Revolta Da Chibata - S Capanema

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  • Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 31, n 61, p. 61-84- 2011

    *Professora da Universidade de Paris 13. 46, Rue Auguste Poullain 93200 Saint Denis France. [email protected]

    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construo

    do heri de uma revolta centenria From Seaman Joo Cndido to the Black Admiral: memorial

    conflicts in the construction of the hero of a centenary revolt

    Silvia Capanema P. de Almeida*

    ResumoO artigo discute a consolidao da Re-volta da Chibata (Rio de Janeiro, 1910) como um tema da memria nacional brasileira, pela anlise de diferentes mo-mentos e tentativas de recuperao, apropriao e comemorao do levante. Discute como a edificao do marinhei-ro negro Joo Cndido como heri na-cional foi, ao longo do sculo XX, um processo complexo, que revela valores de diferentes temporalidades, contextos e lugares sociais. Analisando trs nveis de memria coletiva, nacional e indi-vidual , busco compreender como as celebraes relacionadas a essa revolta revelam tambm violncias, silncios e esquecimentos, ao mesmo tempo em que embates so travados na procura por reconhecimento e legitimao de um cone na poca da celebrao de seu centenrio.Palavras-chave: Revolta da Chibata; memrias; Marinha; heri nacional; questes raciais.

    AbstractThis article discusses the consolidation of the Chibata Revolt (The Revolt of the Whip) (Rio de Janeiro, 1910) as a theme in Brazilian national memory, through the analysis of different mo-ments and attempts at the restoration, appropriation and commemoration of the rising. I discuss how the building of the black sailor Joo Cndido as a na-tional hero was a complex process dur-ing the twentieth century, which reveals values of different temporalities, con-texts and social places. Analyzing three levels of memory collective, national and individual , I seek to understand how the celebrations related to this re-volt also revealed violence, silence and forgetfulness, at the ecebido: maro / 2011; aprovado: maio / 2011 time that clashes occur in the search for the rec-ognition and legitimacy of an icon in the celebration of its centenary. Keywords: Chibata Revolt (The Revolt of the Whip); memories; Navy; National hero; racial questions.

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    Maio de 2010. O presidente Lus Incio Lula da Silva, em fim de mandato, celebra o lanamento em Pernambuco do petroleiro Joo Cndido.1 O navio da Petrobras aplaudido como smbolo de orgulho nacional e recebe, a con-tragosto da Marinha de Guerra, o nome do marinheiro primeira-classe Joo Cndido Felisberto (1880-1969), lder de uma revolta de marujos ocorrida cem anos antes. O marinheiro negro Joo Cndido continua sendo a figura mais lembrada desse movimento, ao passo que sua histria de vida revela diferentes combates memoriais, os quais envolvem a adeso de polticos e de diferentes correntes dos movimentos sociais e negros, mas tambm controvrsias, prin-cipalmente no que se refere sua instituio de origem, a Marinha do Brasil.

    A construo do personagem Joo Cndido remonta a acontecimentos da noite de 22 de novembro de 1910, quando um grupo de mais de mil mari-nheiros subalternos da Marinha de Guerra se rebelou na baa de Guanabara, tomando o controle dos navios mais importantes da frota da poca sobretu-do os grandes encouraados Minas Gerais, So Paulo e o scout Bahia e apon-tando suas armas contra a capital federal. Os marinheiros, na maioria negros, pardos e oriundos do Norte e do Nordeste do Brasil, exigiam melhores condi-es e o fim dos castigos corporais, em particular, a abolio da chibata.2

    A rebelio durou aproximadamente cinco dias e mobilizou a sociedade e a opinio da poca. Alguns rgos da imprensa foram simpticos aos mari-nheiros, bem como certos parlamentares, e o governo acabou concedendo a anistia aos rebeldes.3 No entanto, dias depois, o Estado autorizou a publicao de um decreto que previa o desligamento da Marinha dos elementos conside-rados nocivos disciplina a bordo dos navios (decreto 8400, de 28 nov. 1910). Aproximadamente mil marinheiros foram dispensados da Marinha at o incio de dezembro do mesmo ano, e um clima de desconfiana entre praas subalternos e oficiais tomou conta dos navios. Nesse contexto, uma segunda rebelio estourou no Batalho Naval, a qual foi rapidamente massacrada pelas foras oficiais da Repblica brasileira sob o regime do estado de stio. Diversas prises foram feitas, e o navio Satlite foi preparado para deportar para o Nor-te do Brasil 491 pessoas, dentre as quais marinheiros e outros representantes das camadas populares, identificados como vagabundos, prostitutas e solda-dos do Exrcito, muitos vindo a falecer durante a viagem em razo das ms condies ou de fuzilamentos. Em outra medida de exterminao, as autori-dades da Marinha encarceraram marinheiros e fuzileiros navais em prises solitrias no complexo naval da Ilha das Cobras durante o Natal de 1910. A maior parte dos prisioneiros morreu ao cabo de 3 dias em razo da falta de ar puro, agravada pelo acrscimo de uma soluo de cal nas celas, e desidratados

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    pelo calor. Consta que, numa solitria onde havia 18 pessoas, somente dois homens sobreviveram o soldado naval Joo Avelino Lira e o marujo Joo Cndido. Dois anos mais tarde, formou-se um Conselho de Guerra para veri-ficar a participao dos rebeldes de novembro na revolta de dezembro de 1910. Foram convocados setenta homens, mas somente dez compareceram, os ou-tros foram apontados como desaparecidos, fuzilados, mortos por insolao. Joo Cndido e os nove outros companheiros presentes so absolvidos.4

    O conjunto desses fatos ficou conhecido pela historiografia brasileira co-mo Revolta da Chibata, ttulo do clssico do jornalista Edmar Morel publicado em 1959 (Morel, 2009). Trata-se de um caso exemplar de utilizao da violn-cia por parte do Estado para reprimir rebeldes, de uma revolta que revela contradies da jovem Repblica brasileira, de uma tentativa de expresso dos marinheiros subalternos. Trata-se de um acontecimento no sentido histrico do termo, capaz de marcar o tempo entre o antes e o depois, revelar mecanis-mos sociais aparentemente pouco visveis e tornar-se lembrado e celebrado posteriormente de diferentes maneiras.5 Sua construo como objeto histrico bem como a recuperao de Joo Cndido pela memria nacional revela a existncia de vrias camadas memoriais e de formas de apropriao de um acontecimento. Tanto os silncios quanto a necessidade de falar so dimenses presentes na violncia do acontecimento.6

    O presente artigo pretende discutir em que medida a necessidade de se rememorar um acontecimento e um heri marcada por diversas formas de esquecimento provocadas por formas de autoritarismo, por escolhas ou cris-talizaes. Assim, em um primeiro momento, demonstro como a memria da Revolta da Chibata esteve presente numa srie de manifestaes culturais do incio do sculo XX, revelando uma necessidade social de reviver e de com-preender os acontecimentos, apesar do mal-estar que podiam ocasionar. Em seguida, analiso o conflito travado entre aqueles que desejavam comemorar a revolta e celebrar o seu maior heri em especial, os escritores de esquerda que, como Edmar Morel, tentaram lhes atribuir um novo lugar na Histria do Brasil e os que, ao contrrio, esforaram-se para que isso no acontecesse como as autoridades policiais e navais. Finalmente, dedico-me a compreender a recuperao de Joo Cndido por outros atores mais contemporneos, como os movimentos sociais e movimentos negros, e a criao de lugares de mem-ria. Da mesma forma, sabendo-se que a memria tambm uma forma de seleo,7 busco ouvir outras vozes contidas nos testemunhos dos descendentes de dois marujos rebeldes, os filhos de Joo Cndido e de Adalberto Ferreira Ribas, e no depoimento de um antigo oficial da Marinha que tambm se inte-

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    ressou pelo tema. A memria desse acontecimento participa, portanto, da sua prpria histria, e h muito a dizer sobre as primeiras recuperaes pela cul-tura popular e pelos discursos mais recentes do presidente Lula.

    Da memria imediata ao esquecimento: o acontecimento celebrado pelas produes culturais populares do incio do sculo XX

    J entre o final de novembro e o incio de dezembro de 1910, o palhao e compositor negro Eduardo das Neves (1874-1919), conhecido tambm como Dudu das Neves e Diamante Negro, comps a canoneta Os reclamantes, sobre a revolta dos marinheiros.8 Nela, o desespero dos moradores do Rio, que fugi-ram dos possveis bombardeios, retratado com humor, concretizando um segundo momento de recepo do acontecimento. O compositor exalta Joo Cndido, marinheiro de opinio, contribuindo, assim como outros rgos de imprensa que desde logo o chamaram de almirante,9 para a sua transfor-mao de annimo em personagem famoso. Contudo, o grande momento destacado pela canoneta o retorno ordem depois da revolta de novembro, talvez como forma de se evitarem problemas com as autoridades que costu-mavam censurar, no perodo, algumas manifestaes culturais populares por intermdio da ao policial.10

    A revolta dos marinheiros de 1910 serviu tambm como tema para o cine-ma brasileiro em nascimento. Ainda em novembro do mesmo ano, trs filmes documentrios sobre o assunto foram gravados, e ele inspirou tambm a criao de um curta-metragem mudo de fico, realizado entre 1910 e 1912 e intitulado A vida de Joo Cndido.11 Esse filme teria sido uma das primeiras produes do cinema brasileiro a serem censuradas. Tido como desaparecido, temos poucas informaes sobre seu contedo. Uma nota publicada no Correio de Manh em 23 de janeiro de 1912 dizia que o chefe de polcia do Rio de Janeiro

    proibiu a sua representao, mandou apreender os cartazes-reclamos e deu ordens para que prendesse os distribuidores dos reclamos. E com isso o sr. Belizrio lavrou um tento, porque, se no fizesse o que fez, talvez a essa hora o Rio em peso estivesse revolucionado ... para ver a fita que se exibia na rua marechal Floriano.

    Um ano aps a proibio do filme, em janeiro de 1913, o circo Spinelli organizou uma sesso em homenagem ao ex-marinheiro Joo Cndido (O

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    Paiz, 24 jan. 1913). Uma das principais atraes do circo Spinelli era o palhao negro Benjamin de Oliveira (1870-1954), escravo que havia fugido, aos 12 anos, de uma fazenda em Par de Minas, Minas Gerais, para acompanhar o mundo circense.12 Porm, esse tipo de circo, para continuar existindo, tinha tambm de estabelecer boas relaes com as autoridades. Assim, alguns dias antes do anncio da organizao do espetculo em homenagem a Joo Cndido, o che-fe de polcia do Distrito Federal, Belizrio Fernandes da Silva Tvora, o mesmo que havia proibido a exibio do filme sobre a vida do marinheiro, fazia parte do pblico de um espetculo do circo Spinelli (O Paiz, 21 jan. 1913).

    as memrias de Joo cndido, o marinheiro

    Depois da liberao de Joo Cndido pela justia militar em dezembro de 1912, o jornalista e escritor Paulo Barreto, conhecido como Joo do Rio, deci-diu publicar uma srie de artigos num formato tpico dos feuilletons da po-ca no peridico Gazeta de Notcias, intitulados Memrias de Joo Cndido, o marinheiro.13 Apesar de a Gazeta insistir sobre a autenticidade da escrita de Joo Cndido, que teria produzido suas memrias quando internado no hos-pital dos alienados e na priso da Marinha enquanto aguardava o julgamento, elas foram apontadas como obra do cronista Joo do Rio.14 No entanto, diver-sos elementos nos indicam que, por um lado, Joo Cndido acompanhava sem dvida a produo dos captulos, acrescentando-lhes uma srie de informaes importantes que somente ele ou um colega bem prximo poderia conhecer e, por outro lado, ele provavelmente no teria sido o nico responsvel pelo tex-to final publicado, outras pessoas tambm o teriam modificado.15

    Podemos dividir as Memrias de Joo Cndido em trs partes. Num primeiro momento, ele conta o seus incios na Marinha e suas viagens inter-nacionais. Nesse sentido, suas memrias lembram um dirio de viagem (nar-rativa na primeira pessoa, tempo cronolgico, descontinuidades e impresses sobre o Outro). Esse tipo de texto pode ser encontrado com frequncia em publicaes dos oficiais da Marinha, os quais costumam dotar seus textos, as-sim como o marujo, de um forte sentimento nacionalista. A especificidade das Memrias reside, no entanto, no fato de que o testemunho feito por um marinheiro subalterno, a quem muito raramente se atribui o lugar da escrita.

    Em um segundo tempo, as Memrias narram os fatos da revolta dos marinheiros, desde a organizao at a anistia. Fornece aos leitores uma srie de informaes que somente uma pessoa que se encontrava nos navios poderia conhecer. Joo Cndido revela igualmente diversos detalhes, como as horas

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    precisas, os nomes de outros comandantes rebeldes (como ficaram conhecidos em parte da imprensa da poca) e a movimentao dos navios. Aqui, o texto assume um vigor tpico dos dirios de guerra, outro tipo de narrativa geral-mente prpria dos oficiais.

    Enfim, um terceiro momento da histria de Joo Cndido cumpre uma funo de denncia: ele acusa o governo de ter contribudo para a preparao da revolta de dezembro no Batalho Naval, e, guisa de concluso, o marujo expe seu sentimento de injustia quanto sua excluso da Marinha. Contar, rememorar, tambm uma forma de denunciar. Alguns pontos do testemunho coincidem com outros depoimentos de Joo Cndido ao longo da vida. No entanto, essas narrativas no so idnticas, e podemos constatar a alterao de algumas referncias, momentos de descontinuidades que nos levam a pensar na autenticidade de seu testemunho tambm em suas contradies e variantes.16

    Pouco depois de sua publicao pela imprensa, todavia, as Memrias caram no esquecimento. O primeiro a se calar sobre essa publicao foi o pr-prio Joo Cndido, que no mencionaria sua existncia a nenhum de seus bi-grafos ou entrevistadores, afirmando, alm disso, que os manuscritos redigidos no hospital e na priso da Marinha teriam sido destrudos (Morel, 2009, p.286). De qualquer maneira, reescritas e retomadas em outras falas, essas memrias so uma evidncia da presena do tema nos primeiros anos do sculo XX e colaboram para a construo do personagem do marujo na memria coletiva, ao mesmo tempo em que os outros lderes comeavam a ser esquecidos.

    Dos primeiros ensaios escritos aos usos polticos: Joo Cndido e as verses da Revolta da Chibata

    Datam da dcada de 1930 os primeiros ensaios que tomam partido dos marinheiros rebeldes, como o livro escrito em 1931 pelo poeta comunista e surrealista francs Benjamin Pret (1899-1959). Pret viveu no Brasil entre 1929 e 1931, numa primeira temporada, quando conheceu os principais nomes do modernismo local. Porm, foi preso e expulso do pas por ser visto como um elemento nocivo tranquilidade pblica. Durante o perodo, colaborou com tradues e escreveu o prefcio de uma obra sobre a revolta do encoura-ado russo Potemkim acontecida em 1905.17 A revolta dos marinheiros brasi-leiros seria, segundo ele, uma verso tupiniquim do motim russo. Entretanto, seu livro, que se intitulava O Almirante Negro em homenagem a Joo Cndido, nunca chegou a ser publicado, pois os manuscritos foram apreendidos pela

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    polcia de Getlio Vargas e provavelmente destrudos quase em sua integrali-dade. Somente quatro pginas foram encontradas posteriormente, na dcada de 1980. Pret analisa a revolta como uma expresso da luta de classes e con-vida o conjunto dos trabalhadores brasileiros para fazerem uma greve geral revolucionria.

    Em 1934, outra publicao clandestina foi editada em Pelotas, no Rio Grande do Sul, seguindo um pouco a mesma direo do livro de Benjamin Pret. O autor, assinando com o pseudnimo de Benedito Paulo, foi identifica-do como o mdico Ado Pereira Nunes, ainda escritor e poltico filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). O Brasil apresentado como um pas semicolonial, cujo povo oprimido tinha necessidade de conhecer histrias como a da revolta dos marinheiros para que se formasse uma conscincia de classe popular.18 O texto foi reproduzido integralmente no Jornal do Povo, pe-ridico dirigido pelo humorista Apparcio Torelly (1895-1971), o Baro de Itarar, tambm membro do PCB,19 o que indica que o assunto interessava aos intelectuais desse grupo na poca. Como consequncia dessa publicao, ficou registrada uma anedota que revela a existncia da represso ao tema: dizem que o jornalista foi sequestrado e agredido fisicamente por seis oficiais da Ma-rinha. Ao retornar redao do jornal j recuperado dos golpes, ele colocou uma placa na porta da sua sala com os dizeres entre sem bater.20

    Entretanto, Joo Cndido assumia no perodo uma orientao poltica bastante oposta: era simpatizante da Ao Integralista Brasileira, movimento de tendncia fascista fundado em 1932, cujas palavras de ordem eram Deus, Ptria e famlia.21 Joo Cndido contava que havia sido abordado pessoalmente pelo lder Plnio Salgado, e que havia aderido organizao junto a vrios companheiros marinheiros e oficiais da Marinha (Morel, 2009, p.225-226). O fato de ter participado de uma revolta popular que se tornou um legtimo co-ne para intelectuais e polticos de esquerda no significa, no entanto, que Joo Cndido fosse assumidamente um homem de esquerda. Ao contrrio, devemos consider-lo em seu contexto e em sua complexidade como agente histrico.22

    a Revolta da chibata: o jornalista e o marinheiro

    Se j era difcil tratar do movimento dos marinheiros at o incio da d-cada de 1930, durante o Estado Novo de Getlio Vargas (1937-1945) o assun-to parece ter desaparecido das livrarias e da vida pblica. Todavia, com o re-torno democracia, o tema retorna s pginas da imprensa e anima polmicas envolvendo oficiais da Marinha. O comandante reformado Lus Altran de

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    Alencastro Graa reage, em jornal de grande tiragem, a uma reportagem sobre a memria da revolta dos marinheiros publicada pelo jornalista Raimundo Magalhes Junior no Dirio de Notcias em 1948. O oficial diz, a respeito de Joo Cndido, que: se o nome desse infeliz pertencesse Histria, na opinio do ilustre jornalista, que to bondosamente o apadrinha, no devia ser guisa de heri. Melhor ento no possuir histria, para no confundi-la com os anais da criminologia (citado por Arias Neto, 2001, p.278). Em 1949, o comandan-te H. Pereira da Cunha publica uma verso oficial da revolta num nmero da Revista Martima Brasileira.23

    No final de 1958, um jornalista conhecido do Rio de Janeiro escreve um livro em que expe 10 anos de pesquisa sobre o tema. Trata-se de Edmar Morel (1912-1989), que publica, no Rio de Janeiro, A Revolta da Chibata (Morel, 1958). A publicao torna-se um marco para a memria do acontecimento, batizando a rebelio e se misturando ao mesmo tempo com sua prpria histria.

    Os temas histricos eram frequentemente escolhidos pelo reprter Morel, e ele utilizava mtodos prximos aos do historiador, como o recurso a fontes impressas localizadas em arquivos e nas colees da imprensa. Porm, ele sem-pre se apresentou como jornalista ou reprter, assumindo mais facilmente a importncia do tempo presente como ponto de partida. Alm disso, se o pro-cedimento de investigao do autor prximo do mtodo do historiador, sua escrita bastante diferente. Enquanto o historiador sente necessidade de citar datas, de fazer referncias s fontes, de interromper seu texto com notas de rodap, o reprter Morel prefere privilegiar a fluncia da narrativa, que no deve ser muito interrompida com esse gnero de referncias.24 No entanto, mesmo sem evidenciar suas relaes com outras escolas do pensamento, esta-belece dilogos com outras linhas da historiografia, nomeadamente atravs da recuperao da figura de um heri da ral, nos seus dizeres. Nesse sentido, prope tanto uma leitura da histria vista de baixo quanto um compromisso biogrfico que busca revelar histrias de homens comuns, mas extraordinrios, perspectivas lanadas pela histria social inglesa, como atravs de E. P. Thomp-son e Eric Hobsbawm, ou pela micro-histria italiana, cuja maior referncia seria o trabalho de Carlo Ginzburg.25

    A Revolta da Chibata apresentava em sua primeira edio 11 captulos, os quais estabeleciam, de forma cronolgica, uma reconstituio dos diferentes momentos do levante, desde a apresentao do assunto segundo a perspectiva do autor at as medidas repressoras do governo, passando pela organizao da revolta e pela cobertura da imprensa na poca. Posteriormente, outros captu-los que contam a prpria histria do livro e da vida de Joo Cndido depois da

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    revolta foram acrescentados. Edmar Morel narra ainda que, com o trabalho quase terminado, foi visitar Joo Cndido em sua casa em So Joo de Meriti, na Baixada Fluminense, levando consigo vrios objetos desencadeadores de memria (Morel, 2009, p.245-246). A participao de Joo Cndido no traba-lho maior que a de um simples personagem. Ele torna-se tambm um tipo de ator de sua escrita, chamando o livro de minha histria.26 O antigo mari-nheiro torna-se amigo do jornalista, os dois so vistos juntos em diversos lu-gares do Rio e fotografados lado a lado por vrias vezes. No lanamento da primeira edio de A Revolta da Chibata, os dois homens assinavam juntos autgrafos na oficina da grfica, ao lado dos operrios que participaram da produo do volume. A Figura 1 mostra Joo Cndido, com 78 anos, mas ainda grande e esbelto, visto como uma figura mais reservada, ao lado de Edmar Morel, contando 46 anos, baixinho (tinha 1,52 m), descrito como uma pessoa muito amistosa, falante e engraada. O jornalista e o marinheiro assi-navam dedicatrias nos livros.

    Figura 1 O jornalista, o livro e o marinheiro.

    Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Diviso de manuscritos, Arquivo Edmar Morel.

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    O impacto do livro foi maior do que se esperava. A imprensa e o pblico receberam-no de forma entusiasmada, e as novas geraes podiam, enfim, co-nhecer a histria da sublevao. Em um ms, eram contados mais de 275 arti-gos publicados pela imprensa brasileira (Morel, 2009, p.266). Em dezembro de 1959 A Revolta da Chibata ocupava, de acordo com O Globo (30 dez.), o ter-ceiro lugar dentre os livros mais vendidos, atrs apenas de Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, e de Bilhetinhos de Jnio, de J. Pereira. A obra tambm teve outras consequncias mais pragmticas para a vida de Joo Cndido. Em 1959 foi votada, na Cmara Estadual do Rio Grande do Sul, uma penso para o ex-marujo, permitindo que largasse o trabalho de vendedor de peixes no mercado do centro carioca, onde trabalhara durante 40 anos (Morel, 2009, p.250-251).

    Mas novas respostas ecoaram novamente entre os oficiais da Marinha. No dia 25 de fevereiro de 1960, o comandante Oliveira Bello escreveu um relatrio sobre a vida de Joo Cndido, o qual foi publicado na quarta edio do livro de Edmar Morel sob o ttulo Verso oficial. No relatrio, o oficial recupera as origens de Joo Cndido, sua entrada na Marinha, as viagens feitas. Faz tam-bm uma descrio fsica e psicolgica do marujo orientada pelo pensamento racial:

    preto, de cabelos negros e encrespados, olhos escuros, alto e nutrido, olhar esquivo, feio, boca larga, andar vagaroso, introvertido, de poucas palavras e ges-tos; tudo isso herdado dos pais. Temperamento hbrido Inteligncia vulgar e pouco desenvolvida, ladino e sonso... 27

    a Revolta da chibata e o golpe militar

    Joo Cndido torna-se uma figura particularmente explorada por um no-vo grupo de marinheiros, organizados na Associao de Marinheiros e Fuzi-leiros Navais do Brasil (AMFNB), criada em 1962 num contexto de politizao da sociedade e de medo, de ambos os lados, de um golpe de Estado. A associa-o dos marinheiros pedia melhorias de sua condio e ampliao de seus direitos civis, mas se inseria num quadro mais amplo de reivindicaes, que marcou o governo Joo Goulart (1961-1964).28

    No dia 25 de maro de 1964, data de aniversrio da associao, os mari-nheiros organizaram um evento na sede do sindicato dos metalrgicos e ter-minou com a priso de vrios membros (Capitani, 1997). Porm, assim como depois da revolta de 1910, os marinheiros e fuzileiros presos foram anistiados

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    pelo presidente Joo Goulart, fato que foi utilizado, como sabemos, como um dos pretextos para o golpe militar alguns dias mais tarde (Rodrigues, 2004). Joo Cndido estava presente na reunio. O jornal carioca ltima Hora do dia 27 de maro de 1964 publicou, abaixo do ttulo Revolta de 1910 presente em 1964, uma foto do ex-marinheiro aos 84 anos trajando um terno, como gos-tava em ocasies do gnero, ao lado do novo lder dos marujos e fuzileiros, o chamado Cabo Anselmo. A imagem reproduz em um mesmo plano os dois lderes dos praas da Marinha, o do passado e o do tempo presente. Subenten-de-se assim a existncia de uma continuidade entre os dois movimentos, ao mesmo tempo em que as autoridades e setores conservadores da sociedade brasileira eram avisados sobre a possibilidade de uma nova rebelio.

    Figura 2 Joo Cndido e Cabo Anselmo, maro de 1964.

    Fonte: ltima Hora, 27 mar. 1964.

    Contudo, outros elementos indicam que Joo Cndido e os marujos de 1964 no compartilhavam exatamente a mesma linha de pensamento. Joo Cndido mantinha-se ctico quanto ao movimento dos marujos mais jovens, pois, para ele, Revolta de marinheiro s d certo no mar (Morel, 2009, p.255). Criticava, dessa maneira, o fato de que os discursos e o ato dos membros da

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    AMFNB reforassem questes polticas externas ao mundo naval. O movimen-to da Associao de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil foi, posterior-mente, bastante desacreditado e visto como uma pgina negra da histria do Brasil, de acordo com a memria imediata dos acontecimentos. Um ano mais tarde, foi denunciada a colaborao do presidente da associao, Cabo Ansel-mo, com a ditadura civil e militar brasileira.

    No dia 31 de maro de 1964, foras do Exrcito se organizaram e destitu-ram o governo de Joo Goulart, concretizando a revoluo de 1 de abril ou o golpe militar, como conhecido posteriormente. No dia 14 de abril do mes-mo ano, Edmar Morel escuta pelo rdio que o Alto Comando da Revoluo tinha cassado, na primeira lista, seus direitos polticos por 10 anos. A principal razo desse ato fora a publicao de A Revolta da Chibata. A partir de ento, o jornalista no podia mais votar e exercer uma funo pblica, e teve dificulda-de em trabalhar na imprensa. Todavia, reagiu com muito humor, bem a seu estilo, sua cassao. Mandou emoldurar o decreto de supresso de seus direi-tos publicado no Dirio Oficial e pendurou-o na parede de sua sala, como um quadro, dizendo ainda tratar-se de seu mais importante diploma (Almeida, 2009, p.551-560).

    Durante os primeiros anos do perodo militar, o tema da revolta dos ma-rinheiros foi da mesma forma cassado, enquanto Joo Cndido seguia a sua vida normalmente, vivendo em sua casa em So Joo de Meriti, na Baixada Fluminense. Suas principais distraes eram a religio ele tinha aderido Igreja Metodista Brasileira e a leitura. Na noite de 6 de dezembro de 1969 Joo Cndido faleceu de um cncer no pulmo, aos 89 anos.

    No incio da dcada de 1970, o tema alimenta outras manifestaes cul-turais, como o samba O mestre-sala dos mares, gravado em 1975 por Joo Bos-co e Aldir Blanc. Os msicos contam que tiveram diversos problemas com a censura. Tinham dificuldade em compreender as exigncias dos censores, at receberem esta explicao, segundo o testemunho de Aldir Blanc: Vocs no esto entendendo... Esto trocando palavras como revolta, sangue etc., e no a que a coisa est pegando O problema essa histria de negro, negro, negro....29 Algumas passagens da letra original foram mudadas, como a subs-tituio de negros por santos, almirante por navegante e feiticeiro por ma-rinheiro, guardando a rima e a mtrica originais e sugerindo, no lugar, figuras da linguagem potica. A histria da composio nos proporciona um exemplo de como a censura do perodo podia veicular a viso oficial racista da ditadura brasileira.

    Em 1986 foi lanada a quarta edio de A Revolta da Chibata. O contexto

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    de redemocratizao favorecia a retomada do assunto, mas o livro gerou novas reaes por parte dos oficiais da Marinha e, em 1988, o vice-almirante Hlio Lencio Martins publica um trabalho, fruto de suas pesquisas, intitulado A Revolta dos Marinheiros, 1910, como forma de livro-resposta ou de atualizao da verso oficial da Marinha de forma mais elaborada e aprofundada. O livro se divide em trs partes (a rebelio de novembro, a rebelio de dezembro e punies) e pretende adotar uma posio neutra quanto ao movimento e sua denominao consagrada (Revolta da Chibata), refutando o reconhecimento de Joo Cndido como seu lder maior e como heri:

    Esta fase da vida da Marinha brasileira, de consequncias to transcendentes, tem sofrido, ao ser analisada e descrita, uma dupla deformao. Os oficiais, vti-mas de agresses fsicas, do rompimento brusco da disciplina a que estavam condicionados, de ataques cadentes, injustos, desmedidos, oriundos do Con-gresso e da opinio pblica comandada pela imprensa, ao narrarem e comenta-rem os fatos ocorridos, ativeram-se principalmente ao que eles representam de primitivo, de subalterno, de feroz, mantendo sempre atitude defensiva em rela-o prpria honrabilidade da Marinha Por outro lado, escritores de esquer-da, utilizaram a sublevao, puramente militar que foi, para transform-la num movimento popular... (Martins, 1988, p.7-8)

    Dos testemunhos pessoais edificao do heri nacional: vozes e lugares de memria

    A revolta dos marinheiros existe tambm na memria de indivduos e grupos prximos aos principais atores ou que reivindicam uma afinidade com o movimento. Nesse sentido, a memria da revolta no se conserva somente em sua dimenso escrita, mas se faz tambm presente nas palavras dos dife-rentes atores sociais, confirmando a importncia da memria coletiva na so-lidificao de lembranas pessoais.30

    O vice-almirante Hlio Lencio Martins me recebeu em seu apartamento em Copacabana, no dia 9 de agosto de 2006. Lencio Martins, que contava 92 anos de idade na poca do nosso encontro, filho e neto de oficiais da Marinha. Ele conta que seu pai teria assistido a uma cerimnia de punio corporal com uso da chibata, ainda quando aspirante a guarda-marinha. Nos seus dizeres: Ele aguentou, mas ele tinha um colega mais moo, que se chamava Pareras,

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    que era um rapaz de 14 anos, que desmaiou vista daquele sangue. Tal era a impresso que dava, era horrvel.

    A dualidade marca o pensamento do vice-almirante Martins. Ele divide o tempo entre antes e depois da revolta e gosta de separar as tripulaes entre diferentes grupos: os mais jovens e os mais velhos, os bons e os maus elemen-tos, como vemos nesta passagem de seu testemunho:

    os homens que iam para a Marinha eram quase bicho. Era a ral da humanidade que aceitava ser marinheiro. Mas de repente os navios comearam a ser mecanizados, a partir da segunda metade do sculo XIX. Ento comeou a precisar de gente diferente. O pessoal usava at uma expresso: antes precisava-se de homens de ferro para navios de madeira. Agora, precisava-se de homens, no de madeira, mas tcnicos, para navios de ferro.

    De acordo com essa viso, a perpetuao dos castigos corporais era um signo do atraso brasileiro, mas a supresso efetiva das punies s poderia mesmo acontecer no dia em que fosse feita uma substituio das tripulaes. A contradio entre o pessoal e o material, um dos argumentos utilizados por diferentes autores, em particular nos meios militares, para explicar as causas da revolta tem, portanto, origem nesse tipo de leitura.31

    Quanto presena do racismo na Marinha, o vice-almirante refuta a tese de que a Armada brasileira seria uma instituio racista. Ao contrrio, ele jus-tifica que as dificuldades de ascenso dos negros teriam sobretudo uma expli-cao social; posiciona-se, dessa maneira, com relao a um importante deba-te brasileiro que ope excluso social e racial:32

    Para entrar para a Escola Naval, tinha que entrar com um enxoval enorme ... De maneira que isso afastava o pessoal mais pobre da Marinha e afastava os pre-tos. Ento existia essa viso de que no entrava preto. Eu tive trs colegas pretos na Marinha ... Um tinha um complexo danado porque no era mandado a via-gens para os Estados Unidos, eles tiravam ele. Mas no tiravam ele por causa disso, tiravam por causa dos americanos. Chegava l eles iam criar um caso, que no ia poder ir ao mesmo lugar dos outros oficiais. Mas no havia preconceito Nunca houve esse preconceito na Marinha. O Colgio Naval est cheio [de ne-gros]. Agora, difcil entrar o nvel intelectual do preto continua muito baixo, porque ele tem relao com o nvel econmico. Ento a Marinha tinha essa difi-culdade. O Colgio Naval um exame muito difcil, com 3 mil candidatos para duzentas vagas. Uma seleo muito violenta. Os pretos ficavam em desvantagem.

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    No dia 24 de julho de 2002, entrevistei Adalberto Nascimento Cndido, filho caula de Joo Cndido e Ana do Nascimento. Com 64 anos no dia da entrevista, Candinho me confiou seu testemunho na Associao Brasileira de Imprensa (ABI), onde trabalhava desde 1953 e onde lhe atriburam o apelido. Com efeito, sua entrada na ABI deveu-se mediao de Edmar Morel, membro ativo da associao. Mas Candinho no ousava questionar muito o pai sobre a revolta, pois, como disse: Meu pai era muito fechado nesses aspectos ... [Mas] quando uma pessoa, jornalistas, procuravam ele, ele contava tudo.

    Adalberto Cndido conta ainda que seu pai era s vezes reconhecido na rua. Todavia, os novos descendentes de Joo Cndido tm dificuldade em se fazerem reconhecer, como conta Candinho sobre seu prprio neto: O meu neto, quando a professora falou do meu pai, ele falou: eu sou bisneto. Ela falou: no verdade. Ele teve que trazer documento. Esse incidente suscita um pro-blema mais profundo abrangendo o reconhecimento das camadas populares e afro-brasileiras, j que, para o professor da escola pblica, parecia muito difcil acreditar que um de seus alunos podia ser descendente de pessoas reconheci-das, de personagens e heris dos livros didticos de histria.33

    Outra filha de Joo Cndido, Zeelndia Cndido, tambm buscou recu-perar a memria do pai. Aos 78 anos quando nos concedeu a entrevista, dona Zeelndia como era conhecida me recebeu na sua residncia em So Joo de Meriti no dia 24 de julho de 2002 (Zeelndia Cndido faleceu em setembro de 2006). Era a sexta filha de Joo Cndido Felisberto com sua segunda esposa, Maria Dolores, que se suicidou quando Zeelndia tinha apenas 4 anos. Zeeln-dia Cndido tinha verdadeiro orgulho de seu nome tal como era grafado, pois tinha sido escolhido pelo prprio Joo Cndido, que encontrou inspirao num transatlntico chamado Nova Zeelndia, tambm com dois e.

    Sua famlia se instalou em So Joo de Meriti quando ela tinha 7 anos. De acordo com Zeelndia, seu pai estava em busca de tranquilidade. Nessa poca, a periferia era calma, quase sem nenhum movimento poltico. Ela descreve Joo Cndido como um pai amoroso, moda antiga, um homem feliz que gostava de cantar e de danar, mas que, por vezes, preferia tambm se retirar, ficar tranquilo, um pouco triste, talvez pensando na revolta, no que ele viveu.

    Sobre a sociabilidade do ex-marinheiro, dona Zeelndia se lembra que, quando era ainda menina, ele tinha costume de receber outros ex-marujos em casa para conversar e cantar. Ela se recorda de um extrato de uma cano com-posta por eles e que celebra a inverso da ordem imposta nos dias da revolta, evocando o nome de outros oficiais rebeldes: Tem at um refro que eles cantavam para o meu pai que eu ainda me lembro: No tempo da revol-

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    ta, Joo Cndido era almirante, Avelino imediato e Gregrio comandante. Joo Cndido almirante ainda deve se lembrar, que tem seu nome gravado no barco Minas Gerais....

    A revolta tambm um caso de famlia para os descendentes de outro ex-marinheiro. No dia 12 de setembro de 2009, eu pude entrevistar, na com-panhia do historiador Marco Morel, num restaurante na praia de Saquarema, Marcos Valrio Ribas e Adaleia Ribas Barbosa, contando 65 e 80 anos respec-tivamente, filhos de Adalberto Ferreira Ribas, que participou da revolta no posto de oficial de artilharia do scout Bahia. Ribas tinha 19 anos em 1910, era branco, baiano, e tinha ingressado na escola de aprendizes marinheiros de Salvador, aos 13 ou 14 anos, como forma de escapar ao seminrio e carreira eclesistica a que se destinava, como contou aos filhos. Ele tinha tambm um irmo na Marinha, Beda Ferreira Ribas, um ano mais velho. Tudo indica que Beda Ribas no participou da revolta dos marujos e que teve promoes na Marinha e na Aeronutica, chegando a se tornar oficial, enquanto Adalberto foi excludo precocemente da instituio por ter participado do levante de 1910.

    Ribas era visto pelos filhos como algum interessante, at mesmo heroico, com muita autoestima, e que gostava de conversar e contar histrias da sua vida. Entretanto, assim como Joo Cndido, ele no se sentia vontade em falar muito da revolta aos filhos, um silncio que talvez se justificasse pelo medo das perseguies. Ele escapou das prises e da deportao em dezembro de 1910 e no se apresentou ao Conselho de Guerra em 1912, embora indicia-do, tendo fugido para o interior de Santa Catarina. A partir de ento, ele assu-me a sua profisso principal: trabalha como professor. Era, alm disso, um grande admirador da cultura francesa, como contam seus filhos em diferentes momentos da entrevista. De fato, como lembram, o ex-marujo Ribas ensinava a todos os alunos a cantar a Marseillaise e a recitar poemas de Victor Hugo em francs. Para alm da verdade desses testemunhos, que nos revelam de toda forma projees e imaginrios, essas referncias cultura francesa feitas por indivduos de origens populares no contexto possibilita-nos relativizar uma viso segundo a qual a francofilia no Brasil seria unicamente um sentimento das elites.

    Quanto ao seu posicionamento poltico, os filhos de Ribas acrescentam um elemento interessante: assim como Joo Cndido, Adalberto Ferreira Ribas tambm participou da Ao Integralista Brasileira. Na conversa, Marcos Val-rio Ribas disse que pensava em entrar com um pedido de indenizao ao Es-tado brasileiro em nome de seu pai e ao lado da famlia de Joo Cndido e

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    talvez de outros raros marujos que sobreviveram s perseguies, constituram uma famlia e transmitiram a memria da revolta de 1910.

    lugares de memria para um heri nacional

    Nas dcadas de 1990 e 2000 surgem novas manifestaes culturais em torno da figura de Joo Cndido. Aparecem tambm outras publicaes e uma nova memria escrita, motivada pela pesquisa em cincias humanas (Almeida, 2009; Arias Neto, 2001; Morgan, 2001; Nascimento, 2002). Alm disso, Joo Cndido e a revolta da chibata retornam cena em peas de teatro e filmes.34 Ele recebe tambm novas homenagens em espaos fsicos: seu nome batiza escolas, ruas e monumentos. Em So Joo de Meriti, cidade onde, como vimos, Joo Cndido viveu seus 39 ltimos anos, uma rua foi inaugurada com o nome do marujo. Outras cidades tambm fizeram o mesmo, como Nova Iguau (no Rio de Janeiro), Rio Pardo (no Rio Grande do Sul, regio natal do marinheiro) e Uberaba (Minas Gerais). Joo Cndido nomeou tambm duas escolas, uma do Centro Integrado de Educao (Ciep) em So Joo de Meriti, e a Escola Marinheiro Joo Cndido, no bairro Santa Cruz (cidade do Rio de Janeiro). Em maro de 2007, um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) escolheu o nome do almirante negro para batizar uma ocupao, um terreno de 1,2 milho de metros quadrados em Itapecerica da Serra, na periferia de So Paulo. Esses lugares de memria nos possibilitam pensar, por um lado, nas cristalizaes e clivagens memoriais e, por outro lado, nas formas de inscrio do passado no tempo presente.35

    Paralelamente, o nome de Joo Cndido reclamado por diferentes esfe-ras do movimento social. Aproximadamente 1.500 marinheiros expulsos da Marinha, dentre os quais muitos foram presos e perseguidos durante a ditadu-ra civil e militar, se organizaram em duas associaes a Unidade de Mobili-zao Nacional pela Anistia (UMNA) e o Movimento Democrtico pela Anis-tia e Cidadania (Modac). Pedem a anistia definitiva e a reintegrao na Marinha para eles mesmos, o que vm conseguindo no quadro dos ltimos governos. Reclamam ainda, com a famlia de Joo Cndido, patrono de seus movimentos, a anistia definitiva ao marinheiro e a seus colegas, bem como as devidas inde-nizaes.

    Esses movimentos so reforados por outra corrente significativa: os mo-vimentos negros, que ganharam novo vigor na dcada de 2000. Novos progra-mas ativistas foram impulsionados, dando origem a mudanas na legislao, tais como a medida 63, de 26 de agosto de 2002, que criou o programa Diver-

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    sidade na Universidade, dispositivo que legitimou as cotas raciais e sociais para o acesso ao ensino Universitrio pblico, e a lei 10639, adotada em 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatria a incluso do ensino de histria e cultu-ra afro-brasileira nas escolas do pas.

    Nesse contexto, a lei federal nmero 11756, de 23 de julho de 2008, con-cedeu a anistia ps-morte a Joo Cndido Felisberto a aos outros participan-tes do movimento.36 Assim, se Joo Cndido um heri popular reivindicado diversas vezes pelos movimentos sociais, pelas manifestaes culturais e auto-ridades regionais, ele vem se tornando tambm, na virada do sculo XXI, um heri nacional, reconhecido igualmente pelos poderes pblicos na escala fede-ral. Um dos ltimos atos de sua transfigurao em heri nacional aconteceu no dia 20 de novembro de 2008, com a inaugurao de uma esttua do almirante negro, de 3 metros de altura, na Praa XV, na zona porturia do Rio de Janeiro, em presena do presidente Lula, do ministro da Igualdade Racial, Edson San-tos, e de personalidades pblicas e artsticas ligadas ao militantismo dos mo-vimentos negros. As datas de comemorao no so por acaso: o dia 20 de novembro marcado pelo aniversrio da morte de Zumbi dos Palmares em 1695 e foi escolhido como o dia da Conscincia Negra, feriado em algumas cidades do Brasil. Ele substitui o antigo 13 de maio, dia da Abolio em 1888, considerado, pelos movimentos negros como um dia que simboliza as conces-ses das elites no poder e no como um dia significativo para a luta do povo negro. Em seu discurso, Lula exaltou a coragem do marujo e fez apologia, na poca em que o primeiro presidente negro assume o poder nos Estados Unidos, de um Brasil construdo pela mestiagem. Joo Cndido retorna, portanto, para mais perto do mar, do complexo da Armada brasileira e do mercado de peixe onde trabalhou depois de sua excluso da Marinha.37

    Entretanto, nenhuma personalidade da Marinha esteve presente nessa inaugurao. Como a Marinha do Brasil no cauciona nenhum desses lugares de memria, podemos dizer que Joo Cndido tem dificuldade em se fazer reconhecer em sua mais forte identidade: a de marinheiro nacional. No dia 9 de maro de 2008, o jornal Folha de S. Paulo publicou, em matria sobre o assunto, uma comunicao oficial da instituio:

    A Revolta da Chibata constitui-se em um triste episdio da histria do pas e da prpria Marinha do Brasil (MB) A MB sempre se pautou pela firme con-vico de que as questes envolvendo qualquer tipo de reivindicao obteriam a devida compreenso, reconhecimento e respaldo para deciso superior, por meio do exerccio da argumentao e sobretudo do dilogo entre as partes, o que

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    de fundamental importncia para o pleno exerccio da liderana e para o esta-belecimento de vnculos de lealdade. A despeito dos fatos que motivaram aquela crise, o movimento no pode ser considerado como ato de bravura ou de ca-rter humanitrio. Vidas foram sacrificadas, material da Fazenda foi danifica-do, a integridade da capital foi ameaada. Esta Fora entende que outras formas de persuaso e de convencimento no foram esgotadas pelos amotinados, moti-vo pelo qual considera a Revolta da Chibata uma rebelio ilegal, sem qualquer amparo moral ou legtimo, no obstante a indesejvel e inadmissvel quebra da hierarquia. Na histria do Brasil, muitas questes ligadas a direitos humanitrios obtiveram soluo pelas vias legais, sem aodamento. A abolio da escravatura, assunto mais abrangente e de importncia maior na escala de valores nacionais, obteve equacionamento de forma gradual, inicialmente, por meio de leis meno-res, que foram se complementando, at atingir-se a lei definitiva, em maio de 1888. Quaisquer que tenham sido as intenes do sr. Joo Cndido Felisberto e dos demais amotinados que o apoiaram, fazendo uso do ideal do resgate da dig-nidade humana, a MB no reconhece herosmo nas aes daquele movimento. Os estudos oficiais e fidedignos sobre o tema sequer certificam o verdadeiro mentor da revolta.

    Essa forma de pensar vai, no entanto, no sentido contrrio s correntes historiogrficas atuais, ao movimento social e s prprias aes dos ltimos governos brasileiros. Ela revela a dificuldade que a Instituio militar naval encontra para resolver um conflito entre o esquecimento (a amnsia) e o per-do (a amnistia).38 Os marujos foram anistiados duas vezes pelas autoridades polticas, em 1910 e em 2008, mas jamais pelas autoridades navais. No tempo do seu centenrio, a histria da memria da revolta dos marinheiros brasileiros no pode ser desvinculada dos conflitos memoriais.

    Concluso: um heri para que e para quem?

    A histria da memria da revolta dos marinheiros e do processo de trans-figurao de Joo Cndido em heri revela diversas nuanas referentes aos mecanismos de memria nacional da sociedade brasileira. Em primeiro lugar, remete necessidade de evocar a histria em diferentes momentos e por dife-rentes atores, como uma forma de denunciar a continuidade de uma violncia institucionalizada e de revelar a capacidade de reao de homens comuns. Este o caso das primeiras representaes no teatro e no cinema; dos prprios escritos de Joo Cndido; dos primeiros textos dos escritores de esquerda e da

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    pesquisa de envergadura de Edmar Morel; das canes populares e das repre-sentaes mais recentes; da convergncia dos movimentos sociais e negros. Nesse sentido, trata-se de um acontecimento que pertence ao tempo passado, mas que retomado em diferentes presentes da sociedade brasileira, na busca de se criarem experincias e modelos que sirvam aos combates de diversos momentos e tempos, de sair de si mesmo para ir ao encontro do Outro (To-dorov, 2004, p.32). A histria da Revolta da Chibata se inscreve, portanto, num quadro mais amplo de busca pela cidadania.

    Em segundo lugar; a memria da revolta no nica, da todo o interesse em estud-la e integr-la na compreenso desse acontecimento a priori, de carter poltico. Assim como existem diferentes verses do acontecimento, es-tudar seus processos de construo pareceu-me bastante interessante e, nesta anlise, pude constatar a existncia de outras histrias, com frequncia esque-cidas, que remetiam a outras demandas. Esse o caso, ainda que de forma bem diferente ou at mesmo oposta, da memria das famlias de antigos rebeldes e da dos oficiais da Marinha. Os dois grupos buscam uma imagem positiva e esto preocupados com a escrita e a preservao de um passado glorioso. A memria tem de servir aos grupos, faz-los existir e fornecer-lhes o orgulho de pertencer a um passado comum. Nesse sentido, as reivindicaes memoriais se opem aos silncios e podem variar de acordo com os contextos: para os descendentes dos marinheiros, falar da revolta nos dias de hoje algo possvel e desejvel, diferentemente de seus antepassados, que muitas vezes optaram pelo silncio.

    Enfim, para o poder pblico, retomar a figura de Joo Cndido e da re-volta uma forma de responder s necessidades da memria com relao a dois tipos de vtimas da histria brasileira: os perseguidos do autoritarismo militar e, em particular, os afrodescendentes. Como os marinheiros eram, na maioria, negros, pardos e mestios, e sua reivindicao primeira era a abolio da chibata smbolo das punies a que os escravos se submetiam , home-nagear Joo Cndido e lembrar a revolta da chibata algo que permite ao mesmo tempo denunciar e reescrever a histria da escravido e suas heranas durante o perodo ps-abolicionista. Assim, os diferentes lugares de memria do governo Lula dedicados a Joo Cndido (navios, esttuas, leis) servem para transmitir essa mensagem e para construir heris para as novas geraes; identificaes positivas para outras vtimas e seus herdeiros dos dias atuais. Joo Cndido no substitui Zumbi, mas, para alm de toda polmica e apesar de muitos nomes e histrias de marujos esquecidos, ele proporciona o estabe-lecimento de outros gneros de analogias com o tempo presente, principal-

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    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    mente em razo de sua maior contemporaneidade (sculo XX). Essas formas de homenagem foram tanto maneiras de dialogar com as demandas dos mo-vimentos sociais do presente quanto estratgias de comunicao adotadas pelo governo Lula.

    NOTAS

    1 Ver www.monitormercantil.com.br/; acesso em: 7 jul. 2010.2 Sobre essa revolta, ver: ALMEIDA, Slvia Capanema P. de. Nous, marins, citoyens brsi-liens et rpublicains: identits, modernit et mmoire de la rvolte des matelots de 1910. Tese (Doutorado em Histria) EHESS. Paris, 2009; ARIAS NETO, Jos Miguel. Em bus-ca da cidadania: praas da Armada nacional, 1867-1910. Tese (Doutorado em Histria) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. So Paulo, 2001; MARTINS, Hlio Lencio. A revolta dos marinheiros, 1910. So Paulo: Cia Ed. Na-cional; Rio de Janeiro: Servio de Documentao Geral da Marinha, 1988; MOREL, Ed-mar. A revolta da chibata (Org. Marco Morel). [1959]. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009; MORGAN, Zachary Ross. Legacy of the Lash: black and corporal punishment in the Brazilian Navy, 1860-1910. Tese (Doutorado em Histria) Brown University. Providence (RI), 2001; NASCIMENTO, lvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2008; NASCIMENTO, lvaro Pereira do. Do convs ao porto: a experincia dos marinheiros e a revolta de 1910. Tese (Doutorado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Cam-pinas. Campinas (SP), 2002.3 Dentre os peridicos simpatizantes do movimento, destacamos O Correio da Manh. Entre os parlamentares, a atuao de Rui Barbosa, que proferiu discursos de grande vibra-o, foi particularmente interessante. Ver: BRASIL. Anais do Senado Federal, 1910, Livro V.4 AN, Supremo Tribunal Militar, Processo Joo Cndido e Outros, Srie Judiciaria, Sub-srie: Processo Crime, 1913, BW 2847 (3v.).5 Sobre a noo de acontecimento que adotamos, ver: FARGE, Arlette. Penser et dfinir lvnement en histoire: approche des situations et des acteurs sociaux. Terrain. n.38, mars 2002.6 POLLAK, Michael. Une identit blesse: tudes de sociologie et dhistoire. Paris: Mtali, 1993.7 TODOROV, Tzvetan. Les abus de la mmoire. Paris: Arla, 2004. 8 A letra e uma gravao dessa cano esto disponveis em: www.franklinmartins.com.br/som_na_caixa_gravacao.php?titulo=os-reclamantes; acesso em: 30 jul. 2010.9 Como o Correio da Manh, que atribua aos marinheiros graus de oficiais, como almiran-te, imediato, comandante etc., e a Gazeta de Noticias, onde se encontrava a referncia ao

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    apelido almirante negro, provavelmente uma criao de Joo do Rio. O jornalista teria sido um dos responsveis pela consolidao dessa alcunha na imprensa da poca.10 FLCHET, Anas. Aux rythmes du Brsil: exotisme, transferts culturels et appropriations. La musique populaire brsilienne en France au XXe sicle. Tese (Doutorado em Histria) Universit de Paris I. Paris, 2007, p.39-50.11 ARAJO, Vicente de Paula. A bela poca do cinema brasileiro. So Paulo: Perspectiva, 1976, p.354.12 SILVA, Ermnia. Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. So Paulo: Altana, 2007. Agradeo autora as informaes sobre os espetculos do circo Spinelli em homenagem a Joo Cndido.13 Publicadas entre 31 dez. 1912 e 12 jan. 1913. Republicadas recentemente em MOREL, 2009.14 RODRIGUES, Joo Carlos. Joo do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. Joo Cndido internado em janeiro de 1911 no hospital dos alienados e, em seguida, no Hospital da Marinha, na priso da Ilha das Cobras. Ele ficou quase dois anos nessas insti-tuies, quando escreveu ou ditou as suas memrias e bordou trs toalhas, de acordo com diferentes fontes. Ver: ALMEIDA, 2009; CARVALHO, Jos Murilo de. Os bordados de Joo Cndido. In: _______. Pontos e bordados: escritos de histria e poltica. Belo Hori-zonte: Ed. UFMG, 1998; MOREL, Marco. Anexo I: Introduo do organizador. In: MO-REL, 2009, p.285-319.15 Produes do mesmo gnero existiam tambm em Paris, como, por exemplo, as mem-rias da prostituta Casque dOr, jovem ligada aos grupos de apaches da cidade. Suas mem-rias foram publicadas na revista literria Fin de Sicle de 5 jun. a 3 ago. 1902. O texto foi corrigido e provavelmente adaptado pelo jornalista Henri Frmont. Cf: DELUERMOZ, Quentin (Org.). Chroniques du Paris apache (1902-1905). Paris: Mercure de France, 2008. O cronista Joo do Rio costumava viajar Frana e apropriava-se de criaes da imprensa local (RODRIGUES, 1996).16 CHARTIER, Roger. Le monde comme reprsentation. Annales ESC, n.6, p.1514-1515, 1989. Outros testemunhos de Joo Cndido esto registrados em: MOREL, 2009; MIS. Joo Cndido, o almirante negro. Rio de Janeiro: Gryphus; Museu da Imagem e do Som, 1999.17 Ver: KAREPOVS, Dainis. Prsentation de lAmiral Noir de Benjamin Pret. In: BENJA-MIN PRET ET LE BRSIL. Trois Cerises et une Sardine. (Publication de lassociation des amis de Benjamin Pret Paris, n.17, oct. 2005).18 PAULO, Benedito [Ado Pereira Nunes]. A revolta de Joo Cndido. Pelotas (RS): s.n., 1934, p.1-2.19 Essa coincidncia entre o texto de Ado Pereira Nunes e os fascculos do Jornal do Povo apontada pelo historiador Marco Morel (MOREL, 2009).20 MOREL, 2009, p.232; KONDER, Leandro. O Baro de Itarar. In: FERREIRA, Jorge;

  • 83Junho de 2011

    Do marinheiro Joo Cndido ao Almirante Negro

    REIS, Daniel Aaro (Org.). As esquerdas no Brasil 1: a formao das tradies, 1889-1945. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p.187-198.21 TRINDADE, Hlgio. La tentation fasciste au Brsil dans les annes 1930. Paris: Ed. Mai-son des Sciences de lHomme, 1988.22 BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la thorie de laction. Paris: Seuil, 1994; LO-RIGA, Sabina. La biographie comme problme. In: REVEL, J. (Dir.). Jeux dchelles: la micro-analyse lexprience. Paris: Hautes Etudes; Gallimard; Seuil, 1996, p.209-231.23 CUNHA, H. Pereira da. A revolta na esquadra brasileira em novembro e dezembro de 1910. Revista Martima Brasileira, Rio de Janeiro, 1949.24 Sobre essas proximidades e divergncias, ver: SCHMID, Benito Bisso. Construindo bio-grafias... Historiadores e jornalistas: aproximaes e afastamentos. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n.19, 1997.25 GINZBURG, Carlo. Le fromage et les vers: lunivers dun meunier du XVIe sicle. Paris: Flammarion, 1980; HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordirias: resistncia, rebelio e jazz. So Paulo: Paz e Terra, 1998.26 MOREL, Marco. Joo Cndido e a luta pelos direitos humanos, livro fotobiogrfico. Bra-slia: Fundao Banco do Brasil, 2008, p.94.27 BELLO, Luiz Alves de Oliveira. Sucintos elementos.... In: MOREL, 2009, p.259-262.28 Sobre uma abordagem atual do contexto, ver: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e a sua histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. Sobre o movimento dos marinhei-ros, ver: CAPITANI, Avelino Bide. A rebelio dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Of-cios, 1997; RODRIGUES, Flvio Lus. Vozes do mar: o movimento dos marinheiros e o golpe de 64. So Paulo: Cortez, 2004.29 BLANC, Aldir. Mestre-Sala dos mares. In: MIS, 1999, p.22.30 HALBWACHS, Maurice. La mmoire collective. Paris: Albin Michel, 1997; HALBWA-CHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mmoire. Paris: Albin Michel, 1994. As entrevistas que se seguem encontram-se transcritas na minha tese de doutorado: ALMEIDA, 2009.31 Cf: ALMEIDA, Slvia Capanema P. de. A modernizao do material e do pessoal da Ma-rinha nas vsperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradies. Estudos Hist-ricos, Rio de Janeiro, v.23, n.45, 2010. Republicado em: Revista Brasileira de Histria Mili-tar, Rio de Janeiro, n.3, 2010, disponvel em: www.historiamilitar.com.br/Artigo2RBHM3.pdf.32 Sobre esses embates, ver: FRY, Peter. A persistncia da raa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. 33 Esse exemplo nos permite pensar, luz da discusso sobre a teoria do reconhecimento, em como certos indivduos podem ser legados a um lugar a priori subalterno e nas dificul-dades de construo de um heri real negro e pobre. Ver: MENDONCA, Ricardo Fabrino. Dimenso intersubjetiva da autorrealizao: em defesa da teoria do reconhecimento. Re-vista Brasileira de Cincias Sociais, v.24, n.17, jun. 2009.

  • Silvia Capanema P. de Almeida

    84 Revista Brasileira de Histria, vol. 31, n 61

    34 No cinema, trs curtas-metragens sobre o tema so produzidos. Joo Cndido, um Almi-rante Negro, Emiliano Ribeiro, 1987, 10 min; Joo Cndido e a revolta da chibata, feito por alunos da ONG Ns do cinema, 2004, 20 min; Memrias da chibata, Marcos Marins, 2005, 15 min). Mencionamos tambm a pea de teatro Joo Cndido do Brasil: a revolta da chi-bata (Teatro Popular Unio e Olho Vivo, So Paulo: Casa Amarela, 2003), alm de um projeto de longa-metragem, documentrio e minissrie de fico a serem realizados por Marcos Manhes Marins.35 NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mmoire I. La Rpublique. Paris: Gallimard, 1984.36 O texto dessa lei est disponvel em: www.leidireto.com.br/lei-11756.html; acesso em: 26 ago. 2009.37 A mesma esttua j se encontrava nos jardins do Museu da Repblica, no Palcio do Catete, em razo de presses da Marinha contrria sua edificao na Praa XV, no mui-to longe do complexo naval. Cf: www.naval.com.br/blog/?p=1943, entre autres sources; acesso em: 26 ago. 2009.38 RICOUER, Paul. La mmoire, lhistoire, loubli. Paris: Seuil, 2000.

    Ar ti go re ce bi do em maro de 2011. Apro va do em maio de 2011.