei as disposições que mais beneficiem o réu, aplicando ambas parcialmente�”8

Por oportuno, lembro, também, as valiosas lições de Guilherme de Souza Nucci sobre essa situação:

“Pensamos não deva o juiz combinar leis penais (...). Mas é viável que ele faça uma análise de qual lei é a mais favorável ao réu no caso concreto. Em primeiro lidar, o magistrado deve realizar a seguinte projeção: a) levando em consideração a nova lei, no seu conjunto, incluindo a pena mínima de cinco anos, verificará, concreta-mente, qual seria a diminuição que o réu ou condenado mereceria. Ora, se atingisse

8 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 107.

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o patamar de metade (entre um sexto e dois terços), exemplificando, deve utilizar a lei nova, pois a pena caíra para dois anos e seis meses de reclusão (cinco anos menos metade). Houve benefício ao acusado, cuja pena era de três anos de reclusão; b) se levar em conta a lei nova, tomando por base a pena mínima de cinco anos e perceber que o réu, concretamente, merece a diminuição mínima de um sexto, sua pena seria de quatro anos e dois meses, o que significa ser desvantajosa a utilização da lei nova. Mantém, então, a pena em três anos de reclusão, conforme a anterior Lei 6.368/1976. Não aplica, em suma, a lei nova. Em nosso entendimento, contrário que somos à combinação de leis penais, pois o juiz não é legislador, depende do caso concreto para sabermos se é viável a aplicação da lei nova ou a mantença da pena, conforme os critérios anteriores.”9

Desse modo, na espécie, entendo que o Juiz da Vara de Execuções Penais deve verificar qual norma (Lei 6�368/1976 ou Lei 11�343/2006) é mais favorável ao sentenciado, devendo aplicar, na integralidade, aquela que melhor lhe beneficie�

Por fim, registro que não se sustenta a alegada nulidade arguida pela defesa� Não existe ordem legal para intimação da defesa e do Ministério Público em relação às decisões judiciais� Ademais, não houve demonstração de prejuízo sofrido pela defesa por ter sido intimada antes do Parquet do acórdão recorrido�

Em face de todo o exposto, dou parcial provimento ao recurso a fim de que o juiz da execução avalie, no caso concreto, qual das mencionadas leis é mais favorável e aplique‑a em sua integralidade ao réu�

É como voto�

VOTO

O sr. ministro Teori Zavascki: Senhor Presidente, no meu entender, claramente, estamos aqui diante de uma norma de apenação que deve ser compreendida como entidade jurídica única, a merecer, portanto, interpretação e aplicação em sua unidade�

Nesse pressuposto, concordo com a tese do Relator que, por sua vez, chancela a recente Súmula do Superior Tribunal de Justiça, Súmula nº 501, publicada no dia 23 de outubro passado, segundo a qual é cabível a aplicação retroativa da Lei nº 11�343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei nº 6�368/1976, sendo vedada a combinação de leis� Essa Súmula resume com a tese do Ministro Relator�

9 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 64-65.

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Penso que, para esse efeito, de determinar que o juízo da Vara de Execuções Penais verifique qual é a lei mais favorável, é o caso de dar provimento parcial ao recurso�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Relator): Pois não, eu acolho esse entendimento de Vossa Excelência e dou, então, provimento parcial�

O sr. ministro Teori Zavascki: Acompanho o Relator nesses termos, Senhor Presidente�

VOTO

A sra. ministra Rosa Weber: Senhor Presidente, o tema reveste‑se do maior relevo� Nós o temos enfrentado, reiteradas vezes, na Primeira Turma desta Suprema Corte, e sobre ele tenho compreensão diversa da até aqui externada pelos eminentes Ministro Relator e Teori, e por isso peço vênia para divergir�

A possibilidade de conjugação de normas distintas para aplicação a um mesmo fato não é objeto de reflexão apenas no Direito Penal� Faz‑me lembrar de Pontes de Miranda quando diz que o Direito é um grande oceano, de que são gotas seus diferentes ramos�

No Direito do Trabalho, por exemplo, informado, como todos sabem, pelo princípio maior da proteção do trabalhador – de que é derivação o princípio da norma mais favorável –, e em que é dinâmica a hierarquia das fontes formais, justamente por ocupar o chamado vértice da pirâmide a norma mais favorável, contrapõem‑se as teorias do conglobamento ou incindibilidade e da acumulação ou atomística� Enquanto a primeira, a do conglobamento, propõe, para cotejo das normas dotadas de disposições favoráveis e prejudiciais, a consideração do conjunto – excluída, assim, a possibilidade de aplicação simultânea das van‑tagens respectivas –, a segunda, a da acumulação, preconiza se extraiam das diferentes normas as disposições mais favoráveis, somando‑se as vantagens nelas consagradas�

Transposta a questão ao Direito Penal – é isso que se discute na espécie, pre‑sentes a atual Lei de Tóxicos, a Lei nº 11�343/2006, e a anterior, a Lei nº 6�368/1976 –, surge a pergunta: qual a unidade de comparação? O que prevalece?

Assim como no âmbito do Direito do Trabalho muito se discute a respeito no Direito Penal e, conforme relacionado pelo eminente Relator, há penalistas eméritos que se posicionam em uma ou outra linha� A solução preconizada pelo eminente Relator é a resultante da teoria do conglobamento, a determinar que o cotejo se faça a partir dos diplomas legais ou das normas na sua íntegra, para efeitos de definição da mais favorável, com o que estaria respeitado a princípio

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da irretroatividade da lei penal mais gravosa� Entendo, contudo, que a norma penal, em tudo o que beneficia o réu, em todos os aspectos, em todos os pontos que disciplina de modo favorável ao réu, retroage na estrita observância do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, com a leitura que lhe empresto, pelo que o deslinde da quaestio há de se fazer à luz da teoria da acumulação�

Pedindo vênia aos eminentes Pares que têm compreensão diversa, conheço e provejo o recurso na íntegra�

VOTO

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, egrégia Corte, ilustre representante do Ministério Público, senhores Advogados, representantes da Magistratura aqui presentes, como se trata de uma repercussão geral e para não repetir os argumentos que já foram expostos pelo Ministro Ricardo Lewandowski, eu gostaria de trazer alguns acréscimos, apenas para que, se a tese for fixada, ela se faça também à luz da Constituição Federal�

De início, cabe refutar as alegações de violação aos incisos XXXIX e XLVI do art� 5º da Constituição, na medida em que não foram prequestionadas perante a Corte de origem� Além disso, consistiriam em ofensa meramente reflexa à Carta Magna, na esteira da jurisprudência desta Corte�

No que tange ao art� 5º, XL, da Constituição, mais uma vez esta Corte se debruça sobre o desafiador tema da retroatividade da causa de diminuição de pena prevista no art� 33, § 4º, da Lei 11�343/2006�

O novel diploma, no que atine ao crime de tráfico de drogas, inovou em dupla frente em relação ao seu antecessor, a Lei nº 6�368/1976: se por um lado modifi‑cou a escala penal básica – que era estabelecida em 3 (três) a 15 (quinze) anos de reclusão e passou a 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, também de reclusão –, recrudes‑cendo a pena mínima, por outro lado, trouxe uma inédita causa de diminuição de pena, permitindo a redução da reprimenda de um sexto a dois terços desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa�

Eis o cerne da questão ora debatida: a referida minorante, prevista no art� 33, § 4º, da Lei nº 11�343/2006, deve retroagir para atingir fatos anteriores à vigência deste diploma?

O tema da retroatividade da lei penal é dos mais debatidos na doutrina, o que denota o quão áspero é o vertente julgamento� Nas palavras de Vincenzo Man‑zini, “uma vez que a Lei tenha eliminado ou abrandado uma restrição imposta à liberdade, o Estado, garante desta, não pode exigir ou implementar o que ele

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mesmo reconheceu não mais necessário ou excessivo e não conforme à justiça” (tradução livre do trecho: “non appena la legge ha sciolto o rallentato un vincolo imposto alla libertà, lo Stato, garante di questa, non puo richiedere od attuare ciò che esso medesimo ha riconosciuto non più necessario o eccessivo e non conforme a giustizia”� Trattato di Diritto Penale Italiano� 4� ed� Torino: UTET, 1981� p� 370‑371)�

Se a justificativa para a irretroatividade da lei criminal reside na proteção dos indivíduos contra o superveniente aumento no rigor do tratamento penal de um fato, essa razão cai por terra quando a nova lei é benigna ao status libertatis dos cidadãos� O princípio da isonomia impede que dois sujeitos sejam apenados de forma distinta apenas em razão do tempo em que o fato foi praticado, porquanto a valoração das condutas deve ser idêntica antes e depois da promulgação da lei, exceto nos casos em que a legislação superveniente seja mais gravosa� A lei, expressão da democracia e garante das liberdades individuais, não pode ter a sua incidência manietada quando se trata de favorecer os direitos fundamen‑tais, sendo esse o caso da novatio legis in mellius�

A grande dificuldade, nesta seara, é estabelecer qual é a Lei mais favorável� Parece simples, à primeira vista, apontar, em um conflito de leis no tempo, aquela que deve ser considerada como a lex mitior� Entretanto, é de ser consi‑derado que as leis não são editadas com sinais indicativos, que permitam uma clara identificação daquela que é mais favorável ao réu� A nova lei pode ser mais benéfica em alguns aspectos e prejudicial em outros, tornando árdua a tarefa de aplicar o art� 5º, XL, da Carta Magna (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”)�

Nesses casos complexos, indaga‑se se é dado ao intérprete aplicar a lei nova aos fatos passados em parte, apenas naquilo em que for mais favorável� Con‑forme adverte Guillermo Oliver Calderón, Professor da Universidad Católica de Valparaíso, um dos maiores estudiosos da matéria no mundo:

“No âmbito das consequências penais, também pode resultar extremamente difí‑cil determinar qual é a lei mais favorável� Verbi gratia, poderia acontecer que a lei posterior diminuíra o limite inferior da pena privativa de liberdade estabelecida na lei anterior, mas aumentara o limite superior, ou, ainda, que rebaixara o limite superior, porém aumentara o inferior� Poderia ocorrer, também, que a lei nova eliminara a pena privativa de liberdade de muito curta duração contemplada na lei precedente, mas a substituíra por uma pena restritiva de liberdade de larga duração ou por uma pena pecuniária de elevada monta� Poderia suceder, ainda, que a lei posterior criara uma nova atenuante de responsabilidade penal, porém estabelecera uma nova agravante�

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(���) a maioria dos autores assinala que deve aplicar‑se uma ou outra lei, inte‑gralmente, em bloco, sem que possam combinar‑se os aspectos mais favoráveis delas� Isso se traduz em uma proibição da denominada lex tertia ou princípio de combinação�” (Tradução livre� Retroactividad e irretroactividad de las leyes penales� Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2007� p� 56‑61�)

No mesmo sentido é a lição de Manzini, que afirma que “a escolha deve recair sobre a lei antiga ou a nova, uma ou outra considerada integralmente e distin‑tamente, sendo vedado aplicar simultaneamente as disposições mais favoráveis de ambas, a menos que haja disposição expressa em sentido diverso” (tradução livre do trecho: “la scelta deve cadere sulla legge antica o sulla nuova, l’una o l’altra considerata integralmente e distintamente, essendo vietato di applicare simultaneamente le disposizioni più miti di entrambe, a meno che non sia disposto diversamente in modo espresso” (Trattato di Diritto Penale Italiano� 4� ed� Torino: UTET, 1981� p� 391)�

Ainda se alinham a essa vertente doutrinária: José Cerezo Mir (Curso de derecho penal español� Parte general� T� I� 6� ed� Madrid: Tecnos, 2004� p� 234); Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán (Derecho penal� Parte general� 6� ed� Valencia: Tirant lo Blanch, 2004� p� 146); e Fernando Mantovani (Diritto penale� Parte generale� 3� ed� Padova: CEDAM, 1992� p� 123), dentre outros�

O Código Penal Militar, que serve de norte interpretativo para o aplicador do ordenamento penal como um todo, dispõe, em seu art� 2º, § 1º, que, verbis: “Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser conside-radas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato”�

É de se ressaltar, todavia, que doutrina de escol defende orientação inversa, reclamando a retroatividade dos elementos mais benéficos da lei superveniente e refutando, por outro lado, a aplicação das demais disposições aos fatos pas‑sados� José Frederico Marques, ferrenho defensor da tese da lex tertia, expunha os seguintes argumentos:

“Dizer que o Juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções consti‑tucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obediência a princí‑pios de equidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimen‑tando‑se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima� O órgão judiciário não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc� A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio material fornecido pelo legislador� Se ele pode escolher, para aplicar o mandamento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, a que lhe pareça mais benigna, não vemos por que se lhe vede a combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constitui‑ção� Se lhe está afeto escolher o ‘todo’, para que o réu tenha o tratamento penal

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mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal� Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico, mesmo porque a própria dogmática legal obriga a essa subordinação, pelo papel preponderante do texto constitucional� A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar‑se a transação e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem�” (Tratado de direito penal� 2� ed� V� 1� São Paulo: Saraiva, 1964� p� 210‑211�)

Somam‑se, ainda, as vozes de Mirabete, para quem “a melhor solução (���) é a de que pode haver combinação de duas leis, aplicando‑se ao caso concreto os dispositivos mais benéficos” (MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N� Código Penal interpretado� 7� ed� São Paulo: Atlas, 2011� p� 14), e de Delmanto, que entende “que a combinação de leis para beneficiar o agente é possível” (DEL‑MANTO, Celso et alii� Código Penal Comentado� 7� ed� Rio de Janeiro: Renovar, 2007� p� 22), apenas para citar alguns nomes de prestígio na doutrina pátria�

Na doutrina estrangeira, colhe‑se a lição de Günther Jakobs, verbis:

“De acordo com a doutrina majoritária, deve‑se comparar a gravidade das conse‑quências do fato da lei antiga, acumuladas, com as da lei nova, também acumula‑das, e não cada uma das reações jurídico‑penais separadamente (alternatividade das leis)� Por conseguinte, em conclusão, só pode ser mais favorável a lei antiga ou a lei modificada, mas não a antiga, apenas com relação a uma consequência, e a modificada, no que atine a outra� Não se pode manter essa solução; em todo caso, nas reações mencionadas no § 2�5 StGB há que se levar a cabo a determi‑nação individual: a proibição de retroatividade do § 2�5 StGB é completamente idêntica a um mandado de recortar retroativamente a nova lei para alcançar a antiga regulação; é dizer, rompe a alternatividade�” (Tradução livre� Derecho Penal� Parte General� Fundamentos y teoria de la imputación� 2� ed� Madrid: Marcial Pons, 1997� p� 125�)

A jurisprudência comparada nos revela exemplos de soluções intermediárias� Na França, conforme explica Gilles Mathieu, “na prática, os Tribunais fazem uma distinção dependendo se a nova lei contém disposições divisíveis ou indi‑visíveis� Se a lei for divisível, apenas as partes mais favoráveis retroagirão (���)� Uma lei é divisível quando as suas disposições formam um bloco indissociável” (tradução livre do trecho: “Dans la pratique, la jurisprudence opére une distinction selon que la loi nouvelle contient des dispositions divisibles ou indivisibles. Si la loi est divisible, seules les parties plus douces rétroagissent (...). Une loi est donc indivisible lorsque ses dispositions forment un bloc indissociable”� (L’application

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de la loi pénale dans le temps (Dans la perspective du nouveau code pénal)� In: Revue de science criminelle et de droit pénal comparé� nº 2, avril‑juin 1995� Sirey Editions� p� 269)� Essa solução temperada encontra eco na doutrina de Nilo Batista e Zaffaroni, valendo transcrever suas lições:

“Parece que a única objeção lógica oponível à combinação de leis, que outorgaria consistência ao argumento tradicional da aplicação de lei inexistente, residiria na fissura de dispositivos legais incindíveis, organicamente unitários, preocupando‑‑se a Corte Suprema com que sejam ‘separáveis as partes das normas em conflito’ e a doutrina com a aplicação do ‘preceito por inteiro’� Ressalvada, portanto, a hipótese em que a aplicação complementar dos textos legais concorrentes no tempo implique desvirtuar algum dos dispositivos operados, pela abusiva sub‑tração de cláusula que condicionaria sua eficácia (quando, sim, poder‑se‑ia falar de uma lei inexistente), cabe admitir no direito brasileiro a combinação de leis no procedimento para reconhecer a lei mais benigna�” (BATISTA, Nilo et alii� Direito Penal Brasileiro – I� 2� ed� Rio de Janeiro: Revan, 2003� p� 215�)

Estabelecida a divergência acadêmica, e antes de me filiar a qualquer dos entendimentos, deve‑se aferir qual a real intenção da Lei nº 11�343/2006� Na aná‑lise de Luiz Flávio Gomes, “de uma forma geral, percebe‑se que os tipos penais existentes na Lei 6�368/1976 foram mantidos, sofrendo, entretanto, uma majora‑ção significativa da pena” (Lei de Drogas Comentada� 2� ed� São Paulo: RT, 2007� p� 25)� O legislador observou a orientação contida na Convenção de Viena sobre Substâncias Psicotrópicas, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 90 de 1972, que assim dispõe em seu artigo 22�1:

ARTIGO 22Disposições Penais1 a) Ressalvadas suas limitações constitucionais, cada parte tratará como delito

punível qualquer ato contrário a uma lei ou regulamento adotado em cumpri‑mento às obrigações oriundas da presente Convenção, quando cometido inten‑cionalmente, e cuidará que delitos graves sejam passíveis de sanção adequada, particularmente de prisão ou outra penalidade privativa de liberdade�

b) Não obstante a alínea precedente, quando dependentes de substâncias psico‑trópicas houverem cometido tais delitos, as partes poderão tomar providências para que, como uma alternativa à condenação ou pena ou como complemento à pena, tais dependentes sejam submetidos a medidas de tratamento, pós‑tra‑tamento, educação, reabilitação e reintegração social, em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 20�

A ratio legis, evidenciada em diversos trechos do novo diploma, é a de enrije‑cer a resposta penal aos grandes traficantes de drogas e àqueles que enriquecem

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a custas dessa mazela social, e, ao mesmo tempo, abrandar a sanção aos usuá‑rios e traficantes de pouca expressão�

O tratamento penal mínimo conferido pela Lei nº 11�343/2006 aos traficantes primários, de bons antecedentes, e que não se dedicam às atividades criminosas nem integram organização criminosa, resulta em uma reprimenda corporal de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, correspondente à incidência máxima da causa de diminuição de pena do art� 33, § 4º, (dois terços) sobre a menor pena prevista na escala penal do caput do mesmo artigo (cinco anos)� Pretender a retroatividade isolada da minorante alcunhada como “tráfico privilegiado”, significa altercar uma sanção penal mínima de 1 (um) ano de reclusão para a mesma conduta� Desse modo, aqueles que praticaram o crime antes da novel legislação seriam favorecidos por regramento privilegiado, mais favorável do que aquele aplicável aos que delinquirem após o advento da Lei de Drogas de 2006� Diversas razões militam contra essa conclusão� Passo a enumerá‑las�

A primeira, e mais evidente, é a afronta acachapante ao princípio da isono‑mia, previsto no art� 5º, caput, da Constituição� Nenhum argumento é capaz de justificar que o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna permita que duas pessoas, que praticaram o mesmo fato delituoso, nas mesmas con‑dições, recebam penas distintas, apenas em razão do tempo em que o crime foi levado a cabo� Essa situação é possível quando a lei antiga punia o crime de maneira mais branda que a lei modificada – aplicando‑se o princípio da irre‑troatividade da novatio legis in pejus –, porém, em tal conjuntura é mantida a reprimenda prevista na legislação anterior� Os que defendem a lex tertia talvez não tenham percebido o paradoxo que seria uma lei retroagir conferindo aos fatos passados uma situação jurídica mais favorável do que àqueles praticados durante a sua vigência� Vale lembrar que a igualdade perante a lei é um dos fundamentos da retroatividade da lei penal mais favorável�

Conforme dito alhures, outro fundamento desse princípio reside na mudança da valoração de uma conduta delituosa pela sociedade, que passa a considerar despicienda ou excessiva a punição até então dispensada a ela� Ocorre que a retroatividade da lei “em tiras” consiste em velada deturpação da nova percep‑ção que o legislador, responsável por expressar os anseios sociais, manifestou a respeito dessa mesma conduta� Em palavras mais singelas: a sociedade pós‑Lei 11�343 quer uma punição mínima de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão para o “tráfico privilegiado”, não sendo possível dispensar tratamento mais brando aos crimes pretéritos dessa natureza�

A lex tertia viola, ainda, dois outros fundamentos do art� 5º, XL, in fine, da Lei Maior: o princípio da legalidade e a democracia� Cria‑se, com a tese que ora

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se refuta, uma regra que não está prevista nem na lei antiga, nem na lei nova, que não goza do batismo democrático atribuído à Lei formal� Ao Judiciário não é dado arvorar‑se no papel de legislador para pretender, mediante manobra interpretativa, resultado contrário à vontade da lei (ou melhor, das leis) e da Constituição�

A questão em tela reclama, portanto, o que Mathieu denomina como “sistema da apreciação in concreto” (op. cit� p� 270), em conjunto com o princípio da alterna‑tividade referido por Jakobs (loc. cit.); é dizer, o julgador, caso a caso, deve avaliar se é mais favorável ao réu a aplicação da lei antiga ou da lei nova, uma ou outra, considerada integralmente� Assim, é lícito afirmar que o § 4º do art� 33 da Lei de Drogas hoje vigente pode retroagir; porém, desde que associado à pena‑base prevista no caput do mesmo artigo, e contanto que não seja mais benéfica ao agente a incidência da reprimenda prevista no antigo art� 12 da Lei nº 6�368/1976� As duas dosimetrias deverão ser realizadas, pela lei nova e pela lei antiga, a fim de aferir qual a que melhor favorece o status libertatis do sentenciado�

Essa é a solução também encontrada por Damásio de Jesus, que assim se manifesta a respeito do art� 33, § 4º, da Lei nº 11�343/2006:

“O redutor previsto no dispositivo é digno de encômios, porém, tem uma razão de ser: cuida‑se de causa de redução de pena vinculada aos novos limites mínimo e máximo previstos no caput do art� 33 da Lei� A lei pretendeu temperar os rigores da punição ao traficante primário, de bons antecedentes, que não tenha envol‑vimento habitual com o crime ou que não faça parte de associação criminosa� Por esse motivo, não há razões plausíveis, com o respeito às opiniões contrárias, para que seja aplicado o redutor sobre as penas cominadas no preceito secun‑dário do art� 12 da Lei n� 6�368/1976�” (Lei Antidrogas anotada� 9� ed� São Paulo: Saraiva, 2009� p� 128�)

Então, eu também concluo, como Vossa Excelência já reajustou, no sentido de dar parcial provimento ao recurso para determinar a remessa dos autos ao juízo das execuções, que deverá realizar as duas dosimetrias: uma de acordo com a Lei nº 6�368 e outra de acordo com a Lei nº 11�343, guardando observância ao princípio da alternatividade para aplicar a pena mais branda ao recorrido�

Acompanho integralmente o voto do eminente Relator�

VOTO

O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, no dia 2 de dezembro de 2010, acompanhei no RE nº 596�152, da relatoria do Ministro Lewandowski, já referido

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no voto de Sua Excelência, o voto divergente do Ministro Cezar Peluso, que peço vênia para ler:

“O sr. ministro Cezar Peluso (Presidente): 1� Transcrevo o voto‑vista proferido [disse ele] na Egrégia Segunda Turma em 21‑10‑2008 (���)�”

Vejam há quanto tempo esse tema vem sendo colocado�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Os temas vêm recorrentemente

retornando ao Plenário�O sr. ministro Dias Toffoli: Com tantos temas novos que nós temos libe‑

rado para julgamento�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Pois é�O sr. ministro Luiz Fux: Mas as Turmas são divergentes� Há muitos acórdãos

divergentes� Precisa orientar�O sr. ministro Dias Toffoli: Da Segunda Turma, eu posso citar, de 27 de

novembro de 2012, julgado por unanimidade, com ordem concedida, da relatoria da Ministra Cármen Lúcia, o Habeas Corpus nº 111�645�

Pois bem� Mas faço a leitura do voto do Ministro Cezar Peluso� Disse ele, em 2 de dezembro de 2012:

“1� Transcrevo o voto‑vista proferido na Egrégia Segunda Turma em 21‑10‑2008, no julgamento do HC nº 95�435, do qual fui relator para o acórdão, pois trata da mesma questão jurídica discutida no presente julgamento:

‘Centra‑se a questão em apurar, nos contornos do caso, o alcance do prin‑cípio da retroatividade da lei penal mais benéfica� É que, ao mesmo tempo em que introduziu causa de diminuição da pena para o delito de tráfico de entorpecentes, a nova lei de tóxicos lhe aumentou a pena mínima e proibiu a aplicação de diversos institutos�

Resta saber, pois, se é lícita a aplicação isolada da causa de diminuição de pena aos delitos cometidos sob a égide da lei antiga, tendo por base as penas então cominadas�

O voto da Min� Relatora parte de premissas consagradas da doutrina e da jurisprudência da Corte [como parte agora novamente o Ministro Ricardo Lewandowski, de jurisprudência e também citando teorias jurídicas con‑sagradas]: não se pode, deveras, misturar regras e critérios de leis distintas para criar norma aplicável ao caso, sob pena de usurpação de atribuições constitucionais, em entrando o Judiciário a legislar�

Não me parece seja este o caso�Aplicar a causa de diminuição não significa baralhar e confundir normas�

Tal causa pode aplicada às inteiras, sem criação jurisdicional de instituto que componha requisitos de uma e de outra lei�

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O precedente invocado pela eminente relatora (HC nº 68�416, Rel� Min� PAULO BROSSARD, DJ de 30‑10‑1992), neste aspecto, antes reforça que repele o argu‑mento, já que trata de hipótese de todo diversa� Naquele caso, o que efetiva‑mente se pretendia era a criação de tertia lex� Ali, o impetrante queria ver aplicados, com relação à liberdade provisória, requisitos de lei nova com os de lei anterior sobre a matéria� Alegava fazer jus a livramento condicional por ter cumprido mais de um terço da pena (art� 83, I, do Código Penal, modificado pela Lei nº 7�209, de 11‑7‑1984� A redação anterior do art� 60, I, admitia con‑cessão de tal medida após o cumprimento de mais da metade da pena)� Mas a nova redação do Código Penal estatuiu requisito que não existia na legisla‑ção anterior: necessidade de o réu possuir bons antecedentes� Dessa forma, diminuiu o prazo para concessão de liberdade provisória, impondo outras condições� E o impetrante invocava o novo prazo, sem as condições novas�

Percebe‑se que esse velho caso configura exemplo acabado de tentativa de criação indireta de lei, o que se não admite� É, contudo, hipótese diferente desta, onde o instituto pode incidir independentemente de quaisquer outros critérios ou requisitos previstos nesta ou em outra lei�”

Ou seja, o Ministro Peluso começou a demonstrar, a partir de então, que essa incidência não implicaria a criação de um baralhamento de leis ou de uma terceira lei�

Então, disse ele:

“Além disso, é irrelevante que a lei nova contemple outros institutos, uma vez que estes poderiam ter sido previstos de maneira autônoma� Reza‑lhe o § 4º do art� 33:

‘Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa’�”

Após citar a Lei, disse Peluso:

“Nem se objete que a causa de diminuição seja dirigida somente ao caput da norma� Refere‑se, na verdade, às condutas nele descritas, as quais já eram como tais tipificadas, em grande parte, na lei revogada�

Deve‑se, ademais, atentar na finalidade e na ratio do princípio, para correta resposta à questão�

Tiro da manifestação do Deputado Paulo Pimenta, relator para o PLS nº 115/2002 (que deu origem à Lei nº 11�343/2006), na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, ao exarar parecer, em 10 de fevereiro de 2004:”

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E passou, então, Peluso a citar manifestação do Relator, na Câmara dos Depu‑tados, do referido projeto de lei:

“Não nos olvidamos da diferença existente entre pequenos e grandes traficantes� Por isso, mantivemos uma causa especial de diminuição da pena para o agente que seja primário e de bons antecedentes e cuja conduta se caracterize por ausên‑cia de habitualidade e caráter não profissional�”

Após essa citação, continuou Peluso:

“Daí se vê que não há como repudiar a aplicabilidade da causa de diminuição também a situações anteriores, pois foi essa nova valoração da conduta menos perigosa daquele que se convencionou chamar de ‘pequeno traficante’, em oposi‑ção ao ‘grande traficante’, que lhe motivou a previsão legal� O propósito claro da lei foi punir de maneira menos severa pessoas nas condições nela disciplinadas, sem nenhuma correlação, por si, com as novas penas aplicáveis ou aplicadas�

A respeito, valho‑me da lição de ZAFFARONI e PIERANGELI [ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique� Manual de direito penal brasileiro: parte geral� 2� ed� São Paulo: RT, 1999� p� 299]:

‘O princípio da retroatividade da lei penal mais benigna encontra seu funda‑mento na própria natureza do direito penal� Se o direito penal regula somente as situações excepcionais, em que o Estado deve intervir para a reeducação social do autor, a sucessão de leis que alteram a ingerência do Estado no cír-culo de bens jurídicos do autor denota uma modificação na desvaloração de sua conduta. Essa modificação significa que a lei considera desnecessária uma ingerência da mesma intensidade nos bens jurídicos do autor ou que diretamente é dispensável qualquer ingerência. Disso resulta que já não tem sentido a intervenção do Estado, por desnecessária, não se podendo sustentar apenas no fato de que foi considerada necessária no momento em que o autor cometeu o delito. De outra parte, o princípio republicano de governo exige a racionalidade da ação do Estado, e esta é bastante afetada quando pela mera circunstância de que um indivíduo haja cometido um fato com anterioridade a outro, trata‑se mais rigorosamente ao primeiro do que ao segundo� A segurança jurídica impede a reversão do princípio, mas requer também que seja cumprido na parte em que não a afeta’ (grifos nossos)�”

E disse, então, Peluso, após a citação:

“Não considero, portanto, que a aplicação da nova lei à pena fixada com base na lei antiga signifique criação de norma� O que ocorre é só a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica�”

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O que ocorre, disse, então, Peluso, é apenas a retroatividade da lei mais bené‑fica� Não há um terceiro gênero�

“Por fim, acresceria que a vedação de junção de dispositivos de leis diversas (que não ocorre no caso) é apenas produto de interpretação da doutrina e da jurispru‑dência, sem apoio direto em texto constitucional� Talvez nem seja esta a leitura mais curial do princípio da retroatividade da lei mais benigna, pois acaba por limitar‑lhe o alcance� Ao propósito, submeto à reflexão da Corte estas pondera‑ções [faz o Ministro Peluso outra citação]:

‘Quando a lei penal posterior é parcialmente mais favorável ao réu, contendo também dispositivo que o prejudica em confronto com a lei anterior, qual a solução que pode ser dada à questão? Duas são as alternativas apresentadas: OU se procede a aplicação de uma dessas leis em bloco, verificando qual delas é a mais benigna OU de cada uma dessas leis se extrai a parte que beneficia o réu para efeito de compor a norma aplicável ao caso concreto� A doutrina deu abrigo às duas opções, em face da omissão do texto legal�

Nelson Hungria (Comentários do Código Penal. 5 ed� Rio de Janeiro: Forense, 1978, v� I, t�1, p� 120), Aníbal Bruno (Direito Penal – Parte Geral� 4 ed� Rio de Janeiro: Forense, 1984, t� I, p� 270), Roque Brito Alves (Direito Penal – Parte Geral� Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1973, p� 213‑214), Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – A nova Parte Geral� 7� ed� Rio de Janeiro: Forense, 1985, p� 106‑107), Jair Leonardo Lopes (Curso de Direito Penal – Parte Geral� 4� ed� São Paulo: RT, 2005, p�98) e Paulo José da Costa Jr� (Direito Penal Comentado� 8� ed� São Paulo: DJP, 2005, p�8) não admitem a combinação de lei anterior e de lei posterior para efeito de extrair de cada uma delas as partes mais benignas ao agente, porque o juiz estaria, nesta situação, criando uma terceira lei, o que seria de todo inadmissível� Além de criar uma lei ine‑xistente, o juiz estaria invadindo a área reservada ao Poder Legislativo� Mais recentemente, Antonio García‑Pablos de Molina (idem, p�911) enfatizou que ‘se se toma de cada lei apenas o fragmento que favorece o réu, o intérprete procede de forma arbitrária e cria artificiosamente uma nova lei que vulnera a ratio legis, tanto da lei anterior como da posterior’�

Esse não parece ser o melhor equacionamento para a matéria�Já Basileu Garcia (Instituições de Direito Penal� 6�ed� São Paulo: Max Limonad,

1982, v� 1, t� 1, p� 160), José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal� 2�ed� Saraiva: São Paulo, 1965, v� 1, p� 210 e 211), Antonio José Fabrício Leiria (idem, p�82/83), Damásio Evangelista de Jesus (Direito Penal� 27 ed� São Paulo: Saraiva, v� I, 2003, p� 94‑95, Rogério Greco (idem, p� 122‑123), René Ariel Dotti (idem, p� 275‑276), Cezar Roberto Bitencourt (idem, p� 213) sustentam a possibilidade desta combinação e argumentam no sentido de que o juiz, ao realizá‑la, não criaria lei nova, mas apenas movimentar‑se‑ia ‘dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível� Se lhe está afeto escolher o

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‘todo’ para que o réu tenha tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal (José Frederico Marques, idem, p� 210)� Na mesma linha de consideração, observa René Ariel Dotti (idem, p� 275) que ‘não há mais clima propício para se resistir ao imperativo da fusão das normas penais que sejam mais benignas ao réu. Contra a antiga superstição e preconceituosa exegese opõe-se o princípio da garantia individual da retroatividade da lei mais favorável (CF, art. 5, XL), que não se detém mesmo diante da res judicata (CP, art. 2º, § 2º). E, para tanto, o magistrado nada mais faz senão aplicar o direito positivo em cada fato submetido à sua jurisdição. Não está, com isso, criando uma nova lei.

De acréscimo, e com uma argumentação irrespondível, Cuello Contreras, citado por Antonio García – Pablos de Molina (idem, p�910) ressalta a plena validade jurídica da composição das duas leis, a anterior e a posterior, para efeito de extrair‑se o conteúdo mais benigno de uma e de outra� Este posicio‑namento ‘não fere o princípio da legalidade porque este apenas proíbe que se castiguem comportamentos com penas não previstas em lei e que se aplique a lei penal de modo desfavorável ao réu’�

Além disso, a junção dos dispositivos favoráveis das duas leis ‘não implica a criação de uma tertia lex inexistente, nem a suposta invasão de competências legislativas pelo juiz porque o que se propõe é a aplicação da lei existente, que marca pautas e entre elas a retroatividade da lei favorável que sempre põe em relação duas leis (emanadas do Poder Legislativo!) e propicia soluções transitórias dentro dos limites da vontade legislativa única: a que primeiro disse uma coisa e depois outra’� Compreensão diversa ‘lesiona a exigência da justiça e da segu‑rança jurídica, porque ao aplicar in toto uma das duas normas, está aplicando conscientemente o aspecto desfavorável ao réu que a referida norma contém’”�

Após citar o voto proferido na Turma, concluiu o Ministro, em Plenário, pelo não provimento do recurso de então, que era do Ministério Público Federal�

Sobreveio o empate: cinco a cinco� A Corte estava desfalcada de um Ministro, mas produziu‑se ementa� Ficou como relator para o acórdão o Ministro Ayres Britto, acórdão de 13‑10‑2011� A ementa de então foi a seguinte:

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO� CONSTITUCIONAL� PENAL� TRÁFICO DE ENTORPECENTES� CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART� 33 DA LEI 11�343/2006� FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE� PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART� 5º DA CF/1988)� CONFLITO INTERTEMPORAL DE LEIS PENAIS� APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6�368/1976� POSSIBILIDADE� PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART� 5º DA CARTA MAGNA)� MÁXIMA EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO� RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO‑POSITIVA� INEDI‑TISMO DA MINORANTE�”

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Não existia essa minorante no conjunto da lei anterior; esse ponto é fun‑damental destacar: ineditismo da minorante� A minorante era autônoma em relação ao todo da lei anterior, e a minorante, sendo autônoma, é lei penal mais nova e mais benéfica e deve então ser aplicada retroativamente�

Continuo a leitura da ementa:

“RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO‑POSITIVA� INEDITISMO DA MINO‑RANTE AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR� COMBINAÇÃO DE LEIS� INOCORRÊNCIA�”

Ou seja, o acórdão fixou que, na aplicação, não houve a criação de uma tertia lex�

“EMPATE NA VOTAÇÃO� DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO� RECURSO DESPROVIDO�

1� A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art� 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente ‘generosa’�

2� Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art� 5º, a Constitui‑ção não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal� Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma�

3� A discussão em torno da possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente se sucedem no tempo (���) é de se deslocar do campo da lei para o campo da norma; isto é, não se trata de admitir ou não a mesclagem de leis que se sucedem no tempo, mas de aceitar ou não a combinação de normas penais que se friccionem no tempo quanto aos respectivos comandos�

4� O que a Lei das Leis rechaça é a possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo instituto ou figura de direito� Situação em que há de se fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da norma comparativamente mais benéfica� Vedando‑se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado, em parte, pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo�

5� A Constituição da República proclama é a retroatividade dessa ou daquela figura de direito que, veiculada por norma penal temporalmente mais nova, se revele ainda mais benfazeja do que a norma igualmente penal até então vigente� Caso contrário, ou seja, se a norma penal mais nova consubstanciar política criminal de maior severidade, o que prospera é a vedação da retroatividade�

6� A retroatividade da lei penal mais benfazeja ganha clareza cognitiva à luz das figuras constitucionais da ultra‑atividade e da retroatividade, não de uma

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determinada lei penal em sua inteireza, mas de uma particularizada norma penal com seu específico instituto� Isto na acepção de que, ali onde a norma penal mais antiga for também a mais benéfica, o que deve incidir é o fenômeno da ultra‑atividade; ou seja, essa norma penal mais antiga decai da sua atividade eficacial, porquanto inoperante para reger casos futuros, mas adquire instanta‑neamente o atributo da ultra‑atividade quanto aos fatos e pessoas por ela regidos ao tempo daquela sua originária atividade eficacial� Mas ali onde a norma penal mais nova se revelar mais favorável, o que toma corpo é o fenômeno da retroa‑tividade do respectivo comando� Com o que ultra‑atividade (da velha norma) e retroatividade (da regra mais recente) não podem ocupar o mesmo espaço de incidência� Uma figura é repelente da outra, sob pena de embaralhamento de antagônicos regimes jurídicos de um só e mesmo instituto ou figura de direito�

7� Atento a esses marcos interpretativos, hauridos diretamente da Carta Magna, o § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006 outra coisa não fez senão erigir quatro vetores à categoria de causa de diminuição de pena para favorecer a figura do pequeno traficante� Minorante, essa, não objeto de normação anterior� E que, assim ine‑ditamente positivada, o foi para melhor servir à garantia constitucional da indi‑vidualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art� 5º da CF/1988)�

8� O tipo penal ou delito em si do tráfico de entorpecentes já figurava no art� 12 da Lei 6�368/1976, de modo que o ineditismo regratório se deu tão somente quanto à pena mínima de reclusão, que subiu de 3 (três) para 5 (cinco) anos� Afora peque‑nas alterações redacionais, tudo o mais se manteve substancialmente intacto�

9� No plano do agravamento da pena de reclusão, a regra mais nova não tem como retroincidir� Sendo (como de fato é) constitutiva de política criminal mais drástica, a nova regra cede espaço ao comando da norma penal de maior teor de benignidade, que é justamente aquela mais recuada no tempo: o art� 12 da Lei 6�368/1976, a incidir por ultra‑atividade� O novidadeiro [e, aqui, bem caracterís‑tico o linguajar do Ministro Ayres Britto] instituto da minorante, que, por força mesma do seu ineditismo, não se contrapondo a nenhuma anterior regra penal, incide tão imediata quanto solitariamente, nos exatos termos do inciso XL do art� 5º da Constituição Federal�

10� Recurso extraordinário desprovido�”

O recurso extraordinário era do Ministério Público�A ata de então traz o seguinte:

“Vistos, relatados e discutidos estes autos, em face do empate na votação, após os votos dos Ministros Ricardo Lewandowski (Relator), Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Marco Aurélio, que deram provimento ao recurso extraor‑dinário, e os votos dos Ministros Ayres Britto, Cezar Peluso (Presidente), Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que lhe negavam provimento, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em proclamar a decisão mais favorável ao recorrido, o que fazem com base no artigo 146, parágrafo único, do RISTF, e,

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como tal, negar provimento ao recurso extraordinário� Tudo em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas� Redigirá o acórdão o Ministro Ayres Britto�”

Pois bem, Senhor Presidente, com base nesse precedente, cujo julgamento findou‑se, após o voto‑vista do Ministro Ayres Britto, em 13 de outubro de 2011, várias decisões já foram proferidas nas Turmas deste Tribunal favoravelmente à aplicação da minorante do § 4º do art� 33 da nova lei, tal qual essa que acabei de citar, da Segunda Turma, o HC nº 111�645, da relatoria da ministra Cármen Lúcia, julgado, por unanimidade, em 27 de novembro de 2012�

Estamos agora, dois anos depois, nesta sessão, a alterar a jurisprudência, a fazer uma outra sinalização para o Judiciário, após termos lhes dado um comando no sentido da possibilidade da aplicação do § 4º do 33 àqueles con‑denados, com base na Lei de 1976�

Com essas considerações, peço vênia novamente – como o fiz no dia 2 de dezembro de 2010 – ao eminente Ministro Ricardo Lewandowski para acompa‑nhar a divergência que, na sessão de hoje, foi aberta pela Ministra Rosa Weber�

É como voto�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia: Senhor Presidente, peço vênia à divergência, mas mantenho a posição que já tinha exarado no Recurso Extraordinário nº 596�152, acompanhando o Ministro Lewandowski, e reitero, portanto, esse voto, acompanhando desta feita para dar parcial provimento ao recurso�

VOTO

O sr. ministro Gilmar Mendes: Conforme relatado, no presente recurso, dis‑cute‑se a aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no art� 33, § 4º, da Lei n� 11�343/2006 ao crime cometido na vigência da Lei n� 6�368/1976�

Inicialmente, ressalto que a Constituição Federal estabelece, no art� 5º, XL, que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu� Por seu turno, o art� 2º do Código Penal dispõe que lei posterior, que de qualquer modo favore‑cer o agente, aplica‑se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado�

Segundo Francisco de Assis Toledo, reputa‑se mais benigna a lei na qual:

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“a) a pena cominada for mais branda, por sua natureza, quantidade, critérios de aplicação e dosimetria ou modo de execução;

b) forem criadas novas circunstâncias atenuantes, causas de diminuição de pena ou benefícios relacionados com a extinção, suspensão ou dispensa de exe‑cução da pena, ou, ainda, maiores facilidades para o livramento condicional;

c) forem extintas circunstâncias agravantes, causas de aumento de pena ou qualificadora;

d) se estabelecerem novas causas extintivas da punibilidade ou se ampliarem as hipóteses de incidência das já existentes, notadamente quando são reduzidos prazos de decadência, de prescrição, ou se estabelece modo mais favorável de contagem desses prazos;

e) se extinguirem medidas de segurança, penas acessórias ou efeitos da condenação;

f) forem ampliadas as hipóteses de inimputabilidade, de atipicidade, de exclu‑são da ilicitude, de exclusão da culpabilidade ou de isenção de pena�” (Toledo, Francisco de Assis� Princípio Básicos de Direito Penal� 5� ed�, São Paulo: Saraiva, 2007� p� 35‑36�)

De qualquer sorte, a análise da lei mais benigna restará sempre submetida à avaliação do resultado final in concreto, até porque um juízo abstrato pode levar, não raras vezes, a percepções equivocadas no que concerne à aplicação da sanção e à sua execução�

Preliminarmente, ressalto que a questão da aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006 à sanção pre‑vista no art� 12 da Lei 6�368/1976 sempre foi bastante controvertida� De fato, observo que — no próprio âmbito deste Supremo Tribunal Federal — formaram‑‑se duas posições bem delineadas�

A primeira no sentido da impossibilidade de aplicar dispositivos mais bené‑ficos da lei anterior (Lei 6�368/1976) e, concomitantemente, dispositivos favorá‑veis da lei posterior (Lei 11�343/2006), dado que — ao combiná‑los e aplicá‑los ao caso concreto — o juiz estaria a criar uma terceira lei (lex tertia), invadindo atribuições inerentes ao exercício do legislador, o que seria de todo inviável� A propósito, colho alguns precedentes: HC 96�844/MS, Rel� Min� Joaquim Bar‑bosa, 2ª Turma, DJE de 5‑2‑2010, e RHC 101�278/RJ, Rel� Min� Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJE de 21‑5‑2010�

Já os adeptos de posicionamento diverso (Ministro Cezar Peluso e Ministro Eros Grau) entendiam que adequar a causa especial de diminuição de pena da lei nova à pena prevista na lei antiga não significa misturar, baralhar ou com‑binar normas, na medida em que o juiz, ao assim agir, somente movimenta‑se dentro de quadros legais para uma integração perfeitamente possível, o da

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retroatividade da lei mais benéfica� Nesse sentido: HC 95�435/RS, Rel� orig� Min� Ellen Gracie, Red� p/ o acórdão Min� Cezar Peluso, 2ª Turma, DJE de 7‑11‑2008, e HC 101�511/MG, Rel� Min� Eros Grau, 2ª Turma, DJE de 21‑5‑2010�

A despeito de toda essa divergência, cumpre observar que, em sessão reali‑zada em 13‑10‑2011, o Plenário desta Suprema Corte, diante do empate na vota‑ção, negou provimento ao RE 596�152/SP, de relatoria do Min� Ricardo Lewan‑dowski, no qual se discutia exatamente a possibilidade de aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006 aos condenados sob a vigência da Lei 6�368/1976� Eis a ementa desse julgado:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO� CONSTITUCIONAL� PENAL� TRÁFICO DE ENTORPE‑CENTES� CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA, INSTITUÍDA PELO § 4º DO ART� 33 DA LEI 11�343/2006� FIGURA DO PEQUENO TRAFICANTE� PROJEÇÃO DA GARANTIA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART� 5º DA CF/1988)� CONFLITO INTER‑TEMPORAL DE LEIS PENAIS� APLICAÇÃO AOS CONDENADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI 6�368/1976� POSSIBILIDADE� PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA (INCISO XL DO ART� 5º DA CARTA MAGNA)� MÁXIMA EFICÁCIA DA CONS‑TITUIÇÃO� RETROATIVIDADE ALUSIVA À NORMA JURÍDICO‑POSITIVA� INEDITISMO DA MINORANTE� AUSÊNCIA DE CONTRAPOSIÇÃO À NORMAÇÃO ANTERIOR� COMBI‑NAÇÃO DE LEIS� INOCORRÊNCIA� EMPATE NA VOTAÇÃO� DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RECORRIDO� RECURSO DESPROVIDO�

1� A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do art� 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente ‘generosa’�

2� Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu art� 5º, a Constitui‑ção não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal� Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma�

3� A discussão em torno da possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente se sucedem no tempo (para que dessa combinação se chegue a um terceiro modelo jurídico‑positivo) é de se deslocar do campo da lei para o campo da norma; isto é, não se trata de admitir ou não a mesclagem de leis que se sucedem no tempo, mas de aceitar ou não a combinação de normas penais que se friccionem no tempo quanto aos respectivos comandos�

4� O que a Lei das Leis rechaça é a possibilidade de mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo, sobre o mesmo instituto ou figura de direito� Situação em que há de se fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da norma comparativamente mais benéfica� Vedando‑se, por conseguinte, a fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado,

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em parte, pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo�

5� A Constituição da República proclama é a retroatividade dessa ou daquela figura de direito que, veiculada por norma penal temporalmente mais nova, se revele ainda mais benfazeja do que a norma igualmente penal até então vigente� Caso contrário, ou seja, se a norma penal mais nova consubstanciar política criminal de maior severidade, o que prospera é a vedação da retroatividade�

6� A retroatividade da lei penal mais benfazeja ganha clareza cognitiva à luz das figuras constitucionais da ultra‑atividade e da retroatividade, não de uma determinada lei penal em sua inteireza, mas de uma particularizada norma penal com seu específico instituto� Isto na acepção de que, ali onde a norma penal mais antiga for também a mais benéfica, o que deve incidir é o fenômeno da ultra‑atividade; ou seja, essa norma penal mais antiga decai da sua atividade eficacial, porquanto inoperante para reger casos futuros, mas adquire instanta‑neamente o atributo da ultra‑atividade quanto aos fatos e pessoas por ela regidos ao tempo daquela sua originária atividade eficacial� Mas ali onde a norma penal mais nova se revelar mais favorável, o que toma corpo é o fenômeno da retroa‑tividade do respectivo comando� Com o que ultra‑atividade (da velha norma) e retroatividade (da regra mais recente) não podem ocupar o mesmo espaço de incidência� Uma figura é repelente da outra, sob pena de embaralhamento de antagônicos regimes jurídicos de um só e mesmo instituto ou figura de direito�

7� Atento a esses marcos interpretativos, hauridos diretamente da Carta Magna, o § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006 outra coisa não fez senão erigir quatro vetores à categoria de causa de diminuição de pena para favorecer a figura do pequeno traficante� Minorante, essa, não objeto de normação anterior� E que, assim ine‑ditamente positivada, o foi para melhor servir à garantia constitucional da indi‑vidualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art� 5º da CF/1988)�

8� O tipo penal ou delito em si do tráfico de entorpecentes já figurava no art� 12 da Lei 6�368/1976, de modo que o ineditismo regratório se deu tão somente quanto à pena mínima de reclusão, que subiu de 3 (três) para 5 (cinco) anos� Afora peque‑nas alterações redacionais, tudo o mais se manteve substancialmente intacto�

9� No plano do agravamento da pena de reclusão, a regra mais nova não tem como retroincidir� Sendo (como de fato é) constitutiva de política criminal mais drástica, a nova regra cede espaço ao comando da norma penal de maior teor de benignidade, que é justamente aquela mais recuada no tempo: o art� 12 da Lei 6�368/1976, a incidir por ultra‑atividade� O novidadeiro instituto da minorante, que, por força mesma do seu ineditismo, não se contrapondo a nenhuma ante‑rior regra penal, incide tão imediata quanto solitariamente, nos exatos termos do inciso XL do art� 5º da Constituição Federal�

10� Recurso extraordinário desprovido�” (RE 596�152, Rel� Min� Ricardo Lewan‑dowski, Red� p/ Acórdão: Min� Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJE de 13‑2‑2012�)

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O voto do Min� Ayres Britto, Redator p/ o acórdão, consignou que o fato de a Lei 11�343/2006 ter criado a figura do pequeno traficante, a merecer tratamento diferenciado — não contemplada na legislação anterior —, não implicaria con‑flito de normas, tampouco mescla indevida, visto que a minorante seria inédita, sem contraposição a qualquer regra pretérita�

Ficou assentado, portanto, ser possível a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art� 33 da Lei 11�343/2006 aos condenados sob a vigência da Lei 6�368/1976�

Pelo exposto, ante a decisão proferida pelo STF no RE 596�152/SP, meu voto é no sentido de dar provimento ao recurso extraordinário�

É como voto�

VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, imaginei que chegássemos, sem a presença do ministro Luís Roberto Barroso, à maioria de seis votos, mas penso que teremos que aguardar Sua Excelência, que atuará, ao fim, como perito desempatador�

Está em jogo um princípio muito caro em se tratando de sistema jurídico, o unitário, sob pena de, mediante mesclagem de diplomas diversos, chegar‑se a uma outra disciplina da matéria, como se pudéssemos, mediante esse artifício, atuar como legisladores positivos�

Não há a menor dúvida de que o legislador, com a Lei nº 11�343/2006, suplan‑tando a anterior Lei de Tóxicos, de nº 6�368/1976, objetivou atender aos anseios sociais de combate a esse crime de gravidade ímpar, que é o de tráfico de drogas� Ao contrário, por exemplo, do que ocorreu na alteração do crime de quadrilha, agravou a glosa do procedimento apanhado no campo penal e previu, quanto ao balizamento em termos de pena relativo ao tráfico, piso superior ao retratado na Lei nº 6�368/1976, que era de três anos� Passou‑se a ter cinco anos� O teto permaneceu o mesmo: quinze anos�

E, então, para agasalhar certas situações e temperar a majoração da pena, versou a causa de diminuição quanto a certos acusados, certos culpados pelo crime de tráfico�

Estamos a julgar, com a roupagem de recurso extraordinário, a ação penal, e o pedido formulado pela Defensoria Pública é único� Não pretende a Defensoria Pública a incidência linear da Lei nº 11�343/2006� Pretende, sim, que se tenha a aplicação da lei pretérita – Lei nº 6�6368/1976 –, em termos de pena‑base, e que se adote, olvidando a razão do surgimento da causa de diminuição, que foi

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a elevação – como disse – do piso, a causa de diminuição� Se se partir para o agasalho desse enfoque, Presidente, estar‑se‑á na contramão do que visado pela nova Lei nº 11�343/2006, como que criando nova disciplina normativa, fazendo surgir, no cenário nacional, novo diploma�

Presidente, jamais tive essa matéria como pacificada no sentido de aplicar‑‑se a Lei nº 11�343/2006, pinçando‑se tão somente a causa de diminuição na pena� Desde o primeiro dia na Turma, votei – porque aprendi isso na minha passagem pela Justiça do Trabalho – a partir do critério unitário� Sim, a lei penal retroage para beneficiar o acusado, o réu, mas em termos de sistema, sem viabilizar ao intérprete a mesclagem, como disse, e, portanto, o surgimento de nova disciplina�

Peço vênia àqueles que discordaram do relator para adotar a visão inicial de Sua Excelência: pretendeu‑se – e o pedido mostra‑se único – a mesclagem, não pretendeu a Defensoria Pública no recurso extraordinário que se relegue ao Juízo da execução o julgamento da ação penal e a definição do tema� Seria muito fácil definir, na apreciação do recurso, se fosse o caso, o diploma mais favorável ao acusado�

Por isso, fico no desprovimento do extraordinário, ressaltando mais uma vez que, ante o grande número de processos que aguardam julgamento na fila, preciso pensar em conciliar celeridade e conteúdo�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello: Não obstante todas as razões ponderáveis e substanciosas expostas pelo eminente Relator, peço respeitosa vênia para, acompanhando o dissenso iniciado pela eminente Ministra ROSA WEBER, conhecer e dar provimento ao presente recurso extraordinário, em ordem a assegurar a aplicabilidade, à ora recorrente, da causa especial de diminuição de pena fundada no § 4º do art� 33 da nova Lei de Drogas, desde que atendidos os diversos requisitos que autorizam e legitimam a sua aplicação�

É o meu voto�

VOTO (Retificação)

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, peço a palavra apenas por dois minutos para retificar a fala inicial�

Não sei que cálculos conduziram‑me a assentar que teríamos novo empate�

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A menos que Vossa Excelência involua, com um voto do ministro Teori Zavascki alcançamos���

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Involua ou evolua? Evolua?O sr. ministro Marco Aurélio: Sob a minha óptica, seria uma involução� Sob

a óptica, por exemplo, do Decano, que bateria palmas, evolução�

VOTO

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu vou manter‑me fiel aos votos que já proferi sobre a matéria nesta Corte�

EXTRATO DE ATA

RE 600�817/MS — Relator: Ministro Ricardo Lewandowski� Recorrente: Nancy Roman Campos (Defensor Público: Defensor Público‑Geral Federal)� Recorrido: Ministério Público Federal (Procurador: Procurador‑Geral da República)�

Decisão: O Tribunal, por maioria, deu parcial provimento ao recurso extraor‑dinário, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que davam provimento integral ao recurso, e parcialmente o Ministro Marco Aurélio, que lhe negava provimento� Votou o Presidente, Ministro Joaquim Barbosa� Ausente, justificadamente, o Ministro Roberto Barroso�

Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki� Vice‑Procuradora‑Geral da República, Dra� Ela Wiecko Volkmer de Castilho�

Brasília, 7 de novembro de 2013 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

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AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 732.188 — SP

Relator: O sr. Ministro Dias ToffoliAgravante: Município de São PauloAgravados: Adailson de Oliveira e outros

Agravo regimental no agravo de instrumento� Processual civil e constitucional� Multa� Imposição contra o Poder Público� Possibilidade� Violação do princípio da separação dos poderes� Não ocorrência� Precedentes�

1� Esta Corte já firmou a orientação de que é possível a imposição de multa diária contra o Poder Público quando esse descumprir obri‑gação a ele imposta por força de decisão judicial�

2� Não há falar em ofensa ao princípio da separação dos pode‑res quando o Poder Judiciário desempenha regularmente a função jurisdicional�

3� Agravo regimental não provido�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator�

Brasília, 12 de junho de 2012 — Dias Toffoli, Relator�

AI 732�188 AgR

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AI 732.188 AgR

RELATÓRIO

O sr. ministro Dias Toffoli: Município de São Paulo interpõe tempestivo agravo regimental contra decisão em que se negou provimento ao agravo de instru‑mento (fls� 155 a 159), com a seguinte fundamentação:

“Vistos�Município de São Paulo interpõe agravo de instrumento contra a decisão que

não admitiu recurso extraordinário assentado em contrariedade aos artigos 2º e 37, caput, da Constituição Federal�

Insurge‑se, no apelo extremo, contra acórdão da Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado:

‘Possível a cominação de multa para o caso do não cumprimento de obrigação de fazer em prazo razoável pela Municipalidade’ [fl� 106]�

Decido�Anote‑se, inicialmente, que o recurso extraordinário foi interposto contra acór‑

dão publicado após 3/5/07, quando já era plenamente exigível a demonstração da repercussão geral da matéria constitucional objeto do recurso, conforme deci‑dido na Questão de Ordem no Agravo de Instrumento nº 664�567/RS, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 6/9/07� Todavia, apesar da petição recursal haver trazido a preliminar sobre o tema, não é de se proceder ao exame de sua existência, uma vez que, nos termos do artigo 323 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, com a redação introduzida pela Emenda Regimental nº 21/07, primeira parte, o procedimento acerca da existência da repercussão geral somente ocorrerá ‘quando não for o caso de inadmissibilidade do recurso por outra razão’�

A irresignação não merece prosperar, haja vista que o acórdão recorrido está em sintonia com a jurisprudência desta Corte que pacificou entendimento no sentido da legalidade da imposição de multa diária contra o Poder Público em caso de descumprimento de obrigação que lhe foi cominada, por ordem judicial� Nesse sentido, destaco o seguinte precedente:

‘TUTELA ANTECIPATÓRIA – POSSIBILIDADE, EM REGRA, DE SUA OUTORGA CONTRA O PODER PÚBLICO, RESSALVADAS AS LIMITAÇÕES PREVISTAS NO ART. 1º DA LEI Nº 9�494/97 – VEROSSIMILHANÇA DA PRETENSÃO DE DIREITO MATERIAL – OCORRÊNCIA DE SITUAÇÃO CONFIGURADORA DO ‘PERICULUM IN MORA’ – ATENDIMENTO, NA ESPÉCIE, DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS (CPC, ART� 273, INCISOS I E II) – CONSEQuENTE DEFERIMENTO, NO CASO, DA ANTE-CIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL – LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS ‘ASTREINTES’ CONTRA O PODER PÚBLICO – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – DECISÃO REFERENDADA EM MAIOR EXTENSÃO – TUTELA ANTECIPATÓRIA INTEGRALMENTE DEFERIDA�

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POSSIBILIDADE JURÍDICO‑PROCESSUAL DE OUTORGA, CONTRA O PODER PÚBLICO, DE TUTELA ANTECIPATÓRIA�

– O ordenamento positivo brasileiro não impede, em regra, a outorga de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional contra o Poder Público, uma vez atendidos os pressupostos legais fixados no art� 273, I e II do CPC, na redação dada pela Lei nº 8�952/94, ressalvadas, no entanto, as situações de pré-exclusão referidas, taxativamente, no art� 1º da Lei nº 9�494/97, cuja validade constitucional foi integralmente confirmada, pelo Supremo Tribu‑nal Federal, no julgamento da ADC 4/DF, Rel� p/ o acórdão Min� CELSO DE MELLO� Existência, no caso, de decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu, em favor do menor impúbere, o direito em seu nome vindicado� Ocorrência, ainda, de situação configuradora de ‘periculum in mora’ (pre-servação das necessidades vitais básicas do menor em referência)�

LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS ‘ASTREINTES’�– Inexiste obstáculo jurídico‑processual à utilização, contra entidades de

direito público, da multa cominatória prevista no § 5º do art� 461 do CPC� A ‘astreinte’ – que se reveste de função coercitiva – tem por finalidade espe-cífica compelir, legitimamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito� Doutrina� Jurisprudência’ [RE nº 495�740/DF‑TAR, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 14/8/09]�

Dadas as preciosas lições que encerra para o deslinde da controvérsia instau‑rada nestes autos, transcrevo trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, no recente julgamento do ARE nº 639�337/SP‑AgR, Segunda Turma, DJe de 15/9/11, em que também é parte o Município de São Paulo:

‘(���)Cabe observar, de outro lado, que a multa diária imposta ao Município

de São Paulo reveste-se de plena legitimidade, pois objetiva compeli‑lo a cumprir, de modo efetivo e integral, o comando emergente da sentença e do acórdão que a confirmou�

Vale salientar que inexiste qualquer obstáculo jurídico‑processual à utili-zação, contra entidades de direito público (como o Município de São Paulo), da multa cominatória prevista no § 5º do art� 461 do CPC�

É de ressaltar, por isso mesmo, que as ‘astreintes’ podem ser legitimamente impostas às pessoas jurídicas de direito público, consoante adverte auto‑rizado magistério doutrinário (LEONARDO JOSÉ CARNEIRO DA CUNHA, ‘Algumas Questões sobre as Astreintes (Multa Cominatória)’, ‘in’ ‘Revista Dialética de Direito Processual nº 15’, p� 95/104, item n� 7, junho‑2004; GUI‑LHERME RIZZO AMARAL, ‘As Astreintes e o Processo Civil Brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras’, p� 99/103, item n� 3�5�4, 2004, Livraria do Advogado Editora; EDUARDO TALAMINI, ‘Tutela Relativa aos Deveres de Fazer e de não Fazer: e sua extensão aos deveres de entrega de coisa (CPC, arts. 461 e 461-A; CDC, art. 84)’, p� 246/247, item n� 9�3�4, 2ª ed�, 2003, Editora Revista dos Tribunais, v.g.)�

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Esse entendimento doutrinário, por sua vez, reflete-se na jurisprudên-cia firmada pelos Tribunais, cujas decisões (RT 808/253‑256 – RF 370/297‑299 – RE 495.740-TAR/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO – REsp nº 201.378/SP, Rel� Min� FERNANDO GONÇALVES – REsp nº 784.188/RS, Rel� Min� TEORI ALBINO ZAVASCKI – Resp nº 810.017/RS, Rel� Min� FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, v.g.) já reconheceram a possibilidade jurídico‑processual de con-denação da Fazenda Pública ao pagamento da multa cominatória prevista no § 5º do art� 461 do CPC�

Na realidade, a ‘astreinte’ – que se reveste de função coercitiva – tem por finalidade específica compelir, validamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito, tal como definido no ato sentencial�

Inquestionável, dessa maneira, por ser juridicamente válida, a imposição, no caso ora em exame, pelo Poder Judiciário paulista, de multa diária por criança não atendida pelo Município de São Paulo�’

Aplicando essa orientação, destaca‑se o seguinte julgado da Primeira Turma:‘Agravo regimental no agravo de instrumento� Constitucional� Ação civil pública� Obrigação de fazer� Implementação de políticas públicas� Possibili‑dade� Violação do princípio da separação dos poderes� Não ocorrência� Prece‑dentes� 1� O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitu‑cionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes� 2� Agravo regimental não provido’ (AI nº 708�667/SP‑AgR, de minha relatoria, DJe de 10/4/12)�

O acórdão recorrido não se afastou dessa orientação�Ante o exposto, nego provimento ao agravo�Publique‑se�”

Insiste o agravante que foram violados os arts� 2º e 37, caput, da Constitui‑ção Federal�

Sustenta a impossibilidade de cominação de multa diária contra entes públi‑cos, bem como a impossibilidade material de cumprimento da ordem em ques‑tão, tendo em vista a falta de recursos financeiros e o tempo exíguo para a efetivação da determinação judicial�

Aduz, ainda, in verbis, que:“Atente‑se, ainda, para o fato de que a inconstitucionalidade da imposição

de multa diária é manifesta por constituir ofensa ao princípio constitucional da separação dos poderes (���)” (fl� 171)�

É o relatório�

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VOTO

O sr. ministro Dias Toffoli (relator): O inconformismo não merece prosperar�Conforme expresso na decisão agravada, é possível a imposição de multa

diária contra o Poder Público quando esse descumprir obrigação a ele imposta por força de decisão judicial�

Sobre o tema, anote‑se a ementa do seguinte precedente, na parte que interessa:

“(���) LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS ‘ASTREIN‑TES’� – Inexiste obstáculo jurídico‑processual à utilização, contra entidades de direito público, da multa cominatória prevista no § 5º do art� 461 do CPC� A ‘astreinte’ – que se reveste de função coercitiva – tem por finalidade especí‑fica compelir, legitimamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito, tal como definido no ato sentencial� Doutrina� Jurispru‑dência�” (ARE nº 639�337/SP AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJE de 15‑9‑2011�)

Por outro lado, a determinação de obrigação de fazer sob pena de multa é conduta prevista em lei, não restando patente nos autos que as autoridades judicantes tenham atuado de modo abusivo�

Consoante a jurisprudência desta Corte, não há falar em ofensa ao princípio da separação dos poderes, insculpido no art� 2º da Constituição Federal, quando o Poder Judiciário desempenha regularmente a função jurisdicional�

Nesse sentido, o julgado proferido pelo Plenário desta Corte, de cuja ementa se colhe o seguinte trecho:

“(���) A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição� Esse princípio, que tem assento no art� 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar‑se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal� – O Poder Judiciário, quando inter‑vém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República� O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Cons‑tituição, não transgride o princípio da separação de poderes (���)” (MS nº 23�452/RJ, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 12‑5‑2000�)

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Corroborando a orientação perfilhada no referido mandado de segurança, anotem‑se os seguintes julgados:

“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO� GRATIFICAÇÃO POR CONDI‑ÇÕES ESPECIAIS E ADICIONAL DE PRODUTIVIDADE� DECRETO 9�344‑A/1995� NATU‑REZA JURÍDICA DAS PARCELAS� CONTROVÉRSIA DECIDIDA COM BASE NA LEGISLA‑ÇÃO INFRACONSTITUCIONAL ESTADUAL PERTINENTE� ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO ART� 2º DA MAGNA CARTA DE 1988� INEXISTÊNCIA� 1� A análise da natureza jurídica de parcelas remuneratórias devidas a servidores não enseja a abertura da via recursal extraordinária, ante a indispensabilidade de se rever a interpretação dada pelo Tribunal de origem à legislação infraconstitucional pertinente� Pelo que, eventual ofensa ao Magno Texto apenas ocorreria de modo reflexo ou indi‑reto� 2� A suposta violação ao art� 2º do Texto Magno não prospera� Isso porque é firme no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que ‘o regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Consti‑tuição, não transgride o princípio da separação de poderes’ (MS 23�452, da relato‑ria do ministro Celso de Mello)� 3� Agravo regimental desprovido�” (AI nº 764�972/PI AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Ayres Britto, DJE de 24‑8‑2011�)

“CONSTITUCIONAL� SEPARAÇÃO DOS PODERES� POSSIBILIDADE DE ANÁLISE DE ATO DO PODER EXECUTIVO PELO PODER JUDICIÁRIO� DECISÃO BASEADA NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL LOCAL� REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA E INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS EDITALÍCIAS� SÚMULAS 279, 280 E 454� AGRAVO IMPROVIDO� I – Cabe ao Poder Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três Poderes constitucionais, e, em vislumbrando mácula no ato impugnado, afastar a sua aplicação� II – O acórdão recorrido dirimiu a questão dos autos com base na legislação infraconstitucional local aplicável à espécie� Incidência da Súmula 280 desta Corte� III – O exame de matéria de fato e a interpretação de cláusulas editalícias atrai a incidência das Súmulas 279 e 454 do STF� IV – Agravo regi‑mental improvido�” (AI nº 640�272/DF AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJE de 31‑10‑2007�)

No mesmo sentido, as seguintes decisões monocráticas: RE nº 638�660/SP, DJE de 2‑5‑2012, e ARE nº 653�812/SP, DJE de 25‑5‑2012, ambos da Relatoria do Ministro Ayres Britto; e ARE nº 677�008/SC, Relator o Ministro Luiz Fux, DJE de 9‑4‑2012�

Por fim, colhe‑se do voto condutor do acórdão recorrido:

“Muito facilmente a Municipalidade pode deixar de pagar a multa: basta cumprir sua obrigação, no prazo que, em tempo de informática, foi mais do que razoável, já que notório em em dez dias é possível programar o apostilamento de muito mais do que cinquenta títulos, independentemente do disponha a Ordem de Serviço

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Depri 1/98� Demais, constou da respeitável decisão que a agravante já teve muito tempo, permanecendo inerte embora intimada diversas vezes” (fls� 108/109)�

Assim, para acolher a pretensão do agravante, no sentido da impossibilidade de cumprimento da ordem judicial, seria necessário analisar os fatos da causa, fim a que não se presta o recurso extraordinário, consoante dispõe a Súmula nº 279/STF�

Nego provimento ao agravo regimental�

EXTRATO DE ATA

AI 732�188 AgR/SP — Relator: Ministro Dias Toffoli� Agravante: Município de São Paulo (Procurador: Procurador‑geral do Município de São Paulo)� Agrava‑dos: Adailson de Oliveira e outros (Advogados: Evélcor Fortes Salzano e outros)�

Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator� Unânime� Não participaram, justificadamente, deste julga‑mento, os Senhores Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux�

Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli� Presentes à Sessão os Senhores Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber� Subprocurador‑‑Geral da República, Dr� Edson Oliveira de Almeida�

Brasília, 12 de junho de 2012 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, Secretária da Primeira Turma�

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AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 749.009 — SP

Relator: O sr. ministro Luiz FuxAgravante: UniãoAgravada: Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Mogi Guaçu

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO� TRIBUTÁRIO� IMUNIDADE TRIBUTÁRIA� ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL� ART� 150, VI, C, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL� EXTENSÃO DA REFERIDA IMUNIDADE ÀS APLICAÇÕES FINANCEIRAS� POSSIBILIDADE�

1. A imunidade tributária prevista no art� 150, VI, c, da CF alcança todos os bens das entidades assistenciais de que cuida o referido dis‑positivo constitucional, além de suas aplicações financeiras� Prece‑dentes: RE 183�216 AgR‑ED, rel� min� Marco Aurélio, DJ de 2‑6‑2000; RE 232�080 AgR, rel� min� Nelson Jobim, DJ de 31‑10‑2001; RE 230�281 AgR, rel� min� Gilmar Mendes, DJ de 1º‑8‑2003; RE 424�507 AgR, rel� min� Carlos Velloso, DJ de 22‑10‑2004�

2. Este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 1�802 MC, da Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 13‑2‑2004, suspendeu, até a decisão final da ação direta, a eficácia do § 1º do artigo 12 da Lei 9�532/1997�

3� O presente tema não guarda identidade com o RE 611�510 RG, atualmente sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, cuja repercussão geral foi reconhecida por esta Corte, restando evidenciado o divórcio ideológico entre as razões do regimental e o que foi decidido no Tri‑bunal a quo� Incidência da Súmula 284 do STF verbis: É inadmissível

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o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia�

4� In casu, o acórdão recorrido assentou: “TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIO‑NAL – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA – INSTITUIÇÃO DEDICADA À ASSISTÊNCIA SOCIAL – ARTIGO 150, VI, C, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS DO ARTIGO 14 DO CTN – LEI Nº 9�532/1997 – EXCLUSÃO DA IMUNIDADE DOS RENDIMENTOS E GANHOS DE CAPITAL AUFERIDOS EM APLICAÇÕES FINANCEIRAS – VIGÊNCIA SUSPENSA� 1� A Constituição Federal assegura imunidade tributária às instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, no que se refere à instituição de impostos incidentes sobre o patrimônio, a renda ou serviços relaciona‑dos às suas finalidades essenciais, desde que sejam cumpridos os requi‑sitos contidos no art� 14 do CTN� 2� O § 4º do artigo 150 da Constituição, ao determinar que a imunidade concerne apenas ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com suas finalidades essenciais, não exclui os rendimentos decorrentes das aplicações financeiras que são vertidos aos objetivos da própria entidade, como ocorre com a renda auferida a partir das suas atividades assistenciais, ou mesmo da comercialização de seus bens� 3� A imunidade não é restrita apenas à renda decorrente do objeto social da entidade, mas sim toda aquela auferida de forma regular visando resguardar o seu patrimônio dos efeitos corrosivos da inflação, como ocorre com as aplicações financeiras� 4� O art� 12, § 1º, da Lei nº L� 9�532/1997, lei ordinária, excluiu da imunidade os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável� 5� Ofensa ao art� 146, II, da Constituição Federal, que determina competir à lei complementar regular as limitações constitu‑cionais ao poder de tributar� 6� A imposição tributária também estaria tributando o patrimônio da entidade, o que é vedado pela Constituição Federal, porquanto as aplicações financeiras não têm a finalidade de auferir lucros, mas sim de resguardar o patrimônio dos efeitos corrosi‑vos da inflação� 7� O dispositivo teve sua vigência suspensa por força de decisão proferida em Medida Cautelar na ADIN nº 1�802�”

5. NEGO PROVIMENTO ao agravo regimental�

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro

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Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator�

Brasília, 13 de março de 2012 — Luiz Fux, Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Luiz Fux: Cuida‑se de agravo regimental contra decisão mono‑crática de minha lavra ementada nos seguintes termos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO� TRIBUTÁRIO� IMUNIDADE TRIBUTÁRIA� ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL� ART� 150, VI, C, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL� EXTENÇÃO DA REFERIDA IMUNIDADE ÀS APLICAÇÕES FINANCEIRAS� POSSIBILIDADE�

1. A imunidade tributária prevista no art� 150, VI, c, da CF alcança todos os bens das entidades assistenciais de que cuida o referido dispositivo constitucional, além de suas aplicações financeiras� Precedentes: RE 183�216 AgR‑ED, rel� min� Marco Aurélio, DJ de 2‑6‑2000; RE 232�080 AgR, rel� min� Nelson Jobim, DJ de 31‑10‑2001; RE 230�281 AgR, rel� min� Gilmar Mendes, DJ de 1º‑8‑2003; RE 424�507 AgR, rel� min� Carlos Velloso, DJ de 22‑10‑2004�

2. Este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 1�802 MC, da Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 13‑2‑2004, suspendeu, até a decisão final da ação direta, a eficácia do § 1º do artigo 12 da Lei 9�532/1997�

3. NEGO SEGUIMENTO ao agravo de instrumento�

Nas razões do regimental, a UNIÃO sustenta em síntese que a matéria em comento teve sua repercussão geral reconhecida por esta Suprema Corte nos autos do RE 611�510 RG, atualmente sob a relatoria da Min� Rosa Weber�

Requer o provimento do presente regimental para que o apelo extremo tenha regular seguimento�

É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Luiz Fux (Relator): O agravo não merece prosperar�Com efeito, indeferi o seguimento ao agravo de instrumento por entender

que o acórdão recorrido está em consonância com o entendimento desta Corte Suprema, exarado quando do julgamento da ADI 1�802 MC, da Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 13‑2‑2004, que suspendeu a eficácia do § 1º do art� 12 da Lei 9�532/1997, por inconstitucionalidade formal, porque trataria de matéria reservada à Lei Complementar, segundo o qual os rendimentos e

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ganhos de capital em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável auferidos pelas entidades de educação ou de assistência social – como é o caso da agravada – não estão abrangidos pela imunidade tributária de que trata o art� 150, VI, c, da CF�

Confira‑se o consignado na decisão monocrática:

“Em relação ao art� 12, § 1º, da Lei 9�532/1997, confira‑se o que foi decidido quando do julgamento da ADI 1�802 MC, da Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 13‑2‑2004:

‘EMENTA: I� Ação direta de inconstitucionalidade: Confederação Nacional de Saúde: qualificação reconhecida, uma vez adaptados os seus estatutos ao molde legal das confederações sindicais; pertinência temática concorrente no caso, uma vez que a categoria econômica representada pela autora abrange entidades de fins não lucrativos, pois sua característica não é a ausência de atividade econômica, mas o fato de não destinarem os seus resultados posi‑tivos à distribuição de lucros� II� Imunidade tributária (CF, art� 150, VI, c, e 146, II): ‘instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei’: delimitação dos âmbitos da matéria reservada, no ponto, à intermediação da lei complementar e da lei ordinária: análise, a partir daí, dos preceitos impugnados (L� 9�532/1997, arts� 12 a 14): cautelar parcialmente deferida�

1� Conforme precedente no STF (RE 93�770, Muñoz, RTJ 102/304) e na linha da melhor doutrina, o que a Constituição remete à lei ordinária, no tocante à imunidade tributária considerada, é a fixação de normas sobre a constitui‑ção e o funcionamento da entidade educacional ou assistencial imune; não, o que diga respeito aos lindes da imunidade, que, quando susceptíveis de disciplina infraconstitucional, ficou reservado à lei complementar� 2� À luz desse critério distintivo, parece ficarem incólumes à eiva da inconstituciona‑lidade formal argüida os arts� 12 e §§ 2º (salvo a alínea f ) e 3º, assim como o parág� único do art� 13; ao contrário, é densa a plausibilidade da alegação de invalidez dos arts� 12, § 2º, f ; 13, caput, e 14 e, finalmente, se afigura chapada a inconstitucionalidade não só formal mas também material do § 1º do art� 12, da lei questionada�

3� Reserva à decisão definitiva de controvérsias acerca do conceito da enti‑dade de assistência social, para o fim da declaração da imunidade discutida – como as relativas à exigência ou não da gratuidade dos serviços prestados ou à compreensão ou não das instituições beneficentes de clientelas restritas e das organizações de previdência privada: matérias que, embora não suscita‑das pela requerente, dizem com a validade do art� 12, caput , da L� 9�532/1997 e, por isso, devem ser consideradas na decisão definitiva, mas cuja delibação não é necessária à decisão cautelar da ação direta�’

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Ainda nesse sentido, confira‑se o recente precedente:‘CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO� AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO

EXTRAORDINÁRIO� IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. IMPOSTO DE RENDA SOBRE REN-DIMENTO E GANHOS DE CAPITAL. ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL SEM FINS LUCRATIVOS. ARTIGO 12, § 1º, DA LEI 9.532/1997. EFICÁCIA SUSPENSA. ADI 1.802 MC/DF. MEDIDA CAUTELAR. EFEITO ERGA OMNES. 1� Esta Suprema Corte, ao julgar a ADI 1.802 MC/DF, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, até a decisão final da ação direta, a eficácia do § 1º do artigo 12 da Lei 9.532/1997. 2. Conforme dispõe o artigo 11, § 1º, da Lei 9.868/1999, a medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade é dotada de eficácia contra todos. 3� O julgamento de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade permite a análise imediata de recursos que tratem da matéria nela debatida� Precedente� 4� Agravo regimental a que se nega provimento�’ (RE 480�021 AgR, Segunda Turma, Rel� Min� Ellen Gracie, DJE de 8‑2‑2011)�” (Grifo nosso�)

O precedente colacionado pela agravante – RE 611�510 RG, atualmente sob a relatoria da Min� Rosa Weber – diz respeito à incidência do IOF sobre opera‑ções financeiras de curto prazo realizadas pelas pessoas jurídicas abrangidas pela imunidade tributária de que trata o art� 150, VI, c, da CF� A controvérsia ali discutida cinge‑se em saber se o referido imposto estaria ou não abrangido pela imunidade tributária, uma vez que não incide sobre a renda, patrimônio ou serviços dessas entidades, nos termos do § 4º do art� 150 da CF� Confira‑se a ementa da manifestação sobre a repercussão geral:

“TRIBUTÁRIO� IMUNIDADE� ART� 150, VI, C , DA CF� ENTIDADES SINDICAIS, PARTI‑DOS POLÍTICOS, INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO E DE ASSISTÊNCIA SOCIAL SEM FINS LUCRATIVOS� IOF SOBRE APLICAÇÕES FINANCEIRAS DE CURTO PRAZO� EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL�”

Destarte, verifica‑se que o precedente trazido pela UNIÃO é inaplicável ao caso em comento, já que trata de questões diversas, sob fundamento diverso, ou seja, enquanto no primeiro caso se discute se os lucros auferidos pelas enti‑dades de assistência social e educacional em operações financeiras, desde que reaplicados em suas atividades sociais, estariam abrangidos ou não pela imu‑nidade tributária, no segundo se discute a incidência do IOF sobre operações financeiras de curto prazo das referidas entidades�

Outrossim, ad argumentandum tantum, ainda que se reconheça que ques‑tões levantadas guardam certo grau de pertinência, uma vez que de fato existe uma intersecção entre as matérias, sobreleva enfatizar que não houve o prévio debate pelo acórdão recorrido no ponto que somente foi levantado quando da

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AI 749.009 AgR

interposição do presente regimental, e como cediço, o princípio da jura novit curia é inaplicável em sede de recurso extraordinário, assim explicitado o divór‑cio ideológico dos argumentos levantados na petição de agravo regimental e o que foi decidido pelo Tribunal de origem, incide o óbice da Súmula 284 do STF, verbis: É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fun-damentação não permitir a exata compreensão da controvérsia�

Ex positis, NEGO PROVIMENTO ao agravo regimental�É o voto�

EXTRATO DE ATA

AI 749�009 AgR/SP — Relator: Ministro Luiz Fux� Agravante: União (Advogado: Procurador‑Geral da Fazenda Nacional)� Agravada: Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Mogi Guaçu (Advogado: José Reinaldo Nogueira de Oliveira Junior)�

Decisão: A Turma negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator� Unânime�

Presidência do Senhor Ministro Dias Toffoli� Presentes à Sessão os Senhores Ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Rosa Weber� Subprocura‑dora‑Geral da República, Dra� Cláudia Sampaio Marques�

Brasília, 13 de março de 2012 — Carmen Lilian Oliveira de Souza, Coordenadora�

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 795.567 — PR

Relator: O sr. ministro Teori ZavasckiRecorrente: Luiz Carlos de AlmeidaRecorrido: Ministério Público do Estado do Paraná

CONSTITUCIONAL E PENAL� TRANSAÇÃO PENAL� CUMPRIMENTO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO� POSTERIOR DETERMINAÇÃO JUDI‑CIAL DE CONFISCO DO BEM APREENDIDO COM BASE NO ART� 91, II, DO CÓDIGO PENAL� AFRONTA À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL CARACTERIZADA�

1� Tese: os efeitos jurídicos previstos no art� 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória� Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art� 76 da Lei 9�099/1995), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante� As consequências da homo‑logação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo�

2� Solução do caso: tendo havido transação penal e sendo extinta a punibilidade, ante o cumprimento das cláusulas nela estabelecidas, é ilegítimo o ato judicial que decreta o confisco do bem (motocicleta) que teria sido utilizado na prática delituosa� O confisco constituiria efeito penal muito mais gravoso ao aceitante do que os encargos que assumiu na transação penal celebrada (fornecimento de cinco cestas de alimentos)�

3� Recurso extraordinário a que se dá provimento�

RE 795�567

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RE 795.567

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigrá‑ficas, por unanimidade, apreciando o tema 187 da Repercussão Geral, em dar provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator� O Ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso por outros fundamentos� Fixada a tese de seguinte teor: “As consequências jurídicas extra penais, previstas no art� 91 do Código Penal, são decorrentes de sentença penal condenatória� Tal não ocorre, portanto, quando há transação penal, cuja sentença tem natureza meramente homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do acei‑tante� As consequências geradas pela transação penal são essencialmente aque‑las estipuladas por modo consensual no respectivo instrumento de acordo�”

Brasília, 28 de maio de 2015 — Teori Zavascki, Relator�

RELATÓRIO

O sr. ministro Teori Zavascki: Trata‑se, na origem, de procedimento penal instaurado pelo 2º Juizado Especial Criminal da Comarca de Londrina para apurar o cometimento de contravenção penal tipificada no art� 58 do Decreto‑‑lei 3�668/1941 (Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou pra-ticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração) pelo ora recorrente, que teve motocicleta de sua propriedade, supostamente utilizada na execução do ilícito que lhe foi imputado, apreendida por ocasião da lavratura de termo circunstanciado�

Ofertada transação penal pelo representante do Ministério Público que atuou no caso, foi ela acolhida e integralmente cumprida pelo investigado, o que veio a ser reconhecido por sentença que extinguiu sua punibilidade (fls� 108/109), mas não deixou de decretar a perda do veículo antes apreendido, impondo‑lhe a sanção prevista no art� 91, II, a, do Código Penal, com fundamento no art� 779 do Código de Processo Penal, combinado com o art� 1º do Decreto‑lei 3�668/1941�

Contra essa penalidade foi interposta apelação, que restou desprovida pela Turma Recursal Única do Sistema de Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em acórdão assim ementado:

“APELAÇÃO CRIMINAL – CONTRAVENÇÃO PENAL – JOGO DO BICHO – RESTITUIÇÃO DE BEM APREENDIDO – IMPOSSIBILIDADE – BEM OBTIDO POR MEIOS ILÍCITOS E PRÁTICA DE INFRAÇÃO PENAL – CONFISCO – INTELIGÊNCIA DO ART� 1º DO DL Nº

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3668/41 C/C O ART� 91, INCISO II, LETRA “A” DO CÓDIGO PENAL – RECURSO CONHE‑CIDO E DESPROVIDO�”

Após o desprovimento da apelação, foram opostos embargos declaratórios, também rejeitados (fls� 164/165)�

No extraordinário, fundamentado no art� 102, III, a, da Constituição, o recor‑rente alega que o acórdão impugnado teria infringido os incisos LIV, LV, LVII e XXXIX do art� 5º da CF, sob a consideração de que (i) o direito de propriedade do recorrente teria sido atingido sem a observância do devido processo legal, pois o acórdão recorrido teria infligido uma sanção penal sem que houvesse sido instaurada uma ação penal para apuração dos fatos narrados no termo circunstanciado, o que atentaria contra as garantias do contraditório e da ampla defesa; (ii) a aplicação de efeitos equivalente aos da confissão ao ato de transação antagonizaria a presunção de inocência; e (iii) “a única sentença condenatória capaz de produzir o confisco de bem como efeito é a condenatória” (fl. 180), não sendo possível extrair‑se essa mesma consequência de um ato transacional�

Inadmitido na origem, foram os autos alçados a este Supremo Tribunal Federal por meio de agravo de instrumento�

Submetido ao Plenário Virtual em 4‑9‑2009, recebeu o caso crivo positivo quanto à existência de repercussão geral, tendo sido capitulado no sistema eletrônico como “tema 187 – imposição de efeitos próprios de sentença penal condenatória à transação penal prevista na Lei nº 9.099/1995”�

Findo o juízo de repercussão geral, foi provido o agravo, determinando sua conversão em recurso extraordinário, após o que foi o processo remetido ao Procurador‑Geral da República, cujo parecer é pelo provimento do recurso�

É o relatório�

VOTO

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): 1� Os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso estão devidamente atendidos�

2� Segundo consta dos autos, a Promotoria de Investigação Criminal de Londrina do Ministério Público do Estado do Paraná desencadeou investiga‑ção objetivando apurar a exploração ilícita de jogos de azar, dentre eles aquele conhecido como “jogo do bicho”, no interior do Município� No curso das dili‑gências, constatou‑se que a exploração do jogo na cidade se servia da atua‑ção de diversos indivíduos conhecidos como “recolhedores”, responsáveis por angariar as apostas em diferentes localidades mediante o uso de motocicletas� Identificados esses veículos, o MPE requereu a sua busca e apreensão, o que foi

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deferido pelo 2º Juizado Especial Criminal de Londrina (fl� 111), resultando no comparecimento espontâneo do ora recorrente à autoridade policial compe‑tente, que lavrou na ocasião o termo circunstanciado 514/2008 (fl� 15), pelo qual se formalizou a entrega da motocicleta e se firmou compromisso de posterior comparecimento ao juízo criminal�

Durante essa audiência, o representante do Ministério Público Estadual, entendendo presentes os requisitos legais do art� 76, § 2º, I a III, da Lei 9�099/1995, ofertou proposta de transação penal (fl� 27), pela qual se haveria de impor, uni‑camente, o pagamento de prestação pecuniária equivalente a 5 (cinco) cestas de produtos alimentícios e/ou medicamentosos, medida restritiva de direitos com a qual anuiu o então noticiado, e que restou devidamente homologada pelo juízo�

Após a comprovação do integral cumprimento dessas prestações, foi profe‑rida sentença extintiva da punibilidade do ora recorrente� Nada obstante esse desfecho, o juízo acolheu manifestação apresentada pelo MPE para, na mesma sentença, decretar o perdimento da motocicleta que havia sido apreendida quando da apresentação do noticiado à autoridade policial, fazendo‑o com as seguintes considerações:

“De outro lado, não obstante os respeitáveis entendimentos doutrinários, juris‑prudenciais e judiciais colacionados às fls� 44/56 pela ilustre Drª Defensora, tenho que, efetivamente, razão assiste ao Ministério Público em sua fundamen‑tação apresentada no douto parecer ministerial de fls� 33/37, cujos fundamentos peço vênia para acolher e adotar como razões de decidir, o qual passa a fazer parte integrante desta e, como corolário, DECRETO A PERDA de uma (01) moto‑cicleta Honda CG 125 FAN, cor azul, placas AMV‑6726, ANO/MODELO 2005, CRLV 7244042460 em nome do noticiado Luiz Carlos de Almeida, apreendida à fl� 05, em favor da União, isso com supedâneo no artigo 779, do Código de Pro‑cesso Penal (por analogia, em face da extinção da punibilidade), combinado com o artigo 1º, do Decreto‑lei nº 3�688/41, a fim de que seja levada a leilão público posteriormente (CPP, arts� 122 e 133), tendo em vista estar relacionada à prática contravencional de jogo de azar, conforme documentos juntados às fls� 59/108 e, dessa forma, não há de se falar em restituição�

Ainda em reforço de fundamentação, acrescento que, a egrégia Turma Recur‑sal Única do Estado do Paraná, vem reconhecendo a possibilidade de perda de bens envolvidos em contravenções penais, conforme se verifica, dentre outros, nos seguintes julgados: Acórdão nº 3�025, de 30‑8‑2004; Acórdão nº 10�371, de 27‑1‑2006; Acórdão nº 10�953, de 10‑3‑2006�

Ademais, a perda do bem apreendido também se impõe porque, ao contrário do que alegou a ilustre Drª Defensora, incide na espécie a alínea b (e não a alínea a), do inciso I, do artigo 91, do Código Penal, haja visto o efeito protetivo auferido

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pelos agentes envolvidos com a prática da contravenção penal em testilha�” (Fls� 113/114�)

O recurso contra essa decisão não teve êxito perante a Turma Recursal Única do Sistema de Juizados Especiais do TJPR, que, mediante pronuncia‑mento unânime, manteve o decreto de perdimento do veículo enfatizando o seguinte fundamento:

“2� Não faz jus o Apelante à restituição dos bens apreendidos que constituem instrumento ou produto do crime, em caso de transação penal, vez que a sen‑tença homologatória desta transação tem natureza condenatória, ainda que sumária ou imprópria� Aplicável, portanto, o art� 91, inciso II, letras a e b do Código Penal�” (Fl� 155�)

Embora tenha sido instada, inclusive mediante a oposição de embargos decla‑ratórios, a se pronunciar sobre a compatibilidade do entendimento com as cláu‑sulas constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência, a Turma Recursal se negou a fazê‑lo� A alegada infringência a estes princípios é que move a irresignação sob exame, para a qual o confisco só poderia ter sido determinado por efeito de sentença condenatória�

3� A pretensão recursal deve ser acolhida�A Lei 9�099/1995 introduziu no sistema penal brasileiro o instituto da tran‑

sação, que, nos termos do seu artigo 76 e §§, permite seja a persecução penal dispensada pelo magistrado em crimes de menor potencial ofensivo, desde que o suspeito da prática do delito concorde em se submeter, sem qualquer resistência, ao cumprimento de uma pena restritiva de direito ou multa que lhe tiver sido ofertada por representante do Ministério Público em audiência�

Ao assim dispor, a lei relativizou, de um lado, o princípio da obrigatoriedade da instauração da persecução penal em crimes de ação penal pública de menor ofensividade, e, de outro, autorizou o investigado a dispor das garantias pro‑cessuais penais que o ordenamento lhe confere�

As consequências geradas pela transação penal da Lei 9�099/1995 hão de ser essencialmente aquelas estipuladas no instrumento do acordo (inclusive, como poderia ser o caso, a respeito do destino do “instrumento do crime”)� Além do que está no acordo, o único efeito acessório gerado pela homologação deste ato será o previsto ao final do § 4º do art� 76 da Lei 9�099/1995, segundo o qual ela será “registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos”� Os demais efeitos penais e civis decorrentes das condenações penais não serão constituídos (§ 6º do art� 76)�

Realmente, a sanção imposta com o acolhimento da transação não decorre

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de qualquer juízo estatal a respeito da culpabilidade do investigado, já que é estabelecida antes mesmo do oferecimento de qualquer denúncia, da produção de qualquer prova e da prolação de qualquer veredicto� Trata‑se de ato judicial homologatório, expedido de modo sumário em obséquio a um interesse público na célere resolução de conflitos sociais de diminuta lesividade para os bens jurídicos tutelados pelo estatuto penal�

Justamente porque a homologação da transação prescinde da instauração de um processo formal de apuração de responsabilidade criminal, não é dado ao juiz, em caso de descumprimento dos termos do acordo, fazer substituir a medida restritiva de direito consensualmente fixada por uma pena privativa de liberdade compulsoriamente aplicada�

A propósito, o Supremo Tribunal Federal tem farta jurisprudência, inclusive reafirmada em caso com repercussão geral RE 607�072 QO, Rel� Min� Cezar Peluso, DJE de 26‑2‑2010, cuja inspiração remete ao seguinte leading case, da relatoria do Min� Marco Aurélio:

HABEAS CORPUS – LEGITIMIDADE – MINISTÉRIO PÚBLICO� A legitimidade para a impetração do habeas corpus é abrangente, estando habilitado qualquer cidadão� Legitimidade de integrante do Ministério Público, presentes o múnus do qual investido, a busca da prevalência da ordem jurídico‑constitucional e, alfim, da verdade� TRANSAÇÃO – JUIZADOS ESPECIAIS – PENA RESTRITIVA DE DIREITOS – CONVERSÃO – PENA PRIVATIVA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE – DESCABIMENTO� A transformação automática da pena restritiva de direitos, decorrente de tran‑sação, em privativa do exercício da liberdade discrepa da garantia constitucional do devido processo legal� Impõe‑se, uma vez descumprido o termo de transação, a declaração de insubsistência deste último, retornando‑se ao estado anterior, dando‑se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração de inquérito ou propor a ação penal, ofertando denúncia� (HC 79�572, Relator(a): Min� MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 29‑2‑2000, DJ de 22‑2‑2002�)

O voto do Relator deixou claro que a transação celebrada sob o pálio da Lei 9�099/1995 não possui força condenatória:

“Essa conclusão decorre do fato de a conversão das penas restritivas de direitos em penas restritivas do exercício da liberdade, tal como prevista no artigo 45 do Código Penal, pressupor, sempre, o regular processo, a regular tramitação da ação penal, a persecução criminal nos moldes contemplados pela ordem jurídica em vigor� Dá‑se a instrução penal, viabilizado o direito de defesa, e a prolação de sentença condenatória, vindo a ocorrer, aí sim, em passo seguinte, a conde‑nação� Aliás, o princípio da razoabilidade, a razão de ser das coisas, cuja força é insuplantável, direciona no sentido de a conversão pressupor algo já existente,

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e isso diz respeito à pena privativa de liberdade� Vale considerar, portanto, que a substituição faz‑se tendo em conta o decreto condenatório de maior gravame� Isso não se verifica quando em jogo a transação prevista no art� 76 da Lei 9�099/1995� A proposta precede, até mesmo, a formalização de denúncia� Tem a sentença respectiva força de título executivo‑judicial� Entrementes, fica submetido à con‑dição resolutiva estampada no cumprimento do que pactuado� Salta aos olhos a impossibilidade de imprimir‑se, à espécie, caráter automático, queimando‑‑se fase que a Carta da República registra como indispensável a que alguém perca a liberdade� Não é demais considerar a natureza imperativa, o caráter, até mesmo, de ordem pública dos preceitos insertos nos incisos LIV e LVII do artigo 5º da Constituição Federal, afastando, por presunção de mostrar‑se inteiramente válida, manifestação de vontade que implique menosprezo ao que previsto: (���)

Disseram bem os Autores supramencionados que o termo de homologação do acordo não ganha contornos de sentença condenatória, muito menos quanto ao exercício da liberdade de ir e vir� Esse enfoque é o mais uniforme, o mais consentâneo com a nossa ordem jurídico‑constitucional� Valorize‑se o instituto da ação penal regida pela lei dos juizados especiais, sem, contudo, chegar‑se à extravagância contrária ao Estado Democrático de Direito, como é a relativa a ter‑se alguém privado do exercício da liberdade sem o devido processo, sem a oportunidade de defender‑se, presentes o contraditório e a prova de culpa, sempre a cargo do Estado acusador�”

Esses mesmos fundamentos, mutatis mutandis, haverão de ter aplicação aqui�As consequências jurídicas extrapenais previstas nos parágrafos do art� 91 do

Código Penal, dentre as quais a do confisco de instrumentos do crime (art� 91, II, a), de seu produto ou de bens adquiridos com o seu proveito (art� 91, II, b), só podem ocorrer como efeito acessório, reflexo ou indireto de uma condenação penal, nos termos do que consta no caput do dispositivo, a saber:

Art� 91� São efeitos da condenação:I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro

de boa‑fé:a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico,

alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito

auferido pelo agente com a prática do fato criminoso�

Foi por esta razão, aliás, que, no julgamento do HC 83�598, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, DJ de 14‑11‑2003, a Primeira Turma deste Supremo Tribunal Federal anulou ato judicial que condicionava a eficácia de uma transação penal à compro‑vação da licitude de bens apreendidos com fundamento no art� 91 do Código Penal�

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Eis a ementa desse julgado:

EMENTA: Transação penal: pretenso condicionamento de sua eficácia à compro‑vação da licitude da origem de bens apreendidos: inadmissibilidade: consequente trancamento da ação penal proposta a pretexto do não aperfeiçoamento da tran‑sação� (HC 83�598, Relator(a): Min� SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 21‑10‑2003, DJ de 14‑11‑2003�)

Assim, apesar de tais efeitos não possuírem natureza penal propriamente dita, não há dúvidas de que constituem eles uma drástica intervenção estatal na realidade patrimonial dos acusados, razão pela qual sua imposição somente poderá ser viabilizada mediante a observância de um devido processo, que garanta ao acusado a possibilidade de exercer seu direito de resistência por todos os meios colocados à sua disposição pela legislação�

Embora se operem ex lege, as medidas acessórias previstas no art� 91 do Código Penal exigem a formação de um juízo prévio a respeito da culpa do investigado, sem o que haverá evidente ofensa ao devido processo legal, como já decidiu a Primeira Turma desta Suprema Corte no seguinte caso:

EMENTA: 1� Arma de fogo apreendida: a decisão que, mesmo comprovada a pro‑priedade e a autorização do porte, decreta a perda da arma em favor do Estado, com fundamento na segurança pública, impõe inconcebível pena acessória – CP, art� 91, II, a – contra quem, além de não ter sido condenado, sequer foi sujeito passivo em ação penal – e contraria o artigo 5º, XXII, LIV e LV, da Constituição Federal� 2� RE provido, sem prejuízo da exigência, quando da devolução da arma, dos requisitos legais então vigentes� (RE 362�047, Relator(a): Min� SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 14‑9‑2004, DJ de 8‑10‑2004�)

A imposição da medida confiscatória sem processo revela‑se antagônica não apenas à acepção formal da garantia do art� 5º, LIV, da CF, como também ao seu significado material, destinado a vedar as iniciativas estatais que incorram, seja pelo excesso ou pela insuficiência, em resultado arbitrário� No particular, a exces‑sividade do decreto de confisco reside no fato de que a aceitação da transação reverteu em claro prejuízo daquele a quem deveria beneficiar (o investigado), pois produziu contra ele um efeito acessório – a perda da propriedade de uma motocicleta – que se revelou muito mais gravoso do que a própria prestação principal originalmente avençada (pagamento de 5 cestas de alimentos)�

Em suma, ao validar o decreto de confisco do veículo pertencente ao ora recorrente, a Turma Recursal o privou da titularidade de um bem sem lhe opor‑tunizar o exercício dos meios de defesa legalmente estabelecidos, incorrendo,

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com isso, em manifesta transgressão às garantias constitucionais dos arts� 5º LIV, LV, LVII e XXII�

4� A tese de repercussão geral a ser afirmada é, portanto, a seguinte: os efei‑tos jurídicos previstos no art� 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória� Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art� 76 da Lei 9�099/1995), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qual‑quer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante� As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo�

5. Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso extraordinário�

É o voto�

VOTO

O sr. ministro Roberto Barroso: Presidente, eu estou de acordo com o Relator e acompanhando com a observação de que o bem envolvido era uma motoci‑cleta; portanto, um bem, em si, lícito� Se o produto fosse ou se o bem fosse ilícito, fosse droga ou se fosse uma máquina de caça‑níqueis, eu acho que o tratamento seria diferente� Mas, na hipótese, eu não tenho hesitação em acompanhar Sua Excelência�

PEDIDO DE VISTA

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, egrégia Corte, ilustre represen‑tante do Ministério Público, Senhores Advogados presentes, eu, num primeiro momento, tive uma certa dificuldade na assunção dessa tese� Isso porque não se pode, por exemplo, equiparar um cidadão que fez uma transação penal, engen‑drou uma transação penal, com aquele que é absolvido, como se ele tivesse sido exonerado do delito que praticara�

Por essa razão é que há uma divisão na doutrina sobre a natureza jurídica dessa sentença� E, no meu modo de ver, ela é mais uma condenatória impura ou imprópria, porque, com a devida vênia dos entendimentos em contrário, há, efetivamente, a inflicção de uma sanção, pode ser até entrega de cesta básica, mas que é uma sanção é; não se pode equiparar quem é obrigado a entregar uma cesta básica com uma pessoa que teve exonerada a sua responsabilidade penal�

Por outro lado, quer dizer, mercê de ser uma sentença condenatória impura, essa da transação penal – porque quem é absolvido não faz transação, quem é

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inocente não faz transação, e, portanto, há uma inflicção da sanção –, eu tenho dúvidas sobre essa devolução, sobre se ela deve ser objeto de um processo pró‑prio, porque é um efeito da condenação penal, e, portanto, não precisa nem ser requerido pelo Ministério Público, a perda dos bens, objeto do crime e também os instrumentos do crime�

No caso específico, a motocicleta é um bem que está dentro do comércio, não é ilícito� Sucede que ele era um recolhedor de apostas de contravenção e utilizava essa motocicleta para esse fim�

Então, como é repercussão geral, eu não quero me comprometer com esta tese de que, havendo transação, devolve‑se tudo, porque, amanhã ou depois, estarão devolvendo máquina de caça‑níquel� Evidentemente, a máquina de caça‑níquel, se ela entrar regularmente no País onde se permite esse tipo de atividade, ela também é um bem ilícito�

De sorte que, como no caso específico – mas eu vou fazer essa ressalva, porque acho importante como jurisprudência para as Turmas – não há uma prova inequívoca de que essa motocicleta era única e exclusivamente para recolher as apostas, muito embora ela tenha sido apreendida no momento do cometi‑mento da infração�

Então, ressalvando que a prova não é inequívoca nesse sentido dos autos – e não me comprometendo com a tese de que quem engendra transação pode ter os bens de volta –, eu acompanho o Relator�

O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Eu acho muito importante essa sua observação, porque Vossa Excelência���

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): CANCELADO�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Em razão das consequências

que o instituto da repercussão geral poderá trazer caso o resultado do julga‑mento se encaminhe para aquilo que���

O sr. ministro Teori Zavascki: CANCELADO�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Pois não, Ministro�O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Eu gostaria de fazer um esclareci‑

mento, Senhor Presidente�A questão é saber se a perda dos bens é um efeito necessário, da transação�

Isso não quer dizer que não possa se perder o bem� O que está se dizendo aqui é que uma sentença que homologa transação não tem o mesmo efeito necessário, acessório de uma sentença condenatória� Essa é a tese�

O sr. ministro Luiz Fux: Então, há divergência, Senhor Presidente; há diver‑gência, porque, no meu modo de ver, quem engendra uma transação não pode

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ser, com a devida vênia, equiparado a quem não teve contra si movida uma ação penal, e também não foi absolvido� Há uma inflicção de sanção na transação�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Qual é a divergência?O sr. ministro Luiz Fux: A divergência é que, no meu modo de ver, com a

devida vênia de Vossa Excelência, a sentença de transação penal não é aquela homologação do cível, transaciona em relação à sanção� Há uma transação� Qual é a pena que vai ser cumprida? Vai haver a entrega de cesta básica� Então, no meu modo de ver, com a devida vênia, essa transação não é meramente uma homologação� Ela tem uma natureza de uma sentença condenatória imprópria, no meu modo de ver, com a devida vênia�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Vossa Excelência defende a tese de que, da sentença homologatória, decorrem os efeitos acessórios do Art� 91�

O sr. ministro Luiz Fux: Exatamente�O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Então, Vossa Excelência tem de

negar provimento�O sr. ministro Luiz Fux: Agora, com a intervenção de Vossa Excelência, eu

realmente verifico que há essa divergência� Se a tese é essa, então, eu nego pro‑vimento e agradeço ao Ministro Teori por ter me alertado que eu votava em sentido diferente�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: É�Basicamente, Ministro Celso, qualquer que seja a classificação – quinária,

trinária –, na verdade, essa sentença de transação, ela impõe uma sanção�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: Ela não pode ser considerada uma sentença decla‑

ratória, uma sentença constitutiva, uma sentença sem eficácia penal�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: E o que tem ocorrido na prática – essa foi a razão pela

qual suscitei essa questão? O que tem havido na prática? Na prática, o que tem ocorrido é que os juízes se deparam com a dificuldade de devolução desses bens, que são ou produtos do crime ou são instrumentos utilizados no crime� Como justificaríamos a devolução, por exemplo? Vou reiterar, porque é considerado uma infração de menor potencial ofensivo� Como vamos devolver uma máquina de caça‑níqueis, tendo havido uma transação penal? Então, a única maneira de não se admitir essa devolução seria considerar que a transação penal, ela se adstringe exatamente a uma convenção, a uma bargaining em relação à sanção�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: �

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Apenas, agora, os efeitos secundários, que o Ministério Público sequer pre‑cisa pleitear, uma perda dos bens, objeto da infração, porque a infração houve; tanto houve que se fez uma transação� Não se pode equiparar esse transator a uma pessoa que não fez nada�

O sr. ministro Marco Aurélio: Mas a perda pressupõe condenação�Indaga‑se: no processo‑crime, é possível condenar‑se alguém pela admissão

pura e simplesmente do crime? A resposta é negativa� A confissão não surte efeitos como se se estivesse no campo cível� Então, por isso, grande parte da doutrina sustenta que se tem homologação, não uma condenação – tanto que há, inclusive pedagogicamente, a previsão de que o fato não vai para a ficha do que seria acusado –, não existindo, também, efeitos cíveis� Tem‑se uma nítida decisão declaratória constitutiva a partir de uma transação, de um acordo� Não é dado assentar que o juízo de culpabilidade fica formado�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: E, Ministro Celso, Vossa Excelência que também

pertenceu ao Ministério Público, para nós, era uma regra sacra aquela de nulla poena sine crimine� Então, se não há crime, não há pena; agora, se há pena, é porque houve um crime�

Então, eu não consigo conciliar���O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Aqui, há quase que um reco‑

nhecimento, por parte do acusado, de que���O sr. ministro Luiz Fux: Porque ele vai transacionar por isso�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Se ele transacionou é porque

ele admite; ele não quer sequer correr o risco do desassossego no processo cri‑minal� Não é?

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro, Vossa Excelência me permite?Se assentarmos que há uma condenação penal, essa ocorrerá sem observân‑

cia de algo imperativo, que é o devido processo legal, sem a defesa por parte do acusado�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Joaquim Barbosa (Presidente): Devido processo legal há,

Ministro�O sr. ministro Marco Aurélio: Não é o fato���O sr. ministro Luiz Fux: A defesa é a máxima�O sr. ministro Marco Aurélio: Não é o fato de haver transigido, haver acei‑

tado a proposta, em si, que levará à conclusão, sob a visão técnica penal, de que é culpado, que admitiu a culpa�

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O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Celso, Vossa Excelência me permite?Senhor Presidente, eu verifico que, abrindo uma divergência, surge um pro‑

blema de caráter geral, porque isso é uma repercussão geral� Isso significará dizer que, em todos os casos que nós nos depararmos com uma transação, vamos ter de cumprir que devemos devolver os bens� Só que isso hoje é um problema de política criminal muito grave; há vários bens apreendidos e vários instrumentos de crime que, com essa decisão, deverão ser devolvidos pela polícia, com auto‑rização judicial ou não, porque ainda estão em fase de inquérito�

Então, se Vossas Excelências me permitem, como eu me deparei com essa questão hoje pela manhã, diante da gentileza do Ministro Teori, que me ofereceu as suas digressões para eu analisar, eu acho que valeria a pena uma ponderação sobre esse tema, porque talvez uma solução açodada da minha parte possa levar a uma repercussão que nós não sabemos nem o tamanho dela�

O sr. ministro Marco Aurélio: De qualquer forma, o juízo de culpa é indis‑pensável à perda dos bens�

O sr. ministro Luiz Fux: Eu vou levar em consideração essa sua informação�O sr. ministro Marco Aurélio: A pressupor um pronunciamento condena‑

tório penal� Existem três incisos, no principal rol das garantias constitucionais, do artigo 5º, que direcionam à conclusão de que não há uma sentença, no caso, condenatória, mas sim declaratória constitutiva, em termos de homologação da transação penal�

Quais são os incisos? O inciso LIV:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Na espécie, é observado o processo legal? Não� A resposta é negativa�Segundo inciso:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

No caso, não se tem, aqui, um contraditório propriamente dito, o que há é uma proposta de transação que é aceita, por isso ou por aquilo, por aquele que estaria envolvido no delito ou no cometimento criminal�

Por último, o inciso LVII – vou pular o LVI:

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LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Repito, a perda dos bens, extravasando, portanto, os limites do próprio acordo homologado, pressupõe uma decisão condenatória penal após a observância do devido processo legal, proporcionando‑se ao acusado, à exaustão, o direito de defesa�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu também queria observar o seguinte, mais ou menos nessa linha que o Ministro Celso de Mello e também o Ministro Teori Zavascki trilharam, que, quando o juiz homologou a transação, ele extin‑guiu a punibilidade� Isso, a meu ver, é mais um indício de que não houve uma decisão condenatória�

Portanto, em não havendo uma condenação na seara criminal, não há, a meu ver, como confiscar um bem, se esse bem tiver sido legitimamente adquirido, sem o devido processo legal e os cuidados que a Constituição assegura�

O sr. ministro Luiz Fux: Eu só relembraria, por exemplo, que esses instru‑mentos utilizados no crime normalmente são instrumentos adquiridos legal‑mente, com nota fiscal, pagamento de tributos e tudo� Eu só não fico confortável exatamente com essa situação sistêmica de que poderá haver uma devolução em massa de vários produtos do crime e de instrumentos de crime que estão apreendidos, cujos processos estão em tramitação� Por isso é que eu ia pedir vista, só para ficar confortável�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Eu me sinto confortado com a vista de Vossa Excelência�

O sr. ministro Marco Aurélio: Vamos acreditar um pouco no Ministério Público, na proposta efetivada!

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Ricardo Lewandowski: Muito oportuno�

EXTRATO DE ATA

RE 795�567/PR — Relator: Ministro Teori Zavascki� Recorrente: Luiz Carlos de Almeida (Advogados: Jefferson Kaminski e outros)� Recorrido: Ministério Público do Estado do Paraná (Procurador: Procurador‑Geral de Justiça do Estado do Paraná)�

Decisão: Após os votos dos Ministros Teori Zavascki (Relator), Roberto Barroso e Rosa Weber, dando provimento ao recurso, pediu vista dos autos o Ministro Luiz Fux� Falou, pelo Ministério Público Federal, o Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador‑Geral da República�

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Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Procurador‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros�

Brasília, 29 de maio de 2014 — Luiz Tomimatsu, Assessor‑Chefe do Plenário�

ESCLARECIMENTO

O sr. ministro Luiz Fux: Presidente, eu, aqui, estou citando a doutrina do tema, estou entendendo que, para que haja a transação penal, é preciso que previa‑mente se exercite a ação penal� E, acaso não se chegue à conclusão da transação penal, efetivamente haverá a imposição de uma sanção penal� Por força desses princípios, eu entendo que é possível a perda dos instrumentos do ilícito, como, por exemplo, ocorre com a contravenção do “jogo do bicho”� Só que o confisco, esse sim, realmente, demandaria uma sentença transitada em julgado e, aí, não se aplicaria a transação penal�

Então, eu entendo que a natureza jurídica da decisão que homologa a tran‑sação penal é de natureza condenatória, muito embora, no caso em espécie, eu entenda que o recurso deva ser provido para determinar a devolução do bem apreendido, tendo em vista que a posse de uma motocicleta não é ilícita� Quer dizer, ela não é um instrumento específico para a prática de um determinado delito� Mas eu assento a natureza condenatória da sentença homologatória da transação penal porque ela tem todos os efeitos de uma decisão condenatória, porque, se não houver transação, vai ser fixada a sanção� Então, eu entendo que há essa��� mas, como o recurso parte da premissa de que não é uma sen‑tença condenatória e, por isso, devolve‑se, eu entendo que esse raciocínio não se adéqua, porque, mesmo na contravenção penal, que é de menor potencial ofen‑sivo, apreendem‑se os bens que foram utilizados na prática do ilícito� De sorte que estou dando provimento para determinar a devolução�

DEBATE

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): O Ministro Teori também determinava a devolução�

O sr. ministro Luiz Fux: Só que o fundamento é um pouco diferente�O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): É, eu acho que a distinção é muito

importante� Eu acho que não é tão simples assim� O Ministro Fux entende que

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a transação penal equivale a uma sentença condenatória� A tese que eu defendi, aqui, é exatamente ao contrário: justamente porque não é sentença condena‑tória, ela não gera os efeitos acessórios da sentença condenatória� Então, para efeito de tese, isso aqui é fundamental�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Ou seja, ela homologa um acordo entre o Ministério Público e o réu, é isso? É homologatória e não condenatória�

O sr. ministro Luiz Fux: Não, mas isso não é tão simples assim�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Celso, apenas uma observação� Não há

uma interdição legal para que não se permita nova transação penal num deter‑minado lapso de tempo?

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�

ADIAMENTO

O sr. ministro Luiz Fux: Ministro Celso, Vossa Excelência tem razão� Eu procurei não ler nenhum trecho, mas a matéria realmente é bastante complexa e contro‑vertida� Eu tentei minimizar, mas na verdade o tema é controvertido� Eu tenho a impressão de que mereceria uma apreciação com o Plenário completo��� Apenas, eu reconheço que Vossa Excelência tem razão quanto à complexidade do tema e eu propus de maneira muito simples assim���

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): A impressão que eu tenho é que a transação da Lei 9�099/1995 equivale, no campo penal, à conciliação na área cível, em que há uma composição das partes, que é homologada pelo juiz� Portanto, realmente faz sentido atribuir a essa decisão uma natureza homo‑logatória, embora Vossa Excelência também tenha toda razão, porque ela não deixa de ter um caráter impositivo�

O sr. ministro Luiz Fux: Se não aceitar���O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Bom, o que fazemos?

Aguardamos?O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�A sra. ministra Cármen Lúcia: Talvez indicar adiamento�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Sim, indicar o adiamento,

então�O sr. ministro Luiz Fux: É, está bem� Está ótimo�A sra. ministra Cármen Lúcia: E aí o Ministro volta com a leitura integral

do voto�

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O sr. ministro Luiz Fux: Está ótimo, Presidente�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Então fica indicado o

adiamento por parte do Ministro Luiz Fux, que trouxe a vista�

EXTRATO DE ATA

RE 795�567/PR — Relator: Ministro Teori Zavascki� Recorrente: Luiz Carlos de Almeida (Advogados: Jefferson Kaminski e outros)� Recorrido: Ministério Público do Estado do Paraná (Procurador: Procurador‑Geral de Justiça do Estado do Paraná)�

Decisão: Indicado adiamento� Ausentes, nesta assentada os Ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli�

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Procurador‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros�

Brasília, 20 de maio de 2015 — Fabiane Pereira de Oliveira Duarte, Assessora‑‑Chefe do Plenário�

VOTO-VISTA

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO� REPERCUSSÃO GERAL� PENAL E PRO‑CESSO PENAL� TRANSAÇÃO PENAL� PERDA DOS INSTRUMENTOS DO CRIME CUJA POSSE SEJA ILÍCITA E PERDA DOS OBJETOS OBTIDOS COM A PRÁTICA CRIMINOSA APREENDIDOS EM PODER DO APENADO: EFEITO AUTOMÁTICO DA CONDENAÇÃO PREVISTO NO ART� 91, II, DO CÓDIGO PENAL� SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA TRANSAÇÃO� NATUREZA JURÍDICA CONDENATÓRIA� REPRODUÇÃO DE TODOS OS EFEITOS QUE NÃO TENHAM SIDO EXCLUÍDOS PELA LEI 9�099/1995� CONDENAÇÃO MEDIANTE PROCEDIMENTO DE RESO‑LUÇÃO ALTERNATIVA DE CONFLITOS: DIREITO PENAL DE SEGUNDA VELOCI-DADE� DESÍGNIO DO ART� 98, I, DA LEI MAIOR� OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA UMA VEZ OBEDECIDOS OS PARÂMETROS LEGAIS (LEI 9�099/1995 E, SUB‑SIDIARIAMENTE, DO CÓDIGO PENAL E DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL)� CONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DE PENA RESTRITIVA DE DIREITOS MEDIANTE TRANSAÇÃO E DA CONSEQUENTE APLICAÇÃO DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO� PREVISÃO LEGAL DA APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO PENAL E DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL AO PROCEDIMENTO DOS JUIZA‑DOS: ART� 92 DA LEI 9�099/1995� OPERATIVIDADE EX LEGE DOS EFEITOS

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AUTOMÁTICOS DA CONDENAÇÃO� DESNECESSIDADE DE DECLARAÇÃO NA SENTENÇA� RESTITUIÇÃO DO BEM APREENDIDO AO SEU LEGÍTIMO TITU‑LAR OU PERDA EM FAVOR DA UNIÃO� NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA DO PRO‑CEDIMENTO ESTABELECIDO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (ARTIGO 118 E SEGUINTES)� CONTRAVENÇÕES PENAIS: SUBSUNÇÃO ÀS NORMAS GERAIS DO CÓDIGO PENAL, NOS TERMOS DO ART� 1º DO DEC�‑LEI 3�688/1941 (LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS)� DISTINGUISHING: INSTRUMENTOS OU BENS CUJA POSSE LÍCITA SEJA ATRIBUÍVEL AO CONDENADO� OBRIGATORIEDADE DA RESTITUIÇÃO� TESE FIRMADA: CONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DOS EFEITOS AUTOMÁTICOS DA CONDENAÇÃO, ESTABELECIDOS NO ART� 91, II, DO CÓDIGO PENAL, À SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA TRANSAÇÃO PENAL, TENDO EM VISTA SUA NATUREZA CONDENATÓRIA, AUSENTE VIOLA‑ÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA, DO CONTRADITÓRIO E DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, OBSERVADAS AS NORMAS DA LEI 9�099/1995 E, SUBSIDIARIAMENTE, CÓDIGOS PENAL E DE PROCESSO PENAL� RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO�

1� A natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal e os seus efeitos jurídicos na esfera dos sujeitos ativos do delito de menor potencial ofensivo é tema que consubstancia repercussão geral, posto gravitar em torno de princípios constitucionais que informam o direito penal e o direito processual penal�

2� A doutrina do tema se divide entre os que consideram que a sentença homologatória da transação penal não ostenta natureza absolutória nem condenatória e, de outro lado, os que afirmam tratar‑se de condenação, despida de seus efeitos clássicos, a saber: não influi na configuração da reincidência ou de maus antecedentes e não constitui título executivo no juízo cível�

3� A natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal, sobre ser absolutória ou condenatória, interfere, v.g., na solução acerca dos objetos do crime apreendidos em poder do apenado, além da influên‑cia na interrupção da prescrição, no cabimento de revisão criminal, na possibilidade de processar o apenado novamente pelo mesmo fato, etc�

4� A natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal pressupõe que seja considerado o principal elemento que a constitui: a aplicação de uma sanção penal ao autor do crime de menor potencial ofensivo levado à apreciação do Judiciário�

5� A dogmática processual e a exegese das normas legais sobre o thema iudicandum conduzem à conclusão de que a aplicação de uma sanção

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penal a ser cumprida pelo apenado atribui à sentença natureza condena‑tória, ainda que desprovida de alguns dos efeitos da condenação criminal tradicional, na pré‑compreensão da Corte incumbida da uniformização da exegese acerca das “leis penais” em sentido lato, o Superior Tribunal de Justiça� Precedentes�

6� O reconhecimento da natureza condenatória da sentença homologa‑tória da transação penal chancelada pelo Judiciário não consubstancia, por si só, violação à Constituição Federal, tendo em vista o que previsto no texto art� 98, I, da Lei Maior, qual a resolução de conflitos penais por meio do instituto da transação penal�

É matéria devidamente assente em nosso direito a compreensão de que a Constituição Federal admite a aplicação imediata da pena restritiva de direitos ao denominado autor do fato, observado o procedimento esta‑belecido na Lei 9�099/1995� Firmou‑se na jurisprudência pátria o enten‑dimento de que a imposição da sanção penal, por meio do procedimento iniciado com o exercício do nolo contendere, não revela qualquer violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa ou da presunção de inocência�

7� A transação penal é um instituto típico do Direito criminal de Segunda Velocidade, fenômeno de abrangência transnacional caracte‑rizado pela drástica redução da intensidade da pena aplicada a pequenos delitos, combinada com uma diminuição das formalidades processuais necessárias à resposta estatal a estes crimes�

8� Os princípios clássicos do processo penal, concebidos para prote‑ger a esfera de liberdade dos indivíduos contra a gravidade da sanção penal imposta pelo Estado a grande parte dos delitos – punidos com longas penas de reclusão –, tornam‑se mitigados quando estão em jogo sanções não privativas de liberdade, que revelam minimalismo na inter‑venção estatal sobre a situação jurídica, familiar, profissional e pessoal do apenado�

9� O instituto da transação penal se inscreve, simultaneamente, no movimento internacional em prol da resolução alternativa de litígios em matéria penal, que visa conferir maior atenção às vítimas dos delitos, ocupando‑se do rápido atendimento à sua demanda por justiça�

Em razão da grande mudança constituída pela solução do delito mediante transação penal, produziram‑se algumas dificuldades de clas‑sificação e interpretação dos novos instrumentos jurídicos criados pela Lei 9�099/1995, em sede jurisprudencial e doutrinária�

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11� O Direito Penal, regido, por excelência, pelo princípio da legalidade, conduz ao entendimento de que a exclusão, pelo legislador, de alguns dos efeitos da condenação, confirma o entendimento de que a sentença homologatória possui natureza condenatória, desprovida apenas dos efeitos expressamente afastados pela Lei 9�099/1995�

12� A transação penal insere‑se no contexto do exercício da ação penal pelo Ministério Público, tanto mais que é antecedida pela análise dos fatos envolvidos, sua tipicidade, antijuridicidade e punibilidade, para o fim de classificar o delito como crime de menor potencial ofensivo a merecer a aplicação da pena objeto desta singular bargaining�

14� A lei reclama que a materialidade e a autoria do delito estejam caracterizadas pelas provas coligidas no Termo Circunstanciado, que substitui o auto de prisão em flagrante e que serve de respaldo à proposta ministerial�

15� A anuência do autor do fato deflagra o pronunciamento judicial acerca do pedido ministerial, cujo atendimento aos requisitos legais habilitará a prolação da sentença com a aplicação da pena restritiva de direitos, caracterizando, portanto, uma condenação a ser cum-prida pelo apenado�

16� A transação penal não encerra uma forma de condenação sem ação, porquanto a proposta pelo Ministério Público provoca a jurisdição�

17� A concordância do apenado em submeter‑se à sanção penal não descaracteriza o caráter condenatório da sentença, antes retrata uma opção daquele em não se submeter à decisão final do processo�

18� Os efeitos automáticos da condenação, previstos no art� 91, II, do Código Penal, representam mero imperativo lógico da aplicação de pena ao autor do crime de menor potencial ofensivo que ensejou a formulação da proposta de transação penal pelo Estado‑Acusador e ao seu acolhi‑mento pelo Estado‑Juiz� Consectariamente, esse efeito impede que o réu mantenha a posse ilícita de bens ou instrumentos do delito cuja posse�

19� O reconhecimento da natureza condenatória da sentença homologa‑tória da transação não desautoriza a conclusão dos precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal no HC 79�572, no HC 83�598, no RE 362�047 e na Súmula Vinculante 35�

20� É que, conforme estabelece a Súmula Vinculante 35 desta Corte, o descumprimento da pena restritiva de direitos não autoriza sua conversão em pena de prisão, sendo certo que a vedação a esta medida deriva do fato de que, por meio da transação penal, impõe‑se a pena restritiva de

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direitos como sanção principal, e não como pena substitutiva da pena de prisão, como sói ocorrer na ação penal tradicional�

21� O procedimento da perda dos instrumentos ilícitos do crime e da restituição à vítima ou perda, em favor da União, dos produtos do delito, seguem as regras do Código de Processo Penal, à míngua de regulação na lei específica dos juizados especiais criminais, a saber: a) o art� 120 do Código de Processo Penal estabelece a solução dos casos em que não haja dúvida quanto a quem seja o titular dos bens apreendidos em poder do autor do fato, determinando que “A restituição, quando cabível, poderá ser ordenada pela autoridade policial ou juiz, mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante”; b) em caso de dúvida quanto à titularidade do bem, o juiz criminal deverá autuar um incidente de restituição em apartado para decidir� Se, ainda assim, restar dúvida, seguir‑se‑á o procedimento estabelecido no art� 120, § 4º, do Código de Processo Penal, que determina a remessa do feito ao juízo cível; c) afigura‑se manifestamente ilegal condicionar a eficácia da tran‑sação penal à comprovação, pelo autor do fato, da origem lícita dos bens apreendidos em seu poder por ausência de previsão normativa, seja na Lei 9�099/1995, seja no Código Penal ou no Código de Processo Penal, aplicáveis subsidiariamente� Neste sentido: HC 83.598, Primeira Turma, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, unânime, j� 21‑10‑2003, DJ de 14‑11‑2003�

22� A perda dos instrumentos ilícitos e dos produtos do delito também alcança as contravenções penais, que na essência também encerram ilíci‑tos de menor potencial ofensivo, por força da regra do art� 1º do Decreto‑‑Lei 3�688/1941 (Lei de Contravenções Penais), verbis: “Aplicam-se às con-travenções as regras gerais do Código Penal, sempre que a presente lei não disponha de modo diverso”� Técnica de hermenêutica que deve ser adotada quanto à Lei 9�099/1995�

23� A apreensão penal atinge qualquer instrumento utilizado para a prática criminosa, lícito ou ilícito (art� 240, § 1º, d, do Código de Processo Penal), e o confisco definitivo apenas se legitima quando se cuidar de coisa cujo fabrico, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito� Não sendo este o caso, o instrumento deverá ser restituído ao seu legítimo possuidor� Neste sentido: RE 362.047, Primeira Turma, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, unânime, j� 14‑9‑2004, DJ de 8‑10‑2004�

24� Tese firmada, para fins de repercussão geral: “É constitucional a aplicação dos efeitos da condenação estabelecidos no art� 91, II, do Código Penal, às sentenças homologatórias de transação penal, tendo em vista

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sua natureza condenatória, ausente violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de ino‑cência, desde que observado o disposto na Lei 9�099/1995 e, subsidiaria‑mente, no Código Penal e no Código de Processo Penal�”

25� Recurso Extraordinário provido para determinar a devolução do bem apreendido, dada a impossibilidade do confisco de bem pertencente ao condenado cuja posse não seja ilícita, sob pena de violação juridica‑mente injustificada do direito constitucional à propriedade (art� 5º, caput e incisos XXII e LIV, da Constituição Federal)�

O sr. ministro Luiz Fux (Vogal): Senhor Presidente, o presente Recurso Extraor‑dinário teve origem no AI 762�146, Rel� Min� Cezar Peluso, no qual foi admi‑tida a Repercussão Geral da questão constitucional suscitada pelo Recorrente� Transcrevo a ementa do acórdão que reconheceu a existência da repercussão geral da matéria:

“RECURSO� Extraordinário� Transação Penal� Homologação� Efeitos de decisão condenatória� Ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da presunção de inocência� Relevância� Repercussão geral reconhecida� Apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que versa sobre a imposição de efeitos de sentença penal condenatória à transação penal prevista na Lei 9�099/1995�”

Cuida‑se de saber se a sentença que homologa a transação penal produz, como um de seus efeitos, a perda do instrumento do crime cujo fabrico, alie‑nação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, bem como do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (art� 91, II, a e b, do Código Penal)�

Transcrevo as razões que fundamentam o presente Recurso Extraordinário, verbis (fls� 172/182):

Foi lavrado Termo Circunstanciado contra o Recorrente, tendo sido, na mesma oportunidade, apreendido [sic] a motocicleta de sua propriedade, qual seja HONDA CG 125, FAN, azul, placas AMV-6726, Ano Modelo – 2005, CRLV 7244042460.

O Representante do MP, em audiência, ofereceu proposta de transação penal ao Recorrente, o qual aceitou referida proposta, devidamente homologada pelo M.M. Juiz de 1º grau.

Antes mesmo do prazo final estabelecido pelo MP, o Recorrente cumpriu inte-gralmente a sobredita transação, estando, pois, extinta a punibilidade do mesmo, nos termos do artigo 84, da Lei n. 9.099/1995, o que foi conhecido e decidido na sentença de 1º grau.

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Contudo, no que tange à motocicleta de propriedade do Recorrente apreendida quando da lavratura do Termo Circunstanciado, a sentença de 1º grau decretou a perda da mesma em favor da União.

Inconformado, interpôs o ora Recorrente Recurso de Apelação perante a Turma Recursal do TJ/PR, a qual negou provimento ao apelo, afirmando que o ora Recor-rente não faz jus à restituição do bem apreendido, pois seria aplicável in casu a regra contida no artigo 91, II, a e b, sob entendimento de que a sentença homologatória de transação penal tem natureza condenatória.

Todo este contexto decorre do efeito multiplicador que a decisão pode vir a ter, principalmente porque foi imposta ao Recorrente uma sanção penal (confisco de bem) sem que houvesse, contra o mesmo, ação penal.

Violou-se o direito de propriedade do Recorrente, sem o Devido Processo Legal, sem que o Recorrente pudesse exercer seus direitos ao contraditório e à ampla defesa.

A sentença de 1º grau, confirmada pelo Acórdão recorrido, impôs ao Recorrente uma sanção penal sem que houvesse uma ação penal e uma sentença condenatória.

(���)Manter a decisão ora recorrida significaria admitir que a transação penal gera

uma confissão por parte do acusado.A ordem jurídica se encontra ameaçada com a possível decisão em desfavor do

Recorrente, pois, a manutenção do acórdão recorrido significaria o fim da espinha dorsal do Direito Penal – Princípio da presunção de Inocência.

(...)II – DA CONTRARIEDADE AO DISPOSTO NO ARTIGO 5º, INCISOS LV, LIV e LVII, DA CFEntende o Recorrente que o acórdão embargado, ao manter o confisco do bem

apreendido sob o argumento de que o mesmo constitui instrumento ou produto de crime, contrariou o disposto no artigo 5º, da Constituição Federal, em seus inci-sos LV, LIV e LVII, que traduzem, respectivamente, os Princípios Constitucionais do Contraditório, da Ampla Defesa, do Devido Processo Legal e da Presunção de Inocência.

Isto porque, com a proposta da transação penal formulada pelo Ministério Público e aceitação e cumprimento por parte do Recorrente, não foi oferecida denúncia contra o mesmo, não houve Ação Penal para apuração dos fatos narrados no Termo Circunstanciado, nem tampouco houve produção de provas, contraditório e defesa do Recorrente.

Insta salientar que a transação penal não induz confissão, razão pela qual, não tendo havido ação penal, deveria presumir-se que o Recorrente é inocente no que tange aos fatos lhe imputados no TCIP, sendo, portanto, inadmissível recair sobre o Recorrente qualquer efeito decorrente de uma sentença penal condenatória, que sequer existiu.

Assim, uma vez tendo o v. Acórdão mantido a sentença de 1º grau, que impôs ao Recorrente o confisco de seu bem, pelo fato de ter havido transação penal nos autos, contrariou aquela decisão o disposto no artigo 5º, incisos LV, LIV e LVII, da CF, o que certamente será reconhecido e decidido por Vossas Excelências.

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III – DA CONTRARIEDADE AO DISPOSTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXII, DA CFO acórdão embargado, ao confiscar o bem apreendido, contrariou frontalmente

o disposto no inciso XXII, do artigo 5º, da Carta Magna vigente, o qual traduz o Direito Fundamental de Propriedade.

Há nos autos prova de que o veículo apreendido é de propriedade do Recorrente, que o adquiriu para exercer trabalho honesto e prover o sustento seu e de sua família.

O direito à propriedade encontra-se no rol dos direitos fundamentais, direito este que somente pode ser atingido por decisão judicial no âmbito penal, quando profe-rida sentença condenatória transitada em julgado, produzindo efeitos secundários que venham a recair sobre a propriedade do condenado.

Contudo, sequer foi oferecida denúncia contra o Recorrente, não havendo prova de veracidade acerca dos fatos narrados no Termo Circunstanciado. Tampouco foi proferida qualquer sentença condenatória que pudesse atingir o direito de proprie-dade do Recorrente sobre o bem apreendido.

Este Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, decidiu que:“... a autoridade policial não encontrou elementos para prosseguir no inquérito, por não se configurar a infração prevista em qualquer dispositivo penal, cumpre--lhe devolver a arma a seu legitimo proprietário.” (RTJ 57/148.)

“... Se o juiz julga extinta a punibilidade antes do término da ação penal, não havendo condenação, cumpre seja restituída ao acusado a arma apreendida em seu poder quando da prática do crime.” (RT 492/357.)

O Superior Tribunal de Justiça têm entendido:“Confisco e o devido processo legal – STJ: ‘A decretação da perda de um bem ou de qualquer valor, ainda que após a verificação da existência do crime de tráfico de entorpecentes (e drogas e afins) e da identificação de sua autoria, só deve ser efetivada através de sentença judicial, observando o princípio constitucional proeminente – o devido processo legal. Nenhum cidadão pode ser privado de seus bens (ou coagido a efetuar pagamento) sem defesa em processo em que se lhe assegure o contraditório, porquanto o direito de propriedade constitui garantia constitucional.’” (RT 735/551.)

Resta evidenciado, pois, que, manter o acórdão combatido é violar, frontalmente, o direito de propriedade. Por tal razão, espera-se seja reformada a decisão recorrida.

IV – DA CONTRARIEDADE AO DISPOSTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIX, DA CFFinalmente, o acórdão prolatado em sede de Apelação, ao manter o confisco do

bem apreendido, violou o disposto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que estabelece que não haverá sanção sem comunicação legal. Isto porque, não há previsão legal na legislação pátria de confisco em caso de sentença homologatória de transação penal, de natureza declaratória de extinção de punibilidade.

Aliás, a única sentença penal capaz de produzir o confisco de bens como efeito é a condenatória, o que não ocorreu in casu.

A sanção aplicada no caso dos autos – CONFISCO DE BEM – só é cabível, pelo que estabelece o Código Penal Brasileiro, nos casos de condenação, por sentença

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irrecorrível, e quando consista em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito.

Nesse sentido, essa Suprema Corte já decidiu (HC n. 83.598-8/RS; Rel. Min. Sepúl-veda Pertence; 1ª Turma do STF; DJ de 14-11-2003):

“Da leitura do termo de transação não se tira uma certeza absoluta que envolveu também o perdimento dos bens, caso não viesse a comprovação de sua origem lícita e, mesmo se houvesse essa certeza, teria ocorrido a decretação do confisco de bens se não comprovada sua origem lícita, contrariando o disposto no art. 91 do C. Penal que autoriza o confisco como efeito de sentença condenatória, o que aqui não houve, já que não se pode dar este ‘status’ para uma transação. Como não foi aceita a comprovação trazida pelo transacionante, foi-lhe negada a resti-tuição. Ora, embora não segura a comprovação trazida, já que se refere a recibos posteriores à apreensão, está comprovado que o transacionante é um empresário e, como tal, sem dúvida alguma recebe valores e possui objetos característicos de escritório, portanto, se comprovada sua atividade licita, não se pode presumir a origem ilícita dos bens e valores apreendidos e confiscá-los.

Aliás, labora em erro o M. Público quando refere o artigo 779 do CPP para afir-mar que o confisco pode ocorrer mesmo em casos de arquivamento de inquérito ou absolvição, pois este dispositivo menciona o art. 100, da antiga parte geral do Código Penal que assim dispunha: ‘O juiz embora não apurada a autoria deve ordenar o confisco dos instrumentos e produtos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção, constitua fato ilícito’.

Portando, o permissivo somente tinha sentido antes do novo texto do C.Penal, na qual este dispositivo mais persiste, somente persistindo o confisco como feito da condenação previsto no art. 91 do C. Penal e somente para crime (segundo entendimento de Celso Delmanto em seu Código Penal Comentado), logo, sequer aplicável esse efeito para os caos de contravenção.”

Assim, por mais esta razão é que a decisão recorrida deve ser reformada, posto que, se mantida, estar-se-ia contrariando o disposto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna vigente.

Em sua manifestação, a Procuradoria‑Geral da República posicionou‑se no sentido do provimento do Recurso Extraordinário, tendo em vista os seguintes fundamentos:

“A transação penal não possui a natureza de sentença condenatória. Trata-se de um acordo celebrado entre o MP e o suposto autor do fato delituoso, por meio do qual é aplicada imediatamente pena restritiva de direitos ou multas, de modo a evitar a instauração do processo penal. Em consequência, não tem aptidão para produzir quaisquer dos efeitos próprios da condenação, tal como enunciados no art. 91 do CP.

Além disso, o art. 779 do CPP não tem mais aplicação em nosso ordenamento, por não mais subsistir a sua hipótese de incidência: o art. 100 do CP na redação anterior à reforma da Parte Geral do CP ocorrida em 1984.

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De resto, em hipótese próxima à presente, assim se pronunciou essa Corte:A cláusula da proposta de transação que impusesse o confisco de bens apreendi-

dos em poder do acusado – salvo se este lhes provasse a licitude de origem –, ainda quando inequívoca no termo da oferta, seria de patente nulidade e consequente inoperância, à luz do art. 91 C. Penal. (HC 83.598/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 14-11-2003.)

Pelo exposto, o parecer é pelo provimento do recurso.” (Fls� 227v�/228�)

O Relator, Ministro Teori Zavascki, proferiu voto no sentido de dar provi‑mento ao Recurso, tendo em vista, em síntese, os seguintes fundamentos:

“A imposição da medida confiscatória sem processo revela-se antagônica não apenas à acepção formal da garantia do art. 5º, LIV, da CF, como também ao seu significado material, destinado a vedar as iniciativas estatais que incorram, seja pelo excesso ou pela insuficiência, em resultado arbitrário. No particular, a exces-sividade do decreto de confisco reside no fato de que a aceitação da transação reverteu em claro prejuízo daquele a quem deveria beneficiar (o investigado), pois produziu contra ele um efeito acessório – a perda da propriedade de uma moto-cicleta – que se revelou muito mais gravoso do que a própria prestação principal originalmente avençada (pagamento de 5 cestas de alimentos).

Em suma, validar o decreto de confisco do veículo pertencente ao ora recorrente, a Turma Recursal o privou da titularidade de um bem sem lhe oportunizar o exercício dos meios de defesa legalmente estabelecidos, incorrendo, com isso, em manifesta transgressão às garantias constitucionais dos arts. 5º, LIV, LV, LVII e XXII.”

Após o voto do Relator, pedi vista dos autos, pois considerei, à primeira vista, que a decretação da perda de instrumentos do delito cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, e que tenham sido apreendidos em poder do apenado, não violaria garantias constitucionalmente asseguradas, ainda que o autor do fato tenha se beneficiado da transação penal�

O distinguishing caberia, no caso concreto submetido à apreciação deste Plenário, tendo em vista cuidar‑se de apreensão de instrumento cujo uso se revela lícito (motocicleta)�

De toda sorte, o reconhecimento da repercussão geral da matéria impõe que se analise a extensão que este decisum terá em todos os casos de apreensão de instrumentos ou produtos do crime em poder do autor do fato, mediante o procedimento da transação penal, considerado tanto o âmbito de atuação dos Juizados Criminais Estaduais quanto o dos Juizados Criminais Federais�

Assim, uma vez que já foi admitida a repercussão geral da tese sustentada no presente recurso e iniciado o seu julgamento, deve‑se decidir quanto à

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constitucionalidade da perda os instrumentos e produtos do crime, descritos no art� 91, II, do Código Penal, como efeito da sentença homologatória da tran‑sação penal�

I – Posição da doutrina e da jurisprudência sobre a natureza jurídica da sentença homo-logatória da transação penal

O voto do eminente Ministro Relator, bem como os fundamentos do Recurso Extraordinário e o parecer do Ministério Público Federal, estão calcados no entendimento de que a sentença homologatória da transação penal não possui natureza condenatória e, portanto, seria incabível a decretação da perda dos instrumentos do crime que tenham sido apreendidos�

Assim, tendo em vista o que dispõe o art� 91, II, do Código Penal (São efeitos da condenação: (...) II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso), assume relevância analisar a natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal�

Não há consenso entre os juristas que se debruçaram sobre a matéria�Na doutrina, Ada Pellegrini Grinover, Guilherme de Souza Nucci, Celso

Delmanto, dentre outros, sustentam que a sentença que homologa a transação penal não é absolutória, mas também não é condenatória�

Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, apesar de reconhecerem que a sentença homo‑logatória da transação impõe sanção penal ao autor do fato, concluem, ainda assim, que esta sentença constituiria mera homologação de um acordo de vontades, nos seguintes termos:

“A pena não privativa de liberdade imposta pelo juiz, por consentimento dos par-tícipes, tem natureza jurídica de sanção penal (���)�

A aplicação da sanção penal será feita por sentença. Mas qual a sua natureza jurídica?

Certamente a sentença não poderá ser considerada absolutória, porquanto aplica uma sanção, de natureza penal. Mas, a nosso ver, tão pouco poderá ser considerada condenatória, uma vez que não houve acusação e a aceitação da imposição da pena não tem consequências no campo criminal (salvo, como visto, para impedir novo benefício, no prazo de cinco anos).

Há quem diga, então, que a sentença que homologa a transação seria ‘condena-tória imprópria’, com o que se acaba fugindo à questão, mediante um circunlóquio

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que nada significa. Além disso, na sentença que aplica a medida alternativa, não há qualquer juízo condenatório, por faltar o exame dos elementos da infração, da prova, da ilicitude ou da culpabilidade.

(���)A conclusão só pode ser esta: a sentença que aplica a pena, em face do consenso

dos interessados, não é absolutória nem condenatória. Trata-se simplesmente de uma sentença homologatória da transação, que não indica acolhimento nem desacolhimento do pedido do autor (que sequer foi formulado), mas que compõe a controvérsia de acordo com a vontade dos partícipes, constituindo título exe-cutivo judicial. São os próprios envolvidos no conflito a ditar a solução para sua pendência, observados os parâmetros da lei.

É exatamente o fenômeno que ocorre no campo processual civil: a sentença homo-logatória da transação – que ninguém classifica de condenatória ou declaratória negativa – constitui título executivo judicial (art. 584, III, CPC).

Dessa visão surgem importantes consequências práticas: não tendo a sentença homologatória natureza condenatória (própria ou imprópria que seja), dela não podem decorrer outras consequências penais, possíveis se a ela se atribuísse aquela natureza.

Por isso é que, com toda a razão, os tribunais negavam o confisco de arma de fogo, em decorrência da aceitação de aplicação de pena em contravenção de porte de arma, antes da Lei 10.826/2003.” (GRINOVER et alii, Juizados Especiais Criminais, p. 167/169.)

Delmanto et alii, em comentários ao Código Penal, entendem que a sentença homologatória da transação penal não possui natureza condenatória, razão pela qual consideram “incabíveis, em função dela, os efeitos referidos no art. 91 do Código Penal” (DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M� de Almeida� Código Penal comentado� 7� ed� Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007� p� 263)�

Também comentando o disposto no art� 91 do Código Penal, Guilherme de Souza Nucci manifesta compreensão de que a sentença homologatória da transação penal “Não é, obviamente, condenatória, pois não houve o devido pro-cesso legal, nem tampouco absolutória, tanto porque não se discutiu culpa, como também pelo fato de sair o autor do fato com o fardo de cumprir uma penalidade”, defendendo a posição de que se cuida de “decisão homologatória de transação penal” (NUCCI, Guilherme de Souza� Leis penais e processuais penais comen-tadas� São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006� p� 393)�

Este não é, porém, o entendimento majoritário�Seguindo caminho diverso, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou sua

jurisprudência no sentido da natureza condenatória da sentença homologa‑tória da transação penal�

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Neste sentido, o aresto proferido no RESP 190�319, Rel� Min� José Arnaldo da Fonseca� Tratava‑se, naquele julgamento, da possibilidade, ou não, de ofereci‑mento da denúncia, ante o descumprimento da sanção aplicada por meio da transação� Transcrevo trechos do voto condutor do acórdão:

“O tema agitado nestes autos é o seguinte: quais as consequências jurídicas para o descumprimento da pena alternativa aceita pelo autor do fato na transação penal, prevista no art. 76 da Lei 9.099/1995?

A resposta a essa indagação, que vem ensejando acirrados debates em doutrina e jurisprudência, deve partir necessariamente da análise da natureza jurídica da sentença que homologa a transação penal.

Corrente minoritária entende que a decisão judicial que aplica, na forma do art. 76 da Lei 9.099/1995, pena não privativa de liberdade tem natureza jurídica de sentença meramente homologatória, eis que, inexistindo ação penal deflagrada, não reconhece a culpabilidade do agente nem produz os demais efeitos da sentença condenatória.

Assim, a homologação da proposta de transação tem eficácia rebus sic stanti‑bus, ou seja, a partir do momento em que o autor da infração descumpre o acordo firmado com o Ministério Público, não cumprindo a pena alternativa que lhe foi imposta, a homologação da avença perde sua eficácia e surge para o órgão acusa-dor o poder-dever de promover a ação penal pública, tornando-se insubsistente a transação que não foi honrada. Nesse sentido é a opinião de Fernando da Costa Tourinho Filho, em seu Processo Penal, 4º Volume, 18 ed. Saraiva, SP, 1997, p. 167.

Todavia a doutrina dominante, à qual me filio, inclina-se no sentido de que a sentença homologatória da transação penal gera eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal.

Possuindo natureza jurídica condenatória – visto que impõe uma sanção, ainda que não privativa de liberdade – a decisão homologatória da transação faz coisa julgada material, não sendo, pois, passível de ser desconstituída em face do descum-primento do acordo, porquanto a sua eficácia não se condiciona ao cumprimento da multa ou da pena restritiva de direitos.

Nessa linha, transcrevem-se os ensinamentos de Júlio Fabbrini Mirabete e Marino Pazzaglini Filho, respectivamente:

‘Segundo entendemos, a sentença homologatória da transação tem caráter condenatório e não é simplesmente homologatória, como muitas vezes se tem afirmado. Declara a situação do autor do fato, tornando certo o que era incerto, mas cria uma situação jurídica ainda não existente e impõe uma sanção ao autor do fato. Essa imposição, que faz a diferença entre a sentença constitutiva e a condenatória, que se basta a si mesma, na medida em que transforma uma situação jurídica, ensejará um processo autônomo de execução, quer pelo Jui-zado, quer pelo Juiz da Execução, há hipótese de pena restritiva de direitos. Tem

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efeitos processuais e materiais, realizando a coisa julgada formal e material e impedindo a instauração da ação penal.’ (Júlio Fabbrini Mirabete, Juizados especiais criminais: São Paulo, Atlas, 1997, p. 90.)

‘A questão que se coloca é se a sentença homologatória da transação penal é declaratória, constitutiva ou condenatória.

A sentença declaratória, chamada no direito italiano de sentenza di accerta-mento e pelo direito alemão de feststellungsurteil, restringe-se a declarar o que já existe, torna seguro o que era até então inseguro, através da coisa julgada sobre o fato existente, tornando-a solução judicial obrigatória entre as partes. Produz efeitos ex tunc, isto é, retroage para alcançar a data do fato declarado.

Por sua vez, a sentença constitutiva, além de declarar certo o que já exis-tia, cria uma situação jurídica que até então inexistia. Por isso são chamados Rechtsgestallungsurtelle, ou sentenças formadoras, pelos alemães. Gera efeitos ex tunc e ex nunc, ou seja, retroage para a data do fato e tem efeito ultrativo, para o futuro, posto acrescentar algo novo ao mundo jurídico. Seus efeitos são processuais e materiais.

Por fim, a sentença condenatória é também declaratória, por declarar a situa-ção existente, além de ser constitutiva, criando para o sentenciado uma situação nova, até então inexistente, e impondo-lhe uma sanção penal, que será pos-teriormente executada. A execução é a efetivação da sentença condenatória.

Sendo assim, a natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal é condenatória.

Primeiramente, declara a situação do autor do fato, torna certo o que era incerto. Mas, além de declarar, cria uma situação nova para as partes envolvi-das, ou seja, cria uma situação jurídica que até então não existia. E ainda impõe uma sanção penal ao autor do fato, que deve ser executada.

A sentença homologatória tem efeitos dentro e fora do procedimento, isto é, tem efeitos processuais e materiais, produz efeitos ex nunc, para o futuro. Encerra o procedimento e faz coisa julgada formal e material, impedindo novo ques-tionamento sobre os mesmos fatos.” (Marino Pazzaglini Filho, Juizado especial criminal, São Paulo, Atlas, 1997, p. 90.)

No mesmo sentido, a lição de Weber Martins Batista (in Juizados Especiais Crimi-nais e Suspensão Condicional do Processo, Rio: Forense, 1996, p. 331), verbis:

‘O engano cometido, se houver, não impede que a decisão transite em julgado em favor do autor do fato. De outro modo, a decisão homologatória da tran-sação, a que se refere o § 4º do artigo 76 da Lei nº 9.099/1995, não poria fim ao procedimento, como se pretende, não concorreria para a celeridade e economia processual a que visa a lei, pois jamais transitaria em julgado. Entende o autor, portanto, que esgotados os recursos cabíveis da decisão que homologou a tran-sação penal, ou ultrapassado o prazo da lei sem interposição dos mesmos (caso destes auto), aquela decisão não pode mais ser modificada. A não ser, como evidente, para beneficiar o autor do fato, pois dela pode caber revisão criminal. Nunca, no entanto, em desfavor dele’.

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Por outro lado, prescreve o art. 77 da Lei 9.099/1995, que o Ministério Público ofe-recerá denúncia em duas hipóteses: quando não houver aplicação de pena, devido à ausência do autor do fato; ou quando não ocorrer a transação prevista no art. 76 do mesmo diploma legal. Logo, havendo transação homologada, como no caso vertente, incabível o oferecimento da denúncia. (...)”

O processualista e professor Afrânio Silva Jardim posiciona‑se no sentido de que a sentença homologatória da transação penal revela natureza condenató-ria, explicando que, “ao propor a transação penal, o Ministério Público, de certa maneira, está exercitando um tipo de ação diferente. Porque, quando propõe a transação penal, ele tem de fazer uma imputação. Tem de atribuir ao autor do fato, para usar a expressão da lei, ao réu, uma conduta; fazer um juízo de tipi-cidade, até para saber se é uma infração de menor potencial ofensivo e tem de sugerir a aplicação de uma pena. De certa forma, é uma ação penal” (JARDIM, Afrânio Silva� Direito Processual Penal� 6� ed� Rio de Janeiro: Forense, 1997, p� 351)�

Para este respeitado jurista, a proposta de transação penal consubstancia uma ação penal, por meio da qual o Ministério Público invoca a tutela juris-dicional do Estado e manifesta pretensão punitiva em juízo� O Parquet terá de dizer, ainda que informalmente, oralmente, que, segundo consta do termo circunstanciado, o autor do fato praticou determinada conduta criminosa, deve apontar o lugar em que o fato se consumou (importante para indicar o foro competente) e o tipo penal ao qual a conduta se adéqua, que evidenciará tratar‑se de infração de menor potencial ofensivo� O Ministério Público escla‑rece, ainda, na proposta, que a pena prevista para o fato criminoso é de prisão, mas que propõe o cumprimento de uma pena restritiva de direitos ou de multa, pelo autor do fato, caso transacione�

Por estas razões, Silva Jardim sustenta que a proposta contém uma imputa-ção, a atribuição de um fato típico, ilícito e culpável, de menor potencial ofensivo, que determina a competência do Juizado Especial Criminal�

Se o autor do fato aceitar submeter‑se à pena restritiva de direitos, tem‑se, segundo o processualista, uma sentença penal condenatória, pois é uma pena que se aplica a ele, não convertível em pena privativa de liberdade� E esclarece que não há violação do princípio do nulla poena sine judicio, porque este é o devido processo legal� Não há jurisdição sem ação: há ação, há processo e há jurisdição� Apenas a ação não tem a forma tradicional da denúncia, mas sim da proposta de transação�

Weber Martins Batista também perfilha o entendimento de que a sentença homologatória da transação penal possui natureza condenatória, verbis:

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“A decisão que acolhe a proposta do Ministério Público aceita pelo autor do fato, não há dúvida, é uma sentença, pois põe fim ao procedimento. De que natureza, indaga-se. (...)

Ora, no caso da imposição pelo juiz de pena não-privativa de liberdade, acor-dada em transação realizada entre o Ministério Público e o autor do fato, não se pode falar em sentença condenatória pura, pois, a não ser no que diz respeito à execução da pena imposta, não gera essa decisão qualquer dos outros efeitos da sentença condenatória, como fato jurídico: não constitui título executório no juízo cível, não gera reincidência, etc.

Com muito mais razão, não se pode dizer que se trata de sentença absolutória. Impossível absolver alguém impondo-lhe uma ou mais das penas previstas no Código Penal. Resta a classificação, dada sua natureza especial, como sentença condenatória imprópria, ou sentença impropriamente condenatória. É o que sugere o autor.

Constitui ela título executório, no juízo penal, da pena restritiva de direito ou multa imposta ao autor do fato. É, pois, uma decisão de condenação. (...)” (Ibidem, p� 317/318�)

Os juristas Marino Pazzaglini Filho, Alexandre de Moraes, Gianpaolo Poggio Smanio e Luiz Fernando Vaggione ressaltam a natureza condenatória da sen‑tença proferida no âmbito da transação penal, tendo em vista os seguintes fundamentos:

“7.7. Natureza jurídica da sentença homologatória da transação penalA questão que se coloca é se a sentença homologatória da transação penal é decla-

ratória, constitutiva ou condenatória.A sentença declaratória, chamada no direito italiano de sentenza di accerta‑

mento e pelo direito alemão de Festellungsurteil, restringe-se a declarar o que já existe, torna seguro o que era até então inseguro, através da coisa julgada sobre o fato existente, tornando-a solução judicial obrigatória entre as partes. Produz efeitos ex tunc, isto é, retroage para alcançar a data do fato declarado.

Por sua vez, a sentença constitutiva, além de declarar certo o que já existia, cria uma situação jurídica que até então inexistia. Por isso são chamadas Rechtsges-taltungsurteile, ou sentenças formadoras, pelos alemães. Gera efeitos ex tunc e ex nunc, ou seja, retroage para a data do fato e tem efeito ultrativo, para o futuro, posto acrescentar algo novo ao mundo jurídico. Seus efeitos são processuais e materiais.

Por fim, a sentença condenatória é também declaratória por declarar a situação existente, além de ser constitutiva, criando para o sentenciado uma situação nova, até então inexistente, e impondo-lhe uma sanção penal, que será posteriormente executada. A execução é a efetivação da sentença condenatória.

Sendo assim, a natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal é condenatória. Primeiramente, declara a situação do autor do fato, torna certo o que era incerto. Mas além de declarar, cria uma situação nova para as partes envolvidas,

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ou seja, cria uma situação jurídica que até então não existia. E ainda impõe uma sanção penal ao autor do fato, que deve ser executada.” (PAZZAGLINI FILHO, Marino et al� Juizado Especial Criminal� São Paulo: Atlas, 1999, p� 59�)

Miguel Reale Júnior também revela convicção de que “é evidente que a sen-tença homologatória da transação penal é uma sentença condenatória, como afirma a maioria da doutrina, pois impõe uma sanção ao que se reputa Autor do Fato delituoso. Mesmo para os que não querem admitir o caráter condenatório da sentença na Transação, esta constitui um título executivo penal, passível de fazer coisa julgada material, até porque impede o Autor do Fato de se valer, por cinco anos, de uma nova Transação Penal” (REALE JÚNIOR, Miguel� Simplifi-cação processual e desprezo ao direito penal� Disponível em: http://www�fonaje�org�br/site/wp‑content/uploads/2013/11/spddp�pdf Acesso em: 17‑3‑2015)�

Este Supremo Tribunal Federal não possui precedente específico quanto à natureza da sentença que homologa a transação penal e os efeitos por ela produzidos�

Contudo, esta questão apareceu, incidentalmente, em alguns poucos julgados�Num dos casos, o objeto do julgamento cingia‑se à validade ou não da conver‑

são de sanções impostas mediante transação penal (pena restritiva de direitos ou multa) em pena privativa de liberdade (detenção ou reclusão), no caso do descumprimento do acordo pelo apenado�

Exatamente este foi o objeto do HC 79�572/GO, Rel� Min� Marco Aurélio, no qual o Ministro Relator, não aceitando a possibilidade da conversão imediata da pena restritiva de direitos em prisão, fundamentou sua decisão no entendi‑mento de que a sentença que homologa a transação penal não possui natureza condenatória�

No douto voto proferido por Sua Excelência, encontram‑se plasmados os seguintes fundamentos, que peço vênia para transcrever:

“O instituto da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, tal como disciplinado no Código Penal, pressupõe, para ser alvo de imple-mento, condenação do Juízo e, portanto, o ato derradeiro da ação penal que é a prolação da sentença, enquanto aquele versado na Lei nº 9.099/1995 precede, a teor do disposto no artigo 76, a instrução e a formação de entendimento pelo Estado-juiz sobre o processo existente, a ação penal ajuizada, ou não, pelo Ministério Público.

(���) Vale considerar, portanto, que a substituição faz-se tendo em conta decreto condenatório de maior gravame. Isso não se verifica quando em jogo a transação prevista no artigo 76 da Lei nº 9.099/1995. A proposta precede, até mesmo, a forma-lização de denúncia. Tem a sentença respectiva força de título executivo judicial.

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(���) o termo de homologação não ganha contornos de sentença condenatória, muito menos quanto ao exercício da liberdade de ir e vir. Esse enfoque é o mais uniforme, o mais consentâneo com a nossa ordem jurídico-constitucional.”

No mesmo julgamento, o eminente Ministro Nelson Jobim, acompanhando o Relator, sustentou o seguinte:

“Sr. Presidente, a transação penal da L. 9.099/1995, art. 76, tem as características, em linhas gerais, da transação cível.

(���) no caso do art. 76 da L. 9.099/1995, não temos um ato judicial, temos clara-mente a homologação de vontades.

Esse é um ato de natureza administrativa, que meramente homologa a vontade das partes para compor.

Nesse modelo não cabe ação rescisória.(���) Não há nenhuma condenação prévia.Não há reconhecimento da culpabilidade.Como diz o Ministro Marco Aurélio, o descumprimento dessa situação autoriza

a rescisão.Tem um efeito resolutivo da transação realizada, por descumprimento de um dos

elementos da transação.Rescinde-se a transação e inicia-se a ação penal.É claro que aqui vão surgir problemas não examinados, que se podem antever.Um deles é a interrupção da prescrição, na hipótese da transação, assunto que

não está sendo analisado.Mas, evidentemente, ao que tudo indica, chegará o momento em que se terá de

examinar qual o efeito da transação, até que se cumpra, integralmente, a pena restritiva imposta.”

Outro precedente desta Corte que tangencia a matéria objeto deste Recurso Extraordinário encontra‑se no julgamento do HC 83�598, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, citado pelo Ministro Teori Zavascki no voto proferido no presente Recurso Extraordinário�

Naquele caso, discutia‑se sobre a possibilidade ou não de a sentença homolo‑gatória condicionar sua eficácia à comprovação, pelo autor do fato, da licitude da origem dos bens apreendidos em seu poder�

Em seu voto, o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, endossou, indireta-mente, a compreensão de que a transação penal não possuiria status de sen‑tença condenatória e concedeu a ordem de habeas corpus para considerar que configurava constrangimento ilegal a anulação da transação por falta de demonstração da licitude dos bens apreendidos. Transcrevo trechos do voto de Sua Excelência:

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“O sr. ministro Sepúlveda Pertence (Relator): Na Turma Recursal, o voto ven-cido da relatora, a il. Juíza Mariza de Azevedo, acentuou – f. 58:

‘Da leitura do termo de transação não se tira uma certeza absoluta que envolveu também o perdimento dos bens, caso não viesse a comprovação de sua origem lícita e, mesmo se houvesse essa certeza, teria ocorrido a decretação do con-fisco de bens se não comprovada sua origem lícita, contrariando o disposto no art. 91 do Código Penal que autoriza o confisco como efeito de sentença condenatória, o que aqui não houve, já que não se pode dar este ‘status’ para uma transação. Como não foi aceita a comprovação trazida pelo transacio-nante, foi-lhe negada a restituição. Ora, embora não segura a comprovação trazida, já que se refere a recibos posteriores à apreensão, está comprovado que o transacionante é um empresário e, como tal, sem dúvida, recebe valores e possui objetos característicos de escritório, portanto, se comprovada sua atividade ilícita, não se pode presumir a origem ilícita dos bens e valores apreendidos e confiscá-los.

(���)’�Correto, no ponto, o voto vencido.A cláusula da proposta de transação que impusesse o confisco de bens apreendi-

dos em poder do acusado – salvo se este lhes provasse a licitude da origem –, ainda quando inequívoca no termo da oferta, seria de patente nulidade e consequente inoperância, à luz do art. 91 do C. Penal.

O que resta, pois, é a multa, cuja inadimplência não é atribuída ao paciente (ao contrário, há nos autos recibo de três das quatro prestações previstas – f. 54 ss) e que, quando existente, não autorizaria a conversão na pena privativa ou restri-tiva de direitos a cuja aplicação tenda a denúncia (v�g�, HC 78.200, 1ª T, Gallotti, 9-3-1999, DJ de 27-8-1999; HC 79.572, 2ª T, M. Aurélio, 28-2-2000, DJ de 22-2-2002, Inf. STF 180; RE 268.320, 1ª T, Gallotti, 15-8-2000, DJ de 10-11-2000; HC 80.802, 1ª T, Ellen, 24-4-2001, InfSTF 225)

Defiro a ordem: é o meu voto.”

Percebe‑se, portanto, que a problemática ali envolvida possui certas pecu‑liaridades que não podem ser desconsideradas�

O objeto do writ constituía‑se na violação do que estabelecido no art. 91 do Código Penal, exatamente porque a sentença condicionou a eficácia da transação penal à comprovação, pelo autor do fato, da licitude da origem dos seus bens�

Evidentemente, este condicionamento não possui qualquer amparo legal e afronta, diretamente, nosso ordenamento jurídico�

Naquele writ, como a posse dos bens e valores era aparentemente lícita, o Supremo Tribunal Federal entendeu, com acerto, que não se poderia decretar sua perda na transação penal e, ainda menos, condicionar a eficácia da tran‑sação à comprovação, pelo envolvido, da licitude da sua posse�

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Por conseguinte, o fundamento daquela decisão não residiu, essencialmente, na ausência de conteúdo condenatório da transação penal�

Deveras, este argumento funcionou como um reforço teórico, mas o que efetivamente determinou a prolação daquele decisum foi a licitude aparente da origem dos bens apreendidos em poder do autor do fato�

A esse respeito, independentemente da natureza da sentença homologatória da transação penal, e até mesmo se estivéssemos cuidando de ação penal tra‑dicional, do procedimento comum, seria, de qualquer maneira, absolutamente ilegal condicionar a eficácia da decisão final à comprovação, pelo beneficiado, de que os bens apreendidos em seu poder possuam origem lícita� Inexiste previsão legal que autorize este condicionamento por meio da sentença�

Por fim, é relevante salientar que, ao editar a Súmula Vinculante nº 35, este Supremo Tribunal Federal estabeleceu entendimento de que, uma vez descum-pridos os termos da transação, o Ministério Público poderá oferecer denún-cia e dar continuidade à persecução penal, ao fundamento de que a sentença homologatória da transação penal não faz coisa julgada material, verbis:

“A homologação da transação penal prevista no art. 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação ante-rior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.”

Estes são os principais posicionamentos da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria versada nos autos�

II – Natureza jurídica da sentença homologatória da transação penalII.1 Premissas teóricasII.1.1 Finalidade da criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil como norte in-terpretativo

Conforme destaca a literatura especializada, a criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil é fruto de um movimento de reflexão dos atores políticos e jurídicos do país sobre dois grandes problemas enfrentados por nosso sistema de justiça criminal:

1) as mazelas do cárcere, frequentemente superlotado e reprodutor de rein‑cidência, que influenciou a mudança do discurso e uma virada legislativa vol‑tada a privilegiar a solução dos delitos mediante medidas alternativas à pena de prisão, em casos de menor gravidade, sem emprego de violência ou grave ameaça� É um movimento que se iniciou com a previsão das penas restritiva de

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direitos, concebidas em nosso ordenamento a partir da Reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, de 1984, e que foram aprimoradas nos anos noventa;

2) a morosidade do processo penal brasileiro, que, segundo estudo de Weber Martins Batista, deve‑se a dois principais fatores: 2�1) à carga de trabalho des‑proporcional imposta aos magistrados brasileiros; 2�2) ao Código de Processo Penal brasileiro, “cujos procedimentos arcaicos têm mais de meio século de exis-tência. Por causa deles, qualquer processo, por mais simples que seja, demora um, dois, três ou mais anos” (BATISTA, Weber Martins; FUX, Luiz� Juizados Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão Condicional do Processo Penal� Rio de Janeiro: Forense, 1997, p� 284)�

A criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Brasil está solidamente associada à ideia de que “A solução imediata dos processos, não há dúvida, é um bem de valor inestimável. Não só porque decide logo o problema, pondo fim à incer-teza, como porque dá uma satisfação à coletividade e permite que a vítima tenha seus danos reparados imediatamente. E, mais importante ainda, concorre para diminuir o número de delitos. Como já o dizia Israel Drapkin, não é a gravidade da pena, mas a certeza da punição, que influi na prevenção dos crimes” (ibidem, p� 284)� Reflexão esta já lançada por Beccaria no Século XIX, na aclamada obra‑‑manifesto Dos Delitos e Das Penas�

Simultaneamente, a Lei 9�099/1995 teve por fim superar uma conjuntura espe‑cífica de vazio jurisdicional� Antes da sua edição, os crimes de menor potencial ofensivo ficavam sem qualquer solução, pois em razão da dificuldade do pro‑cesso comum e da perspectiva de prescrição considerada a pena cominada na lei, as instâncias policiais deixavam de instaurar inquéritos para apurar esta classe de delitos, resolvendo‑os, por vezes, oficiosamente�

Como constata Weber Martins Batista, a criação dos Juizados permite que estes crimes sejam decididos pela Justiça:

“Esta é uma solução feliz. Não é necessário – na maioria das vezes é impossível – pôr na cadeia os autores dessas infrações. Nem é isso o que se visa. Mas é impres-cindível julgá-los e, se for o caso, puni-los de forma branda, como previsto na lei. É necessário dar uma satisfação à coletividade e, principalmente, à vítima. E, sobretudo, mostrar que as transgressões à lei não ficam impunes.”

O movimento em prol da resolução alternativa de litígios em matéria penal é um fenômeno mundial, que busca, justamente, conferir atenção às vítimas e resposta penal abrandada à delinquência considerada de menor gravidade�

Miguel Reale Júnior traça as seguintes considerações:

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“Ocorre, como se analisou nos Archives de Philosophie du Droit, uma ‘americani-zação do direito’, que se estende, também, aos campos do Direito Penal e Processual Penal. Exemplo dessa influência norte-americana está na adoção da mediação penal e da compensação penal, medidas em geral aplicadas por um Ministério Público que jurisdicionaliza. Sem definir se em França copiaram-se as soluções americanas para uma justiça de massa ou se houve conclusões na mesma direção, o certo, afirma CENDRAS, é que a fórmula para estancar a maré montante de pro-cessos encontra-se na mediação penal, homóloga da diversion norte-americana e na composição penal, homóloga aproximativa da plea bargaining , em especial por força das recomendações constantes dos tratados e de decisões das instâncias da Comunidade Europeia.

Nesta linha de orientação, a Recomendação nº R(87) do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, de 17 de setembro de 1987, indicou aos Governos dos Estados--Membros a adoção do incentivo às experiências de mediação entre o ofensor e a vítima, em defesa dos interesses desta, para reparação dos danos e da harmonia social, bem como a simplificação dos procedimentos, nos termos dos artigos 5 e 6 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Pretende-se a dispensa de audiência probatória em face de provas preliminares de materialidade e autoria. Propõe-se que seja adotada a transação penal (II.c). Mesmo a fase de investigação preliminar, defende-se que seja desnecessária ou senão simplificada sem formalismos (III.a). No art. III.a.7-9, recomenda-se o proce-dimento da guilty plea para prolação imediata de sentença do acusado que solicita abreviação do processo mediante imposição de punição aceita pelo imputado.” (REALE JÚNIOR, Miguel� Simplificação processual e desprezo ao direito penal� Disponível em: http://www�fonaje�org�br/site/wp‑content/uploads/2013/11/spddp�pdf� Acesso em: 17‑3‑2015�)

O professor Alexander Araujo de Souza, “a crise que enfrentou a Justiça cri-minal na última quadra do século XX impôs a fuga aos modelos tradicionais. No evolver dos sistemas jurídicos, principalmente em relação a delitos que afetam em menor escala bens jurídicos penalmente protegidos, ou mesmo em relação a infrações de potencialidade lesiva atenuada, percebeu-se que a adoção do con-senso poderia tornar-se um recurso útil à resolução dos problemas que afligiam os Estados contemporâneos” (SOUZA, Alexander Araujo de� A transação penal brasileira (art� 76 da Lei nº 9�099/1995): seu delineamento legislativo e sua inser‑ção no contexto das resoluções alternativas de litígios em matéria penal� Revista da EMERJ, v. 9, nº 34, 2006, p� 169‑198)�

Destaca‑se, neste contexto, a influência exercida pelos Estados Unidos da América sobre outros ordenamentos jurídicos, através da sua Alternative Dispute Resolution (ADR), em que vigoram os tradicionais institutos da plea bargaining e do nolo contendere, intensamente utilizados naquele país, onde:

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“Consoante as ‘Federal Rules of Criminal Procedure’ de 2004, o imputado responde à acusação por intermédio de um ato denominado plea, que pode consistir em uma declaração de ser ele culpado (guilty plea), inocente (plea of not guilty), ou mesmo de não contestar a acusação (nolo contendere). Na quase totalidade dos casos, os acusados se declaram culpados, sendo pequeno o número de processos que chegam ao trial. Tal se deve à prática bastante difundida do plea bargaining , consistente em uma negociação entre o prosecutor e a defesa do imputado, buscando-se um consenso no tocante à pena que será aplicada. Neste caso, porém, assunção de culpa pode ser utilizada contra o imputado em posterior processo civil de responsabilidade pelos danos causados à vítima do crime. Já por intermédio do nolo contendere, que se verifica com o consentimento da Corte, a qual deve levar em conta o interesse público na efetiva administração da justiça, o acusado, apesar de não admitir sua culpa, sofre uma condenação, podendo contar com a benevolência do juiz na aplicação da pena.” (Ibidem, p� 171/172�)

No Brasil, afirma‑se que as inovações normativas para solução dos crimes de menor potencial estabeleceram “uma verdadeira revolução no sistema pro-cessual-penal brasileiro”, por ter promovido o rompimento do sistema tradi-cional do nulla poena sine judicio, e ainda porque a Lei 9�099/1995 “possibilita a aplicação da pena sem antes discutir a questão da culpabilidade” (GRINOVER, Ada; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; SCARANCE FERNANDES, Antonio; GOMES, Luiz Flávio� Juizados Especiais Criminais� 5� ed� São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005� p� 41)� Na lição doutrinária, cuida‑se de “uma verda-deira revolução (jurídica e de mentalidade), porque quebrou-se a inflexibilidade do clássico princípio da obrigatoriedade da ação penal. Abriu-se no campo penal um certo espaço para o consenso. Ao lado do clássico princípio da verdade mate-rial, agora temos que admitir também a verdade consensuada” (idem, p� 50)�

Exatamente em razão desta grande mudança, produziram‑se algumas difi‑culdades de classificação e interpretação dos institutos jurídicos criados pela Lei 9�099/1995�

Como acontece em fases de transição e de mudança de sistema, nota‑se, também no que tange à interpretação desta Lei, uma tendência a confrontar as inovações com os princípios clássicos que orientam o processo penal e o direito penal material, os quais possuem por finalidade maior a de proteger os indivíduos contra uma determinada forma de intervenção penal do Estado que, tradicionalmente, manifesta‑se de modo profundamente restritivo da liberdade individual, alterando a vida do apenado a partir da sua condenação e encarce‑ramento – ou seja, quando estão em jogo penas de reclusão�

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Outro é o paradigma da Lei 9�099/1995, concebida a partir de norma constitu‑cional positivada que prestigiou a solução rápida, eficaz e de baixa intensidade penal para os crimes de menor potencial ofensivo�

II.1.2 A concretização de preceitos constitucionais através da transação penalA constitucionalidade da transação penal e a ausência de violação dos prin‑

cípios do devido processo legal e da presunção de inocência estão suficiente‑mente assentadas no Direito Brasileiro, embora tenha havido algumas vozes dissonantes, dentre as quais se destaca a de Geraldo Prado�

Sobre o tema, Grinover et alii lecionam o seguinte:

“A aceitação da sanção penal não importa em reconhecimento da culpabilidade penal, não derivando da aplicação da pena consequências desfavoráveis em relação à reincidência ou aos antecedentes criminais e a seus registros. O único efeito penal da transação é impedir novo benefício pelo prazo de cinco anos, o que também é razoável�

(���) Não estamos diante do guilty plea (declaração de culpa) ou do plea bargai‑ning (barganha penal) do direito norte-americano, pois a aceitação da transação não tem efeitos penais ou civis. A figura que mais se aproxima do instituto pátrio é o do nolo contendere (não quero litigar), pelo qual o interessado simplesmente prefere a via do consenso à do conflito. (���).” (GRINOVER, Juizados especiais criminais, p� 44/45 – Grifo nosso�)

A Constituição Federal determinou, no art� 98, I, a criação dos Juizados Espe‑ciais Criminais, verbis:

“Art� 98� A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:I – juizados especiais, provido por juízes togados, ou togados e leigos, com‑

petentes para a conciliação, o julgamento de causas cíveis de menor comple‑xidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau�”

Trata‑se de processo que pretende conferir uma solução mais rápida para o litígio, oferecendo pronta resposta à coletividade e às vítimas de delitos de menor potencial ofensivo�

Por meio da transação penal, as únicas punições cabíveis são as penas res‑tritivas de direitos e a pena de multa, devendo ser considerado juridicamente impossível a aplicação de pena de prisão por este procedimento�

Para que haja a aplicação de pena de prisão, deve‑se observar o procedimento definido no artigo 77 e seguintes da Lei 9�099/1995�

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Além disso, a transação penal somente se viabiliza quando não for caso de arquivamento, como dispõe o art� 76 da Lei 9�099/1995:

“Art� 76� Havendo representação ou tratando‑se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta�”

Pela mesma razão, o juízo somente poderá acolher a proposta do Ministério Público e homologar a transação penal se estiverem presentes os requisitos para o início da ação penal�

Isto significa que, apesar de não haver uma peça de denúncia oferecida, há, efetivamente, como afirmado por Afrânio Silva Jardim, uma ação penal, contida na proposta formal de transação formulada pelo Ministério Público, a qual estará apoiada no Termo Circunstanciado [1] e nos exames periciais requeridos, contendo a imputação penal e o pedido de aplicação de pena�

Ora, para que a proposta de transação possa ser formulada, é preciso que estejam presentes os requisitos para o início da ação penal, sob pena de não ser possível sua formulação ou sua aceitação na sentença judicial.

Consequentemente, é evidente que o autor do fato sabe quais são os fatos pelos quais será apenado com uma pena restritiva de direitos� Estão contidos na proposta do Ministério Público os elementos que conferem fundamento à transação penal e à aplicação da pena� Por isto, exercendo o direito ao nolo contendere, o chamado “autor do fato” prefere cumprir a pena de imediato pelo delito cuja prática lhe foi atribuída pelo Ministério Público�

Se a autoridade judiciária entender inexistir justa causa, incumbe‑lhe rejeitar a proposta de transação e determinar o arquivamento das peças existentes� Neste sentido, Weber Martins Batista leciona o seguinte (op. cit�, p� 328/329):

“Poderá o juiz, ainda, rejeitar a proposta de transação, mesmo tendo ela sido aceita pelo autor do fato e seu defensor técnico (���) o que deve acontecer não apenas porque inexistentes os pressupostos do § 2º, I a III, ou porque a proposta colide com norma de Direito Penal, como, por último, porque a hipótese é de arquivamento do termo circunstanciado. O Ministério Público proporá a transação se não for o caso de arquivamento – está no art. 76, caput.

Este artigo consagra uma solução lógica. Só é possível transigir em relação à pena a ser aplicada se houver um princípio de prova de que o autor do fato pra-ticou uma infração e, portanto, poderá por ela ser condenado a uma pena mais grave. [���] O juiz deve examinar o problema com muito cuidado, pois a aceitação da proposta pelo réu constitui um elemento importante a considerar. De qualquer

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modo, se for evidente a inexistência de justa causa para a propositura da ação, também não cabe a proposta de transação. Sendo ela feita, mesmo sem prova, deve o juiz rejeitá-la e determinar o arquivamento das peças existentes.”

Para a situação jurídica do apenado, há muitas vantagens no exercício do direito ao nolo contendere�

Elas consistem, principalmente, em que o autor do fato evita os efeitos da reincidência e dos maus antecedentes, os efeitos civis da condenação, bem como impede que lhe seja aplicada a prisão em flagrante, nem mesmo se presentes os requisitos do art� 302 do Código de Processo Penal�

Com efeito, basta que o autor do fato assuma o compromisso de comparecer à audiência em que será proposta a transação penal para que a Autoridade Poli‑cial deixe de impor prisão em flagrante, sendo incabível, também, a exigência de fiança para sua liberação, verbis:

“Art� 69� A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando‑se as requisições dos exames peri‑ciais necessários�

Parágrafo único� Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediata‑mente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança� (���).”

Percebe‑se, assim, que foi drasticamente reduzida a severidade da inter‑venção penal do Estado, quando estiver em causa a prática de crime de menor potencial ofensivo�

A conformidade da transação penal com a Constituição pátria é cristalina�Sem dúvida, ela reduz a profundidade da atuação de alguns princípios clássi‑

cos do processo penal moderno, tendo em vista a autorização contida no art� 98, I, da Lei Maior, mas esta medida vem acompanhada de uma muito mais impor‑tante diminuição do impacto da pena aplicada na esfera de direitos e liberdades do apenado, que ao aceitar a transação e cumprir a pena, não deixa de ser con‑siderado primário e de bons antecedentes para todos os efeitos, civis ou penais� Ademais, a pena imposta é de reduzida gravidade, não implicando danos à sua vida civil ou às suas relações sociais, familiares, profissionais�

A transação penal constitui‑se como um instituto do Direito Penal Con‑temporâneo que se subscreve no que Jésus‑Maria Silva Sánchez denominou de Direito Penal de “segunda velocidade”, fenômeno presente em grande parte do mundo ocidental, cuja principal característica reside em conferir rápida

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resposta a delitos de menor gravidade e complexidade, mediante uma flexibi‑lização das garantias conferidas pelas Constituições aos acusados da prática de crimes�

Constatou‑se, na construção do Direito Penal de segunda velocidade, que as garantias e princípios tradicionais criam obstáculos à resposta penal do Estado, com o fim de proteger os cidadãos da intervenção estatal máxima, caracterizada por penas severamente restritivas da liberdade�

Já no Direito Penal de segunda velocidade, característico de um momento em que a sociedade se torna mais complexa e os delitos de menor gravidade ocorrem em profusão, busca‑se a solução alternativa dos litígios, mediante um processo mais célere, menos atento às formalidades, mas que, compensa‑toriamente para o autor do delito, conduz à imposição, tão somente, de penas restritivas de direitos e/ou multas, em lugar do cárcere�

Daí que não se possa refletir teorética ou pragmaticamente sobre a transação penal com os mesmos padrões jurídicos definidos para o processo penal comum, voltado à aplicação da pena de prisão�

II.2 – Transação penal, efeitos da condenação e garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência

Conforme se nota das premissas lançada nos itens anteriores, embora o legis‑lador não tenha determinado expressamente na Lei 9.099/1995 qual seria a natureza da sentença que homologa a transação penal e quais seriam os seus efeitos, o primordial é verificar que o legislador excluiu alguns dos efeitos da condenação, assumindo, portanto, a carga condenatória da sentença, decorrente da aplicação de uma pena ao autor do fato criminoso�

O entendimento segundo o qual a consideração da sentença homologatória da transação penal como uma sentença condenatória violaria as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e da presunção de inocência não se sustenta�

Conforme salienta Afrânio Silva Jardim, o devido processo legal é aquele estabelecido na Lei 9�099/1995, nos casos de crime de menor potencial ofensivo�

Por tal motivo, não configura violação da Lei Maior a aplicação dos efeitos automáticos da condenação ao apenado, ou seja, a perda dos instrumentos do crime cuja posse seja ilícita e dos produtos obtidos com o crime de menor potencial ofensivo (art� 91, II, do Código Penal)�

A tese da inconstitucionalidade da aplicação dos efeitos automáticos da condenação conduziria, em última análise, a afirmar a inconstitucionalidade do próprio instituto da transação penal�

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Inegavelmente, por meio da transação penal, impõe‑se ao autor do fato uma pena restritiva de direitos�

Se a Constituição Federal, juntamente com a Lei 9�099/1995, permitem a imposição imediata da pena, sem discussão da culpabilidade, o corolário desta tese é a ausência de violação dos princípios processuais penais do devido processo legal ou da presunção de inocência também quanto à produção dos efeitos automáticos da sentença condenatória, legalmente estabelecidos para qualquer sentença que imponha sanção penal, a qual decorre da existência de um crime�

Importante ressaltar que a imposição das consequências da condenação previstas no art� 91, II, do Código Penal, sequer possui carga punitiva� Cuida‑‑se das seguintes consequências lógicas (e por isso mesmo automáticas) da prolação da sentença:

1) a perda dos instrumentos do delito cuja detenção, uso, fabrico, porte ou alienação constitua fato ilícito por força de lei; e

2) a perda dos bens, valores ou outras vantagens auferidos com o crime (por‑tanto, cuja posse legítima é atribuível à vítima ou terceiro de boa‑fé)�

Ora, quando a Lei 9�099/1995 assim o pretendeu, ela afastou, expressamente, os efeitos da condenação cuja produção não deveria ocorreu� Daí por que foram excluídos, do âmbito da sentença homologatória da transação, a configuração da reincidência, dos maus antecedentes e de efeitos civis�

Não foram excluídos, porém, os efeitos automáticos da condenação, que por esta razão produzem-se normalmente no âmbito da transação penal�

Alguns exemplos concretos podem demonstrar que a produção destes efeitos é uma decorrência lógica, natural e juridicamente necessária da sentença homologatória da transação penal�

Pensem‑se, v.g., nos seguintes tipos penais estabelecidos na Lei de Proprie‑dade Industrial: fabricação de produto que seja objeto de patente de invenção, sem autorização do titular (art� 183, I, da Lei 9�279/1996 – pena de 3 meses a 1 ano); uso de meio ou processo que seja objeto de patente de invenção, sem autorização do titular (art� 183, II, da Lei 9�279/1996 – pena de 3 meses a 1 ano); reprodução, total ou parcial, sem autorização, de marca registrada, ou imitação de marca registrada que induza confusão (art� 189, I, da Lei 9�279/1996 – pena de 3 meses a 1 ano); substituição pelo próprio nome ou razão social, em produto de outrem, o nome ou razão social deste, sem consentimento (art� 195, IV, da Lei 9�279/1996 – pena de 3 meses a 1 ano)�

Uma vez formalizado o termo circunstanciado e evidenciado que aqueles produtos são “falsificados”, não será compatível com o ordenamento jurídico

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a devolução destes objetos apreendidos (instrumentos do delito) ao apenado� Do contrário, a prática dos delitos estará novamente configurada�

Outros exemplos podem ser elencados:1) Art� 17 da Lei 9�434/1997 (lei que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos

e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento), cuja pena é de 6 meses a 2 anos de reclusão e multa: delito de “recolhimento, transporte, guarda ou distribuição de partes do corpo humano obtidos em desacordo com as disposições legais”;

2) Art� 56, § 3º, da Lei 9�605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), que estabelece pena de 6 meses a 1 ano para a conduta culposa: crime de extração mineral não autorizada em florestas públicas ou de preservação (art� 44 da Lei 9�605/1998, que estabelece pena de 6 meses a 1 ano de detenção e multa); o delito de comer‑cialização ou uso de motosserra sem licença ou registro (art� 51 da Lei 9�605/1998, que comina pena de 3 meses a 1 ano de detenção e multa); a produção, proces‑samento, embalagem, importação, exportação, comercialização, fornecimento, transporte, armazenamento, guarda, depósito ou uso de produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências legais ou de regulamento;

3) Art� 253 do Código Penal, pena de detenção, de 6 meses a 2 anos: crime de sonegação ou destruição de correspondência (apossar‑se indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, e sonegá‑la ou destruí‑la, no todo ou em parte – art� 151, § 1º, I, cuja pena é de 1 a 6 meses de detenção); fabrico, fornecimento, aquisição, posse ou transporte de explosivos ou gás tóxico ou asfixiante, sem licença da autoridade;

4) Art� 28 da Lei 11�343/2006, penas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: […])�

Em qualquer destes casos, independentemente da discussão da culpa e dos elementos subjetivos da autoria, é incompatível com a imposição de pena mediante transação penal a devolução dos instrumentos do crime apreendidos em poder do apenado�

Portanto, a perda dos instrumentos ilícitos e dos bens auferidos com o crime não viola as garantias constitucionais�

Cuida‑se de um efeito automático, que se produz em decorrência da impo‑sição de uma sanção penal ao “autor do fato” (na terminologia empregada pela Lei 9�099/1995), razão pela qual, admitindo‑se que existe uma imposição de pena

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por um fato delituoso, seria logicamente incoerente e juridicamente inconsis‑tente afirmar que, ainda assim, ele teria direito de conservar a posse dos bens apreendidos em seu poder e cuja propriedade não se revela lícita, seja por se cuidar de um instrumento de fabricação, alienação, uso, porte ou detenção legalmente proibidos, seja, ainda, por se tratar de bem cuja propriedade evi‑dentemente não lhe pertença�

II.3 Exegese dos dispositivos da Lei 9.099/1995A exegese dos dispositivos da Lei 9�099/1995 permite concluir que, apesar de

despida de alguns efeitos automáticos da condenação penal – a reincidência, os maus antecedentes, a constituição de título executivo na ação civil ex delicto –, a sentença homologatória da transação penal possui natureza condenatória�

Cite‑se, v.g., o disposto no art� 84, parágrafo único, da Lei 9�099/1995:

“Art. 84. Parágrafo único. Efetuado o pagamento, o juiz declarará extinta a punibilidade, determinando que a condenação não fique constando dos registros criminais, exceto para fins de requisição judicial.”

Ou seja: a própria lei, ao se referir à sentença homologatória da transação penal, utiliza a expressão “condenação”�

Além disso, a existência de dispositivos que excluem, dentre os efeitos da sentença homologatória da transação penal, a reincidência e o registro como antecedentes criminais, parte do pressuposto de que a decisão final possui verdadeiramente cunho condenatório� Do contrário, seria absolutamente des‑piciendo mencionar que estes efeitos não se produzem�

Assim, constata‑se que a Lei 9�099/1995 somente excluiu da sentença homo‑logatória da transação penal alguns dos efeitos da condenação, verbis:

“Art� 76� (���) § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à

apreciação do Juiz�§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infra‑

ção, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos�

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art� 82 desta Lei�

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabí‑vel no juízo cível�”

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Quanto ao mais, observa‑se o disposto no art. 92 da Lei 9.099/1995, que determina a aplicação dos dispositivos do Código Penal que não estiverem em colisão com as disposições da Lei 9�099/1995, verbis:

“Art� 92� Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei�”

Por fim, é inegável que a situação jurídica daquele que cumpre a pena restritiva de direitos imposta mediante transação é visivelmente distinta da situação daquele que é absolvido ou tem a proposta de transação penal arqui‑vada por falta de materialidade ou autoria� Ao sofrer uma sanção penal, aceita uma condenação cujos efeitos são contidos, nos termos da Lei 9�099/1995�

Em conclusão, pode‑se afirmar que os efeitos do art� 91, II, do Código Penal se produzem normalmente, assim como, por exemplo, o efeito da interrupção do curso da prescrição, estabelecido no art� 117, IV, do Código Penal, verbis:

“Art� 117� O curso da prescrição interrompe-se:(���) IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis;”

Por inexistir, na Lei 9�099/1995, qualquer dispositivo que se revele incompa‑tível com os efeitos da condenação estabelecidos no art� 91, II, do Código Penal, impõe‑se sua aplicação subsidiária, nos termos do art� 92 da Lei 9�099/1995, como um dos efeitos produzidos pela sentença homologatória da transação penal�

III – Perda dos instrumentos ilícitos e dos produtos do crime: procedimento de restituição dos bens apreendidos

O art� 120 do Código de Processo Penal estabelece a solução dos casos em que não haja dúvida quanto a quem seja o titular dos bens apreendidos em poder do autor do fato, determinando que “A restituição, quando cabível, poderá ser ordenada pela autoridade policial ou juiz, mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante”�

Nestes termos, a própria autoridade policial poderá proceder à restituição dos bens ao seu legítimo proprietário, o que se dá anteriormente à própria ins‑tauração de ação penal�

Portanto, quando não exista dúvida quanto ao direito do reclamante, o Código de Processo Penal não impõe qualquer condicionamento da restituição à prolação de uma sentença final condenatória�

Vale ressaltar que, nos termos do art� 118 do Código de Processo Penal, se os objetos apreendidos interessarem ao processo – apresentação às testemunhas,

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por exemplo, ou aos jurados, no Tribunal do Júri –, a regra é a da proibição da restituição, até a prolação da sentença final (“Art. 118. Antes de transitar em jul-gado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo”)�

Assim, sempre que se cuidar de instrumentos cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, ou de produtos do crime (que estão na posse do Autor do Fato em razão do ilícito), haverá a sua perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé (“Art. 119. As coisas a que se referem os arts. 74 e 100 [2] do Código Penal não poderão ser restituídas, mesmo depois de transitar em julgado a sentença final, salvo se pertencerem ao lesado ou a terceiro de boa-fé”)�

Portanto, ao final do processo criminal, transitada em julgado a sentença, independentemente da natureza da sentença, as coisas apreendidas são resti‑tuídas a quem de direito, ou então passam para o domínio da União�

Frise‑se que o art� 119 do Código de Processo Penal não se limita às sentenças condenatórias; ao contrário, impede a restituição dos instrumentos ilícitos e dos produtos do crime qualquer que seja a natureza da sentença final�

Com efeito, Fernando da Costa Tourinho Filho leciona que, nos casos dos objetos mencionados no art� 91, II, a e b, do Código Penal, não será permitida a restituição nem mesmo no caso de sentença absolutória, extintiva da puni-bilidade, de impronúncia ou de arquivamento, verbis:

“E se a sentença for absolutória? Como ficariam os instrumentos do crime ou pro-dutos do crime cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito? Anteriormente à reforma penal de 1984, vigorava o art. 779 do CPP, que permitia o confisco desses bens mesmo nos casos de absolvição, impronúncia, arquivamento ou extinção da punibilidade. Apesar da revogação desse preceito, o princípio nele consubstanciado ali estava ex abundantia, mesmo porque as normas con-tidas nos arts. 119, 122 e 124 do CPP seriam suficientes, como continuam sendo. Assim, se houver sentença absolutória, de impronúncia ou extintiva de punibilidade, aqueles objetos referidos nos arts. 74 e 100 do CP, segundo a redação primitiva, e que hoje estão previstos nos arts. 91, II, a e b, do mesmo estatuto, não podem ser restituídos, por força do art. 119 do Código de Processo Penal, salvo se pertencerem ao lesado ou a terceiro de boa-fé. Nem teria sentido fossem apreendidos em poder de um traficante 10 quilos de cocaína e, em face da extinção da punibilidade pela prescrição, devesse o Estado devolver-lhe a substância.

O CP faz referência também, no art. 91, II, b, aos produtos do crime ou de qual-quer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.

Que coisas são essas? Em primeiro lugar estão os producta sceleris, isto é, aquelas

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coisas que representam, por assim dizer, o produto direto do crime, de que são exemplos o relógio roubado, o dinheiro furtado, a coisa indebitamente apro-priada. Em segundo lugar, os produtos indiretos, ou, se quiserem, qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato crimi-noso. Nesta categoria se arrola toda vantagem econômica que o agente obtém com a prática da infração, como, por exemplo, os objetos adquiridos mediante sucessiva especificação (o anel feito com o ouro furtado, o relógio adquirido com o dinheiro – produto direto do estelionato), o pretium sceleris etc.” (TOURINHO FILHO, Fer‑nando da Costa� Processo Penal. Vol� 3� 35� ed� São Paulo: Saraiva, 2013� p� 24/25�)

O disposto no art� 119 do Código de Processo Penal não se aplica, evidente‑mente, a outros bens que tenham sido apreendidos no curso do procedimento que não estejam entre os mencionados no art� 91, II, a e b, do Código Penal� Assim, bens que tenham sido arrecadados em diligência de busca e apreensão, por supostamente interessarem ao processo (“necessários à prova de infração ou à defesa do réu”, ou “qualquer elemento de convicção”, nos termos do art� 241, § 1º, e e h, do Código de Processo Penal) deverão ser restituídos, ao fim do pro‑cesso, a quem de direito�

Eugênio Pacelli de Oliveira e Douglas Fischer, em comentário ao art� 119 do Código de Processo Penal, seguindo linha semelhante (sem se aprofundarem quanto à natureza da sentença proferida ao fim do processo), assinalam que “Quando a posse ou detenção da coisa, por si só, constitui crime (arma, drogas, etc.), a apreensão é previamente justificada (na lei)”, de modo que “não caberá, evidentemente, a restituição, ainda que inválida a prisão, por qualquer motivo” (PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio; FISCHER, Douglas� Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 2ª tir� Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010� p� 263)�

A diferença que se estabelece em função da natureza da sentença, relati‑vamente à perda dos instrumentos ilícitos e aos produtos do crime, reside na automaticidade ou não da perda: no caso da sentença condenatória, a perda opera-se automaticamente, “por se tratar de um efeito genérico da sentença penal condenatória transitada em julgado”, enquanto que na hipótese de sen‑tença que consubstancie absolvição, impronúncia ou extinção da punibi-lidade, “deverá o Juiz declarar a perda, porquanto esta não é automática” (TOURINHO FILHO, op. cit, p� 25)�

Quando a restituição das coisas apreendidas se revelar possível (seja por não mais interessar ao processo, seja por ser conhecido o titular legítimo dos bens), o ato segue o procedimento estabelecido nos artigos 120 e seguintes do Código de Processo Penal [3]�

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Em caso de dúvida quanto à titularidade do bem, o juiz criminal deverá autuar um incidente de restituição em apartado para decidir� Se, ainda assim, restar dúvida, seguir‑se‑á o procedimento estabelecido no art� 120, § 4º, do Código de Processo Penal (remessa dos autos ao juízo cível)�

A aplicabilidade destes dispositivos aos crimes de menor potencial ofensivo não encontra obstáculo em nosso ordenamento jurídico constitucional: não há qualquer norma que afaste sua incidência e o art� 92 da Lei 9�099/1995 deter‑mina que são aplicáveis “subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei”�

Assim, pode‑se pensar nos seguintes tipos penais em concreto, nos quais a transação penal terá, como consequência, a perda, em favor da União, ou a restituição ao lesado (ou ao terceiro de boa‑fé), de instrumentos ilícitos do crime e dos produtos e bens auferidos com o delito:

1) art� 169, caput [4]: “apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza”, cuja pena é de 1 mês a 1 ano de detenção;

2) art� 169, parágrafo único, inciso I [5]: “apropriação de tesouro” (mesma pena do delito supra);

3) art� 169, parágrafo único, inciso II [6]: “apropriação de coisa achada” (mesma pena do delito supra);

4) art� 180, § 3º, do Código Penal [7]: “receptação culposa” (pena de detenção, de 1 mês a 1 ano, e/ou multa)�

Em todos estes casos, a vítima do delito de menor potencial ofensivo terá direito à restituição do bem, razão pela qual se impõe, como efeito automá-tico da transação penal, a perda do produto do crime e/ou sua restituição a quem de direito�

IV – Aplicabilidade dos efeitos da condenação às contravenções penaisPor fim, tendo em vista o reconhecimento da Repercussão Geral da matéria

em julgamento, merece ainda ser analisada a impugnação à aplicação dos efei‑tos do art� 91, II, do Código Penal, às contravenções penais�

A dúvida se estabelece, em sede doutrinária, em razão da literalidade do art� 91, II, a e b, do Código Penal, que se refere aos instrumentos do crime, bem como ao produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido com a prática do fato criminoso�

Parte da doutrina que se debruça sobre a matéria defende que essas conse‑quências da condenação somente se aplicariam aos crimes propriamente ditos, não se estendendo às contravenções, sob pena de incorrer em interpretação in malam partem�

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Apesar das respeitáveis opiniões no sentido da inaplicabilidade destes efei‑tos à contravenção penal, eu me alinho à corrente segundo a qual o vocábulo “crime” empregado em toda a Parte Geral do Código Penal faz referência a qualquer ilícito de natureza criminal, e não à espécie crime, por contraposição à contravenção�

Este entendimento encontra apoio na própria Lei de Contravenções Penais estabelece, em seu artigo 1º, verbis:

“Art� 1º Aplicam‑se às contravenções as regras gerais do Código Penal, sempre que a presente lei não disponha de modo diverso�”

Por não haver, na Lei de Contravenções Penais, qualquer dispositivo que afaste a previsão do art� 91, II, do Código Penal, os efeitos da condenação nele estabelecidos revelam‑se plenamente aplicáveis�

Com efeito, a parte geral do Código Penal é aplicável a todos os tipos penais, que definem as condutas criminalmente proibidas, com previsão de pena para aquele que venha a praticá‑las�

Assim, por exemplo, quando o Código Penal estabelece o princípio de que “Não há crime sem lei anterior que o defina”, consagrado no art� 1º do CP, evi‑dentemente não se pretende traçar uma distinção entre crime e contravenção�

Da mesma maneira, o art� 2º prevê que “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime”�

O art� 4º do Código Penal dispõe que “Considera‑se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”�

Do exposto, entendo que a Parte Geral do Código Penal aplica‑se às contra‑venções penais, nos termos do art� 1º da Lei de Contravenções Penais (Decreto‑‑Lei 3�688/1941), razão pela qual as consequências da condenação previstas no art� 91 do Código Penal são plenamente aplicáveis na matéria, não se cuidando de interpretação analógica ou extensiva contra o réu�

V – Diálogo com precedentes do Supremo Tribunal Federal: compatibilidadeA afirmação da natureza condenatória da sentença homologatória da tran‑

sação penal, e a consequente aplicabilidade dos efeitos estabelecidos no art� 91, II, do Código Penal, não afasta, diretamente, os precedentes firmados em writs julgados por esta Corte�

Os entendimentos firmados até o momento, e cujas conclusões permanecem válidas, são os seguintes:

1� Nos termos do leading case constituído pelo HC 79�572, Segunda Turma, Rel� Min� Marco Aurélio, unânime, j� 29‑2‑2000, DJ de 22‑2‑2002, é incabível a

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conversão da pena restritiva de direitos, fixada mediante transação penal, em pena privativa de liberdade, em decorrência do descumprimento do acordo pelo apenado�

2� Conforme decidido no HC 83�598, Primeira Turma, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, unânime, j� 21‑10‑2003, DJ de 14‑11‑2003, é incabível condicionar a eficácia da transação penal (ou o início da execução da pena restritiva de direi‑tos imposta mediante transação) à comprovação, pelo apenado, da origem lícita dos bens encontrados em seu poder e que tenham sido apreendidos�

3� Nos termos do que decidido no julgamento do RE 362�047, Primeira Turma, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, unânime, j� 14‑9‑2004, DJ de 8‑10‑2004, é incabível decretar a perda de bem que pertença legalmente ao autor do fato�

Com efeito, como concluiu este Supremo Tribunal Federal, dentre outros, no HC 79�572, Rel� Min� Marco Aurélio, a natureza condenatória da transação penal não autoriza, que seja efetuada a conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade, tendo em vista que a transação penal não se constitui como instrumento procedimental hábil à aplicação, ainda que subs‑titutiva, de pena de prisão�

Esta diferença que se estabelece em relação à sentença condenatória profe‑rida no procedimento comum tem uma explicação bastante simples: na ação penal comum, a condenação sempre impõe uma pena privativa de liberdade, a qual, uma vez preenchidos os requisitos do art� 44 do Código Penal, poderá ser substituída por pena restritiva de direitos� Por isso que, descumprida a pena alternativa, opera‑se automaticamente a conversão à pena de prisão imposta na sentença condenatória�

Diversamente, na condenação à pena restritiva de direitos imposta mediante transação penal, não existe a anterior condenação à pena privativa de liberdade, de modo que inexiste qualquer parâmetro para que haja a conversão em caso de desobediência pelo apenado�

Daí por que esta Corte chegou à solução estabelecida na Súmula Vinculante n� 35� O descumprimento da pena restritiva de direitos conduz a um retorno ao estado anterior do processo, cabendo ao Ministério Público oferecer denúncia, observando‑se o procedimento sumariíssimo da Lei 9�099/1995�

Isto significa que o não pagamento da multa ou de outra pena não privativa de liberdade imposta na condenação equivale à não aceitação da transação penal pelo apenado�

Aplica‑se, portanto, o art� 77 da Lei 9�099/1995, verbis:

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RE 795.567

“Art� 77� Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art� 76 desta Lei, o Ministério Público oferecerá ao Juiz, de imediato, denún-cia oral, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis�”

Também deve ser mantida a conclusão desta Corte, estabelecida no HC 83�598, Rel� Min� Sepúlveda Pertence, no sentido da impossibilidade de condicionar a validade da transação penal à comprovação, pelo autor do fato, da licitude da origem dos bens apreendidos em seu poder�

Ora, inexiste qualquer previsão legal para que a sentença homologatória da transação penal imponha esse condicionamento�

Quando houver litígio ou dúvida sobre a propriedade da coisa apreendida, instaura‑se, segundo o Código de Processo Penal, um procedimento incidente destinado a apurar a titularidade do bem�

Como será detalhado no próximo capítulo deste voto, existe um procedi‑mento próprio, estabelecido no Código de Processo Penal, para concretizar a consequência da condenação consistente na perda de instrumentos do crime cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, bem como do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito aufe‑rido pelo agente com a prática do fato criminoso, estabelecida no art� 91, II, do Código Penal�

Consequentemente, não se admite a anulação da transação com base na ausência de demonstração da licitude da origem dos bens apreendidos�

Por fim, conforme decidido no RE 362�047, é incabível a imposição da perda de bem (no caso, arma de fogo), em favor do Estado, quando estiverem compro‑vadas nos autos a propriedade e a autorização de porte por quem de direito�

Com efeito, não existe qualquer autorização legal para o confisco de bem pertencente ao apenado, cujo porte não seja ilícito, de modo que a decretação da perda violou, naquele caso, a própria literalidade do art� 91, II, a, do Código Penal�

V.1 – Caso concreto: impossibilidade do confisco de instrumentos lícitos ou de produtos cuja origem criminosa não esteja demonstrada

No caso ora em julgamento, o Recorrente foi autuado pela prática de contra‑venção penal (jogo do bicho), com a imposição de penas restritivas de direitos�

No momento da autuação, houve a apreensão de uma motocicleta de sua propriedade, que o Recorrente usava para recolher as apostas�

Porém, o objeto não lhe foi restituído, ao fundamento de que seria aplicável o disposto no art� 91, II, a, do Código Penal, cujo enunciado volto a transcrever:

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RE 795.567

“Art� 91� São efeitos da condenação:(���) II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro

de boa‑fé:a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico,

alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito.”

Ora, é cristalino que a motocicleta não é um instrumento cujo fabrico, alie‑nação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito�

Ademais, não havia, nos autos, qualquer dúvida quanto à titularidade do bem�Na lição de Cezar Roberto Bitencourt, “A lei determina a apreensão dos ins-

trumentos utilizados na prática do crime (art. 240, § 1º, d, do Código de Processo Penal), quaisquer que sejam eles. No entanto, admite o confisco tão somente daqueles instrumentos cujo fabrico, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, a, do Código Penal)” (BITENCOURT, Cezar Roberto� Código Penal comentado. 6� ed� São Paulo: Editora Saraiva, 2010� p� 334)�

Da mesma maneira, Luiz Regis Prado:

“Cumpre salientar que nem todo e qualquer meio ou instrumento usado pelo delinquente para a prática do crime é objeto de confisco, visto que o texto legal se refere a ‘coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilí-cito’ (art. 91, II, a, CP).” (Comentários ao Código Penal� 8� ed� São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013� p� 341�)

Rogério Greco exemplifica:

“Se alguém, por exemplo, dolosamente, vier a utilizar o seu automóvel a fim de causar lesão na vítima, o fato de ter se valido do seu veículo como instrumento do crime não fará com que ele seja perdido em favor da União, pois que o seu uso não constitui fato ilícito.” (Código Penal comentado� 2� ed� Niterói: Impetus, 2009� p� 181�)

Tourinho Filho salienta que “Se os instrumentos do crime não se amoldarem à letra a do inc. II do art. 91 do CP, isto é, não se tratando de coisas confiscáveis, nada impede sua restituição ao criminoso e, com muito mais razão, ao lesado ou terceiro de boa-fé, pouco importando haja sentença condenatória transita em julgado. (���) Assim, se a esposa fere o marido com uma tesoura, se o camponês agride o companheiro com a sua enxada, se o médico fere alguém com o bisturi, se o estudante bate no colega com um livro, se uma pessoa é atropelada por uma bicicleta, motocicleta ou qualquer veículo automotor, por exemplo, é evidente que esses instrumentos do crime, pelo fato de não serem coisas cujo fabrico,

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RE 795.567

alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, poderão ser restituídas” (Processo Penal, p� 25/26)�

Do exposto, o bem apreendido em poder do Recorrente não se inscreve na previsão do art� 91, II, a, do Código Penal�

Este o quadro, conclui‑se que a decretação do confisco é manifestamente ilegal, tendo violado o direito constitucionalmente protegido à propriedade, nos termos do art� 5º, caput e incisos XXII e LIV, da Lei Maior, verbis:

“Art� 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan‑tindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(���) XXII – é garantido o direito de propriedade;(���) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido pro‑

cesso legal�”

In casu, por não ter sido observada a norma legal que regula o confisco de instrumentos do crime, impõe‑se concluir que houve violação direta à Consti‑tuição, o que impõe o provimento do Recurso Extraordinário�

VI – ConclusãoEm conclusão, pode‑se afirmar que, apesar da ausência de uma expressa

definição na Lei 9�099/1995, o legislador assumiu a existência de carga conde-natória na sentença que homologa a transação penal, razão pela qual excluiu alguns dos efeitos da condenação� Os demais efeitos que não tenham sido excluí‑dos produzem‑se normalmente, sendo certo que os efeitos automáticos não dependem de declaração ou fundamentação na sentença, pois decorrem de lei�

Como ressaltei ao longo do voto, tanto o Superior Tribunal de Justiça, em reiterados julgamentos, quanto a maior parte da doutrina especializada – com destaque para Afrânio Silva Jardim, Weber Marins, Miguel Reale Júnior, Marino Pazzaglini Filho, Alexandre de Moraes, Gianpaolo Poggio Smanio, Luiz Fer‑nando Vaggione e outros – afirmam a natureza condenatória da decisão que homologa a transação penal e aplica pena restritiva de direitos ao autor do crime de menor potencial ofensivo narrado na proposta do Ministério Público�

Depois de analisar os diferentes entendimentos doutrinários e jurispruden‑ciais, penso, com a vênia dos entendimentos em contrário, que assiste razão à corrente que atribui natureza condenatória à sentença�

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Evidentemente, não se cuida de uma condenação pura, pois dela foram reti-rados alguns importantes efeitos normalmente produzidos pela condenação criminal – a reincidência, a caracterização de maus antecedentes e consequên‑cias sobre direitos civis do apenado�

Porém, a diferença de alguns efeitos secundários da condenação não altera a natureza da sentença� A natureza da decisão decorre dos seus elementos definidores, de acordo com a dogmática processual� A gama de efeitos que ela produz pode ser mais ou menos interventiva, mas a imposição de uma sanção penal, que cria uma obrigação para o apenado, revela a natureza condenatória da sentença� Cuida‑se de uma análise ontológica, que observa o ser e o dever ser da decisão proferida ao final do procedimento da transação penal�

O abrandamento dos efeitos foi a forma que o legislador encontrou de esti‑mular o mecanismo da transação penal como instrumento de solução de con‑flitos, privilegiando a celeridade através de um procedimento em que as provas da culpabilidade não são submetidas a um contraditório estendido�

A lei, ao disciplinar a sentença proferida no procedimento da transação penal, não lhe atribuiu natureza meramente homologatória, como poderia ter feito� Aliás, em nenhum momento se fala em homologação da transação penal� Daí que se revela incabível colocar, no mesmo plano, a sentença proferida em sede de transação penal e aquela proferida no procedimento cível, pois o direito penal não lida com interesses meramente privados e disponíveis�

O art� 76, § 4º, estabelece que “Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo réu, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos”�

Ademais, a causa da imposição da pena é a prática de um crime de menor potencial ofensivo� A sanção será objeto de execução e o réu fica impedido de se beneficiar novamente do procedimento da transação penal, no prazo de 5 anos (art� 76, § 4º, da Lei 9�099/1995)� Conforme destaca a doutrina que atri‑bui natureza condenatória a esta sentença, a proposta de transação penal é a dedução da pretensão punitiva em juízo, cuidando‑se, portanto, de uma ação penal� A pena somente poderá ser imposta se o juízo competente acolher essa pretensão, nos termos do art� 76 da Lei 9�099/1995�

Por todo o exposto, com as vênias dos entendimentos em contrário, concluo que, ao impor uma sanção penal, a sentença possui carga evidentemente condenatória� O objeto do julgamento é a prática de um fato criminoso de menor potencial ofensivo, narrado na proposta de transação penal, muitas

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vezes envolvendo uma vítima prejudicada pela prática do delito – inclusive em seu patrimônio�

Como o legislador estabeleceu, no art� 92 da Lei 9�099/1995, que as regras do CP e do CPP aplicam‑se subsidiariamente aos procedimentos dos juizados especiais, no que com ela não forem incompatíveis, impõe-se que se conclua a plena aplicabilidade dos efeitos do art. 91, II, do Código Penal – perda dos instrumentos ilícitos e dos proveitos do crime�

Os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da presun‑ção de inocência e do devido processo legal assumem um conteúdo distinto, menos formalista, no curso do procedimento da transação penal, tendo em vista a proporcional diminuição da gravidade da intervenção do Estado� Por tal motivo, entende‑se que a proposta de transação penal constitui verdadeira ação penal, por formular a pretensão punitiva estatal e submetê‑la ao órgão jurisdicional competente para aplicar a sanção pretendida�

A ausência de efeitos de reincidência, de caracterização de maus antece‑dentes e de efeitos civis sobre outros direitos do condenado são as vantagens oferecidas pela Lei 9�099/1995 para estimular o exercício do nolo contendere, que proporciona a rápida solução do litígio, atendendo, primordialmente, aos interesses da vítima� Esta é uma tendência do direito penal e processual penal mundial, que vem buscando a solução alternativa de ilícitos penais de menor gravidade social, no fenômeno que veio a ser doutrinariamente conceituado como Direito Penal de Segunda Velocidade�

Não se verificam violações a princípios constitucionais, ao contrário: a rápida prolação da sentença condenatória, com imposição unicamente de pena res-tritiva de direitos, sem aqueles efeitos que atingem a vida civil do apenado, permite a concretização da vontade da Lei Maior de pacificar prontamente as partes envolvidas nos crimes de menor potencial ofensivo – atendendo tanto aos direitos do apenado quanto aos da vítima e da sociedade�

Por todo o exposto, para fins de repercussão geral, proponho a seguinte tese: “É constitucional a aplicação dos efeitos da condenação estabelecidos no art� 91, II, do Código Penal, às sentenças homologatórias de transação penal, tendo em vista sua natureza condenatória, ausente violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência, desde que observado o disposto na Lei 9�099/1995 e, subsidiariamente, no Código Penal e no Código de Processo Penal”�

No caso concreto, dou provimento ao Recurso Extraordinário, para deter‑minar a devolução do bem apreendido, dada a impossibilidade do confisco de bem pertencente ao condenado cuja posse não seja ilícita, sob pena de violação

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juridicamente injustificada do direito constitucional à propriedade (art� 5º, caput e incisos XXII e LIV, da Constituição Federal)�

É como voto�

1 Lei 9.099/1995Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo cir-

cunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

2 Atual art. 91, II, a e b, do Código Penal.3 “Art. 120. A restituição, quando cabível, poderá ser ordenada pela autoridade policial ou juiz,

mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante.§ 1º Se duvidoso esse direito, o pedido de restituição autuar-se-á em apartado, assinando-se

ao requerente o prazo de 5 (cinco) dias para a prova. Em tal caso, só o juiz criminal poderá decidir o incidente.

§ 2º O incidente autuar-se-á também em apartado e só a autoridade judicial o resolverá, se as coisas forem apreendidas em poder de terceiro de boa-fé, que será intimado para alegar e provar o seu direito, em prazo igual e sucessivo ao do reclamante, tendo um e outro dois dias para arrazoar.

§ 3º Sobre o pedido de restituição será sempre ouvido o Ministério Público.§ 4º Em caso de dúvida sobre quem seja o verdadeiro dono, o juiz remeterá as partes para

o juízo cível, ordenando o depósito das coisas em mãos de depositário ou do próprio terceiro que as detinha, se for pessoa idônea.

§ 5º Tratando-se de coisas facilmente deterioráveis, serão avaliadas e levadas a leilão público, depositando-se o dinheiro apurado, ou entregues ao terceiro que as detinha, se este for pessoa idônea e assinar termo de responsabilidade.

Art. 121. No caso de apreensão de coisa adquirida com os proventos da infração, aplica-se o disposto no art. 133 e seu parágrafo.

Art. 122. Sem prejuízo do disposto nos arts. 120 e 133, decorrido o prazo de 90 dias, após transitar em julgado a sentença condenatória, o juiz decretará, se for caso, a perda, em favor da União, das coisas apreendidas (art. 74, II, a e b do Código Penal) e ordenará que sejam vendidas em leilão público.

Parágrafo único. Do dinheiro apurado será recolhido ao Tesouro Nacional o que não couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé.

Art. 123. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, se dentro no prazo de 90 dias, a contar da data em que transitar em julgado a sentença final, condenatória ou absolutória, os objetos apreendidos não forem reclamados ou não pertencerem ao réu, serão vendidos em leilão, depositando-se o saldo à disposição do juízo de ausentes.

Art. 124. Os instrumentos do crime, cuja perda em favor da União for decretada, e as coisas confiscadas, de acordo com o disposto no art. 100 do Código Penal, serão inutilizados ou recolhidos a museu criminal, se houver interesse na sua conservação.

(...) Art. 133. Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento

do interessado, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público.Parágrafo único. Do dinheiro apurado, será recolhido ao Tesouro Nacional o que não

couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé”.4 Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza

Art. 169. Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

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5 Art. 169. Parágrafo único. Na mesma pena incorre:Apropriação de tesouroI – quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da quota a que

tem direito o proprietário do prédio;6 Art. 169. Parágrafo único. Na mesma pena incorre:

Apropriação de coisa achadaII – quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de

restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de 15 (quinze) dias.

7 Art. 180. § 3º Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas.

ESCLARECIMENTO

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Vossa Excelência me permite? Eu vou ler a tese�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Pois não!O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Só para os Colegas���O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Só para terminar, o

Ministro Fux entende que a natureza é condenatória, mas, no caso concreto, ele devolve, porque não é instrumento do crime�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Aqui o que aconteceu foi o seguinte: houve um procedimento penal contra o ora recorrente, por infração, art� 58 do Decreto‑Lei nº 3�668, que é a exploração do jogo do bicho� Foi ofertada a transação penal, ele aceitou e cumpriu a transação penal� O juiz extinguiu a punibilidade� Mas, na sentença que extinguiu a punibilidade, o juiz decretou a perda da motocicleta, por considerar instrumento do crime�

Então, a discussão jurídica foi esta – que agora colocou o Ministro Fux‑: saber se os efeitos anexos, reflexos ou acessórios a uma sentença penal condenatória se aplicam à transação penal� O Ministro Fux entende que sim�

A minha tese seria oposta� Esta é a tese que propus:

“As consequências jurídicas extrapenais previstas nos parágrafos do art� 91 do Código Penal, dentre as quais a do confisco de instrumentos do crime (art� 91, II, a), de seu produto ou de bens adquiridos com o seu proveito (art� 91, II, b), só podem ocorrer como efeito acessório, reflexo ou indireto de uma condenação penal� Tal não ocorre quando há transação penal, que é celebrada com dispensa da instauração de um procedimento próprio e por consequência de um juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante�”

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Essa seria a tese para dar provimento�O sr. ministro Luiz Fux: Então, mutatis mutandis, Senhor Presidente, nós

poderíamos calcular o seguinte: aqueles blocos, aqueles carimbos do titular daquele ponto do bicho não podem ser apreendidos, porque não tem esse efeito acessório da sentença condenatória� Por exemplo, cachimbos, se amanhã ou depois, o usuário de crack, com aqueles cachimbos manufaturados, forem apreendidos, e houver uma transação penal, tem que devolver todos esses���

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Não é que tem que devolver, é que tem que constar da transação� Se não constou da transação���

O sr. ministro Luiz Fux: Não, mas se nós estamos dizendo que não tem os efeitos do Código Penal���

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Não, mas esses efeitos são automá‑ticos; decorrem naturalmente da condenação� Agora, em caso de transação, ou está na transação, ou não está na transação�

O sr. ministro Gilmar Mendes: Mas aí seria o caso de constar do termo da transação, não é?

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Exatamente�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Gilmar Mendes: Do Acordo, não é?O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Luiz Fux: É, nessa parte, estou acolhendo as razões do Ministé‑

rio Público, quanto à tese jurídica, estou acolhendo a tese do Ministério Público, mas, no mérito, eu estou devolvendo a motocicleta�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Quer dizer que, para os efeitos práticos, Vossas Excelências concordam� Mas é que, com relação ao cerne da questão, a tese, trata‑se de saber se aqui, na transação penal, a natureza da decisão é homologatória ou é condenatória� O Ministro Teori Zavascki, o Minis‑tro Roberto Barroso e a Ministra Rosa Weber entendem que é homologatória�

VOTO (Confirmação)

O sr. ministro Roberto Barroso: Presidente, gostaria de manifestar compreen‑são à visão manifestada pelo Ministro Fux, que traz considerações relevantes, sobretudo, nesses exemplos que deu agora�

Não obstante isso, manterei a minha posição, porque é interesse da juris‑dição penal estimular a transação penal� Penso que dar efeitos condenatórios poderia ter um efeito diverso, sendo que essa preocupação do Ministro Fux,

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quando se tratar de produtos ilícitos ou potencialmente criminógenos, sempre poderá constar da transação�

De modo que, associando‑me aos elogios ao querido Professor Weber Mar‑tins Batista, meu também, observando a pertinência das reflexões do Ministro Fux, ainda assim estou mantendo o meu voto, acompanhando o Ministro Teori, inclusive na tese como a formulou�

VOTO

O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor Presidente, eu peço vênia ao Ministro Luiz Fux, acompanho o eminente Relator�

O voto do Relator reflete o entendimento da Corte no HC nº 79�572/GO, Segunda Turma, da lavra do Ministro Marco Aurélio, que assentou ser de natu‑reza homologatória a sentença confirmatória da transação penal:

“Também é esse o entendimento de Teoria Jurídica, de Cezar Roberto Bitencourt, na suas palavras: Na tradição do Direito brasileiro, sempre que as partes tran‑sigem, pondo fim à relação processual, a decisão judicial que legitima jurisdi‑cionalmente essa convergência de vontades, tem caráter homologatório, jamais condenatório�”

Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover e outros assentam:

“A conclusão só pode ser esta� A sentença que aplica a pena, em face do consenso dos interessados, não é absolutória nem condenatória� Trata‑se simplesmente de sentença homologatória de transação, que não indica acolhimento nem desa‑colhimento do pedido do autor (que sequer foi formulado), mas que compõe a controvérsia de acordo com a vontade dos partícipes, constituindo título exe‑cutivo judicial� São os próprios envolvidos no conflito a ditar a solução para sua pendência, observados os parâmetros da lei (���)�”

Não desconheço outras teorias, como a de Mirabete e Mariano Pazzaglini Filho, que entendem – na linha do que entendeu agora o Ministro Luiz Fux, em voto bem fundamentado – ser de natureza condenatória essa homologação�

Mas peço vênia ao eminente Ministro Luiz Fux para acompanhar o Relator, entendendo ser a sentença de natureza apenas homologatória� Por isso, também dou provimento ao recurso�

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VOTO (Retificação)

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, pela ordem, eu acho que posso ouvir as vênias, porque o Ministro Teori sugere também, incluindo a tese, que, se esses instrumentos forem ilícitos, deverá constar da transação que eles não serão devolvidos�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Aliás, o eminente Pro‑curador‑Geral da República agora me transmite a sua preocupação no sentido de que conste da tese que formos aprovar que esses instrumentos podem ser confiscados, se forem objeto do acordo, da transação�

O sr. ministro Luiz Fux: Eles devem�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Devem�O sr. ministro Roberto Barroso: Se forem ilícitos, devem�O sr. ministro Luiz Fux: Aí, eu reajusto, e a jurisprudência fica uniforme�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Está bem, mas, aí, fare‑

mos a redação mais adequada, expressando aqui, de viva voz, a preocupação que me é transmitida pelo fiscal da lei�

VOTO

A sra. ministra Cármen Lúcia: Presidente, vou pedir vênia ao Ministro Luiz Fux, no que se refere ao fundamento de sua tese, para acompanhar o Relator�

A transação penal, no caso, impede exatamente a ação, na qual se poderia, como neste caso específico em que se tem uma motocicleta, saber se ela foi usada para que a pessoa circulasse entre os pontos de jogo de bicho� Então, ela poderia ter sido utilizada, embora, em si, a moto não seja objeto ilícito� Mas não se chegou a essa apuração por força da transação penal, que tem o caráter de antecipar ou prevenir a ação penal� Por essa razão, parece‑me ser uma homolo‑gação feita a partir do que ajustado, ou seja, como não se chegou à ação penal, não se sabe se a moto foi ou não utilizada�

Eu estou, portanto, Senhor Presidente, acolhendo os fundamentos adota‑dos pelo Ministro Relator e, na linha de todos os outros, dando provimento ao recurso�

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VOTO

O sr. ministro Marco Aurélio: Presidente, observou‑se a Lei nº 9�099/1995, regedora da atuação dos Juizados Especiais�

No caso, o arrependimento do Ministério Público – para utilizar a picardia carioca – não é um arrependimento eficaz� Propôs a transação penal, estipu‑lando condições� Entre essas, não constou a perda da coisa utilizada na possível prática delituosa, que seria a moto�

Indago: é possível transformar o ato judicial em verdadeira sentença conde‑natória e entender abrangida, nas condições estipuladas e homologadas pelo Juízo, a perda do bem, fazendo‑o após o período de prova em que o acusado observou as condições estipuladas? A meu ver, não� A meu ver, está em jogo a segurança jurídica e, mais do que isso, o primado do Judiciário�

Acompanho o Relator, provendo o recurso�

VOTO

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Marco Aurélio: Ainda bem que não foi no dia primeiro de

abril!O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�

VOTO

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Eu também vou pedir vênia ao eminente Ministro Luiz Fux�

Eu expresso uma antiga convicção minha de que esse tipo de transação expressa uma decisão de natureza meramente homologatória� Já foi dito aqui por nosso Decano que não há denúncia, não há condenação, não há consequên‑cias de natureza penal, portanto, não se trata de uma sentença com natureza condenatória, com caráter condenatório�

Eu observo também que o CNJ tem identificado, a partir dos números que tem levantado no País, uma cultura de litigiosidade intensa, porque temos hoje mais de cem milhões de processos tramitando� Temos também, a par disso, uma cultura do encarceramento, ou do apenamento, porque temos hoje cerca de seiscentos mil presos, dos quais mais que quarenta por cento, quarenta e dois por cento, são presos provisórios, equivalendo a mais de duzentos e quarenta mil presos provisórios, ocupando vagas daqueles presos definitivos�

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RE 795.567

Então, nós estamos propugnando – e essa foi a linha também de raciocínio do eminente Ministro Barroso – no sentido de que se implante uma cultura de pacificação da transação, como diz o nosso Decano, espaços de consenso� É importante estimular essa cultura de composição dos conflitos para dimi‑nuirmos esses números que são realmente preocupantes – para dizer o mínimo�

Portanto, e louvando a preocupação do Ministro Fux, que traz também à colação importantes doutrinadores em apoio de sua tese, eu vou acompanhar integralmente o Ministro Teori Zavascki no sentido não apenas de devolver o bem apreendido, ou de – na verdade, ele nem apreendido é – manter o bem que se pretende apreender de posse daquele que fez a transação�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): O Juiz decretou a perda�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Ah, decretou a perda?

Bom, então que se devolva���O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Estamos é devolvendo a motocicleta�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Então, vamos devolver

a motocicleta�O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Sem saber em que condições está

essa motocicleta���O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Certamente, se ninguém

usou a motocicleta para outros fins, deve estar intacta�

DEBATE

O sr. ministro Luiz Fux: Senhor Presidente, o Ministro Teori está fazendo aquela ressalva no voto�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Exatamente, que é a preo‑cupação do eminente Procurador, inclusive tendo em conta a dicção do art� 76 da Lei dos Juizados Especiais, que pode eventualmente levar à compreensão de que esse confisco não seria possível, em face de uma leitura mais ortodoxa desse art� 76� Então, Vossa Excelência na sua tese vai deixar explícito?

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): O que eu coloquei no voto e posso deixar mais claro, com a concordância dos Colegas, é que só se pode exigir aquilo que está no termo da transação� Nada impede que���

O sr. ministro Marco Aurélio: Essa é a tese, sem distinguir se a coisa mostra‑‑se lícita ou ilícita� O que importa é a observância das condições estipuladas�

O sr. ministro Luiz Fux: Mas a redação do Ministro Teoria é clara�

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RE 795.567

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Dr� Janot, Vossa Excelên‑cia está com a palavra� Este assunto é de grande interesse e acho que a mani‑festação do Ministério Público é importante�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Nada impede que, nas condições da transação, inclua‑se���

O sr. Rodrigo Janot (Procurador‑Geral da República): Se Vossa Excelência me permite, é só a título de contribuição, já no encerramento do julgamento� O art� 76, da Lei nº 9�099/1995, diz lá:

“Art� 76� Havendo representação ou tratando‑se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser espe‑cificada na proposta�”

Que fique claro, então, que, nessa proposta, além da pena propriamente dita, as circunstâncias do crime possam ser também tidas em consideração�

O sr. ministro Marco Aurélio: Mas, quanto a isso, não há dúvida alguma� Agora, que haja realmente a proposta nesse sentido�

O sr. Rodrigo Janot (Procurador‑Geral da República): Que fique claro que pode haver a proposta, que é o cachimbo do crack, que é o revólver usado no���

O sr. ministro Marco Aurélio: Aceitando o denunciado, evidentemente deverá passar pelo denominado período de prova�

O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Imagino que o Ministério Público

não vá, num caso desses, oferecer transação�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): É porque a leitura mais

estrita do art� 76, como diz o nosso Procurador‑Geral da República, pode levar a crer que só pode ser objeto de transação a pena e a multa, mas realmente há todas as circunstâncias que envolvem o crime�

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Eu vou deixar claro, então, no voto, que nada impede, se for o caso, que certos efeitos do art� 92 possam ser incluídos no termo de transação�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Perfeito�O sr. ministro Luiz Fux: Aí fica ótimo�O sr. ministro Marco Aurélio: Na proposta�O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Na proposta�O sr. ministro Marco Aurélio: Agora, se aceitará ou não o acusado, é outra

coisa�O sr. ministro Celso de Mello: CANCELADO�

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 319

RE 795.567

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Esse efeito certamente não seria automático� Tem que constar���

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Vossa Excelência redigirá a tese, então, e depois submeterá���

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Eu vou acrescentar este detalhe na tese�

O sr. ministro Ricardo Lewandowski (Presidente): Então, se Vossa Excelên‑cia puder ainda nesta Sessão escrever a tese, nós avançaríamos no julgamento e retomaríamos depois para o julgamento da tese�

VOTO (Aditamento)

O sr. ministro Teori Zavascki (Relator): Presidente, apenas para registrar que chegamos ao consenso sobre a tese�

A tese seria a seguinte, um pouco analítica, mas, nas circunstâncias, justifica‑se:

As consequências jurídicas extrapenais prevista no art� 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória� Tal não ocorre, portanto, quando há transação penal, cuja sentença tem natureza meramente homo‑logatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante�

As consequências geradas pela transação penal são essencialmente aquelas estipuladas, por modo consensual, no respectivo instrumento de acordo�

EXTRATO DE ATA

RE 795�567/PR — Relator: Ministro Teori Zavascki� Recorrente: Luiz Carlos de Almeida (Advogados: Jefferson Kaminski e outros)� Recorrido: Ministério Público do Estado do Paraná (Procurador: Procurador‑Geral de Justiça do Estado do Paraná)�

Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, apre‑ciando o tema 187 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordi‑nário� O Ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso por outros fundamentos� Fixada a tese de seguinte teor: “As consequências jurídicas extra penais, pre‑vistas no art� 91 do Código Penal, são decorrentes de sentença penal condena‑tória� Tal não ocorre, portanto, quando há transação penal, cuja sentença tem natureza meramente homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabi‑lidade criminal do aceitante� As consequências geradas pela transação penal

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RE 795.567

são essencialmente aquelas estipuladas por modo consensual no respectivo instrumento de acordo�”

Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski� Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Teori Zavascki e Roberto Barroso� Procurador‑Geral da República, Dr� Rodrigo Janot Monteiro de Barros�

Brasília, 28 de maio de 2015 — Fabiane Pereira de Oliveira Duarte, Assessora‑‑Chefe do Plenário�

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DECISÃO MONOCRÁTICA

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PPE 769

PRISÃO PREVENTIVA PARA EXTRADIÇÃO 769 — DF

Relator: O sr. ministro Celso de MelloRequerente: Governo da República Popular da ChinaExtraditando: Wanpu Jiang

EXTRADIÇÃO� PRISÃO CAUTELAR� LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL� PLEITO FORMULADO PELA INTERPOL A PEDIDO DO ESTADO ESTRAN‑GEIRO� POSSIBILIDADE (LEI Nº 12�878/2013)� OBSERVÂNCIA DOS REQUI‑SITOS ESTABELECIDOS EM TRATADO BILATERAL DE EXTRADIÇÃO� “PACTA SUNT SERVANDA”� EXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO RELA-TIVO À INVESTIGAÇÃO (“persecutio criminis”) SUBJACENTE AO PLEITO EXTRADICIONAL� INADMISSIBILIDADE� MODELO DE CONTENCIOSI-DADE LIMITADA ADOTADO PELO BRASIL EM TEMA DE EXTRADIÇÃO PASSIVA� DOUTRINA� PRECEDENTES� ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONTRA O SÚDITO ESTRAN‑GEIRO� IRRELEVÂNCIA� ESPÉCIES DE EXTRADIÇÃO RECONHECIDAS PELO DIREITO BRASILEIRO E ADMITIDAS PELA PRÁTICA INTERNACIO‑NAL� POSSIBILIDADE DE EXTRADIÇÃO DE NATUREZA INSTRUTÓRIA� NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DE MANDADO DE PRISÃO� PRECEDEN-TES� A QUESTÃO DA IRRETROATIVIDADE DOS TRATADOS INTERNA-CIONAIS COMO CLÁUSULA GERAL DE CARÁTER ORDINÁRIO. A CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS (ARTIGO 28)� POSSIBILI-DADE JURÍDICA DA APLICAÇÃO RETROATIVA DOS TRATADOS DE EXTRA‑DIÇÃO (pelo fato de que tais convenções internacionais não tipificam crimes nem cominam penas) A EVENTOS DELITUOSOS PERPETRA-DOS ANTES DE SUA CELEBRAÇÃO OU PROMULGAÇÃO� RECONHECI-MENTO DA LEGITIMIDADE DESSA EFICÁCIA RETROATIVA, DESDE QUE

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PPE 769

EXCEPCIONALMENTE PREVISTA NO PRÓPRIO TRATADO DE EXTRADIÇÃO� DOUTRINA� PRECEDENTES (STF)� EXISTÊNCIA DESSA PREVISÃO NO TRATADO BILATERAL DE EXTRADIÇÃO BRASIL-CHINA (ARTIGO 22, n� 3)� EXTRADITANDO CASADO COM BRASILEIRA E PAI DE CRIANÇA BRASI-LEIRA� INCIDÊNCIA DA SÚMULA 421/STF� CONSEQUENTE POSSIBILI-DADE DE EXTRADIÇÃO� PRECEDENTES ANTERIORES E POSTERIORES À CONSTITUIÇÃO DE 1988� RECEPÇÃO DESSE ENUNCIADO SUMULAR PELA VIGENTE ORDEM CONSTITUCIONAL� PEDIDO DE REVOGAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR INDEFERIDO�

DECISÃO: O ora extraditando formula pedido de revogação da prisão cautelar por mim anteriormente decretada (fls� 48/49)�

O súdito estrangeiro em questão, para fundamentar esse pleito, apoia-se, em síntese, nas seguintes razões (fls� 81v�, 82/82v�, 88/88v� e 89):

“O requerente, ao contrário do que alega a REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, através de suas autoridades respectivas, o mesmo não é nenhum fugitivo;

Nota-se que o requerente entrou no BRASIL pelo aeroporto internacional de Guarulhos/SP, em 24-9-2014, com o objetivo de casar-se com sua namorada na época e atual esposa STEFANY CARLETTI LUCAS DA SILVA JIANG, casamento realizado em 23-11-2015, conforme comprova a certidão de casamento autenticada em anexo;

Da união do casal, nasceu a filha NICOLLE RUOXI JIANG em 20-8-2015, atual-mente com 5 (cinco) meses conforme comprova pela também certidão de nascimento autenticada juntada nesta oportunidade;

Portanto, o requerente constituiu família no BRASIL, sendo que inclusive estava regularizando sua situação de estrangeiro perante as autoridades Brasileiras, onde solicitou expedição de RNE – registro nacional de estrangeiro, perante a Polí-cia Federal de São Paulo/SP, com a finalidade de permanecer definitivamente no BRASIL, declinando o seu atual endereço, para esta finalidade, onde reside com sua família sito à rua PADRE MACHADO Nº 525, APTO. 22, EDIFÍCIO ESSENTIALS, VILA MARIANA, SAÚDE, SÃO PAULO/SP, CEP 04127-001, seguindo cópia do con-trato de locação e do protocolo da STAPRO DELEMIG/SR/SP 08505.106909/2015-96;

Nota-se que o requerente nunca teve a intenção de permanecer como foragido, pois sempre externou boa-fé em território nacional, onde trabalha para o seu sus-tento e de sua família, seguindo declaração de renda em anexo;

Embora ainda não tenha obtido nacionalidade brasileira, o mesmo constituiu FAMÍLIA EM TERRITÓRIO BRASILEIRO, sendo que a Constituição Federal, em seu artigo 226 e seguintes, externa proteção especial à família;

Entendemos que, mediante todas estas circunstâncias, o requerente deveria ser ouvido por CARTA ROGATÓRIA, via Ministério das Relações Exteriores, sobre a

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 325

PPE 769

acusação que recai contra sua pessoa aqui no BRASIL e não A REPÚBLICA POPU-LAR DA CHINA se utilizar deste expediente extremo, pleiteando sua EXTRADIÇÃO, uma vez que não há qualquer condenação contra sua pessoa, apenas meras conjec-turas, o que reflete uma incoerência para individualizar qualquer conduta contra sua pessoa, salientando ainda que os fatos ali tratados no processo não passam de uma acusação totalmente genérica;

A ilegalidade da prisão preventiva do requerente está patente, pelo fato do pedido extradicional não estar suficientemente instruído, aduzindo ainda, a des-necessidade desta prisão preventiva, considerando que a liberdade do requerente não enseja perigo para instrução processual promovida pelo GOVERNO DA REPÚ-BLICA POPULAR DA CHINA;

Ao verificar atentamente os documentos que estão acostados ao pleito do GOVERNO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, e se encontram acostados às fls. 14 e às fls. 45 (ora reproduzidos em sua íntegra nas cópias que acompanham o presente), com a tradução às fls. 17/18 e 21/22, também daqueles autos, verifica-se que, em nenhum momento, foram trazidos ao pedido, documentos, sequer cópias simples, autenticadas ou mesmo certidões, que comprovassem a existência ou de sentença condenatória, ou de auto de prisão em flagrante delito, ou de tentativa de fuga do ora requerente, não cumprindo assim os requisitos dos artigos 80 e 82 da lei nº 6.815/80, ao contrário foi juntado aos autos pedido de outros 9 (nove) chineses suspeitos de crimes econômicos, conforme consta das fls. 24 à 46, que nada têm a ver com o requerente, causando até um tumulto processual;

Por mera argumentação, consta ainda que os fatos na China deram-se nos anos de 2009 a 2011, sendo que o requerente e um sócio haviam constituído uma empresa no período compreendido entre 1º-8-2013 à 3-10-2014, datas totalmente divergentes com data de entrada do requerente no BRASIL pelo aeroporto internacional de Guarulhos/SP, que se verificou em 24-9-2014, ponderando ainda que o tratado de extradição entre BRASIL E CHINA – DECRETO Nº 8.431/2015, somente entrou em vigor em 9-4-2015, portanto muito depois de todos estes episódios aventados pelo GOVERNO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA;

(...)A prisão preventiva para fins de extradição há de ser analisada caso a caso

e, ainda que se lhe seja atribuído limite temporal, compatível com o princípio da proporcionalidade, quando seriam avaliadas a sua necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito;

A prisão preventiva para a extradição do requerente subsiste há mais de 40 (quarenta) dias, sendo que o mesmo foi preso em 10-12-2015 e inexiste contra ele sentença de condenação nos autos do processo instaurado pela REPÚBLICA POPU-LAR DA CHINA;

Neste diapasão devem ser considerados os bons antecedentes do ora reque-rente, sopesando que o mesmo exerce atividade lícita no Brasil, constituiu famí-lia, esposa e filha brasileiras, as quais dependem do trabalho do requerente para o sustento do lar, possuindo ainda residência fixa, onde sempre declinou seu

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PPE 769

endereço à Polícia Federal de São Paulo, quando deu entrada ao pedido de seu RNE, devendo ser verificadas a necessidade e a compatibilidade desta custódia baseada no princípio da proporcionalidade, a fim de que esta seja limitada ao estritamente necessário;

(...)Posto isto, requer ao Ministro Relator a REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVEN-

TIVA PARA EXTRADIÇÃO, para que o requerente aguarde solto o julgamento da Extradição nº 769 da REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, determinando a expedição de Alvará de Soltura à Polícia Federal de São Paulo/SP, onde poderá ser remetido o passaporte do extraditando ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, para fins de depósito, sendo que o extraditando deverá ser advertido sobre a impossibilidade de, sem autorização deste relator da Extradição no STF, deixar a cidade de seu domicílio no Estado de São Paulo, ficando obrigado ainda a atender a todos os chamados judiciais e comparecer semanalmente à uma Vara Criminal Federal determinada da Subsecção de São Paulo, para informar sobre suas atividades, onde ficará ciente que qualquer transgressão implicará na imediata revogação da medida a ser concedida, assinando termo de responsabilidade respectivo, termos em que, com o costumeiro respeito, PEDE DEFERIMENTO.” (Grifei.)

Assinalo, de início, que o pedido de prisão cautelar para efeitos extradicionais, embora não formulado por Estado estrangeiro, foi deduzido, no entanto, por instituição – a INTERPOL (fls� 03/18) – a que diploma legislativo outorgou legitimidade ativa para apresentar ao Ministério da Justiça referido pleito�

Com efeito, a Lei nº 12.878, de 4‑11‑2013, ao alterar o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6�815/1980), notadamente no que se refere ao disposto em seu art� 82, atribuiu essa especial qualidade jurídica à INTERPOL, fazendo-o nos seguintes termos:

“Art. 82. (…)(...)§ 2º O pedido de prisão cautelar poderá ser apresentado ao Ministério da Justiça

por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), devida-mente instruído com a documentação comprobatória da existência de ordem de prisão proferida por Estado estrangeiro.” (Grifei.)

Por revelar-se admissível a formulação do pleito, decretei a prisão cautelar então requerida pela INTERPOL�

Sendo esse o contexto, passo a apreciar o pedido de revogação da prisão cautelar ora questionada� E, ao fazê-lo, indefiro-o, consideradas as razões a seguir expostas�

Cabe observar que a prisão do súdito estrangeiro constitui, ordinariamente,

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pressuposto indispensável ao regular processamento da ação de extradição passiva� A privação da liberdade individual do extraditando deve perdurar até o julgamento final, pelo Supremo Tribunal Federal, do pedido de extradição (RTJ 166/200-201, Rel� Min� CELSO DE MELLO, Pleno)�

É por essa razão que o magistério da doutrina (MIRTÔ FRAGA, “O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado”, p� 339, 1985, Forense) – refletindo o entendimento jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte (RTJ 125/1037, Rel� Min� NÉRI DA SILVEIRA – RTJ 140/136, Rel� Min� MARCO AURÉLIO – RTJ 149/374, Rel� Min� CELSO DE MELLO, v.g.) – manifesta-se no sentido da indispensabilidade da prisão cautelar para efeitos extradicionais:

“A prisão do extraditando deve perdurar até o julgamento final da Corte. Não se admitem a fiança, a liberdade vigiada, a prisão domiciliar ou a prisão-albergue. A privação da liberdade, nessa fase, é essencial ao julgamento, é condição ‘sine qua non’ para o próprio encaminhamento do pedido ao Supremo Tribunal. Ela não tem nenhuma relação com a maior ou menor gravidade da infração, maior ou menor periculosidade do agente; ela visa, tão somente, possibilitar a entrega, se a extradição vier a ser deferida. Afinal de contas, existe, no estrangeiro, uma ordem de prisão (art. 78, II) expedida contra o extraditando e há, em consequência, a presunção de que esteja fugindo à ação da Justiça do Estado requerente.” (Grifei.)

Impende registrar, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, ao pronunciar-se sobre a legitimidade constitucional da prisão preventiva para efeitos extradicionais, teve o ensejo de acentuar‑lhe a plena compatibilidade com a vigente Constituição da República, considerada a recepção, pela Carta Política, da norma legal autorizadora dessa medida cautelar de ordem pessoal:

“‘Habeas Corpus’. 2. Prisão preventiva para extradição. Formalização do pedido de extradição. 3. A prisão preventiva para extradição não ofende o disposto no art. 5º, LIV, da Constituição, como é da jurisprudência desta Corte, que teve como recepcionada a norma dela autorizatória constante do Estatuto do Estrangeiro (…).” (RTJ 179/780, Rel� Min� NÉRI DA SILVEIRA, Pleno – Grifei.)

Cumpre destacar, ainda, que o extraditando, de nacionalidade chinesa, está adequadamente identificado, cabendo ressaltar, tal como assinalado na decisão que lhe decretou a prisão cautelar, que o fato delituoso pelo qual o súdito chinês em referência está sendo investigado parece satisfazer, ao menos em princípio – e ressalvada a análise ulterior dessa questão –, a exigência imposta pelo critério da dupla tipicidade�

Com efeito, a investigação penal em curso na República Popular da China tem por objeto a suposta prática de delito previsto no Código Penal chinês

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(art� 176), que, em tese, encontraria correspondência típica no art. 16 da Lei nº 7�492/1986, que define o crime de operação não autorizada de instituição financeira, ou, até mesmo, no art. 171 do Código Penal brasileiro, que prevê o estelionato�

Ao examinar os elementos descritivos da conduta imputada ao referido súdito chinês, observei, a título de mero registro, que atos de captação de recursos junto a pessoas físicas a pretexto de investi‑los no mercado financeiro, com promessa de rendimentos, podem configurar delito contra o sistema financeiro nacional, nos termos da legislação brasileira, conforme assinala JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR (“Crimes Federais”, p� 381, 6� ed�, 2010, Livraria do Advogado Editora)�

Diferentemente do que sustenta o ora extraditando, a representação dirigida pela Interpol/Brasil ao Ministro da Justiça refere-se, expressamente, a WANPU JIANG (fls� 4 e ss�), identificando-o de modo adequado e descrevendo-lhe o comportamento alegadamente criminoso mediante indicação de dados objetivos que viabilizariam a formulação do pedido de prisão cautelar (fls� 5/6)�

Demais disso, qualquer discussão em torno do suposto envolvimento do súdito estrangeiro em causa nas práticas objeto de investigação penal no Estado requerente revelar-se-á inadequada na presente sede processual, eis que – como se sabe – o Brasil adotou, em tema de extradição passiva, o modelo de contenciosidade limitada, que se mostra incompatível com qualquer indagação em torno da prova subjacente ao procedimento penal motivador do pedido extradicional, inclusive a análise da suposta autoria do fato delituoso (Ext 1.171/Argentina, Rel� Min� CELSO DE MELLO, v.g.) e/ou da culpabilidade do extraditando�

Vale relembrar, por oportuno, que essa tem sido a orientação jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (Ext 1.121/EUA, Rel� Min� CELSO DE MELLO – Ext 1.126/República Federal da Alemanha, Rel� Min� JOAQUIM BARBOSA, v.g.):

“(...) PROCESSO EXTRADICIONAL E SISTEMA DE CONTENCIOSIDADE LIMITADA: INAD-MISSIBILIDADE DE DISCUSSÃO SOBRE A PROVA PENAL PRODUZIDA PERANTE O ESTADO REQUERENTE.

– A ação de extradição passiva não confere, ordinariamente, ao Supremo Tribunal Federal qualquer poder de indagação sobre o mérito da pretensão deduzida pelo Estado requerente ou sobre o contexto probatório em que a postulação extradi-cional apoia-se, não cabendo, ainda, a esta Corte Suprema o exame aprofundado dos fatos subjacentes à acusação penal. Precedentes. Doutrina.

– O sistema de contenciosidade limitada, que caracteriza o regime jurídico da extradição passiva no direito positivo brasileiro, não permite qualquer indagação

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PPE 769

probatória pertinente ao ilícito criminal cuja persecução, no exterior, justificou o ajuizamento da demanda extradicional perante o Supremo Tribunal Federal. (…).” (Ext 1.334/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO�)

Vê-se, assim, que nenhum relevo tem para o sistema extradicional vigente no Brasil a discussão probatória sobre a realidade material do fato delituoso, inclusive sobre o dolo motivador da conduta alegadamente delituosa, e sobre os elementos de convicção concernentes à autoria da prática criminosa atribuída ao extraditando (RTJ 160/105-106, Rel� Min� CELSO DE MELLO)�

E a razão é uma só: o modelo que rege, no Brasil, a disciplina normativa da extradição passiva – vinculado, quanto à sua matriz jurídica, ao sistema misto ou belga – não autoriza que se renove, no âmbito do processo extradicional, o litígio penal que lhe deu origem nem que se promova o reexame ou a rediscussão do mérito (RTJ 161/409‑411 – RTJ 170/746‑747, v.g.)�

De outro lado, o ilícito penal em causa não parece incidir nas restrições que, estabelecidas pela lei brasileira (Lei nº 6.815/1980, art� 76) e pelo tratado bilateral existente entre o Brasil e a República Popular da China (Artigo 3º), impediriam, caso ocorrentes, a efetivação da própria entrega extradicional�

Reconheço, portanto, que está suficientemente instruído o pedido de prisão preventiva para efeitos extradicionais, eis que se acham preenchidos, na espécie, os requisitos necessários ao seu atendimento, notadamente aqueles inscritos no Artigo 9º, nº 2, do Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Popular da China (promulgado pelo Decreto 8�431/2015)�

Impõe-se enfatizar, de outro lado, considerados os fundamentos subjacentes ao pleito de revogação da prisão cautelar, que não tem qualquer relevo jurídico o fato de inexistir, no momento, “sentença condenatória” contra o extraditando, pois, como se sabe, o ordenamento positivo brasileiro e o tratado bilateral de extradição Brasil/China expressamente reconhecem a possibilidade de formulação de pedido extradicional de caráter meramente instrutório.

Com efeito, o modelo extradicional vigente no Brasil admite 2 (duas) modalidades de extradição: (a) extradição executória (que supõe condenação penal, ainda que não transitada em julgado) e (b) extradição instrutória (que se satisfaz com a simples existência de investigação penal), sendo comum a ambas as espécies o requisito – atendido no caso – da existência de mandado de prisão�

Legítima, desse modo, a demanda extradicional que se apoie, unicamente, como sucede na espécie, na existência de investigação penal ou de processo judicial ainda em tramitação, desde que haja ordem de prisão emanada de

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PPE 769

autoridade competente segundo a legislação do Estado requerente (Ext 652/Alemanha, Rel� Min� CELSO DE MELLO):

“LEGITIMIDADE DA EXTRADIÇÃO DE CARÁTER INSTRUTÓRIO– O fato de não existir condenação penal, mas simples investigação criminal

ou processo judicial ainda em curso, desde que comprovada, em qualquer dessas situações, decretação de prisão cautelar, não constitui obstáculo jurídico à for-mulação de pedido de extradição, que se revestirá, então, de natureza meramente instrutória, que traduz, ao lado da extradição executória, expressivo instrumento de cooperação internacional na repressão aos delitos comuns. Precedente.” (Ext 1.407/DF, Rel� Min� CELSO DE MELLO�)

Há, também, outro fundamento que o ora extraditando invoca como suporte do pedido de revogação de sua prisão cautelar� Esse súdito estrangeiro apoia o seu pleito na alegação de que “constituiu família em território brasileiro” (fl� 82)�

Esse outro fundamento – casamento (ou união estável) de estrangeiro com brasileira – não atua como causa obstativa da extradição� Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, em inúmeros precedentes (RTJ 155/34‑35 – RTJ 177/1250‑1251 – RTJ 183/42‑43 – RTJ 191/17‑18, v.g.), de que resultou a formulação da Súmula 421, tem salientado que o casamento com brasileiro ou brasileira (inclusive a união estável) não constitui obstáculo ao deferimento da extradição do súdito estrangeiro:

“(…) EXISTÊNCIA DE FAMÍLIA BRASILEIRA, NOTADAMENTE DE FILHO COM NACIONALIDADE BRASILEIRA ORIGINÁRIA – SITUAÇÃO QUE NÃO IMPEDE A EXTRADIÇÃO – COMPATIBILI-DADE DA SÚMULA 421/STF COM A VIGENTE CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.

– A existência de relações familiares, a comprovação de vínculo conjugal ou a convivência ‘more uxorio’ do extraditando com pessoa de nacionalidade brasileira constituem fatos destituídos de relevância jurídica para efeitos extradicionais, não impedindo, em consequência, a efetivação da extradição do súdito estran-geiro. Precedentes.

– Não impede a extradição o fato de o súdito estrangeiro ser casado ou viver em união estável com pessoa de nacionalidade brasileira, ainda que com esta possua filho brasileiro.

– A Súmula 421/STF revela-se compatível com a vigente Constituição da Repú-blica, pois, em tema de cooperação internacional na repressão a atos de crimi-nalidade comum, a existência de vínculos conjugais e/ou familiares com pessoas de nacionalidade brasileira não se qualifica como causa obstativa da extradição. Precedentes.” (Ext 1.073/República do Peru, Rel� Min� CELSO DE MELLO�)

Melhor sorte não assiste, ainda, a esse súdito estrangeiro no ponto em que sustenta serem os fatos a ele imputados anteriores à promulgação do Tratado de Extradição Brasil/China, considerada a circunstância de que tratados

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PPE 769

internacionais – segundo alega – possuem, unicamente, eficácia prospectiva, não podendo, por isso mesmo, estender‑se a eventos ocorridos no passado�

Sem razão o ora extraditando, pois referido tratado de extradição expressamente prevê, em seu Artigo 22, nº 3, que as suas disposições também serão aplicadas aos delitos cometidos antes de sua vigência�

Esse aspecto de ordem temporal põe em evidência a questão pertinente à retroatividade dos tratados internacionais, que constitui matéria sujeita a intensa discussão no plano doutrinário, valendo referir, nesse contexto, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) – hoje formalmente incorporada ao ordenamento positivo interno do Brasil (Decreto nº 7�030/2009) –, cujo Artigo 28, embora consagrando o princípio da irretroatividade, não impede que as Altas Partes Contratantes disponham diversamente nos tratados que venham a celebrar, tal como observa, em obra monográfica, JOSÉ FRANCISCO REZEK (“Direito dos Tratados”, p� 415, item n� 345, 1984, Forense):

“É primariamente lógico que nenhum tratado – como, de resto, nenhum fato humano – pode produzir qualquer efeito senão a partir do momento em que con-sumado. Admite-se, entretanto, que a norma jurídica expressa em tratado ou lei opere, desde quando vigente, em relação a fatos ou situações preexistentes. Isto é o que leva o nome de retroação, e que, nos tratados como nas leis, tem a marca da excepcionalidade.” (Grifei.)

Cabe referir, por oportuno, que esse entendimento – que excepcionalmente admite a aplicação retroativa dos tratados internacionais, ainda que em sede extradicional, desde que assim ajustado pelos Estados Partes – é também perfilhado por ilustres doutrinadores (MARCELO D� VARELLA, “Direito Internacional Público”, p� 93/94, item n� 4�1�2, 2009, Saraiva; VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, “Curso de Direito Internacional Público”, p� 279/280, 7ª ed�, 2013, RT; YUSSEF SAID CAHALI, “Estatuto do Estrangeiro”, p� 264/265, item n� 26�9, 2ª ed�, 2011, RT; GILDA MACIEL CORRÊA MEYER RUSSOMANO, “A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro”, p� 47, 1981, RT; JUAN DE DIOS GIRALDO SUAREZ, “El Derecho de los Tratados”, p� 109, 1976, Ediciones Tenaces, Colômbia, v.g.)�

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, ao julgar essa questão em sede de processo extradicional, admitiu a possibilidade jurídica de o tratado internacional aplicar-se a fatos ocorridos anteriormente à sua celebração (Ext 759 ED/República Italiana, Rel� Min� MOREIRA ALVES), invocando, para tanto, nessa decisão, precedente firmado pelo Plenário desta Suprema Corte no julgamento da Ext 664/Reino da Espanha, Rel� Min� MAURÍCIO CORRÊA:

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PPE 769

“1. As normas extradicionais, legais ou convencionais, não constituem lei penal, não incidindo, em consequência, a vedação constitucional de aplicação a fato anterior da legislação penal menos favorável.” (Ext 864/República Italiana, Rel� Min� SEPÚLVEDA PERTENCE – Grifei.)

Possível, desse modo, a aplicação retroativa de tratados de extradição, desde que – como sucede na espécie – haja expressa previsão pactuada pelos Estados celebrantes (Tratado de Extradição Brasil/China, Artigo 22, n� 3)�

Mesmo que não fosse lícito conferir eficácia retroativa a tratado de extradição, tal circunstância não impediria a formulação de pedido extradicional, pois este – como se sabe – pode apoiar-se em outro fundamento jurídico, a promessa de reciprocidade (Ext 897/República Tcheca, Rel� Min� CELSO DE MELLO, v.g.), que constitui fonte formal do direito extradicional�

Não é por outra razão que esta Suprema Corte, ao pronunciar-se sobre o tema ora em análise, tem expressamente reconhecido essa possibilidade:

“A inexistência de tratado de extradição não impede a formulação e o eventual atendimento do pleito extradicional, desde que o Estado requerente prometa reciprocidade de tratamento ao Brasil, mediante expediente (Nota Verbal) for-malmente transmitido por via diplomática. Doutrina. Precedentes.” (Ext 953/Alemanha, Rel� Min� CELSO DE MELLO, Pleno.)

Sendo assim, e pelas razões expostas, indefiro o pedido de revogação da prisão cautelar do ora extraditando�

2� Assinalo, para efeito de registro, que a República Popular da China já formulou pedido de extradição de WANPU JIANG, autuado, nesta Corte, como Ext 1�442/DF, cumprindo observar, por relevante, que esse pleito extradicional foi deduzido em tempo oportuno, vale dizer, no prazo de sessenta (60) dias a que se refere o Artigo 9º, nº 4, do tratado bilateral de extradição Brasil/China�

3� Apensem-se os presentes autos (PPE 769/DF) aos da Ext 1�442/DF, de que sou Relator�

Publique‑se�Brasília, 18 de fevereiro de 2016 — Celso de Mello, Relator�

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ÍNDICE ALFABÉTICO

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APn Abatimento em condenação por crime posterior: impossi‑

bilidade� (���) Detração penal. HC 111�081105

Ct Ação civil pública. Legitimidade ativa� Defensoria Públi‑ca� Direitos transindividuais e individuais homogêneos dos hipossuficientes: tutela� Acesso à Justiça� CF/1988, art� 5º, XXXV, LXXIV e LXXVIII� Lei 7�347/1985, art� 5º, II, redação da Lei 11�448/2007: constitucionalidade� ADI 3�943

9

Ct Ação civil pública. Legitimidade ativa� Ministério Públi‑co: ausência de exclusividade� ADI 3�943

9

Ct Acesso à Justiça� (���) Ação civil pública. ADI 3�943 9

TrPrv ADI 1�232: superação do entendimento� (���) Assistência social. RE 567�985

113

Trbt Aplicação financeira: extensão� (���) Imunidade tributá-ria. AI 749�009 AgR

248

TrPrv Assistência social. Idoso ou deficiente� Benefício mensal� Renda familiar mensal per capita inferior a um quar‑to do salário mínimo: transponibilidade do requisito� ADI 1�232: superação do entendimento� CF/1988, art� 203, V� Lei 8�742/1993, art� 20, § 3º: inconstitucionalidade par‑cial sem pronúncia de nulidade� Repercussão geral: Tema 27� RE 567�985

113

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336 | Revista Trimestral de Jurisprudência

Ben-Con

BTrPrv Benefício mensal� (���) Assistência social. RE 567�985 113

CCt Carteira de identidade. Emissão� Inclusão de tipo sanguí‑

neo e fator RH quando solicitado pelo interessado: obriga‑toriedade fixada por lei estadual� Lei 9�049/1995, art�  2º: observância� Usurpação de competência privativa da União: inocorrência� CF/1988, art� 22, I e XXV� Lei estadual 12�282/2006/SP: constitucionalidade� ADI 4�007

68

Pn Causa de diminuição: inaplicabilidade� (���) Pena. RE 600�817

204

Ct CF/1988, art� 5º, XXXV, LXXIV e LXXVIII� (���) Ação civil pública. ADI 3�943

9

PrPn CF/1988, arts� 5º, XXXVIII, c, e LIII; e 129, I� (���) Júri. RE 593�443

173

Ct CF/1988, art� 22, I e XXV� (���) Carteira de identidade. ADI 4�007

68

Ct CF/1988, art� 102, I, r� (���) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). MS 31�769 AgR

85

Trbt CF/1988, art� 150, VI, c� (���) Imunidade tributária. AI 749�009 AgR

248

TrPrv CF/1988, art� 203, V� (���) Assistência social. RE 567�985 113

Pn Concurso entre circunstâncias agravante e atenuante� (���) Pena. HC 106�172

100

PrPn Confisco de bem com base no art� 91, II, do CP/1940: impos‑sibilidade� (���) Juizado Especial. RE 795�567

254

Pn Conflito intertemporal de leis� (���) Pena. RE 600�817 204

Pn Conjugação de partes mais benéficas das normas: impossi‑bilidade� (���) Pena. RE 600�817

204

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 337

Côn-Dir

Int Cônjuge e filho brasileiros: causas não obstativas� (���) Ex-tradição. PPE 769

323

Ct Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Deliberação negati‑va� Revisão pelo STF: impossibilidade� CF/1988, art� 102, I, r� MS 31�769 AgR

85

Int Convenção de Viena, art� 28� (���) Extradição. PPE 769 323

Pn CP/1940, art� 42, parágrafo único: supressão� (���) Detração penal. HC 111�081

105

Pn CP/1940, art� 67� (���) Pena. HC 106�172 100

PrPn CP/1940, art� 91, II� (���) Juizado Especial. RE 795�567 254

Pn Crime praticado na vigência da Lei 6�368/1976� (���) Pena. RE 600�817

204

DCt Defensoria Pública� (���) Ação civil pública. ADI 3�943 9

Ct Deliberação negativa� (���) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). MS 31�769 AgR

85

Int Delito anterior à celebração do tratado� (���) Extradição. PPE 769

323

PrCv Descumprimento de decisão judicial� (���) Multa cominató-ria (“astreintes”). AI 732�188 AgR

241

Pn Detração penal. Tempo de prisão provisória indevida‑mente cumprido� Abatimento em condenação por crime posterior: impossibilidade� Interpretação do art� 42 do CP/1940� CP/1940, art� 42, parágrafo único: supressão� HC 111�081

105

PrPn Devido processo legal� (���) Juizado Especial. RE 795�567 254

Ct Direitos transindividuais e individuais homogêneos dos hipossuficientes: tutela� (���) Ação civil pública. ADI 3�943

9

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338 | Revista Trimestral de Jurisprudência

Emi-Imu

ECt Emissão� (���) Carteira de identidade. ADI 4�007 68

Trbt Entidade de assistência social� (���) Imunidade tributária. AI 749�009 AgR

248

Int Exceção ao princípio da irretroatividade dos tratados inter‑nacionais� (���) Extradição. PPE 769

323

Int Extradição. Extradição instrutória� Inexistência de sen‑tença penal condenatória: irrelevância� PPE 769

323

Int Extradição. Possibilidade� Cônjuge e filho brasileiros: cau‑sas não obstativas� Súmula 421 do STF� PPE 769

323

Int Extradição. Possibilidade� Delito anterior à celebração do tratado� Previsão de eficácia retroativa do Tratado Brasil‑‑China: legitimidade� Exceção ao princípio da irretroati‑vidade dos tratados internacionais� Convenção de Viena, art� 28� PPE 769

323

Int Extradição instrutória� (���) Extradição. PPE 769 323

FPn Fixação� (���) Pena. RE 600�817 204

PrCv Função coercitiva� (���) Multa cominatória (“astreintes”). AI 732�188 AgR

241

ITrPrv Idoso ou deficiente� (���) Assistência social. RE 567�985 113

PrCv Imposição contra o Poder Público: legitimidade� (���) Multa cominatória (“astreintes”). AI 732�188 AgR

241

Trbt Imunidade tributária. Entidade de assistência social� Aplicação financeira: extensão� Renda auferida visando resguardar o patrimônio dos efeitos da inflação� CF/1988, art� 150, VI, c� AI 749�009 AgR

248

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 339

Inc-Lei

Ct Inclusão de tipo sanguíneo e fator RH quando solicitado pelo interessado: obrigatoriedade fixada por lei estadual� (���) Carteira de identidade. ADI 4�007

68

Int Inexistência de sentença penal condenatória: irrelevância� (���) Extradição. PPE 769

323

Pn Interpretação do art� 42 do CP/1940� (���) Detração penal. HC 111�081

105

JPrPn Juizado Especial. Transação penal� Sentença: natureza

homologatória� Juízo sobre a responsabilidade criminal: ausência� Confisco de bem com base no art� 91, II, do CP/1940: impossibilidade� Devido processo legal� CP/1940, art� 91, II� Lei 9�099/1995, art� 76� Repercussão geral: Tema 187� RE 795�567

254

PrPn Juízo sobre a responsabilidade criminal: ausência� (���) Jui-zado Especial. RE 795�567

254

PrPn Júri. Rejeição da denúncia, impronúncia, absolvição su‑mária ou trancamento da ação penal por falta de justa cau‑sa: decisão do Poder Judiciário� Monopólio da ação penal pública, postulados do juiz natural e da soberania dos ve‑redictos: ofensa inocorrente� CF/1988, arts� 5º, XXXVIII, c, e LIII; e 129, I� Repercussão geral: Tema 154� RE 593�443

173

PrSTF Júri: trancamento da ação penal pelo STJ� (���) Recurso extra-ordinário. RE 593�443

173

LCt Legitimidade ativa� (���) Ação civil pública. ADI 3�943 9

Ct Lei 7�347/1985, art� 5º, II, redação da Lei 11�448/2007: cons‑titucionalidade� (���) Ação civil pública. ADI 3�943

9

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340 | Revista Trimestral de Jurisprudência

Lei-Pen

TrPrv Lei 8�742/1993, art� 20, § 3º: inconstitucionalidade par‑cial sem pronúncia de nulidade� (���) Assistência social. RE 567�985

113

Ct Lei 9�049/1995, art� 2º: observância� (���) Carteira de iden-tidade. ADI 4�007

68

PrPn Lei 9�099/1995, art� 76� (���) Juizado Especial. RE 795�567 254

Pn Lei 11�343/2006, art� 33, § 4º� (���) Pena. RE 600�817 204

Ct Lei estadual 12�282/2006/SP: constitucionalidade� (���) Car-teira de identidade. ADI 4�007

68

MCt Ministério Público: ausência de exclusividade� (���) Ação

civil pública. ADI 3�9439

PrPn Monopólio da ação penal pública, postulados do juiz na‑tural e da soberania dos veredictos: ofensa inocorrente� (���) Júri. RE 593�443

173

PrCv Multa cominatória (“astreintes”). Imposição contra o Poder Público: legitimidade� Descumprimento de decisão judicial� Função coercitiva� Princípio da separação dos Poderes: ofensa inocorrente� AI 732�188 AgR

241

NPn Norma mais favorável ao réu: aplicação na sua integra‑

lidade� (���) Pena. RE 600�817204

PPn Pena. Concurso entre circunstâncias agravante e ate‑

nuante� Reincidência: preponderância sobre a confissão espontânea� CP/1940, art� 67� HC 106�172

100

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 341

Pen-Rej

Pn Pena. Fixação� Conflito intertemporal de leis� Conjugação de partes mais benéficas das normas: impossibilidade� Norma mais favorável ao réu: aplicação na sua integralida‑de� Repercussão geral: Tema 169� RE 600�817

204

Pn Pena. Fixação� Conflito intertemporal de leis� Conjugação de partes mais benéficas das normas: impossibilidade� Princípio da legalidade e da separação dos Poderes� Reper‑cussão geral: Tema 169� RE 600�817

204

Pn Pena. Fixação� Tráfico de entorpecente� Crime praticado na vigência da Lei 6�368/1976� Causa de diminuição: inapli‑cabilidade� Lei 11�343/2006, art� 33, § 4º� Repercussão geral: Tema 169� RE 600�817

204

Int Possibilidade� (���) Extradição. PPE 769 323

Int Previsão de eficácia retroativa do Tratado Brasil‑China: legitimidade� (���) Extradição. PPE 769

323

Pn Princípio da legalidade e da separação dos Poderes� (���) Pena. RE 600�817

204

PrCv Princípio da separação dos Poderes: ofensa inocorrente� (���) Multa cominatória (“astreintes”). AI 732�188 AgR

241

RPrSTF Recurso extraordinário. Reexame de prova� Júri: tran‑

camento da ação penal pelo STJ� Súmula 279 do STF� RE 593�443

173

PrSTF Reexame de prova� (���) Recurso extraordinário. RE 593�443 173

Pn Reincidência: preponderância sobre a confissão espontâ‑nea� (���) Pena. HC 106�172

100

PrPn Rejeição da denúncia, impronúncia, absolvição sumária ou trancamento da ação penal por falta de justa causa: decisão do Poder Judiciário� (���) Júri. RE 593�443

173

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342 | Revista Trimestral de Jurisprudência

Ren-Tra

Trbt Renda auferida visando resguardar o patrimônio dos efei‑tos da inflação� (���) Imunidade tributária. AI 749�009 AgR

248

TrPrv Renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo: transponibilidade do requisito� (���) Assis-tência social. RE 567�985

113

TrPrv Repercussão geral: Tema 27� (���) Assistência social. RE 567�985

113

PrPn Repercussão geral: Tema 154� (���) Júri. RE 593�443 173

Pn Repercussão geral: Tema 169� (���) Pena. RE 600�817 204

PrPn Repercussão geral: Tema 187� (���) Juizado Especial. RE 795�567

254

Ct Revisão pelo STF: impossibilidade� (���) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). MS 31�769 AgR

85

SPrPn Sentença: natureza homologatória� (���) Juizado Especial.

RE 795�567254

PrSTF Súmula 279 do STF� (���) Recurso extraordinário. RE 593�443

173

Int Súmula 421 do STF� (���) Extradição. PPE 769 323

TPn Tempo de prisão provisória indevidamente cumprido� (���)

Detração penal. HC 111�081105

Pn Tráfico de entorpecente� (���) Pena. RE 600�817 204

PrPn Transação penal� (���) Juizado Especial. RE 795�567 254

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 343

Usu-Usu

UCt Usurpação de competência privativa da União: inocorrên‑

cia� (���) Carteira de identidade. ADI 4�00768

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ÍNDICE NUMÉRICO

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volume 236 | abril a junho de 2016 | 347

ACÓRDÃOS E DECISÕES MONOCRÁTICAS

769 (PPE) � � � � � � � � � Rel�: Min� Celso de Mello � � � � � � � � � � � � �323 3�943 (ADI) � � � � � � � � � Rel�: Min� Cármen Lúcia � � � � � � � � � � � � � � 9 4�007 (ADI) � � � � � � � � � Rel�: Min� Rosa Weber � � � � � � � � � � � � � � � 68 31�769 (MS‑AgR) � � � � � � � Rel�: Min� Celso de Mello � � � � � � � � � � � � � 85 106�172 (HC) � � � � � � � � � � Rel�: Min� Gilmar Mendes � � � � � � � � � � � �100 111�081 (HC) � � � � � � � � � � Rel�: Min� Luiz Fux � � � � � � � � � � � � � � � � �105 567�985 (RE) � � � � � � � � � � Rel� p/ o ac�: Min� Gilmar Mendes � � � � � � 113 593�443 (RE) � � � � � � � � � � � � Rel� p/ o ac�: Min� Ricardo Lewandowski � � � � 173 600�817 (RE) � � � � � � � � � � Rel�: Min� Ricardo Lewandowski � � � � � � � �204 732�188 (AI‑AgR) � � � � � � � Rel�: Min� Dias Toffoli � � � � � � � � � � � � � � �241 749�009 (AI‑AgR) � � � � � � � Rel�: Min� Luiz Fux � � � � � � � � � � � � � � � � �248 795�567 (RE) � � � � � � � � � � Rel�: Min� Teori Zavascki � � � � � � � � � � � � �254

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Este livro foi projetado por Eduardo Franco Dias e composto por Camila Penha Soares, Eduardo Franco Dias, Neir dos Reis Lima e Silva e Patrícia Amador Medeiros na Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal.

A fonte de texto é a Kepler Std, projetada por Robert Slimbach e editada pela Adobe Systems em 2003.

Os títulos e destaques foram compostos em Helvetica Neue LT Std. Ela é uma ampliação da família tipográfica de Max Miedinger e Eduard Hoffmann, criada em 1957 na Suíça e reeditada em 1983 pela Adobe Systems.

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ISSN 0035 - 0540