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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB V.9 nº 1 janeiro/junho 2010 Brasília ISSN – 1518-5494 Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB | V.9 nº 1 janeiro/junho 2010 ISSN – 1518-5494 SEMINÁRIOS

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnBV.9 nº 1 janeiro/junho 2010BrasíliaISSN – 1518-5494

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ISSN – 1518-5494

SEMINÁRIOS

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnBV.9 nº 1 janeiro/junho 2010

BrasíliaISSN – 1518-5494

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor

José Geraldo de Sousa Júnior

Vice-Reitor

João Batista de Sousa

INSTITUTO DE ARTES

Diretora

Izabela Costa Brochado

Vice-Diretora

Nivalda Assunção

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

Programa de Pós-Graduação em Arte

Coordenador

Nelson Maravalhas Jr.

REVISTA VIS

Editor

Nelson Maravalhas Jr.

Editores Convidados

Geraldo Orthof e Roberta Kumasaka Matsumoto

Editores Colaboradores

Fátima Burgos e Pedro Alvim

Conselho Editorial

Jorge Coli (UNICAMP), Luis Sérgio Oliveira (UFF), Jorge Anthonio e Silva (UNISO), Nelson Maravalhas Jr. (UnB), Maria

Beatriz Medeiros (UnB), Nivalda Assunção (UnB), Roberta Matsumoto (UnB) e Pedro Alvim (UnB)

Projeto Gráfico

Henrique Meuren

Capa

Henrique Meuren

Foto da Capa

Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na improvisação – UnB maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e Marcos

Menezes

Revisão

Lilian Garcez

V822 Programa de Pós-Graduação em Arte

Universidade de Brasília

Campus Universitário Darcy Ribeiro

Prédio SG-1

Brasília-DF - 70910-900

Telefone: 55 (61) 3307 1173

Fax: 55 (61) 3274-5370

[email protected]

• Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.• As imagens de documentação da Universidade de Brasília fazem parte do acervo do Cedoc-UnB.• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>

VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte – V. 9 nº 1 janeiro/junho 2010, Brasília: Programa de Pós-Graduação em Arte, 2010176 p.

SemestralISSN 1518-54941.Artes Visuais. 2.Arte Contemporânea. 3.Interdisciplinaridade. 4. Artes no Brasil. 5. Processos Artísticos.

CDU 7(05)

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SUMÁRIO

EDITORAL

TEORIA E HISTÓRIA DA ARTEA Itinerância dos Artistas: O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIXAngélica Madeira

A Lógica da Aparência (O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)Walter Romero Menon Junior

Matisse, Newman, Bené Fontele:A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do DemiurgoVera Pugliese

POÉTICAS CONTEMPORÂNEASElsewhere in Contemporary Art:Topologies of Artists’ Works, Writings, and ArchivesSimone Osthoff

A Fragilidade como Potência: Precariedade e ImagemLuciana Paiva

As Sombras dos Cantos: Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da CasaCecília Mori Cruz

PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENADe Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória TeatralMarianna Monteiro

A Imagem na Improvisação: A Dança do ImprevistoCarla Sabrina Cunha

O Rei Lear, suas Referências e NíveisSuzi Frankl Sperber

ARTE E TECNOLOGIAInterfaces Computacionais: Perspectivas PoéticasCleomar Rocha

Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologia pela Arte_HackeamentoDaniel Hora

Entre o Real e o Imaginário: A Poética de uma Experiência VividaGabrielle Patrícia Augusta Corrêa de Oliveira

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RESENHASBlue HeartCHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.Laura Alves Moreira

Maciej Babinski – EntrevistasAZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.Isabel Candolo

What is Dance? Readings in Theory and CriticismCOPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983. 582 p.Cínthia Nepomuceno

Oswaldo Goeldi: Iluminação, IlustraçãoRUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.Fabio Fonseca

O Projeto de Rembrand.O Ateliê e o MercadoALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p.Juliana de Souza Silva

O Mundo Codificado: por uma Filosofia do Design e da ComunicaçãoFLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.Carlos Praude

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EDITORAL

Este número da Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília é o segundo planejado de forma articulada à disciplina Seminário Avançado, estruturado a partir de um conjunto de falas proferidas por professores e pesquisadores de diversas universidades. O número especial de janeiro/junho de 2008 (v. 7, n� 1) inaugurou a publicação de textos rela-O número especial de janeiro/junho de 2008 (v. 7, n� 1) inaugurou a publicação de textos rela-tivos às palestras oferecidas no quadro da disciplina Seminário Avançado. No período em questão, a disciplina havia estabelecido uma pauta de reflexão sobre “perspectivas para a investigação na arte”, que funcionou como elo entre os diversos temas escolhidos pelos convidados. O momento era marcado, além disso, pela abertura do curso de Doutorado em Artes na UnB. Hoje o PPG-Arte/UnB continua a abrigar as linhas de pesquisa de Arte e Tecnologia, Poéticas Contemporâneas, Processos Composicionais para a Cena e Teoria e História da Arte, vinculadas à área de concentração Arte Contemporânea. Durante o primeiro período de 2009, o Seminá-rio Avançado esteve sob a responsabilidade de quatro professores-representantes das linhas de pesquisa, que, no presente número, ocupam a função de editores convidados. Os palestrantes convidados pelos professores-representantes tiveram autonomia na escolha dos temas de suas palestras, não havendo uma definição prévia do eixo temático. Outra diferença em relação ao momento anterior foi o estabelecimento de um compromisso com a publicação de textos de estudantes dos cursos de mestrado e doutorado, a partir de uma seleção feita pelos professores dos trabalhos apresentados ao longo da disciplina. Este número da revista apresenta, assim, uma amostra das pesquisas realizadas por mestrandos e doutorandos que cursaram, de forma simultânea, o Seminário Avançado em 2009. Decidiu-se também pela inclusão de uma seção de resenhas de livros (que pode estender-se, futuramente, a outros tipos de pro-duções, exposições e diferentes formas de intervenção artística), buscando estimular junto aos es-tudantes a elaboração de textos críticos sobre obras recentemente publicadas e/ou de circulação restrita no Brasil, que têm servido de referência a pesquisas feitas no PPG-Arte. Os artigos da revista continuam a exprimir uma diversidade de abordagens e pontos de vista, o que, como já ocorria, tende a refletir um triplo viés: análise do estado contemporâneo das artes, desdobramentos críticos do projeto moderno e releitura permanente do legado poético e teórico da tradição. Este segundo número da revista com textos ligados ao Seminário Avançado propõe-se a cumprir uma função de registrar e acompanhar os trabalhos de pesquisa teórica e poética desenvolvidos no PPG-Arte/UnB. Como na edição anterior, buscamos a contribuição de pesquisadores externos a esse quadro institucional específico, abrindo espaço, contudo, para o início de um processo de reflexão sobre a produção intelectual e poética que vem sendo aqui realizada, tendo em vista um aumento do diálogo entre as linhas de pesquisa e um maior conheci-mento do direcionamento dos trabalhos realizados em nosso meio acadêmico.

Geraldo OrthofRoberta Kumasaka Matsumoto

Fátima BurgosPedro Alvim

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TEORIA E HISTÓRIA DA ARTE

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A Itinerância dos Artistas:O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIX

ANGÉLICA MADEIRA*

ResumoEste artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa sobre a constituição e organização do campo das artes nas

cidades-capitais do Brasil, com o foco no Rio de Janeiro do século XIX. Trata-se da expansão de um dos tópicos da palestra

proferida no Instituto de Artes da UnB, em 2009. Ao invés de apresentar toda a pesquisa, como na versão oral, preferi

deter-me sobre a questão da modelagem europeia de todo o processo civilizador pelo qual passaram as cidades brasileiras

no século XIX, particularmente notável no Rio de Janeiro, que representou o papel de cidade-modelo, sendo a capital

política e cultural do país.

Palavras-chave: Campo artístico. Artes visuais. Rio de Janeiro. Século XIX.

AbstractThis article presents the partial results of a research about the constitution and organization of the field of arts in the capitals cit-

ies of Brazil, focusing Rio de Janeiro in the XIXth Century. It devellops a topic from the speech given in the Arts Institute of Brasilia

University, in 2009. Instead of present all the research, as in the oral version, I have preferred to focus on the European modelling

of the civilisatory process in which were involved the Brazilian cities in the XIX th Century, especially remarkable in Rio de Janeiro,

which played the role of model city, as the politic and cultural capital of Brazil.

Keywords: Artistic field. Visual arts. Rio de Janeiro. XIXth Century.

* Angélica Madeira é Doutora em Semiótica pela Universidade Paris VII, professora e pesquisadora do Departamento de

Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco – MRE. Publicou os livros Leituras Brasileiras: Itinerários no

Pensamento Social e na Literatura (Ed. Paz e Terra, 1999) e Descobertas do Brasil (Ed. da UnB, 2001), em parceria com Mariza

Veloso, além de diversos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros sobre literatura e cultura urbana. Publicou, em

2005, pela Editora da UnB, o Livro dos Naufrágios – Ensaio Sobre a História Trágico-Marítima, que recebeu o Prêmio Sérgio

Buarque de Holanda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o Prêmio de melhor obra publicada em Ciências Sociais,

pela Anpocs – Associação Nacional de Pesquisadores em Ciências Sociais, em 2006. Sua pesquisa atual trata da Itinerância

dos artistas nas cidades-capitais.

Parte-se aqui do pressuposto de que existe um forte elo entre campo artístico e campo político. A cada mudança de capital e a cada mudança política, há rearranjos de instituições e dos grupos que definem uma época, seu gosto artístico e o estilo de vida das cidades. A hipótese sobre a Itinerância dos artistas comporta uma dimensão ao mesmo tempo histórica e sociológica e se formula com base em documentos e na constatação empírica do fluxo de artistas, de obras e de modelos de arte que acompanha a migração das capitais. Este texto busca comparar dados e ava-liar a pertinência e o rendimento de categorias de análise já testadas sobre Brasília e que, agora,

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orientam os estudos sobre a Itinerância dos artistas no Rio de Janeiro do período imperial. Foram examinados parte da documentação disponível nos arquivos, obras literárias e relatos de época para compreender a dinâmica do trabalho intelectual e artístico, assim como os procedimentos concretos, equipamentos e instituições criadas para o funcionamento da vida artística na capital do Vice-Reinado e do Império. Examina-se aqui tanto a presença dos artistas – viajantes europeus no Rio de Janeiro – quanto os estudos dos artistas brasileiros na Europa. As duas posições evi-denciam a pertinência do tema: o molde e a moldura do olhar brasileiro, a visibilidade possível na força do olhar estrangeiro. O interesse sociológico da Itinerância é evidente. Trata-se de um poderoso conceito mediador que permite pensar a prática e recobre uma camada semântica densa que inclui a experiência do exílio, do turismo, da emigração por busca de trabalho ou de refúgio político. Para os artistas, a Itinerância tanto pode referir-se à prática artística e aos circuitos institucionais nos quais esta prática está enredada como à atitude existencial exigida dos próprios artistas e que os faz tão disponíveis para mudanças. Itinerância ajuda a compreender o quanto o devir profissional de um artista está relacionado aos circuitos sociais e institucionais que pontuam seu percurso e como ele se desloca dentro desse circuito, onde se dão os agenciamentos sociais e se estabelecem as regras e as hierarquias. No interior dos circuitos ou em intersecções entre eles definem-se práticas e habitus, as trocas possíveis nos espaços destinados ao ensino, à exibição e à consagração da arte. A inserção do artista nos circuitos, os grupos aos quais está ligado, permite compreender como o poder se reorganiza internamente ao campo artístico. As motivações das viagens são diversas. Elas variam de acordo com a inserção nos circuitos, sempre em um duplo viés: por um lado, mudanças históricas que conduzem a rejeições raciais ou de credo, perseguições políticas; por outro lado, acontecimentos que propiciam iniciativas, como missões artísticas e científicas. Embora essas reflexões possam servir para pensar outras configurações sócio-históricas, elas aqui são chamadas a explicar a situação das artes e dos ar-tistas no Brasil dos oitocentos. Como tornar produtivo um conceito como Itinerância? Como fazê-lo trabalhar para orientar a pesquisa, tomando como estudo de caso a cidade do Rio de Janeiro no século XIX?

Rio de Janeiro nos Séculos XVIII e XIX

Sabe-se que, ao longo de todo o período colonial, houve um fluxo considerável de informações e de modelos, traçados e livros ilustrados, trazidos por padres, arquitetos, músicos, intelectuais e ar-tífices que viajavam pelos raros núcleos urbanos para exercer seu ofício onde houvesse demanda de arte. O Rio de Janeiro já era urbano e belo desde o início do século XVIII. Angariara prestígio e au-O Rio de Janeiro já era urbano e belo desde o início do século XVIII. Angariara prestígio e au-tonomia, uma cidade portuária importante, principalmente na gestão de governantes ilustrados. O aqueduto da Lapa, erguido entre 1719 e 1724, na administração de Aires Saldanha, levava as águas do rio Carioca até um chafariz, onde desaguava em dezessete bicas1. Ainda no mesmo século XVIII, D. Luis de Vasconcelos, considerado um vice-rei esteta, foi o responsável por encomendas de obras públicas que trouxeram grande embelezamento à cidade, como o chafariz do Paço, o pro-jeto paisagístico, as esculturas e o portão do Passeio Público, obras de Valentim da Fonseca e Silva. Escultor e artífice da pedra, Mestre Valentim foi encarregado de produzir elementos para ornar muitas outras fontes e praças, pontos da cidade frequentados pelos habitantes e pelos viajantes. Quando, na segunda metade do século XVIII, o Rio se torna a capital do Brasil, mudanças políticas

1. Esse chafariz era localizado onde hoje se encontra o Largo da Carioca.

e um forte terremoto haviam alterado profundamente a Metrópole, que entrava em sua fase mais iluminista e laica, mais imponente e mais autoritária. A transferência da sede do Governo- Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, en-A transferência da sede do Governo- Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, en-contra numerosas explicações, dentre as quais a de natureza geopolítica: a situação geográfica, mais central em relação à totalidade do território do que a cidade baiana, o que permitiria ter maior controle, evitando o desmembramento, como indicavam os conflitos nas zonas de fron-teira com as terras sob o domínio espanhol. Também exaustivamente citado é o argumento, de ordem econômica, da importância crescente que foi ganhando o porto do Rio como portal para o escoamento do ouro de Minas Gerais, do açúcar e de outras matérias-primas para a Europa. A atração paisagística parece também ter sido uma forte razão para a transferência da capital: uma topografia irregular e surpreendente, morros e pântanos, florestas e fontes, altas pedreiras emer-gindo do mar. O Rio torna-se capital em um momento de rupturas políticas e estéticas importantes ocorridas em toda a Europa e, particularmente em Portugal, na passagem do reinado de D. João V (1697 – 1750) para D. José I (1750 – 1777). Neste momento, o poderoso ministro, o marquês de Pombal, comandou mudanças institucionais importantes, principalmente reformas urbanas em Lisboa, atin-gida pelo terremoto de 1755. Definiu-se então um novo gosto artístico, mais classicizante, que se refletiu sobre a capital da Colônia, promovendo a passagem do Rio barroco para a cidade pombalina do século XVIII, uma cidade menos católica e mais austera. O centro da produção artística deixa de ser a igreja e os mosteiros e passa a concentrar-se no Paço, sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, e a chegada de D. Luis de Vasconcelos, que governou por doze anos e foi responsável por trans-formações urbanísticas e pelo embelezamento da cidade2. Desde este momento que antecede à chegada da corte portuguesa, nota-se uma preocupação em dotar a cidade de equipamentos ur-banos, espaços públicos que suscitassem a criação de novos hábitos civilizados, como o de passear nos jardins, espaços adequados e agradáveis para a população mais abastada, que começa, então, a frequentar locais protegidos, como o Passeio Público, já que as ruas, tomadas pelos escravos, eram interditadas às pessoas de bem. A configuração colonial da cidade se rompe com a vinda da Corte Real portuguesa, em 1808 e, mais precisamente, com a elevação do Brasil ao estatuto de Reino-Unido, em 1815. A presen-ça da família real, cuja viagem fora motivada pelas guerras napoleônicas, trouxe consequências incontestes do ponto de vista civilizacional para a cidade. Com a comitiva de D. João VI, vieram artistas, arquitetos, cientistas, naturalistas, músicos; objetos de arte como quadros – alguns mestres quinhentistas e pintores barrocos italianos, origem principal do acervo do Museu de Belas Artes –, pratarias, esculturas e uma imensa biblioteca, com 70 mil volumes, de que até hoje se orgulha a cidade do Rio de Janeiro3. Assiste-se então à criação de várias instituições – embora não de universidades – exigindo intelectuais, naturalistas e artistas. Das instituições criadas, merecem des-taque o Horto Real, atual Jardim Botânico; a Escola Naval, em 1808; a Academia Real Militar, em 1811; a Escola médico-cirúrgica, em 1813; a Imprensa Regia e a Escola de Ciências, Artes e Ofícios, em 1815 (VELOSO, M. e MADEIRA, A., 1999, 64). A partir daí, o Rio tornou-se definitivamente a capital do século XIX brasileiro, sede da Corte, com todas as implicações materiais e simbólicas já exploradas por Norbert Elias (1993) em rela-ção à Europa: modelo de civilização e locus do poder. Indiscutível marco e ruptura na orientação do campo das artes foi a chegada ao Rio de Janeiro, em 1816, de um número significativo de artistas, o que ficou conhecido como “Missão Francesa”.

2. D. Luís de Vasconcelos (1742-1809) foi o 12º. Vice-Rei e Capitão de Mar e Terra do Estado do Brasil, de 1778 a 1790.

3. A Biblioteca Real, formada a partir das bibliotecas de D.João VI e do Conde da Barca, foi aberta à livre frequência do pú-

blico em 1814 e funcionava no hospital da Ordem Terceira dos Carmelitas, atrás da igreja do Carmo, no centro da cidade.

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A partir daí – e tendo que superar fortes impedimentos – redefiniu-se o gosto artístico e a arte acadêmica adquiriu uma hegemonia que duraria os dois impérios, isto é, todo século XIX. As di-ficuldades encontradas pelos artistas franceses Taunay, Lebreton, Debret e Hercule Florence no Brasil eram de ordem política stricto sensu, pois, como artistas acolhidos na Corte, não poderiam deixar de sofrer as consequências da mudança de regime político acarretadas pelo evento da Independência, em 1822, que retardou em mais de dez anos a abertura da Academia Imperial de Belas Artes. As dificuldades eram também internas ao mundo das artes, pois embora rarefeito e disperso, este era composto por artistas de formação erudita como Manuel da Cunha (1737-1809) e Manuel Dias de Oliveira, o Brasiliense (1764-1837), ambos de origem humilde, nascidos no Brasil, mas formados na Europa, o primeiro em Lisboa, o segundo, na Academia de San Lucca de Roma. Estes artistas dedicavam-se basicamente à pintura religiosa, de forte travo lusitano nas convenções iconográficas e na palheta sombria, composta de castanhos e vermelhos fechados, e ficaram conhecidos como Escola Fluminense, segundo a consagradora Memória sobre a Escola An-tiga de Pintura Fluminense, lida na sessão de 30 de novembro de 1841 do Instituto Histórico Bra-sileiro, por Araújo Porto-Alegre. Um artista como Leandro Joaquim, aluno de Manuel da Cunha, deixou cenas únicas da vida urbana do Rio, uma série de seis medalhões ovais, anteriores a 1792, representando as lavadeiras no banhado da Lapa, com o aqueduto do rio Carioca já construído, ou os pescadores na praia da Glória, com a igreja ao fundo4. Como em todas as partes do mundo ocidental, antes da criação de escolas públicas, o ensino das artes se dava em estúdios particulares, onde os aprendizes de um ofício se exercitavam em desenho, pintura, gravura, escultura, fundição ou ciselamento, nos gêneros em voga em cada época. Viam-se mais como oficiais/ artífices, ou seja, como pessoas que possuíam o domínio técnico de um ofício, do que como artistas, no sentido que lhes foi atribuído pelo idealismo, de gênios ou seres excepcionais.

4. As seis telas ovais foram pintadas para ornamentar um dos pavilhões do Passeio Público. Todas medem 88 X 114 cm e

estão guardadas no Museu Histórico Nacional.

5. Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal Suivie du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil, publicado em Paris, em 1826.

Denis viveu no Rio entre 1816 e 1820. Em Paris, tornou-se diretor da Biblioteca de Sainte Geneviève, onde recebia seus

amigos e diplomatas brasileiros.

Viagens

Ao longo de todo o século XIX, as viagens tiveram grande importância tanto para a arte europeia quanto para a arte brasileira. A voga do exotismo, antes concentrada no Oriente, transfere-se agora para as Américas que, além de paisagens sublimes, possuía também civilizações perdidas, re-ais ou imaginárias. Ferdinand Denis foi um elo importante. Tendo vivido quatro anos no Rio como funcionário consular, após seu retorno a Paris publicou um compêndio de literatura portuguesa e brasileira5 e tornou-se o principal interlocutor dos brasileiros que para lá se dirigiam, como o já citado Araújo Porto-Alegre, Gonçalves de Magalhães e Torres Homem, intelectuais que tiveram proeminência nas instituições do Primeiro Reinado. Neste período, o Rio fi cou conhecido como a Meca dos artistas estrangeiros. Atraídos ao mes-Neste período, o Rio ficou conhecido como a Meca dos artistas estrangeiros. Atraídos ao mes-mo tempo pela exuberância da natureza, tão decantada e valorizada pelo Romantismo, e por uma corte receptiva às artes e ciências em geral, eles chegavam com regularidade, em grupos ou indivi-dualmente, instalavam-se na cidade por um tempo mais ou menos longo, dependendo do interes-se e das condições que encontravam. Para um grande número deles, o Rio era apenas um ponto de chegada da Europa e de partida para a exploração de paragens mais exóticas e desconhecidas, ponto de entrada nos Trópicos. A arquiduquesa da Áustria, a cultivada Dona Leopoldina, perten-

cente à casa de Habsburgo, conhecida por seu requinte e sofisticação, atraiu artistas de toda a Eu-ropa – alemães, austríacos, suíssos, suecos, espanhóis, italianos, dinamarqueses e russos – em busca de patronato em uma Corte recentemente instalada e, portanto, com demanda potencial para o serviço dos artistas, pintores de retratos e pintores históricos para registrar os acontecimentos. A vida intelectual e artística brasileira fi cou, a partir de então, fortemente marcada por duas evi-A vida intelectual e artística brasileira ficou, a partir de então, fortemente marcada por duas evi-dências: a centralização na Corte – o Rio era o ponto de chegada e de partida de todos, onde se desenvolveu mais rapidamente a civilização de gosto europeu, com a abertura dos portos, a entrada de mercadorias, o mar, em tudo a cidade era voltada para a Europa – e, em segundo lugar, as viagens em mão inversa, que punham os artistas brasileiros em contato com ideias e tendências europeias. Se havia artistas e naturalistas europeus acompanhando missões científicas ou diplomáticas, como Burchell, Rugendas, Thomas Ender, Lord Chamberlain ou Maria Graham , havia também os raros artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem nos salões oficiais da Academia, que seguiam todos os anos para a Europa. O ano de 1815 é marcante no campo político por ser a data da elevação da autoestima dos brasileiros, momento em que o Brasil se torna Reino-Unido a Portugal e Algarves. Para o campo das artes, 1816 foi marco fundamental: data da chegada dos artistas franceses. Não há consenso entre os historidores sobre o estatuto da “Missão Francesa”. O fato é que a 26 de março de 1816, a bordo do veleiro americano Calphe, desembarcam no Rio de Janeiro artistas de muitas especialidades, sob o comando de Joachin Lebreton. Grandjean de Montigny, Debret, Taunay e Pradier são alguns dos que participaram desta expedição, que introduziu uma ruptura em relação à visualidade e à mentalidade tradicionais. Dela resultou um acervo de documentos importantes para a compreensão do período e, particularmente, do olhar estrangeiro sobre o Brasil. Segundo interpretação recente, a vinda dos artistas franceses ocorreu a partir de uma iniciativa deles pró-prios (SCHWARCZ, 2008): um encontro providencial entre o marquês de Marialva, Lebreton e Humboldt, que parece ter comentado, entusiasmado, sobre a receptividade da América para as artes e ciências, a partir de sua observação da vida intelectual da Cidade do México. A hipótese mais provável é que tenham querido se afastar da corte de Napoleão, já derrotado em Waterloo. Organizada a viagem e chegados a seu destino, foram necessários outros entendimentos entre o conde da Barca, o marquês de Aguiar e Lebreton para a fundação da Academia. Ficaram todos tão envolvidos com os acontecimentos políticos de 1822 que só conseguiram pôr em funcionamento a Academia em 5 de novembro de 1826, inaugurando uma sede própria dez anos depois, em prédio cujo projeto era de autoria de Grandjean de Montigny. Outro fato é que aqueles artistas, acolhidos por D.João VI e seus ministros como pintores e arquitetos da corte, trouxeram uma redefinição completa das regras, dos temas e dos códigos es-téticos vigentes – ainda lusitanos e católicos, herança colonial – e conseguiram, não sem enfrentar resistências dos pintores e artistas que exerciam suas atividades na cidade, impor a arte acadêmica como hegemônica durante mais de um século. Há uma enorme literatura sobre a mutação brusca dos hábitos e práticas sociais acarretados pela presença da Família Real na cidade, tornada modelo e parâmetro para as classes burguesas e abastadas. Assim também é notada a presença bastante numerosa de estrangeiros, o que contribui para a modelagem de um habitus urbano no Rio de Janeiro – o cosmopolitismo, gosto pela adoção de modas – antes que em qualquer outra cidade brasileira, o que leva Maria Graham a afirmar em seu diário, em 1821, que o Rio era a mais euro-peia das cidades brasileiras. A capital do Império apropriava-se do novo, modificava seus hábitos, seus trajes, aumentava o número de passeios em lajes de granito e de ruas pavimentadas – Ouvidor, Lavradio, Alfândega, Sacramento, Lampadosa – , onde se instalava o comércio de luxo: modistas, joalheiros, chapeleiros, alfaiates, sapateiros, confeiteiros e livreiros. No dizer de um viajante que passou por lá em 1836, o botânico inglês Gardner, a rua do Ouvidor era a “Regent Street”do Rio, encontrando-se nela quase todos os objetos de luxo europeus ( MELLO-LEITÃO, 1937, 117).

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A partir da Independência, em 1822, mesmo que dois imperadores portugueses tenham ocu-A partir da Independência, em 1822, mesmo que dois imperadores portugueses tenham ocu-pado o trono, os governantes empenharam-se em organizar a nação em outras bases, chamando os intelectuais a esta tarefa. Nosso Romantismo não foi nenhum vento de revolta, mas um mo-mento de construção de narrativas oficiais sobre a jovem nação livre. Era ainda muito recente a mudança do estatuto colonial. Lê-se, em tudo, um espírito contemporizador, um conservadorismo e um aulicismo que impregnaram a literatura, a historiografia, a pintura e a arte oficial que se de-senvolvia em torno da Corte e, a partir do II Império, em torno do próprio Imperador, numa asso-ciação pouco comum entre liberalismo e monarquia. Quase todos os viajantes, artistas, cientistas e naturalistas estrangeiros que visitavam o Brasil eram recebidos na Corte, pois era tradição daquela Casa Real valorizar músicos, escritores, naturalistas, artistas, o que torna possível afirmar que, de D.João VI aos Imperadores, está em curso um projeto civilizador, um projeto de anexação cultural do Novo Mundo ao imaginário do continente europeu. A independência não poderia deixar de ser um marco político com profundas implicações no campo do ordenamento jurídico e no plano estético. Era necessário implementar instituições que permitissem estabelecer uma nova ordem jurídica e criar uma elite capaz de assumir postos admi-nistrativos e políticos.6 Uma instituição responsável pela pesquisa e pela escrita da história nacional foi criada em 1836, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB –, que espalhou-se sob a forma de sucursais nas capitais das províncias e manteve correspondentes em academias cien-tíficas de várias partes do mundo, levantando, analisando e repatriando para o Brasil documentos importantes para a escrita da história nacional.

6. Daí a decisão de criar os cursos jurídicos, implantados em 1827 em Olinda e em São Paulo.

7. O Lyceu de artes e ofícios foi fundado em 1815 por D. João VI, sendo desativado e refundado, em 1856, pelo Comen-

dador Francisco Bethencourt Silva.

Os Pensionistas do Imperador

Artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem tornavam-se “os pensionistas do Impera-dor”, com direito a estudar na Europa por vários anos. Iam para Roma ou Florença, onde Pedro Américo ficou oito anos e Victor Meireles, seis. Os bolsistas da segunda geração - Almeida Junior, Rodolfo Amoedo, Pereira da Silva - preferiam Paris, onde frequentavam os ateliers dos artistas di-tos “pompiers”, como Cabanel, Hanoteau, Bouguereau, Gerôme, Bonnat e Baudry, mestres de trei-no acadêmico eclético e com o gosto pela eloquência, sobretudo no gênero de pintura histórica e alegórica (MADEIRA, A. 1990). Aquela educação artística – tanto o aprendizado técnico quanto a modelagem do olhar – toma a Europa como único parâmetro civilizacional para os artistas, o que lhes provoca, no seu retorno ao Brasil, um profundo mal-estar, sentimentos ambivalentes e um desconforto diante da estreiteza, ou dos limites, da vida intelectual e artística local, sobretudo após 1850, toda ela girando em torno das instituições oficiais apoiadas pelo Imperador.

Lyceu de Artes e Ofícios

Outra instituição importante para a formação dos artistas foi o Lyceu de Artes e Ofícios7, pelo qual passaram artistas e artesãos de talento. O Lyceu era sustentado por uma sociedade benemérita, Sociedade Propagadora das Belas Artes, e voltado para a educação popular. Seu segundo fundador, o Comendador Francisco Joaquim Bethencourt Silva, embora de origem simples – o pai era um carpinteiro português – era diplomado arquiteto pela Academia, onde fora aluno de Grandjean de Montigny. Sua preocupação com a instrução pública levou-o a criar cursos noturnos profissio-

nalizantes, voltados para operários, artífices e mulheres. O Lyceu não queria ser um arremedo da AIBA8. Ministrava-se ali o ensino do desenho e da matemática para aplicá-los às várias ramificações da indústria fabril e manufatureira. Também eram organizados eventos, concursos e exposições que incluíam artistas sem espaço na AIBA, considerada um apanágio das elites. De fato, a crer no depoimento de Porto-Alegre, a AIBA era constituída por um grupo de franceses bastante fechado, com muita dificuldade de assimilar um novo membro, mesmo quando este havia sido aluno de um dos mestres mais prestigiados da Academia, como no caso do próprio Porto-Alegre, aluno de Jean-Baptiste Debret. Debret veio na Missão de 1816 e ficou no Brasil por 15 anos, ocupando o cargo de pintor da corte, onde além de imortalizar rituais como a coroação de D. Pedro I, ou a chegada de Dona Leopoldina, em pinturas a óleo sobre telas de grande dimensão, retocava carruagens e montava cenários para a aparição dos monarcas. A título de anotações deixou vários cadernos de aquarelas e desenhos, observando e registrando de forma perspicaz os costumes da rua e os escravos, em momento de nítida transição histórica. O acervo de imagens-documentos deixado por ele é de suma importância para o entendimento do Brasil, mais precisamente da passagem do Brasil colonial ao imperial (NAVES, 1996). Porto-Alegre indignava-se com a arrogância dos franceses e com a pouca clareza de suas pre-Porto-Alegre indignava-se com a arrogância dos franceses e com a pouca clareza de suas pre-miações e promoções. Dizia sentir-se perseguido pelos colegas estrangeiros que, injustamente, falavam mal do Brasil e dos brasileiros:

Ressenti-me e repeli com energia tanta ingratidão para com um país que havia acolhido esses estrangeiros,

que os nutria e lhes dava uma posição muito além de seus méritos, e de suas qualidades pessoais. (PORTO-

ALEGRE apud GALVÂO, 1959, p. 63)

Outros modelos estéticos e gêneros pictóricos foram trazidos pelos vários artistas que visita-Outros modelos estéticos e gêneros pictóricos foram trazidos pelos vários artistas que visita-vam e montavam ateliers na cidade. O principal achado desse segmento da pesquisa, até agora, foi constatar que ao mesmo tempo em que o Lyceu e a Academia, instituições oficiais e de maior prestígio, congregavam artistas e professores consagrados e recebiam estrangeiros para tempora-das, representando a formalização do ensino das artes no Brasil, havia artistas independentes que mantinham estúdios e ateliers livres na cidade, ensinando, pintando, recebendo encomendas – pai-sagens, santos, ornatos, retratos – de um mercado incipiente e nem sempre visível. Artistas estrangeiros como Facchinetti ou Henri-Nicolas Vinet, apesar de ligados ao Imperador e à AIBA, mantiveram ateliers livres, especializando-se em paisagens, encantados com os hori-zontes imensos, ressaltando o que havia de grandioso e de sublime na natureza tropical. Assim também ocorreu com Biard, que passou dois anos e foi muito bem recebido pela corte, ou com Ferdinand Krumholz, que permaneceu por quatro anos no Brasil como professor da AIBA, entre 1848 e 1852, a convite de Porto-Alegre, que o conhecera em Lisboa, na Academia Real. Abraham Buvelot, Adolphe Patermont, Edoardo De Martino são alguns dos pintores estrangeiros que passa-ram pelo Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e deixaram registros de sua passagem. Tudo indica que esta prática dos artistas independentes se sustenta ao longo do tempo. Mais para o fim do século, provavelmente em 1878, chega ao Brasil um pintor alemão chamado Georg Grimm. Acompanhar seu percurso é um estudo de caso da Itinerância dos artistas. Grimm tentava escapar do autoritarismo e da perseguição aos católicos que se seguiram ao fim da guerra entre Prússia e Alemanha, em 1870, motivo, aliás, de significativo êxodo de artistas e in-telectuais insatisfeitos com a situação política de seu país. Nascido em Immenstadt e formado pela Academia de Belas Artes de Munique, Grimm é acolhido no Rio de Janeiro por um conterrâneo, comerciante abastado, Friedrich Anton Steckel que, juntamente com mais dois irmãos, mantinha loja de decoração à rua do Lavradio, número 16. Ali se contratavam serviços para pintura de casas

8. Academia Imperial de Belas Artes.

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e navios, fingimento, douração, decoração, tabuletas; vendiam-se tintas, vernizes e outros apetre-chos de pintura. Grimm trabalha nessa loja até 1882, data em que tem a oportunidade de expor seus trabalhos em uma mostra grande e importante organizada pela Sociedade Propagadora das Belas Artes, no Liceu de Artes e Ofícios. Das 418 obras expostas, 128 eram de Grimm. Tamanho foi o sucesso do pintor que uma semana depois recebeu um convite da parte do Ministério dos Negócios do Império para integrar o corpo docente da Academia, cujo diretor, à época, era Anto-nio Nicolau Tolentino. Grimm, de personalidade um pouco rude, severo e franco, vestindo-se com negligência, segundo seu discípulo Antonio Parreiras, não foi bem recebido pelos colegas. Rompe com a AIBA e, com ele, afasta-se o grupo considerado o mais talentoso, o que afeta o status do ensino oficial da instituição. O grupo é formado por Grimm e outros sete artistas, dentre os quais seu amigo Thomas Georg Driendl, Hipólito Caron, Giambattista Castagneto e Antonio Parreiras9. No atelier da Boa Viagem, em Niterói, eles iniciam a prática de pintar ao ar livre. O grupo tem seu apogeu em1884, quando todos os seus membros são premiados em consagradora Exposição da Sociedade Propagadora das Belas Artes. Em 1887, atingido por uma tuberculose, Grimm volta à Europa em busca de melhores condições de tratamento. Morre em Palermo, Itália, no mesmo ano. Neste final de século XIX, no plano das ideias, os interesses voltam-se para ideologias liberais e progressistas, e tudo o que diga respeito ao passado fica esquecido, considerado como sinô-nimo de atraso e de desleixo. Esta desvalorização da tradição lusitana segue paralelamente à valorização da civilização francesa, o que atinge seu ápice na transição do século XIX para o XX, quando ocorre um fato conhecido como o “bota abaixo” (1900). A urbanização embelezadora e a consequente mudança nos costumes passam à historiografia como a belle époque carioca. 10 São demolidos imensos casarões coloniais, bem como sobrados imperiais do centro da cidade ocupa-dos pela população pobre, para dar lugar a novas praças e avenidas, palácios de mármore e cristal, pontilhados de estátuas importadas diretamente das fundições francesas. Segundo os jornais da época, eram as “picaretas regeneradoras”, que deixavam para trás a imunda e retrógrada cidade colonial (SEVCENKO, 1985:30). Esse momento é tematizado na literatura não como uma abstração, mas por meio de uma percepção viva, encarnada, dos contemporâneos que assistiam às enormes transformações que se processavam na cidade, tanto no campo social como na visualidade, na arquitetura,11 onde dominou o ecletismo; em seguida, o art nouveau e, posteriormente, o art-déco, sucedendo-se, superpondo-se, sinônimos de bom gosto e de modernidade (SEVCENKO, 1985). Com a Repú-blica, as elites locais tornam-se mais intolerantes em relação às práticas populares e às tradições africanas, defendendo, de modo incondicional, a modernização e o reforço de hábitos civilizados, a julgar pelas crônicas da época. A velha cidade tinha seus dias contados, as casacas e cartolas negras do Império cediam lugar ao paletó de casemira claro e ao chapéu de palha da Primeira República.

9. Os outros membros do grupo são Domingo Garcia y Vasquez, J.J.França Junior e J.F. Gomes Ribeiro.

10. O “bota abaixo”, assim denominado pelos jornais da época, foi o movimento das grandes demolições que antecede-

ram às reformas embelezadoras e higienizadoras do governo de Rodrigues Alves, com Oswaldo Cruz e Pereira Passos à

frente.

11. O romance de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, tematiza esta questão de modo patético.

Considerações finais

No Rio de Janeiro do século XIX, dificilmente se pode falar de campo (em sentido sociológico estrito), na medida em que toda a vida cultural da cidade estava muito vinculada ao poder político. Não há autonomia e este segmento erudito da arte conhece demanda e produção bastante re-duzidos, poucas escolas e raros espaços expositivos.

A primeira metade do século foi o momento de formação de uma intelligentsia e de um novo impulso no esforço para a implantação de um processo civilizador – e modernizador – na cidade. O Rio de Janeiro, sede da Corte, palco das transformações urbanas visíveis, tornou-se o principal modelo dos novos hábitos, dos novos costumes, difundindo-os por todas as capitais das províncias do Brasil, que passaram a compartilhar o ideal de modernização. Foi construída uma periodização para marcar os momentos de inflexão ao longo da história da Itinerância dos artistas: suas razões, sua rede de relações, suas escolhas, estéticas e políticas. Os recortes temporais buscam criar nexos entre os dois campos, permitem visualizar a dinâmica das relações sociais em ação no “mundo da arte”. Em todas as etapas da pesquisa, teóricas ou empíricas, foi levado em consideração o modo de organização dos grupos, o vínculo entre estética e política, com ênfase no conceito de Itinerância, confirmando sua utilidade para pensar, do ponto de vista da sociologia da cultura, a produção es-tética das cidades. Na realidade, se tomarmos o exemplo do grupo de maior prestígio no Rio de Janeiro dos oitocentos – os artistas ex-alunos da AIBA –, observa-se o quanto a cidade e a institui-ção atraem os talentos de todas as partes do Brasil, assim como os que chegam da Europa. Victor Meireles vem de Santa Catarina; Augusto Rodrigues Duarte vem de Portugal, menino, e volta à Europa para estudar em Paris; Pedro Américo vem de Areias, Paraíba; Rodolfo Amoedo, de Salva-dor; Almeida Junior, de Itu, São Paulo; Belmiro de Almeida, de Minas Gerais; Lucílio Albuquerque, do Piauí; José Maria de Medeiros, de Faial, Cabo Verde; Castagnetto é genovês; Modesto y Brocos é de origem espanhola, como Garcia y Vazquez, natural de Vigo; Eliseu Visconti é de origem italiana; os irmãos Bernardelli, de origem chilena, vêm da Argentina. Araújo Porto- Alegre (1806-1879), primeiro filho do Brasil a entrar como professor na Academia, veio do Rio Grande do Sul. Antonio Parreiras e Pinto Bandeira são de Niterói. Nascidos e criados no Rio de Janeiro, há França Júnior, Firmino Monteiro, Estevão Silva, Décio Vilares, João e Arthur Timóteo da Costa e João Zeferino da Costa (1840-1915), que também estudou na Europa e foi professor da Academia. A cidade e a Academia exerciam grande poder de atração, principalmente sobre os aspirantes a artistas das regiões mais próximas, como os fluminenses e capixabas.

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A Lógica da Aparência(O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)

WALTER ROMERO MENON JUNIOR *

ResumoEste texto pretende analisar a articulação intrínseca entre figuração e enunciação, elucidando-a a partir da analogia pres-

suposta entre três noções básicas: a de paganismo, elaborada por Jean-François Lyotard; a de Mana, observada por Marcel

Mauss; a de Infra-mince, desenvolvida por Marcel Duchamp. Nosso objetivo é evidenciar que a lógica da aparência, se-

gundo a noção de Duchamp, pressupõe necessariamente que a função do enunciado é a da figuração, assim como a da

figuração, a de enunciar. Tal articulação condiciona o uso da linguagem e envolve toda produção de sentido. Tendo em vista

que, no âmbito do uso da linguagem, o pragmático é primordial em relação ao sintático e ao semântico, defenderei que

no ato de enunciar, a linguagem se faz jogo – jogo de linguagem, nos termos de Wittgenstein –, jogo em que aquilo que se

enuncia, o referente, tem sua efetividade, no sentido de Wirklichkeit, como realidade efetiva, em contraposição à realidade

compreendida como potencialidade ou como necessidade. Assim, a efetividade do referente abarca e constitui o que pode

ou o que é necessariamente dito no enunciado como o “isto” que é aí figurado, enquanto figuração de si mesmo. Portanto,

enunciado, referente e conceito, são sinônimos e o enunciar/figurar é o lugar possível da experiência sensível.

Palavras-chave: Infra-mince. Enunciado. Figurar. Mana. Jogos de linguagem.

AbstractIn this paper I analyse and clarify the intrinsic connection between “figuration” and “statement” using an analogy between three

basic notions: the paganism elaborated by Jean-François Lyotard, the Mana studied by Marcel Mauss and the infra-mince developed

by Marcel Duchamp. Our objective is to show that the logic of appearance, according to the notion of Duchamp, inevitably presup-

poses that the function of a statement is to make a figuration, and equally, that the function of a figuration is to make a statement.

This connection sets the conditions for the use of language and the production of meaning. In language, the pragmatic domain pre-

cedes the syntactic and the semantic: the language itself becomes a game: a language game in Wittgenstein’s terms. All statements

are part of a language game. It is in the context of this game that what we say has its effectiveness, in the sense of Wirklichkeit: the

effective reality rather than potential or necessary reality. Therefore, the effectiveness of the referent encompasses and constitutes

what can be, or is necessarily, said in the statement as the “this” that is figured there as its figuration itself.Thus,the statement, the

referent and the concept are synonymous, and the statement / figuration represents the location of sensible experience.

Keywords: Infra-mince. Statement. Figuration. Mana. Language game.

* Doutor em filosofia pela Universidade Paris VIII, Mestre em Comunicação Social pela UnB, Walter Menon é atualmente

pesquisador colaborador no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes UnB e na Faculdade de Comunicação

da mesma universidade. Paralelamente, desenvolve trabalho como artista plástico desde 1998.

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I

Nas Notas, Marcel Duchamp prescreve a fórmula para dar a aparência, “os ares”, de uma demons-tração (l’allure d’une démonstration) a um texto que faz referência a uma obra. Ele apresenta esta fórmula aprofundando sua estrutura prescritiva quanto à composição mesma do texto, a fim de demonstrar a ligação estreita entre enunciar e tornar visível. Duchamp inventa a noção de lógi-ca da aparência para mostrar a similaridade entre a composição do texto e aquela do quadro, demonstrando, pela estreita ligação entre enunciar e tornar sensível, que a pintura apenas pode “aparecer” na condição de analogia entre os diversos eventos plásticos e as formas da lógica do texto: axiomas, conclusões necessárias e assim por diante.

Dar ao texto os ares de uma demonstração ligando as decisões tomadas por fórmulas convencionais de

raciocínio indutivo em certos casos, dedutivos em outros. Cada decisão ou evento da pintura torna-se ou

um axioma ou uma conclusão necessária, segundo uma lógica da aparência. Essa lógica da aparência será

exprimida somente pelo estilo (fórmulas matemáticas, etc.) e não retirará da pintura seu caráter de mistura

de eventos imaginados plasticamente, pois cada um desses eventos é uma excrescência da pintura original.

Como excrescência o evento permanece somente aparência e não tem outra maneira de se apresentar que

não seja a de significação de imagem (contra a sensibilidade plástica). (DUCHAMP, 1999 : 47)

Na lógica da aparência, a fi guração e a enunciação funcionam como um único dispositivo es-Na lógica da aparência, a figuração e a enunciação funcionam como um único dispositivo es-sencial que permite a manifestação de arranjos circunstanciais constitutivos da linguagem. Deixa-se aparecer, nos enunciados afirmativos e descritivos, a função prescritiva que condiciona os ar-ranjos entre elementos plásticos de uma obra. Deixa-se aparecer, em outros termos, o acordo entre linguagem e experiência sensível, pelo qual tais formas de enunciados deixam efetivamente ver o que não pode ser visto fora do enunciado, quer dizer, ver uma obra de arte. Esta fórmu-la duchampiana para configurar uma obra particular – cuja propriedade é a de representar as maneiras de “fazer ver” pela linguagem – apresenta-se sempre por um processo de abstração de suas regras de enunciação em uma figuração singular, cuja universalidade, paradoxalmente, é incontestável. Evento singular de atualização de um arranjo de elementos plásticos, derivados de um conjunto de arranjos possíveis de enunciados, a arte torna visível a dinâmica de tornar visível esta dinâmica e, por conseguinte, expõe (torna visível) a presentificação do arranjo de elementos linguísticos, como o “tornar visível” da articulação estrutural da figuração. É um bricolage, um trabalho de montagem que se faz sem bricoleur, sem o montador; um arranjo que obedece às regras de associação de ideias, semelhantes àquelas que regem a magia, segundo observou Marcel Mauss. Este trabalho pode-se denominar associação entre signos por regras de afinidade, de simpatia, sendo que estas regras mesmas podem ser consideradas signos de ligação entre signos. Signos que têm por função principal significar as propriedades específicas de cada signo nos contextos de suas articulações e, assim, promover-lhes o aparecer nas formas “sintéticas” que caracterizam o que Charles Sanders Peirce chama de signos-pensamento (PEIRCE, 1995: 269). Uma lógica dos significantes que se produz no interior mesmo da estrutura dialógica da linguagem. Nesta lógica, desprovida de todo controle lógico por parte dos interlocutores e na qual a diferença subjetiva que existe entre eles nada inclui, os interlocutores são reduzidos a signos, cujo significado é o de serem meras instâncias implicadas no jogo de “se deixar falar pela linguagem” e cuja função é a de promover a comunicação entre estas múltiplas instâncias. Assim, as associações, as combinações dos significantes, concretizam-se por afinidade em uma composição; tornam-se, pela afinidade de suas formas fonéticas, figurações das “ações” que evocam eventos no processo de concretização do fluxo contingente da vida. A afinidade que ordena a linguagem é a mesma que comanda a magia. A fórmula de Duchamp se aproxima, desta maneira, daquela da magia pensada por Marcel

Mauss e que, acreditamos, encontra-se na raiz da forma performativa de enunciação (AUSTIN, 1990)1. À medida que todo enunciado demonstrativo, afirmativo, etc. pode ser reduzido à sua forma performativa, e se esta se comporta como uma formulação mágica, então, todo enunciado traz em seu bojo um poder de encantamento, isto é, de fazer compreender e sentir, de maneira inelutável, o que nele está dito. O encantamento se faz pela palavra que atravessa o locutor e atinge o auditor. Para a magia funcionar, basta que cada um assuma a posição ideal daquele que crê no poder da palavra de criar eventos unicamente ao ser pronunciada conforme uma formulação precisa. Eis aí a razão pela qual as posições no circuito comunicacional são estruturalmente equivalentes; e eis aí, também, porque este circuito constitui, basicamente, uma experiência comum compartilhada na palavra, in-dependentemente dos indivíduos, quer dizer, independentemente de uma expressão qualquer de sua singularidade. A repetição ritualizada da palavra implica a possessão pela palavra que impõe um único e mesmo lugar de fala a todos os interlocutores. Este é um jogo que ocorre sem a par-ticipação dos jogadores, pois o jogo estético da linguagem consiste em realizar a experiência de se deixar jogar pelo jogo. Os jogadores introjetam as regras representadas no lugar de fala ideal como forma de vida autônoma, livre de toda coação, salvo a de “gozar” da liberdade de escolher fazer parte do jogo, “gozo” imposto pelo fato de que não há vida “autêntica” fora da experiência estética primordial de criar mundos no compartilhar da linguagem.2

Podemos observar o mesmo, a mesma estrutura performativa e seus efeitos, tanto na arte abs-Podemos observar o mesmo, a mesma estrutura performativa e seus efeitos, tanto na arte abs-trata, na poesia concreta ou nas experiências fonéticas de Duchamp e dos dadaístas, como nos gestos e materiais improvisados de Jackson Pollock, nas assemblages surrealistas, nas instalações, na arte computacional, etc. Os exemplos são intermináveis, visto que a regra é a mesma para todos: não há regras externas ao jogo e estas se fazem sozinhas à medida que o jogo é jogado.

1. Originalmente, performativo designa um tipo de enunciado no qual o que se diz realiza-se como uma ação. Entretanto,

Austin pensa todos os outros casos de enunciado: declarativos, constatativos, etc, como tipos de performativos. Desta

forma, todo enunciado seria um ato de fala.

2. A ideia de uma pluralidade de mundos possíveis remonta a Leibnitz, entretanto é o filosofo Nelson Goodman que

desenvolve esta noção no sentido do pragmatismo contemporâneo, no qual não há um mundo original com suas versões,

mas somente as versões (ver versões e visões in GOODMAN, 1995: 38).

II

Quero, a partir de agora, analisar este tipo específico de jogo de linguagem, em que criar regras faz parte do jogo, em termos de uma narrativa que narra a si mesma, isto é, cuja essência consiste em contar a sua própria história. A cada atualização da magia da palavra no ritual da fala, não é somente o auditor que sofre o encantamento, o mágico/locutor também é tomado pela fórmula mágica, ele também é um “canal”, um médium pelo qual atravessam os significantes que se articu-lam em narrativas, nas quais se fazem figurar pela dramaturgia de personagens emblemáticos. Es-tes personagens são a evocação da maneira correta, paradigmática, de contar o relato, quer dizer, de deixar as regras do jogo de linguagem jogarem o jogo da narrativa a cada situação de narração. Tal dramaturgia reproduz, a cada vez, segundo um ritual estrito, o papel de um único e mesmo personagem como o “diferente” que encarna as regras do jogo, isto é, da narrativa, intrínsecas ao ritual da palavra que faz aparecer o mundo. Seguindo o relato no sentido do seu fim último, que é o de reproduzir as regras da narrativa a cada narração, o narrador aponta tais regras como as leis intrínsecas ao mundo que ele quer figurado na narrativa. Encontra-se aqui a noção de “paganismo”, desenvolvida por Jean-François Lyotard. Este autor pensa que, no paganismo, a narrativa se caracteriza por uma ausência de autonomia em relação

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aos papéis que devem ser representados na narração, e o narrador, segundo este modelo, figura invariavelmente inscrito na narração. Ele é “narrado” como parte da narrativa, enquanto esta é narrada por ele da maneira que ela lhe foi transmitida: narrador e personagens da narrativa se confundem. O narrador é, portanto, um ponto de passagem (point de relais) por onde transcorre a narrativa, intrínseco ao narrado e, ao mesmo tempo, atravessado por este.

[...] Pelo contrário, no paganismo, existe a intuição, a ideia (se eu posso dizer, no sentido quase kantiano do

termo) inversa. Isto é, a ideia de que nenhum enunciador não é nunca autônomo. Que todo enunciador é

sempre ao contrário alguém que é primeiramente um destinatário, e eu diria: um destinado. Eu quero dizer

com isso que é alguém que, antes de ser enunciador de uma prescrição, foi ele mesmo o receptor de uma

prescrição, da qual ele é simplesmente o relais, e que foi também o objeto de uma prescrição. (LYOTARD e

THÉBAUD, 1979: 78)

Entretanto, se seguirmos esta descrição de Lyotard do paganismo, chegaremos a identificar uma noção de liberdade que se encontra na aderência intencional do narrador face à narrativa que o narra. O narrador está completamente livre da responsabilidade de sua posição. Ele se liberta da tarefa de se representar na origem do narrado, tornando-se autônomo em relação à própria in-tencionalidade de fazer do ato de narrar o significado da expressão de sua individualidade. Ocupar o lugar do narrador significa, em última instância, delegar ao “outro”, de palavra, o trabalho que lhe é próprio, isto é, o trabalho de narrar. Ao introduzir a narrativa, o narrador apresenta-se como aquele que repete a intenção de um “outro” narrador originário. O narrador atual identifica-se, desta maneira, com aquele “outro”. Ele hipostasia-se em uma origem que, para ser a origem do narrado, não pode estar contida na narrativa, mas que, entretanto, não pode deixar, ao mesmo tempo, de nela estar contida. Assim sendo, o nomear do narrador originário acontece efetiva-mente dentro da narrativa: “um tal que contou esta história, etc.” Assumir a posição do narrador significa, portanto, “tornar-se” o “outro” pelo qual o narrado foi transmitido no transcorrer da narração. O testemunho original dos eventos, seu primeiro narrador, desaparece incorporado na narrativa para dar lugar a uma origem mítica. Consequentemente, o narrador é o destinatário de sua própria palavra, ele é sempre e antes de tudo destinatário dele mesmo. A prescrição da maneira de contar os eventos – a “lei” da narrativa – vem de outro lugar, do “outro”, e ela é incor-porada pelo narrador como sua própria voz, porque este aceita ser seu destinatário. Ele não pode fazer de maneira diferente, sendo que, para que possa ser o narrador, deve estar necessariamente identificado ao “outro” ao qual a narrativa foi contada na origem, e que, por conseguinte, é o nar-rador originário. Ele se identifica, porém, sem que seja preciso um movimento intencional para se colocar no lugar do “outro”, simplesmente porque há apenas o “outro” como posição possível na narrativa. Tendo que necessariamente assumir a posição de destinatário da palavra do “outro”, o narrador torna-se o “outro da fala”, que não é, de maneira nenhuma, o “outro que fala”. Dito de outra forma, o narrador torna-se simplesmente o ponto de passagem da temporalidade intrínseca à dinâmica da linguagem que se conta ela mesma. Neste sentido, a descrição da maneira dos Cashinahua narrar, feita pelo antropólogo André Marcel d’Ans e comentada por Lyotard, é exemplar. Ao situar a estrutura pagã da narrativa em uma coletividade não ocidental e que, portanto, não concebe uma noção de narrativa que privi-legia o polo do narrador – no nosso esquema dialógico, aquele do enunciador – como sendo o polo da “autoridade de fala”, Lyotard reencontra a possibilidade de um modelo de utilização da linguagem não “intencional” e não “utilitária”.

Eu tomarei como exemplo o caso dos Cashinahua que são os índios do alto Amazonas dos quais trata André

Marcel d’Ans em o Dit des vrais hommes. É uma coleção de relatos que são de vários tipos, uns são de cunho

sagrado, transmitidos com uma grande rigidez e de uma maneira cantada e ritualizada. Os outros são, pelo

contrário, relatos profanos que são contados a partir de um pedido e o seu narrador multiplica os contornos

retóricos para que eles ganhem ainda mais relevo. Existem, então, os dois extremos. Porém, em todos os

casos, cada vez que uma historia é contada nesta etnia, o narrador começa sempre dizendo “eu vou contar

a historia de X (e aqui consta o nome próprio do herói da história) tal qual eu sempre a escutei”. “E agora,

acrescenta ele: escutai-a.” Por conseguinte ele se apresenta sem dizer seu próprio nome, ele não faz mais que

relançar a narrativa, ele se apresenta ele mesmo como tendo sido, primeiro, o narrado de uma historia, da

qual, ele é atualmente o narrador.

Todo narrador se apresenta como tendo sido um narrado: não como autônomo, mas pelo contrário, como

heterônomo. A lei de sua narrativa, se eu posso falar de lei neste caso, é uma lei que ele recebeu. É somente

no fim da narrativa – que ele acabará sempre dizendo: “aqui acaba a história de X; aquele que vo-la contou

é Y –, que son nom est donné, ou plutôt son double nome: seu nome cashinahua e seu nome em português ou

espanhol a depender se ele tiver sido registrado no Brasil ou no Peru, pois o território está sobre a fronteira.

É somente neste momento que seu nome de narrador, seu nome próprio, será dado. Após, mas não antes. E

o que é surpreendente é que quando um dos seus auditores retomar, na sua vez, novamente, esta narrativa,

ele “esquecerá” o nome do precedente narrador, pois o nome do narrador que o precede não é menciona-

do. “Ouviu-se sempre dizer”. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 79-80)

Ora, seguindo o comentário de Lyotard, verifi ca-se que não há, portanto, polarização do dis-Ora, seguindo o comentário de Lyotard, verifica-se que não há, portanto, polarização do dis-curso na narrativa pagã. Se, por um lado, a linguagem é um jogo que se joga a dois, por outro, parece claro não existir nenhuma posição exterior ao jogo a partir da qual se poderia fazer con-siderações a seu respeito a fim de ditar, segundo critérios universais, quais seriam as boas regras e se elas estariam sendo, efetivamente, aplicadas corretamente. Este “olhar” privilegiado é um efeito da utilização da linguagem. Por sua própria natureza de linguagem, ele é apenas uma das versões possíveis produzidas pela utilização das variáveis intrínsecas às regras do jogo de linguagem. O relato se faz independentemente da intenção subjetiva dos diferentes narradores, cuja função é, unicamente, a de manter a narrativa em movimento. Os sujeitos estão desde sempre sujeitos à linguagem, à sua passagem. Eles são os médiuns pelos quais a fala se faz modular na encarnação das variáveis de suas regras. Assim, no ato de sua pronunciação, a fala fixa as formas distintas de prescrever sua própria utilização: faz-se necessário contar a história de um outro – o herói – tal qual ela foi contada por um outro a mim; aquele que conta a história é aquele a quem a história foi contada. O “aquele” é sempre o “outro”. Faz-se necessário que seja um outro e não eu que conte a história, porque o “outro” que fala por “mim” é sempre a fala ela mesma, isto é, a lingua-gem na sua forma dialógica que fala, a cada vez, através de um “outro” que é o “eu” que pode apenas falar por “outro”. Estabelece-se, assim, a heteronomia estrutural da linguagem. Ora, esta voz “diferente”, da diferença que se faz a cada vez que se dá o narrar, esta “lei” da narrativa pagã, consiste, com efeito, em ser a dinâmica mesma da linguagem: dinâmica de enunciação e, portanto, de autonomia de fala, de uma fala livre de limites impostos pela subjetividade dos interlocutores e que faz com que a linguagem “fale” por eles. Ao deixar-se falar pelo “outro” hipostasiado da linguagem, o destinatário torna-se o modelo da autonomia, exatamente da maneira pretendida pela forma de vida teorizada pela arte desde o século XIX, encarnada primeiramente na figura do gênio romântico e, depois, na sociedade idea-lizada das vanguardas. Esta forma de autonomia, entretanto, é a atualização daquela outra – mais fundamental no que concerne ao uso da linguagem – representada pela figura emblemática do mago, cujo gesto originário da criação de um mundo à imagem da sua palavra é o gesto funda-mental de todo jogo de linguagem. Este ato de autoengendramento do mundo pela fala reflete a ordem de associações por uma afinidade entre signos que se transformam em lei universal pela força de sua repetição encantatória. “Compreender que as leis são apenas o fundamento comum da natureza e da arte”, como diz Klee (1985: 51), ecoa a ideia de que na articulação de signos a “norma”, a “lei” ou as “leis” intrínsecas a esta articulação refletem certa ordem comum ao mundo

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e à linguagem. O mundo, entendido como o conjunto de referentes possíveis de serem enuncia-dos, implica a maneira pela qual a linguagem é utilizada, isto é, a sua função produtiva, ou melhor, construtiva, no sentido da poiesis grega. Se, por um lado, a produção de significação resulta sempre de uma experiência comum da linguagem, faz-se necessário, por outro, que os interlocutores aceitem a lei da pragmática da lin-guagem como norma interna a cada interlocutor. É necessário que eles aceitem a heteronomia, o “outro” da linguagem, como única forma de autonomia. Assim, pensar a utilização da linguagem como ação heterônoma ou autônoma resulta no mesmo. O polo do sujeito da enunciação per-manece presente no discurso apenas através da intencionalidade de sua reivindicação de pertença ao polo do destinatário, ou seja, ao polo do que Lyotard denomina tradição.

[...] Estamos em um modo de transmissão dos discursos que se faz insistindo sobre o polo da referência

(aquele que fala é alguém que foi “falado”) e sobre o polo do narratário (narrataire) (aquele que fala é aquele

à quem se falou). O sujeito da enunciação não espera de nenhuma maneira reivindicar sua autonomia em

relação ao seu discurso, ele reivindica, muito pelo contrário, pelo seu nome próprio e pela história que ele

conta, seu pertencimento à tradição. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 81)

Para que a narrativa possa se transmitir, o enunciador deve, necessariamente, reduzir seus dese-Para que a narrativa possa se transmitir, o enunciador deve, necessariamente, reduzir seus dese-jos a um só: o de pertencer a uma tradição. Logo, pode-se dizer que há um ato de vontade, uma escolha. Isto é, a escolha de submeter seu papel de enunciador à força do desejo de ser o destina-tário, o herdeiro de uma história, na qual ele está inserido como enunciador. O que ele enuncia, no momento em que conta a história, é que sua posição de enunciador sempre foi legitimada pelo fato de que ele é o destinatário da narrativa e, logo, destinado a ocupar, a representar o papel de narrador. Ele é o destinatário porque ele mesmo se enuncia, e se anuncia, nesta posição, a cada vez que narra a história. Sendo os polos do enunciador e do auditor transformados pela força da narrativa em pontos de passagem, pontos de relais, não há possibilidade de julgar verdadeiro ou falso o que é narrado. É completamente impossível encontrar alguma relação de correspondência com o mundo externo ao narrado para tentar fazê-lo corroborar a narrativa, assim como não há critérios externos para julgar a maneira mesma desta ser narrada; o mundo, na sua essência, confunde-se com a narrativa, não podendo existir fora da sua lógica. Posto que o narrado é “pos-suído” por sua destinação, determinado por sua “lógica interna”, de se dizer por si só, as diversas instâncias do narrado, os destinatários que estão concernidos por esta “lógica”, ou seja, que devem fazer viver o narrado são e estão, por sua vez, simultaneamente, “possuídos” e “em possessão” de sua força de transmissão. A “lei” interna da narrativa, sua força de transmissão, caracteriza-se por ser um conjunto de prescrições de modos de se narrar. Este conjunto de prescrições tem por finalidade reduzir to-dos os sujeitos de fala à única instância do destinatário. As prescrições tornam-se “leis” internas à narrativa pelo efeito da crença necessária na coesão do conteúdo narrado, reiterada pela forma ritualizada da narrativa. Faz-se necessário crer que os referentes articulam-se entre si, obedecendo às “leis” da narrativa, inscritas aí como em sua própria “natureza”. Na maneira de narrar os refe-rentes, no modo em que estes aparecem na narrativa, encontram-se reproduzidas as tais “leis” que regem a “natureza” dos referentes. Todavia, a maneira de reunir os referentes, articulando o narra-do na narrativa, é, por definição, a imagem mesma do princípio de autonomia na sua autogênese, à qual os destinatários são incorporados ao incorporarem a crença nesta. Na maneira de contar, o narrado se fixa na crença de sua eficácia, à medida que ela se reproduz como “lei”, a despeito de variáveis mais ou menos circunstanciais de transmissão. Se o efeito da narrativa é, portanto, o de produzir no destinatário a crença em sua condição de destinatário das “leis” de transmissão do narrado – entendidas como “leis” estruturais da or-dem na qual os referentes se articulam – não é menos verdade que seja preciso crer na eficácia

da narrativa em produzir tal crença. Faz-se necessário, então, que aquele que ocupa a posição de destinatário aceite ser o dispositivo de transformação de enunciados prescritivos em enunciados afirmativos, nomeando-se a si mesmo como o destinatário do poder intrínseco à narrativa de se contar, ela mesma, por intermédio de “sujeitos/relais”. O “artista”, por conseguinte, encontra-se na posição prototípica do destinatário, concebido como o dispositivo de transformação de enun-ciados performativos em enunciados assertivos, transformação cujo efeito “mágico” é a criação da experiência sensível de si mesmo, do outro e do mundo, pela ação da palavra. O destinatário, “fazendo ver” (figurar) o que o narrado deve fazer crer que ele pode “fazer ver”, deixa aparecer a dinâmica de enunciação como dinâmica de criação de um lugar de partilha narrado. Este lugar, vivido como o único real possível, renova-se permanentemente em novas fórmulas de narrar, em novas versões deste real. O destinatário/artista inventa a partilha do real no ato de narrar pela repetição de fórmulas de dizer, no sentido da tradição de Lyotard, que são modos de fazer, isto é, de produzir a diferença.

[...] Eu considero que esta tradição não significa de forma alguma, como se diz geralmente, uma relação com

o tempo que seria uma relação de conservação, na qual o que seria importante seria guardar as coisas para

preservá-las de uma usura temporal e de recusar o que é novo. De fato (André Marcel d’Ans insiste), o na-

rrador dispensa tesouros de invenção retórica e poética indo, claro, até os jogos de palavras, aos traits d’esprit,

e mesmo até a mímica, para animar sua narração. Neste nível, quer dizer, a um nível que nós chamaremos

“artista”, estes indígenas são extraordinariamente produtivos e eles são perfeitamente capazes de distinguir

os bons narradores dos medíocres. O traço pertinente não é a fidelidade, não é porque o narrado está bem

conservado que se é um bom narrador, pelo menos para as narrativas profanas. Pelo contrário, porque o

narrado se restabelece, porque ele se inventa, porque nele se introduzem episódios diferentes que delineiam

o motivo sobre uma trama narrativa, é que ela permanece estável. Quando nós dizemos tradição, nós pensa-

mos identidade sem diferença. Ora, de fato, existe evidentemente diferença, os relatos se repetem, mas não

são jamais idênticos. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 82)

Não se trata, por conseguinte, de conservar os relatos da tradição pela repetição. Trata-se, an-Não se trata, por conseguinte, de conservar os relatos da tradição pela repetição. Trata-se, an-tes, de fixá-los, cada vez sob uma fórmula diferente, em uma figuração derivada de um conjunto completamente plausível de variações do mesmo conteúdo. Este conjunto de variações – que poderia caracterizar a deformação do relato em função dos aspectos subjetivos que aí são adicio-nados – adquire sua verossimilhança pelo fato de se encontrar, ele mesmo, previsto na dinâmica de narração que estrutura o relato. O relato tem por finalidade dar vida à partilha da experiência estética de suas versões como forma de vida coletiva de produção de identidade. Uso aqui o termo “forma de vida”, conservando e ampliando a noção de Lebensform de Wit-tgenstein (2001: § 23). Uma forma de vida é, neste sentido, o falar uma língua, mas também – no contexto de nosso trabalho – as prescrições de como o narrador deve narrar tal passagem, ou, ainda, a decisão sobre se esta passagem deve ou não fazer parte do relato. Tais prescrições que, em última instância, derivam da maneira pessoal de narrar, do “estilo” ao qual o narrador deve permanecer fiel para poder fazer o narrataire, o narrador potencial, crer que a sua maneira de narrar é intrinsecamente essencial ao desenrolar do relato. O “traço pertinente” mencionado por Lyotard parece ser o “como” a fidelidade à tarefa de narrador se mantém intacta pela sua inscrição na ação do relato através do papel do narrataire, a saber, do destinatário, revelando, assim, a trama narrativa na destinação do narrador. Esta trama urde-se à medida do desenrolar do relato. O “traço” se impõe pela coerência estrutural e estru-turante do relato como o relato da legitimidade daquele que ocupa o lugar do narrador, pois este estava destinado à tarefa de narrar. O relato, o narrado, consiste, portanto, em “narrar-se a si mes-mo” a partir do lugar do narrador, pois o relato não se pode fazer sem um destinatário que conta a história de sua destinação. Paradoxalmente, o estilo, a maneira de dar forma ao relato, instaura

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a linha de coesão entre a diversidade de versões possíveis. O narrador imprime sua marca no relato, mas somente para conservar-se como traço de união entre o relato e o destinatário que o narrador tem sido, desde sempre. O narrador repete, assim, o esquema fonoauditivo intrínseco aos atos de fala, pelo qual o sujeito da enunciação e o sujeito auditor são unidos. A estrutura aqui realçada é a da prosopopéia original, apontada por Humboldt e atualizada na antropologia filo-sófica de Jacques Poulain (2001: 80-91). Todo ato de fala, toda enunciação, conserva e se articula a partir da estrutura audiofônica originária da linguagem: o fato de que falar, em última instância, significa projeção e recepção de sons simultaneamente, que nosso cérebro interpreta sempre na forma de diálogo. Elimina-se a diferença entre a experiência de contar e aquela outra de escu-tar o relato. O relato é narrado através da experimentação destes dois polos como uma única forma de vida compartilhada, visto que são intercambiáveis. Em consequência, o “traço”, o estilo, torna-se forma de vida no movimento circular de sua afirmação – a tautologia fundamental que determina todo ato de fala – escandido pela repetição de suas modulações. O “deixar fazer” de uma articulação, de um rearranjo contínuo das formas de presentificação do relato, transforma-se em sua lei de transmissão e, ao mesmo tempo, em procedimento de transmissão da lei. O “traço” que circula do destinador ao destinatário torna-se, por sua vez, o “traço” que faz circular o relato deste para aquele, reduzindo-os ao trabalho de relayers, de “re-colocadores” do relato em movimento. Compartilha-se, assim, a legitimidade do relato como o relato da partilha do seu “Don”, isto é, o “traço”. Sua pertinência se transmite por formas varia-das de reiteração da identidade de cada individuo (envolvido em narrar e escutar o relato) com o próprio relato. O ato de contar a história é também o ato de esquecer sua posição de des-tinador, identificando sua maneira de contar a história à história contada, no momento mesmo em que se conta a história. Como um “Don”, cujo destinador é o destinatário, o “traço” que o caracteriza, seu estilo, torna-se o “traço” da narrativa que o atravessa. A força performativa da fala do destinador, o que dá sua força de verdade, consiste em se fazer esquecer, fazendo esquecer a diferença entre recursos retóricos, formais, empregados para atualizar a narrativa, e a narrativa ela mesma. O “Don” do relato consiste, desta maneira, na possibilidade que este tem em comu-nicar-se, isto é, em relançar-se (relayer) através dos diversos destinatários. Quando o narrador/destinatário deixa-se atravessar pela narrativa e, por isso, afirma sua posição de narrador dentro da narrativa, ele vive este atravessar-se como a experiência estética de sua significação: a de ser forma de vida da linguagem. Forma de vida à qual adere naturalizando-a pela ritualização das variantes formais que cria, vividas como possibilidades únicas de existência. Sem a identificação plena com a linguagem, o narrador deixa de ser destinatário e, portanto, desaparece. Neste sen-tido, criar é experimentar novas formas de narrativa de um mesmo relato. Contar é apresentar a narrativa como a única forma de existência possível daquele que narra. A experiência estética do narrar-se ao narrar qualquer relato – de deixar-se atravessar pela lógica simpática da cadeia de significantes na dinâmica de transmissão de uma tradição – torna-se o cerne de toda forma de vida legítima.

É um fenômeno de entropia ou uma experimentação? Eu tenho uma tendência a pensar que se trata antes

de uma experimentação. A- demais, que sejam as mesmas tramas narrativas que retornam, o que isto pode

querer dizer? Os relatos populares, se eles podem tornar-se extremamente simples, provérbios, moralida-

des, tornar-se quase um problema de ritmo do discurso, de gênero; tal pai, tal filho, (pedra que rola não cria

limo) Pierre qui roule n’amasse pas mousse, etc. (vê-se claramente a proximidade com a música, não somente

por que há rima, frequentemente, mas também porque são fenômenos rítmicos da língua, que fazem com

frequência pensar ao Sprechgesang), isto não se faz por acaso: na transmissão desses relatos, na repetição

de seus rótulos, o que é importante, é contar a história servindo de “relais”, é ser o “traditor” (traditeur) do

relato, porque no simples fato de relayer esquece-se, justamente, de algo. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 83)

Deve-se ressaltar que a experimentação dos fenômenos rítmicos da linguagem, aos quais Lyo-Deve-se ressaltar que a experimentação dos fenômenos rítmicos da linguagem, aos quais Lyo-tard faz referência, é a essência mesma da sua dinâmica marcada pela temporalidade individual de cada destinador, que é transformada, pelo exercício da narração, na temporalidade característica do destinatário do relato. A maneira de o destinador imprimir seu próprio ritmo, sua própria modulação à partilha do relato, instaura, na diferença, a ausência de diferença entre o que desti-nador conta e sua maneira de contar. Esta identidade, consequentemente legitimada pela fala do destinador, faz com que, no transcorrer da narrativa, compartilhe-se um “metarrelato” que lhe é intrínseco. “Metarrelato” que conta que o destinador é também o destinatário. Verifica-se, então, que o objetivo do relato é a partilha da condição de destinatário e a finalidade da partilha, por sua vez, o relato ele mesmo. Deste circuito deriva a autonomia do relato. Nele reside a possibilidade de todo processo de criação que, no meu entender, funda o fazer artístico na sua generalidade: o de fazer aparecer o que é da ordem de um relato compartilhado como forma de vida de uma co-munidade, como sendo criação individual, fazendo, assim, crer que a criação individual é contida no relato como seu corolário necessário. Como a noção de ressonância em Kandinsky, ou a de mana da magia estudada por Mauss, a linguagem é alguma coisa que se partilha e, ao mesmo tempo, é aquilo que permite e constitui a partilha: a heteronímia, a alteridade. A linguagem se constrói cons-truindo o referente, em uma relação dialógica, com quem o “outro” que eu sou, enquanto auditor de mim mesmo, deve estar em concordância. A estrutura dialógica da linguagem e, portanto, da arte, é pagã, isto é, construída através de afinidades entre elementos formais que, basicamente, são elementos de um circuito de estímulo e resposta fonoauditivos, que determinam, entretanto, toda forma de experiência sensível.

Eu creio que este traço é profundamente pagão. Esta relação ao tempo, que é tão surpreendente que ela nos

faz dizer as piores besteiras sobre a sociedade sem história, se traduz em uma pragmática que tem por efeito

que nenhum discurso possa se apresentar como autônomo, mas ao contrário, sempre como um discurso

recebido. O que tem por consequência que os relatos com seu ritmo próprio são narrativas que se veiculam,

por assim dizer, independentemente na boca e através das orelhas dos indivíduos destes povos, e que se

esquecem à medida que a narrativa transcorre, e que, então, repetem-se como essas músicas repetitivas, sua

repetição marcando o batimento proteron/usteron, um dois, um dois, que é a díade, quer dizer, o elemento

métrico o mais simples. Eu diria, mais genericamente, no nível que os linguistas chamam a pragmática do

discurso, em particular a propósito daquele dos discursos narrativos, sobre os quais eu penso, de mais a mais,

que eles são a forma popular do discurso, que os indivíduos são introduzidos na linguagem, não falando, mas

escutando, e que o que as crianças escutam, são histórias. Primeiramente a delas próprias, pois elas são aí

nomeadas. Isto implica o contrário da autonomia, a heteronomia. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 84)

A forma dialógica, pragmática, reflete simplesmente aquela outra da lógica rítmica da linguagem, a da sua musicalidade, quer dizer, da materialidade lógico-estrutural da dinâmica de construção do sentido. Não obstante, na perspectiva que venho desenvolvendo aqui, não há, efetivamente, no modelo pagão, uma predominância da heteronomia em relação à autonomia, pois a heteronomia pressupõe a autonomia da linguagem e tal autonomia concretiza-se tão somente pelo exercício da narração, logo pela heteronomia. Ao compartilharem-se as regras de linguagem na narração, estas se tornam a voz dos destinatários. Autonomia e heteronomia constroem-se no processo e na temporalidade da narrativa, de maneira unívoca. Nesta univocidade, quer dizer, na identificação essencial entre o falante e a linguagem falada, funda-se toda experiência sensível, estética. Sentir é sentir o referente em uma experiência que só é possível pela identificação plena deste com o seu enunciado, do enunciado com o enunciador e deste com o auditor. Nesse sentido, não há um enunciado e um referente ao qual o enunciado se refere, algo fora da linguagem posto aí, no mun-do, ao qual o enunciado faz menção ao referir-se a um referente qualquer. Referente e enunciado são um só e têm sua efetividade na dinâmica dialógica da linguagem. Uso o termo efetividade, aqui,

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em uma aproximação com o termo alemão Wirklichkeit: o real que não é nem o que está dado no mundo e pode-se descobrir, nem o que está sintetizado em um conceito. Porém, efetividade signi-fica, aqui, algo mais abrangente: que o necessário é uma possibilidade e, portanto, apenas possível no contingente, mas que, da mesma maneira, o contingente só pode dar-se no necessário.

III

No projeto abstracionista da arte, a linguagem constitui o agenciamento de elementos formais e plásticos, conforme as leis de afinidade, dos quais o artista é apenas um médium, o meio pelo qual as configurações deste agenciamento se produzem. Como afirma Deleuze, o agenciamento tem duas faces: ele é o agenciamento coletivo do enunciado e o agenciamento maquínico do desejo. Tomo aqui a expressão “maquínico do desejo” no sentido daquilo que, no decorrer da narrativa, confunde-se com o próprio relato, isto é, com a própria dinâmica dos atos de fala. Deleuze dirá que não há agenciamento maquínico social do desejo que não seja agenciamento coletivo da enunciação (DELEUZE e GUATTARI, 1975: 145-147). Assim, se analisarmos o espiritual teoriza-do por Kandinsky, por exemplo, veremos que ele consiste em uma pura articulação associativa, um agenciamento, dos elementos da linguagem em uma dinâmica de partilha do enunciado. O espiritual, antes de tudo, abriga esta capacidade de produzir a experiência da efetividade do refe-rente no enunciado: ao utilizar a linguagem, agencia-se coletivamente a significação do enunciado enquanto experiência sensível do que nele está referido. O espiritual na arte abstrata se perpetua, portanto, nas suas formulações não visuais, não retinianas, da arte contemporânea. Ao mesmo tempo, justamente porque a arte permanece sempre a configuração múltipla do princípio prag-mático da linguagem, é que uma obra dita abstrata, uma pintura de Kandinky, por exemplo, está sempre sujeita ao mesmo princípio normatizador da dinâmica enunciativa. Mesmo uma obra vi-sual abstrata, aparentemente desprovida de todo elo com enunciados verbais, só encontra lastro porque o espiritual é uma figuração do agenciamento da dinâmica de linguagem. O espiritual se autodetermina como o campo específico de experimentação do sensível, possível apenas como experiência da partilha coletiva do enunciado. O espiritual, nesta perspectiva, encontra-se no centro da tendência à fragmentação do discurso da grande narrativa do saber, tal qual ela foi pensada e diagnosticada por Lyotard. A disposição à descentralização do discurso conserva, com efeito, o espiritual nos procedimentos utilizados para determinar o fim da absolutização do relato do saber, cuja raiz especulativa caracterizou o século XIX e que serviu de modelo para o século XX. O espiritual, identificado ao principio pragmático da linguagem, conservou-se no seio de cada jogo de linguagem, de cada discurso, como o saber totalizante que se engendra sozinho pela sua própria lógica interna. Como ressalta Lyotard, o es-pírito especulativo estabeleceu a essência criativa do discurso científico e esta lógica especulativa contém, ela mesma, o germe da sua não legitimação como discurso hegemônico. Isto porque a exigência de legitimação que o enunciado especulativo contém deve, ela também, ser necessaria-mente legitimada no interior de sua própria lógica do espírito especulativo. O enunciado especula-tivo torna-se, desta maneira, parte de um jogo de linguagem que podemos denominar de jogo de linguagem especulativo. (LYOTARD, 1979: 64-65)

IV

A noção de autoengendramento se conserva no modelo dos jogos de linguagem pela atualiza-ção, em cada partida jogada, das regras necessárias à legitimação da sua autonomia. Esta noção sobrevive na forma germinal do diálogo entre linguagem e os seus destinatários impondo, assim,

as leis da pragmática dos enunciados como o único real possível. O modelo da narrativa pagã de Lyotard passa a ser o paradigma de todo processo de emancipação do discurso que se pretende igualitário, no qual todas as instâncias da narrativa são reduzidas àquela do destinatário. Os nar-radores são atravessados pela palavra que se fala a ela mesma, obedecendo às suas próprias leis, exatamente como no modelo peirciano de semiose. Os três modelos: o do paganismo, o da se-miose e o dos atos de fala, todos estruturados de acordo com a prosopopéia original que regula o jogo de linguagem, se equivalem. O mesmo ocorre com os jogos de linguagem – e o relato pagão é um caso de jogo de linguagem –, quando estes se fazem de maneira autônoma. A autonomia de um jogo de linguagem se mede pela simples aplicação consensual das regras performativas de enunciação, com o intuito de determiná-las como lei interna da linguagem. Consequentemente, em um único jogo de linguagem, as regras se confundem com a utilização das mesmas, exata-mente como se verifica no caso da abstração pictórica. O lugar de fala da linguagem, o Tertius3, quer seja o Deus das religiões monoteístas, o Espírito hegeliano, o espiritual na arte, ou, ainda, o conceito como obra de arte, trata-se sempre de um resíduo tardio da dinâmica de sensibilização audiofônica, característica dos relatos das sociedades ditas primitivas, ou sem história linear, cujo funcionamento consiste em deixar as instâncias da “minha fala”, a instância do eu, e da “sua fala”, a do outro, aparecerem como “a fala dela”, isto é, da linguagem. Podemos afirmar, então, que a forma de vida original da arte é engendrada pela prosopopéia original e análoga àquela da narrativa pagã. Este modelo de vida pode corresponder, efetivamente, àquele do individualismo liberal do capitalismo tardio, pois no experimentalismo perpétuo das no-vas formas de sensibilidade, trata-se de experimentar novas maneiras de contar o mesmo relato, no qual não há mais posição privilegiada do discurso, quer dizer, no qual o locutor e o auditor de-saparecem para assumirem o papel de simples legatários, destinatários da linguagem. Estabelece-se, portanto, no seio da pragmática de linguagem, um campo onde qualquer experiência encontra sua legitimação. O relato pagão é, portanto, o horizonte ideal de utilização da linguagem, para o qual tende toda pragmática de linguagem. Na narrativa pagã, toda e qualquer experiência singular – por ser da ordem do destinador/destinatário da narrativa, que encarna o Tertius de linguagem – tende a ser vivida como experiência coletiva da linguagem. Este é o tipo de experiência que constitui a base de todo consenso. Ora, pode ser que a alteridade absoluta da linguagem, o Tertius, seja simplesmente uma das versões de um ideal de consenso, imposto pela utilização das regras de enunciação à comunidade de locutores como única forma de vida possível. Neste sentido, podemos dizer que há um relato primeiro legitimador do consenso, que o apresenta sob a forma de vida autônoma da linguagem e que engendra, por sua força performativa, todos os outros relatos nos quais os locutores são apenas destinatários. O consenso detém, por conseguinte, o lugar de um poder de fala única, a do Tertius. Posto que hegemônico, na sua maneira de se autoengendrar como a única instância possível de experiência, o consenso é o metarrelato que se conta a si mesmo como o lugar de emancipação da fala que acontece em cada contar específico.

3. Noção apresentada por Jacques Poulain como o Tiers de linguagem, literalmente o “terceiro” de linguagem, que significa

a linguagem como um lugar de fala, ela mesma autônoma. Preferimos substituir “terceiro” pelo termo latim Tertius. Para

conhecer o desenvolvimento detalhado desta concepção, ver POULAIN, 2001, capítulo III.

V

Nas práticas e instituições representativas das sociedades capitalistas avançadas, a experiência to-tal do real, no consenso produzido pelo uso da linguagem, torna-se a forma de vida pela qual o valor de verdade dos relatos é sempre o mesmo. Porque justamente tais relatos contam todos

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fundamentalmente a mesma história – a do poder de verdade da fala compartilhada de maneira consensual – mesmo os relatos contraditórios encontram aí sua legitimidade. Este tipo de lógica se assemelha àquela analisada por Marcel Mauss, característica das sociedades nas quais reina a ordem mágica da afinidade. Determinada por afinidades associativas entre elementos concebidos a partir de uma mesma “substância”, esta seria uma lógica metafísica e metalógica. Ela se resumiria a uma “capacidade”, um “atributo” de linguagem pelo qual os membros da comunidade de falantes são “possuídos”, uma “qualidade mágica” cujo poder de transformar tudo em mana – o agente, o ritual, o objeto mana, etc, – é analogo àquele outro poder, da pragmática da linguagem, que é o de tudo transformar em linguagem. Da mesma maneira que o Espírito especulativo encarnava-se no grande relato do Saber, os jogos de linguagem são o lugar de possessão deste outro espírito, o “outro ab-soluto” da linguagem, que guarda uma proximidade radical com o mana. Marcel Mauss apresenta os significados de“o ser que é o mana” e dos múltiplos modos que este tem de se transmitir e se presentificar.

A mana não é simplesmente uma força, um ser, é, sim, uma ação, uma qualidade e um estado. Em outros

termos, a palavra é, ao mesmo tempo, um substantivo, um adjetivo e um verbo. Diz-se de um objeto que ele

é mana, para dizer que ele tem esta qualidade; e neste caso, a palavra é um tipo de adjetivo (não se pode

dizê-lo de um homem). Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana, o “mana de fazer

isso ou aquilo”. Emprega-se a palavra mana em diversas formas de diversas conjugações, ela significa, então, ter

mana, dar mana, etc. Em suma, esta palavra subsume um monte de idéias que nos designaríamos por: poder de

feiticeiro, qualidade mágica de alguma coisa, coisa mágica, ser mágico, ter poder mágico, ser encantado, agir ma-

gicamente; ele nos apresenta, reunidos sob um vocábulo único, uma série de noções, das quais, nos entrevimos

o parentesco, mas que estavam alheias a nós, dadas à parte. Ele realiza esta confusão de agente, rito e coisas

que nos pareceu ser fundamental em magia. (MAUSS, 1995: 101)

O mana é, então, justamente esta função da linguagem de ser o transcendente absoluto, isto é, de ser, ao mesmo tempo, o referente, suas propriedades (o que faz com que ele seja isso e não ou-tra coisa) e a ação de indicá-lo pelo enunciado e, desta maneira, constituir a sua especificidade. Em outros termos, a linguagem e a partilha da linguagem constituem o mana no capitalismo avançado: a forma do mana de se manifestar e de ser o lugar do aparecer do mundo se conserva na hipóstase da linguagem. A linguagem/mana abarca tudo através das múltiplas versões de construção do real na partilha comum da linguagem. Cada jogo de linguagem é mana e tem mana. Aquele que joga o jogo da linguagem e que conta o “fazer isto ou aquilo”, conforme as leis do mana, é, ou possui, também, o mana. O mana concentra, simultaneamente, o poder ilocutório de fazer com que se re-alize o que é dito no enunciado, pelo simples fato de o dizer, assim como o poder de fazer ver que o que é dito no enunciado. Concentra o poder apodítico e apofântico do referente na efetividade do enunciado. A linguagem/mana é a linguagem e a coisa agenciada (o referente). Ela é também o agenciamento (o ato de fala) e o protocolo do agenciamento (as regras do jogo de linguagem).

A idéia de mana é uma das idéias confusas, da qual nós nos cremos estar desembaraçados, e que, por con-

seguinte, temos dificuldade de conceber. Ela é obscura e vaga e, entretanto, de um emprego estranhamente

determinado. Ela é arbitrária e geral e, entretanto, plena do concreto. Sua natureza primitiva, quer dizer com-

plexa e confusa, nos proíbe fazer uma análise lógica, devemos nos contentar de apenas poder descrevê-la. Para

M. Codrington, ela se estende ao conjunto de ritos mágicos e religiosos, ao conjunto de espíritos mágicos e

religiosos, à totalidade das pessoas e das coisas intervindo na totalidade dos ritos. O mana é propriamente o

que faz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e mesmo valor social. A posição social dos

indivíduos está na razão direta da importância de seu mana, particularmente a posição na sociedade secreta; a

importância e a inviolabilidade dos tabus de propriedade do mana do individuo que os impõe. A riqueza deve

ser efeito do mana; em certas ilhas, a palavra mana designa mesmo o dinheiro. (MAUSS, 1995: 102)

A linguagem, a entidade compartilhada e o próprio partilhar, explica a onipresença do mana, na qual não há separação entre o concreto e o abstrato. O mana é falado e fala; é o objeto da descrição e é, ele mesmo, o descrito; diz o verdadeiro porque a linguagem tem e é o mana. Ter e ser mana determina sempre um enunciado verdadeiro. Pode-se, portanto, dizer que o enunciado é a constatação do mana pelo mana, primeiramente porque é o mana que julga no enunciado e, em seguida, porque o objeto de julgamento é o mana ele mesmo, visto que não se pode construir juízos fora do mana. Se, à época do capitalismo contemporâneo, a ausência do absoluto torna-se o Absoluto pela “transcendentalização” do múltiplo, isto se dá, a meu ver, em uma relação direta com a sobrevi-vência do esquematismo e do mecanismo de agenciamento típico do mana no uso da linguagem, portanto, nos usos, nas práticas sociais e nas construções teóricas. O mana permanece funda-mentalmente a articulação dinâmica da linguagem e suas múltiplas configurações nos jogos de linguagem. Encarnado no corpo social, bem como no corpo individual, o mana é o “outro” da lin-guagem pelo qual os seres de fala são possuídos; o “outro” que fala por eles, para que possam, efe-tivamente, fazer uso da palavra. Em seu diálogo perpétuo com ele mesmo, o mana determina aos falantes, em ultima instância, a função de serem pontos de passagem (relais), pontos de aceleração, de mudança de temporalidade na transmissão do mana. O mana faz da linguagem uma forma de vida onipresente. O sujeito falante permanece, por conseguinte, o médium pelo qual a linguagem torna-se experimentação estética de si mesma. Se representar tudo o que não é linguagem na ex-perimentação da palavra constitui, portanto, o mana da linguagem, não é menos verdade que este representar é a linguagem do mana. Esta representação é o único real possível, ela é a efetividade daquilo que pode ser experimentado no enunciado. O mana instaura e é instaurado pela opera-ção de dar passagem ao relato, fundamento de todo ato de fala.

VI

Gostaria de introduzir aqui a noção de infra-mince, elaborada por Marcel Duchamp, para melhor entendermos a extensão e a força estética contida na hipóstase da linguagem, intrínseca à dinâmi-ca pragmática e identificada ao mana. No mana encontra-se, por assim dizer, um funcionamento equivalente àquele de infra-mince. O infra-mince deve ser identificado, a meu ver, simultaneamente, ao funcionamento próprio dos jogos de linguagem e à articulação essencial entre propriedades formais e/ou físicas de objetos. Na perspectiva pragmática, falar de signos e objetos resulta no mesmo. Duchamp trabalhara vários anos sobre a noção de infra-mince, na tentativa de verificá-la em uma série de situações de transformação de signos. Dos quarenta e seis itens das Notas que representam o desenvolvimento da noção de infra-mince, ressalto os itens de um a sete, porque neles encontra-se a evidência do que estou chamando de mana: o traço de uma passagem, isto é, de qualquer coisa que passou, que não é mais, mas que persiste na ação de passar e de deixar passar outra coisa. O infra-mince integra as noções de possível, de devir, de alegoria, de analogia, de reciprocidade, de associação, de atributo (o infra-mince não é um substantivo), de similaridade, de múltiplo, em uma dinâmica relacional na qual os elementos implicados seriam os pontos de pas-sagem do relato pagão. Tais pontos são intervalos, são pausas que relançam a dinâmica de articu-lação entre as noções acima elencadas, a fim de dar passagem, em seu fluxo contínuo, a esta coisa que passa, que é a própria linguagem. Encontramos no infra-mince o mesmo tipo de articulação característica do mana:

1. o possível é um infra-mince.

A possibilidade de vários tubos de cor tornarem-se um

Seurat é “a explicação” concreta do possível como infra-mince.

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O possível implicando o devir – a passagem de um a outro

tem lugar no infra-mince.

Alegoria sobre o “esquecimento”

2. analogia infra-mince

3. “portador de sombra”

sociedade anônima dos portadores de sombra representada por todas

as fontes de luz (sol, lua, estrelas, velas, fogo -)

incidentemente:

diferentes aspectos da reciprocidade – associação fogo-luz

(luz negra, fogo-sem-fumaça = certas fontes de luz)

os portadores de sombra trabalham no infra-mince

4. “ o calor de uma poltrona (que acaba de ser deixada) é um infra-mince.”

5. infra-mince (adject.) não nome – nunca fazer deste um substantivo

O olho fixa fenômeno infra-mince

6. “ a alegoria (em geral) é uma aplicação do infra-mince.”

7. semelhança/similaridade

O mesmo (fabricado em série)

Aproximação prática da similaridade.

No tempo um objeto não é o mesmo no 1 segundo

De intervalo.

Qual relação com o princípio de identidade? (DUCHAMP, 1999: 21)

No infra-mince se discerne o “falar outro” do “outro”, que é a persistência de uma função, o índice de um funcionamento: o fazer passar o “isto” a “aquilo”. O infra-mince, todavia, também é o índice de alguma coisa que passa: o traço, a marca do relato que passa de um a outro destinatá-rio e que, ao passar, torna-se outro relato. Portador de uma dupla condição de signo indicial, ele indica não somente a passagem, mas também o que passa, como dois momentos principais do funcionamento da linguagem, quer dizer, do infra-mince ele mesmo. E posto que, pelo princípio de autonomia da linguagem (a alteridade que se autoengendra), não possa haver predeterminação no funcionamento da linguagem, o infra-mince determina o acaso como estrutura e origem do relato. Por isso Duchamp pode dizer que Seurat é a explicação concreta do infra-mince. Seurat torna-se médium, ponto de passagem e de associação contingente entre os tubos de cor, cujo efeito é a imagem da pintura de Seurat. Ao mesmo tempo, Seurat é o nome da metanarrativa da transformação dos tubos de cor (“isto”) em pintura (“aquilo”) e, também, o nome do que é con-tado, narrado no quadro, isto é, que “aquilo” é um Seurat. Considerando-se que a possibilidade de transformação se transmite como virtude mágica, como mana, e que o ato mesmo de transmitir esta possibilidade é mana, a transmissão do mana e a maneira de transmiti-lo (o que deixa traço) podem ser considerados infra-mince. Neste sentido, o infra-mince indica também o protocolo, o procedimento utilizado para que tal pintura seja uma obra de Seurat. O nome “Seurat” torna-se também infra-mince, isto é, um atributo, um modo de funcionar da transformação, da passagem de tubos de cor, o “isto”, a uma obra de arte reconhecida como um “Seurat”, o “aquilo”. O fato de o infra-mince apresentar uma imprecisão estrutural – o acaso é que determina as suas articulações – indica que esta imprecisão encontra-se na raiz mesma das dinâmicas arcaicas da linguagem que se mantêm vigentes, cujo fim é reduzir a linguagem à sua forma performativa. O infra-mince tem um papel essencial na representação e na transmissão dos diversos efeitos com-portamentais dos atos de fala. No infra-mince objetiva-se um campo de experimentação do real como dinâmica de recepção e de doação espontânea de significação que nos atinge sem que seja-mos obrigados a elaborar um juízo sobre sua validez. Uma vez que esta dinâmica é compartilhada simultaneamente como entidade transcendental (a linguagem hipostasiada, o Tertius) e como a

partilha ela mesma, os efeitos sobre os interlocutores aparecem como signos da presença mágica de uma essência comum, o mana. Ainda que tal essência, o mana, seja o resultado das várias ex-periências “moleculares” de utilização da linguagem – os jogos de linguagem – ela permanece esta instância absoluta que determina a maneira de utilização da linguagem e, portanto, as experiências sensíveis dos interlocutores. No encantamento provocado por sua própria fala, cada interlocutor sente e faz sentir sua ex-No encantamento provocado por sua própria fala, cada interlocutor sente e faz sentir sua ex-periência sensível, contida na partilha do enunciado, conforme os modos de iteração do “outro” da linguagem. Se seguirmos as descrições dos itens um, seis e sete da definição de infra-mince, perceberemos que esta iteração manifesta-se sempre como alegoria. Entretanto, na alegoria re-side a figuração do mesmo no outro, a encarnação do “outro” absoluto da linguagem, visto que a linguagem é sempre um terceiro, o Tertius que fala no lugar do locutor e do auditor. Na alegoria, insistimos, encontra-se condensada a noção da alteridade constitutiva da narrativa pagã que é o modelo da instância pragmática da linguagem. A alegoria, a partir das observações de Duchamp, abriga as bases para um tipo de relação de analogia intrínseca a todo jogo de linguagem e que de-fine a relação de equivalência entre os diferentes polos do diálogo. Visto que no infra-mince o de-terminante é o acaso, cada ponto de passagem (o interlocutor/narrador) equivale a outro ponto, pois cada um é a alegoria de si mesmo como o outro. Da mesma maneira, cada referente equivale a outro. Tudo pode se substituir a tudo e cada enunciado é tão verdadeiro quanto o seu contrário, com a condição de pertencer a falas diferentes, a jogos de linguagem diferentes. A analogia infra-mince resume, portanto, a associação entre signos, cuja semelhança deriva de forças simpáticas convergentes, as mesmas das relações mágicas. Tal analogia é uma ação que mimetiza, no ato de fala, o ato mágico do destinador/locutor de se fazer incorporar pela linguagem/mana. Por este motivo, tendo em vista que o saber é sempre construído por e na experimentação estética, e que esta é experimentação de e na linguagem, o ato de fala constitui o protótipo da ação artística.

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Matisse, Newman, Bené Fonteles: A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do Demiurgo

VERA PUGLIESE *

ResumoO presente artigo se baseia na pesquisa de Doutorado, cujo objeto é a associação de três séries de obras – o Chemin de

la Croix, de Henri Matisse (1948-51); as Stations of the Cross, de Barnett Newman (1958-66) e os Sudários, de Bené Fonteles

(2001-04) – frente às relações projetivas formadas na espessura do olhar do historiador da arte diante das imagens. Este

texto apresenta o estudo preliminar para o recorte desse objeto, que suscitou questões teóricas impostas pela categoria

de identificação “autoimpingida” desses artistas com a Paixão de Cristo. A análise de seus discursos conduziu à percepção

do processo de criação como um constrangimento pela vontade do tema (Matisse), pela vontade da forma (Newman) e

pela vontade do processo que tomou forma (Bené). A investigação da natureza da vontade formal transfigurada sintoma-

ticamente em imagem, alterando suas intenções, levou à indagação sobre a polêmica da conceituação de estilo e como ela

caberia, hoje, na História da Arte.

Palavras-chave: Historiografia da Arte. Didi-Huberman. Estilo. Formalismo. Vontade da forma.

AbstractThe subject of this PhD research project is the association of three series of works: Henri Matisse’s Chemin de la Croix (1948-51),

Barnett Newman’s Stations of the Cross (1958-66) and Bené Fonteles’ Sudários (2001-04) in view of the projective relations

formed in the dense perception experienced by an art historian before images. The paper features a preliminary study aimed at

addressing a subject that has raised theoretical questions stemming from these artists’ self-inflicted identification (category) with the

Passion. An analysis of their discourses led to a perception of the creation process as constrained by thematic will (Matisse); formal

will (Newman); process will, in which process has gained form (Bené). An investigation of the nature of formal will – symptomatically

transfigured into image that itself changes intentions – in turn led to an inquiry into the controversy surrounding the conceptual

formulation of style and its place in art history today.

Keywords: Historiography of Art. Didi-Huberman. Style. Formalism. Will of Form.

* Doutoranda e Mestre (2005) na Linha de Pesquisa “Teoria e História da Arte” do Programa de Pós-Graduação em

Arte da Universidade de Brasília; Bacharel em Filosofia pela USP, 1997; Licenciada em Educação Artística pela FASM, SP,

1991. Lecionou no Curso de Especialização em História da Arte - FADM/BSB (2008-2009), na Universidade Mackenzie/SP

(1993-98) e na FAAP/SP (1993-99). É professora do Departamento de Artes Visuais da UnB.

[email protected]

I. Introdução

Este estudo inicial que visa situar o objeto de minha dissertação de Doutorado se debruça sobre a espessura do olhar entre aquele que vê a obra de arte e a própria obra, porque trata do espaço-tempo em que sua percepção se abre a uma rede de relações. Diante da obra, nos desfiguramos

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enquanto sua imagem se modifica. Mas quando a obra concerne a uma transformação exemplar, como a tragédia expressa pela Paixão na cultura cristã ocidental, esses conteúdos se desdobram.A Paixão progride como um caminho marcado por etapas fundamentais da transfiguração do Jesus terreno em Cristo celeste, emblematizada pela crucificação, símbolo da morte e da ressur-reição. Em outra instância, é o reencontro do indivíduo com a totalidade da qual foi cindido, o que tange à questão do sublime. O escopo desta pesquisa é compreender como o tema foi assumido por três artistas que se tornaram sujeito e objeto de seu próprio processo de criação por meio da identificação com Cristo, e suas implicações formais e filosóficas para a teoria e história da arte. A primeira obra é o Chemin de la Croix (Fig. 1), painel cerâmico da Capela do Rosário que Henri Matisse realizou entre 1948 e 1951, em Vence. A segunda é a série The Stations of the Cross, que Barnett Newman pintou entre 1958 e 1966, hoje na National Gallery of Art, de Washington. E, finalmente, os Sudários, que Bené Fonteles criou entre 2001 e 2004, expostos em Brasília e em São Paulo (2003-2004).

O interesse por essas séries foi motivado pela investigação da relação entre o artista e sua obra, desdobrada na relação sujeito/objeto como projeção do artista sobre sua obra. É, ainda, possível interpolar o olhar – elemento principal dessa relação – para pensar na relação de outros indivídu-os, seja o fruidor, o crítico ou o historiador da arte, com a imagem. Daí a questão da categorização do sujeito à qual esse indivíduo se refere metodologicamente. A escolha dessas obras se impôs devido à sua expressa identifi cação com a categoria “autoim-A escolha dessas obras se impôs devido à sua expressa identificação com a categoria “autoim-pingida”, que envolve a relação do artista com o tema, com o pathos de processo de criação como purgação em direção a uma ascese espiritual que possui outra natureza, passível de se rela-cionar com uma espécie de constrangimento formal pela Darstellbarkeit (figurabilidade). Se essa identificação diz respeito à dupla natureza de Cristo, dela deriva o enfrentamento ao próprio Deus devido à tomada para si da Paixão pelo artista, como deificação do processo de criação artística e não como sua humanização. A desobediência ao Segundo Mandamento1 tam-

Figura 1:

Henri Matisse, Chemin de la Croix, 1948 e 51, Chapelle du Rosaire, Vence.

1. “Não fará para ti imagem de escultura, figura alguma do que há em cima, nos céus, e abaixo, na terra, nem nas águas,

debaixo da terra” Ex 20, 4. Outras referências a essa proibição existem em: Ex 23,024; Ex 32, 1-4 e 28; Ex 34, 12-14; Lv 26,

1; Nm 25,-1-13; Dt 4, 15-20; Dt 27, 15; 2Mc 12, 40; Is 37, 19, além das alusões a sinais visuais de transferência da imagem

divina para suportes naturais que concernem à possibilidade da própria imagem de Deus. (BESANÇON, 1997, 106-21).

bém ocorre porque a imagem que se faz a partir do humano poder de criá-la se projeta no Cria-dor, assumido, em alguma instância, como o próprio artista. O problema suscitado pela abordagem do processo de criação desses artistas é o da expressão plástica do conflito inerente ao tema, já que essas três séries pertencem a campos plástico-concei-tuais diferentes. Se é possível verificar, malgrado suas diferenças, todo um conjunto de elementos, fatores de conexão, funções sintáticas, dispositivos simbólicos, interesses, características recorren-tes ao Expressionismo Abstrato e ao Informal com o qual Matisse teve contato no final da década de 1940, a obra de Bené provém de outro sistema. Por outro lado, a riqueza da associação entre essas obras talvez permita verificar a relação entre sujeito/objeto, segundo a categoria de relação figura/fundo na Modernidade, e o problema da linguagem indicial, da abstração formal e expressiva, bem como as operações sintático-conceituais contemporâneas, relacionando o sujeito da obra a seu próprio meio. A metáfora do artista como demiurgo faz a mediação dessa associação, que instiga a pesquisa sobre a expressão formal e con-ceitual de tal metáfora em suas implicações. Para que este mortal possa alçar a categoria de demiurgo, o artista precisa ingressar em um rito de passagem, um caminho exemplar de purificação. Este processo exige um pathos de sofrimento, de sacrifício. Urge verificar se as imagens criadas por Matisse, Newman (Fig. 2) e Bené, com vistas a esse thelos, expressam ou encarnam tal processo, e se seria possível relacionar os modos e as naturezas dos agenciamentos da imagem nas três séries.

Inicialmente, pode-se suspeitar que os registros de identifi cação sejam o intelectual, hipótese re-Inicialmente, pode-se suspeitar que os registros de identificação sejam o intelectual, hipótese re-forçada pelos depoimentos dos artistas, ou o visceral, concernente à sua experimentação pessoal, verificada no contexto dos dados biográficos contemporâneos aos respectivos contextos poé-ticos dos processos de criação dessas obras. Não se pode esquecer, contudo, o que se poderia chamar de registro simbólico, referente ao sistema de crenças de cada artista. É forçoso investigar também o nível dos desenvolvimentos plástico-formais, no qual se buscou imagens que fossem eficazes nos registros acima elencados, respondendo a demandas de diferentes naturezas. Mas o que seria a eficácia da imagem relativamente à questão do olhar e da projeção em diferentes campos plástico-conceituais? A partir do inventário dos dados para iniciar essa investigação, suspeita-se que o problema da forma seja crucial, já que a dupla transgressão que ele envolve se refere a dar forma à condição

Figura 2:

Barnett Newman, The Stations of the Cross, 1958-66, National Gallery of Art de Washington

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humana: ao homem como imagem de Deus. Nos três casos, de modos diferentes e em poéticas diversas, houve também a negação da conformação plástica da imagem de Cristo, visto que os artistas buscaram aludir à sua natureza divina, impalpável e poderosa por meios indiretos nos procedimentos utilizados, mas de forma coerente com seus repertórios e linguagens individuais. Some-se a isso a rejeição ao conceito da forma como designação da figura: a Vorstellung (repre-sentação), nos depoimentos dos três artistas. Esta rejeição se faz pelo deslocamento da linguagem icônica para uma linguagem indicial, em Matisse; pela depuração simbólica da imagem como duas forças em paralelismo, em Newman; pela transposição da imagem como dado para o processo conceitual transtextual, segundo o dispositivo da apropriação, em Bené (Fig. 3).

Esses três procedimentos, que talvez visassem ao evitamento da própria imagem, como desvios do peso da transgressão ao Segundo Mandamento, são reverberados pelos discursos dos três ar-tistas, que despistam a autoria da forma para um terceiro sujeito: a própria forma. De modos dife-rentes, a realização artística aparece como um constrangimento: pela “vontade” do tema, no caso de Matisse; por uma “vontade” da forma, para Newman; pela “vontade” do processo de criação que tomou forma, em Bené. As figuras que surgiram pelas mãos dos artistas teriam sido, de certo modo, contingências de uma vontade além deles. Qual a natureza dessa vontade da forma que se transfigura sintomaticamente em imagem, alterando suas intenções e propostas conscientes? Embora os três artistas tenham desenvolvido suas séries mediante poéticas e recortes tem-Embora os três artistas tenham desenvolvido suas séries mediante poéticas e recortes tem-porais tão diversos, é possível cogitar que os desenvolvimentos dessas obras comportassem dis-positivos da mesma natureza, coerentes com a problematização do tema pelos próprios artistas, expedientes que remetem à triangulação artista/obra/referente, interceptados pela lógica da pro-jeção do artista sobre o referente que, tomando para si o tema, procurou encarná-lo na obra como sua própria ressurreição. Poderia o vestígio do artista na imagem formada ser aquele do processo de formação da imagem como ato criador de sua própria restituição como imagem? Seria esta indagação destinada à ordem plástica ou à ordem simbólica do processo de criação?

Figura 3:

Bené Fonteles, Sudário, 2001-04, Estação Pinacoteca, São Paulo

II. O Processo de Criação a o Ato Formador da Imagem

No plano metodológico, é possível indagar se a eficácia simbólica das imagens assim formadas pode se abrir a uma investigação da ordem epistemológica do ato de Darstellbarkeit. É necessário verificar que conceitos permitiriam relacionar o plano formal à Darstellbarkeit, em busca da especi-ficidade da obra de arte, e quais seriam as suas implicações. Ao investigar a relação entre o olhar e a imagem na especificidade da obra de arte em minha pesquisa de Mestrado (PUGLIESE, 2005), o quadro teórico aberto por Georges Didi-Huberman (1992) para o estudo do Chemin, de Matisse, apontou para a questão da constituição do con-ceito operacional de estilo na historiografia da arte. Buscou-se compreender o alargamento do campo fenomenal da história da arte crítica proposta por Aby Warburg (1999), que deslocou o sujeito em relação ao seu objeto de estudo, abrindo as imagens e suas poéticas à complexidade de subdeterminações e colocando em pauta o problema do estilo e do agenciamento das eficácias formais operados historicamente pelo conceito de Pathosformeln (fórmulas de pathos). Para compreender o Darstellbarkeit como trabalho da imagem, seria necessário recorrer a con-ceitos de Erwin Panosfky (1979), para quem a história dos estilos seria o princípio controlador do método iconográfico vinculado ao conceito de Gestaltungswillen (vontade da forma), de Aloïs Riegl, para o qual o estilo seria uma decorrência do Kunstwollen (querer artístico). A pesquisa do Mestrado abriu campo para novas associações e indagações, que demandaram um novo estudo, a ser desenvolvido no Doutorado, a partir da associação entre o Chemin, as Stations e os Sudários, cujos agenciamentos trazem à baila os dispositivos de norma e forma (GOMBRICH, 1988), em confronto com os poderes da imagem (MARIN, 1992). A questão da tragédia da Paixão no interior de uma história da arte que se vê como crítica problematiza duplamente a criação da imagem.

III. Um Problema Historiográfico

A necessidade de adotar como objeto de estudo a associação entre as três séries de obras mencionadas concerne ao seu desenvolvimento projetivo em relação à Divindade, que reverbera de modo sintomático o indivíduo-artista em seu processo de criação, cuja imagem se replica, antropomorfizada, remetendo à própria fratura temporal do indivíduo diante da voracidade do tempo. O escopo da investigação dessas séries, cujos repertórios e sintaxes pertencem a diferentes momentos do Moderno e do Contemporâneo, refere-se à noção da origem repetida e à demanda de uma imagem-fênix (ou imagem-Cristo), que morre para renascer (DIDI-HUBERMAN, 1990). Este objeto comporta a duplicidade da mortalidade e da imortalidade da arte – e do homem – no símbolo da Ressurreição ou na busca do arquétipo da matriz e se relaciona ao mergulho fantasmático e crente do recalque da perda . Paralelamente, a nova teoria da arte francesa assume metodologicamente a fratura do tempo histórico por meio do conceito de anacronismo. A reivindicação de Didi-Huberman (1990) ao historiador da arte é que não se ignore o aspecto sintomatal da disciplina e que se faça uso do deslocamento causado por ele como sujeito, ao invés de remeter o trauma da cisão para o inconsciente, sob o risco de perder-se novamente em uma história da arte dogmática. Nas respostas de Matisse e Newman às críticas sobre a pretensa literalidade de suas obras, eles se remeteram conscientemente à busca da sutura, da ritualização da perda por meio do deslocamento epistemológico assumido por eles ao longo da criação das suas séries. Daí a necessidade da apreensão da estrutura simbólica do tema das três séries de obras estudadas, que toca tanto a dupla natureza do protagonista da Paixão, como a ameaça frente à proibição da criação da imagem.

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Pretende-se verificar se nessas três séries de obras o Darstellbarkeit, que remete ao trabalho do sonho de Sigmund Freud (2001), realizou-se munido de preocupações estéticas e de questões formais, assim como se a plasticidade desse trabalho teria sido assumida como um incarnat da própria Darstellbarkeit: uma encarnação ao mesmo tempo da forma e do processo no qual a forma foi plasmada. Essa proposta se estabelece simultaneamente na espessura do olhar, projetando tal espessura na própria encarnação do olhar na matéria da obra, a partir da escolha do tema, num discurso visual desdobrado sobre si próprio e que se redobra na questão da identificação. A escolha dessas obras se pretende como uma dobra que transgride a linearidade de uma narrativa histórica, inserindo-se na própria fratura da história da arte, na fratura da imagem e do sujeito que produz história da arte, em busca de uma imagem-síntese. Trata-se da história da arte como imagem dialética, que se oferece como ponte fulgurante, como o acesso patológico de reconhecimento do indivíduo frente ao universal para permitir a emersão da consciência sobre o próprio processo de construção histórica, consciente de suas fissuras. O deslocamento proposto pela estratégia da montagem deve permitir ao sujeito reconhecer-se diante do simbólico e não diante de uma realidade objetiva. A intenção não é a de perceber alguma sorte de objetividade histórica, mas o nexo entre forma e conteúdo, sem descosê-lo. Warburg (1999) pressupunha tal nexo no conceito de Pathosformeln, apreendendo a ambiguidade que a figuração comporta. Para evitar o paradoxo e subsumir a forma ao conteúdo, Panofsky (1979) tomou emprestado o sentido dos “sintomas culturais” de Ernst Cassirer para a constituição de seu Gestaltungswillen. Carlo Guinsburg (1991) vê nessa atitude uma rejeição ao formalismo e, até mesmo, ao ato formador da imagem ligado ao inconsciente do artista, entendido aqui como Darstellbarkeit. Didi-Huberman (2000) compreende o sujeito diante da imagem como o eixo da produção historiográfica. Esta formulação é tanto problemática quanto problematizadora da própria disciplina, pois o historiador da arte, como sujeito, deve se deslocar em função das categorias do visível, do legível e do invisível, conforme o objeto de estudo lhe exija. Baseado em Hubert Damisch, ele inverte a ordem iconográfica, partindo do legível e utilizando recursos tanto da iconografia quanto da semiótica, principalmente a de Louis Marin. Ainda no âmbito do legível, o autor busca também a forma na apreensão do visível, deslocando-se para o campo estrutural de forças que animam a imagem. O campo formal, contudo, abre-se para a questão do ato formador, causando um novo deslocamento do sujeito que, utilizando recursos da fenomenologia merleau-pontyana, transfigura-se quando passa a perceber a espessura entre ele e a obra. O deslocamento epistemológico que se pretende compreender tem como centro funcional o trabalho de Darstellbarkeit como formação da imagem no inconsciente, que produz deslocamentos de conteúdos para seus substitutos figurados. Diferentemente da Vorstellung, o visível da imagem inerte em relação ao sujeito cognitivo, o Darstellung (figuração) é a imagem constituída pelo inconsciente do sujeito no trabalho do sonho como ato de recognição mnemônica, como “função do desejo” que anseia pela reatualização da origem como primeira presença, daí o componente de repetição da série (PUGLIESE, 2005, 295). É necessário investigar se o Darstellung como “quase-presença” pode ser relacionado ao problema do nexo forma/conteúdo nas diferentes poéticas do Chemin, das Stations e dos Sudários, a fim de atingir tanto a eficácia simbólica da imagem quanto a atividade dinâmica do sujeito diante dela. Essa noção se refere ao questionamento de Jean-François Lyotard (1979), Damisch (1992) e Didi-Huberman (2002) sobre a “presenciabilidade” das imagens com as quais o historiador da arte entra em contato no trabalho constitutivo do discurso histórico, colocado diante das imagens e criando cadeias associativas entre elas. Tais associações fugiriam ao seu controle consciente, num trabalho de Darstellbarkeit como formação de imagens sintéticas por meio dos dispositivos da condensação e do deslocamento. Baseada no conceito de história de Walter Benjamin (BUCK-MORSS, 2002), esta proposta é expressa mediante a montagem de um processo análogo ao da recognição mnemônica, mas que

leva em conta fatores importantes, como o das diferentes temporalidades presentes na memória do historiador da arte e o das diferentes temporalidades presentes na própria imagem diante da qual o sujeito se coloca (PUGLIESE, 2005, 296-7).

IV. A Imagem e sua Eficácia Simbólica

Este tema é um ponto nevrálgico da cisão entre o formalismo e a iconologia, justamente no tocante à relação entre a eficácia da imagem e o conceito de estilo. Ao criticar as antinomias formais de Heinrich Wölfflin, Panofsky (1979) criou o conceito da Gestaltungswillen, que seria intrínseco a um determinado Zeitgeist, já que o olhar necessariamente cultural do artista estaria subsumido a uma certa Weltanschauung, rejeitando a esfera das volições inconscientes do artista e a psicologia da arte. Esse conceito foi aproximado aos outillages mentaux dos Annales na investigação iconográfica, tanto na história da arte como na história. O problema do estilo envolve o conceito de Kunstwollen, de Riegl (1978), que seria uma força inerente ao homem em manifestar a Weltanschauung de um Zeitgeist, mas ligada inconscientemente à configuração estrutural das formas que se impõem à criação artística independentemente da intenção consciente do artista. Ao negar a taxonomia de matriz biológica dos estilos, regida pela sequência temporal de Johann Winckelman, e o determinismo da Gestaltungswillen, a noção de Kunstwollen pode ser aproximada do conceito de vie des formes de Henri Focillon (1988), que recusou os estilos como provenientes das modificações históricas ou das necessidades de seus conteúdos literários. As formas, assim, obedeceriam apenas às suas leis imanentes. Se essa questão se relaciona com o formalismo, ela está intimamente ligada à da projeção do artista na imagem por meio do seu próprio ato formador, o que também interessou a Lyotard: “o segredo talvez resida nesse poder do sensível que consiste em atrair a si o signo segundo o eixo da designação. Porém este poder não é mais que o da fantasmática que aspira a realizar o desejo em imagens.” (1979, 24). Antes disso, porém, haveria uma crítica interna da Iconologia por parte de Ernst Gombrich (1990), que não admitia substituir um modelo classificatório operacional pela formação morfogenética dos estilos, mal-entendido talvez gerado pela indistinção dos conceitos de norma e forma. Assim, o que seria assimilado como “características estilísticas” deveria ser percebido como “termos de exclusão”, que seriam utilizados conscientemente pelo artista. A noção de concatenação temporal dos estilos e seu determinismo ainda entram em conflito com as formulações sobre o tempo em Warburg, mediante o conceito de sobrevivência da imagem (DIDI-HUBERMAN, 2002). Isso permite a Didi-Huberman (2000) perceber o anacronismo de diferentes modelos de tempo por meio do deslocamento epistemológico do sujeito diante da obra de arte, compreendendo o tempo complexo da obra que dialoga com a sobredeterminação do próprio sujeito. Essa desterritorialização da imagem e do tempo histórico combate o cunho evolucionista que impregna a noção tradicional de estilo. Além disso, o conceito de Pathosformeln deriva do conceito de “participação mística” de Lucien Levy-Bruhl (2008), assentado na relação de indivisibilidade entre sujeito e objeto. O sujeito participaria das propriedades do mundo por meio da similaridade ou contiguidade de imagens, que se manifestariam em uma latência que seria sua própria eficácia simbólica. O problema dessa eficácia revelaria a noção dos poderes da imagem, que não seriam fruto de um determinismo histórico ou estilístico, mas marcados por uma condensação da cultura em um momento histórico de modo particularmente significativo na temporalidade. Ambas as noções se tornariam inteligíveis por meio da noção de pujança mitopoética, não sendo a eficácia uma mera convencionalização de tipos, mas a revelação de certas Pathosformeln. Estas fórmulas sobreviveriam no tempo mediante sobredeterminações culturais na memória coletiva.

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Quanto ao olhar do historiador da arte sobre a obra, este deveria assumir a categoria cognitiva do sujeito capaz de dar conta do paradigma perceptual de sentido/pathos e, para tal, ele deveria se permitir sofrer um deslocamento epistemológico homólogo. Este deslizamento joga dialeticamente com a categoria do sujeito analítico que investiga as categorias do visível e do legível da imagem e se deve à compreensão da presença do indivíduo diante da imagem. A imagem, por sua vez, passa a ser entendida como dialética e sobredeterminada, portadora do paradoxo visual do legível, percebida em sua relação com o mundo do qual o próprio sujeito participa. Didi-Huberman (1995) nomeou dois paradigmas de apreensão do objeto artístico, o sentido-sema e o sentido-aisthésis, respectivamente às categorias do visível e do legível da imagem. No que toca o sentido-aisthésis, a necessidade da investigação formal que leva ao problema dos campos plástico-conceituais a partir dos quais o artista dá forma à imagem – conduzindo à questão do estilo – visa a estabelecer parâmetros conceituais e metodológicos que se relacionam com a investigação da visibilidade e legibilidade da imagem. Damisch (1985) e Didi-Huberman (2000) compreendem o conceito da imagem como sintoma da memória, imiscuindo o presente no passado anacrônica e criticamente, já que esta opera um jogo de presentes reminiscentes. O conceito de sintoma presente no invisível da imagem demanda um terceiro paradigma da História da Arte, o sentido-pathos, e diz respeito à relação sintomatal de Lyotard (1979), que questiona o postulado linguístico da arbitrariedade entre signo e significante.

V. Considerações

A necessidade de associar o Chemin e as Stations aos Sudários de Bené Fonteles surgiu da conscientização de sua estrutura de duplo fantasmático do artista, que pode ser análoga ao conceito-função do sintoma e que opera as categorias do visível, do invisível e do legível, embora suas respectivas imagens atravessem deslizamentos do conceito de imagem em discussões teóricas e plásticas. O sintoma, esse poder da imagem, não é transcendente ou numinoso, mas revela o desejo do sublime e da potência transcendental da imagem mediante os conceitos de origem e da imagem como restituição de um “outro” pelo artista, e a negação desse mesmo desejo. Com base em Benjamin, Didi-Huberman (2000) acusa a postura do historiador da arte que busca uma “restituição” do passado como um recalque sintomatizado pela “grande narrativa”, pelo rigor do método e pela doutrina da certeza, partindo de dogmas obsedantes tomados como axiomas, acusados como sintomas da cegueira funcional de uma historiografia evolucionista e, portanto, teleológica. Ele prevê o caminho da problematização da história da arte estruturada como montagem por meio de uma heurística negativa que dialetize os dois sentidos dessa disciplina: o genitivo objetivo e o genitivo subjetivo. Além desse desafio, resta a dificuldade que reside em associar essas duas Via Crucis de Matisse e Newman aos Sudários de Bené. Esta recente série de obras se vincula a um campo plástico-conceitual bastante diverso do moderno, envolvendo operações de conceptualização e apropriação de diferentes naturezas, que se referem a outros conceitos e a outras poéticas. Interessa justamente assumir metodologicamente essa dificuldade na pesquisa.

ReferênciasBESANÇON, A. Imagem proibida. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG /

Chapecó, Argos, 2002.

DAMISCH, H. Le Jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992.

DIDI-HUBERMAN, G. La peinture incarnné. Paris: Minuit, 1985.

______. Devant l´image. Paris: de Minuit, 1990.

______. Devant le temps, Paris: Minuit, 2000.

______. L´image survivante. Paris: Minuit, 2002.

FOCILLON, H. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

GOMBRICH, E. H. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

GUINSBURG, C. Mitos emblemas sinais. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

LÉVY-BRUHL, Lucien. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008.

LYOTARD, J.-F. Discurso, figura. Barcelona: Gustavo Gilli, 1979.

MARIN, L. Pouvoirs de l´image. Paris: Seuil, 1992.

PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.

PUGLIESE DE CASTRO, V. M. Entre o anônimo La Vierge Enfant e o São Domingos, de Matisse: imagem e olhar na histo-

riografia da arte. 2005. 324p. Dissertação (Mestrado em Arte) -Instituto de Artes, Universidade de Brasília.

RIEGL, A. Grammaire historique des Arts Plastiques. Volonté artistique et vision du monde. Paris: Klincksieck, 1978.

WARBURG, A. The renewal of pagan antiquity: contributions to the cultural History of the European Renaissance (texts

& documents). Los Angeles: Getty Foundation for the History of Art and the Humanities, 1999.

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POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Elsewhere in Contemporary Art:Topologies of Artists’ Works, Writings, and Archives

SIMONE OSTHOFF *

* Assistant professor of critical studies in the School of Visual Arts at Penn State University, is a Brazilian-born artist and wri-

ter centering her research on the institutionalization of experimental practices and on contested histories of contemporary

art. Her new book about art, design, and media explores the Jornal do Brasil Sunday supplement during the utopian years

between 1956 and 1961.

* Simone Osthoff é professora adjunta de estudos críticos na Escola de Artes Visuais da Pennsylvania State University. Seus

numerosos ensaios, entrevistas e resenhas sobre arte e mídia, com foco na práticas Latino-Americanas e nas questões que

elas levantam, foram publicados internacionalmente e traduzidos para oito idiomas. Ela é autora do livro Performing the

Archive: The Transformation of the Archive in Contemporary Art From Repository of Documents to Art Medium [Performances

de arquivo: a transformação do arquivo na arte contemporânea de repositório de documentos à meio de arte] (Atropos

Press, 2009).

ResumoO artigo aponta para as relações cada vez mais fluidas entre arte, mídia e documentação na arte contemporânea, que

tanto requerem quanto sugerem novas metodologias e proximidades com a história da arte, a teoria e a crítica. A autora

emprega o conceito de topologia como uma possibilidade ao examinar duas obras de 2004: o estúdio-arquivo de Paulo

Bruscky, em que verifica-se a passagem de um arquivo de obras de arte para o arquivo enquanto obra de arte, e a expo-

sição Rabbit Remix de Eduardo Kac, na qual o artista emprega a mídia como meio.

Palavras-chave: Topologia. Arquivo. Arte contemporânea. Paulo Bruscky. Eduardo Kac. Mídia. História da arte. Teoria.

Crítica.

AbstractThis article calls attention to the increasingly fluid relations between art, media and documentation in contemporary art, which

simultaneously urge and suggest new methodological approaches from and to art history, theory and criticism. The author puts

forward the concept of topology as one such approach by examining two artworks from 2004: Paulo Bruscky’s studio-archive as

it changes function from an archive of art works to the archive as artwork, and Eduardo Kac’s Rabbit Remix, in which the artist

employed the media as medium.

Keywords: Topology. Archives. Contemporary art. Paulo Bruscky. Eduardo Kac. Media. Art history. Theory. Criticism.

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On September 2004, when I arrived in Rio de Janeiro on my way to the 26th São Paulo Bienal, images of Eduardo Kac’s GFP Bunny – his transgenic rabbit created in 20001 – were strategically placed throughout the city on three types of advertising displays: illuminated advertising signs mounted above digital clocks/thermometers put on view the enigmatic, fluorescent-green bunny; panels at bus stops announced Kac’s solo exhibition at Laura Marsiaj Contemporary Arts in Ipanema; and constantly rotating displays in kiosks showed images of cultural events in the city, among them Kac’s GFP Bunny and Bebel Gilberto’s new CD album cover. A week later, at the São Paulo Bienal, Kac presented a transgenic installation entitled Move 36, which along with Paulo Bruscky’s apartment/studio/archive – one of the biennial’s eight special rooms – was identified by the media as a “must-see” presentation among the event’s 135 works by artists from 62 countries. Interviews with both artists and images of their installations appeared in the major newspapers and magazines of Rio de Janeiro and São Paulo prior to, during, and after the opening of the exhibition.2 I have explored aspects of Kac’s and Bruscky’s multifaceted works elsewhere, and in this article I focus on the issues

1. GFP Bunny was Kac’s second transgenic work, created in February 2000 with the birth of the hybrid albino rabbit “Alba”

in a laboratory in Jouy-en-Josas, France. Alba contained the GFP (green fluorescent protein) gene of a jellyfish. She is

normally white and glows green only when illuminated with a special blue light. Kac originally envisioned GFP Bunny as a

three-phase project: the first was the creation of a new being through molecular biology; the second its public presentation

in a gallery exhibition; and the third was the integration of the animal into the artist’s family home in Chicago. However,

after the French lab refused to release the rabbit as previously agreed, a worldwide media controversy followed, and Kac

employed the media frenzy as material in the new phase of GFP Bunny, as exemplified in the photographs, drawings, and

other works in his exhibition Rabbit Remix.

2. Among many others, see Fabio Cypriano, “O Ateliê faz o artista,” and Alfons Hug, “Mundo conceitual reflete crise da pin-

tura,” both in Folha da São Paulo (Folha Ilustrada), December 22, 2003, E6. BRAVO!, September 2004, featured a number of

Figure 1:

Digital street clock in Copacabana beach with image of Eduardo Kac’s 2000 GFP Bunny, a public intervention in Rio de

Janeiro as part of his solo show Rabbit Remix at the gallery Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brazil, 2004

(artwork © Eduardo Kac; photograph by Nelson Pataro, provided by the artist).

raised by Bruscky’s archive and by Kac’s new books, as well as the unsettled place of this theoretical and archival material within their own work and in art institutions, including the writing of art history and criticism.3

A classic mathematical joke states that “a topologist is a person who doesn’t know the difference between a coffee cup and a doughnut,” as both forms belong to the same class of round objects with a hole in them – topologically called a torus – and can theoretically be transformed into one another. The use in art history of such a broad and uncommon term as topology allows one to go beyond the “vanishing point” and the habit of thinking about art in terms of the “projections” of perspective theory. “Points of view come packed with a full kit of ready-made subjects and objects, planes of representation, and radiating ‘cones of vision.’” (KUNZE, 2005). Topology allows for linking near and far, up with down, in with out, in a paradoxical continuous space most easily understood by the classic example of the Möbius strip. Furthermore, topology underlines a reader-response theory. In a participatory paradigm, the artwork often unfolds in real time, and the viewer-reader must complete the work’s meaning. As the boundaries between art’s inside and outside become less clear, meaning and authorship become more collective and distributed. In a participatory paradigm, for instance, completeness is no longer possible, desirable, or taken for granted. The artist’s role as theoretician and archivist further disrupts boundaries between art production and its documentation, and therefore the traditional hierarchies between artists, critics, and art historians. Bruscky’s and Kac’s simultaneous practices of art making, archiving, and writing, as they move through various media, sites, institutions, and fields of knowledge, put into practice topological approaches to art. Since the beginnings of their careers in the 1970s and 1980s respectively, Bruscky (born 1949) and Kac (born 1962) have often performed outside traditional art institutions and practices, forging complex relations between word and image, concept and medium, performance and documentation. Approaching art and life without regard for national borders or the categorical boundaries of traditional media, they have eschewed traditional venues, opting instead to invent new ones. While both artists were born in Brazil, Bruscky has always been based in that country. Kac, however, spent only the first nine years of his career in Brazil (1980–88) and emerged in the subsequent years with the international art scene and the internet as his natural environments. Like other artists who engaged art with sites and knowledge from elsewhere in the cultural field, such as Robert Smithson and Hélio Oiticica, Bruscky and Kac have continuously drawn elements from art, technology, science, visual poetry, philosophy, and popular culture, promoting the blurring of distinctions among the artist and the theorist, the curator, the archivist, the historian, and the cultural critic.4 (OLEA, 2004)

critical articles and historical highlights of all twenty-six biennials beginning in 1951. See also Maria Hirszman, “Bruscky leva

seu ateliê a Bienal,” O Estado de São Paulo (Caderno 2/Especial), September 23, 2004, H-14; Caroline Menezes, “Uma nova

genética para a arte: Eduardo Kac usa genes para discutir relação entre ser vivo e tecnologia,” Jornal do Brasil (Caderno B),

September 30, 2004, B4; Giselle Beiguelman, “O xeque-mate cibernético,” Folha de São Paulo (Caderno Mais!), September

19, 2004, 14-15; and “A Coelha Transgênica,” Veja Rio, September 22, 2004, 43

3. Simone Osthoff, “Object Lessons,” World Art, Spring 1996, 18–23, was my first article about Kac’s work. My most recent

is “From Mail Art to Telepresence: Communication at a Distance in the Works of Paulo Bruscky and Eduardo Kac,” in At a

Distance: Precursors to Art and Activism on the Internet, ed. Annmarie Chandler and Norie Neumark (Cambridge, MA: MIT

Press, 2005), 260–80.

4. In this essay Olea underlines the importance of the theoretical production of Latin American avant-garde artists

throughout the twentieth century from Mexico to Argentina. Many of these seminal writings and manifestos are translated

in the comprehensive catalogue’s appendix. The exhibition Panaroma da Arte Brasileira 2001, curated by three artists – Ri-

cardo Basbaum, Paulo Reis, and Ricardo Resende – showcased Bruscky as an example of the artist-curator. See Ricardo

Basbaum, “O Artista Como Curador” [The Artist as Curator], in Panaroma da Arte Brasileira 2001, (São Paulo: Museu de

Arte Moderna de São Paulo, 2001), 35–40.

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From Archive of Artworks to Archive as Artwork

Bruscky’s studio, located in a two-bedroom apartment in the Torreão neighborhood of Recife, on Brazil’s Northeast coast, has for eighteen years housed one of the most important collection of Mail Art in the country – fifteen thousand works – along with the artist’s own oeuvre, books, newspaper articles, and other works ranging from artists’ books and sound poems to films and videos. Packed to the ceiling with papers, files, and all kinds of objects from brushes to kitchen utensils, this impressive studio-archive left Recife for the first time to be exhibited as an installation at the 26th São Paulo Bienal (September 26 – December 19, 2004). Over the years Bruscky has made the archive available to artists, students writing theses, critics, and journalists. I went there for

Figures 2 and 3:

Paulo Bruscky’s archives in Torreão neighborhood, Recife, Brazil (photographs by Léo Caldas, provided by the artist).

the first time in May of 2002 to interview Bruscky. Another visitor was Alfons Hug, the curator of the 26th São Paulo Bienal. “When he visited the studio,” Bruscky recalled, “he came in, looked at every room without saying a word, came back into the living room, and proposed to exhibit the whole studio exactly as it was in the biennial. I did not expect that reaction, but I agreed, since my art and life have always been inseparable, and the studio-archive is clearly an expression of that. How do we give form to knowledge? In this space I make no difference between my works and everything else here, the archive, my library, my life. I spend more time here than at home.”5

Bruscky was interested in research from an early age, but in the 1970s his interest acquired an added social and political dimension, a sense of personal responsibility toward history and the preservation of a collective memory. “Each era has its own stories and histories. I was a victim of the dictatorship and had works destroyed by the police. Not only was my personal testimony important to preserve but also that of other artists involved in the Mail Art movement.”6 When Bruscky emerged in the art scene in the late 1960s and early 1970s, censorship and repression were commonly imposed by a military dictatorship responsible for one of Brazil’s darkest periods of state political oppression, which began in 1968 and extended through the 1970s. (This era witnessed a wave of militarized regimes across Latin America, not just in Brazil, generally supported by the US government.) During this time, the practice of making art – especially experimental art – was a difficult and dangerous proposition. In spite of this climate, artists continued to resist authoritarian structures by pushing the boundaries of experimentation and the limits of public freedom. Bruscky participated in this and became a curator, creating in Recife a hub for the Mail Art movement. He later became a pioneer of fax art and xerox art (the name photocopy art received in Brazil). Not used to relying on public or official institutions for support, he developed instead a strong artists’ network: “After all, the documentation of works made in the 1970s is in the hands of the artists.” He exchanged letters and works with Gutai and Fluxus artists, among them Saburo Murakami, George Maciunas, and Dick Higgins, and learned about these movements from articles sent to him by the artists alongside letters and works.7 He created a number of international events in Recife such as the Artdoor exhibition (on billboards across the city) with the participation of Christo, among other well-known artists. Bruscky’s archive is not only a seven-thousand-book library and information retrieval system containing extensive correspondence with artists, such as Meret Oppenheim. The collections of sound poetry and taped interview range from Dada artists to an unpublished conversation with Hélio Oiticica. Bruscky has give the archive’s large collection of comic books to his son, who is working with the medium. “Humor, puns, and word play are always present in my work. Humor is antityranny, antiauthoritarian,” comments Bruscky, who has always taken the sliding meaning of signifiers seriously and, as part of the process, in bohemian fashion, hosts in his studio every Saturday a group of artists who join him in conversation and the drinking of a good cachaça.

5. Paulo Bruscky, interview with the author during the installation of the São Paulo Bienal, September 23, 2004. Translation

mine. All further quotes from the artist are from this interview.

6. Bruscky was jailed three times, in 1968, 1973, and 1976. After 1976 he received death threats over a period of six

months and was constantly followed by the police until he denounced this situation in a solo show at a Recife art gallery,

making public the threats he had been, up to that point, undergoing privately. He was never associated with a political party,

and his militancy was first and foremost cultural and artistic.

7. The Gutai group, founded in Osaka in 1954, included Jiro Yoshihara, Kazuo Shiraga, and Saburo Murakami. With an em-

phasis on performance, they reinterpreted Abstract Expressionism, then propagating through the media, thus creatively

misreading modernism. A similar creative response is found among Neoconcerte artists in Rio de Janiero in the late 1950s

in relation to geometric abstraction. See Yve-Alain Bois’s entry for the year 1955 in Art since 1900, ed. Hal Foster, Rosalind

Krauss, Yve-Alain Bois, and Benjamin H. D. Buchloh (London: Thames and Hudson, 2004), 373.

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An important cultural activist working outside the hegemony of Brazil’s major cultural centers (Rio de Janeiro and São Paulo), Bruscky, who has never sold a work in his life, is experiencing a new wave of recognition from major museums and cultural institutions in Brazil.8 Despite all the exposure and attention his work is receiving, being part of the biennial was for him not new, nor did it excite him nearly as much as the precious rare books and catalogues he found on incursions into used-book stores during his daily walks between the hotel and the Ibirapuera park, where the biennial pavilion is located.9 A few days prior to the opening of the biennial, I asked Bruscky what might happen to the contents of the archive when it is exhibited primarily for its formal, personal, and idiosyncratic qualities, as a type of Merzbau. He didn’t seem concerned with either the possible loss of content or the meanings the archive might acquire in this new context. He told me that, for one thing, the biennial docents were carefully instructed by the art historian who knows his work best – Cristina Freire – to address the content of the work as well as his working process. Bruscky’s long experience with institutions, curators, and critics, as well as with their limitations, led him to work with the certainty that time will tell. The question of the institutional location of the archive – physical, ontological, and historical – has become increasingly relevant to the writing of contemporary art history. As a powerful mediator between memory and writing, the archive constitutes a fertile territory for historical and theoretical scrutiny, especially for those engaged in writing the history of post-1960s art. In Archive Fever, Jacques Derrida, focusing on Sigmund Freud’s archive, raised questions that foreground what Derrida sees as the inherent instability of representational processes. Probing which data belonged inside the archive and which outside, Derrida asked, for instance, which letters and documents belonged to Freud’s personal family history and which to his professional life and to the history of psychology. The deconstruction of the clear boundaries between personal and public spheres performed by Derrida in relation to Freud’s archives slowly undermined common assumptions about origins, genealogy, authority, power, legality, and legitimacy. Archival Fever was prompted, as was my interest in Bruscky’s archives, by the process of transforming the subject’s house into a museum, and thus by “the passage from one institution into another.” (DERRIDA, 1996, p.3) Besides Derrida’s important examination of the archive, two other books have broadened issues of history, memory, and representation, offering useful alternative methodologies and approaches to archives. The first is Ann Reynolds’s original approach to Robert Smithson’s archive, which used a morphological methodology not very common among historians, but employed by Smithson himself as his working method. These morphological connections of eclectic material, such as images and written texts, diverse authors, disciplines, and concepts from popular and erudite culture, are “categories of thought and images that remain invisible to established hierarchies of interpretation.” (REYNOLDS, 2003, p.XV). The second book, written from the point of view of performance studies and focusing on inter-American cultural relations, is Diana Taylor’s The Archive and the Repertoire, in which Taylor examines the hegemonic power of text-based archival sources over performative, oral, and other ephemeral forms of knowledge. (TAYLOR, 2003). The experimental, concept-based, and often ephemeral aspects of contemporary art, which have only increased since the 1960s, producing fluid lines between work and documentation, certainly benefit from the issues raised by all three books, which pose relevant methodological challenges to more positivist approaches to documentation in art history and criticism. Bruscky’s

8. Bruscky’s first large retrospective exhibition was held at the Observatório Cultural Malakoff, Recife, in 2001. In 2002

Bruscky’s videos were screened at the Fundação Joaquim Nabuco, Recife, at the Cinemateca de Curitiba, Curitiba, and at

the Agora art center in Rio de Janeiro, accompanied by roundtable discussions. A comprehensive book about Bruscky’s

multifaceted oeuvre, written by Cristina Freire, curator of the Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, is forthcoming.

9. Bruscky’s work had been showcased in the São Paulo Bienal twice before, in 1981 and in 1989, when he was also invited

to exhibited heliografias (works created with the technique commonly employed to print architectural blueprints).

Figures 4 and 5:

Paulo Bruscky’s archives at the 26th São Paulo Bienal, 2004 (photograph by the author).

and Kac’s works, writings, and archives put into play logical topologies that often escape the chronological and medium-based analytical methods of art history and criticism.

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The Artist as Theorist: Art Writing as Topology

In September 2004, while Laura Marsiaj Contemporary Arts in Rio de Janeiro showcased Kac’s solo show, his work was simultaneously exhibited at the Gwangju Biennale and the São Paulo Bienal, as well as in group shows in Chicago, Lima, and other cities. On top of this busy exhibition schedule, Kac was also finishing the production of two books, each collecting writings from a different period of his career. The first, Luz & Letra (thus far available in Portuguese only), is an anthology of his articles and essays written between 1981 and 1988 and published in the most important newspapers in Rio de Janeiro and São Paulo, along with an appendix of projects and sketches of the period. (KAC, 2004) Examining the broad field of visual culture in the 1980s, these articles have had a lasting impact. In their visionary originality, they were early critical probes at the intersection of art, literature, technology, and popular culture. Written in an elegant, direct, and informative style, from a perspective both Brazilian and international, Kac’s essays challenged established artistic values and venues, while opposing the label of the 1980s generation in Brazil as primarily a “return to painting” movement. In the preface to Luz & Letra, the art critic Paulo Herkenhoff, a former curator at the Museum of Modern Art in New York, stresses the importance of Kac as theoretician: “This book is a document of Brazil, which retrieves the decade of the 1980s – a period thought to have been lived under the tyranny of painting – as a moment of gestation of new ideas. Eduardo Kac is a precursor among precursors of media art theory […] his action was always characterized by an intention to alter a system of hierarchies through the rescuing of artists and experiences.” (HERKENHOFF, 2004, p.18) Kac’s second book, with selected essays from 1992 to 2002 was published in 2005 by University of Michigan Press and titled Telepresence and Bio Art: Networking Humans, Rabbits, and Robots. In the foreword, James Elkins points out:

This is an unusual book, because Kac has participated in the movements he discusses. He is an artist and also,

at times, an historian. The combination is rare. A comparison might be made to Robert Motherwell, except

that as an historian he was more concerned with surrealism than the art of his own generation: he separated

documentation from creation in a way that Kac does not. Eugène Fromentin might be another example, and

among near-contemporaries there are Meyer Schapiro, Leo Steinberg, and David Summers. It’s a short list. The

closest comparisons may be to Moholy-Nagy, or to Paul Signac, who wrote a history of French painting up to

and including his own generation, or, though he’s not much of an historian, Frank Stella. (ELKINS, 2005, p.vi)

Elkins is right in positioning Kac as a historian “at times,” because most of the time, the artist is a theoretician. In his writings, the historical research is at the service of his theoretical argumentation.10 Kac’s book articulates several new concepts he has introduced, such as telepresence art, telempathy, and performative ethics. Kac’s work and essays about a new art based on the networking of humans, plants, animals, and machines not only examine current issues in science, technology, and culture,

10. Among Kac’s contributions as a historian is the Leonardo editorial project titled “A Radical Intervention: Brazilian Elec-

tronic Art.” For the most recent article of this ongoing series, Kac invited scholar Ruy Moreira Leite to write a paper about

what Kac saw as the artist Flávio de Carvalho’s pioneering use of the media. In 1956 the São Paulo artist and provocateur

de Carvalho introduced his summer garment New Look in now-legendary Experiences for the press and on the streets of

São Paulo. In 1957 he introduced it on TV. Carvalho’s garment consisted of a short pleated skirt, a blouse with puffy short

sleeves, a hat made of semitransparent fabric, and fishnet tights. See Rui Moreira Leite, “Flávio de Carvalho: Media Artist

Avant la Lettre,” Leonardo 37, no. 2 (April 2004): 150–57, available online at http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/

isast/spec.projects/brazil.html. Further editorial projects by Kac are: Signs of Life: Bio Art and Beyond (Cambridge, MA: MIT

Press, 2006); and Media Poetry: Poetic Innovation and New Technologies (Bristol: Intellect, 2006), first published as a special

issue of the journal Visible Language 30, no. 2 (1996).

but also create dialogue with other artists and radical thinkers, often across time and space, who like him seek or have sought art’s meaning in nontraditional places and fields of knowledge.

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11. In Rabbit Remix Kac exhibited a series of photographs, drawings, a flag, a web piece, and a limited-edition artist’s book

entitled It’s not easy being green!

Figures 6, 7, 8, 9, 10 and 11:

Eduardo Kac, Free Alba!, 2001, series of six color photographs mounted on aluminum with Plexiglas, each 36 x 46-1/2 in.

(91.4 x 118.1 cm), edition of 5, shown in the exhibition Rabbit Remix at Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro,

Brazil, 2004 (artwork © Eduardo Kac). Media coverage of Kac’s GFP Bunny included articles in the Washington Post, Folha de

São Paulo, Le Monde, Ann Arbor News, Boston Globe, and Die Woche. Kac incorporated the coverage in Free Alba!

The meaning Kac gives the word aesthetics, for instance, can be understood as both a topos (a theme) and also as a topology (either physical or logical). In the case of information networks, processes of communication can differ depending upon whether one is referring to a physical topology (e.g., the shape of a local area network) or a logical topology (e.g., the protocols that allow data flow within the networks). Kac’s topological aesthetics emphasizes communication processes in real-time events and, since his employment of biotechnology as a medium, in the creation and social integration of new life forms. Didier Ottinger, the chief curator of the Centre Georges Pompidou, Musée National d’art moderne, Paris, compared the impact of Kac’s redefinition of aesthetics to that of Marcel Duchamp’s:

Eduardo Kac’s GFP Bunny set off shockwaves in the field of art comparable to those caused by Marcel Du-

champ’s urinal. Following the example of its sanitary forerunner, the rabbit’s “prestige” grows in proportion to

its invisibility. The animal, “created” by a French laboratory (the INRA at Jouy-en-Josas), was never exhibited in

the public space for which it was conceived. On the other hand, its photograph did make the front page of

the world’s most important newspapers. Like the urinal, the fluorescent rabbit raises questions that prompt

us to redefine our own ideas and aesthetic criteria. (OTTINGER, 2004, p. 66-68)

There is indeed an uncanny juxtaposition between the publications of Kac’s writings from the 1980s and his 2004 solo exhibition Rabbit Remix.11 The show orchestrated the presence of GFP Bunny in the global media and a further intervention in the public space of Rio de Janeiro – the scene where the artist first started reclaiming public space in the early 1980s, while contributing to the erosion of censorship and the return of a democratic regime. The drawings and large

12. Barry Gewen, “State of the Art,” New York Times, December 11, 2005. Gewen underlined the bleak state of contempo-

rary art criticism by mentioning critics from Clement Greenberg and Michael Fried to Harold Rosenberg, Hilton Kramer,

and, more recently, Donald Kuspit, who have lamented the gratuitous excesses and lack of restraint in art from the second

half of the twentieth century. Even when enlisting more sympathetic critics of contemporary art, such as James Elkins, Ar-

thur Danto, and the October group, Gewen observed they have not offered very positive answers to the question “Is the

avant-garde running out of steam?”

photographs the artist exhibited in Rio de Janeiro continued the discussion of bio art in relation to science, ethics, religion, and family, issues Kac addresses in many forms beyond the gallery, such as articles and interviews, lectures and debates, and public interventions. Kac’s remixing of the GFP Bunny icon, which includes the reappropriation of the media response to his work, both verbal and visual, employs the media as a medium.

A Topological Approach to Art and the Crisis of Criticism

In the course of the several decades that their trajectories span, Bruscky and Kac have forged through their practices the very space in which their work takes place. Unlike contemporaries who have relied on established media (such as painting) and whose work is embraced and circulated freely in acknowledged institutions (such as museums), Bruscky and Kac have often worked with new technologies and remote communication, short-circuiting the effects of institutional and market validation as well as physical distance in the circulation of their works. In their case the communicative act itself often constitutes the work. Thus, it is clear that the artists have taken a position that is critical of the institutional and discursive limitations that have not been able to incorporate and engage with their practices. This critique, which is often implicit in the material manifestation of their works, at times becomes explicit, as in the case of Bruscky’s exhibition of his archive and Kac’s books – both of which have I sought to highlight here. Whether Bruscky and Kac perform criticism as an art practice or art as a critical practice, their multiple roles as artists, researchers, archivists, and theoreticians offer new topological approaches to the historicization of art since the 1960s. If there is a common agreement in current discussions of art criticism, it is the recognition of a general crisis as foregrounded by the 2002 October group roundtable “The Present Conditions of Art Criticism,” by James Elkins’s 2003 booklet What Happened to Art Criticism?, by Raphael Rubinstein’s 2003 article “A Quiet Crisis,” and by Nancy Princenthal’s 2006 article “Art Criticism, Bound to Fail.” (KRAUSS et alii. 2006, p. 43-47). Other critics have also called attention to the apparent paradox between the vibrant expansion of the global art market and the simultaneous demise of criticism in recent decades, pointing to the increased inability of contemporary critics to make value judgments, as art criticism becomes ever more informative and promotional than critical.12 The relationships among art history, art criticism, critical theory, and literary criticism are more fluid than ever. Judgment, in the sense of keeping up standards of “quality,” however important in the past, no longer seems to be the most important function of the art critic. Whether critics write in a more subjective and impressionistic literary style or base their work on more rigorous theories such as semiotics, psychoanalysis, and Marxism, art’s meaning and interpretation are increasingly an ongoing, largely “collaborative” process negotiated among multiple readers-viewers-participants and institutions, including those in the cultural industry. The role of the mass media and the art market in imposing the cultural value of an artist is paramount but seldom if ever analyzed or critiqued. It is not uncommon for critics to collaborate with avant-garde projects; examples include Clement Greenberg in relation to Abstract Expressionism, Ferreira Gullar and Mario Pedrosa within the Neoconcrete movement, Lucy Lippard in relation to Conceptual art and the women’s

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art movement, Rosalind Krauss in relation to Minimalism and Postminimalism, Guy Brett in relation to the kinetic and participatory works of artists such Hélio Oiticica and Lygia Clark, and Frank Popper in relation to new media art. For Krauss, an important function of criticism is “scanning the horizon for some new blip appearing on it.”13 Her statement can be understood in relation to the present and future of art, but also in relation to the past, which is always written from the present, as previously overlooked contributions are found and old legacies reinterpreted anew. In these discussions, however, there is rarely a reference to the vibrant expansion and the formal or intellectual innovations of new media art, perhaps because the new media embrace a temporality and spatiality produced by the constant acceleration, overload, and complication of our natural and cultural environments. This development may be perceived to be at odds with the traditional focus of the humanities – but certainly not with the routine experiences of using cell phones, iPods, DVDs, ATM machines, e-mail, web searching and online commerce, to name a few common uses of contemporary technology that may be combined with watching TV and listening to the radio. Is this growing complexity good? What does “good” mean? Understanding the heterogeneous values and truths of our denser information environment and making sense of the paradoxical, unforeseen relations among these elements are in large part what art and critical theory do best, especially when working together. Elsewhere in contemporary art, less-examined histories also suggest that art since the 1960s has continuously thrived in direct dialogue with criticism. As with other artists who archive and write about the movements they participate in, the first impetus for Bruscky and Kac to document, to identify predecessors, and to cultivate a network of collaborators might have been prompted by the need to create a critical space for their work to develop.14 As Bruscky’s studio-archive has exemplified – changing its function from an archive of artworks to the archive as artwork – art and documentation may easily change places in his practice according to the institutional context in which they appear. And as we saw with Kac’s Rabbit Remix, the artist has transformed the media and public reception of his GFP Bunny into the material for a new series of artworks. The subtitle of Kac’s 2005 book – Networking Humans, Rabbits, and Robots – highlights a radical and hybrid connectivity in which, I argue, his books are themselves a constitutive element, as network hub.15 Kac has often approached art institutions less as containers of culture and more as interface – as one more node of his networked ecologies. Such was the case of his telepresence installation Rara Avis (1996), in which the artist brought the internet into his gallery for the first time, to connect local and remote participants in the experience of a large aviary from the point of view of a telerobotic macaw.16 Likewise, Kac’s writings connect hybrid aesthetic elements such as language, light, and life, but can at the same time be seen at the crossroads of multiple institutional contexts such as the studio, the internet, the museum, the art market, scholarly research, and the mass media.

13. Krauss, October 100, 216.

14. Other examples in the United States, besides Kac’s Telepresence & Bio Art, include Donald Judd, Complete Writings

1959–1975 (Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 2005); Andrea Fraser, Museum Highlights: The Writings of

Andrea Fraser (Cambridge, MA: MIT Press, 2005); Martha Rosler, Decoys and Disruptions: Selected Writings, 1975–2001 (Cam-

bridge, MA: MIT Press, 2004); Robert Smithson, The Collected Writings, ed. Jack Flam (Berkeley: University of California Press,

1996); and Joseph Kosuth, Art after Philosophy and After: Collected Writings, 1996–1990 (Cambridge, MA: MIT Press, 1991).

15. Simone Osthoff, “Eduardo Kac: Networks as Medium and Trope,” in Ecosee, ed. Sid Dobrin and Sean Morey (State Uni-

versity of New York Press, forthcoming).

16. Rara Avis premiered as part of the exhibition Out of Bounds: New Work by Eight Southeast Artists, curated by Annette

Carlozzi and Julia Fenton at Atlanta’s Nexus Contemporary Art Center, June 28 – August 24, 1996. In 1997, Rara Avis trav-

eled to three other venues: the Jack Blanton Museum of Art, Austin, Texas; the Centro Cultural de Belém, Liston, Portugal;

and the Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre, Brazil, as part of the Bienal de Artes Visuais do Mercosul.

This essay was originally published in Art Journal (Winter 2006): 6-17.

Figure 12:

Paulo Bruscky, Mail Art envelope with an X-ray of the artist’s face, 1976, dimensions TKTK (artwork © Paulo Bruscky).

The juxtaposition of the publication of Kac’s Luz & Letra with his exhibition Rabbit Remix reveals a direct relationship from the beginning of his career among his work, his critical writings, the gallery space, and the space of the mass media. In September of 2004 these multiples arenas were occupied simultaneously by the glowing rabbit icon, which also appeared throughout the city of Rio, continuing its four-year rapid propagation along with a controversy of unforeseen scale and speed. Bruscky’s archives and Kac’s new books are more than collections of objects or texts to be consulted at a later time by an isolated researcher. The active and public diffusion of these artists’ archives and books plays a direct role in the kind of art these artists make and the space in which the works circulate, as the works engage multiple institutional spaces topologically. The unique relations created between Bruscky’s archives and Kac’s writings and their respective artistic productions – which for the most part have privileged real-time events, indexical processes, live interventions, and (in Kac’s case) life creations – are examples of the complex issues involved in writing the history of contemporary art, in which the boundaries between work, writing, documentation, and reception are often fluid and include the multiple institutional spaces the artists help transform.17

17. See Cristina Freire, Poéticas do Processo (São Paulo: Iluminuras, 1999), in which the Brazilian curator and art historian

explores the uncertain place, both physically and conceptually, of the 1970s artistic production within the archives of the

Museu de Arte Contemporânea of São Paulo, Brazil, which contains works by both Bruscky and Kac, among others.

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A Fragilidade como Potência:Precariedade e Imagem

LUCIANA PAIVA *

ResumoCertas propostas poéticas parecem potencializar-se a partir de sua própria indeterminação e fragilidade. A redução, o

deslocamento e a metáfora do deserto apresentam-se aqui como noções que nos conduzem a pensar sobre os limites da

própria experiência visual. A instalação All, desenvolvida entre 2008 e 2009, é apresentada como o ponto de partida e de

convergência das questões abordadas.

Palavras-chave: Artes visuais. Instalação. Redução. Fragilidade.

AbstractSome poetic propositions seem to be enhanced by means of their own fragility and indetermination. Strategies such as reduction,

displacement and the evocation of the desert as a metaphor are presented in this essay as notions that enable us to reflect onto

the boundaries of visual experience itself. The installation All, developed throughout 2008 and 2009, is presented both as a starting

point, as well as a point of convergence to the themes developed.

.Keywords: Visual arts. Installation art. Reduction. Fragility.

* Artista Visual e pesquisadora. Possui mestrado em Arte na linha de Poéticas Contemporâneas pela Universidade de

Brasília (2010), sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof, e bacharelado em Artes Plásticas (2006) pela mesma institui-

ção. Realiza exposições regulares desde 2004 e tem interesse nos seguintes temas de pesquisa: palavra e imagem, livro de

artista, animação e instalação.

Sou partidário do movimento mínimo,

da menor alteração que provoca a maior

revolução na percepção da realidade.

Jorge Macchi

As considerações a seguir integram a pesquisa realizada durante o curso de Mestrado em Arte e partem de questões que perpassam a produção poética realizada a partir do ano de 2005. En-tretanto, a instalação All [Figs. 1 e 2], elaborada durante o curso, apresenta-se como o ponto de convergência da abordagem realizada na presente pesquisa. A instalação consiste na apropriação de papéis laminados utilizados para embalar chocolate Alpino e na disposição dos mesmos na parede, com focos de luz em alguns pontos, sob os papéis. Cada embalagem, cuidadosamente esticada para que fique no formato quadrado, é disposta com a face dourada virada para a parede, de modo a produzir um reflexo amarelado nas áreas iluminadas. Além disso, é possí-vel entrever alguns focos de luz por pequenos furos provocados pela manipulação dos papéis,

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sendo que a visualização deste detalhe ocorre somente com a aproximação em direção a cada módulo específico.

1. Iremos privilegiar aqui algumas questões relativas à abordagem sobre a redução e suas implicações no contexto

dessa pesquisa.

2. PRECARIOUS In: Merriam-Webster Online. Disponível em: <http://www.merriam-webster.com/>

3. “Con respecto a la escala de las obras, en general no trabajo con la espectacularidad, tiendo a una arte íntimo, que logre una

conexión fuerte, casi individual con el espectador. No tengo muy claro el por qué, pero me gustaría que el espectador tuviera con

algunas de mis obras la relación que podría establecer con un libro”.

Entrevista concedida pelo artista à Ana Paula Cohen na ocasião da XXVI Bienal de São Paulo. (MACCHI, 2004). Disponível

em: <http://www.jorgemacchi.com/cast/tex01.htm>

4. “É importante manter em mente que tanto a decisão de Duchamp quanto a de Malevich foram renúncias – por parte

Figuras 1 e 2:

All, Luciana Paiva, 2009, detalhes da instalação.

tísticas. Procura-se estabelecer relações com artistas contemporâneos, como Jorge Macchi (1963) e Francis Alÿs (1959), cujas estratégias utilizadas aproximam-se da realizada em All, bem como re-alizar pontes através da História da Arte que auxiliem a abordagem das questões levantadas. Para tanto, optou-se pela escolha de uma temática comum que conecte essas propostas, identificada na noção de “precariedade” que, ao longo da pesquisa, é desmembrada em quatro possibilidades de investigação: a vertigem, a noção de redução, a efemeridade e a apropriação de materiais ordiná-rios em propostas artísticas, subvertendo seu uso cotidiano1. O sentido de precário pode ser compreendido em sua acepção etimológica como “aquele que pede ou suplica”2. Nesse sentido, a imagem precária que desejamos evocar é um convite, que convoca nosso olhar e reivindica nossos afetos. Tal imagem não se impõe ao olhar, mas precisa de disponibilidade e atenção para que esse encontro se realize. O movimento proposto é, portanto, o de atentar-se para esta experiência afetiva e particular propiciada por uma relação de cumplicida-de entre obra e observador, que nos parece essencial nesta investigação. A arte apresenta-se como um local de refúgio não por gerar um conforto superficial e aparente, como o evocado, por exemplo, nas imagens publicitárias; mas, justamente, por opor-se a isto, sendo um campo de incerteza, onde a visão converte-se em imprecisão de limites e contornos, os mate-riais podem reivindicar sua desintegração e a obra em si adquire uma pluralidade de sentidos pos-síveis. Em suma, um espaço de constante questionamento onde é possível “(...) esburacar o véu de cegueira que a racionalização e o tecnicismo contemporâneo nos impõem” (SOUZA, 2007, 35). As propostas artísticas tornam-se uma passagem, uma abertura para um espaço não acabado, vertiginoso e incerto; um espaço potencial que nos permite reconsiderar certezas, firmando-se como um campo onde ainda é possível assumir o risco de sonhar.

Movimento Mínimo: O Deserto é Mais

Ao falar sobre sua produção, o artista argentino Jorge Macchi resume, em parte, a relação que deseja que o espectador mantenha com seus trabalhos: íntima ou individual, próxima daquela estabelecida com um livro3. Para o artista, essa e outras estratégias, como lidar com mínimos des-locamentos, pequenos acasos cotidianos e alterações quase imperceptíveis no espaço expositivo potencializa a percepção em um sentido praticamente oposto ao da espetacularização. Segundo Barbara Rose, a ideia de “mínimo irredutível” na arte é iniciada pelas questões lançadas por Kasemir Maliévitch e Marcel Duchamp, que irão influenciar toda uma geração de artistas pre-ocupada com a simplicidade da redução e com uma aproximação ao mundo das coisas:

It`s important to keep in mind that both Duchamp`s and Malevich`s decisions were renunciations – on Duchamp`s

part, of the notion of the uniqueness of the art object and its differentiation from common objects, and on Malevich`s

part, a renunciation of the notion that art must be complex.4 (ROSE, 1965, 277).

A utilização de um material industrial reaproveitado, o deslocamento deste material para o es-A utilização de um material industrial reaproveitado, o deslocamento deste material para o es-paço da galeria e sua reconfiguração poética no contexto da instalação suscita o levantamento de considerações a respeito da valorização de instâncias efêmeras, banais e frágeis em propostas ar-

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A influência dessas decisões reverbera na produção de um grupo de artistas da década de 60, chamado de Minimalista,5 fundamental para chegarmos ao conceito de “mínimo” que queremos utilizar aqui, principalmente pela busca em estabelecer outra forma de relação entre o espec-tador e o objeto fundada, essencialmente, na relação entre o corpo e a percepção do espaço que o circunda.6 Além disso, havia a necessidade, por parte desses artistas, de contrapor-se ao expressionismo abstrato, propondo uma arte que se apresentasse de maneira impessoal e que, de certo modo, neutralizasse o “eu” do artista, acentuando, assim, a experiência do espectador. Deste modo, a repetição, a horizontalidade e a ideia de uma percepção do objeto desvencilhada da emoção biográfica do autor são algumas estratégias utilizadas por eles e incorporadas por toda uma geração posterior que vem “(...) declarar a excentricidade da posição que ocupamos relativa-mente a nossos centros físicos e psicológicos” (KRAUSS, 1998, 334). O “movimento mínimo” proposto por Macchi segue esta vertente, que aposta em uma força equivalente e oposta à do expressionismo abstrato ou à ideia de uma arte grandiosa e imponente. Entretanto, para Macchi, o que está em questão é fundamentalmente uma carga afetiva atribuída ao material. Não existe neutralidade, mas também não se deseja exaltar o gesto do artista. O gesto é sintético, reduz-se a uma escolha, e o afeto contido em cada escolha potencializa-se por implicar em várias renúncias:

Mirar y seleccionar, ese es mi trabajo. En la medida en que el objeto está cambiado de contexto, de función, de esca-

la y hay una oscuridad alrededor, uno centra la atención inmediatamente en él y tiene otra significación. Por supuesto

que no es un método mío: desde Duchamp eso es moneda corriente en el arte contemporáneo. El trabajo de todo

artista es un trabajo de selección: un pintor que está delante de su tela elige constantemente colores. A mí no me

gusta elegir colores, prefiero elegir determinadas formas u objetos que me llamen la atención.7 (MACCHI, 2004).

A instalação All, realizada durante o curso de Mestrado em Arte, parte dessa mesma noção de seleção proposta por Macchi. Os módulos quadrados que compõem o trabalho são papéis laminados reutilizados. A busca de variação na repetição, a utilização de um material produzido de forma industrial e a ocupação do espaço da galeria são algumas das características que podem ser mencionadas em relação ao legado minimalista. Porém, em All o gesto é potencializado como escolha afetiva. Por ser uma maneira pouco virtuosa e quase infantil de lidar com o material, o gesto que nos interessa é trivial, capturado no horizonte efêmero do cotidiano. A precariedade do papel laminado reaproveitado torna-se necessária para sua potencialização, para a passagem do ordinário uso de embalagem à invenção deste papel como retalho de um céu, embalagem de luz que forma suas próprias constelações. Não se trata, portanto, apenas de evidenciar as variações visuais de cada módulo, os rasgos e amassados de sua superfície frágil. O irresistível das proprieda-des que o material apresenta é que, se formos capazes de seguir suas marcas, de ler suas “digitais”,

de Duchamp, do caráter único do objeto de arte e sua diferenciação dos objetos comuns, e por parte de Malevich, uma

renúncia da noção de que a arte deve ser complexa.” (tradução livre).

5. “Minimalismo” ou “Arte Literalista” era a nominação dada por teóricos da época à produção de um grupo composto prin-

cipalmente por Donald Judd, Robert Morris, Dan Flavin e Carl Andre, que, durante a década de 60, realizava trabalhos com

características comuns. Os artistas não se consideravam um grupo, tanto que cada um desenvolveu suas próprias teorias.

6. Rosalind Krauss nos aponta a forte influência das ideias de Merleau-Ponty e de sua Fenomenologia da percepção (1945)

na elaboração deste pensamento. (KRAUSS, 1998, 319)

7. “Olhar e selecionar, esse é o meu trabalho. Na medida em que o objeto está fora de contexto, de função, de escala e

existe uma obscuridade ao redor, pode-se imediatamente centrar a atenção nele e ter outra significação. Certamente, este

não é um método meu: desde Duchamp isso é moeda corrente na arte contemporânea. O trabalho de todo artista é um

trabalho de seleção: um pintor diante de sua tela elege constantemente as cores. Eu não gosto de eleger cores, prefiro

eleger determinadas formas ou objetos que me chamem a atenção.” (tradução livre).

perceberemos que elas sugerem uma situação constelar própria, inventada a partir da percepção de um cotidiano banal, mas secretamente fantástico.

8. “Simplicidade da forma não se iguala necessariamente à simplicidade da experiência.” (tradução livre)

9. “Suprematismo” ou “novo realismo pictórico” são as denominações do movimento criado por Maliévich, Olga Rózanova

e Ivan Kliun em 1915. As composições suprematistas propõem um distanciamento da pintura figurativa, baseando-se, prin-

cipalmente, na ideia de “economia” e “não objetividade”. (MALIÉVITCH, 2007).

Figuras 3 e 4:

Horizonte, Jorge Macchi, 2002.

A repetição do quadrado como superfície, rearranjado no espaço expositivo, também nos re-A repetição do quadrado como superfície, rearranjado no espaço expositivo, também nos re-mete à busca de uma simplicidade da forma, sendo que, como nos aponta Robert Morris, “simpli-city of shape does not necessarily equate with simplicity of experience.”8 (MORRIS, 2003, 830). Desde Maliévitch, a forma quadrada surge como símbolo de máxima redução, sendo que, para o pensa-mento suprematista9 é justamente essa representação não objetiva, quase didaticamente encontra-da na forma do quadrado (que se contrapõe às formas orgânicas encontradas na natureza), que livra a arte de uma representação ilusionista e permite a percepção do que é realmente essencial: o sentimento. Posteriormente, como o próprio Maliévitch já apontava, a simplicidade do quadrado salta do plano pictórico e suas possibilidades continuam a ser exploradas de várias formas.

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10. “(...) toda obra de arte teve e ainda tem uma janela utópica por onde podemos ver uma paisagem no processo de

constituição.” (SOUZA, 2007, 33)

11. Aqui, também podemos pensar no deserto como em um espaço acolhedor de todas as utopias, heterotópico, portan-

to, no sentido definido por Foucault. FOUCAUT, Michael. Of other Spaces (1967), Heterotopias. Disponível:

<http://foucault.info/documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.en.html>

12. “A imensidão do deserto vivido repercute numa intensidade do ser íntimo” (BACHELARD, 2003, 209.)

Para esclarecer sua ideia de não objetividade, Maliévitch utiliza a imagem do “(...) ‘deserto’, no qual nada além do sentimento pode ser reconhecido” (MALIÉVICH 1999, 345). Nesse momento o deserto representa um esvaziamento necessário para o surgimento de novas possibilidades pictóricas a serem exploradas. A imagem do deserto (que será posteriormente reutilizada inúme-ras vezes por outros artistas como metáfora e como espaço de produção) carrega o conteúdo almejado, pois parte do princípio de um espaço teoricamente vazio, ou ainda, “cheio de ausências” (MARQUES, 2001, 22). Uma imagem que, por sua eficácia, pode conter qualquer outra. Para nós, é importante resgatar o deserto como espaço potencial onde ainda cabe produzir imagens, sem a interferência dos excessos de um mundo dominado por imagens esvaziadas. O ar-tista Helio Fervenza apresenta as condições deste esvaziamento atual, pensando na desertificação como nestes “espaços de grande adversidade e aridez” que vinculariam a produção de arte a um tipo de produção econômica ligada ao capital multinacional (FERVENZA, 2003). Fervenza utiliza a metáfora do deserto, resgatando o sentido de adversidade mencionado por Hélio Oiticica (1937-1980) para indicar a condição da vanguarda brasileira, bem como sua proposta de reconfiguração. Essas imagens acrescentam, portanto, o sentido de resgatar o deserto como imagem utópica, como uma paisagem “inacabada”10. Porém, não mais como uma metáfora da tabula rasa e sim como paisagem receptora que se reapresenta a cada nova experiência11. Nesse sentido, aproximamo-nos das considerações de Gaston Bachelard, que apresenta na no-Nesse sentido, aproximamo-nos das considerações de Gaston Bachelard, que apresenta na no-ção de deserto a medida da expansão de um universo íntimo. Uma “interiorização do deserto” não corresponderia a um vazio interior ou a uma escassez de recursos, ao contrário, a imensidão contida nesta imagem remeteria à nossa “consciência imaginante”12. O deserto seria, portanto, um espaço vazio em potencial para aquele que se arrisca a imaginá-lo.

Figuras 6:

Sem título, Mira Schendel, 1964.

Figuras 7:

1st wire bridge, Richard Tuttle, 1971.

Mira Schendel utiliza-se muito bem dessa noção de um vazio potencial e de um espaço não objetivo e não figurativo, noção aberta por Maliévich, tempos atrás. Embora a artista recusasse ser enquadrada nos grupos de sua época, sua obra parte de uma linha formal construtiva explorada pelos concretistas brasileiros, mas “(...) em lugar da positividade concreta há um certo ceticismo difuso, talvez um pessimismo sutil. Seus trabalhos são densos, austeros, preservam o sujeito no li-mite de sua expressividade mínima” (MARQUES, 2001, 21). Assim, acaba por aproximar-se de uma organicidade não racional e espiritual, que despontava como oposição ao pensamento concretista, apontando para afinidades com o Neoconcretismo13.

Ao marcar o quadrado na superfície pictórica emplastada de tinta [Fig. 6], a artista resgata, por meio de uma alteração sutil, um espaço de intimidade dentro do próprio quadro, pois seu traço trêmulo é fronteira, demarca um limite que não precisa mais remeter-se ao da tela, mas que re-verbera na intimidade da própria artista. Em seus trabalhos o “(...) vazio que evoca o absoluto, o tempo imanente e eterno, contrasta com a efemeridade do gesto inacabado” (MARQUES, 2001, 29). Trata-se, portanto, de acrescentar um ponto de vista mais despretensioso em relação ao gesto e à intencionalidade do artista. Neste sentido, a “ponte” de Richard Tuttle [Fig. 7] conecta-se intimamente com isto que “(...) na aparente fragilidade consegue garantir uma sustentação arquitetônica”, presente na obra de Mira Schendel (2001, 29). A delicadeza de First Wire Bridge atenta justamente para um espaço interme-diário entre objeto e sombra projetada. O vazio delimitado pelo arame já não importa tanto quan-to o espaço criado pela ponte invisível que conecta as duas partes do trabalho. Além disso, a dispo-sição quase imperceptível do trabalho no espaço expositivo exige um olhar extremamente atento. A estratégia de Tuttle acaba por transformar o próprio espaço de exposição neste local esvazia-A estratégia de Tuttle acaba por transformar o próprio espaço de exposição neste local esvazia-do, onde o espectador é convocado a estar atento à mínima alteração, correndo o risco, caso não esteja realmente disponível, de perder seus referenciais.14 Isso se dá não apenas pela simplicidade

13. “A ruptura neoconcreta na arte brasileira data de março de 1959, com a publicação do Manifesto Neoconcreto pelo

grupo de mesmo nome, e deve ser compreendida a partir do movimento concreto no país, que remonta ao início da

década de 1950 e aos artistas do Grupo Frente, no Rio de Janeiro, e do Grupo Ruptura, em São Paulo”. NEOCONCRE-

TISMO In: Enciclopédia Itaú Cultural de artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br/>.

14. Na ocasião da 25º Bienal de São Paulo (2003), a artista Ana Miguel também falava do deserto como este espaço extre-

mamente extenso, onde é necessário o máximo da nossa atenção para que o mínimo detalhe seja percebido.

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da estrutura em questão, mas, principalmente, pela escala reduzida do trabalho, que acaba por ampliar o espaço ao redor. O observador converte-se, portanto, neste ser atento que observa os detalhes e que precisa estabelecer uma relação de proximidade com o que observa. Em All, assim como em outros trabalhos produzidos anteriormente ao curso de Mestrado, essa proximidade também é convocada. Se, à primeira vista, uma visão distanciada sugere uma compo-sição constelar geometrizada pelo formato quadrado e repetitivo da embalagem e pelo reflexo produzido em alguns pontos, com a aproximação percebe-se que cada embalagem iluminada também se revela enquanto um pequeno nicho estrelado. A ideia de repetição, evidente na dispo-sição modular dos papéis, reaparece na imagem de pequenos nichos contidos em outro, maior. De certo modo, o detalhe acaba por conter o todo, tornando a alternância entre próximo e distante um jogo circular e reafirmando a necessidade de atenção ao detalhe e ao ínfimo. Pois, “(...) apenas ao concentrarmos o olhar sobre algo que parece insignificante, é que o seu significado cósmico e sua capacidade de desestabilizar expectativas ganham vida.”. (PÉREZ-BARREIRO, 2007, 36)

“Por Que Isto não é Nada?”

O olhar atento é como uma ponte que pode nos conduzir ao segredo escondido nas superfícies que nos cercam. O deslocamento desses detalhes para o contexto da galeria gera um caminho de mão dupla, pois acabamos por transportar essa nova relação estabelecida com as coisas de volta para o cotidiano. Ao encontrar em seu caminho uma estrutura que parece um aglomerado de materiais, sem sentido lógico no sistema dos objetos que têm propósitos funcionais, Richard Tuttle pergunta-se: “por que isto não é nada?” 15. O que existe naquela superfície que captura o olhar? O que falta para que o olhar lançado sobre isto que nomeamos de nada pela simples falta de habilidade, ou de necessidade de um nome, possa concretizar-se como um ato artístico?

Um grande artista pode fazer arte simplesmente ao lançar um olhar. Uma série de olhares poderia ser tão

sólida quanto qualquer coisa ou lugar, mas a sociedade continua a privar o artista de sua “arte de ver”. (SMI-

THSON, 2006, 197.)

A arte nos surge, portanto, como a possibilidade de manter os segredos em suspensão, como a resistência a uma comercialização da intimidade, pois mesmo que toda proposta possa ser institu-cionalizada e abarcada por sistemas sociais que tentem compreendê-la e atribuir-lhe uma função (social, cultural, comercial), o que ocorre de fato é que todo trabalho oferece uma resistência. Existe algo que escapa e que não é facilmente capturável. Algo que conduz toda tentativa de ex-plicação elucidativa a um ponto de vista, pois “todo olhar sobre a obra é um olhar com cicatrizes” (PANITZ, 2001, 41). Podemos, portanto, pensar que qualquer proposta artística surge como aparição efêmera do ponto de vista do observador. Para além da materialidade física proposta, nenhum trabalho existe, de fato, fora do que articulamos como versão sobre ele. Nenhum trabalho exclui a memória, o instante em que o vemos e a construção individual que somos. O que fazemos é apenas compar-tilhar as mesmas superfícies e aferir as marcas que possibilitam redescobrir o cotidiano e dotá-lo de novas possibilidades.

15. Fala do artista, retirada do vídeo Richard Tuttle: Never Not an Artist. 2005.

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DissertaçõesPANITZ, Marília As escritas da imagem em arte: da obra ao olhar, do olhar à obra. 2001. Dissertação (Mestrado em Arte)

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CatálogosMARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

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DIAS, Geraldo de Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

VídeosRepresentação Brasileira - 25ª Bienal de São Paulo: Iconografias Metropolitanas. Dir : Cacá Vicalvi. 2003. 96 min.

Richard Tuttle: Never Not an Artist. Dir: Chris Maybach. Twelve Films, 2005. 32 minutos.

SitesMACCHI, Jorge. “Mais por menos” (entrevista concedida pelo artista à Ana Paula Cohen na ocasião da XXIV Bienal de São

Paulo. Dez., 2004. Disponível em: <http://www.jorgemacchi.com/>

Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.

Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/>

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As Sombras dos Cantos:Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da Casa

CECILIA MORI CRUZ *

ResumoO presente texto configura-se como um estudo teórico-poético da casa como espaço que compõe as dimensões do

público e do privado. Para tanto, foram feitos alguns levantamentos a partir de minha produção recente de ateliê que, em

seguida, foram relacionados com estudos teóricos e históricos sobre os espaços da casa, suas funções e seus significados,

cruzando alguns conceitos como sombra (em Tanizaki), sfumato (em da Vinci), limite (em Halbwachs e em Paul-Lévy e

Segaud) e abjeção (em Bataille e em Kristeva).

Palavras-chave: Sombra. Casa. Limite. Público e Privado. Canto.

AbstractThe present article was made on the purpose on initiating a theoretical-poetical study of the house as a space that composes

the public and the private dimensions. Therefore, some surveys from my recent artistic production were made, then followed by

theoretical and historical studies on spaces of the house, its functions and its meanings in order to cross them with concepts such

as shadow (according to Tanizaki), sfumato (‘s da Vinci), limits (according to Halbwachs and Paul-Lévy and Segaud) and abjection

(according to Bataille and Kristeva).

Keywords: Shadow. House. Limit. Public and Private. Corner.

* Doutoranda em Poéticas Contemporâneas do PPG-Arte/UnB, sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof. Artista

visual, ganhadora do prêmio Artista Revelação do Salão de Artes Visuais do MAB (2001). Bacharel pelo VIS, UnB (2003).

Bolsista (CNPq) do PIP - Itinerâncias Urbanas (SOL, UnB), orientada por Angélica Madeira (2000-2003). Mestre em Poéti-

cas Contemporâneas (2007) pelo PPG-Arte, UnB, orientada por Geraldo Orthof, com bolsa CAPES.

[email protected]

1. BOTTON, Alain de. A Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 119.

Sem homenagear nenhum deus, uma peça de arquitetura

doméstica, não menos do que uma mesquita ou capela, pode nos

ajudar na celebração do nosso eu genuíno.

Alain de Botton1

As conexões a seguir integram o projeto, na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, do Doutorado em Arte. Essas reflexões partem das experiências de ateliê do ano de 2009 alia-das a conceitos da história e da teoria da arte, bem como de outras áreas do conhecimento, gerando um trânsito ininterrupto entre teoria e prática. Maria Beatriz de Medeiros, a partir de

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sua leitura de Heidegger, indica que as investigações artísticas concebem o questionado: “... [a investigação em arte] não define, não determina, mas concebe. Faz nascer o processo/produto artístico da própria pesquisa para, assim fazendo, concebê-lo. […] Determinar, do nosso ponto de vista, só seria possível no instante do sublime, ou melhor, seria impossível, já que esse é indi-zível” (MEDEIROS, 2004, p. 4). A instalação Vestígios de Sombras é construída de fios de lã branca com nós aleatórios e de tamanhos diversos em seu comprimento, fixados às paredes de um canto da casa por agulhas de máquina de costura industrial. Sendo as paredes da casa de cor branca e estando os fios presos em paredes que se tocam a 90º, a forma de visibilidade da obra se dá pela projeção de sua sombra nas paredes. Essas sombras das linhas e seus nós são imagens distorcidas com relação às linhas materiais, devido ao ângulo de inclinação dessas linhas nas paredes e ao ângulo formado entre o ponto de luz e as mesmas linhas, como pode ser visto na figura 1. As imagens das sombras, porém, mesmo distorcidas, tornam-se as formas mais visíveis da obra e, consequentemente, a demons-tração do real, seu vestígio. Esse índice de que há algo ali, um algo não visto, dá-se no espaço sensível do monocromo, na sobreposição do branco no branco. Os vértices das paredes reve-lam as linhas, mas a revelação não deixa de velar. Pensar em uma revelação que vela acaba por nos apresentar uma ambiguidade dialética, tal como é pensar em uma topologia dos espaços ao mesmo tempo públicos e privados de uma casa.

Figura 1:

Cecilia Mori, Vestígios de Sombras, projeto Moradas do Íntimo, 2009.

A casa, entendida como o espaço delimitado de habitação dos seres humanos, surge junto com a linguagem, segundo as antropólogas Françoise Paul-Lévy e Marion Segaud (1983). Para as autoras, não se sabe ao certo se foi com o surgimento da linguagem que os seres humanos sentiram a necessidade de dividir o mesmo espaço físico, ou se, na própria coabitação, formou-se a linguagem. No texto La Notion de Limite, Paul-Lévy e Segaud relacionam o desenvolvimento do neocór-tex, nos ancestrais diretos do homo sapiens, com o aparecimento da dimensão simbólica, em função de uma delimitação do lugar de convivência de um grupo. Com isso, segundo as autoras, a relação de interdependência entre o espaço e os grupos sociais forma e constitui a identidade

desses grupos. As sociedades “estão situadas no espaço, em um espaço que elas particularizam e que as particulariza” (PAUL-LÉVY e SEGAUD, 1983, p. 28, tradução nossa). Na visão de Paul-Lévy e Segaud, a delimitação espacial ocorre tanto no âmbito individual quanto no coletivo. Esta delimitação formaria tanto os espaços de habitação (como as casas) como os de convivência (como os bairros, as cidades e os territórios nacionais). Assim, as auto-ras consideram a elaboração do limite físico como um elemento fundamental na constituição e na representação dos sistemas espaciais das sociedades, uma vez que será apenas com a per-cepção dos contornos, e das consequentes identidades, que os indivíduos e grupos desejarão criar laços sociais com outros indivíduos e/ou grupos. Diante da mesma noção, porém do ponto de vista de outra disciplina, a psicanálise considera a percepção do limite, da fronteira entre o eu e o Outro, um fundamento na constituição da personalidade. Para essa corrente do pensamento, o eu vai até o ponto de enfrentamento com o Outro. No início da constituição do sujeito, fase autoerótica, este não reconhece o Outro e, por isso, ainda se encontra em fase de formação, sob o olhar da psicanálise. Seria apenas com as frustrações geradas pelo reconhecimento da alteridade que as esferas psíquicas se constituiriam (Cf. Freud, 1930 [1961]). Maurice Halbwachs também relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com sua pró-Maurice Halbwachs também relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com sua pró-pria constituição enquanto indivíduo e/ou grupo, declarando que as imagens do mundo exterior são inseparáveis do sujeito. Para o autor, essa relação não é uma simples harmonia, ou uma correspondência física entre as aparências dos lugares e das pessoas. Ao contrário, afirma que:

Nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a

maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-nos nossa família e

os amigos que víamos geralmente nesse quadro (HALBWACHS, 2006, p. 137).

O autor complementa, afi rmando que “quando um grupo está inserido numa parte do es-O autor complementa, afirmando que “quando um grupo está inserido numa parte do es-paço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem” (Ibid, p. 139). Desta forma, entendemos que o lugar marca o grupo e/ou indivíduo, ao mesmo tempo em que é marcado por ele. Então, as ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais, evidenciando que cada aspecto de um lugar tem um sentido que é inteligível apenas aos membros do grupo. Os grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria, en-Os grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria, en-tre seus membros, relações sociais. Para Halbwachs, uma família ou um casal pode ser definido como um conjunto de pessoas que vivem na mesma casa, sob o mesmo teto. Assim, se os ha-bitantes de uma cidade ou de um país formam uma sociedade, é porque estão reunidos numa mesma região do espaço. Com isso entendemos o espaço como mais do que uma porção de terra, como uma condição clara da existência desses grupos. Esses lugares, uma vez que definem e são definidos pelos indivíduos e pelos grupos sociais, são tanto os espaços públicos quanto os privados, tanto as cidades quanto as casas. Segundo Gaston Bachelard, “a casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos” (BACHELARD, 1989, p. 59). As casas, dessa forma, poderiam ser pensadas como uma célula social, ou seja, uma pequena representação de um grande grupo social. Nelas teríamos indivíduos que se relacio-nam. Como resultado desse relacionamento, eles constroem laços afetivos, mas também têm conflitos éticos, morais e políticos. A casa, mesmo quando abriga grandes famílias, é a morada do eu. Ao mesmo tempo em que ela é o espaço da coletividade, é o espaço da individualidade. Ela é público-privada. Mesmo na casa de pessoas que moram sós, ela não é apenas o espaço da intimidade, este poderia ser o quarto. A casa tem espaços desenhados para o grupo e para o indivíduo, tem sala de estar e

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banheiro. Mesmo os espaços da casa que foram pensados para a convivência do grupo são, também, muitas vezes utilizados pelo indivíduo. Com isso a casa, por ter esses dois tipos de es-paço, promove a experimentação dos limites entre o espaço público e o privado. É um e outro; é um ou outro. Pensar a casa como espaço entre público e privado não se faz apenas na relação que seus habitantes têm com o espaço, mas também na relação que o indivíduo tem com a cidade ou com a sociedade. A casa não é tão pessoal quanto o corpo do ser, como também não é tão exterior ao ser. Paradoxalmente, ela é tão pessoal quanto o ser, como é também exterior ao ser. A exterioridade e a interioridade da casa podem ser pensadas tanto em relação ao corpo do ser que a habita quanto em relação ao espaço social em que ela se encontra. Em uma cidade, a casa é o núcleo do particular e, para o sujeito que vive em grupo, ela é o primeiro ponto de encontro com os outros. Assim, se a casa possui espaços que são coletivos ou individuais, e outros que são ao mesmo tempo coletivos e individuais, a própria casa se configura como uma combinação do coletivo com o indivíduo. Esta percepção de uma ambiguidade dos espaços constitutivos da casa faz dela um tema a ser estudado para além de seus aspectos mais subjetivos, como a interpretação e os sentimentos adquiridos com o tempo de vivência no local. Esta seria uma investigação do lar. Pesquisar a casa implica na junção do lar a seu espaço físico, do mensurável ao imensurável. Na Merzbau, de Schwitters, as funções dos espaços e das coisas da casa foram repensadas, quando não subvertidas. As paredes não eram mais divisórias, tinham buracos e passagens, além de volumes das colagens, tão valorizadas pelos dadaístas. Muitos quartos e salas da casa, que o próprio artista habitava com sua família, tinham seu aspecto interior mais parecido com uma fachada externa de um prédio público (pelos detalhes em seu acabamento) do que com um ambiente interno, promovendo uma inversão entre o interior e o exterior e, muitas vezes, uma coexistência entre eles.

Figura 2:

Kurt Schwitters, Merzbau (Hanover), 1933.

De acordo com os sete princípios de Leonardo da Vinci, em seu Tratado sobre a Pintura, – Curio-sità, Dimostrazione, Sfumato, Arte/Scienza, Corporalità e Connessione – o sfumato consistiria, além da técnica de esfumaçar as linhas de uma pintura para uma maior ilusão de profundidade, na capaci-dade de aceitar a ambiguidade e o paradoxo. Esta ambiguidade visa estudar a união entre os dois opostos, sem que isso resulte em uma anulação de um desses contrários.

Além do concreto e do sensível, do público e do privado, do exterior e do interior, da cidade e do corpo, do coletivo e do individual, a casa apresenta outras relações paradoxais, que fazem dela a própria imensidão íntima, de Bachelard (Op. Cit.): o interior que vai para o além (e não que está no além) do interno e se funde, adquirindo a imensidão, com o externo. A casa, na sua imensidão íntima, é o próprio limite entre o dentro e o fora. A casa, então, causa abjeção. Em Powers of Horror (1982), Julia Kristeva desenvolveu a noção de abjeção como uma operação psíquica pela qual a identidade subjetiva e a de grupo se constituem ao se estabelecerem nos espa-ços entre o indivíduo e o Outro. A abjeção é o estado de fusão com o Outro, o que se encontra fora do ser com o ser. O sentimento de abjeção emana do sentido das pessoas de ordem biológi-ca, social ou espiritual. “Podemos chamá-la de fronteira; abjeção é, sobretudo, ambiguidade. Porque, ao passo que libera a apreensão, não corta radicalmente fora o sujeito/assunto que o ameaça – ao contrário, a abjeção reconhece-o como em estado de constante perigo” (KRISTEVA, 1982, p. 9, tradução nossa). A abjeção, então, é um estado de crise, de autodesgosto e desgosto com relação aos outros. Não é a repulsa física ou a falta de limpeza que causa a abjeção, mas o que perturba a identidade, ao mesmo tempo em que a constitui: “é algo que simultaneamente fascina e repele, aflige e alivia. Não existe fora do ser e, mesmo assim, o ameaça” (Ibid, p. 4, tradução nossa). O abrangente mundo da abjeção completa o eu com um simultâneo sentimento de horror e paz. Assim o eu reconhece que nunca poderá conter o abjeto, e que o fato de ele estar dentro do eu incentiva a busca por ele. É da própria natureza do abjeto apontar a permanente cisão ou crise que residem na vida do indivíduo: “eu experimento a abjeção somente se o Outro se estabeleceu e substituiu o que será ‘eu’. Não apenas um outro com quem eu me identifico e que incorporo, mas um Outro que me precede e me possui, e, por tal possessão, me causa/faz ser” (Ibidem, p. 10, tradução nossa). A ligação da abjeção com o estranhamento, cunhado por Freud, foi ressaltada por Kristeva. Para ela, porém, o que distingue esses dois conceitos é a situação limítrofe presente na abjeção, que é elaborada pela falha em reconhecer seus familiares. Nada é familiar, nem mesmo a sombra de uma memória. A abjeção, assim como o estranhamento, é uma sensação de espanto sofrida pelo sujeito, mas, no estranho, essa sensação ocorre quando o sujeito se identifica no Outro e, na abjeção, há uma sensação de desgosto e ameaça pelo que é excluído, por não saber que o que é expelido é parte constituinte do seu ser. Nas palavras de Julia Kristeva: “uma ameaça que parece emanar de um exorbitante exterior ou interior, descartado além do espaço do possível, do tolerável, do pensável. Ele permanece aqui, bem perto, mas não pode ser assimilado.” (Ibid., p. 1, tradução nossa). No caso do abjeto, sua causa é também sua consequência. No caso da casa, como dito anteriormente, os espaços e as relações estabelecidas por quem habita a casa configuram-se como limítrofes. Tanto as relações familiares ou de grupo quanto os lugares em que se dão essas relações lidam com as dificuldades e conflitos em fixar seus limites. Especificamente pensando seus espaços físicos, os corredores, as portas, os canos e os ralos seriam exemplos dos abjetos da casa, pois ao mesmo tempo em que demonstram o limite entre os espaços circundantes, são o próprio ponto de contato entre eles, são espaços que “não respeita(m) fronteiras, posições e regras. O entre, o ambíguo, o composto” (KRISTEVA, 1982, p. 4, tradução nossa). A dificuldade em lidar com o abjeto – com o entre – se dá, segundo alguns pensadores, como Georges Bataille (Cf. Bataille, 2006), com o fato de que nossa civilização ocidental, ainda hoje, se vê calcada em na concepção de um mundo cindido, dualista, formado por infinitas relações ambivalen-tes como céu e inferno, bem e mal, vida e morte, belo e feio, homem e mulher, sublime e grotesco. Em suas topologias analíticas, Bachelard percebe o canto como o espaço de recolhimento e de solidão: “todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gosta-

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mos de nos encolher, de nos recolher em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa” (Ibid, p. 145). Ainda sobre o canto, o filósofo o relaciona com o silêncio. Para ele, “sob muitos aspectos, o canto ‘vivido’ rejeita a vida, restringe a vida, oculta a vida” (Ibid, p. 145-6). Assim, o ato de recolher-se em um canto traria um aspecto de proteção, não apenas por ser o canto um espaço fechado e que evoca a intimidade, mas também por ser o canto o local mais distante da iluminação central, como nos lembra Junchiro Tanizaki. Para o pensador japonês, o excesso de luz, tão valorizada por nós ocidentais, tem como a única função “espantar todo e qualquer resquício de penumbra que porventura se formasse pelos cantos” (TANIZAKI, 2007, p. 57). Com isso podemos pensar que, no canto, habita a sombra. No caso do canto da obra abaixo, a sombra não só está presente como é aprisionada pelas várias linhas, que criam diversas manchas de linhas, que, por sua vez, as eliminam. Esse labirinto de linhas e sombras evoca a imobilidade das teias de aranha, mas, paradoxalmente, não a permanência. Para Tanizaki, a beleza inexiste na própria matéria, ela é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias. Ela inexiste sem a sombra. A série Canto (da qual as obras Vestígios de Sombra e Ponto e Linha sobre Canto fazem parte) elabora um estudo poético e topológico do canto. Em Ponto e Linha sobre Canto, a precisão das linhas pretas horizontais é posta em xeque pela deformação dessas mesmas linhas, causada pelas suas sombras. Triângulos são formados nas sombras completando e, ao mesmo tempo, desestabi-lizando a plenitude das linhas horizontais. Os pontos, bem marcados na obra (imagem 4, em de-talhe ao lado), ainda potencializam a sensação de desequilíbrio da instalação, mesmo esta tendo sido construída de forma centralizada, a partir do centro do canto da parede. A soma dos pontos/nós às linhas intensifica essa situação de ambiguidade, que chama a atenção para o momento limí-trofe, mas que não limita os contrários sem, com isso, promover a exclusão de um lado pelo outro.

Figura 3:

Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto, da série Canto, 2009.

Figura 4:

Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto (detalhe), da série Canto, 2009.

A criação objetivando a valorização da sensação, a aisthesis (MEDEIROS, 2005), é uma das bases principais do ato artístico. Assim, é no espaço da arte, e não no da ciência, que é per-mitido – para não dizer recomendado – pecar, distorcer conceitos, forçar uma coexistência de ações e sentimentos contrários e contraditórios, enfim, abordar a ambiguidade e o paradoxo, que são presentes nos seres humanos, no mundo, na vida. A arte, dentre outras características, pode ser pensada o como campo do artifício e das in-A arte, dentre outras características, pode ser pensada o como campo do artifício e das in-certezas, por não acreditar que a razão e sua estrutura lógica de pensamento seja a única forma de experimentação possível da realidade. Então, a arte pode operar de acordo com o princípio da penumbra, que não é nem claro nem escuro, pois ela é tanto da ordem do irracional (se pensamos nas dimensões da arte que dizem respeito ao artista e à sua sensibilidade) quanto do racional (se pensamos nas suas técnicas, teorias, História, linguagens...). A arte pode promover ela mesma a abjeção. O debate sobre os espaços público e privado atravessam a história da humanidade, pois es-O debate sobre os espaços público e privado atravessam a história da humanidade, pois es-tão intimamente ligados à formação da espécie humana. A casa, célula social das cidades, repre-senta essas relações que o indivíduo constrói com o coletivo. Assim, para estudar a casa, deve-se estudar o ser e o mundo. Ao relacionar os espaços limítrofes da casa com a noção de sombra, com o sfumato de da Vinci, com as ideias de limite e de abjeção, o que é público torna-se privado, e vice-versa Ao pensarmos na casa como espaço de abjeção, podemos integrar todos os espaços da casa, os públicos e os privados, íntimos, possibilitando com isso uma nova forma de convivência entre o sujeito e o Outro, como também propor uma outra/nova relação entre o indivíduo e seu espa-ço, tornando-o mais fluido e ilimitado: da linha do desenho à mancha da pintura.

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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva e o espaço. In: A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006;

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________________________. Introdução: arte em pesquisa: especificidades. In:ANPAP, 13º, 2004, Brasília. Anais. Brasília:

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TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da sombra; tradução de Leiko Gotoda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENA

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De Roda Viva a Os Sertões:Aspectos de uma Trajetória Teatral

MARIANNA MONTEIRO *

ResumoNesse artigo trago algumas reflexões sobre a encenação de Os Sertões pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona, resultantes do

acompanhamento dos ensaios no ano de 2005. A trajetória do grupo Oficina vem configurando, a partir da década de

70 do século XX, uma proposta teatral que tem como característica essencial ampliação e consolidação do coro, que

funciona como detonador da participação e interação com o público, permitindo que o trabalho circule livremente entre

o teatro, o ritual e o drama social.

Palavras-chave: Teatro Oficina. Performance. Drama social. Contracultura.Teatro político.

AbstractThis essay is about the staging of Os Sertões by Teatro Oficina Uzina Uzona, the reflections resulting from my watching the rehears-

als in 2005. By contextualizing José Celso Martinez Corrêa’s staging of Os Sertões in the history of the Oficina group, I demonstrate

the construction of a dramatic proposal which has been elaborated since the 1970’s with recurring topics. The necessity of under-

standing the practice of the Oficina group from these elements is clear; however, the chorus, with its increasing role, stands out as an

essential characteristic of the history of the group. It acts as a detonator of the participation and interaction with the public, allowing

the work to combine play with ritual and social drama.

Keywords: Oficina group. Performance. Social drama. Counterculture. Political theatre.

* Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP, autora de Noverre:

Cartas sobre a Dança ( Edusp, 1998), A Dança na Festa Colonial (Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2001) e Dança Afro: uma

Dança Moderna Brasileira (no prelo). Dirigiu os vídeos Lambe Sujo, uma Ópera dos Quilombos e Balé de Pé no Chão, a Dança

Afro de Mercedes Baptista. É pesquisadora de performance, teatro e cultura popular.

[email protected]

Nas considerações abaixo, estão em foco alguns aspectos da montagem e adaptação teatral da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, pelo grupo Oficina. Apresento algumas reflexões surgidas ao longo do acompanhamento de ensaios no ano de 2005, durante aproximadamente dois meses, quando pude observar a natureza dos processos criativos do grupo, que vou analisar levando em consideração a preponderância paulatina e crescente do coro em suas montagens. Muito antes de pensar em tornar-me uma pesquisadora de artes cênicas, o Teatro Oficina já ocupava um lugar central nas minhas considerações e na minha própria formação teatral e política. Acompanhei os seus trabalhos desde as remontagens de Pequenos Burgueses e Andorra. Conheci o prédio do teatro antes e depois da reforma de Flávio Império e Rodrigo Lefèvre e foi ali que, pela primeira vez, dei-me conta da existência de diversos tipos de palco: arena, italiano, “sanduíche”

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(com plateia dos dois lados do palco), etc., percebendo que a variedade de espaços cênicos, bem como a opção por um ou outro tipo de dispositivo, consistia em uma das questões centrais da linguagem teatral moderna. Assisti à volta do Ofi cina para seu espaço, depois do incêndio de 1966, com a montagem an-Assisti à volta do Oficina para seu espaço, depois do incêndio de 1966, com a montagem an-tológica de O Rei da Vela e, logo a seguir, as montagens de Roda Viva e Galileu Galilei, que serviram para colocar-me diante de outras tantas questões relativas à linguagem teatral. O teatro brasileiro, desde a década de 60, estava profundamente vinculado aos movimentos sociais. No caso do Oficina e do Arena, o sentido de uma militância social e política sobrepujava o de mero entretenimento e lazer. O desenvolvimento do teatro brasileiro pós Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) foi progressivamente afirmando uma vocação política da arte a serviço de transformações sociais. O golpe de 64 mudou totalmente os percursos possíveis desta arte enga-jada: impedida de associar-se claramente aos movimentos sociais, agora reprimidos e colocados na clandestinidade, esta arte pública, no entanto, continuava extrapolando o sentido de mero entre-tenimento. Para a classe média e o público estudantil, frequentar determinados teatros implicava em identificar-se com questões sociais e nutrir esperança de transformações e rupturas sociais. Ir ao teatro, no caso do Arena e do Oficina, representava, por si, uma tomada de posição política contra a ditadura. No caso do Oficina, podemos dizer que as encenações de O Rei da Vela e, na sequência, de Roda Viva e Galileu Galilei, configuraram um caminho muito particular em termos artísticos, que inaugu-rou novos parâmetros de criação teatral. Para atender às novas condições sociais e políticas, o Ofi-cina acabou modificando profundamente a concepção de arte engajada, conferindo ao coro uma importância emblemática e significativa desta transformação na maior parte de sua dramaturgia. O primeiro espetáculo que atribui um papel tão fundamental ao coro é Roda Viva, em 1968, seguido de Galileu Galilei, no mesmo ano. Nos dois casos, o coro era recrutado em meios juvenis, composto de atores com pouquíssima experiência tanto teatral quanto política. O que era novo nesta fórmula não era a convivência no interior de um mesmo espetáculo entre atores mais ou menos experientes e sim o protagonismo do coro, que passou a ter muito mais importância e prestígio que os antigos atores e os seus respectivos papéis. No novo contexto histórico, era atra-vés do coro que a função política e social dos espetáculos mantinha-se de pé. Com a montagem de O Rei da Vela, o sentido da atividade teatral do Oficina transformara-se profundamente, e havia espaço para uma nova geração entrar em cena. Sua primeira aparição foi como coro na peça Roda Viva, um coro agressivo que desafiava a passividade habitual do público teatral burguês. Durante a temporada de Roda Viva, a invasão do teatro pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC)1 explicitou ainda mais o sentido político da performance teatral do grupo. Mobilizaram-se grupos de estudantes de esquerda para garantir a segurança do público e do elenco, assim como a continuidade da temporada, que passou a ter um sentido muito evidente de resistência e de oposi-ção à ditadura e às forças de direita. Não se tratava mais de um teatro político, no sentido de uma abordagem de temas políticos representáveis sobre o palco; o que ocorria neste espetáculo era uma conjuração de forças, no aqui e agora, que acirrava conflitos entre interesses sociais divergentes. Depois de Roda Viva, o Oficina já não era o mesmo. Um novo grupo de jovens atores havia se integrado à companhia, vindo a constituir, na montagem seguinte, o coro de Galileu Galilei. A partir da cena O Carnaval do Povo, de Galileu Galilei, José Celso Martinez Corrêa reedita o coro de Roda Viva, que havia se tornado símbolo de resistência, irreverência, além de propulsor de novas relações entre palco e plateia e transgressor de valores morais e comportamentais. A permanên-

1. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) foi uma organização direitista anticomunista brasileira, composta por

estudantes e intelectuais, os quais, durante o Regime Militar no Brasil, agiram em favor do mesmo, denunciando e atacando

atividades e pessoas contrárias ao governo.

cia do coro com as mesmas características, tanto em Roda Viva como em Galileu Galilei, mostrava que sua função dramatúrgica ia muito além do plano ficcional. Não se tratava mais de representar uma determinada força social, mas sim de constituir-se enquanto tal, de fato. Vem daí a substituição da palavra teatro pela palavra “te(ato)”, proposta pelo grupo, logo a seguir, quando montaram o espetáculo intitulado Gracias Señor. “Te(ato)” e coro são realidades que se articulam e aparecem, a partir de então, como uma tópica recorrente no percurso artístico do Oficina. O Carnaval do Povo tornou-se uma fórmula dramatúrgico-política muito eficiente, que passou a ser usada em diversas circunstâncias e contextos. A partir de uma cena da peça de Bertolt Bre-cht, instaura-se um momento anárquico de quebra das hierarquias aprisionadoras do teatro e da sociedade. Trata-se da ruptura de normas cotidianas estabelecidas, por meio da mobilização de pulsões e da eliminação de comportamentos reprimidos. Acompanhei, como público fiel, essas transformações do grupo naquele pós-64, uma sucessão de propostas em busca de um teatro capaz de responder aos impasses criados pela derrota dos projetos da esquerda brasileira com o golpe de 64. Esse processo culminou com a encenação de Gracias Señor, uma guinada definitiva na forma do Oficina fazer teatro. Gracias Señor ou Trabalho Novo, como inicialmente foi chamado, estreou em 15 de maio de 1971, em Brasília. Foi primeiramente apresentado como uma grande performance realizada no campus da Universidade de Brasília, congregando uma multidão de estudantes para uma atuação em grupo nos espaços externos da Universidade. Numa época em que qualquer manifestação de rua estava absolutamente proibida, em nome do combate à subversão, por meio dessa espécie de “happening” (pelo menos esta era a referência que tínhamos quando nos defrontávamos com esse tipo de intervenção teatral) o Oficina buscava desenvolver o que já não era bem um espe-táculo teatral, mas alguma coisa que ocupava o lugar de entrecruzamento entre um drama social, um rito e o teatro propriamente dito. Depois de tentativas de trabalho com o Living Theater e com o grupo argentino Os Lobos, o Oficina, seguindo a tendência internacional, transforma-se numa comunidade de trabalho e de vida, renegando a forma empresarial de organização da produção teatral e propondo-se a viajar pelo país e pela América Latina, recolhendo “experiências” em busca de novas formas de atuação e funcionamento. Nesta viagem de redescoberta do Brasil, o grupo chegou a pensar em encenar ou filmar a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, o que revela a constância de certas abordagens do grupo em meio a tantas transformações. A montagem posterior da obra de Euclides da Cunha retoma, então, propostas muito mais antigas. As experiências teatrais realizadas Brasil afora, que atingiram seu clímax em Brasília, estão na origem da encenação de Gracias Señor em São Paulo, logo a seguir, que representou uma verda-deira “refundação” do grupo de teatro Oficina. Roda Viva, Galileu Galilei e Gracias Señor marcam, na trajetória do Oficina, o advento do coro como uma força coletiva, transformadora da própria realidade do trabalho cênico. A relação hie-rárquica entre coro e protagonistas se inverte, gerando uma grave cisão interna no grupo, de um lado a nova geração de atores e, de outro, os atores mais antigos e experimentados, que não aceitam a importância cada vez maior desses “recém-chegados”. Para o elenco mais antigo, também convulsionado pela experiência antropofágica de O Rei da Vela e pela radicalidade da proposta de encenação de A Selva na Cidade, não havia caminho de volta: viam-se comprimidos entre a opção de serem engolidos pela indústria cultural (provavel-mente a televisão, em momento de grande expansão no país) e a de enfrentarem um caminho que, para muitos, parecia absolutamente suicida. O preço a pagar pela inversão da hierarquia entre coro e protagonistas era altíssimo, pois implicava em aceitar o que parecia ser um retrocesso na qualidade artística do trabalho. A montagem de Gracias Señor, além de garantir um papel central para o coro, acabava por questionar outras tantas separações: atores e público, teatro e ritual, teatro e vida, marginal e herói,

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etc. O teatro deixava de ser exclusivamente o locus de uma representação, ainda que a metafori-zação de temas políticos, para tornar-se o palco de uma ação efetiva, cujo caráter, balbuciado em seus primeiros momentos, o público era chamado a definir em conjunto com os atores. Saía-se do quadro das luta de classe para o quadro de uma revolução cultural e comportamental, que pedia uma nova relação com o corpo, com o sexo, entre os gêneros, uma ressignificação de nossa existência social e individual. Gracias Señor despertou muita polêmica; antigos aliados do Oficina deixaram de apoiá-lo, consi-derando que as novas propostas eram alienadas, pequeno-burguesas e politicamente equivocadas. Lembro-me de tomar o partido do Teatro Oficina nessas polarizações ideológicas. Mais afeita às experiências de renovação teatral que o grupo propunha com suas montagens do que preocu-pada com os rumos do pensamento e da cultura de esquerda no país, eu, naquele instante, fazia parte de uma juventude atraída pela contracultura, parte integrante de uma não muito nobre “geração da ditadura” e, por conta disso, muito próxima daqueles elementos que compunham o coro do Oficina. Isto explica o fato de que em 1975, ao iniciar uma carreira de atriz, tenha acaba-do por integrar o grupo Oficina, que, na ocasião, reagrupava-se em Lisboa, depois de sofrer uma repressão multifacetada no Brasil2: política, moral e criminal. Em Portugal, com o nome de Ofi cina Samba, apoiado pelo governo português e pelo Movi-Em Portugal, com o nome de Oficina Samba, apoiado pelo governo português e pelo Movi-mento das Forças Armadas – MFA, o grupo buscava fazer um teatro político engajado na chamada Revolução dos Cravos. O Oficina Samba propunha a vida em comunidade, ao mesmo tempo em que reencenava o Carnaval do Povo nas ruas, praças e fábricas de um Portugal em estado de ebulição. Esta cena representava a continuidade do caminho iniciado com Roda Viva, o da “desmi-metização” da ação teatral, pela atuação do coro, que se convertia em força social e em modelo utópico de vida comunitária possível. Para integrar-se na Comunidade Ofi cina Samba, era necessária a imersão em códigos e referên-Para integrar-se na Comunidade Oficina Samba, era necessária a imersão em códigos e referên-cias bastante complexos e específicos que, de alguma forma, alimentavam os processos identitá-rios do grupo e das pessoas dentro do grupo. Era preciso compreender o impasse criado com a mudança política no país através do golpe de 64, assumir a derrota das esquerdas e estar disposto a defender uma nova possibilidade de criação, atuação e comunicação com o público para “iniciar-se” no Oficina. O trabalho adquiria um sentido forte de resistência, a partir de polarizações tanto estéticas quanto políticas, o que se dava por meio da consolidação e elaboração da experiência passada do grupo. O ponto de partida era a morte do teatro convencional, aquele que sacraliza a divisão palco-plateia, teatro e vida, cultivando a passividade do espectador. Desde 1971, o Oficina convertera-se em laboratório de procedimentos teatrais aliados a estratégias de sobrevivência, e a continuidade desses laboratórios era a referência comum, unificadora do grupo de “atores-comunicadores” reunidos em Portugal, já que muitos nem se conheciam, por terem sido integrantes do Oficina em momentos diversos da trajetória do grupo. Em Portugal, no entanto, embora o coro já estivesse “no poder”, a transição ainda estava a caminho e revelava-se difícil. Uma dualidade se mantinha quando o grupo optava por atuar tanto no teatro convencional quanto em espaços não convencionais: comunidades, teatros de fábrica, universidades, praças públicas. O grupo trabalhava em Lisboa, com os dois referenciais simulta-neamente: no palco, a apresentação da “peça do século” (sic), Galileu Galilei, enquanto a cena do Carnaval do Povo, protagonizada pelo coro, expandia-se e adquiria independência nas interven-ções fora dos teatros. A decisão de remontar Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, repetia uma antiga estratégia do Oficina: a volta temporária para o teatro de palco e plateia como uma espécie de recuo estratégico.

2. Em 1974, o teatro Oficina foi tomado pela polícia e vários membros do grupo foram presos, acusados de tráfico e

consumo de drogas.

Continuava, contudo, a busca por uma nova forma de teatro. De fato, o trabalho do Oficina em Portugal caracterizava-se por uma certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que encenava Galileu Galilei num dos principais teatros públicos de Lisboa, em meio a veludos e dourados, abria o espetáculo com uma “gira” de pontos de umbanda: um Ogã de Candomblé tinha a função de conjurar as forças espirituais do candomblé e da umbanda para favorecer as “incorporações” dos personagens nos “atores-cavalos”. Um “texto” paralelo corria ao lado do texto de Brecht. O percurso do grupo se fazia na intersecção entre uma tradição teatral consolidada e o trabalho coletivo e inovador já iniciado no Brasil.

Figura 1:

Carnaval do Povo, no Teatro São Luis- Lisboa, 1975.

Figura 2:

Carnaval do Povo, nas ruas de Lisboa,1975.

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Já de volta ao Brasil, na condição de público e fora do grupo, continuei acompanhando a luta do Oficina até que o grupo encontrasse a forma de intervenção teatral que, nos anos oitenta/noven-ta, permitiu-lhe renascer, dando os primeiros sinais de novamente ocupar um espaço importante na cena político-cultural e, o que é mais importante, mostrar-se capaz de constituir um público próprio e de estabelecer um verdadeiro diálogo com amplas esferas da sociedade. Sabendo estar fora do âmbito desse texto traçar os detalhes dessa trajetória, passo a descrever o trabalho do grupo já em 2005, quando volto a acompanhar os ensaios da adaptação de Os Ser-tões, na qualidade de observadora, intrigada e querendo compreender o sentido dessa nova fase. Meu interesse é estimulado pela suposição de que a trajetória do Oficina é capaz de revelar co-nexões fundamentais entre os dramas sociais e as performances estéticas, o que me leva a analisar sua trajetória fora dos parâmetros da crítica teatral, ou mesmo da história do teatro, e a tentar compreender sua experiência teatral enquanto performance, entendida aqui como lugar onde o ritual, o teatro e o drama social convergem, conversam e interagem. Com esse breve e parcial histórico do grupo, tive apenas a intenção de evidenciar uma mudan-Com esse breve e parcial histórico do grupo, tive apenas a intenção de evidenciar uma mudan-ça irreversível de eixo no trabalho do Oficina, constituída pela emergência e centralidade do coro, processo que até hoje marca o trabalho do grupo. Reconhecida a sua importância no percurso do Teatro Oficina, interessei-me por compreender como o grupo iria operar no caso específico da encenação do texto de Euclides da Cunha. O trabalho de campo consistiu basicamente no acompanhamento dos ensaios. Mal conhecen-O trabalho de campo consistiu basicamente no acompanhamento dos ensaios. Mal conhecen-do os atuais integrantes do grupo, pude assumir um papel de observadora, todavia sem conseguir deixar de ser afetada por um turbilhão de memórias, significados e lembranças corporais. Come-cei a fazer um caderno de anotações, onde registrava as derivações ou concentrações de sentido que a própria encenação ia me propondo no confronto com as memórias pessoais. Apesar da heterogeneidade dos materiais observados – soluções cênicas, metodologias de tra-Apesar da heterogeneidade dos materiais observados – soluções cênicas, metodologias de tra-balho de voz e de corpo, interpretação do texto, adaptação da obra literária, relação entre as pes-soas, os conflitos entre elas, as identidades, as tensões, o processo de escolha de elenco, a atuação junto à mídia, ao governo e à sociedade civil, a composição do público, suas formas de participa-ção etc. –, percebia que a encenação de Os Sertões mobilizava antigas fidelidades, “reatualizava” identidades e sentidos, como se o Oficina construísse um sistema de códigos passíveis de combi-nações diversas, combinando e recombinando elementos já trabalhados em outras encenações. Seria, então, possível perceber focos originários e multiplicadores dessas miríades de significados? Haveria um legado das experiências passadas do grupo, passível de ser circunscrito e identificado?Contrariando certas interpretações da história do grupo, acredito que o Teatro Oficina, longe de acabar em 1974, prosseguiu em suas experiências até transformar-se no Oficina Uzyna Uzona dos dias de hoje. Dessa trajetória ininterrupta origina-se uma forma nova de conceber a atuação teatral, tanto no que diz respeito aos meios quanto aos fins. Podemos identificar na proeminência progressiva do coro a recusa em separar a eficácia do entretenimento; a relativização da repre-sentação em nome do “te-ato”, da celebração e do ritual; a abertura à praça pública, à efetividade das ruas. Os signifi cados das encenações, das intervenções no espaço, das ações ritualizadas seriam múl-Os significados das encenações, das intervenções no espaço, das ações ritualizadas seriam múl-tiplos e móveis, adaptar-se-iam aos diversos contextos e propostas do grupo, mas teriam como eixo um tipo de relação definido entre a cena e o drama social e, o que me parece de grande interesse, esta parece ter sido uma condição meticulosamente construída e aperfeiçoada em cada fase do Oficina, um trabalho lento de elaboração de uma atuação cênica que estivesse no limiar entre o teatro, o ritual e o drama social. Absolutamente singular e específico daquele momento era a opção pela adaptação da obra de Euclides da Cunha. A princípio, fiquei totalmente absorvida pela observação da “leitura” que o grupo fazia do texto de Euclides da Cunha. Não se tratava do tradicional “trabalho de mesa”, da tradicional leitura conjunta do texto pelos atores. Cada ator possuía um exemplar da adaptação,

um xerox encadernado, que pendia com barbante dos ombros de todos eles. O texto era objeto de cena, passível de contrarregragem, um adereço fundamental com o qual o ator performava a sua “leitura”. O que não posso deixar de observar é que, embora o procedimento se apresentasse como inicial e provisório, já que os atores nem tinham ainda decorado o texto, ele se movia num ter-reno previamente preparado. Os atores podiam manipular o texto em cena porque a cena já nascia dupla: era a expressão de significados construídos a partir do texto de Euclides da Cunha, mas, simultaneamente, a expressão pública das próprias atuações: “leituras” de Os Sertões por adolescentes e crianças do Projeto Bixigão3, atores negros “lendo” a obra de Euclides da Cunha, o próprio Zé Celso (um diretor-ator e sua dança-combate) na cidade, “lendo” episódios marcantes para a constituição de identidades brasileiras, era isso que o “coro-grupo” falava nas margens do texto de Euclides. Não era casual a importância do texto nos ensaios, pois era sua construção que possibilitava o trânsito horizontal do coro às personagens e vice-versa, sem que uma hierarquia viesse a se estabelecer entre os dois polos. O texto euclidiano ora aparecia na boca de algum personagem, ora de outro, ora aparecia na voz dos diversos coros: coro dos jagunços, coro de soldados, “coro-plantas”, “coro-topografias”, “coro-entidades abstratas” (república, teatro), “coro-seres mitológicos” (Penteu, Mandrágoras). A redistribuição do texto entre os mais diversos sujeitos, nem sempre humanos, nem sempre minerais, nem sempre definidos sexualmente, permitia que o jogo cênico se estabelecesse a partir de um único ponto fixo, o aqui e agora da performance, o preciso lugar onde se encontravam teatro e ritual. Na montagem de Os Sertões, o texto de Euclides é vocalizado quase integralmente através de deslocamentos importantes na passagem para a situação performática. A configuração de um protagonista possibilita que público e atores reencarnem entidades introjetadas e passíveis de serem restauradas reflexivamente, retomando a postura crítica, debochada e livre inaugurada com O Rei da Vela. Os personagens de Os Sertões, Floriano Peixoto, Moreira Cezar, Tamarindo, Pageú, equivalem a Heloisa de Lesbos, Abelardo I e II, em O Rei da Vela, personagens sem nenhum valor transcendente, mas portadores de uma carga reflexiva intensa. O texto de Os Sertões presta-se, no Oficina, a vocalizações rimadas que dão origem a composi-ções musicais de um caráter muito específico, poemas musicados, decerto inspirados em Oswald de Andrade que, no livro Poesias Reunidas, parodiando as “Indústrias Reunidas Matarazzo”, diz que suas poesias eram mais poderosas do que as megaindústrias de São Paulo. O Oficina acredita inteiramente que, com a poesia, é possível derrubar paredes , construir teatros e encaminhar-se para o poder maior, “o poder de Presença Humana diante da Presença do Poder Maquínico, o poder das máquinas de desejo como as do Teatro Oficina diante das máquinas castradoras e de especulação do capitalismo” (Corrêa, José Celso, 2006) Como bem apontou José da Costa,

(...) ao vocalizar o texto de Euclides e incorporá-lo teatralmente, o elenco do Teatro Oficina não tem pruri-

dos de fender aquele texto, de mostrar, ao lado da obra original, a si próprio (suas visões e posicionamentos)

como um outro texto paralelo e interagente, contrapontual em relação ao texto lido (2006, p. 5).

Essa leitura de Os Sertões abre novas possibilidades semânticas às margens do texto euclidiano, construindo uma dramaticidade capaz de purgar a derrota de Canudos e todos os outros massa-cres, atuais ou passados, através da instauração de um pulmão criativo e livre no meio do bairro do Bexiga. A meu ver, constitui-se, neste momento, o elo que faltava: o deslocamento fatal do lugar

3. Projeto de atuação social que consiste em oficinas gratuitas para crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, ministra-

das por componentes do Oficina. Os participantes dessas oficinas participam do elenco da peça..

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do teatro para a praça pública, para a Ágora, com a proposta de construção de um “teatro de estádio”, bandeira levantada por Oswald de Andrade que, latente por muitos anos, converte-se, agora, em proposta central do Oficina. O choque com interesses contrários é imediato, justamente os interesses da indústria do en-O choque com interesses contrários é imediato, justamente os interesses da indústria do en-tretenimento, representados pelo Grupo Silvio Santos, que planeja fazer um shopping center na mesma área que o Oficina pretende erigir o seu teatro de Estádio. A partir de então um novo texto performático se impõe, no qual os “personagens” são advogados, arquitetos, moradores de rua, membros da escola de samba Vai-Vai, da comunidade judaica, da prefeitura, urbanistas, o ministro da cultura, os órgãos de proteção ao patrimônio. O “desmassacre” deve ser tão amplo quanto o massacre. A dissolução dos protagonistas clássicos permite um mergulho no aqui e agora da performan-ce a partir de um corpo previamente desconstruído pelo ritual báquico. De posse de um novo esqueleto, o “trans-homem”, atualiza o poder de intervenção do teatro no drama social. A luta pelo espaço do teatro, uma constante na trajetória do Oficina, toma a forma da proposta atual de construção de um teatro para as multidões. O processo de montagem de Os Sertões durou anos, alternando ensaios fechados e ensaios-manifestações, abertos. Alguns destes ensaios abertos constroem grandes cenas, que só se rea-lizam com o público. O que define a abertura do ensaio é a natureza do ritual a ser realizado, e o ritual é sempre conjuração de forças em torno de um projeto coletivo de transformação. A atuação política e a atuação cênica unem-se em um ritual desmascarador e “desmassacrador”. Mais uma vez, a tradição do Oficina é posta em ação e confunde-se com o movimento do mundo.

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ReferênciasARTAUD, Antonin. Le théatre et son double. Paris: Gallimard, 1964.

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Disponível em: http://www2.uol.com.br/teatroficina/roteiros. Acessado em: 2006.

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Entrevista com Zé Celso. Disponível em

http://www2.uol.com.br/teatroficina/novosite/arquivo/rei%20da%20vela/reidavela.htm. Acessado em: 2006

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PEIXOTO, Fernando. Teatro Oficina (1958-1982). Trajetória de uma rebeldia cultural. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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De Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória Teatral

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A Imagem na Improvisação:A Dança do Imprevisto

CARLA SABRINA CUNHA *

ResumoO artigo propõe uma reflexão sobre a improvisação na dança a partir do Butoh e sua relação com a imagem sômato-

sensitiva do organismo do ator/dançarino segundo a neurologia, delineando aspectos do teatro contemporâneo. O texto

apresenta, ainda, o relato de parte do processo criativo utilizado na pesquisa de doutorado “Corpo/Imagem na Improvisa-

ção”, em andamento na linha de pesquisa Processos Composicionais para a Cena, do PPG – Arte da UnB.

Palavras-chave: Dança. Improvisação. Butoh. Imagem.

AbstractThe article proposes a reflection on improvisation in dance from Butoh and its relationship with the somatosensory image of the

body of the performer according to neurology, outlining aspects of contemporary theater. The text also presents the report of part

of the creative process used for the ongoing doctoral research Body/Image in Improvisation, in the line of research of Compositional

Processes for the Stage at PPG – Arte/UnB.

Keywords: Dance. Improvisation. Butoh. Image

* A autora graduou-se em Interpretação Teatral pela Escola de Comunicações e Artes da USP, onde também obteve seu

título de Mestre em Artes Cênicas. Na Itália, trabalhou junto a cooperativas sociais e à Danceability. Estudou Butoh com

grandes mestres, entre eles Yoshito Ohno, e participou da Cia Jinen Group de Butoh de Atsushi Takenouchi. Atualmente é

doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, sob a orientação da Profª Drª Soraia

Silva, e professora do curso de Licenciatura em Dança no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília

(IFB). Seu trabalho recente (2010) pode ser visto e comentado no site: www.perpetuailusao.com.br.

[email protected].

… e era meu avô já surdo querendo ouvir os pássaros pintados no

céu da igreja.

(Carlos Drumond de Andrade)

1 – As inquietações

A sala vazia e a sensação de fluidez e confiança na condução da aula para os movimentos que estão por existir no espaço. Uma aula aparentemente não preparada. Como preparar uma aula de improvisação? A partir do uso de imagens; um corpo que tradu-Como preparar uma aula de improvisação? A partir do uso de imagens; um corpo que tradu-za imagens. Como propor este tema dignificando o processo criativo implícito na improvisação, tornando-a a própria dança? Quais são os segredos da improvisação? Qual é, finalmente, a técnica

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escondida da dança do imprevisto? Talvez a vida nos dê respostas. O quanto é possível viver o cotidiano de forma programada? Será possível? Será que a maioria das pessoas acredita ser possível tal programação? Se os dois elementos mais importantes da vida, nascimento e morte, não podem ser totalmen-Se os dois elementos mais importantes da vida, nascimento e morte, não podem ser totalmen-te programados, o que dirá o decorrer do tempo existente entre eles. A dança não existe dissociada da vida. Os corpos são os mesmos, aquele que vive, aquele que se expressa através de movimentos. Só dança realmente quem isso compreende. Não se trata de produzir passos, mas de abrir espaço para novos passos a cada dia, a cada dança. Seria o significado da dança inerente ao significado de improvisação? Supomos que a dança contemporânea seja assim representada: dança > improvisação. A dança contém a improvisação, mesmo se não claramente expressa. O primeiro movimento é sempre inédito, ainda que mais tarde venha a ser coreografado, mas o seu nascimento teve origem no cérebro do dançarino e, nesse exato momento, era já improviso, era já vida, era já imagem.

2 – A Imagem na Neurologia e no Butoh

Segundo o neurologista António Damásio (2000), temos a seguinte definição de imagem:

(…) imagens como padrões mentais com uma estrutura construída com os sinais provenientes de cada uma

das modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva. A modalidade sômato-

sensitiva (a palavra provém do grego e significa “corpo”) inclui várias formas de percepção: tato, temperatura,

dor, e muscular, visceral e vestibular (sic). A palava imagem não se refere apenas a imagem visual, e também

não há nada de estático nas imagens (…) As imagens de todas as modalidades “retratam” processos e en-

tidades de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também “retratam” as propriedades físicas das

entidades, bem como as ações destas. (p. 402)

Partindo das proposições acima e de minha experiência em dança Butoh, dei início à pesquisa da imagem na improvisação e comecei o Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação no antigo Núcleo de Dança da UnB, atual centro de vivência.

Figura 1:

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e

Marcos Menezes.

Os encontros aconteceram uma vez por semana, com duas horas de duração, os participantes foram tanto alunos da UnB como pessoas da comunidade. Interessa notar que o grupo era mul-tidisciplinar, pois agregava alunos de artes plásticas, estudantes de psicologia, atores e dançarinos: um campo formado de corpos e linguagens artísticas variadas, possibilitando maior riqueza de informações para o estudo da improvisação, partindo da dança Butoh. O Butoh, que se consagrou na década de 60 com Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, propõe uma dança cujo movimento parta de impulsos internos do dançarino/ator, um reconhecimento do corpo japonês em meio a uma sociedade marcada por guerras e por mudanças de costumes influenciadas pelo ocidente. A negação de Hijikata da dança clássica ocidental e da dança tradi-cional japonesa, que se traduzia em uma repetição de símbolos através das gerações, resultou no Butoh, em que “(...) forma indica uma qualidade e uma quantidade de energia provenientes de modelos naturais, que provocam no corpo uma transformação sensorial percebida externa-mente como uma imagem capaz de invocar no ator e no público um correspondente conteúdo emotivo” (D’ORAZI, 2001, p.119, tradução nossa). Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno trabalhavam com o uso da imagem na dança. Segundo D’Orazi, o primeiro enfatizou “que o trabalho corporal torna possível a materialização da imagem”, en-quanto o segundo “privilegiou o conteúdo emotivo”. “Para Hijikata é o trabalho físico o pro-dutor da imagem; Ohno acreditava que a mudança mental produzia também a mudança física” (D’ORAZI, 2001, p. 119, tradução nossa). Assim, deu-se o nascimento de uma nova linguagem, também chamada de body revolution (re-volução do corpo), em que o movimento é proveniente de impulsos interiores, como se cada parte do corpo constituísse um universo à parte do organismo, adquirindo vida própria através das imagens que permeiam o corpo, como pregam alguns dançarinos de Butoh, um deles Atsushi Takenouchi1, para quem dançar a morte é uma forma de oração, sobretudo dançar em espaços marcados por acontecimentos trágicos, na busca de redenção e purificação do local2. Na aula de Butoh conduzida por Takenouchi a presença da imagem é uma constante para o estímulo da dança no corpo do intérprete. Aqui, esbarramos no conceito fundamental de ser dançado, que significa ser dançado por um elemento estranho ao corpo, neste caso as imagens sugeridas através da fala de Takenouchi durante toda a improvisação. O deixar-se conduzir por tais imagens, que num primeiro momento são imagens vindas do exterior do corpo dançante – a voz do proponente –, requer do dançarino o que Soraia Maria Silva (2007) chamou de dansintersemiotização, que seria a tradução corporal feita pelo artista da dança ao entrar em contato com outras artes como literatura, música, imagem, escultura. Silva (2007) indica o início deste processo no ocidente:

(...)com o aparecimento da dança/teatro na Alemanha, surgida a patir dos estudos de Laban (início do sécu-

lo XX) e de outras grandes personalidades da dança e do teatro, como Isadora Duncan, Stanislávsky, Mary

Wigmam, Kurt Jooss, Nijinsky, Oscar Sclemer e outros. Na nova estética, a organização cênica espaço – tem-

poral por meio do movimento passou a priorizar a teatralidade corporal. Essa teatralidade corporal procura

evidenciar o gesto expressivo que busca, na figura metafórica cênica criada, uma resposta corporal (mais

concreta ou abstrata, ligada à sensação, ao sentimento ou à emoção) provocada pela interação imagética

com outras linguagens. (p. 93)

A dansintersemiotização e o ser dançado representam elementos fundamentais que caracteri-zam a improvisação no âmbito da presente pesquisa.

1. Atsushi Takenouchi, dançarino e professor de Butoh, realiza seminários pelo mundo e foi discípulo de Kasuo Ohno. Tive

meu primeiro contato com aulas de Butoh com A. Takenouchi, o que me permitiu reunir um vasto material sob a forma de

anotações durante os anos em que morei na Europa, experiência que estou usando na presente pesquisa.

2. Por exemplo, quando Takenouchi dança em espaços que, na época do nazismo, serviram de campo de concentração na

Polônia, ou no ex- presídio medieval de Vicopisano, performance da qual fiz parte, na província de Pisa, Itália.

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4 – Processo

Na improvisação através da imagem temos: 4.1 – A imagem proposta Chamamos a imagem proposta, seja através da fala ou da fotografi a, de imagem contemplati-Chamamos a imagem proposta, seja através da fala ou da fotografia, de imagem contemplati-va, aquela que exerce uma sensação, emoção ou sentimento como primeiro impacto no corpo do ator/dançarino. 4.2 – A apropriação da imagem pelo corpo Chamamos a apropriação da imagem que se dá pelo reconhecimento e localização desta no corpo, envolvendo pele, ossos, nervos e musculatura, de imagem afetiva. 4.3 – A tradução da imagem no espaço (dansintersemiotização) e o ser dançado Chamamos a tradução da imagem no espaço e a capacidade de ser dançado de imagem invi-sível. Esta compreende e, ao mesmo tempo, transcende a expressão do corpo e seus desenhos no espaço, atingindo um estado poético. Aqui, o improvisador está em cena. O que se vê resulta da imagem que dança o ator/dançarino, unido à percepção do público. A imagem invisível é silenciosa e muitas vezes de difícil explicação por meio de palavras, está na atmosfera criada e faz a conexão entre o ator/ dançarino e o público. Por não se tratar de uma linguagem escrita ou de uma narrativa corporal que dê indicações para que o público pos-sa entender uma mensagem específica, situamos o trabalho realizado no referido laboratório como pertencente às formulações do teatro pós-dramático, que, segundo Lehmann (2007), considera que a recepção “manifesta a exigência de substituir à percepção uniformizante e ex-cludente uma percepção aberta e fragmentada” (p.138). O público compreende, sim, mas talvez não como está acostumado, a partir de uma narrativa linear : a hierarquia dos recursos teatrais sofre alterações, o texto não ocupa lugar central, os elementos cênicos utilizados se alternam em sua sobrevalência. (LEHMANN, 2007)

3 – Improvisação e Imagem

A escolha do Butoh para pesquisar a imagem na improvisação foi de fundamental importância por tratar-se de uma dança de improvisação por excelência, em que o uso da imagem enquanto propulsora do movimento e criadora da atmosfera respeita a individualidade de cada corpo em seu modo de expressão. Encontramos em Giorgio Salerno (1998) o depoimento da dançarina Yomiko Yoshioka sobre o seu percurso de aprendizagem no Butoh. Em suas palavras, o movimento não pode ser ape-nas determinado pela vontade e pela consciência; são múltiplos os elementos que influenciam o agir, por isso “mais do que dançar, se é dançado; mais do que mostrar algo, transforma-se nesse algo”(p.165, tradução nossa). Não se trata de anular a razão, mas de afirmar “(...) a pró-pria identidade e, ao mesmo tempo, ser capaz de negá-la” (Kazuo Ohno, apud SALERNO, 1998, p.166, tradução nossa). O conceito de ser dançado3 nos remete à ideia de um corpo-recipiente, de um objeto que contém, que abriga vários outros objetos ou possibilidades, de um corpo que, além de abrigar, possui a capacidade de transformar-se no ente abrigado. Assim, partimos para a execução de exercícios específi cos visando à refl exão constante so-Assim, partimos para a execução de exercícios específicos visando à reflexão constante so-bre o comportamento do ator/dançarino. Cada movimento é integrado ao fluxo de pensa-mento e às construções imagéticas que se dão durante todo o tempo: uma demanda física de concentração absoluta.

3. Esta conclusão surge a partir do trabalho prático que venho desenvolvendo junto aos participantes no Laboratório

Corpo/Imagem na Improvisação.

Figura 2

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dança: Sabrina Cunha

A imagem invisível que estamos experimentando como elemento resultante da improvisação nas aulas do laboratório identifica-se com o tipo de recepção proposta por Lehmann (2007, p.140), chamada de imagem de sonho, e indica não uma reação coletiva comum, mas uma liber-dade e uma reação arbitrária, uma comunidade do diferente. Ainda que o público esteja diante de uma mesma improvisação, as perspectivas de cada um não estão fundidas em um todo comum, e a compreensão disso transforma a necessidade de entender o que se vê em necessi-dade de compartilhar diferentes percepções do que foi visto. Jerzy Grotowiski (2001), na fase de sua pesquisa do teatro como veículo, aprofunda-se na questão da importância da recepção quando o espectador torna-se testemunha; a partir de então, o trabalho deixa de ter um caráter espetacular para ocupar um território mais íntimo e humano, em que previlegia-se a troca, o compartilhar um momento, o encontro entre ator e testemunhas. Neste ponto encontramos uma semelhança com o Butoh, que também toca um território íntimo de quem o pratica e, por consequência, de quem o assiste, expondo em cena uma humanidade muitas vezes bizarra e de grande força expressiva, criando uma atmosfera comum habitada por várias possibilidades imagéticas.

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5 – Por Enquanto...

O improvisador concentra em si, em seu corpo, as possibilidades de construção da sua dança, o lugar primeiro de sua criação é seu corpo: “uma obra in situ produz o lugar que ela mesma ocupa e se confunde com ele” (CAUQUELIN, 2008, p.74). Improvisar, tocar o sutil, dançar improvisando uma sensibilidade que transcende os olhares cotidianos que habitam a nossa vida, significa encontrar um lugar adequado dentro do corpo. Este lugar é indeterminado e móvel, respeita uma lei instável que abriga os estados mentais, sen-soriais e de humor, influenciando na qualidade expressiva dos movimentos. Importa saber que este lugar, apesar de ser influenciável, é independente, portanto uma vez nele, pode-se exercer escolhas. Encontrar o lugar é o primeiro passo para a improvisação.

Figura 1:

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dançam: as mãos.

Dentro deste lugar que supomos ser o corpo, elemento vasto, ainda há que se encontrar o lugar de estar no momento da improvisação com a imagem, em uma busca do lugar dentro do lugar. Seria uma espécie de lugar certo onde concentrar a atenção para abandonar-se ao movi-mento recôndito, deixando emergir o movimento acordado pela imagem e ser por ela dançado. Estamos no caminho, no por enquanto, investigando a dança do imprevisto que sabemos situ-ada entre o nascimento e a morte.

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DAMASIO, Antonio. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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GROTOWSKI, Jerzy. Il Teatro laboratorium di Jerzy Grotowski 1959-1969. Pontedera: Fondazione Pontedera Teatro, 2001.

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós dramático. São Paulo: Cosac Nayf, 2007.

SALERNO, Giorgio. Suoni del corpo segni del cuore. Milano: Costa&Nolan, 1998.

SILVA, Soraia. Poemadançando: Gilka Machado e Eros Volúsia. Brasília: UnB Editora, 2007.

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O Rei Lear, suas Referências e Níveis

SUZI FRANKL SPERBER *

ResumoO artigo analisa o Rei Lear, de William Shakespeare, a partir da noção de teatro pós-dramático, com o intuito de ressaltar

as novidades introduzidas pelo teatro elisabetano, especialmente aquelas que surgem no Rei Lear, tais como: os sentidos do

título e suas origens; as relações com o Eclesiastes, tomando como tópicos “as ilusões da vida humana”, “precariedade da

vida humana, sabedoria e insensatez”, “as vicissitudes do presente”, “justiça e retribuição”,“exploração e concorrência des-

leal”, “a solidão e seus inconvenientes”, “o poder político e seus riscos”, “sábio e as arbitrariedades da corte” e “as previsões

da adversidade”. Ao longo do texto, haverá referências ao tema da loucura1 e a períodos históricos.

Palavras-chave: Rei Lear. William Shakespeare. Eclesiastes. Criação a partir de um mote. Loucura. História.

AbstractAn analysis of King Lear by William Shakespeare, departing from the concept of post-dramatic theater, in order to assert the origi-

nality of Elizabethan drama, more specifically as introduced in King Lear, the senses of the title and its origins and the relations with

Ecclesiastes, taking as topics “illusions of human life”; “precariousness of human life, wisdom and folly”; “vicissitudes of the present”;

“justice and retribution”; “exploitation and unfair competition”; “loneliness and its drawbacks”; “political power and its risks”; “the

wise man and the arbitrariness in the court” and “predictions of adversity”. The analysis will include the theme of madness, as found

in Erasmus of Rotterdam, as well as referential approaches to History.

Keywords: King Lear. William Shakespeare. Ecclesiastes. Creation of a play from a motto. Madness. History.

* Mestre e Doutora em Teoria Literária, USP. Livre-docente em Teoria Literária junto ao DTL-UNICAMP. Publicou 8 pre-

fácios; 160 artigos, alguns traduzidos p. japonês, alemão, espanhol e francês; 20 livros, dentre os quais Língua e Literatura: o

professor pede a palavra. São Paulo: Cortez, 1981; Sperber (org.) Re-edição de Natalika, de Guilherme de Almeida, Campinas:

Editora Unicamp, 1993 ; Sperber (org.) Re-edição de Guilherme de Almeida. Encantamento. Acaso. Você. Campinas: Editora

UNICAMP, 1997; Adna Candido de Paula e Suzi Frankl Sperber. Teoria Literária e Hermenêutica Ricœuriana. Um diálogo possí-

vel. Dourados-MS: Editora UFGD, 2010; Sperber, S.F. (org.). Presença do sagrado na literatura. Campinas: IEL-UNICAMP, 2011

(no prelo); traduções de poesia. Docente por três semestres de cursos na Universidade de Colônia - Alemanha. Bolsa Pro-

dutividade Pesquisa – CNPq. Coordenadora e pesquisadora do Projeto Temático “Memória(s) e pequenas percepções”.

Coordenadora do GT Literatura e Sagrado-ANPOLL. Líder Círculo de Estudos Avançados em Dramaturgia – CNPq.

1. cf. Erasmo de Rotterdam.

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Introdução

Um Salto no Tempo

Em sua obra Postdramatisches Theater, publicada em 1999, na Alemanha, Hans-Thies Lehmann retoma antigas teses teatrais e afirma que, do teatro elisabetano ao teatro burguês do final do século XX, a cena tem funcionado sempre dentro dos princípios da mímesis e da catharsis aristo-télica2. Apesar de vir sustentando a função de porta-voz da esfera crítica pública desde o século XX, no século XXI o teatro estaria à procura de si mesmo, tentando reconstruir um diálogo com o seu público. Lehmann pondera que, se o teatro perdeu seu fascínio frente aos grandes meios de comu-nicação de massa, por outro lado surgem, ao final do século XX, formas de ação teatral que pesquisam novas possibilidades de comunicação contrárias ao poder absoluto das pseudoesferas públicas na mídia, estabelecendo espaços próprios de comunicação diferenciada. Disto decorre o surgimento de uma mescla de linguagens, a incorporação de diferentes artes e a tônica na relação com o público. Esta nova forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua per-cepção ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários destes textos, ou destas montagens, permeiam uma reescritura cênica que engloba os aspectos textuais, cenográficos e os problemas propostos por um jogo não necessariamente psicológico. Esta é a teoria do teatro pós-dramático. De fato, as pesquisas no teatro pós-dramático dão ênfase a situações e não a ações. Isto tem levado a uma recepção difícil, quando não perturbada. Considero que tanto o rótulo para estas novas pesquisas – o teatro pós-dramático – como as próprias situações postas em cena guardam algo do que está no nome: o drama (mesmo sendo pós-drama). Portanto, a novidade, mesmo negando o drama (ou a tragédia) ou procurando auto-nomia em meio ao entrelaçamento de diferentes artes, não perde as referências fundamentais da tragédia e do drama, fundadas na existência humana, que poderão ser chamadas de miméticas e catárticas, ou que estão a ela associadas: vida e morte, nostalgia do encontro e da relação amoro-sa. Por este motivo estão presentes referências das grandes peças teatrais do passado, que traba-lharam com uma proposta de totalidade, com a ilusão e com a reprodução do mundo.

O Rei Lear em Análise

A referência ao olhar de Lehmann parecerá estar completamente fora de lugar num estudo do Rei Lear, de William Shakespeare. O grande Autor trabalha com totalidade, ilusão e reprodução do mundo, que constituem o modelo do teatro dramático elisabetano por excelência. Em que medida, porém, poderíamos considerar que existe uma (muitas, provavelmente) leitura (leituras) possível(eis) de Lear em que o triângulo drama/ação/imitação cede espaço para uma comunica-ção diferenciada, que mescla linguagens advindas de referências muito diferentes entre si, situadas para além do que se aceita e se entende como teatro elizabetano? Uma leitura que incorpore pelo menos uma arte dentro da arte (o teatro), incluindo dialogismos, diferentes vozes, com uma estratégia cênica e dramática cuja tônica resida na relação com o público, na mescla de influências e em uma costura que pareça histórica, mas que passeie entre a magia da poesia, criadora de

2. “Para sintetizar melhor seu conceito, Lehmann observa que totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem o

modelo do teatro dramático. E que a realidade do novo teatro começa exatamente com a desaparição do triângulo dra-

ma, ação, imitação, o que acontece em escala considerável apenas nas décadas finais do século XX.” (GUINSBURG, Jacó e

FERNANDES, Silvia [orgs.]. O Pós-dramatico: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 13).

imagens, e a crueza da realidade, no contraponto gerador de outra coisa, outro sentido, ancestral e, ao mesmo tempo, moderno? A análise que se propõe caminhará a partir da compreensão do Rei Lear. Só então, com todas as referências necessárias, voltarei à reflexão sobre a hipótese de Lehmann (Lehmann, 1999). A cena teatral caracterizou-se, durante o chamado teatro dramático, por interpretar textos pré-escritos. Segundo a crítica contemporânea que revê os clássicos, os textos pré-escritos se-riam de difícil interpretação justamente por não contarem com a encenação, que corresponde a uma leitura e interpretação. Daí textos pré-escritos e não improvisados serem vistos por alguns como menos tangíveis, compreensíveis, por objetivarem conflitos psicológicos e morais entre as personagens, conflitos que sempre contêm não ditos e interstícios que afundam no insconsciente. Este seria, a meu parecer, um quadro temático narrativo que serviria mais ao cinema e à televisão que ao teatro. As noções de tragédia e de comédia, aparentemente separadas, já começam a se mesclar tanto na Idade Média, nas festas carnavalescas, como nos Autos de Gil Vicente e no teatro shakespeareano e elisabetano. Em qualquer pesquisa que se faça, encontramos a indicação das mesclas entre tragédia e comédia e o comentário sobre a ironia shakespeareana. Portanto, neste universo teatral, os princípios da mímesis e da catarse não vigoram3. O cômico do Rei Lear, com a loucura do rei caído em desgraça pela traição de suas filhas, a quem, por afeto, havia presenteado com todo seu patrimônio, proporcionava o alívio cômico ao público, fazendo ressaltar, como pelo efeito do chiaroscuro, a tragédia pessoal de Lear, e a nacional, da Inglaterra maltrapilha por causa da guerra civil. Já teríamos aí um dado que afetaria a hipótese do teatro pós-dramático. Sem in-corporação de TV, tela, projeções, o teatro shakespeareano incorpora o teatro dentro do teatro e, dependendo da encenação, elementos circenses propostos pelo Bobo. A poesia materializa a magia, sem deixar de incorporar, em encenações contemporâneas, projeções que caracterizam a modernidade, ou, por relações associativas, a poesia mágica desperta imagens no receptor, que vê aquilo que é sugerido pela palavra. O pequeno grupo de estudos campineiro “Literatura e Dramaturgia” reuniu-se diversas vezes para discutir a peça Rei Lear, de William Shakespeare. Muitos aspectos foram levantados, muitas análises foram propostas. Dentre elas, sugeri que Shakespeare, ao redigir e encenar o Rei Lear, possivelmente teve, no horizonte de provocações ou de estímulos, dois textos relevantes: o Ecle-siastes (ou Coélet), do Velho Testamento, e o Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam. As refe-rências reconhecidas como contemporâneas a Shakespeare incluem a história da Grã Bretanha, especialmente aquela encontrada nas Crônicas de Raphael Holinshed (1587) e na Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, de 1135. Shakespeare cria, nesta tragédia, personagens que serão atingidos seja pela cobiça, prepotência, orgulho, inveja, ganância, traição, indiferença, antiética, seja por outros atributos do gênero. Seria uma punição? As personagens reúnem mais de uma destas características, sempre combinadas com outros vícios, contrapostos a variações do que seria o Bom e o Bem. Em ata da reunião inicial do grupo de estudos acima referido apareceram os seguintes temas: • Divisão das personagens em três modalidades ou grupos: aquele que parece ser aquilo que não é (Edmundo); aquele que age segundo aquilo que de fato é (Cordélia); aquele que parece ser outro para conseguir o que quer (Kent). • O papel do “desaparecimento” do Bobo na obra. • A densidade da obra que, por seu caráter moderno, engloba temáticas metalinguísticas, fi lo-• A densidade da obra que, por seu caráter moderno, engloba temáticas metalinguísticas, filo-sóficas, sociais, etnológicas, históricas, políticas, psicológicas, psicanalíticas e religiosas. Há o teatro

3. O teatro elizabetano tem seu auge de 1562 a 1642. As peças caracterizam-se pela mistura sistemática do sério e do

cômico, da ironia e da realidade, dos gêneros; pelo abandono das unidades aristotélicas clássicas; pela variedade na escolha

dos temas, tirados da mitologia, das literaturas medieval e renascentista e da história; por uma linguagem que mistura o

verso mais refinado à prosa mais descontraída.

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dentro do teatro. Uma das personagens da peça é sacrificada: Cordelia. O nome Cordelia proviria, presumivelmente, da peça The Faerie Queene (1590) de Edmund Spenser, em que também há uma personagem chamada Cordelia, que morre enforcada, como no Rei Lear. • A existência de um possível anagrama, no qual LEAR seria uma variação de REAL.

O Título e o Nome da Personagem

Começo pelo nome da personagem-título da peça. A personagem histórica na qual a peça está baseada seria o legendário Leir of Britain, um rei céltico mitológico pré-romano. A grafia do nome deste rei céltico é LEIR. Diz-se, também, que existe uma relação entre Leir e os deuses marinhos galeses e irlandeses Llyr e Ler (derivado do Céltico Leros, que quer dizer mar)4. Segundo Geoffrey of Monmouth, estudioso da obra, Leir é o epônimo do fundador de Leicester (Legra-ceaster ou Ligora-ceaster, em anglo-saxão), conhecido como Cair Leir, em galês, sendo Leir um hidrônimo derivado do celta Ligera ou Ligora. A que vêm tais considerações? Apesar destas referências quer históricas, quer mitológicas, o nome grafado por Shakespeare é diferente das três variantes encon-tradas. Proponho que esta grafia diferente – LEAR – pode corresponder a uma prática retórica dos sécs. XV e XVI (desde cerca de 1430 até cerca de 1530), usada por poetas menores (chama-dos de rhétoriqueurs), que produziram suas obras no período compreendido entre as de François Villon e as de Clément Marot. A poesia dos rhétoriqueurs se caracterizava pelo uso de artifícios como as metáforas, jogos poéticos como acrósticos, palíndromos, rimas equivocadas, a aliteração, a annominatio, a amplificatio e a anáfora, forçados que eram a usar formas congeladas, fixas. A fim de conseguir transmitir alguma nuança, tais poetas usavam anagramas que indiciavam um sentido importante para o texto. Considero que, se Shakespeare não grafou Leir, ou Llyr, ou Ler, é porque queria que seu leitor (do programa, por exemplo) percebesse que LEAR era anagrama de REAL. João Guimarães Rosa usa práticas paralelas em Grande Sertão: Veredas (“Rosmes!” é anagrama de “Semsor”). O nome de Cordelia também é referência histórica. Segundo Geoffrey of Monmouth, a rainha Cordelia foi uma legendária rainha dos Bretãos. Era a filha mais nova e preferida do já referido Leir e a segunda na sucessão da Bretanha, irmã mais nova de Goneril e Regan. Quando Leir decidiu dividir seu reino entre suas filhas e seus maridos, Cordelia recusou-se a bajulá-lo. Decepcionado e indignado, visto que acostumado à bajulação na Corte, Leir a puniu, não lhe dando nenhuma porção de seu reino, portanto retirando o seu dote e negando-lhe, inclusive, as suas bênçãos a qualquer eventual marido. Aganippus, o rei dos Francos, quis casar-se com Cordelia apesar da atitude de Leir, manifestando seu apreço pelo caráter da princesa. Segundo os dados históricos levantados, Cor-delia mudou-se com seu marido para a Gália (que poderia ser um território abrangendo a França, Luxemburgo e a Bélgica), onde teria vivido por muitos anos. Leir teria sido exilado da Bretanha e fugido para a Gália. Procurou, então, restaurar seu trono, com a ajuda do exército gaulês. Foram bem sucedidos e Leir pôde reinar. Três anos depois da morte de Leir, Aganippus morreu. Cordelia voltou, então, para a Bretanha e foi coroada rainha. Ela reinou durante cinco anos. Neste período, seus sobri-nhos tornaram-se maiores de idade e decidiram derrubá-la do trono. Ela lutou pessoalmente em di-versas batalhas, acabou sendo capturada e presa pelos sobrinhos, suicidando-se pela decepção e dor. O levantamento histórico, normalmente apresentado como fonte para a criação de Shakespe-O levantamento histórico, normalmente apresentado como fonte para a criação de Shakespe-are, interessa-me para analisar as diferenças entre o relato histórico e o ficcional: a personagem Cordelia da peça teria reagido de forma semelhante à Cordelia histórica, mas o desenlace de cada história difere. Talvez este desenlace guarde conexões com o REAL indiciado por Lear. O que significa este REAL?

4. Os nomes não estão etimologicamente relacionados.

A Vítima Sacrificial

Observei que Cordelia, a preferida, a amada, a invejada, é sacrificada. Por que Cordelia se torna um bode expiatório? Trata-se da vítima sacrificial, necessária, segundo René Girard (GIRARD, 1961, 11-12), para estancar a violência paroxística e indiscriminada desencadeada pela indireta e anterior manifestação de amor e apreço de Lear por Cordelia – e pelo erro trágico da mesma, ao comentar que seu amor pelo pai não seria extraordinário, mas correspondente ao esperado de um amor filial. A verdade corresponde ao real, ao bom, ao bem. A verdade é desejável. As irmãs de Cordelia, contudo, já se haviam manifestado – e bajulado o rei. Imitá-la levaria ao desastre de suas ambições. Era necessário, portanto, que as irmãs desqualificassem os valores de Cordelia. A verdade é carac-terizada como correspondente à falta de amor. A hipocrisia e a mentira se apresentam como o real. Neste jogo de inversões, também são atingidos os súditos leais. A lealdade precisa ser sacrificada, antes que revelada. “O desejo adulto não difere em nada do desejo infantil, salvo que o adulto, em particular em nosso contexto cultural, normalmente tem vergonha de se modelar por outro; ele tem medo de revelar sua falta de ser. Declara-se altamente satisfeito consigo mesmo; apresenta-se como modelo para os outros; cada um repete: “imitai-me”, a fim de dissimular sua própria imitação” (GIRARD, 1972, 204-205). A imitação deveria proceder do valor ético de Cordelia. Como os valo-res foram invertidos, a temática corresponderá ao “mundo às avessas”, estudado inicialmente por Ernst Robert Curtius e, depois, por Mikhail Bakhtin. O avesso da verdade, da lealdade, da hones-tidade corresponderá à imitação invertida, às avessas, consistindo na mentira, traição, deslealdade, lisonja, desonestidade. Há outro objeto do desejo, mais forte e de outra natureza: é o poder. As irmãs e Edmund dese-Há outro objeto do desejo, mais forte e de outra natureza: é o poder. As irmãs e Edmund dese-jam o poder absoluto. Segundo Girard (GIRARD, 2000, 84), caso sujeito e modelo se encontrem em um mesmo mundo, o objeto desejado pelo sujeito está ao alcance do modelo, e instaura-se a rivalidade. Esta rivalidade é tal que se reforça por si mesma:

Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simé-

trica; pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-

lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de

seu imitador.(GIRARD, 2000, 87).

À medida que esse mecanismo se desenvolve, os dois tornam-se cada vez mais semelhantes e indiferenciados e o conflito torna-se cada vez maior, chegando a um ponto em que o objeto do desejo desaparece e resta a rivalidade. Nesse jogo mimético entre os rivais,

[...] caminha-se sempre para uma simetria maior e, consequentemente, para mais conflito, já que a simetria só

pode produzir duplos. Os duplos surgem com o desaparecimento do objeto, e, no calor da rivalidade, os rivais

se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos... Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armaze-

nando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções...(GIRARD, 2000, 87).

O desencadeamento desse mecanismo mimético torna-se cada vez mais atraente para os ob-O desencadeamento desse mecanismo mimético torna-se cada vez mais atraente para os ob-servadores: a disputa pelo objeto valoriza-o, provocando a cobiça, até que, com o crescimento da disputa, o objeto sai do campo da consciência, desaparecendo “dilacerado e destruído no conflito”, diz Girard (GIRARD, 2000, 87). A proliferação de duplos é acompanhada de um aumento crescente de violência. Todos os mem-A proliferação de duplos é acompanhada de um aumento crescente de violência. Todos os mem-bros da comunidade são envolvidos no jogo mimético, que desemboca no que o autor denomina de “crise sacrificial”: a luta de todos contra todos, o mergulho de toda a sociedade numa situação caótica e indiferenciada, o desaparecimento da ordem cultural.

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O que estanca essa violência indiscriminada é a canalização gradual das energias conflituosas sobre um único indivíduo, o bode expiatório, sobre quem a comunidade inteira deposita a res-ponsabilidade da desordem. Na peça, há dois causadores da desordem: Lear e Cordelia. Lear, por dividir o reino, o que o enfraquece e o leva a ser expulso, exilado. O reino passa a ser regido pelos genros, mais do que pela filhas de Lear. Emasculado por lhe ser negada a guarda de direito a um rei, Lear enlouquece. Sobram, ainda, os três ambiciosos: Goneril, Reagan e Edmund, que lutarão entre si, desqualificando um ao outro, armando embustes para eliminar o rival. Restam, também, os súditos fiéis, que procuram preservar o poder de Lear. Estes têm o seu modelo de legislador, de rei justo, que é o mesmo, Lear. Como eles não são Lear e como seu modelo precisa de sua ajuda, ele não precisa ser desejado por eles. Daí ser desnecessária a competição entre os súditos leais. Estes serão ameaçados, ainda, pelos súditos desleais e rivais. Os súditos fiéis são o Conde de Kent, o Conde de Gloucester e Edgar, filho legítimo de Gloucester, que também serão bodes expiatórios. Logo, aos olhos dos invejosos e desejosos do objeto cobiçado – o Bem e a Justiça, encarnados, sobretudo, em Cordelia –, os súditos fiéis também precisarão ser punidos. Gloucester é expulso, depois de ser cegado. Kent é expulso e decide submergir na corte, vestindo-se como mendigo, a fim de proteger seu rei. Edgar precisa fugir, porque é acusado pelo meio-irmão de que-rer envenenar o pai. A própria Cordelia menciona seu erro (no sentido de hamartía):

Cordelia: We are not the first

Who, with best meaning, have incurr’d the worst.

For thee, oppressed king, am I cast down;

Myself could else out-frown false fortune’s frown. 5(SHAKESPEARE, 1955, 938 – KingLear, Ato V, Cena III, 3-6)

Como Cordelia voltou ao reino, ela será o último bode expiatório de Edmund, que mandará matá-la e tentará apresentar o assassinato como suicídio (esta parte do enredo imaginário de Edmund corresponde à história real da Cordelia histórica, porém só o suicídio seria semelhante e não as demais circunstâncias). Edmund precisava fazê-lo para garantir seu poder. Quando este se arrepende, porque sabe que morrerá, portanto não se beneficiará do assassinato, já é tarde.

5. CORDÉLIA — Os primeiros não somos a ficar sobre braseiros com boas intenções. Rei oprimido, por ti, somente, falta-

me o sentido, que eu, por mim, poderia, carrancuda, enfrentar as carrancas da Fortuna.

6. Refiro-me, neste ponto, ao conceito do homo sacer, de Giorgio Agamben, que se encontra na obra de mesmo nome

(2002).

Ilusão

A ação de Cordelia sublinha o ilusório do mundo. Seria o REAL a VERDADE? Seria a loucura? A ação do Rei Lear poderia indiciar a ilusão de desejar a manifestação absoluta de amor, que não lhe basta e que o leva à loucura. Poderíamos pensar que o erro trágico foi cometido por Lear, mas o erro trágico é mesmo a ilusão, a vida como ilusão. O conceito barroco de ilusão, um tanto inesperado em Shakespeare, é temático, por exemplo, em Calderón de la Barca (La vida es sueño). A canalização gradual das energias conflituosas sobre uma única pessoa, bode expiatório, sobre quem toda a comunidade deposita a responsabilidade da desordem, leva a violências outras e à criação de bodes expiatórios intermediários, numa multiplicação indicativa de que cada gesto, cada ganância, cada jogo pelo poder é ilusório. O assassinato de cada bode expiatório reforça, na comunidade, a sensação de que a ordem e a paz voltam a reinar e a crença de que existem responsáveis por aquele estado de coisas – um de cada vez – o bode expiatório da hora. Como Cordelia é a culpada máxima, aquela que é sagrada e que poderá ser morta sem julgamento6,

ela adquire um poder sobre-humano aos olhos de Lear – e a nossos olhos de espectadores –, já que não só foi capaz de provocar a derrocada de todo um sistema social como, uma vez morta, poderá haver um novo pacto e uma nova ordem social. Tanto em Shakespeare como em Coélet, a mulher, mesmo tendo coração, é suspensa e questionada por sua falta de força, sendo entendida como unidade só quando relacionada a um parceiro, a um homem. Por este motivo, Cordélia não poderá ser salva. Tal aspecto relaciona-se a uma nova consciência da noção de família em uma sociedade aparentemente monárquica, noção essa que aparece em Shakespeare avant la lettre. A noção de família como núcleo central e molecular da sociedade provém de Hobbes7, cujo Leviatã (obra publicada em 1651) é posterior a Shakespeare. O núcleo da sociedade deveria ser ocupado pela figura masculina – o pater familias – análoga às noções de “cidadão” e de “urbs”, que provêm do Iluminismo e do conceito de Citoyen (HOBBES8). Na obra shakespeareana, especialmente no Rei Lear, o poder é estruturado de tal forma que é preciso haver um pater famílias. Este, porém, é Lear, anagrama de Real, portanto seu avesso, caracterizado como ingênuo, vaidoso, frívolo e pre-sunçoso: isto é, louco. Lemos no Elogio da Loucura:

Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim (Loucura), no fim dos seus dias! Mas, tenho pena deles e

estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da me-

tamorfose, os que estão prestes a morrer : Fetonte transforma-se em cisne, Alcion em pássaro, etc. Também

eu, até certo ponto, imito essas benéficas divindades. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da

sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio:

Os velhos são duas vezes crianças. (ROTTERDAM, 2002, 8)

“Os velhos são duas vezes crianças” é um provérbio que se aplica fundamentalmente a Lear, que se veste de trapos e se coroa com flores. Esta imagem é graciosa em dois sentidos: tem graça, sendo engraçada, irônica, ao mesmo tempo em que tem graça, numa acepção teológica, enraizada tanto no Judaísmo como no Cristianismo. Nessa última acepção, o termo é definido como um dom gratuito e sobrenatural concedido por Deus à humanidade, que consiste em prover todos os bens necessários à sua existência e à sua salvação. Esta dádiva é motivada unicamente pela mi-sericórdia e pelo amor de Deus à humanidade, logo, movida por Sua iniciativa própria, ainda que em resposta a algum pedido a Ele dirigido. A Graça de Lear tem conotação sagrada, ainda que de maneira “torta”: misto de Graça e de riso, ironia, a figura de Lear não chega a ser trágica. Sua força vem de uma grandeza metafísica, mística, e, ao mesmo tempo, francamente Humana. Em outro nível, a loucura de Lear e a cegueira de Gloucester dão-se as mãos. A culpa narcísica de ambos explica porque foram enganados – e maltratados. A culpa narcísica é o elo entre a ca-racterização das personagens do Rei Lear, o Eclesiastes e o sentido patriarcal, dilacerado na socie-dade descrita na tragédia. A noção protetora da família, da comunidade e, por extensão, do mundo político, é suspensa, destruída. Shakespeare, mesmo apresentando a monarquia, já critica a moral burguesa. Esta, forjada a partir dos séculos XVI-XVII, considera a família como correspondente ao

7. A propriedade, para Hobbes (1995), é uma espécie de prescrição de regras ditadas pela soberania, através das quais o

homem deve saber quais os bens de que pode gozar, e quais as atitudes que pode tomar para com os outros. A proprie-

dade, portanto, é uma lei civil e, como tal, uma segurança para o cidadão. Mas essa esperança (salus populi) nasce a partir

de uma demarcação dos limites da propriedade privada: os valores entendidos como meum e tuum. A limitação do “meu”

e do “teu” faz com que o que exista além do “meu” seja o estranho, que não deve desfazer a harmonia da composição

fechada. O meum torna-se valor sublime, quase um extremo de maniqueísmo incontido. “Essas regras da propriedade (ou

meum e tuum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis” (HOBBES, 1995,

cap. XVII)

8. HOBBES, Thomas. Leviathan. Chapter xx: “Of dominion paternal and despotical”. In http://www.infidels.org/library/historical/

thomas_hobbes/leviathan.html. Acesso em fevereiro 2010.

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menor núcleo detentor e definidor de propriedade, núcleo que precisa ser conservado devido ao valor conservador da propriedade – o que, desde o século XVI, é atribuído ao papel indispensável da mulher, nos tratados de casamento9. Ora, tudo o que venha a perturbar ou comprometer esta segurança e harmonia é loucura, ou disparate, merecendo censura. Um “outro” que perturbe a autonomia absoluta deste substituto do estado político deve ser, pelo menos, criticado. Para a mo-ral burguesa, a noção de perda de identidade está fortemente vinculada ao papel social e político do indivíduo. Diz o Eclesiastes, mais recentemente nomeado segundo seu nome hebraico, Coélet, acerca da sabedoria e da insensatez: “Depois examinei a sabedoria, a tolice e a insensatez, pensan-do: ‘O que fará o rei que virá depois de mim?’ Fará o que já foi feito” (Eclesiastes 2.12, 2002). Neste ponto, retomo a hipótese de Coélet (O Eclesiastes) como ponto de partida para a cria-ção do Rei Lear. Observei que a sabedoria leva vantagem sobre a insensatez, como a luz sobre as trevas. A peça apresenta Lear louco e Gloucester cego. Edmund levará vantagem sobre a insensa-tez do rei, e sobre a cegueira do pai, que só quer morrer.

13 Então percebi que a vantagem da sabedoria sobre a insensatez é a vantagem da luz sobre as trevas. 14 O

sábio tem os olhos abertos, e o insensato caminha na escuridão. Mas logo notei que ambos têm o mesmo

destino.15 Então pensei: «Vou ter o mesmo destino que o insensato! Para que me tornei sábio?» E concluí que tam-

bém isso é fugaz (ilusão). 16 De fato, a lembrança do sábio desaparece para sempre, como a do insensato.

Bem logo tudo ficará esquecido: o sábio morre da mesma forma que o insensato. (Eclesiastes 2.13-16, 2002)

É o caso de Cordelia, que morrerá, apesar de sábia, assim como do Bobo – nada bobo –, que também é assassinado, enforcado. Diversos outros trechos são aplicáveis ao Rei Lear:

3.16 Observei outra coisa debaixo do sol: Em lugar do direito, encontra-se a injustiça; e, em lugar do justo,

encontra-se o injusto. 17 E concluí que o justo e o injusto estão debaixo do julgamento de Deus, porque

existe um tempo para cada coisa e um julgamento para cada ação. (Eclesiastes 3.16-17, 2002)

4.13 Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não aceita mais conselho, 14 mes-

mo que o jovem tenha saído da prisão para reinar, e ainda que tenha nascido mendigo no reino. (Eclesiastes

4.13-14, 2002)

8. 5 Quem obedece às ordens, não incorre em pena alguma. A mente do sábio conhece o tempo e o jul-

gamento, 6 porque para cada coisa há um tempo e um julgamento. Sobre o homem pesa um grande mal: 7

ninguém sabe qual será o seu futuro. De fato, quem pode saber o que vai acontecer? 8 Ninguém é capaz de

dominar sua própria respiração: o dia da morte está fora do nosso domínio. Da luta na vida ninguém pode

fugir ; nem a maldade salva aquele que a comete. (Eclesiastes 8.5-8, 2002)

Edmund, o mau, de fato também morre.

4.2 Todos têm o mesmo destino, tanto o justo como o injusto, o bom e o mau, o puro e o impuro, quem

sacrifica e quem não sacrifica. O bom é tal qual o pecador, e quem jura é igual a quem evita o juramento. 3

O mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol é que todos têm o mesmo destino. Além disso, o co-

ração dos homens está cheio de maldade, e a insensatez se abriga no coração deles durante todo o tempo

que vivem. Depois eles se dirigem para junto dos mortos. (Eclesiastes 4.2-3, 2002)

9. Em verdade, o papel da mulher de mantenedora dos bens familiares existe desde um dos textos ancestrais de nosso

mundo ocidental: na Odisséia, este é um dos papéis de Penélope.

10.16 Ai de você, país governado por um jovem, e cujos príncipes se banqueteiam desde o amanhecer. 17 Feliz

de você, país governado por um rei nobre, e cujos príncipes comem na hora certa para se refazerem, e não

para se banquetearem. 20 Não fale mal do rei, nem mesmo em pensamento, e não fale mal do poderoso, nem

dentro do seu próprio quarto: um passarinho poderá ouvir, e um ser alado qualquer poderia contar o que

você falou. (Eclesiastes 10.16-17; 20, 2002)

A roda da ambição, que gera vítimas e algozes, revela que tanto elas como os sábios vivem em ilusão. Ser mau para obter bens e poder é ilusão, assim como ser bom e sábio leva ao mesmo fim, sendo ilusão também: “1.8Toda explicação fica pela metade, pois o homem não consegue terminá-la. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se farta de ouvir” (Eclesiastes 1.8, 2002). No Eclesiastes, lemos ainda: “19 O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novo será feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade” (Eclesiastes 1.9, 2002). O que vemos no Rei Lear foi teorizado por René Girard (Girard, 1961): o desejo mimético e a vítima sacrificial não são novidades. Ao mesmo tempo, o argumento de “o que aconteceu, de novo acontecerá” presta-se a justificar referências históricas diversas (há outras mais, além das expostas), tão frequentemente usadas por Shakespeare: “1.10 Às vezes, ouvimos dizer : ‘Veja: esta é uma coisa nova!’ Mas ela já existiu em outros tempos, muito antes de nós” (Eclesiastes 1.9-10, 2002). Perguntaram-me se o Eclesiastes não poderia ser aplicado a toda a obra de Shakespeare. No Rei Lear, observamos a abordagem de diferentes tópicos do Eclesiastes, como “as ilusões da vida humana”; a “precariedade da vida humana, sabedoria e insensatez”; “as vicissitudes do presente”; o tema da “justiça e retribuição”; “a exploração e a concorrência desleal”; “a solidão e seus inconve-nientes”; “o poder político e seus riscos”; “o sábio e as arbitrariedades da corte” e “as previsões da adversidade”. Em outras obras shakespeareanas não observo a frequência de temas paralelos. Em Hamlet, a personagem-título passa por vicissitudes que poderiam ser entendidas como provindas da ambição e da cobiça, portanto da ilusão. Mas, sem dúvida, o tema forte da peça é a culpa. Minha hipótese é a de que o Eclesiastes10 teria fornecido uma espécie de mote, inspirando a escrita do Rei Lear: “1 Palavras de Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém”.2 “Ó suprema fugacidade”, diz Coélet, “ó suprema fugacidade! Tudo é fugaz!” (Eclesiastes 1.1-2, 2002)11. Outras forças culturais ou históricas do tempo de Shakespeare teriam reforçado o mote e a inspiração, inclusive na bus-ca do Real – oposto à Ilusão e à fugacidade. Por isso a criação shakespeareana provoca emoção significativa no público e, sem dúvida, mesmo tendo sido criada e apresentada na primeira década do séc. XVII, constitui-se como uma arte total, transversal, inspirada por universos diferentes e por recursos plurais. Cada cena tem uma ligação com a anterior e com a posterior, mas a cena da tempestade tem uma força e uma autonomia vinculadas ao sagrado, à Graça, distinguindo-a das demais. Mesmo a cena da morte de Lear, que sublinha a sua transformação, também marca uma distinção em relação ao luxo e ao poder ambicionados em toda a peça. Volto, assim, a Lehmann. É óbvio que o Rei Lear não é atravessado pelas artes da imagem, pelo cinema, pelas artes pláticas e pelo circo, como ocorre no teatro pós-dramático. Se levarmos em conta a caracterização de Erich Auerbach do teatro elisabetano, veremos que nele se observa uma consciência mais livre: as desgraças transcendem o herói e devastam toda a sociedade; existe uma multiplicidade de temas (como, no Rei Lear, a ambição e a inveja, a desobediência civil e o seu contrário, a crítica explícita e a loucura, tudo com notável liberdade de movimentos e girando em torno do mote da ilusão); além da história nacional, outros gêneros estão presentes, como histórias fabulosas, novelas e contos de fadas. Assim, neste mundo diversificado, há espaço para a fantasia e a magia, que se manifestam pela poesia, ação e encenação livre não mimética, como, por

10. Sem dúvida, Shakespeare cria a partir de diversos estímulos. Ele não deixa de ter como base para os dramas históricos

as crônicas de Edward Hall (1548) e Raphael Holinshed (1587).

11. Há traduções do Eclesiastes, como a presente, que usa o conceito da fugacidade. Outras, repisam o da ilusão.

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exemplo, na extraordinária cena em que Gloucester é guiado pelo filho até a borda de um pre-cipício – conforme o projeto de Gloucester, mas inventado por Edgar, seu filho legítimo –, numa cena mágica e quase trágica.

Act 4. Scene VI

SCENE VI. Fields near Dover.

Enter GLOUCESTER, and EDGAR dressed like a peasant.

GLOUCESTER — When shall we come to the top of that

same hill?

EDGAR — You do climb up it now: look, how we labour.

GLOUCESTER — Methinks the ground is even.

EDGAR — Horrible steep. Hark, do you hear the sea?

GLOUCESTER — No, truly.

EDGAR — Why, then, your other senses grow imperfect

by your eyes’ anguish.

GLOUCESTER — So may it be, indeed: methinks thy voice

is alter’d; and thou speak’st in better phrase and matter

than thou didst.

EDGAR — You’re much deceived: in nothing am I changed

but in my garments.

GLOUCESTER — Methinks you’re better spoken.

EDGAR — Come on, sir ; here’s the place: stand still. How

fearful and dizzy ‘tis, to cast one’s eyes so low! The crows

and choughs that wing the midway air show scarce so

gross as beetles: half way down hangs one that gathers

samphire, dreadful trade! Methinks he seems no bigger

than his head: the fishermen, that walk upon the beach,

appear like mice; and yond tall anchoring bark, diminish’d

to her cock; her cock, a buoy almost too small for sight:

the murmuring surge, that on the unnumber’d idle pebbles

chafes, cannot be heard so high. I’ll look no more; lest my

brain turn, and the deficient sight topple down headlong.

GLOUCESTER — Set me where you stand.

EDGAR — Give me your hand: you are now within a foot

of the extreme verge: for all beneath the moon would I not

leap upright.

Ato 4, Cena VI

Região perto de Dover. Entram Gloster e Edgar vestido

de camponês.

GLOSTER — Quando chegaremos ao topo desta colina?

EDGAR — Já a estás escalando. Vê, vê como nos dá

trabalho.

GLOSTER — Tenho a impressão de que o terreno é plano.

EDGAR — Horrivelmente abrupto. Não ouves o barulho

do mar?

GLOSTER — Em verdade, não.

EDGAR — Então é porque os teus outros sentidos

ficaram imperfeitos devido à angústia dos olhos.

GLOSTER — É possível. Parece-me que tens a voz mudada

e que falas agora com mais sentido e melhor expressão.

EDGAR — É puro engano de tua parte; em nada estou

mudado, a não ser por estas vestes.

GLOSTER — Não; parece-me que te exprimes melhor.

EDGAR — Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Fica

quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar para

baixo desta distância. Como os corvos e as gralhas que

voam neste espaço intermediário ficam pequeninos como

besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que

procura funcho. Profissão arriscada! Tenho a impressão

de que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que

andam pela praia parecem ratos; a barcaça, ali ancorada,

parece tão pequena como o próprio escaler, e o barquinho

ficou parecendo uma boia, pequenina demais para ser

vista. As ondas agitadas, que batem nas inumeráveis e

preguiçosas pedras, não se fazem ouvir, tal é esta altura.

Não consigo olhar assim por mais tempo: tenho medo de

ter vertigens, e temo perder o equilíbrio e cair de cabeça

para baixo.

GLOSTER — Coloca-me no ponto em que te encontras.

GLOUCESTER — Let go my hand. Here, friend’s, another

purse; in it a jewel well worth a poor man’s taking: fairies

and gods prosper it with thee! Go thou farther off; bid me

farewell, and let me hear thee going.

EDGAR — Now fare you well, good sir.

GLOUCESTER — With all my heart.

EDGAR — Why I do trifle thus with his despair is done

to cure it.

GLOUCESTER — [Kneeling] O you mighty gods! This

world I do renounce, and, in your sights, shake patiently

my great affliction off: if I could bear it longer, and not fall

to quarrel with your great opposeless wills, my snuff and

loathed part of nature should burn itself out. If Edgar live, O,

bless him! Now, fellow, fare thee well. He falls forward

EDGAR — Gone, sir : farewell. And yet I know not how

conceit may rob the treasury of life, when life itself yields

to the theft: had he been where he thought, by this, had

thought been past. Alive or dead? Ho, you sir! friend! Hear

you, sir! speak! Thus might he pass indeed: yet he revives.

What are you, sir?

GLOUCESTER — Away, and let me die.

EDGAR — Hadst thou been aught but gossamer, feath-

ers, air, so many fathom down precipitating, thou’dst shiver’d

like an egg: but thou dost breathe; hast heavy substance;

bleed’st not; speak’st; art sound. Ten masts at each make not

the altitude which thou hast perpendicularly fell: thy life’s a

miracle. Speak yet again.

GLOUCESTER — But have I fall’n, or no?

EDGAR — From the dread summit of this chalky bourn.

Look up a-height; the shrill-gorged lark so far Cannot be

seen or heard: do but look up.

EDGAR — Dai-me a mão; só um passo vos separa da

borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não

saltara dessa altura.

GLOSTER — Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa;

dentro dela há uma joia que merece ficar com algum pobre.

Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize

adeus, pois desejo ouvir teus passos.

EDGAR — Passai bem, bom senhor.

GLOSTER — Agradecido de todo coração.

EDGAR (à parte) — A brincadeira que faço com a

desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.

GLOSTER — Ó deuses grandes, renuncio a este mundo

e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu grande

sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem

luta abrir com vossa vontade irresistível, este abjeto morrão

da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com

vida estiver meu Edgar, oh! abençoai-o! E agora, amigo,

adeus. (Cai para a frente).

EDGAR — Adeus, senhor; já fui embora. (À parte)

Conceber não posso como a imaginação roubar consegue

da vida a rara joia, quando a própria vida se presta ao

roubo. Se se achasse onde pensava estar, neste momento

pensar já não pudera. Vivo ou morto? (A Gloster) Então,

senhor! Amigo! Estais me ouvindo? Poderia morrer... Mas

não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me.

GLOSTER — Vai-te embora e deixa-me morrer.

EDGAR — Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha,

leve pluma, caindo assim de tantas braças do alto, partido

já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesado

corpo, não perdes sangue, estás inteiro, filas. Dez mastros

superpostos não bastaram para medir a altura de onde

caíste perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida.

Vamos, fala!

GLOSTER — Mas eu caí ou não?

EDGAR — Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha

para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de garganta

estridente. Olha para o alto!

(SHAKESPEARE, 1955, 933-34).

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Edgar inventa o local da perdição, criação poética, cênica, fantástica, para que não exista a per-Edgar inventa o local da perdição, criação poética, cênica, fantástica, para que não exista a per-dição. Gloucester, cego, não vê por onde anda e acredita nas palavras que ouve. Nós, receptores, apesar de sabermos que se trata de uma fantasia, construímos mentalmente, magicamente, as imagens suscitadas pelas palavras. A loucura é sabedoria e criação. Este é o REAL. Fruto de um evento dissociativo, a loucura desvela o quanto a cobiça, a ambição, os esforços, a luta pelo poder – aparentemente “normais”, são inúteis, porque ilusórios. Verdade e honestidade, também elas são ilusões, e a reestruturação da sociedade só será possível a partir de uma transformação, de uma purificação, de uma ascese que renove os quadros e elimine das bordas do poder aqueles cuja ação é nefasta. Nesta peça, é preciso que a loucura corresponda a uma trajetória de ascese e que a vítima sacrificial não seja poupada, a fim de que se instaure um novo tempo. Este novo tempo indiciado não depende de catarse: é expresso no texto. É projeção para o futuro. Entre magia, poesia, ironia, sacrifício, paixão e ascese, a mimese reúne o alto e o baixo e vai além, de modo que o receptor não pode viver a catarse. A relação com o público dá-se na surpresa, em certo temor diante do sagrado que humaniza o rei e na lamentação diante da imperfeição humana. A conclusão da peça sublinha ex-pressamente as novas perspectivas:

ALBANY: The weight of this sad time we must obey; / Speak what we feel, not what we ought to say./The

oldest hath borne most: we that are young / Shall never see so much, nor live so long. (King Lear, Ato V, cena

III. SHAKESPEARE, 1955, 942).

Os novos limites precisam ser obedecidos, correspondem ao REAL, mas um real feito de emo-Os novos limites precisam ser obedecidos, correspondem ao REAL, mas um real feito de emo-ção e sem conveniências, diferente, apesar de tudo, daquele dos mais velhos, que viveram mais tempo.

11 As palavras dos sábios são como ferrões, e as sentenças coletadas são como estacas fincadas. Umas e

outras provêm do mesmo pastor. 12 Além disso, meu filho, preste atenção: escrever livros é um trabalho sem

fim, e muito estudo. 13 Fim do discurso. De tudo o que se ouviu o resumo é este: Tema a Deus e observe

seus mandamentos, porque esse é o dever de todo homem. 14 Deus julgará toda obra, até mesmo a que

estiver escondida, seja boa, seja má. (Eclesiastes 12, 11-14, 2002)

Retomo Lehmann, para quem a totalidade, a ilusão e a reprodução do mundo constituem o modelo do teatro dramático. Shakespeare, em Rei Lear, ao por em discussão a ilusão, a concepção do mundo e os seus “valores” como ilusão também, revê a imitação, propõe o fim de um tempo e o começo de uma nova era, formada por seres de outro calibre. O que parece ser dramático, ou trágico, corresponde à trajetória iniciática de Lear. Entendo que, de algum modo, certo tratamento dado à trama e às personagens, à poesia e à palavra, suspendem o triângulo drama/ação/imitação no Rei Lear, revelando que o novíssimo tem ecos e radículas no passado, até num passado de 400 anos atrás.

12. ALBÂNIA — Do tempo triste somos os arrimos; digamos tão-somente o que sentimos. Muito o velho sofreu; mais

desgraçada nossa velhice não será em nada

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Page 66: revista VIS

ARTE E TECNOLOGIA

Page 67: revista VIS

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Interfaces Computacionais:Perspectivas Poéticas

CLEOMAR ROCHA *

ResumoO texto discute as poéticas das interfaces, a partir da caracterização das interfaces computacionais, e analisa alguns traba-

lhos em arte tecnológica, buscando esclarecer de que modo a poética é instaurada.

Palavras-chave: Poética.Interfaces computacionais. Arte tecnológica.

AbstractThe paper discusses the poetics of interfaces, the characterization of computer interfaces, and it examines some works of techno-

logical art and how the poetic is established.

Keywords: Poetic. Computer interface. Technological art.

* Possui graduação em Letras pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iporá (1991), mestrado em Artes pela

Universidade de Brasília (1997), doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da

Bahia (2004) e pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atualmente é professor adjun-

to da Universidade Federal de Goiás e pós-doutorando em Estudos Culturais pelo Programa Avançado de Cultura Con-

temporânea da UFRJ. Tem experiência nas áreas de Artes, Comunicação e Design, atuando principalmente nos seguintes

temas: design de interfaces, comunicação mediada por computador, educação a distância e arte tecnológica.

Interfaces Computacionais

A despeito dos vários usos do termo interface, que por vezes significa articulação, intersecção, des-dobramento, suporte, fronteira, abrangência, e tantos outros, admite-se que o vocábulo, muito em voga e quase um coringa, tome assento aqui como interface computacional, cujo sentido mais aceito é de ser a parte de um sistema computacional e seu software que as pessoas podem ver, ouvir, tocar e com que podem conversar, direta ou indiretamente, sendo composto por dois componentes: en-trada e saída de dados (GALITZ, 2002). Mas, não raro, como apontado, deparamo-nos com sentidos diversos para o termo, quase sempre com base na relação etimológica: inter (entre) + face (superfí-cie), aquilo que se encontra entre duas superfícies. Noutras tantas acepções, interface é um lugar ou ambiente onde elementos se encontram (LAUREL, 1990; SANTAELLA, 2003; ROCHA, 2003), em clara referência ao processo interativo, admitindo-se que usuário e sistema agem na interface. Contudo, as interfaces computacionais não se configuram como lugar, embora a metáfora de espaço-informação possa conduzir a este pensamento. Aliás, metáfora talvez seja o principal recur-so de linguagem nos ambientes computacionais, sendo acompanhado de perto pela metonímia (ROCHA, 2009). A questão que emerge, neste contexto, é de como somos levados a crer na me-táfora não a compreendendo enquanto tal. A utilização de verbos como navegar, imergir e tantos

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outros, é reflexo da metáfora da cibernética – de origem grega, que significa timoneiro, governa-dor (EPSTEIN, 1986). “Mar de informação” atende ao mesmo princípio. Ocorre, entretanto, que o exercício poético é, desde Aristóteles (1999), o conhecimento que se tem para construir efeitos, ou, melhor dito, o reconhecimento das estratégias de produção do encantamento. É a técnica utilizada para a criação do círculo mágico, ou da magia das artes, que causam, alcançam o encantamento. Se assim o é, a metáfora é recurso da poética, por esta instau-rar aquela, reconhecendo seus efeitos. Criar a magia de uma imagem estereoscópica não significa crer em sua profundidade, como somos conduzidos a crer pela percepção visual. Nisto consiste a magia: fazer crer no que de fato não é. São os recursos técnicos e de linguagem que concretizam a ilusão, conduzindo os leitores, agentes fruidores, interatores, usuários, enfim, a uma condição de entrega, de aceitação. Isto faz com que uma tela renascentista pareça possuir a profundidade que meus olhos são levados a crer existir, mas minha mente sabe inexistente. Isto faz com que uma tela LCD, uma pro-jeção ou uma TV me faça crer que sou eu ali, quando de fato tenho uma representação, um signo. O que há neste espaço que continua sendo bidimensional, mesmo com recursos estereoscópicos, são pontos de luz, emitida ou projetada, ainda que sua modificação no tempo seja conduzida por minhas ações. Então a interface computacional é algo que se posta à minha frente, ou a meus lados, invadindo meu olho com sua luminosidade, prendendo minha atenção com suas respostas automáticas, por vezes estando ao meu redor, na forma de sensores, por vezes me olhando, por meio de câmeras. A interface computacional se converte em várias formas e meios, pois é mecanismo de entrada e saída de dados dos sistemas computacionais. E se é nestes mecanismos que percebo o sistema, sua existência, e mesmo minha representação, então me deixo levar pelo pensamento de que é na interface que eu me encontro com o sistema. Cria-se a ilusão.

Interface de usuário, ponto de contato para o intercâmbio entre humanos e máquinas, pode assumir muitas

formas. É na interface, a ser usada pelo observador ativo de acordo com as regras do mundo particular de

ilusão, que as estruturas de simulação projetadas para comunicação encontram-se com os sentidos humanos.

(GRAU, 2007, 220)

Talvez pudéssemos dizer que é na linha telefônica que eu encontro o amigo com quem eu falo, ao longe. Mas não, apesar de objetivamente esta aproximação ser possível, no campo da experi-ência não o é. Definitivamente, a experiência com um simples telefone não se compara com o uso do Skype. Ao menos não no que se refere a metáforas das interfaces. Objetivamente, porém, a correspondência faz sentido. Igualmente faria sentido identificar a bandeira da Presidência da República hasteada no Planalto, indicando a presença do Presidente, e um ponto de luz verde no Gtalk, indicando que estou disponível para bate-papo. Trata-se de experiências muito diferentes, embora o recurso simbólico aja de modo similar em ambos os exemplos. A poética cria as expe-riências, distinguindo-as, ainda que objetivamente os recursos sejam similares. Voltemos às interfaces computacionais, com vistas a caracterizá-las, uma vez que elas parecem de difícil delimitação, como se observou. É possível caracterizar as interfaces a partir de observa-ções específicas, como apontado:

Caracterização das interfaces

Vínculo a sistemas computacionaisPertencimento a um sistema computacionalTratamento lógico de informação

As interfaces computacionais são parte de um sistema computacional, de modo a cumprir com a função básica de entrada e saída de dados, no fluxo usuário-sistema, o que atende aos dois primeiros itens de sua caracterização. Aqui não se confunde interface com suporte, como, por exemplo, quando se usa cartões com inscrições para visualização de elementos em Realidade Aumentada. Se assim o fosse, cores também passariam a ser interfaces, com o uso do Processing, e mesmo a mão que clica o mouse seria interface. Contudo, ou se admite a visão de Weibel, que afirma que “[n]o interactuamos con el mundo, sólo con la interfaz del mundo” (1996, 25), em que tudo é interface, ou se aceita que interfaces são elementos específicos, como apontado. Acerca do terceiro ponto de caracterização, o tratamento lógico da informação, a defesa argumen-Acerca do terceiro ponto de caracterização, o tratamento lógico da informação, a defesa argumen-ta que a interface não apenas conduz uma informação, comportando-se como meio ou suporte, em um ato físico, mas trata a informação de um modelo semiótico a outro, em uma espécie de tradução:

...a palavra [interface] se refere a softwares que dão forma à interação entre usuário e computador. A interfa-

ce atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra.

(JOHNSON, 2001, 17)

Neste contexto a interface diz do compartilhamento de informações entre usuário e sistema, sem que, no entanto, as partes usem o mesmo código.

Interfaz – Conexión entre dos dispositivos de hardware, entre dos aplicationes o entre un usuario y una

aplicación que falicita el intercambio de dados, mediante la adoción de reglas comnes, físicas o lógicas. Este

dispositivo permite paliar los problemas de incompatibilidad entre do sistemas, actuando como un conversor

que permite la conexión. (GIANNETTI, 2002, 195)

É justamente na tradução do código de máquina, digital, que a ilusão se constrói na e pela interface, a partir de vários procedimentos, com destaque para a metáfora. As línguas naturais, a metáfora visual, os sons, tudo contribui para produção do encantamento, principalmente com a vi-vacidade tida na cor-luz e no feedback instantâneo do sistema, via interatividade, que forja a crença na manipulação direta, no lidar com os próprios signos e não com as interfaces. É neste universo mágico que se estabelecem as poéticas das interfaces, que, per se, já deveriam ser consideradas como tal, mas alcançam aprimoramento no campo artístico, resultando em trabalhos sedutores, instigantes, incômodos, estranhos, belos, em toda a gama de adjetivos que é própria da arte, como campo mágico de construção da experiência sensível.

De Encantamentos

Em um exercício taxionômico, arbitrário por natureza, e não uma verdade incontestável,é possível classificar as interfaces em três categorias, a saber:

Categorias Modo de acionamento ExemploFísicas Acionamento físico-motor Mouse, teclado, joysticks, volantesPerceptivas Acionamento via exteroceptores

– sensações/percepçõesInterface gráfica - GUIInterface sonora – entrada e saídaMarcação – touchscreen

Cognitivas Acionamento por reconhecimento

Telas de toques múltiplos, câmeras, sen-sores de movimento, de gestos, de posi-ção do equipamento e/ou do usuário…

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Considerada a particularidade de a interface ter por função a entrada e saída de dados do sistema ao qual pertence, importa observar que o sistema lança mão de várias interfaces simultaneamen-te, como do teclado para entrada e da tela (GUI – Graphic User Interface) para saída, ou mesmo do mouse ou câmera para entrada e dos sons e imagens projetadas para saída. Isto quer dizer que os sistemas mais complexos adotam as três categorias de interface como padrão. É justamente neste conjunto que se têm as mais exitosas experiências na arte tecnológica, certamente em fun-ção da ilusão tida, uma verdadeira experiência. Alcança-se, com todas as categorias, o pretendido por Normam:

The real problem with the interface is that it is an interface. Interfaces get in the way. I don’t want to focus my ener-

gies on an interface. I want to focus on the job. . . . An interface is an obstacle: it stands between a person and the

system being used. . . . If I were to have my way, we would not see computer interfaces. In fact, we would not see

computers: both the interface and the computer would be invisible, subservient to the task the person was attempt-

ing to accomplish. (NORMAM, 1999, 219)

As poéticas das interfaces ultrapassam justamente esta barreira, fazendo crer que não há in-As poéticas das interfaces ultrapassam justamente esta barreira, fazendo crer que não há in-terfaces ou computadores, somente nós e as informações. É o que ocorre, por exemplo, em Text Rain, de Camille Utterback & Romy Achituv: a experiência sensível diz que nosso corpo se con-verte em obstáculo, de fato, para as letras que caem na forma chuva de palavras. E, aos barrá-las, formamos palavras.

Figura 1:

Text Rain, de Camille Utterback & Romy Achituv

Ou Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo, que, poeticamente, usa estruturas de bambu (que pare-cem mais próximas, orgânicas, naturais), para compor seus braços mecânicos articulados, em cujas extremidades sustenta câmeras e sensores, fazendo os braços se moverem quando estamos pró-ximos, buscando nossos corpos e projetando as imagens nas paredes laterais. O estranhamento é claro, e o encantamento, idem, visto que não estamos diante de padrões numéricos ou de equipa-mentos cheios de fios e placas. São braços que se movem e tentam nos tocar. Lindos braços de bambu que buscam o contato e captam nossa imagem.

Figura 2:

Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo

Figura 3:

Op-Era, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat

O encantamento se faz notar também nas imagens “manipuláveis”, com a rápida resposta do sistema, que recebe a informação de uma interface, processa esta informação e a devolve na for-ma de mudança da imagem ou de elementos desta, como ocorre em Op-Era, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat, uma fascinante experiência de manipulação da imagem-luz, com ilusão de estereoscopia, ou imersão perceptiva na imagem.

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Os jogos poéticos de criação de encantamento seriam, por assim dizer, um percurso na história das linguagens (verbais, visuais, sonoras) como um todo, não apenas das Artes, embora ali eles floresçam mais, certamente com a contribuição de um preparo receptivo. E eis que este preparo também ocorre nas interfaces computacionais, que podem ser tidas como um novo aspecto das linguagens – alguns pesquisadores identificam tratar-se de uma nova linguagem, no que tenho mi-nhas reservas – em função de não serem regidas pelo signo da representação, mas da simulação, embora em vários casos haja, de fato, a primeira. Não é de se estranhar que as poéticas contem-porâneas encontrem nas interfaces um quinhão para seu labor, o que por um lado fascina com maior facilidade o usuário/interator ; de outro, porém, exige experiências sensíveis mais interessan-tes e fundantes do que as interfaces de dispositivos como o iPad podem oferecer.

Perspectivas

As recentes pesquisas para dispositivos computacionais, inclusive nas Artes, observam alguns inte-ressantes aspectos a serem implementados nas interfaces, notadamente na categoria das interfa-ces cognitivas, ainda que não se restrinjam a estas. Se a condução evidente é para a manipulação direta, conceito usado por Engelbart desde os anos 1960, é certo que a liberação do corpo hu-mano de elementos físicos para a alimentação do sistema é caminho seguro. Nada mais de tecla-do ou mouse: as telas, agora sensíveis a múltiplos toques, podem até prescindir do toque. Câmeras e sensores assegurarão que o sistema receba a ordem e processe as informações, em respostas cada vez mais automáticas. Passaremos do toque ao gesto, tendo como resultado experiências interativas mais sedutoras e simples. De outro lado, deixaremos de ver e acionar botões para sermos vistos por estes sensores, por estas câmeras, que reconhecerão variações e quase vontades, o que parecerá mágica. O sistema nos oferecerá água quando observar que temos sede, ao reconhecer aspectos específicos, como a imagem de nossos lábios secos, a mudança sutil de nosso timbre de voz ou o tilintar da língua em uma boca seca. Mas parecerá mágica.

Figura 4:

Telas com manipulação a partir de tecnologia multi-touch

Fonte: http://www.smashingmagazine.com/2007/11/26/monday-inspiration-user-experience-of-the-future/

Poderemos manipular imagens à vontade, via gestos. Ao ensaiar passos de dança, o sistema poderá reconhecer nosso desejo de dançar e nos oferecer a música certa. E, mesmo sabendo que o sistema

analisou nossos passos para criar uma correspondência entre o ritmo e nossas músicas mais ouvidas, alcançando como resultado talvez a música que pensávamos ou outra próxima, parecerá mágica. Poderemos conversar com os sistemas dotados dos recursos de ASR (Automatic speech recog-nition – reconhecimento automático da fala) e de NLU (Natural language understanding – compre-ensão da linguagem natural) (WHITE, 1995) e, mesmo sabendo que são máquinas, preferiremos tratá-las como iguais ou melhores que nós, visto que não apenas a aprovamos no teste de Turing, mas a consideramos uma poderosa ilusão, na qual repousamos nosso mais profundo desejo de sermos o centro do universo, do universo pessoal do qual somos, efetiva e fenomenologicamente, o centro.

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Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologiapela Arte_Hackeamento

DANIEL HORA *

ResumoAs articulações entre a arte e as práticas e valores da cultura hacker estabelecem um fenômeno histórico para a reflexão

crítica sobre o uso das tecnologias de comunicação contemporâneas. Adotado como conceito de produção da diferença,

o hackeamento pode ser identificado em operações de trabalho colaborativo, de apropriação e de intervenção nas mídias

promovidas por artistas e coletivos interessados nas oportunidades de resistência e construção de subjetividades dissiden-

tes que escapam aos meios tecnológicos de poder.

Palavras-chave: Estética. Arte e tecnologia. Cultura hacker.

AbstractThe connections between art and the practices and values of hacker culture provide a historical phenomenon for critical reflection

on the use of contemporary communication technologies. Adopted as a concept of difference production, hacking can be observed

in the operations of collaborative work, appropriation and intervention in the media, promoted by artists and collectives interested

in the chances of resilience and construction of dissenting subjectivities that escape technological instruments of power.

Keywords: Aesthetic. Art and technology. Hacker culture.

* Pesquisador na área de artes, tecnologia e comunicação. Ganhador do prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética 2009.

Bacharel em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo, especialista em Crítica de Arte pela Universidade Com-

plutense de Madrid e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

[email protected]

1. O substantivo hackeamento é um neologismo que adotamos para traduzir para o português o duplo sentido da palavra

hacking, que no inglês indica tanto a ação de um hacker quanto o seu efeito.

Sistemas Instáveis

A produção artística constitui um território de abordagens complexas, com capacidade para incitar e sustentar a apropriação social (e a) crítica dos saberes e das práticas da tecnologia na contempo-raneidade. Com esta afirmação, não almejamos um fechar de olhos condescendente para a eventu-al captura da arte em benefício de interesses político-econômicos codificados e redistribuídos pelo maquinário do mundo. Em lugar disso, optamos pela observação das correntes de resistência contra a dominação e por uma investigação sobre os fluxos de emergência de antídotos, paradoxalmente inerentes, depuradores e impulsionadores do próprio processo de desenvolvimento tecnocientífico. A arte que se manifesta assim, no cenário da cultura digital, deve ser pensada em suas afinidades e articulações com as táticas de hackeamento1, entendidas aqui como formas de produção de dife-

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renças na tecnologia e pela tecnologia (JORDAN, 2008; WARK, 2004). Essa produção artística e hacker 2 promove subversão, interferência e expansão da operacionalidade dos dispositivos abor-dados por arranjos de ativismo e colaboracionismo. Esses arranjos são agenciamentos de defesa da liberdade e do compartilhamento da informação, da descentralização e da descrença em auto-ridades unidimensionais, das possibilidades de criação e de benefício da vida pela tecnologia e do próprio princípio de autopropagação dessa mesma ética (RAYMOND, 2003). Segundo a perspectiva mais operacional, estamos tratando da artemídia, aquela que se caracteriza pelo desvio do projeto industrial por meio da apropriação e da intervenção nos canais tecnológicos de difusão e de entretenimento (MACHADO, 2007). Por outro lado, se adotamos o ponto de vista comunitário de produção da diferença, assumimos a via das poéticas relacionais, que se especificam pela capacidade de estabelecer formas em decorrência de relações intersubjetivas, resultantes da associação, por retomada e descaminho ou por embate aleatório, de objetos, imagens, ideias, pro-cessos e situações (BOURRIAUD, 2002). A arte_hackeamento3 afeta, portanto, tanto as técnicas quanto as lógicas, de modo recíproco. Conforme indica Boaventura de Sousa Santos (2000), todo conhecimento é uma prática social que dá sentido e ajuda a transformar outras práticas. Se as sociedades complexas são configura-ções de conhecimentos e se a verdade de cada saber reside em sua adequação à prática que visa constituir, a crítica da teoria implica a crítica da prática social a que ela se adapta. Nessa avaliação, o dissenso se expressa como reverberação das senhas tomadas e rompidas pela produção da diferença no hackeamento. Para enfrentar a questão de uma arte que transita por ilicitudes conveniadas de restrição do fazer e do pensamento, recorremos à hipótese de legitimação pela paralogia de Lyotard (2002, 111-120). Assim como nesse modelo de valoração, a arte_hackeamento é um “lance de importân-cia” desconhecida, “feito na pragmática dos saberes”, porém distinto da inovação, a serviço do aprimoramento da eficiência do sistema vigente. Vale aqui o dissenso, a determinação de regras particulares e a negação dos modelos de sistemas estáveis da ciência, ilusoriamente imune a in-fluências da práxis. A arte_hackeamento é aquela que possibilita a recomposição de circuitos e de rotinas de co-municação produtiva e reflexiva. É uma arte tecnológica, que se faz pela técnica, no sentido da habilidade (τέχνη – tékhne), mas também se conjuga com a lógica da ciência (επιστήμη – episteme). Por essa via, converte-se em instrumento para reação contra a profusão de estímulos sensoriais difundidos e acumulados nas diversas camadas de sentido do mundo codificado. Afirma-se, assim, como ruptura dos códigos da caixa-preta dos aparelhos que transformam seus usuários em me-ros operadores de programas predeterminados (FLUSSER, 2002, 2007).

2. Admitimos que o hacker é aquele que se deleita com a exploração e expansão comunitária das capacidades da tecno-

logia (RAYMOND, 2003), sobretudo no que se refere aos programas e à montagem de componentes da informática. Essa

definição é adotada pelos próprios hackers, que demarcam uma ética própria para se diferenciar daqueles que utilizam a

tecnologia para invadir sistemas, programar vírus e promover roubos e destruição de dados – os chamados crackers.

3. Para a grafia do termo arte_hackeamento, em lugar do hífen, sinal com valor de união, preferimos o uso do traço inferior,

caractere largamente utilizado na informática para substituição do espaço em branco em aplicações e sistemas que não o

suportam – a exemplo dos endereços de internet ou de correios eletrônicos.

Aplicativos da Dissidência na Arte_Hackeamento

Abertura à participação e compartilhamento, táticas do “faça-você-mesmo” e interferências nas mídias são alguns dos traços que podemos considerar recorrentes na arte_hackeamento. Estes traços estabelecem dimensões híbridas que não promovem especificidades de correntes e sub-

grupos, mas sim contínuas combinações entre seus interesses e meios de realização, bem como agenciamentos com outras possibilidades para além de seus limites. Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poéticas colaborativas, relacionais, com o pa-Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poéticas colaborativas, relacionais, com o pa-radigma do copyleft, forma de licenciamento que permite ao usuário a modificação e cópia do software ou outro conteúdo, desde que o resultado seja compartilhado com outros interessados. Em projetos como Free Beer (figura 1), de 2005, e Guaraná Power4, de 2003, o coletivo Superflex subverte a tecnologia econômica da indústria de bebidas. No primeiro caso, coloca em circulação uma cerveja de código aberto, passível de adaptações, aprimoramentos, e partilha de novas re-ceitas. Já com Guaraná Power, apropria-se da linguagem visual da marca Antarctica, que é adaptada para utilização em um produto alternativo, feito em parceria com uma cooperativa de guaranai-cultores do Amazonas.

Figura 1:

Rótulo com a receita de uma das versões da Free Beer.

Fonte: http://freebeer.org/blog/label/

4. Os projetos podem ser conhecidos nos endereços da internet www.freebeer.org e www.guaranapower.org.

5. Sigla para Free/Libre Open Source Software.

Os trabalhos do Superflex orientam-se, notadamente, pelos conceitos derivados do software livre e do código aberto (FLOSS5), segundo os quais o que interessa é a disponibilidade dos dados de um programa para a alteração e aprimoramento de um produto dentro de uma comunidade de interessados. Representam, ainda, interferências em circuitos de promoção, um deles baseado na ex-clusividade do aparato de fabricação e da própria receita; o outro, acomodado sobre o apelo visual dos elementos de publicidade. Por fim, são exemplos da abordagem imediata e direta – do arrega-çar de mangas para a ação autônoma em searas inicialmente consideradas alheias ao mero usuário.

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Passemos a outros exemplos, mais voltados à intervenção nos dispositivos e redes de comuni-Passemos a outros exemplos, mais voltados à intervenção nos dispositivos e redes de comuni-cação. Com o projeto Radio Bikes, de 2000, o coletivo Critical Art Ensemble coloca em circulação bicicletas transformadas em rádios nômades, que emitem notícias fascistas alteradas, em uma ini-ciativa de mídia tática. O coletivo etoy6, por sua vez, realiza projetos como o “sequestro” de meca-nismos de busca – Digital Hijack, de 1996 – e a batalha eletrônica pelo direito de uso do domínio etoy.com na internet, em resposta ao processo judicial aberto contra o grupo pela loja virtual de brinquedos norte-americana eToys – TOYWAR (figura 2), de 1999 a 2000.

6. A documentação sobre os projetos está disponível nos sites dos coletivos, nos endereços www.critical-art.net e www.

etoy.com, respectivamente.

Figura 1:

Página do site do coletivo etoy sobre o projeto TOYWAR.

Fonte: http://history.etoy.com/

Nesses exemplos, as tecnologias de comunicação são hackeadas, ou seja, passam por um pro-cesso de produção de diferenças, com a finalidade da paródia e do protesto. As bicicletas do Cri-tical Art Ensemble são emissoras ambulantes que difundem a deturpação das mensagens de uma filosofia política autoritária. Sugerem a contaminação e o desvio cotidianos, das ruas, como modo de resistência. O sequestro digital e a TOYWAR do etoy ressaltam o caráter político da internet. No primeiro caso, a intervenção em mecanismos de busca transforma o internauta em “refém” de resultados

Figura 3 e 4:

Vista do ambiente e do robô da instalação Spio.

Fonte: http://bambozzi.wordpress.com/

que o levam à página do projeto Digital Hijack, repleta de mensagens sobre a subversão dos fluxos de informação na rede. No segundo caso, encontramos a realização de uma campanha eletrônica, que envolve vários ativistas, hackers, jornalistas, DJs, artistas e intelectuais em ações de difamação e ataques remotos para a derrubada do site comercial da eToys. Após a retirada da ação da justiça, o coletivo etoy adota a perda de valor acionário da empresa reclamante durante o período de disputa como indicativo para considerar a mobilização promovida como a performance mais cara da História da Arte. Por fim, o “faça-você-mesmo” (do it yourself), conceito identificado com a cultura punk, está ex-presso em modalidades de bricolagem da arte_hackeamento, que ecoam a atitude dos clubes de hackers dos anos 70, que se formavam com o propósito de desenvolver computadores caseiros – o chamado hackeamento de hardware (LEVY, S., 2001). Entre os trabalhos de arte relacionados ao “faça-você-mesmo”, pensamos na instalação Spio (figuras 3 e 4), de 2004 a 2005, de Lucas Bambozzi. O trabalho é constituído por um ambiente onde um aspirador de pó robótico rodeia o público, captando sua imagem pelas câmeras de vigilância instaladas sobre ele, para projetá-las em uma das paredes. Deste modo, um eletrodoméstico hackeado com sistema de vídeo passa a de-sempenhar a função de espião das reações daqueles que visitam e exploram o espaço montado.

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(Re)programabilidade como Fato Artístico e Atitude Política

A hibridização das artes e das mídias ocorrida desde o advento da fotografia (MACHADO, 2007; SANTAELLA, 2005) implica que a reflexão artística esteja atenta ao papel legitimador do poder cumprido pela tecnologia. Para Santaella, a questão é saber quais são as reações possíveis ante a hegemonia da mídia e que papel a arte pode desempenhar em um período de conti-guidade e sobreposição de diferentes culturas ligadas aos meios da comunicação oral, escrita, impressa, de massa, midiática e digital. Se a fotografia é o ponto de partida para a hibridização mencionada, cabe então rever o pensamento de Walter Benjamin (1994) sobre a reprodutibilidade técnica da arte e seus efei-tos na política. Nesse sentido, devemos considerar que contexto atual das mídias digitais nos impõe a ampliação dos termos usados por Benjamin com a proposição da ideia de (re)progra-mabilidade tecnológica. Não estamos mais lidando com o fenômeno artístico intercalado por técnicas fotográficas (de registro da luz) ou por técnicas precedentes e subsequentes. Em lugar disso, tratamos agora da incorporação de conhecimentos e de programas tecnológicos na máquina de fotografia e nas mídias híbridas sucessoras, que absorvem procedimentos dos meios de comunicação anteriores. Devemos considerar – ainda – que a digitalização institui uma condição em que as imagens são sistemas dinâmicos mutáveis, passíveis da interação coletiva por meio dos algoritmos (SAN-TAELLA, 2003). Em vez da dispersão do belo pela distribuição de réplicas autênticas extraídas do negativo, conforme a reprodutibilidade analisada por Benjamin, alcançamos a condição em que códigos de origem são destinados à recombinação, pós-produção ou reprogramação. As consequências dessa transição parecem acentuar os impactos prévios. Em Benjamin, a técni-As consequências dessa transição parecem acentuar os impactos prévios. Em Benjamin, a técni-ca surgia para emancipar a arte do ritual e do mito. Deste modo, ela passaria a exercer um papel cada vez mais importante, exercitando-nos em novas percepções, mas abrindo caminho para a estetização da política pelo fascismo. Com a reprogramabilidade tecnológica, o efeito colateral da captura pelos mecanismos de dominação segue presente, porque embora haja uma difusão mais ampla dos dispositivos de produção e difusão, o que torna mais nivelado e complexo o jogo entre subjugadores e rebeldes, certos códigos de acesso, de acionamento e de transmissão são ainda privilégio dos conglomerados de poder. A politização da estética indicada por Benjamin como antídoto à estetização fascista da polí-A politização da estética indicada por Benjamin como antídoto à estetização fascista da polí-tica deve então ser trabalhada de uma nova maneira. Como ponto de partida, talvez possamos recorrer à provocação de Lev Manovich (2005) que, ao identificar a materialização e superação dos projetos da arte moderna pela tecnologia telemática, arrisca-se a identificar o software como a atual vanguarda, as novas mídias como a própria arte e os cientistas de computadores como os artistas de nossa época. Para reverter o projeto de realização de rotinas predestinadas ao aprimoramento tecnológico por meio da retroalimentação humana, Flusser, por sua vez, sugere o contrabando de elementos não previstos no programa dos dispositivos. A arte seria, então, um caminho para experimentar, vencer, enganar, desviar, jogar contra o aparelho. Uma visão crítica atenta à ambiguidade velada das intenções codificadoras “do fotógrafo” (e, por extensão, de todo aquele que produz arte) e da máquina (FLUSSER, 2002, p. 42-43 e 51). A proposta de Flusser é semelhante à de Stiegler, no ponto em que este ressalta a importância da singularidade incalculável e consistente da diferença vivenciada nas experiências artísticas. Ante o ímpeto do capitalismo hiperindustrial de levar ao esgotamento do desejo pela oferta excessiva de produtos para o consumismo gregário (a dessingularização e hipersincronização das condutas pelo condicionamento estético), Stiegler defende a necessidade (il faut) do defeito (défaut), cuja manifestação se daria no trabalho artístico de dilatação do sensível e de socialização expansiva da diversidade diacrônica (STIEGLER, 2007, p. 21-22, 23-29 e 38).

A essa altura, retomamos o hackeamento como senha conceitual para a apropriação dissente da tecnologia na arte. Pois, conforme os exemplos de artistas e coletivos citados acima nos apontam, a aproximação entre a produção artística e ação hacker nos oferece, graças a essa abordagem, a oportunidade de recordar que há um grau de vulnerabilidade da maioria ante ao uso da máquina, mas que a ameaça de uma ditadura cibernética encontra resistência na capacidade de subversão e ruptura (TAYLOR, 1999). Na conjuntura política das senhas e códigos que resguardam o poder da indústria, o hackea-mento se coloca como tática fluida de exploração e interferência nos fluxos de acomodação da cultura movidos pelas forças socioeconômicas que se sobrepõem às demais (THOMAS, 2003). Na conjugação da arte_hackeamento, abrem-se espaços de ocupação coletivista, desenvolvimento de sociabilidade e reprogramação tanto dos meios e finalidades das tecnologias de comunicação, quanto das próprias subjetividades construídas a partir dos agenciamentos que são impulsionados pelas mídias.

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Entre o Real e o Imaginário:A Poética de uma Experiência Vivida

GABRIELLE PATRÍCIA AUGUSTA CORRÊA DE OLIVEIRA *

ResumoO texto parte da observação de uma experiência concreta da realidade para confrontá-la com formulações conceituais de

autores provenientes de diferentes campos do conhecimento e com algumas linguagens artísticas já existentes, visando à

elaboração de uma proposta de experimentação artística cuja dramaticidade apoie-se predominantemente na visualidade.

Busca-se, desta forma, um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a construção de uma poética.

Palavras-chave: Real. Imaginário. Experimentação artística.

AbstractThe text proposes an intertwining of empirical research, theoretical reflection and the construction of a poetic. From the observa-

tion of a specific and concrete experience of reality, and compare this experience with certain conceptual propositions of authors

located in different fields of knowledge, we seek to present a proposed experiment whose artistic composition elements originate

both from the concrete fact as the theoretical propositions and also some existing artistic languages.

Keywords: Real. Imaginary. Artistic experimentation.

* Bacharel em Sociologia e Política, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Mestre em Arte na linha de pes-

quisa Arte e Tecnologia, onde defendeu a dissertação Lucian@: cartografia artística e afetiva em contexto ciber-urbano, sob

orientação da professora doutora Maria Luiza Fragoso. Em busca de uma poética do tempo em que vive, tem realizado

experimentações a partir da mistura de elementos da performance artística, da hipermídia, das ciências sociais, da filosofia

da diferença e do espaço urbano.

1. Para não ocupar o espaço restrito deste artigo e por ter já feito, alhures, a descrição mais detalhada de Luciana, indico

ao leitor a leitura do texto A poética do corpo transgressivo no espaço urbano, que pode ser acessado pelo endereço ele-

trônico http://arte.unb.br/7art/textos/gabriellecorrea.pdf. Indico também os vídeos Registrávicos e Luciana Avelino da Silva,

ambos com a participação de Luciana e que podem ser acessados no site www.youtube.com.

Entre o Real e a Representação Teórica

Este artigo propõe um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a cons-trução de uma poética. A partir da observação de uma experiência concreta e específica da realidade, e da confrontação desta experiência com determinadas proposições conceituais de autores situados em diferentes campos de conhecimento, tenho buscado elaborar um experimen-to artístico cujos elementos de composição sejam originários tanto do fato concreto quanto das proposições teóricas e também de algumas linguagens artísticas existentes. O que hoje se tornou uma pesquisa em arte começou a se esboçar alguns anos atrás, quan-O que hoje se tornou uma pesquisa em arte começou a se esboçar alguns anos atrás, quan-do conheci Luciana1, um ser humano que vivia no agitado mundo das ruas da Vila Buarque,

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bairro situado na região central da cidade de São Paulo. A partir desse encontro tenho buscado engendrar um emaranhado de multiplicidade de conexões, tanto reflexivas quanto estéticas, partindo de uma constatação: a presença do corpo vivo e repleto de significados no espaço complexo da metrópole. Tomo como premissa que esta presença é pura potência de produção de afetos. Uso o termo afetos no sentido atribuído por Espinosa , de afecções:

...por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada

ou diminuída, favorecida ou impedida... Um afeto, que chamamos paixão da alma, é uma ideia confusa pela

qual o espírito afirma uma força de existir maior ou menor que antes” (apud DELEUZE, 2002, p. 33).

Perceber a presença de Luciana na cidade é ser afetado por suas afecções e pela sua capacida-de de penetrar em nossos sentidos e produzir novas ações, que, por sua vez, potencializam uma vida que doravante se configura como “um composto de afectos e de perceptos” (DELEUZE E GUATTARI, 1992: 213). Perceber Luciana implica também perceber a cidade, em toda sua ordem e em sua desordem, em suas dimensões públicas e privadas, em seu individual e em seu coletivo. A carne do corpo em relação ao corpo de pedra da cidade sugere, insinua e deflagra uma profusão de perceptos e de afectos plausíveis. Dizem Deleuze e Guattari (ibidem, p. 213) que “os perceptos não são mais as percepções... os afetos não são mais sentimentos ou afecções...as sensações, perceptos e afectos são seres que va-lem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Busco, nesta pesquisa, tomar esta potência de vida que a presença de Luciana no espaço urba-Busco, nesta pesquisa, tomar esta potência de vida que a presença de Luciana no espaço urba-no é capaz de provocar e deslocá-la para o campo dos processos criativos, a partir do rearranjo de conceitos e de suportes técnicos. Esta presença permite pensar três categorias, as quais seriam o eixo de sustentação do experimento artístico: corpo, espaço e movimento. O corpo em conta-to com outros corpos; o espaço compartilhado e conflitante; o movimento dissonante e aleatório. Leon Kossovitch (2004, p. 162) favorece uma leitura do pensamento de Nietzsche que nos importa reproduzir aqui; diz ele: “a vida da diferença é a criação e dissolução de formas. Poder não só criar, mas também destruir, exige um excesso: encontrar prazer e embriagar-se onde as intensi-dades inferiores sofrem, isto é, na destruição.” Luciana desapareceu das ruas da Vila Buarque em 2005. Diz a população local que ela morreu. Em 2008, quando realizava a pesquisa de campo sobre a vida de Luciana naquele bairro, busquei informações sobre o que poderia ter acontecido com ela, em diferentes locais – hospitais, entida-des sociais, instituto médico-legal, albergues – e a única coisa que pude descobrir é que é prati-camente impossível saber sobre o seu paradeiro. Mas sua presença permanece, agora de modos distintos, permitindo-nos refletir e também criar.

Entre a Representação Teórica e a Construção de uma Poética

A presença de Luciana revela a diferença, embora sua conduta possa ser percebida como uma repetição de padrão. Em relação à cidade, porém, percebemos sua diferença, porque o compor-tamento e as práticas cotidianas de Luciana são inversas àquelas da maioria dos citadinos. Lu-ciana, em sua experiência última de vida, encontrava-se livre em relação às redes sociais, ou seja, não vivia ao abrigo de um lar, não convivia com familiares, não trabalhava, enfim, não estava ligada a nenhum tipo de processo produtivo. Desse modo, podemos inferir que Luciana está numa relação inversa à realidade da cidade, uma vez que a cidade é o espaço por excelência da socia-bilidade entre os indivíduos, que, por meio do trabalho, promovem as condições de existência coletiva, ainda que estas condições sejam desiguais para a maioria dos cidadãos.

Deslocar esta presença de Luciana não para os discursos estéticos, mas para as práticas po-Deslocar esta presença de Luciana não para os discursos estéticos, mas para as práticas po-éticas, significa potencializar o que esta vida lhe ofereceu em termos de formas de negação da sociabilidade comum. Luciana se associou à comunidade pela sua transgressão e não por meio das regras impostas e seguidas por seus membros. Uma vez assim estabelecida a relação do corpo de Luciana com o espaço ao seu redor, quanto mais se explora sua potência de afetar, mais se evidencia o quanto este corpo e todas as ideias que lhe são agregadas são passíveis de sofrer alterações e, por conseguinte, de também alterar nossa capacidade de sentir, refletir e nos embriagar em meio ao caos da existência. O termo potência utilizado aqui está contaminado pelo pensamento de Espinosa (Apud De-leuze, 2002, p. 103), quando este lhe confere o seguinte significado: “toda potência é inseparável de um poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessaria-mente preenchido por afecções que o efetuam”. E, quanto ao termo embriaguez, é mister que o reportemos ao pensamento de Nietzsche, quando este, segundo Kossovitch (2004), entende que “a repetição afirmada, implícita num aumento de intensidade, desencadeia o comportamen-to cujo princípio é o prazer, ou, ainda, o estado de embriaguez.” (KOSSOVITCH, 2004: 162). Assim, esta pesquisa começa a fazer sentido quando o processo defl agrado, primeiro pela per-Assim, esta pesquisa começa a fazer sentido quando o processo deflagrado, primeiro pela per-cepção, depois pelo pensamento e a ação, passa a operar um sistema de classificação, ou melhor, de significação de Luciana. Em princípio, minha observação era contaminada pelo discurso do senso comum: uma louca de rua, um pária social; depois, busquei encaixá-la nos discursos filosó-ficos, sociológicos e antropológicos: uma máquina de guerra, um outsider, um sujeito liminal2; por fim, alcancei as categorias dos discursos3 estéticos, chegando ao limite de afirmar que Luciana é uma obra de arte, performática, conceitual e efêmera. Trilhar estes caminhos possibilitou, ao menos, urdir uma espécie de malha comunicativa, capaz de produzir uma intensa circulação de mensagens em diferentes mídias e em variados espaços de discursos4. O desafio, agora, é fazer com que esta malha, este complexo sistema de classifi-cação, seja submetido a um segundo modo de produção de afectos e de perceptos5, isto é, a processos que possibilitem a realização de um experimento artístico, inspirado na experiência de vida de Luciana, a partir da mistura de diferentes linguagens poéticas. A presença de Luciana no espaço da rua é algo que se repete no cotidiano da cidade. Desde que as cidades foram criadas, pode-se perceber a presença de pessoas que, numa espécie de nomadismo urbano, vagam pelas ruas. Esta presença permanece, mesmo depois que a socieda-de ocidental criou instituições de controle e confinamento dessas pessoas – hospitais, prisões, hospícios. Devido à sua potência simbólica, este personagem citadino adentra a memória da população, impregnando o imaginário coletivo. Flávio Ferraz de Carvalho (2000), em seu estudo sobre os loucos de rua, faz a seguinte afi r-Flávio Ferraz de Carvalho (2000), em seu estudo sobre os loucos de rua, faz a seguinte afir-mação a propósito dessa presença e do seu poder de afetar a população:

Tendo vivido tanto tempo na cidade, vagando pelas ruas e expondo publicamente sua experiência de

loucura, é natural que essas pessoas tivessem aguçado a curiosidade e a imaginação populares. Daí o apa-

recimento de uma série de histórias que versavam sobre a vida dessas pessoas e que se foram tornando

2. Estes conceitos são elaborados , respectivamente, por Deleuze-Guattari, Norbert Elias e Victor Turner.

3. Utilizo o termo discurso na acepção que Michel Foucault lhe atribui, isto é, de algo que investe os seres humanos de

desejo e de poder.

4. Estou considerando a variedade de atividades produzidas em razão desta pesquisa: a pesquisa de campo sobre Luciana e

sua relação com o bairro Vila Buarque, que possibilitou o contato com pessoas e instituições; a participação em congressos,

encontros e debates; a publicação de artigo; a produção de vídeos; a exposição, em espaços artísticos, de experimentos

poéticos com a utilização de equipamentos tecnológicos, como câmera de vídeo, aparelho de TV e computador.

5. Os conceitos de afectos e de perceptos serão articulados mais adiante neste artigo.

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parte do repertório da narrativa oral comunitária, sendo transmitidas de pessoa a pessoa oralmente e atra-

vessando as gerações que as conheceram. Essas histórias, algumas vezes, ganhavam um colorido fantástico,

como que impregnadas pela própria “desrazão” inerente a seu protagonista. (229).

Quando realizei a pesquisa de campo no bairro onde Luciana viveu, pude constatar que, três anos após seu desparecimento das ruas, sua presença permanecia viva na memória da popula-ção local. Frases como “ela era uma louca”, “uma pessoa muito inteligente”, “falava muita coisa interessante, mas sem muito sentido”, “ela marcou a Vila Buarque”, contribuem para a afirmação de que pessoas como Luciana têm o poder de penetrar no imaginário coletivo e de ter sua ex-periência de vida reelaborada pela capacidade humana. Ao deslocar esta experiência de vida para o campo da criação poética, meu intento é multipli-Ao deslocar esta experiência de vida para o campo da criação poética, meu intento é multipli-car o sentimento de potência do fato real e, como um vírus pestífero, contaminar o público com esta experiência, transmutada pelos movimentos do corpo, pela presença das narrativas orais registradas em vídeo, por efeitos de projeção imagética e pela manipulação sonora dos ruídos urbanos. Antes de descrever esta proposta de experimento artístico, gostaria de me deter um pouco mais nas ideias de Antonin Artaud, e em sua proposta de realização de um teatro da crueldade. Para além das propostas de um teatro de estados de alma, psicológico e racionalista, Artaud (1999) propunha uma arte cênica que pudesse afetar o público como quem é afetado por uma peste. Sobre o termo crueldade, assim o autor definiu seu sentido:

Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no

sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade

inelutável a vida não consegue se manter : o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é permanente.

(119)

Tais proposições deste autor contribuem para a formulação de uma poética que, acredito, tenha uma sintonia com a experiência de vida de Luciana e com o que esta experiência pode nos oferecer em termos de reflexão sobre a realidade em que estamos inseridos. Retomar esta experiência comum, cotidiana e pública numa proposta de experimento artístico tem o significa-do de potencializar a própria vida no que ela possa ter de cruel, sim, mas também de afetivo, de cômico, de jogo e de estratégia de sobrevivência. A experiência de vida de Luciana no espaço da rua revela a repetição da tragédia humana e também seus mecanismos de defesa contra as mazelas de uma sociedade que, para além de seus procedimentos de controle e de disciplina, torna a existência do indivíduo uma luta pela garantia de sua vida, esta vida que, em si, já é puro poder. A proposta de experimento artístico que tenho desenvolvido nesta pesquisa, a partir da ex-A proposta de experimento artístico que tenho desenvolvido nesta pesquisa, a partir da ex-periência de vida de Luciana, é uma mistura entre a linguagem do teatro, da dança e do audio-visual. Com o repertório tanto imagético quanto das narrativas colhidas na pesquisa de campo, tenho investigado as possibilidades de uma composição cênica entre o mundo real e o espaço da representação artificial. Trazer para a cena a presença de Luciana em vídeo, e também na ora-lidade das narrativas gravadas, e com ela contracenar, por meio do movimento corporal e vocal, utilizando também o recurso de projeção de vídeo em tecido transparente. Após a realização de experimentos utilizando a projeção em tecido transparente, pude explo-Após a realização de experimentos utilizando a projeção em tecido transparente, pude explo-rar a visualidade plástica desta técnica. Entre elas, destaco a relação entre a imagem videográfica e o corpo em ação, formando uma silhueta em movimento capaz de causar grande impacto visual. Os processos que envolvem a construção dramatúrgica deste experimento serão mediados por vídeos, mas também por ruídos captados na região onde viveu Luciana. O texto, se assim

podemos chamá-lo, será construído não apenas com palavras escritas, mas contará com a inser-ção de relatos das impressões suscitadas pela realidade de vida de Luciana. Outro elemento que será explorado na composição visual do trabalho são os desenhos produzidos por ela. Por fi m, gostaria de destacar que este experimento terá como elemento plástico preponde-Por fim, gostaria de destacar que este experimento terá como elemento plástico preponde-rante a visualidade. Mais do que as palavras refletidas e organizadas no discurso, importa neste experimento o impacto que a presença viva do indivíduo é capaz de deflagrar e ativar no outro: a emoção, o sentimento e o pensamento.

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ReferênciasARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

FERRAZ, Flávio Carvalho. Andarilhos da imaginação: um estudo sobre os loucos de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. Rio

de Janeiro: Ed. 34, 1992.

KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.

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RESENHAS

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Blue HeartCHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.

LAURA ALVES MOREIRA *

Depois da longa tradição que declarava a supremacia do texto em detrimento do espetáculo, o “revide” aconteceu e talvez não tenha ainda terminado1. O teatro tem criado e pensado outros conceitos de dramaturgia que não se baseiam na palavra, mas no movimento, na imagem, na sonoplastia e em tantos outros elementos. Neste contexto a dramaturga Caryl Churchill, dona de uma vasta obra que, infelizmente, não possui tradução em português, mostra que a contemporaneidade tem – sim – espaço para dramaturgos que sabem pensar o teatro de modo ousado, ora se despedindo das convenções tradicionais de dramaturgia, ora dialogando com essas convenções. Com vinte e oito livros publicados em língua inglesa e mais de dez premiações por sua dra-maturgia e espetáculos, a dramaturga mostra também que engajamento social e experimenta-ção teatral não morreram após o teatro de Bertholt Brecht. Aliada às mais novas tendências do teatro contemporâneo e às formulações do teatro pós-dramático, do alemão Hans-Thies Lehmann2, Churchill se caracteriza por um modo diferente de usar os signos teatrais e por uma tendência à autorreflexão e à “autotematização”. Blue Heart foi publicada em 1997 e tem muitos elementos interessantes a serem observados. Composta por duas partes, surpreende pelo fato de não configurar dois atos em uma peça, mas, praticamente, duas peças dentro de uma: Heart´s Desire e The Blue Kettle, dois diferentes enredos que são apresentados em duas estruturas completamente diversas. A primeira parte, Heart’s Desire, apresenta a situação de uma família inglesa (pai-Brian, mãe-Alice, tia-Maise e filho-Lewis), em sua sala de jantar, à espera da chegada da filha que mora na Austrália. A familiaridade gerada pela temática é rapidamente dissolvida, pois logo no início a ação da peça, que gira em torno da espera da filha e sua chegada, é continuamente interrompida, para logo depois ser retomada em algum ponto anterior. A técnica da interrupção e o contínuo retorno ao ponto de partida ou a outros tantos pontos anteriores à interrupção marcam o espetáculo e formam uma estrutura labiríntica, cheia de circulares retornos, paralelismos e repetições, que compreendemos tratar de futuros latentes, de desejos que podem ou não se realizar a todo o instante, desejos e expectativas dos personagens que se misturam e se confundem, até mesmo com finalidade de nos desconcertar. A fragmentação do tempo, da ação e da linguagem são características marcantes na parte Heart’s Desire.

* Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, a autora é poeta, atriz e integrante do grupo de teatro

BR-SA. Atualmente está elaborando sua dissertação de mestrado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arte da

Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Mota.

[email protected]

1. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

2. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Tradução de Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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O foco, então, não está mais no enredo, mas em sua estrutura, sendo metateatral. O trata-mento da palavra aparece também na sua materialidade, saindo da dimensão pura do diálogo para tornar-se matéria independente a ser manipulada em seu aspecto plástico, seu aspecto de palavra e de letra. Terá sua velocidade acelerada, será ocultada, terá frases faladas de forma incompleta: primeiro somente o seu início, depois somente o seu final. Este tratamento acentua o caráter satírico e lúdico da peça. A segunda parte da peça, The blue kettle, apresenta a situação de um homem de trinta e nove anos que procura senhoras que, em algum período de suas vidas, tenham entregado uma cri-ança para a adoção e, em as encontrando, diz a elas que ele é seu filho perdido que retorna, na tentativa de conseguir algum dinheiro. O aspecto inovador se encontra no fato de que, ao longo da peça, as palavras (substantivos, adjetivos, verbos) vão, lentamente, sendo substituídas pelas palavras kettle e blue, até que, de fato, a atenção se desloque do significado das mesmas e enfatize os sentidos que esta técnica possibilita. Assim, a autora desloca o foco do enredo para a estrutura teatral e o dirige à lingua-gem, à performance verbal do espetáculo. Essa substituição gradual que ocorre ao longo do espetáculo produz, novamente, uma as-simetria entre palco e plateia, pois o entendimento não é alterado entre os personagens. É curioso notar que, mesmo com a substituição de palavras, fato que causa certo desconforto, a intenção não é o distanciamento total. O recurso, que explicita o caráter teatral e estrutural desta parte, não deve afastar o aspecto afetivo estabelecido com a plateia e seu foco no enredo. Ao saturar os diálogos finais, o espectador está assistindo a um filme estrangeiro sem legendas, mas acompanha até o final a marcação emocional. Existe, aí, uma manipulação dos afetos. Assim, temos na figura de Churchill uma dramaturga capaz de renovar os conceitos de dra-maturgia e de abrir novos horizontes, descortinando novas técnicas para o fazer teatral.

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Maciej Babinski – EntrevistasAZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.

ISABEL CANDOLO *

Escrito por Gisel Carriconde de Azevedo, Maciej Babinski – entrevistas busca reconstruir através de uma série de entrevistas a trajetória do artista Babinski que, em seus depoimentos, fala de si, de seu fazer artístico e reflete sobre arte. Resultado de um projeto iniciado em 2004 e patrocina-do pelo Fundo de Apoio à Arte e Cultura do DF, a autora reproduz em livro quarenta horas de material colhido no período de setembro de 2004 a agosto de 2006, entre entrevistas gravadas em Brasília e no Ceará, no sítio do artista. O livro foi publicado pela editora Círculo de Brasília, em 2006, traçando um retrato múltiplo do pintor, gravador e desenhista Babinski, artista nascido na Polônia e naturalizado brasileiro. O trunfo do livro é costurar nas entrevistas as passagens mais marcantes da vida pessoal do artista, com depoimentos e incursões no universo da arte, alinhavando fragmentos da memória cultural da arte moderna no Brasil. Os assuntos vão se sucedendo de acordo com a conversa e em função dela; o encadeamento das ideias gera um fundo narrativo que permite a nós, leitores, entrarmos no texto como ouvintes privilegiados, como se estivéssemos em uma visita ao ateliê do artista. Com o desenrolar das perguntas e respostas, vamos, aos poucos, entrando no universo de Babinski, que compartilha generosamente sua visão de mundo, suas reflexões e experiências artísticas, revelando sua vida pessoal e seu processo criativo. Assim, acompanhamos Babinski em seu itinerário da Polônia ao Brasil, passando pela França, Inglaterra e Canadá, onde cursou Artes e teve contato com pintores de paisagens e com o grupo vanguardista Os Automatistas, que muito influenciou sua produção artística. No Brasil, morou no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Brasília. Atualmente divide-se entre Brasília – onde se alimenta intelectualmente – e o sítio no Ceará - onde a paisagem agreste o alimenta sensorial-mente. No Rio e em São Paulo, conviveu com grupos artísticos ligados ao Modernismo brasileiro, onde pôde conhecer pessoalmente e trocar ideias com artistas exponenciais da arte brasileira, como Goeldi, Iberê Camargo e Volpi. Babinski foi professor na Universidade de Brasília, entre outras instituições. Aprendeu a gostar de dar aulas, mesmo sem ter formação específica, pois, à medida que foi se construindo como artista, desenvolveu também a capacidade de transmitir seu conhecimento e experiência. Aprendeu a amar o Brasil, país adotado por ele como escolha pesso-al; conseguiu se integrar ao país pintando, desenhando e gravando nossas paisagens. Considera-se hoje um artista contemporâneo brasileiro, mesmo não sendo aprovado pelo establishment artís-tico local. Ao longo do livro são apresentadas questões estéticas, às quais Babinski não se furta em res-Ao longo do livro são apresentadas questões estéticas, às quais Babinski não se furta em res-ponder, expressando, com clareza e sinceridade, sua opinião e sua visão a respeito da arte e falando sobre arte contemporânea e suas novas linguagens. Em suas formulações sobre arte e em sua produção pode-se notar a influência exercida pelo modo de pensar dos automatistas e

* Mestranda na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade

de Brasília.

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surrealistas, pensamento esse que marcou a geração do conturbado período da Segunda Guerra Mundial. Em Babinski, tal influência se mostra na importância dada à gestualidade e sua velocidade na confecção da pintura e ao considerar nociva a presença de uma racionalização excessiva no ato de criação. Contudo, essa aparente desvalorização da racionalidade parece ser o contraponto necessário à busca de equilíbrio entre o visceral e o cerebral na realização do feito artístico, pois, segundo Babinski, é nesse equilíbrio que a grande arte aparece. Babinski não prescinde do dese-nho, o que se constata em suas gravuras. Há que se considerar que a arte concretiza-se por vários caminhos. Ao se olhar para a tra-Há que se considerar que a arte concretiza-se por vários caminhos. Ao se olhar para a tra-dição vê-se que, no caminhar do homem pela história, espaços e tempos diversos apresentam diferentes formas de expressão artística. O que Babinski faz é escolher seu caminho e, ao refletir sobre suas escolhas, consegue defendê-las bem. Atento à qualidade do que produz, não segue modismos, escolhendo as linguagens às quais se afeiçoou e que desenvolveu, capacitando-se, assim, a executá-las com mestria. Para Babinski “ser artista significa, acima de tudo, desejar ; sem desejo não existe arte”.

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What is Dance?Readings in Theory and CriticismCOPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983. 582 p.

CÍNTHIA NEPOMUCENO *

Vinte e sete anos após sua primeira edição, a antologia What is Dance? – editada por Roger Copeland e Marshall Cohen – apresenta a seus leitores um conteúdo que resistiu à passagem do tempo e, por isso, merece destaque como fonte de pesquisa para a dança. Concebida com o propósito de reunir os melhores textos disponíveis sobre dança na língua inglesa, a coleção é or-ganizada de modo a contemplar as mais variadas discussões e problemas relacionados a essa arte. O prefácio do livro aponta a resistência de dançarinos, coreógrafos, críticos e historiadores da dança à teorização, considerada irrelevante e/ou impertinente. Uma das causas dessa resistência seria a ideia de que a dança deveria ter a função de nos proteger da alienação do pensamento, mantendo nossos pés no chão. Ainda segundo os editores, as lacunas deixadas por esse tipo de crença fizeram com que a dança pagasse um alto preço ao permanecer à margem dos discursos acadêmicos. É interessante observar que a realidade descrita no prefácio do livro, referente aos Estados Unidos da década de 1980, assemelha-se ao contexto da dança acadêmica brasileira no início do século XXI: havia maior interesse da população pelos estudos de dança, ampliação da oferta dos cursos em nível superior, debates sobre a vinculação acadêmica da dança às áreas de artes ou de educação física, escassez de produção bibliográfica e notória complexidade dos temas relacionados à pesquisa. Tendo em vista a realidade da época, a coleção reuniu artigos selecionados não apenas por seus méritos, mas por sua representatividade e pela relevância das questões levantadas por seus autores. A apresentação dos textos confere à leitura uma sensação de deslocamento no tempo e no espaço, em ruptura com a linearidade cronológica. Divididos em sete partes, os artigos trazem ideias, conceitos, descrições, personagens, criadores, intérpretes e estudos, pinceladas de vários aspectos da arte de dançar. Desse modo, iniciamos a jornada com as cartas de Jean-Georges Noverre, escritas em 1760, e, na mesma parte, encontramos Susanne K. Langer falando sobre sentimentos e formas, apresentando noções de “poderes virtuais” e do “círculo mágico”. André Levinson nos presenteia com um artigo em que discute conceitos e ideias sobre a dança, de Aris-tóteles a Mallarmé. Em seguida, Paul Valéry nos traz o artigo Filosofia da Dança. Tudo isso ainda na primeira parte, cujo título é o mesmo que o do livro: What is Dance? A segunda parte – The dance medium – discute a importância do intérprete em seis textos que tratam do formalismo de Balanchine, da importância de Diaghilev e do teatro de formas animadas, bem como do primitivismo, do modernismo, do balé clássico e suas dissidências. Já a parte três, Dance and the other arts, faz a relação entre dança e demais artes com textos de Richard Wagner, Eric Bentley, Constant Lambert, Bernard Shaw e Theodore Reff.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, sob a orientação da Profª Drª Roberta K. Matsumoto;

Mestre em Arte (UnB); Bacharel e Licenciada em Dança (UNICAMP). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciên-

cia e Tecnologia de Brasília (IFB) no curso de Licenciatura em Dança.

[email protected]

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A quarta parte do livro é dedicada aos estilos e gêneros de dança, subdividindo-se em quatro capítulos: Ballet; Modern Dance; Post Modern Dance; Style. Em destaque estão os textos de autoria de Michel Fokine, Isadora Duncan e Mary Wigman. Parece-nos importante ressaltar que o livro reproduz concepções hegemônicas sobre a dança, excluindo as produções artísticas afro-americanas, latinas e indígenas, entre tantas outras. Nesta mesma parte, todavia, há o artigo de Anna Kisselgoff – There is Nothing “National” about Ballet Styles – que, em poucas palavras, tece críticas à estereotipia e nega a existência de um estilo “americano” de ballet, referindo-se ao balé clássico praticado e difundido pelos estadunidenses, convidando-nos à reflexão e à desconstrução de ideias cristalizadas sobre os estilos e gêneros. A quinta parte trata de linguagem, notação e identidade. São cinco artigos que discutem a importância do registro escrito das danças e aprofundam o conceito de dança como linguagem estética. Já na parte seis, estão reunidos artigos sobre crítica de dança. Tendo em conta que a maior parte da historiografia disponível sobre dança foi compilada por críticos especializados nessa arte, torna-se imprescindível ler com atenção tais artigos. Entre outros, estão sob a mira dos críticos Ana Pavlowa, Martha Graham, Fanny Elssler, Balanchine e Isadora Duncan. A sétima e última parte do livro fala sobre dança e sociedade. Traz uma riqueza de abordagens, apresentando estudos antropológicos, além de um interessante artigo de Roland Barthes sobre striptease. Para os pesquisadores, uma fonte de inspiração! Obviamente, as quase seiscentas páginas do livro não dão conta de todos os temas relacio-nados à dança, mas conseguem apresentar um pouco de quase tudo que é necessário para, no mínimo, instigar quem se interessa pelo assunto. É uma obra de referência, pois permite uma visão global e, ao mesmo tempo, específica sobre determinados aspectos da dança, estimulando e abrindo caminhos para o aprofundamento em questões diversas. A obra merece uma tradução para a língua portuguesa devido a sua relevância e para que possa atingir um público amplo e di-versificado, constituído por leigos interessados sobre o tema, estudantes dos cursos de graduação em dança, pesquisadores e profissionais que buscam estímulos e referenciais para seus trabalhos.

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Oswaldo Goeldi:Iluminação, IlustraçãoRUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.

FABIO FONSECA *

A partir de leitura que Priscila Rufinoni faz das obras de Oswaldo Goeldi, pode-se entender o desenhista, gravador e ilustrador como um dos principais artistas modernistas brasileiros, senão o principal. A autora apresenta um artista à margem do grupo da Semana de 22, porém próximo à poética modernista, participando da busca de afirmação da bidimensionalidade e da autonomia da obra de arte visual e mantendo uma independência em relação ao mercado de arte de sua época, associado ao aparato estatal. Também foi um artista que acompanhou de perto a transformação dos processos de industrialização, sendo afetado pela relação com a indústria editorial e com a cultura de massa. Ao ilustrar revistas e jornais, sua arte pode ser pensada tanto a partir de um vínculo com os temas, quanto com a visualidade da fotografia e do cinema. Sem pensar em uma sucessão evolutiva, mas estabelecendo um diálogo com “blocos de expe-Sem pensar em uma sucessão evolutiva, mas estabelecendo um diálogo com “blocos de expe-riências estéticas”, como simbolismo e expressionismo, Rufinoni inicia sua análise desta parcela da obra de Goeldi com as ilustrações para o conto O Gato Preto, de Poe, publicadas na revista Leitura Para Todos. Seus desenhos se aproximam do simbolismo e da linha caligráfica de Alfred Kubin pelo aspecto da construção do espaço, formando densos arabescos, no entanto mantêm certa dis-tância do aspecto imagético marcadamente onírico do universo do artista simbolista. Com o uso da xilogravura, sua obra passa do desenho nervoso e simbolista para a demarcação de espaços cheios e vazios e de áreas de luz e sombra. Nas gravuras produzidas para ilustrar Canaã, de Graça Aranha, Goeldi afasta-se das fisionomias e da dramaticidade, dando à narrativa uma interpretação lacônica. Para Rufinoni, o artista utiliza o jornal como campo de experimentação de novas soluções. Em suas representações urbanas, aparecem os “tipos” criados pelo artista, imagens alegóricas do homem comum, com chapéus, casacos e guarda-chuvas, a cidade com seus postes e lampiões. Por meio de um humor irônico e sutil, Goeldi capta, com seu traço rápido, o dado efêmero, o passan-te anônimo. Ao analisar o artista a partir de sua realidade, a autora observa as soluções plásticas dos artistas alemães da Nova Objetividade, utilizando-os para problematizar a obra de Goeldi. A referência da gravura alemã dá apoio a uma figuração sem profundidade, afastada da perspectiva, embasada por um geometrismo planificador. A autora aponta, nas gravuras de Goeldi, tanto a presença de fi guras arquetípicas da moderni-A autora aponta, nas gravuras de Goeldi, tanto a presença de figuras arquetípicas da moderni-dade quanto temas de cunho antropofágico ou nativista. As ilustrações produzidas para as obras modernistas Cobra Norato, Martim Cererê, Cheiro de Terra e Poranduba Amazonense geram uma interpretação da fauna e da flora pelo viés primitivista, uma dialogicidade entre o universal e o particular, representados, respectivamente, pelo eixo Rio/São Paulo e Belém. As representações da fauna e da flora, bem como de “tipos étnicos”, passa pela iconografia dos naturalistas, revisitada através do contato com a obra de seu pai, o zoólogo Emílio Goeldi. No entanto, a autora aponta

* Mestrando na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade

de Brasília.

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que, mesmo produzindo trabalhos sob encomenda, o artista não apenas ilustra os textos, mas os interpreta, estabelecendo uma relação de autonomia em seu processo criativo. Os livros de arte, por tomarem parte em um mercado editorial incipiente, constituem também um campo experi-mental para Goeldi, que produz uma reinterpretação mítico-simbólica das formas naturais, usando a cor em várias matrizes e realizando um embaralhamento dos planos. Suas ilustrações para as obras de Dostoievski reaproximam o artista do universo simbolista/expressionista, ora sombrio, ora cômico. Nesses ambientes, os lampiões assumem uma importân-cia fundamental, transformados em ícones ou fornecendo pretextos para pesquisar fontes de luz que possibilitarão soluções diversas para a iluminação das cenas, aproximando-se, por vezes, da luz bruxuleante de Goya. Outros ícones repetidamente trabalhados em suas ilustrações são os peixes – alegorias míticas –, o lampião, a casa, o urubu e o chapéu-e-casaco, sinais do misterioso, do sublime inserido, de forma discreta, no cotidiano.

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O Projeto de RembrandO Ateliê e o MercadoALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p.

JULIANA DE SOUZA SILVA *

Mesmo após tantos estudos focados nas obras de Rembrandt, ou nos escritos sobre ele, ou mes-mo na vida social do artista holandês, Svetlana Alpers entende que a história da arte é um campo em evolução e, assim, parte das lacunas advindas com os estudos modernos sobre Rembrandt a partir da década de 1960 (incluindo o Rembrandt Research Project) para propor uma análise que agrega o lado artístico, social e econômico da prática de ateliê do artista. Ao longo dos quatro capítulos, Alpers analisa as intenções de Rembrandt na produção dentro e fora do ateliê, ou seja, na criação e na comercialização das obras. Sua análise de Rembrandt vincula o artista às circunstâncias do meio artístico da Holanda do século XVII, ao contrário de corroborar a noção do gênio isolado que influenciou muitos estudiosos desde o século XIX. Estu-dar a prática de ateliê é, segundo a autora, esmiuçar a maneira de pintar (e desenhar, e gravar) de Rembrandt, aproximar-se da idiossincrasia do artista que não só estimulava a criação, mas também o impelia a organizar a produção de sua equipe dentro do mercado de arte holandês. A maneira peculiar de Rembrandt é examinada, no primeiro capítulo, sob o ângulo do trata-mento da tinta. Observando e comparando algumas de suas pinturas com a de outros artistas contemporâneos, bem como analisando citações de especialistas e referências biográficas sobre Rembrandt (incluindo a descrição feita por alguns de seus aprendizes), Alpers chama a atenção para a presença visual da tinta na obra do artista. Interpreta o uso do empasto como sendo, mais do que uma característica formal, a afirmação do ofício do pintor, uma intenção de ir além do efeito óptico da cor, cunhando um trabalho com a matéria pictórica. Referências teóricas anteriores ou da época de Rembrandt são usadas por Alpers para criar um panorama de como o pensamento sobre a arte se consolidava na Europa desde o Renascimento, e em que medida esse pensamento permeava o mundo de Rembrandt. Cita, como exemplo, o entendimento de Giorgio Vasari de que a pintura de fatura rugosa necessitava de uma apreciação à distância, justificando a distinção social entre os connaisseurs, capazes de fruir o estilo rugoso, e o restante da sociedade, habituada à tradição da fatura lisa. Mas Alpers destaca que a materialidade da tinta em Rembrandt não se baseava no propósito de satisfazer um público seleto e esclarecido, mas em um meio de dar visibilidade ao próprio ofício, de afirmar um tipo de habilidade pictórica. No ato de escavar a superfície úmida de tinta com a ponta do pincel ou do tento, Rembrandt indicava, desde o início da carreira, a associação da visão com o tato, sugerindo qualidades táteis para sua pintura. As mãos seriam o instrumento fundamental do pintor, e seu tratamento da tinta revelaria o domínio desse ofício, a ponto de Rembrandt inventar uma maneira peculiar de pintar. Alpers desenvolve, no segundo e no terceiro capítulos, a hipótese de que Rembrandt criou um estilo pessoal ao adotar também o modelo teatral, em vez da arte do passado. Embora não fosse o único a ser inspirado pelo teatro, visto que artistas contemporâneos adaptavam imagens de cortejos públicos, de tableaux vivants, dentre outros espetáculos, em pinturas, desenhos e gravuras,

* Mestre em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília. Pesquisadora Colaboradora Júnior do PPG-Arte/UnB.

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Rembrandt levou para o ateliê os jogos teatrais como um recurso pedagógico para o estudo da natureza humana. Tanto as encenações teatrais quanto a realização dos desenhos eram dirigidos por Rembrandt, que possuía incontestável autoridade sobre o ateliê. Esse método contribuiu, se-gundo a autora, para que o artista aperfeiçoasse a reconstrução teatral dos sentimentos humanos, sobretudo por meio da experiência de pintar autorretratos – diante de um espelho, o artista se tornava um ator testando diferentes expressões em si mesmo. Alpers examina os interesses e ambições de Rembrandt no mundo da arte. O último capítulo mostra em que medida o artista partilhava dos novos valores éticos da economia de mercado holandesa, afirmando sua liberdade ao separar o ambiente doméstico do ateliê, ao distanciar-se dos cânones da tradição (até mesmo em seu método de ensino, substituindo a cópia de obras do passado por obras de sua autoria, inclusive autorretratos) e ao emancipar-se da figura do me-cenas, adotando o sistema mercantil para propor preços para suas obras. Em uma interessante análise da noção da individualidade do pintor, Alpers afirma que o verdadeiro propósito de Rem-brandt era a “prosperidade econômica de sua arte”, como profissional consciente da singularidade e do valor de sua obra. Recorrendo a outros campos da cultura, com os quais concilia o conhe-cimento artístico, Alpers explica como o idiossincrático Rembrandt, ao incentivar a proliferação do estilo Rembrandt, contribuiu para o sistema da arte e, de certo modo, para o estado atual de “desatribuições” de autoria.

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O Mundo Codificado: por uma Filosofia do Design e da ComunicaçãoFLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.

CARLOS PRAUDE *

Apresentado como essencial à formação de qualquer designer ou profissional da comunicação, compreendo que o livro O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, de Vilém Flusser, é uma obra preciosa para artistas programadores por esboçar questões pertinentes ao campo da arte computacional sob um prisma filosófico. Neste sentido, pretendo destacar alguns pontos que chamaram minha atenção. Com tradução de Raquel Abi-Sâmara, o livro é uma compilação de diversos textos curtos, rá-Com tradução de Raquel Abi-Sâmara, o livro é uma compilação de diversos textos curtos, rá-pidos e incisivos, que foram estruturados pelo organizador Rafael Cardoso em três seções: Coisas, Códigos e Construções. Os textos se complementam e enfatizam, de forma bastante clara, a reflexão filosófica que o autor articula sobre temas relacionados com a tecnologia da informação, como os artefatos de software e a codificação dos objetos com que lidamos em nossa vida cotidiana. Flusser observa que “hoje em dia, sob o impacto da informática, começamos a retornar ao conceito original de matéria como um preenchimento transitório de formas atemporais” (p.24). Para o autor, a ideia da mudança dos estados da matéria proporcionou o surgimento de uma nova imagem do mundo onde a matéria se realiza em campos energéticos de possibilidades que se entrecruzam. Neste cenário, o autor postula que há um despropósito no abuso do conceito de “imaterial” e uma compreensão inadequada do termo informar. Informar corresponde ao proces-so de dar forma a algo, o que significa impor formas à matéria. O autor assinala que isso é de uma atualidade abrasadora e que o que está em jogo são os equipamentos técnicos que permitem apresentar, nas telas, algoritmos em forma de imagens em movimentos. Para Flusser, se antes o que importava era uma ordenação formal do mundo aparente da ma-Para Flusser, se antes o que importava era uma ordenação formal do mundo aparente da ma-téria, o que está em questão hoje é como tornar aparente um mundo altamente codificado em números, um mundo de formas que se multiplicam incontrolavelmente. A aparência do material é a forma e, para Flusser, “no sentido estrito, a forma, é precisamente aquilo que faz o material aparecer” (p.32). Considerando as formas não mais como descobertas ou ficções e sim como modelos, Flusser articula uma reflexão onde a questão já não se foca no real, mas sim no que é conveniente, verifi-cando que as formas são recipientes, são modelos construídos especialmente para os fenômenos. O design é um dos métodos de dar forma à matéria. O design mostra que a matéria não é apa-rente, a menos que seja informada, que é quando começa a manifestar-se, ou seja, a tornar-se fe-nômeno. Para o autor, existem dois modos distintos de projetar : o material e o formal. O primeiro resulta em representações, enquanto o outro produz modelos. O modo material enfatiza aquilo que aparece na forma, enquanto a maneira formal realça as características daquilo que aparece. Flusser considera que “as fábricas são lugares onde sempre são produzidas novas formas de homens: primeiro o homem-mão, depois, o homem-ferramenta, em seguida, o homem-máquina e, finalmente, o homem aparelho-eletrônico” (p.37). “Quanto mais complexas se tornam as ferra-

* Mestre em Arte e Tecnologia pela Universidade de Brasília.

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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

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mentas, mais abstratas são as suas funções” (p.42). Para o autor, os aparelhos eletrônicos exigem um processo de aprendizagem ainda mais abstrato e o desenvolvimento de disciplinas que, de modo geral, ainda não se encontram acessíveis. A fábrica do futuro deverá assemelhar-se mais a laboratórios científicos, academias de arte, bibliotecas e discotecas do que às fábricas atuais. O homem-aparelho do futuro deverá ser pensado mais como um acadêmico do que como um operário, um trabalhador ou um engenheiro. Na fábrica do futuro, o homem “reconhecerá que fa-bricar significa o mesmo que aprender, isto é, adquirir informações, produzi-las e divulgá-las” (p.43). Para o filósofo, com o surgimento dos aparelhos eletrônicos e da Tecnologia da Informação, deparamos com “não coisas” denominadas “informações”, que se encontram por todos os lados. Todas as coisas contêm informações. Nosso interesse desloca-se das coisas para as informações. A sociedade ocupa-se cada vez mais da produção de informações, serviços e sistemas. Os valores são transferidos para as informações, configurando um imperialismo onde a humanidade é domi-nada por grupos que dispõem de informações privilegiadas. Flusser esboça o pensamento de que “entenderemos que se pode viver de forma diferente e talvez até melhor” (p. 57). Para o autor, a vida entre as coisas pode não ser excepcionalmente maravilhosa como se pensava antes, e teremos que imaginar essa nova vida com as “não coisas” (p. 58). Na visão de Flusser, o homem não lida mais com as coisas, por isso não pode mais falar de suas ações concretas. O que lhe resta de suas mãos são as pontas dos dedos para operar sím-bolos que lidam com informações. Por não estar interessado nas coisas, no lugar de problemas o homem tem programas. Para o autor, o surgimento da “não coisa” não atingirá a disposição básica da existência humana, o ser para a morte. O autor considera que as coisas estão se tornando cada vez menores, enquanto as “não coi-O autor considera que as coisas estão se tornando cada vez menores, enquanto as “não coi-sas” ao nosso redor estão inflando, como é o caso da informática. Neste cenário, a produção de informações é um jogo de permutação de símbolos. Para jogar com os símbolos, para programar, é necessário pressionar teclas. As pontas dos dedos são órgãos de uma escolha que se realiza de acordo com prescrições programadas, configurando decisões que desencadeiam processos. Para o filósofo, é como se a sociedade do futuro se dividisse em duas classes: a dos programadores e a dos programados. A primeira seria constituída por aqueles que produzem programas e a se-gunda, por aqueles que se comportam segundo o programa. Como os programadores realizam o mesmo movimento de dedos que é feito pelos programados e tomam decisões dentro de um metaprograma, em um ciclo onde se revela o infinito, Flusser conclui que a sociedade do futuro será uma sociedade sem classes, uma sociedade de programados programadores: “Somos talvez a última geração que pode ver com clareza o que vem acontecendo por aqui”. Para compreen-dermos esse momento, Flusser chama a atenção para o que se entende por “programa” – “esse conceito fundamental dos tempos atuais e futuros” (p.65). Para Flusser, além do mundo computado pelo nosso sistema nervoso central, “somos capazes de criar percepções, sentimentos, desejos e pensamentos distintos, alternativos” (p.78). Nesse cenário aparece a comunicação humana, com o propósito de desviar a atenção da falta de sentido de uma vida destinada à morte. É onde se “estabelece um mundo codificado, constru-ído a partir de símbolos ordenados, no qual se represam as informações adquiridas” (p.96). Para o autor, a comunicação atinge seu objetivo (dar significado à vida) quando há um equilíbrio entre discurso e diálogo. Flusser ilustra nossa capacidade de comunicação e percepção ao discorrer sobre a importância das superfícies no nosso dia a dia. Para o autor, “o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos” (p.118). Códigos imagéticos, por depender de pontos de vista predetermi-nados, são subjetivos, enquanto os códigos conceituais, que não dependem de um ponto de vista, são objetivos. Em sua visão, a mídia linear poderá unir-se à da superfície numa relação criativa, favorecendo o surgimento de novos tipos de mídias, abrindo novos campos de percepção e pen-samento. Se “o significado geral do mundo e da vida em si mudou sob o impacto da revolução na

comunicação” (p.127), Flusser analisa o papel dos códigos e das cores nas superfícies (portadores de mensagens), para argumentar que devemos aprender os códigos tecnológicos, sob o risco de nos tornarmos “condenados a prolongar uma existência sem sentido em um mundo que se tor-nou codificado pela imaginação tecnológica” (p.137). Se durante quase toda a história ocidental o código numérico permaneceu preso ao código alfabético, Flusser aponta para uma situação diferenciada onde o “código numérico evadiu-se do código alfabético, e, com isso, pôde livrar-se da obrigação de linearidade e passar dos números para as informações digitais” (p.170). Esse ato possibilitou o surgimento de um gesto diferenciado de criação de imagens, proporcionando uma imaginação que se mostra como um ajuntamento de algo calculado para a formação de imagens. Analisando esse gesto, Flusser constata que tais imagens são criadas para que se busque o inesperado em um campo de possibilidades onde se revela uma estética pura. Para o autor, quando as imagens são criadas a partir de cálculos e não de circunstâncias, a experiência estética favorece ao Homo faber a libertação do Homo ludens. Diante da atualidade implícita nos textos do filósofo, o livro apresenta-se como uma preciosa obra para artistas computacionais e para a arte que se realiza por meio da Tecnologia da Infor-mação, no sentido de proporcionar um olhar crítico sobre a sociedade midiática em que vivemos.

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DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 1º/2010

BARBOSA, Larissa Ferreira Regis – AMC: Afecção mediada por computar em coletivos performáticos desterrito-rializados. 01/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Beatriz de Medeiros

CAETANO, Alexandra Cristina Moreira – Interface: Processos criativos em arte computacional. 03/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Suzete Venturelli

GUIMARÃES, Marta Mencarini – Mesa de luz: Colagem-composição. 05/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso

RIBEIRO, Kaise Helena Teixeira – A dialogicidade no Mamulengo Riso do Povo. 12/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Izabela Costa Brochado

DE OLIVEIRA, Gabrielle Patrícia Augusta Corrêa – Lucian@ cartografia afetiva e artística em contexto ciber-urbano. 16/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso

DE VASCONCELOS, Adriana Santos – A relação de troca artístico-criativa entre preparador de atores, ator e di-retor em Bicho de Sete Cabeças (2000) de Laís Bodansky e O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz. 22/03/2010.Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz

HORA, Daniel de Souza Neves – / arte_hackeamento / diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica. 24/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos

NUNES, Francisco Pereira – Platéia ou plateia? A progressiva perda do assento nos teatros de Brecht, Moreno e Boal. 25/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva

DE BRITO, Alessandra Araújo – Dança e dissonância: Poéticas de esculpir o tempo. 26/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva

AMARO, André de Borba – O espetáculo cênico e o espírito caleidoscópico. 29/03/2010.Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz

PRAUDE, Carlos Corrêa – Arte computacional e experiência estética. 18/06/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos

PINHEIRO, Luciana Paiva – Precário: fragilidade e instabilidade na imagem. 30/06/2010.Orientador: Profº Dr. Geraldo Orthof Pereira Lima

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB

NORMAS PARA COLABORADORES

1. A revista VIS aceita colaborações de trabalhos originais e inéditos, de autoria individual ou coletiva, sob a forma de artigos, ensaios, entrevistas e resenhas, submetidos à apreciação de seu Conselho Editorial. Artigos não originais, isto é, já publicados, só serão aceitos em caso de edição esgotada ou de tradução para uma língua diferente da original.

2. Os textos devem:

a) ser gravados em editor de texto Word for Windows 6.0 ou superior, em formato A4, exclusivamente em fonte Times New Roman;b) ter de 20 a 25 páginas, corpo 12, com espaço entrelinhas duplo, alinhado à esquerda;c) conter título, identificação do autor, resumo/abstract, palavras-chave/keywords e referências bibliográficas.

3. Os textos e as imagens que os acompanharem devem ser submetidos em duas vias impressas idênticas e em arquivo(s) gravado(s) em um disquete ou CD.

4. O Título dos textos deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, em caixa alta e baixa (só as iniciais maiúsculas), ter no máximo 85 caracteres, não ter palavras ou expressões sublinhadas. Usar itálico somente para a grafia de palavras estrangeiras. O título e o subtítulo, se houver, devem ser separados por dois pontos (:).

5. A identificação do(s) autor(es) deve:

a) ser digitada em fonte Times New Roman, corpo 12;b) conter, na linha abaixo do(s) seu(s) nome(s), o nome da(s) instituição(ões) a que está vinculado(s) como docente(s); pesquiador(es) ou aluno(s), digitado em fonte Times New Roman;c) em caso de aluno de programa de pós-graduação, especificarse é mestrando ou doutorando;d) conter o endereço eletrônico do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, corpo 12;e) conter, em um único parágrafo, dados biográficos do autor com no máximo 50 palavras, em fonte Times New Roman, corpo 12.

6. O Resumo deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço entrelinhas 1,5. O Resumo deve ser digitado em um único parágrafo com o mínimo de 400 e o máximo de 800 caracteres, tanto na versão em português quanto na versão em inglês (Abstract).

7. As Palavras-Chave devem ser digitadas em fonte Times New Roman, corpo 12, em sequência na mesma linha, separadas por ponto (.) e finalizadas também por ponto. Podem ser inseridas de três a cinco Palavras-Chave, seguidas, na linha abaixo, pela versão de cada uma para o inglês (Keywords).

8. O Corpo do texto deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, com espaço entrelinhas du-plo, alinhamento à esquerda, com o máximo de 25 laudas, incluindo referências bibliográficas.

9. Todas as imagens devem ser fornecidas em arquivos separados, em formato .jpg, sua localização no texto

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deve ser indicada pela inserção de legenda e o número de cada arquivo deve corresponder ao número de ordem de ocorrência da figura ou tabela no texto.

10. A identificação de cada imagem no texto aparece na parte inferior, precedida da palavra designativa, seguida de seu número de ordem de ocorrência no texto, em algarismos arábicos, do respectivo título e/ou legenda explicativa de forma breve e clara. A imagem deve ser inserida o mais próximo possível do trecho a que se refere, conforme o projeto gráfico.

11. A obtenção de direitos de reprodução das imagens utilizadas em cada texto, caso não sejam de domínio público, é de inteira responsabilidade do autor.

12. A numeração das notas explicativas é feita em algarismos arábicos, devendo ser única e consecutiva para cada artigo.

13. Para elaboração de referências, elemento obrigatório, recomendamos a norma ABNT NBR6023.

14. Para elaboração de citações, recomendamos a norma ABNT NBR10520.

15. As citações com mais de três linhas devem ser digitadas em parágrafo separado, com espaço entrelinhas simples, corpo 10 e sem aspas. As citações devem ser listadas no final do texto com Referências. Os dados bibliográficos completos das citações não devem ser inseridos no corpo do texto (ver norma citada no item 14).

16. As notas de rodapé devem conter apenas comentários imprescindíveis para a compreensão do texto e não os dados bibliográficos.

17. A editora da revista VIS poderá realizar modificações que visem à correção gramatical, à adequação às normas da ABNT e à formatação dos originais de acordo com o projeto gráfico.

18. As colaborações devem ser enviadas para o endereço: Conselho Editorial da Revista VIS; Programa de Pós-Graduação em Arte; Instituto de Artes; Universidade de Brasília; Prédio SG-1, Campus Universitário Darcy Ribeiro; Brasília; DF. CEP 70910-900

19. A revista VIS não se compromete com a devolução dos trabalhos recusados pelo Conselho Editorial.