Revolução ou permanência

download Revolução ou permanência

of 87

description

monografia

Transcript of Revolução ou permanência

ESCOLA ANTONIETTA E LEON FEFFER

ALEXANDRE HANDFAS

Revoluo ou permanncia: atualizao histrica do Cinema Novo

So Paulo

2015

35

Escola Antonietta e Leon Feffer

Revoluo ou permanncia: atualizao histrica do

Cinema Novo.

Aluno pesquisador: Alexandre Handfas; email:

[email protected]; tel.: (11) 99515 - 4582

Professor orientador: Gabriel Alves de Campos; e-mail:

[email protected]; tel.: (11) 95498 5857

Sem linguagem nova no h realidade nova.

Glauber Rocha

Continuo fechado com as minhas posies fechadas de um cinema terceiro mundista. Um cinema independente do ponto-de-vista econmico e artstico, que no deixe a criatividade esttica desaparecer em nome de uma objetividade comercial e de umimediatismo politico.

Glauber Rocha

Minha obra toda badala assim: Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil.

Mrio de Andrade

Que continuemos a nos omitir da poltica tudo o que os malfeitores da vida pblica mais querem.

Bertold Brecht

Resumo

O movimento modernista, inaugurado no Brasil nos anos 1920, estabeleceu um forte legado cultural caracterizado pela ruptura com os padres europeus de arte e fortalecimento de uma conscincia de luta contra a dominao colonialista das grandes potncias daquele perodo. J o movimento cinematogrfico denominado Cinema Novo realizou nas dcadas de 1960 e 1970 o resgate da herana cultural e poltica modernista. Este conjunto artstico de renovao cinematogrfica, atravs da ao de seus integrantes, captou satisfatoriamente o "esprito moderno" de ruptura com padres artsticos colonialistas e pode ser entendido resumidamente como um movimento cuja proposta realizar uma interpretao crtica do seu povo. Entre os filmes mais importantes do Cinema Novo esto Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha e Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra. Apesar de terem sido produzidos no mesmo perodo e tratarem do mesmo tema, suas interpretaes histricas do nordeste brasileiro so marcadamente distintas. O presente trabalho tem o objetivo de realizar uma anlise comparativa dos dois filmes e das vises histricas impressas nas obras. Tal anlise se deu atravs da comparao criteriosa de cenas significativas dos dois filmes que dizem respeito construo esttica da obra e revelam a viso histrica dos dois cineastas. O cotejo relacionado ao aspecto histrico e interpretativo das obras se consitui atravs do entendimento das ferramentas utilizadas pelos dois cineastas para representar em seus filmes a sua viso da histria. Foi possvel observar o dilogo constante que se estabelece entre a forma cinematogrfica utilizada e a interpretao da histria realizada por Glauber Rocha e Ruy Guerra. Tambm foi possvel compreender que as duas vises esto em oposio ao apresentarem os estratagemas histricos consituintes do serto nordestino e tambm o seu futuro de maneira distinta.

Palavras chave: Cinema Novo; Cinema; Histria; Nordeste; Serto; Glauber Rocha; Ruy Guerra.

Sumrio

-Introduo ....................................................................................................7-14

- Deus e o diabo na terra do sol......................................................................15-24

- Os Fuzis........................................................................................................25-32

-Cena final de Deus e o diabo na terra do sol.................................................33-39

-Cena final de Os Fuzis...................................................................................40-45

-Sequncia inicial............................................................................................46-49

-Comparao entre Deus e o diabo na terra do sol e Os Fuzis.....................50-62

-Concluso....................................................................................................63-65

-Referncias..................................................................................................66-67

1.0 Introduo

1.1 Breve definio do Cinema Novo

A indstria cinematogrfica centrava-se no continente europeu at a Primeira Guerra Mundial. Em decorrncia deste conflito blico a produo de filmes foi extremamente fragilizada, fazendo com que esta florescesse nos Estados Unidos. Na Amrica do Norte a produo adquiriu um carter fordista, o conhecido Cinema Clssico. A utilizao de mecanismos de identificao entre o espectador e as personagens com o objetivo de criar uma iluso de realidade uma das principais caractersticas desta cinematografia. Alm disso, por ser um cinema comercial, que tem o lucro como seu principal fim, se organiza de modo ater o entretenimento como a sua meta central.1

O Cinema Novo, influenciado fortemente pela Nouvelle Vague 2 e pelo Neorrealismo Italiano3, surge como oposio a esta conexo com a indstria objetivando a criao de um cinema autoral que se afastasse do capital e a produo de filmes cujo objetivo principal a realizao de anlise crtica de todo um pas. Alm disso, era importante a utilizao de umaesttica revolucionria para a traduo destes ideais de arte autoral pois o movimento no se constitui somente no sentido da investigao dos problemas sociais brasileiros. A sua principal caracterstica foi a busca por uma forma esttica capaz de expor esta condio.4O movimento tinha a responsabilidade de combater os valores cinematogrficos norteamericanos que por sua vez reproduzia a beleza dos pases desenvolvidos. Por possuir um objetivo to abrangente, o movimento organizou-se em toda a Amrica Latina, fazendo com que este adquirisse um teor anticolonial. Os integrantes relacionados com este novomovimento cinematogrfico latino-americano procuravam oferecer uma compreenso

1 FUNDAMENTOS DE CINEMA. Cinema Clssico Americano. Disponvel em:. Acesso em: 29 de abr.2015.2 Movimento cinematogrfico surgido na Frana que seguia a linha dos movimentos contestatrios dos anos sessenta deste pas.3 Movimento cinematogrfico italiano que caracterizou-se pelo realismo mximo de suas produes, que permitia o evidenciamento da situao miservel da populao atravs da forma de denncia social.4 MART, J.E. Os aspectos do Cinema Novo na produo audiovisual contempornea. 2012. 111 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao) rea de comunicao contempornea, Universidade Anhembi Morumbi, So Paulo, 2012.

iluminadora da experincia histrica do continente.5

Apesar do apogeu do movimento ter sido nos anos 1960, este surgiu em 1952 atravs do primeiro Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e do primeiro Congresso Nacional de Cinema Brasileiro. Nesses encontros, os jovens cineastas expunham a sua indignao em relao derrocada dos estdios cinematogrficos paulistas e o descontentamento com a produo cinematogrfica brasileira. Nestes, definiram-se parmetros para a produo de filmes no Brasil, tais como a busca pelo realismo e o afastamento do tipo de produo fordista.O Cinema Novo divide-se em trs etapas. A primeira delas se estende de 1960 1964, e o principal objeto de estudo das pelculas foi o serto nordestino e o estado miservel em que este se encontrava devido s secas. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha), Os Fuzis (1963, Ruy Guerra) e Vidas Secas (1963, Nelson Pereira dos Santos) so grandes exemplos de filmes produzidos neste perodo.O segundo momento do Cinema Novo, de 1964 a 1968, aconteceu durante o Golpe Militar e adquiriu a caracterstica de reviso das ideias apresentadas anteriormente, agora com a perspectiva de um regime militar. Surgem O Desafio (1965, Paulo Cezar Saraceni), O Bravo Guerreiro (1968, Gustavo Dahl), e Terra em Transe (1967, Glauber Rocha).Na terceira fase o movimento entrou em declnio devido ao desgaste sofrido pelos confrontos com a censura e represso mulitar.O Cinema Novo sofria grande influncia do Tropicalismo e, por essa razo, utilizava-se intensamente de elementos exticos da tradio brasileira. Um dos exemplos o clssico Macunama (1969, Joaquim Pedro de Andrade), baseado na obra homnima de Mrio de Andrade. 6

1.2 O modernismo como tradio

5 XAVIER, I. Cinema politico e gneros tradicionais: as foras e os limites da mtriz melodramtica. Revista USP, So Paulo, v.1, n.19, p.115-121, 1993.6 INFOESCOLA. Cinema Novo. Disponvel em: . Acesso em: 30 de abr. 2015.

O movimento modernista no Brasil teve a Semana de Arte Moderna de 1922 como o seu marco inicial. importante ressaltar que as ideias modernistas j rondavam o espectro cultural e intelectual brasileiros antes mesmo desta ocasio.Durante muito tempo a produo artstica e cultural brasileira era completamente dependente da cultura colonizadora europeia. Como a cultura da colnia era considerada inadequada pela metrpole, no havia modelos artsticos da ex-colnia portuguesa. O que existiam eram as formas do velho continente. Como afirma o crtico Randahl Johnson O prprio da colnia no possuir conscincia autntica, ser objeto de pensamento de outrm,e comportar-se como objeto.7

O Modernismo instaurou-se no pas com o objetivo de realizar um movimento de descolonizao cultural. Foi um processo de renovao da arte brasileira, uma reao ao cdigo cultural europeu que dominava a produo artstica nacional.Nos anos 1920 o Modernismo era um movimento que se dedicava a pensar a esttica e a forma em suas produes. J na dcada seguinte, em decorrncia da Revoluo de 30, havia um teor poltico e ideolgico na arte. Esta politizao da forma artstica ocorreu devido formao de uma conscincia de pas e de um desejo da criao de uma indita expresso nacional. Tal desejo j era existente, porm houve uma intensificao do mesmo neste perodo.Uma das principais caractersticas desta organizao era o movimento dialtico pendular que constitua a sua existncia: os modernistas utilizavam-se dos modelos europeus para criar uma cultura que negasse esta influncia. Era necessrio o aprendizado com as lies europeias para criar uma arte estritamente brasileira. O Manifesto Antropofgico de Oswald de Andrade um grande exemplo disto, pois afirma a necessidade da arte brasileira alimentar-se da europeia para constituir-se.O modernismo no foi importante somente para as artes visuais, influenciou tambm a Literatura nacional. O movimento rompeu com as normas literrias tradicionais, como uma forma de abalar as estruturas da ideologia dominante. Mrio de Andrade e Oswald de Andradeforam os principais representantes desta ruptura que se utilizava das formas populares de

7 JOHNSON,R. Modernismo e Cinema Novo. In: JOHNSON, R. Literatura e Cinema: Macunama: do modernism na literature ao cinema novo. So Paulo: T.A. Queiroz, 1982.p. 44.

expresso, do povo e das comunidades tradicionais, e as elevava a um nvel erudito. O aprofundamento dos conhecimentos das comunidades tradicionais era tambm uma maneira de romper com o modelo europeu dominante, pois o dado local seria fortificado em detrimento do enfraquecimento do universal. Isto levaria o Brasil a conhecer a si mesmo e criao de uma arte verdadeiramente nacional.Alm disto, a colocao de elementos populares e folclricos brasileiros nas formas eruditas implicaria em uma democratizao da arte e em um posicionamento contra a estrutura classista que constitua o Brasil.O Cinema Novo, juntamente com outras formas de expresso dos anos 1960 (Hlio Oiticica nas artes visuais, Z Celso nas artes dramticas e o Tropicalismo na msica), realizou a funo de resgate do esprito modernista de combate dominao cultural imperialista. Se nos anos 1920 a luta era contra a dominao da arte europeia, nos anos 1960 a luta era contra a dominao dos EUA sobre a produo cinematogrfica. Mais do que isso, era contra o modo de produo de cinema norte-americano. Era a busca por uma arte verdadeiramente brasileira.Os cinemanovistas tambm captaram o esprito modernista no sentido da escandalizao da arte, do confronto e da necessidade de ruptura com os modelos imperialistas de produo cultural. Desta maneira, o Cinema Novo s pode ser compreendido e pensado atravs de uma determinada tradio, a saber, o Modernismo.

1.3 Referncial histrico

Nenhum movimento artstico ou poltico pode ser compreendido atravs da particularidade dos prncipais intelectuais por trs da movimentao. Este entendimento importante, mas necessrio realizar a contextualizao do momento histrico no qual o movimento se constitui.O Cinema Novo caracterizou-se principalmente pelo objetivo da realizao de uma total ruptura com os padres hollywoodianos de produo cinematogrfica, buscando uma descolonizao cultural brasileira ao encontrar uma arte e identidade verdadeiramente nacionais. Portanto, um movimento essencialmente identitrio e no poderia ter ocorrido em qualquer outra poca, pois encontra-se embasado em especficos processos culturais,

polticos e sociais que impulsionaram o seu surgimento. No somente o modernismo exerceu influncia sobre o movimento para que este adquirisse tal finalidade, o momento histrico no qual estava inserido tambm foi importante para esse enviesamento. O Brasil encontrava-se em um perodo de grande nacionalismo (praticamente eufemista), de busca por uma fortificao da imagem nacional. Tal busca pode ser exemplificada atravs de movimentos polticos como, por exemplo, a construo da nova capital, Braslia, no interior do pas. Tal processo trouxe em seu cerne a questo da busca da verdadeira identidade brasileira pois era do centro do Brasil, de suas razes, que surgiria um novo e importante polo poltico.Alm disso, questes internacionais vinculadas s ideologias dominantes no perodo tambm estavam presentes nos anos 1960. A guerra Fria e o combate ao comunismo realizado pelos Estados Unidos, entre outros, potencializaram ainda mais as questes polticas, fazendo com que este movimento surgisse em um momento de propcio para esta interveno artstica.O referencial histrico do Cinema Novo pode ser sintetizado como o sentimento de decepo e frustrao. Havia uma euforia crescente nos intelectuais do movimento cinematogrfico, gerada pelo sentido progressista que tomava o governo brasileiro atravs da figura do presidente Joo Belchior Marques Goulart. Este progressismo se dava a partir da proximidade do governo brasileiro das chamadas reformas de base que, de acordo com o ento mandatrio, seriam a nica forma de erradicao da desigualdade social e dosubdesenvolvimento que imperavam no pas8. A reforma agrria, a principal mudana deste

conjunto de reformas, seria responsvel por uma redistribuio das terras no Brasil. Tal proposta fez com que Jango fosse considerado comunista, uma ameaa classe mdia brasileira e aos militares. A intensificao desta insatisfao da elite resultou no golpe militar de abril de 1964, que interrompeu de forma abrupta todo um possvel ciclo de desenvolvimento social no pas.Os cineastas do Cinema Novo, principalmente Glauber Rocha, acreditavam que a Reforma Agrria seria o elemento de impulso para a Revoluo, a qual se iniciaria no Nordeste e seria difundida por todo o pas. Tal viso utpica presente em Deus e o diabo naterra do sol, por exemplo.

8 INFOESCOLA. Reformas de Base. Disponvel em: . Acesso em: 01 de maio. 2015.

Portanto, o golpe de 1964 foi um grande choque de realidade, que exps a estes intelectuais que a burguesia no havia comprado o ideal progressista com o objetivo do desenvolvimento social como esperavam que o fariam. Esta frustrao evidenciada nos filmes do movimento.Outros aspectos deste perodo histrico tambm esto intensamente presentes nas obras do Cinema Novo; a represso e a censura do governo militar, juntamente com a questo das falsidades do jogo poltico e do poder.

1.4 Glauber Rocha e o Cinema Novo

Nascido em Vitria da Conquista no ano de 1939, Glauber Rocha considerado o maior expoente do Cinema Novo, pois apresenta em sua obra as caractersticas de recuperao da tradio modernista citadas acima. Rocha tambm elevou a questo da revoluo na esttica cinematogrfica ao extremo, criando filmes que questionavam no somente a situao scio-poltica do Brasil como tambm colocavam em dvida a linguagem cinematogrfica vigente. Estudar Glauber Rocha compreender uma importante parte do Cinema NovoO cineasta foi o maior responsvel por atribuir ao Cinema Novo a caracterstica de ruptura com os modelos culturais imperialistas. Tal atribuio se deu tambm em decorrncia do fato do cineasta ter escrito o manifesto Uma esttica da fome, no qual defende que nossa originalidade [da Amrica Latina] a nossa fome, opondo-se a produes que somente apresentam a elite brasileira como protagonista. De acordo com Glauber Rocha, a violncia esttica necessria para a ruptura total com o imperialismo e tambm fundamental para a superao da fome real. uma violncia amorosa que busca a conscincia de nao atravs da quebra da ligao emocional entre o espectador e as personagens.A violncia exposta nos filmes de modo no gratuito. Ou seja, a violncia aparece de modo subjetivo atravs do sangue e de morte, sendo que potencializa-se a vertigem suscitada pelo choque.O cineasta baiano foi extremamente influenciado pela literatura, assim como o Cinema

Novo. Uma das maiores influncias foi a produo literria do escritor paraibano Jos Lins do

Rego. Nos anos 1950, Glauber Rocha iniciou a leitura do ciclo integral dos romances de Rego, aprendendo e assimilando em seu imaginrio grande parte dos elementos da tradio sertaneja que aparecero posteriormente em seus filmes sobre a regio: o subdesenvolvimento do meio rural convivendo com o desenvolvimento do urbano (dualidade brasileira), a luta do bem contra o mal, o misticismo dos beatos e a violncia dos cangaceiros, a questo das terras e da seca, etc. Glauber Rocha embasou sua busca por uma arte engajada na literatura de Jos Lins do Rego, que possui elevada qualidade artstica ao mesmo tempo que um alto valor sociolgico. esta juno de elementos e fatores que procurava Glauber em sua produo cinematogrfica.

como era possvel realizar o registro documental sem prejuzo da qualidade artstica do discurso cinematogrfico era o objetivo maior do jovem ensasta, que j tinha sedimentados na conscincia os fundamentos dos seus projetos flmicos, pelo menos os de primeirahora.9

Outros filmes que representam o cangao brasileiro podem ter sido influenciados pelowestern norte-americano, porm Glauber teve a literatura como base para a criao de seus filmes.

Alm disso, o cineasta foi influenciado por suas viagens ao Nordeste brasileiro na composio de suas obras. Foi ao Sergipe, Caruaru, Monte Santo, Salvador, Alagoas, etc. Entrou em contato com a literatura de cordel e com a arte do mestre Vitalino (representao plstica do sofrimento nordestino e tambm da alegria e do pitoresco que os constitua). Foi atravs destas viagens que Rocha coletou vasto material que se tornou substncia de filmes importantes como Deus e o diabo na terra do sol (1964), O drago da maldade contra o santo Guerreiro (1969), O leo de sete cabeas (1970) e Cabeas Cortadas (1970). Sintetizou desta maneira o prprio cineasta em uma entrevista a Michel Ciment: Foi atravs delas que GlauberRocha amadureceu como artista. Toda a minha formao foi feita nesse clima.10

9 GOMES. J.C.T.G. A viso do Brasil. In: GOMES, J.C.T.G: Glauber Rocha: esse vulco. SoPaulo: Nova Fronteira, 1997.10 ROCHA,G. POSITIF 67. In: ROCHA, G.: Revoluo do Cinema Novo. So Paulo: CosacNaify, 2004.

1.5 Objetivo e questo norteadora

O presente trabalho de pesquisa tem o objetivo de realizar uma comparao entre dois importantes filmes pertencentes ao Cinema Novo: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha) e Os Fuzis (1963, Ruy Guerra) no que diz respeito esttica e ao contedo das duas pelculas. Pretende-se analisar os mtodos cinematogrficos utilizados pelos dois cineastas para transpor as suas vises polticas para seus filmes.

1.6 Metodologia

Esta comparao se dar de modo gradual; o trabalho composto por dois textos de reflexo geral sobre os filmes selecionados, seguidos por textos que tratam dos aspectos politicos retirados das cenas finais dos dois filmes e tambm de uma anlise das cenas iniciais de ambos. Existe a comparao final entre as duas obras seguida pelas consideraes finais da pesquisa. A escolha por alternar textos de anlise de um filme e de outro consciente pois permite uma maior compreenso do leitor sobre o tema tratado, permitindo com que ocorra o entendimento integral da anlise comparativa proposta entre o filme de Glauber Rocha e o de Ruy Guerra

1.7 Questes norteadoras

Os questionamentos respondidos ao final da pesquisa dizem respeito ao modo pelo qual se do as divergncias entre os dois filmes (histrico ou esttico) e em qual intensidade esto presentes tais diferenas. So estes:- As distines entre os filmes se do campo esttico e histrico?

- As divergncias entre as duas obras se do mais no campo histrico ou no esttico?

- Qual das teorias apresentadas nos dois filmes apresenta maior compatibilidade com a atual realidade brasileira?- Como o cinema trata esteticamente temas polticos?

- Como o Cinema Novo politiza a montagem cinematogrfica?

2.0 Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)

2.1 Parfrase

O presente capitulo tem o objetivo de analisar esttica e historicamente um dos filmes mais aclamados da histria do cinema brasileiro: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), obra prima do diretor baiano Glauber Rocha.O filme inicia com uma imagem panormica do serto nordestino. Enquanto os crditos passam na tela, a fome e a seca podem logo ser reconhecidas. A pelcula conta a histria dos camponeses Manoel e Rosa. Igualmente aos outros habitantes do serto nordestino da decada de 1960, o casal miservel, o trabalho realizado extremamente rduo e insuficiente para acabar com a fome e a sede.O filme trata da trajetria traada pelos camponeses em busca da justia social e da fuga daquela realidade hostil que as cerca. Manoel e Rosa tomam um caminho subversivo ao seguirem os movimentos do Beato Sebastio, representando a religiosidade do serto, e o cangaceiro Corisco, que representa a violncia tradicional.Ao vislumbrar temerosamente a ebulio de um novo Antonio Conselheiro, Igreja e Governo decidem se juntar para financiar o aniquilamento daquele movimento religioso subversivo. Tal aniquilamento se d atravs de Antonio das Mortes, o matador de cangaceiros. Antonio cumpre a misso que lhe foi confiada (apesar de ter sido Rosa a assassina do beato Sebastio) e aps a matana vai atrs do cangaceiro Corisco. Este se junta com Manoel, que entra para o cangao. O filme termina com a morte de Corisco por Antonio das Mortes e com a fuga de Manoel e Rosa em direo ao mar.

2.2 Trilha sonora e referencial cultural

A trilha sonora importantssima durante todo o filme. Ela no somente uma msica de fundo, mas sim aquilo que guia o filme, o fio condutor da obra. As letras das canes explicam o que acontece na tela e tambm realizam as passagens de enredo e a introduo de novos personagens ou situaes.

A utilizao do cantador extremamente importante, pois um referncial histrico e cultural do ambiente em que se constri o enredo. O cantador, poeta da tradio, figura central na cultura sertaneja. Portanto o filme se aproxima esteticamente de seu objeto de estudo.Porm, no se pode afirmar que a trilha sonora popular utilizada durante todo o filme, pois diversas vezes a msica popular substituda pela msica erudita. Um grande exemplo a cena final do filme, na qual a msica popular do serto substituda pela trilha sonora de Villa Lobos.Tal movimento de utilizao de trilha sonora erudita na representao do serto pode ser relacionado a um ideal modernista e nacionalista cultural; a insero do ambiente popular nas artes brasileiras era defendido pelo realizador do filme, que possuaa, definitivamente, o esprito modernista. um movimento flmico de reafirmao da verdadeira identidade nacional brasileira, a exposio da real identidade popular brasileira realizada pela parcela erudita da populao. Apesar de erudita, se aproxima do popular.

2.3 A cruz e a espada

2.3.1 Beato Sebastio

A anlise do enredo e sua relao com a viso de mundo de Glauber Rocha, grosso modo, pode se dar a partir de dois tpicos: a religiosidade e o cangaceiro Corisco.Como Rocha desejava tecer um quadro realista da situao do serto nordestino, teve que apresentar a religiosidade como um fator central de sua constelao. Neste meio onde imperava a extrema pobreza, a religiosidade e a espiritualidade ocupam papeis importantssimos na vida dos sertanejos. Para Manoel, que se encontrava em um estado de desmoralizao total juntamente a Rosa, o beato Sebastio possibilita o vislumbramento de uma possvel redeno. A opo de juntar-se ao grupo do beato apresenta-se ao campons como ltima opo da busca por uma vida melhor: Vamos embora logo. No temos nada para levar, a no ser o nosso destino, diz o homem para Rosa ao tentar convenc-la a tambm seguir Sebastio.

O filme trabalha constantemente com inverses. E na questo da religiosidade isto no diferente. A religio, que usualmente abarca questes de ordem filosfica e espiritual, neste caso est tambm presente no mbito politico e social. Tal inverso constante pode ser rapidamente conferida na fala do Beato Sebastio aos seus seguidores. Ao mesmo tempo em que fala de Deus e de Jesus Cristo, utiliza estes smbolos para tratar de injustia social, terra, propriedade privada, desigualdade e revoluo. Portanto, Sebastio traz tona assuntos cristos para sustentar sua inclinao revolucionria e utiliza-se de temas como a justia social e a diviso justa de terras para sustentar seus argumentos religiosos. Estes dois campos do pensamento (religioso e poltico) se confundem intensamente na figura e no discurso do beato: E o serto vai virar mar e o mar vai virar serto, O homem no pode ser escravo do homem.O discurso do lder no converge com um possvel discurso pacifista atribudo ao catolicismo progressista. Sebastio prega que a conquista dos direitos do campesinato e a chegada ao outro lado (desenvolvimento) s se dar atravs de luta e embate entre os oprimidos e os opressores. E o mais interessante que o beato se utiliza da prpria religio crist para sustentar sua tese de que o progresso chegaria atravs de um possvel derramamento de sangue: E ns no vai ficar szinho, porque meu irmo Jesus Cristo mandou um santo guerreiro com sua lana pra cortar a cabea dos inimigo. Glauber Rocha, aparentemente, no coloca a religiosidade como um fator alienante. Em Deus e o Diabo na Tera do Sol, a espiritualidade e at mesmo o misticismo do beato Sebastio no alienam e sim politizam.A partir da anlise esttica de Deus e o Diabo, possvel ter uma percepo ainda mais aprofundada sobre a figura de Sebastio. O movimento de cmera no momento da apresentao do beato vertical, mostrando primeiramente o cu e depois a terra. Portanto, j no incio do filme o beato mostrado como um enviado de Deus. Mas ao mesmo tempo em que o filme expressa tal ideia missionria, tambm realiza estticamente o distanciamento entre o espectador e Sebastio ao evidenciar as suas contradies. O santo mostrado como opressor, em nenhum momento olha para os olhos de Manoel, e a decupagem mostra um beato com olhos frios, secos e nada bondosos. Glauber Rocha retrata Sebastio como manipulador, pois este consegue fazer com que Manoel acreditasse que houve uma comunicao quase que sobrenatural entre os dois. Manoel e o prprio cantador apresentam

uma viso do beato enquanto a decupagem do filme apresenta outra, completamente diferente.No decorrer do filme, Sebastio se mostra cada vez menos confivel e contraditrio porque age contrariamente ao seu discurso, sendo contra a opresso ao mesmo tempo que oprime seus seguidores. Portanto, o messianismo colocado na obra como um fenmeno alienador sendo assim, criticado.Ao mesmo tempo em que existe esta representao negativa do santo, h tambm um forte elogio a sua figura, que capaz de aglutinar as massas e impulsion-las para o caminho revolucionrio. Pode-se dizer que h uma dupla representao de Sebastio e da religiosidade no serto, uma que realiza um elogio atravs de conjunto de imagem e som que legitimam sua prtica e outra que nega a mesma atravs da exposio da opresso envolvida em tal movimento. Esta contradio est formalmente presente no filme, assim como no serto.

2.3.2 Corisco

O cangaceiro Corisco, com sua vitalidade, energia e violncia, fascinou Glauber Rocha. E este personagem real do cangao no serviu de inspirao somente para o homem interpretado por Othon Bastos, mas para todo o filme.Manoel decide se juntar ao cangao ao perceber que somente a religiosidade no capaz de mudar aquele estado de coisas. A soluo para seu problema e de seus pares violenta e invasiva. O esprito vingativo do cangao adentra Manoel aps a morte de Sebastio e de seus seguidores.Corisco se mostra um grande defensor dos direitos do povo, como por exemplo quando fica extremamente irritado ao saber da morte dos subversivos liderados por Sebastio. E somente neste fato, de Corisco defender os interesses do povo, j est impresso uma forte anlise do Brasil e sua problemtica. O pobre, principalmente o campons nordestino, est completamente marginalizado e excludo da sociedade e dos olhares do governo. Lgica e naturalmente, a defesa do povo e de seus interesses cabe ao Estado atravs de polticas sociais, etc. Defender o povo uma tarefa que deve ser atribuda a aqueles que esto na legalidade. Contudo, devido aos desmandos de um governo composto pela elite conservadora, o cuidado aos pobres teve que ser realizado por aqueles que se encontram na

ilegalidade. No caso, o cangaceiro Corisco. Devido ao total descompromisso do governo com o serto nordestino, ocorre est inverso histrica, que tambm est presente no filme.Tal marginalizao do pobre e sua colocao em uma certa ilegalidade pode ser satisfatriamente expressa na seguinte frase, proferida pelo cangaceiro em certo momento do filme: Homem nesta terra s tem validade quando pega nas armas para mudar o destino.Pode se dizer que Corisco e Sebastio so duas faces da mesma moeda. As suas inverses e incongruncias constituem a unidade primordial. A espada (Corisco) entra na vida de Manoel do mesmo modo que a Cruz (Sebastio), pelo sim e pelo no. As duas personagens so subversivas e revolucionrias atravs de vertentes diferentes. Se o beato mostrado como um enviado de Deus, Corisco apresentado atravs de uma panormica rasteira, esta personagem pertence ao mundo terreno do Diabo Lampio. Enquanto Sebastio vislumbra constantemente o futuro (Monte Santo), Corisco colocado em um palco limitado, ausente de horizontes e sua ao vista como condenao, seu destino fazer o que faz. O cangaceiro est preso ao passado, o sobrevivente tardio de um prtica condenada. Enquanto o beato olha para o futuro, a ao de Corisco adquire o carter de vingana daquele que precisa corrigir os erros do passado, e por isso incapaz de avanar.H tambm uma soluo esttica magistral tomada pelo diretor Glauber Rocha quando este assunto da legalidade e da ilegalidade vm tona. Antnio das Mortes uma personagem enigmtica que desejava acabar com o Cangao, pois o considerava uma falta de conscincia, um impedimento de transformao social. Na cena em que o padre entrega a ele seiscentos contos como forma de pagamento pelo servio do assasinato do grupo liderado por Sebastio e do prprio Beato, h uma arma que divide o quadro em duas partes. Ele divide o serto nordestino em duas esferas, o que legal e o que ilegal. O Padre, claro, constitui a parte legal e Antonio faz parte do que illegal, contudo se unem para realizar aquela misso. E tal unio simbolizada pelo dinheiro, quando o padre entrega o dinheiro para o matador, quando algum da esfera correta da sociedade financia um ato ilegal, estas duas esferas se tornam uma coisa s. E no h mais nada, estticamente, que divide o padre e Antonio das Mortes. Existe no filme uma grande complexificao destes dois conceitos que so centrais no ambiente do serto nordestino. tambm interessante perceber o fato de que uma arma que realiza a separao entre o padre e Antonio das Mortes uma arma. H a reflexo sobre a no definio da Igreja por um ideal de pureza. Evidencia-se que esta

instituio extremamente violenta tanto no sentido da justia social quanto no sentido literal de uso da fora bruta. A arma o poder e quando pende para o lado da Igreja torna-se legal. Matar cangaceiro errado, mas quando tal ao realizada com o aval e o pedido desta instituio religiosa se torna correta.Como dito anteriormente, h uma forte relao entre Corisco e o beato Sebastio. Os dois so grandes defensores do povo atravs de mbitos e abordagens diferentes. Tal convergncia entre as duas personagens pode ser vista na frase o serto vai virar mar e o mar vai virar serto. Tal mxima proferida tanto por Sebastio e pelo cangaceiro. Esta inverso de papis, quando o desenvolvimento ir para os pobres enquanto o subdesenvolvimento ir para os ricos opressores, est presente no pensamento das duas personagens. No caso de Corisco, tal ideia est ligada violncia, cortar as cabeas dos ricos, por exemplo, enquanto que para Sebastio tais pensamentos esto ligados religiosidade, os pobres vo para o paraso enquanto os ricos vo para o inferno.

2.4 Teleologia na obra

Deus e o Diabo na Terra do Sol um filme teleolgico, a finalidade das coisas central em sua construo.Manoel possui motivos perfeitamente concretos e justificveis para a sua revolta (mesmo que destitudos de conscincia poltica, baseando-se apenas no no cumprimento de um acordo e no nas injustias contidas no mesmo). Porm, a entrada de Sebastio na vida do vaqueiro pode ser vista como obra do destino, como profere o cantador. importante ressaltar que naquele momento em que Manoel est preparado para receber os impulsos revolucionrios do beato.No caso da esposa de Manoel, Rosa, seus atos so tambm perfeitamente justificveis por motivos concretos, j que o fato dela ter matado Sebastio no sustentado apenas por um possvel cumprimento do destino das personagens. Mesmo assim, a opresso do beato e a raiva de Rosa atingem o pice conjuntamente, o que permite que a morte do santo ocorra como obra do destino. possvel perceber que existe uma forte ambiguidade em relao questo do destino na vida das personagens. Estas atuam por razes e motivos prprios, porm as aes

tomadas pelos mesmos so consequncia de estrategemas sociais, histricos e psicolgicos montados ao seu redor que controlam a situao. H uma finalidade para tudo aquilo, um destino inevitvel.

Escreveu Ismail Xavier sobre esta questo em seu livro Serto Mar:

O jogo de encaixes suficientemente preciso para que a disposio dos fatos assuma ostensivamente a forma de finalidade, oferaa um arranjo que conforme aquilo que tem fim, abrindo espao para que se admita a presena de um comando do destino na composio de cada situao particular em seus detalhes.11.

No decorrer do filme, as iniciativas pessoais das personagens (ser humano como sujeito da histria) so suprimidas para dar lugar evidente exposio do esquema teleolgico e desta rede de finalidades.No caso de Antnio das Mortes a teleologia completamente explicitada, pois ele faz o que faz somente para cumprir o seu destino. Na chacina dos seguidores de Sebastio pode existir certa argumentao contra esta tese, isto porque havia a razo do pagamento que receberia se realizasse tal matana. Ao assassinar Corisco, porm no h nada que justifique seus atos, mata cangaceiros pois este o seu destino, a sua finalidade.Xavier conclui desta maneira o assunto:

O que se afirma nesse desenvolvimento geral e, em particular, no percurso de Antnio a especificao cada vez mais ntida de que o andamento das coisas no determinado pelos homens. Marca se a presena cada vez mais acentuada de vozes que propem um rigoroso determinismo cujo foco estradicalmente fora das personagens.12

11 XAVIER, I. Deus e o diabo na terra do sol: as figuras da revoluo. In: XAVIER, I. SertoMar: Glauber Rocha e a esttica da fome. So Paulo: Cosac Naify, 2007.p.14312 XAVIER, I. Deus e o diabo na terra do sol: as figuras da revoluo. In: XAVIER, I. SertoMar: Glauber Rocha e a esttica da fome. So Paulo: Cosac Naify, 2007.p.135.

E como dito anteriormente, a teleologia que se mostra primeiramente como individual, de cada personagem, se torna coletiva, pois a finalidade do serto a revoluo e a transformao social.

2.5 Viso social do diretor

2.5.1 Cena final

A cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol extremamente significativa, pois suas solues estticas e de enredo se confudem intensamente com as posies sociais e polticas do realizador do filme.Nesta cena de fechamento, Corisco morto por Antonio das Mortes. Aps a morte do cangaceiro, Manoel e Rosa comeam a correr incessantemente atrs de algo que primeira a vista indecifrvel. Atravs da trilha sonora instigante (o serto vai virar mar; o mar vai virar serto) e as imagens das ondas do mar, o filme informa ao espectador que Manoel e Rosa esto correndo ao encontro do litoral, ou seja, do desenvolvido.A cena final a certeza de uma radical transformao. uma das nicas tomadas do filme na qual no h volteios do olhar, curvas e nem hesitaes. A filmagem sria, dura, slida, certa. A revoluo certa e necessria para a alterao daquele estado de coisas que assola o nordeste brasileiro e o pas como um todo.Assistir a ltima cena de Deus e o Diabo na Terra do Sol uma verdadeira experincia. como se a terra do espectador estivesse entrando em transe. Grosso modo, a ltima cena do filme seria a sntese do desejo de Glauber Rocha de produzir um cinema revolucionrio, no sentido de que fosse um mecanismo ativador da subverso. O olhar fixo para o futuro, a trilha sonora alta e alucinante e a viso do mar, revolucionam a mente do espectador. uma verdadeira convocao para a alterao deste mundo mal dividido.Portanto, a mensagem final do filme de esperana, a partir da luta a revoluo se torna algo inevitvel. Como disse Xavier, Deus e o Diabo reitera a afirmao de que a revoluo urgente e a esperana concreta.

O filme mostra que Manoel e Rosa (no final, somente Manoel. Rosa cai e abandonada por seu marido e companheiro), representando o campesinato e os pobres, vo mudar o estado de coisas do pas e chegar ao desenvolvimento atravs de uma revoluo. H uma lacuna modo-temporal, pois as imagens do mar so mostradas, mas no se v o encontro de Manoel com o mar, ou seja, com o desenvolvimento. Glauber Rocha deixa em aberto qual o caminho que se deve tomar para se chegar igualdade e justia social. Porm, tal lacuna intensifica a teleologia e reafirma a certeza: no se sabe quando nem como, mas tem-se a certeza de que o sertanejo chegar ao mar.A trilha sonora desta cena final faz, juntamente com outros fatores, com que ela adquira o carter da forma didtica de conselho: espero que o senhor tenha tirado uma lio: que assim mal dividido esse mundo anda errado e a terra do homem, no de Deus nem do Diabo. O narrador (trilha sonora) da pelcula est deixando claro o que o filme pretende evidenciar para o seu espectador. a tambm que consiste o cinema revolucionrio de Glauber: o cinema como instrumento de educao para a revoluo, um cinema que conscientiza o oprimido de sua condio, um cinema interessado, um cinema que pico- didtico.

2.5.2 O Brasil e a Revoluo

Rocha no somente via a revoluo como algo positivo e necessrio, ele enxergava a revoluo como algo inevitvel. A histria brasileira e a sociedade deste pas foram construdas de tal forma que haveria de existir, inquestionavelmente, uma revoluo iniciada pelos oprimidos.O cineasta produziu o filme em um momento nico na histria brasileira, quando as reformas de base janguistas formavam a pauta principal das discusses polticas. 13 O intelectual baiano centrava-se na crena de que estas reformas de base, mais especificamente a Reforma Agrria, resultariam em uma revoluo inciada certamente peloserto e que posteriormente se espalharia pelo resto do Brasil. Portanto, o encontro de Manoel

13 FERREIRA, M.M. As reformas de base. Disponvel em:. Acesso em: 25 de maio de 2015.

com o mar a representao do momento em que a Reforma Agrria aplicada se transformaria neste movimento de sublevao por parte dos sertanejos.A questo da revoluo to importante, to fundamental e essencial para o cineasta e pensador brasileiro, que o faz enxergar o campesinato como a traduo da transformao social. o seu sentido, para qu e o porqu do campons. Para Glauber Rocha, revoluo e transformao so conceitos inseparveis dos sertanejos nordestinos.

3.0 Os Fuzis (1963)

3.1 Enredo

Os Fuzis (1963) de Ruy Guerra um marco do cinema nacional e do movimento cinematogrfico conhecido como Cinema Novo.A pelcula se passa em uma pequena cidade do serto nordestino. Neste lugar impera a fome e a sede. Porm, l tambm vive um dono de terra, um proprietrio. Este possui um grande armazm alimentcio localizado naquela regio. O exrcito chamado para proteger o local de possveis saques dos sertanejos esfomeados.O filme no se apresenta atravs de uma sucesso de fatos como no cinema clssico14 mas sim atravs de uma estrutura flmica chamada de dois enredos, a obra dividida entre o enredo dos soldados e o enredo dos camponeses.

3.2 Efeitos do realismo

Os Fuzis textura: a seca pode ser sentida desgostosamente por aqueles que o assistem. A seca e a fome transbordam na atuao dos camponeses.O comeo do filme se aproxima intimamente de um estilo documental ao mostrar os depoimentos dos camponeses, pobres e esfomeados. E atravs do depoimento de uma mulher cega, que diz a razo de sua cegueira, que o filme transforma a pobreza em uma aberrao, e o espectador percebe a pobreza absurda que atinge o serto nordestino.O filme essencialmente frio. H um distanciamento quase que brechtiano entre o que

se passa na tela e o espectador. O dramaturgo alemo Bertolt Brecht defendia que um

14 Os filmes hollywoodianos (do Cinema Clssico) iniciam-se, em quase todas as vezes, com a apresentao das personagens e suas caracterizaes. Neste momento do filme j possvel vislumbrar os objetivos dos personagens.A prxima etapa do filme clssico, apresentam-se os obstculos, que impedem que o personagem concretize seus objetivos.Aps isso a soluo para cada um dos obstculos exposta e no desfecho do filme o espectador descobre se a soluo foi concretizada.

distanciamento emocional entre o espectador e os protagonistas, no caso do teatro pico15, era essencial para uma completa compreenso da situao proposta pela pea, anlise social e crtica da mesma. E isto se estabelece tambm em Os Fuzis (e em grande parte dos filmes pertencentes ao Cinema Novo), no qual a distncia central para a estruturao flmica. As personagens no so desenvolvidas dramtica e psicologicamente, pois h na obra a dominao do sentido coletivo. Para realizar uma anlise da situao social e histrica do nordeste brasileiro, o filme no se apega a dramas individuais e particulares, realizada uma exposio mais abrangente do campesinato nordestino, como um grupo. E atravs desta viso coletiva que a obra atinge a compreenso integral da situao do campesinato.Tal distanciamento em parte resultante do esquema de dois enredos. Alternam-se durante o filme as cenas de enredo (soldados) e cenas de documentrio (moradores esfomeados). Portanto, parte do realismo presente no filme resultado deste estilo. A partir desta estrutura cinematogrfica exposta a verdade sobre aqueles que moram no serto. No se sabe, por exemplo, se a mulher que d seu depoimento no incio do filme estava dizendo algo presente em um roteiro prvio ou se expunha sua real histria de vida. Os dois casos so perfeitamente viveis.Porm, possvel observar um paradoxo constitutivo do filme: ao mesmo tempo em que a obra caracteriza-se por ser emocionalmente distante dos espectadores, esta se relaciona fortemente com quem assiste atravs da questo da responsabilidade.Provm de tal distanciamento a aberrao da pobreza, quem assiste observa os miserveis e famintos da mesma maneira que se observam animais em um zoolgico. E faz parte do projeto do filme a conscincia despertada por este distanciamento. A experincia dese assistir Os Fuzis consiste tambm em perceber que esta distncia existe e assim a pobreza

15 Teatro pico produto do forte desenvolvimento teatral da Rssia aps a Revoluo de 1917 e da Alemanha durante a Repblica de Weimar.Este teatro tem como princpio bsico o no envolvimento emocional do espectador com a personagem e a transformao deste em um ser social.Outro conceito extremamente presente neste teatro o efeito de distanciamento: o ator no busca identificao plena com a personagem, o cenrio expe a sua estrutura tcnica, as cenas no acontecem com linearidade cronolgica e o envolvimento emocional do espectador com a trama completamente vetado, para que se perceba que aquilo teatro e no realidade. O teatro pico estrutura-se desta maneira com o objetivo de provocar a reflexo sobre o tema tratado, alm de despertar uma viso crtica sobre o que se passa, evitando o tradicional desfecho demasiadamente dramtico, que no leva a reflexo alguma.

dos camponeses nordestinos se torna ainda mais aterradora e assustadora. O espectador percebe a injustia no fato de possuir uma vida confortvel em face da vida pobre que levam os camponeses.O distanciamento e o realismo fazem com que o espectador, em grande parte burgueses, enxergue-se naquela situao. Faz com que perceba que participa ativamente de todo aquele processo de opresso e explorao. Entenda que a pobreza dos nordestinos em grande parte resultado de sua riqueza. O espectador se identifica com o soldado, pois ele o representa. Os militares esto l para realizar a prtica que resultado de sua poltica burguesa, para garantir a desigualdade social e o acmulo de riquezas daqueles que j a possuem. A identificao do espectador com os militares acaba com qualquer sentimentodesnecessrio e como disse Roberto Schwartz, leva-nos ao raciocnio responsvel. 16 Este

raciocnio no leva a nenhuma ao burguesa em busca da justia social. Como ser argumentado adiante, esta falta de ao gerada, dentre outras razes, por uma profunda e intensa crise moral.

3.3 Dois enredos

O princpio de distanciamento emocional est presente desde o comeo do filme, quando alguns sertanejos do verdadeiros testemunhos sobre o que passavam naquela regio. O estilo documental to forte nesta parte que os moradores parecem estar sendo entrevistados, respondem em direo a algum que parece se encontrar atrs da cmera. A religiosidade dos sertanejos, elemento constituinte de seu imaginrio, tambm mostrada como uma reportagem sobre o serto nordestino. Isto pode ser visto na cena do enterro do campons morto pelos militares e tambm na cantoria religiosa dos moradores, que acompanha o andamento do filme durante todo o seu desenvolvimento.A pobreza no filme tratada como aberrao, como anacrnica e essencialmente inadequada. primeira vista, no h um sentimento esquerdista pelos pobres. Isso pode ser conferido pela mudana de foco, ou seja, Ruy Guerra no retrata a situao a partir do pontode vista do nordestino. O diretor revela a situao a partir do ponto de vista do opressor, do

16 SCHWARZ,R. O cinema e Os Fuzis. In: SCHWARZ,R. O Pai de famlia: e outros estudos. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.p.29-37.

soldado: a chegada dos militares na cidade, a morte do campons e a dissecao do fuzil so cenas que evidenciam tal alterao de foco. Os pobres so retratados do mesmo modo que os soldados os vem, como uma massa disforme, e isto confere uma potncia ainda maior ao filme. A viso analtica da sociedade brasileira s atingida a partir desta mudana do centro dramtico: se o ponto de vista fosse o dos miserveis, a polcia, os soldados e o proprietrio se tornariam uma coisa s. Uma mancha opressora. Porm, uma mancha difusa e confusa. Para os moradores daquela cidade h uma calamidade homognea indecifrvel.Apesar de no serem o centro dramtico da histria, os camponeses so centrais no filme como um todo. Os moradores famintos so mostrados sempre em segundo plano, como pano de fundo. Isso acontece porque eles no tem voz, no tm conscincia. O filme d a entender que aqueles nordestinos esto em um sono profundo, no h nenhum salto ou exploso. Portanto no h enredo. No h histria para ser contada sobre aqueles homens, pois eles no conseguem subverter a opresso que sofrem. Ruy Guerra no mostrou aquela populao como protagonistas de sua histria pois, na viso do cineasta, no o so.Tal letargia est presente durante todo o filme visto que os pobres nada fazem em relao a sua fome. No dizem nada, no reclamam nada. Esto completamente alienados de sua situao. No h nenhuma fasca revolucionria, nenhum indcio de revolta. Durante o filme, a nica pessoa que se revolta contra o fato da populao estar passando fome, enquanto h um armazm alimentcio completo, Gacho. E tal opinio se torna prxis no momento em que ele observa uma criana morta por falta de alimentos. O que o impulsiona o fato de o pai no ter feito nada, ter aceitado passivamente todo aquele absurdo. No h enredo relacionado aos pobres, no h o que ser contado, a sociedade os esqueceu.Por isso, apesar de serem de suma importncia para a constelao da obra, os pobres no aparecem como protagonistas. Esto sempre atrs dos soldados, onde a ao e o enredo realmente acontecem, como se fossem uma grande massa paralisada, inconsciente e alienada.Mesmo no pertencendo ao centro dramtico do filme, esta mancha difusa dos nordestinos esfomeados sempre um elemento que resgata, a todo momento, a realidade histrica. O espectador acompanha a histria dos soldados, mas sempre h esta luz de emergncia piscando silenciosa e freneticamente, chamando aquele que assiste compreenso integral da situao social de que trata a pelcula.

Quando se fala dos soldados importante ressaltar a contradio que constitui a parte do filme que enredo: os militares, ao mesmo tempo que so opressores, tambm so oprimidos. Se olharem para baixo, comandam, se olharem para cima, obedecem. Da mesma maneira que mandam nos nordestinos, tambm esto obedecendo s ordens de seus comandantes, que integram a elite. E do mesmo modo que oprimem, exploram e humilham, so oprimidos, explorados e humilhados por seus superiores.Parte do drama do filme consiste exatamente neste ponto, os militares no percebem que a opresso que exercem sobre os camponeses a mesma que eles sofrem. No existe a conscincia que possibilitaria tal percepo, o que poderia resultar at mesmo em um horizonte revolucionrio (como ser visto posteriormente, h um momento em que alguns militares se conscientizam desta situao.)O que torna aqueles soldados opressores dos sertanejos a farda que vestem e tambm o seu saber tcnico. Este ltimo, que d nome ao filme, confere um poder enorme aos militares. Na cena da dissecao do fuzil os soldados mostram para os nordestinos que eles possuem a tcnica que estes moradores do serto no detm. Esta ameaa velada o mximo que eles podem usar para intimidar. De resto, so to miserveis quanto os que ameaam.A contradio presente nos soldados pode ser vista em tal cena, na qual o soldado explica todas as caractersticas do fuzil. Discorre sobre a velocidade daquele armamento, seu alcance, potncia, manejo, capacidade de penetrao da bala, etc. O soldado no se contenta com essa intimidao, realiza o desmonte do fuzil e manipula os populares utilizando-se de sua inocncia e falta de reao ao perguntar sobre o que havia acabado de ensinar. E no final, diante do claro desconhecimento dos camponeses sobre o fuzil, o soldado encerra o seu espetculo de intimidao humilhando-os fortemente: T vendo como que vocs s entendem mesmo de gado?.Em certo momento existe um lapso de conscincia de alguns soldados. Todo aquele saber tcnico, que eleva o militar que o possui, somente lugar comum para os companheiros. Eles sabem que aquilo que o soldado mostra com tremenda importncia no representa nada na realidade. Por isso, seus prprios pares lanam olhares de desaprovao. Sabem, e algum modo, que so to oprimidos quanto aqueles que humilham. neste lapso de conscincia que param de rir do jaguno. Do mesmo modo que a

obra toca na identificao do espectador como idealizador da desigualdade social que ataca os camponeses, o filme tambm trata da identificao dos soldados opressores com aquela situao, gerando um senso de responsabilidade nos militares. A questo da identificao ainda mais profunda, pois no somente percebem a existncia da opresso da qual agentes, como observam que sofrem a mesma dominao de outros setores sociais. Portanto, este complexo sistema de contradies centraliza o enredo dos soldados.

3.4 Viso social do diretor

A questo do no enredo relacionado aos pobres s corrobora a tese de que histria e sociedade, esttica e estrutura flmica se complementam no filme do diretor moambicano radicado no Brasil. Existe a noo do cineasta de que no nordeste, devido a diversas questes histricas e sociais, o sertanejo parado e calado diante da desigualdade social que assola seu mundo. desta forma que construda sua passagem pela obra cinematogrfica, tanto em relao ao contedo quanto esttica.A viso social do diretor importantssima para a elaborao da obra. Assim como Glauber Rocha em Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Ruy Guerra apresenta em seu filme a dualidade brasileira. Porm, diferentemente da viso do primeiro, o serto no vai virar mar. Pelo menos no naquele momento. Isto porque no h embate entre o oprimido e o opressor. No h nenhuma conscincia do oprimido, no existe nenhuma fasca revolucionria. E isto representado esteticamente no filme pela letargia e paralizao dos camponeses.Assim como o problema do Brasil no se resolve, o filme no se resolve. O clmax no o , pois no soluciona o verdadeiro conflito presente na pelcula. Ele somente resolve uma parte da obra, a que trata dos soldados. Portanto, no h nexo entre o enredo dos soldados e o enredo dos nordestinos. E a questo do filme justamente essa: o nexo o fato dele no ter nexo. No h conflito para ser resolvido por um clmax no caso dos miserveis, pois no h luta. A oposio entre oprimidos e opressores no se torna em um verdadeiro confronto.O conceito de clmax diversas vezes relacionado a um confronto final entre duas

foras opositoras no qual ha um vencedor, ou pelo menos se chega a uma concluso, uma resoluo. Em Os Fuzis isto no acontece, no existe esta luta final definidora (a morte do

chofer s mais um desdobramento da histria), pois ela no existe na sociedade brasileira quando se trata dos camponeses nordestinos. No h confronto real entre aqueles que oprimem e aqueles sofrem opresso. As contradies esto dadas (e so extremas), mas no se traduzem em um confronto real, pois, de acordo com a viso de Guerra, falta principalmente a conscincia dos oprimidos para ativar uma possvel fasca revolucionria. O filme parece mostrar ao seu espectador que a conscincia de classe entre os sertanejos nula, o sofrimento do prximo no sensibiliza os outros camponeses, que parecem no reagir em face injustia que sofrem diariamente.Esta tese da falta de conscincia de classe e de reao frente s desigualdades pode ser confirmada atravs de uma cena extremamente significativa da obra, quando um homem pobre entra no bar onde esta Gacho", o chofer. O campons est com seu filho morto em seus braos. Ele est l para adquirir um caixo para enterrar a criana, morta pela fome. Gacho" fica indignado com a passividade do pai diante da morte da filha, no conseguindo compreender o motivo pelo qual o progenitor no se revoltava contra esta grande injustia, um armazm repleto de comida, trancafiado, enquanto crianas morriam de fome. Ele fica pasmo ao ver a imobilidade do sertanejo diante do transporte da comida do armazm, comida que poderia ter salvo sua filha. Eles esto levando toda a sua comida, covarde!, o que diz "Gacho" ao nordestino. expressa nesta cena a questo da paralizao dos camponeses frente a injustia que sofrem. Evidencia assim a total inexistncia de qualquer propulsor revolucionrio nos camponeses.Como o filme construdo na tentativa de representar o pas e suas contradies, ele no pode ter um confronto final entre soldados e famintos pois este no existe na histria brasileira. As oposies existem, mas nunca se confrontam efetivamente, uma dialtica que existe mas nunca chega a um confronto final que poderia resultar em uma soluo. Esta questo de nexo e relaes constitui a descontinuidade do enredo, outra soluo magistral de Ruy Guerra. Os enredos so descontnuos porque na realidade brasileira no h continuidade entre o serto nordestino e o desenvolvido litoral.Ele toca os espectadores em relao sua responsabilidade. O filme desperta em quem o assiste esta grande parcela de culpa pelo problema nordestino, pelo seu esquecimento. Porm, apesar deste lapso de responsabilidade, ningum ir fazer nada para

efetivamente tentar mudar e melhorar algo nesta situao. Guerra coloca indiretamente esta questo em seu filme: h um problema moral, uma crise moral.No possvel entender imediatamente o que esta crise realmente significa no filme, pois esta parece ser poltica. O filme trata exatamente disto, a existncia conflituosa destas crises. Elas se confundem e se misturam, ao mesmo tempo em que existe o problema politico de desigualdade social, existe o problema moral da imobilidade dos espectadores, ou seja, da classe dominante frente aos problemas dos nordestinos. Reconhecem a crise poltica, mas devido a esta questo moral, no fazem absolutamente nada, apesar de se aterrorizarem com tamanha pobreza e misria do serto nordestino.Tambm no h ligao entre os finais, os sertanejos no atacam o Boi Santo para comlo porque o chofer de caminhes se revoltou e foi morto. A descontinuidade histrica a descontinuidade que estrutura o filme. No seria possvel fazer um filme contnuo, com um nico centro dramtico formado por duas foras de oposio, porque o problema nordestino no assim. O Brasil est separado e uma parte no consegue enxergar a outra, o final da histria dos soldados no leva ao final da histria dos sertanejos, ou vice-versa, pois isto no acontece na histria brasileira. No h a luta final entre o desenvolvido e o subdesenvolvido, apesar dos dois enredos existirem na realidade. As contradies existem, porm, no caso do Brasil, no se traduziram em conflito real. Portanto, no filme os conflitos no se traduzem em um confronto estabelecido, de modo que no h o clmax.O que se pode observar como caracterstica essencial e constituinte da obra o fato deste organizar-se esttica e formalmente de acordo com a estrutura da sociedade que deseja representar. Na obra cinematogrfica de Ruy Guerra a estrutura poltica se tornou estrutura artstica. A organizao brasileira, principalmente quando se trata do nordeste brasileiro e da desigualdade social, a mesma formao esttica que compe a pelcula.

4.0 Cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

A cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol extremamente significativa pois revela diversos aspectos relacionados a viso social e poltica do diretor baiano Glauber Rocha. Esta ltima parte constitui-se atravs da necessidade de Antnio das Mortes, o matador de cangaceiros, de cumprir a sua funo natural e o seu destino e matar o cangaceiro Corisco. Antonio persegue a personagem at conseguir assassina-lo. A morte do cangaceiro vem acompanhada da clebre frase proferida por Corisco: Mais fortes so os poderes do povo. Aps tal acontecimento, inicia-se a corrida dos sertanejos Manoel e Rosa em direo ao mar, ou seja, em direo ao desenvolvimento. importante ressaltar, como ser discutido posteriormente, que no exposto o encontro das duas personagens com o mar, as imagens da gua invadem a filmagem da corrida de Manoel e Rosa.

4.1 Movimentos de Libertao e consumao teleolgica

4.1.1 Primeiro Movimento

A cena final formada por dois importantes movimentos de libertao de Manoel. O primeiro o da libertao da tradio sertaneja e de seus elementos representativos. Podemos entender neste caso a tradio como o conjunto de elementos que representam a raz e o espectro cultural do sertanejo. Tal movimento representado pela morte de Corisco, como se houvesse um efeito de causa e consequncia. Logo aps a morte de Corisco se d incio a corrida em direo salvao. A cena final do filme a exemplificao da necessidade do sertanejo de desgarrar-se daquilo que o prende a sua realidade terrena para realizar uma transformao social. Tudo aquilo que pode captar e aprisionar o seu esprito revolucionrio, como o Cangao e a religiosidade, devem ser abandonados. Para que Manoel, representando alegoricamente os sertanejos esfomeados, consiga quebrar a barreira do subdesenvolvimento necessrio que ele se solte destes elementos. possvel observar

que a morte de Corisco se torna algo essencial para que os sertanejos atingam o momento revolucionrio vislumbrado utopicamente por Glauber Rocha.Porm, no possvel reduzir a anlise da cena final a uma simples atribuio de aspectos negativos aos elementos tradicionais da cultura sertaneja. H uma dupla anlise sobre tais elementos. Pode-se dizer que se h desaprovao, tambm h elogio. Elementos tradicionais como Corisco e o Beato Sebastio so extremamente importantes, pois atravs dos dois que Manoel se torna um sujeito revolucionrio e intensifica a sua potncia subversiva. Estes elementos, apesar de serem desprezados ao final, so de suma importncia. Deus e o Diabo na Terra do Sol trata a tradio como algo perecvel, mas necessrio para a travessia em direo ao destino histrico, revoluo. Como afirma o crtico Ismail Xavier em Serto Mar a morte de uns e de outros como essencial para o progresso dos homens e para arealizao do princpio de justia.17

Se a cena final a representao de um movimento de libertao dos elementos tradicionais que ativam e comprimem a Revoluo, tambm a recuperao da necessidade da presena da tradio nordestina para o serto virar mar. Se no fosse por Corisco, Manoel e Rosa no estariam naquele lugar e momento propcios para a sua corrida em direo salvao. tambm importante ressaltar que sempre presente a figura e o som do cantador, figura da constelao cultural sertaneja que narra a jornada do casal de sertanejos at o vislumbramento do mar. A raz cultural sempre acompanha os nordestinos nos momentos revolucionrios: h uma tradio de violncia no serto que deve ser respeitada. Sintetizou o critico Ismail Xavier: o chamado conscincia deve se dar num estilo que dacontinuidade forma popular de resistncia cultural consagrada pela tradio.18

Apesar de ser Manoel quem realiza a corrida em direo ao mar, a personagem que demonstra possuir a conscincia social em nvel mais avanado Antnio das Mortes. Ele percebe a necessidade de eliminao de alguns elementos que foram essenciais para o comprimento do destino revolucionrio. Portanto, esta personagem, considerada diversasvezes como extremamente enigmtica, mata estes dois elementos revolucionrios: O Beato

17 XAVIER, I. Deus e o diabo na terra do sol: as figuras da revoluo. In: XAVIER, I. SertoMar: Glauber Rocha e a esttica da fome. So Paulo: Cosac Naify, 2007.p.138.18 XAVIER, I. Deus e o diabo na terra do sol: as figuras da revoluo. In: XAVIER, I. SertoMar: Glauber Rocha e a esttica da fome. So Paulo: Cosac Naify, 2007.p.138.

Sebastio e Corisco (Sebastio foi morto por Rosa mas, a princpio, o beato deveria ter sido executado por Antnio das Mortes).Em relao a este primeiro movimento de libertao contido na ultima cena, que certamente integrado ao segundo movimento, pode-se concluir que existe esta sensao de libertao das foras que servem de propulsores revolucionrios e ao mesmo tempo mantm os sertanejos presos aquela realidade hostil. H tambm neste movimento a atribuio de valor positivo a tais elementos da tradio, no caso Corisco e o Beato Sebastio, pois o cantador que acompanha Manoel em sua jornada final em direo ao mar constri um de seus conselhos finais atravs da necessidade da tradio estar sempre aliada ao sertanejo no processso revolucionrio. Tal viso, que pode ser considerada contraditria primeira vista, mostra-se condizente com o olhar atribuido por Glauber Rocha a estes elementos tradicionais no decorrer da obra. H sempre esta viso sui generis que aponta os aspectos negativos de tais elementos, como as contradies presentes no discurso do Beato Sebastio e de sua prxis social, mas tambm realiza um elogio, afirmando, por exemplo, a potncia do messianismo ao se tornar uma ferramenta atravs da qual as massas realizam o seu movimento de emancipao, mostrando que o que ativa o movimento revolucionrio est na base cultural do povo que subverte a ordem.

4.1.2 Breve observao acerca da personagem enigmtica de Antonio das Mortes.

Antonio das Mortes personagem que nada , ou seja, no pertence a nenhum grupo, pois no proprietrio, no campons e no soldado. Porm, este possui a capacidade de transitar entre diferentes setores sociais e por isso est presente nos dois movimentos de revolta de Manoel (Sebastio e Corisco). Antonio das Mortes tem o papel de eliminar elementos alienantes para permitir que Manoel siga corretamente a sua jornada revolucionria. Ele quer, em suas palavras, uma grande guerra sem a cegueira de Deus e o Diabo. E pra que essa guerra venha logo, eu que j matei Sebastio, vou matar Corisco.Porm, apesar de apresentar primeira vista este objetivo claro e definido, a afirmao de que a personagem estrutura-se nesta linha una incorreta. Antonio das Mortes no um revolucionrio dedicado causa, pois sua ao uma resposta ao pagamento que recebe da

Igreja e do governo. Ele apoia a Revoluo ao mesmo tempo em que se vende ao inimigo. Se mata a pedido do inimigo, no pode ser pelo bem do povo. E se mata pelo bem do povo, no pode ser pelo bem do inimigo. esta contradio que constitui o prprio ser de Antnio das Mortes e o que faz com que a personagem se torne to enigmtica, no se sabe de que lado est. E para sublimar as suas contradies, Antnio atribui o sentido de destino fatalista a sua funo.O drama que atinge Antonio o drama que atinge a classe mdia brasileira, principalmente aquela que progressista. uma classe que revolucionria, mas ao mesmo tempo no o . Ao mesmo tempo em que prega os ideais de transfomao social age de forma contrria. A personagem se torna um espelho para o pblico pequeno-burgus. Estes se enxergam em Antonio das Mortes: o dilema que constitui a personagem o mesmo do homem culto que assiste ao filme.

4.1.3 Segundo Movimento

Pode-se dizer que o segundo movimento de libertao presente na ltima cena um movimento libertrio que adquire carter amplo por tratar do vislumbramento da grande guerra19. Este diz respeito consumao da sublevao dos oprimidos contra os opressores. a corrida de Manuel em direo libertao total do subdesenvolvimento e de todas as injustias sociais. a certeza da consumao mxima da metfora do Serto Mar.O papel de Manoel na cena final o de receber o sopro do passado, da tradio subversiva e violenta do serto nordestino e impulsionar novamente este legado. E este impulso se d em direo consumao do tlos (finalidade): a revoluo e a trasformao do serto em mar. H neste ponto outra importante chave de interpretao da cena de fechamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol. No movimento de invaso das imagens do mar sobre a corrida de Manoel e Rosa revela-se o importante conceito de lacuna. No se sabe qual a forma peculiar de realizao revolucionria, no se sabe como se chegar revoluo e nem como esta se desdobrar. Grande parte da fora do filme encontra-se neste paradoxode exposio da certeza revolucionria aliada a uma intensa incerteza sobre o modo de

19 NAGIB,L. Imagens do mar: vises do paraso no cinema brasileiro atual. In: XXIV CongressoBrasileiro da Comunicao, 24., 2001, Campo Grande. AnaisCampo Grande: Intercom, 2001.

realizao desta sedio. E exatamente neste hiato que se estabelece definitivamente a esperana proftica de transformao social do serto nordestino e do Brasil. O filme se estrutura em um terreno de incertezas que, paradoxalmente, dialogam e reafirmam a certeza da consumao do tlos apesar de no apresentar modelos para a ao.20A imagem do mar que invade a tela a consumao da profecia revolucionria. Esta metfora do Serto Mar origina-se nos manuscritos dos moradores de Canudos. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a inverso que consitui esta metfora condutora do filme condiz com um movimento de trocas que existe durante todo o filme. O discurso do Beato Sebastio, por exemplo, afirma que o pobre ir se tornar o rico e quem rico ficar pobre. Este discurso est presente em toda a obra. utilizado pelas personagens da tradio, como Corisco e Antonio das Mortes. H um aumento da intensidade desta ideia, e a consumao deste sentido se d na cena final, na qual o serto se torna o mar. Durante todo o filme cria-se esta expectativa sobre o lado de l. E a cena final o encontro do sertanejo com esta perspectiva que desenvolvida e fortificada durante a obra.Este fechamento, como definido por Lcia Nagib, a representao da fora transformadora, ou seja, da revoluo. tambm a viso do paraso, da ilha da bem aventurana, relacionande-se assim viso utpica de paraso do Beato Sebastio.O mar tambm atinge a significao de recuperao dos mitos criadores que consistem na realizao de uma eliminao totalizante para que a transformao acontea. este mar da revoluo que destroi o estado de coisas para que uma nova realidade social seja construda. Uma realidade social justa, igual e formada primordialmente pela metfora mxima presente em Deus e o Diabo.Sintticamente, a viso poltica que Glauber Rocha expressa artisticamente nesta importante obra cinematogrfica diz respeito primordialmente certeza revolucionria. atravs da filmagem contnua, reta e decidida da corrida de Manuel e Rosa pelo solo arenoso do serto nordestino que se afirma cinematograficamente a certeza revolucionria. A lacuna existente entre a corrida do casal e a imagem do mar (a no exposio de modelos de ao revolucionrios) s reafirma e intensifica a teleologia. No se sabe como se chegar a ela,porm, sabe-se que a Revoluo uma certeza, o destino de toda uma nao. A histria

20 XAVIER, I. Deus e o diabo na terra do sol: as figuras da revoluo. In: XAVIER, I. SertoMar: Glauber Rocha e a esttica da fome. So Paulo: Cosac Naify, 2007.p.142.

40

brasileira desdobra-se em acontecimentos que apresentam como seu sentido a sublevao dos oprimidos contra os opressores. O sentido do campesinato a transformao social e o movimento da histria tende naturalmente a uma revouo destes camponeses que se alastra pelo Brasil. atravs desta lacuna temporal que Glauber Rocha afirma tal teleologia da nao e expe a inevitabilidade da revoluo.

4.2 Matria poltica e matria artstica: jogo de relaes e transposies

A certeza revolucionria a premissa da obra, apesar de ser apresentada metaforicamente apenas no final da pelcula. Esta a assero histrica da nao brasileira. E a partir desta proposio, o filme trata tambm dos elementos tradicionais da cultura sertaneja que esto extremamente relacionados a este processo revolucionrio ainda vindouro. Ao estruturar-se filmicamente atravs da exposio do nordeste como um grande palco de representaes alegricas, a pelcula reafirma a importncia da tradio como propulsora revolucionria. Tal pensamento expresso durante toda a trama da obra: Manoel tem a sua revolta intensificada e at mesmo politizada pelo beato Sebastio e pelo cangaceiro Corisco. atravs destas duas personagens que Manoel consegue iniciar a sua corrida em direo ao mar, em direo ao desenvolvimento. Se no fosse por estes dois elementos, Manoel no teria chegado onde chegou. Portanto, existe a afirmao da necessidade da presena da tradio no processo revolucionrio, levando caracterizao da cultura sertaneja como revolucionria, aumentando assim a certeza de uma sublevao inciada pelos camponeses do nordeste.Tambm faz parte da viso poltica de Glauber Rocha a exposio da necessidade do sertanejo de se libertar destes mesmos elementos tradicionais que serviram de propulsores revolucionrios. Eles so extremamente importantes no momento de formao subversiva, porm o sujeito revolucionrio deve se tornar independente destes aspectos para seguir a sua jornada em direo transformao social. Este novo impulso dado por Manuel sobre as influncias culturais, exposto na cena da corrida final da personagem, deve vir acompanhado de certa emancipao desta interferncia da herana cultural. A relao do sertanejo subversivo com a sua tradio estabelece-se, portanto, de modo sui-generis. No entanto deve haver a independncia do campons dessas influncias.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a esttica cinematogrfica que exerce o papel de transformar a matria poltica em matria artstica quando se trata da representao da certeza revolucionria. Isso se d atravs da corrida do sertanejo captada cinematograficamente de modo direto e atravs da lacuna temporal que intensifica a Revoluo como o destino do pas. J a viso de Glauber Rocha sobre o papel dos elementos da tradio no processo de transformao social transposto para o filme atravs de sadas dramticas do roteiro. Ao mostrar que Manoel se tornou um revolucionrio atravs da interferncia direta do Beato Sebastio e de Corisco em sua vida, reafirma-se a importncia da tradio sertaneja, subversiva, para a sublevao E a presena do cantador na derradeira corrida de Manoel em direo ao mar tambm exerce o papel de traduzir para a linguagem cinematogrfica as posies polticas do diretor. As sadas narrativas tambm so utilizadas para representar a percepo poltica da necessidade da independncia do sertanejo da tradio para conduzir satisfatriamente o processo revolucionrio. A morte do Beato Sebastio e principalmente a morte do cangaceiro Corisco servem como ferramentas que revelam a necessidade de libertao do sertanejo de tais foras tradicionais para o andamento da trajetria que exalta a metfora do Serto Mar. logo aps a morte de Corisco, assassinado por Antnio das Mortes, que Manoel e Rosa comeam a se mover em direo ao mar. Como tratado anteriormente, como se se estabelecesse um efeito de causa e consequncia entre a morte de Corisco e a corrida do casal. Atravs do assassinato de Corisco e do desligamento de Manoel deste elemento que o impulsionava para a revoluo, mas ao mesmo tempo o prendia em sua realidade miservel, que o casal pode quebrar a barreira do subdesenvolvimento.

5.0 Cena final de Os Fuzis.

A primeira parte da cena final de Os Fuzis (1964) caracterizada sinteticamente pela luta travada entre os militares e o revoltado Gacho. Este, ao observar que a comida do armazm est sendo transportada para fora da cidade e que os camponeses nada fazem para impedir tal movimento, revolta-se contra os militares. Ao conseguir um fuzil, Gacho ataca o caminho dos soldados que contm o contedo alimentcio do armazm , iniciando assim um violento tiroteio. Este confronto culmina com a morte de Gacho.A segunda parte diz respeito aos camponeses. Estes entram em desespero diante da fome insuportvel e voltam-se contra um elemento de sua prpria tradio ao matar e comer a carne do BoiSanto. A morte do animal sagrado acontece depois do discurso de um beato que trata de ameaar a vida do animal caso a seca ali prevalecesse.Esse conjunto de acontecimentos que constituem o desenrolar final de Os Fuzis so de extrema importncia pois representam o encadeamento de diversos fatores e elementos que constituem o mtodo utilizado por Ruy Guerra para pensar o Brasil e o serto nordestino.

5.1 Gacho: conscincia e exploso

Gacho uma personagem enigmtica, pouco se sabe sobre ele. O que evidenciado na pelcula que a personagem j foi um soldado e que abandonou o cargo devido ao sentido negativo que atribua a funo militar de manter a ordem. Este posicionava-se contra as injustias sociais praticadas contra os camponeses pelos militares.A personagem caracteriza-se tambm por seu isolamento. No pertence a grupo nenhum, no nem campons e nem soldado, e realiza assim um movimento de transio entre estes dois grupos. 21A ltima cena confirma a existncia de Gacho como a nica personagem que possui real conscincia social. Tal questo permeia toda a obra e confirmada atravs da revolta do chofer. Se os militares no tm noo de sua complexidade e os camponeses esto imersosem profunda paralizao e letargia, Gacho aquele que percebe a situao social l

21 BERNARDET, J. Os impasses da ambiguidade: Antonio das Mortes.In: Bernardet,J.Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.p.71-78.

constituda e revolta-se contra aquele estado de coisas. Sua intensa irritao destina-se tambm aos prprios camponeses em decorrncia da dormncia que apresentam diante de tamanha injustia. Esta revolta com dupla direo evidenciada quando Gacho perde a cabea ao observar na sua frente a absurda cena de um pai que enterra sua filha, morta de fome, sem nem ao menos expor qualquer tipo de revolta relacionada ao fato de militares estarem trancafiando o armazm que poderia ter salvo sua filha. A revolta do chofer no iniciada em decorrncia da injustia do armazm trancado. O que ativa tal movimento de subverso a perplexidade diante da paralizao e letargia do pai que acabou de perder suaprole.

importante destacar que a revolta de Gacho acontece tambm como consequncia de sua indignao e perplexidade ao analisar a situao dos prprios soldados. Gacho revolta-se contra as contradies dos soldados e a falta de viso da situao exposta por parte dos militares.A passagem descrita acima, primeira vista, extremamente direta. Porm, ao ser analisada profundamente, revela intensas contradies que potencializam sua fora reveladora. De acordo com Roberto Schwarz, Os Fuzis um filme que possui resultados mais satisfatrios que Deus e o Diabo na Terra do Sol e outros pertencentes ao Cinema Novo na tentativa de realizar o movimento brechtiano de distanciamento entre o espectador e aspersonagens22. No entanto, a cena do incio da sublevao de Gacho revela o contrrio, pois

a revolta de Gacho se torna a revolta do espectador. Quem assiste capta para si o sentimento de perplexidade e irritao com a letargia dos camponeses. H uma quebra deste intenso e profundo distanciamento que distingue Os Fuzis dos outros filmes cinemanovistas, o sentimento de revolta transferido para o espectador. Os confrontos formais desta cena so ainda mais profundos. O distanciamento, como afirma Schwarz, responsvel por levar o espectador ao raciocnio responsvel. E esta passagem, apesar de no apresentar esta distncia, leva aquele que assiste ao completo entendimento dos estratagemas histricos que compem o cenrio da obra. O nico momento em que a linearidade brechtiana da obra parece sofrer uma breve desestruturao , na verdade, uma sada cinematogrfica de RuyGuerra que permite com que o espectador capte a situao social e analise-a criticamente

22 SCHWARZ,R. O cinema e Os Fuzis. In: SCHWARZ,R. O Pai de famlia: e outros estudos. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.p.29-37.

46

atravs de uma quebra do distanciamento. Era o objetivo de Guerra que este sentimento de revolta fosse compartilhado com o espectador pois tal movimento faz parte do entendimento do filme como um todo. O cineasta foi capaz de levar o espectador ao raciocnio responsvel at mesmo em um breve momento em que a separao personagem-espectador" rompi.daRuy Guerra utiliza-se de contrastes em seus filmes para levar ao espectador ao raciocnio. E isso pode ser visto na cena analisada: o estopim da revolta do ex-militar a dormncia dos camponeses. O que revela e torna mais intensa a sublevao de Gacho o contraste com a letargia dos flagelados. E o que traz tona a inrcia dos camponeses a oposio que se estabelece com a movimentao subversiva do motorista de caminhes. possvel perceber que o estado de coisas exposto na pelcula atravs da oposio de dois comportamentos conflitantes. a sobreposio destes que cria a abertura necessria para a observao do plano da realidade sertaneja. Isto pode ser visto tambm na obra de Glauber Rocha, cuja utilizao de contradies, ideias contrastantes e movimentos pendulares intensa. A dualidade brasileira e o confronto serto-mar so dialticas centrais na obra de Glauber Rocha e percebe-se tambm sua presena em Os Fuzis, mais especificamente no incio da revolta de Gacho.

5.2 So ldad o s: la p so de co n sci n cia"

Gacho morto pelos soldados atravs de um intenso tiroteio. O soldado Mrio, ao se deparar com a morte do ex-militar, emociona-se de forma profunda. Primeiramente apresenta uma forte incompreenso, como se no estivesse entendendo o que estava se passando, como se no pudesse acreditar naquilo que via diante de seus olhos. Aps esta fase, mergulha em um momento de percepo da realidade, o que lhe causa grande desespero e raiva. O comportamento do soldado em face morte do ex-militar abre um amplo leque de interpretaes. A presente pesquisa adotou o mtodo de anlise subjetiva da personagem, de modo a revelar a relao dos soldados com a perspectiva de conscincia e mudana.Sua morte pode ser entendida como o momento no qual os soldados percebem as contradies de sua conduta. Os soldados, principalmente Mrio, sofrem um lapso de conscincia e percebem que ao mesmo tempo que oprimem os sertanejos tambm so oprimidos pela burguesia do Brasil desenvolvido. O soldado chora e lamenta a situao social que se revela a sua frente e lamenta o fato de serem agentes de realizao das injustias

sociais praticadas contra os sertanejos. Gacho, por ser o nico que possui a conscincia das injustias do serto nordestino e das contradies dos soldados aquele que representa a esperana de mudana e transformao social do serto. Portanto, Mrio tambm lamenta o fato de ter assassinado aquele que carrega a conscincia daquela situao e, consequentemente, o fato de ter ceifado indiretamente a possibilidade de transformaosocial.

Conclui-se que a morte de Gacho exerce um papel to importante quanto a sua funo quando ainda vivo, pois o nico momento no qual os soldados apresentam conscincia das contradies e injustias tratadas na obra.

5.3 Sertanejos: violncia e auto -flagelao

A parte do filme que trata dos sertanejos constituda pelo violento assassinato do Boi Santo, realizado pelos flagelados e o rpido e hostil desmembramento do animal. Este o nico momento do filme no qual os camponeses apresentam algum impulso de ao ou reao realidade injusta em que vivem. No entanto, a ao de matar o animal sagrado e com-lo no representa uma atitude racional por parte dos sertanejos, pois no h o objetivo lgico de revolta. Estes no percebem as contradies extremas que compem aquela realidade. Portanto, o ato de matar o Boi uma atitude irracional e desesperada. Diante da fome extrema o instinto do homem quem o comanda. No h conscincia social naquele ato, no n viso social. O que existe a resposta a um impulso primitivo, a fome. Durante todo o filme aqueles sertanejos so caracterizados por sua noao. Quando efetivamente realizam algo, a caracterizao continua a mesma pois o movimento realizado pelos flagelados em nada resultou e no teve como propulsor nenhuma compreenso, mesmo que primria, das profundas injustias sociais que predominavam naquela realidade. Aquilo que poderia representar o nico momento de conscincia dos sertanejos somente mais uma demonstrao de sua alienao. Ao matar o animal, estes se voltam contra sua prpria tradio. Ao invs de lutarem contra o transporte de comida dos militares, que o elemento central da injustia de suas vidas, os flagelados se voltam contra um elemento prprio de sua cultura. A injustia social praticada pelos militares e ordenada pela Burguesia to alienadora que torna a opresso em uma mancha ainda mais confusa. E o resultado desta alienao

este erro dos camponeseste no direcionamento de sua ao. E d-se a entender que aquele lapso de violncia no gerar nenhum movimento de revolta porque algo pontual. A opresso e o dilaceramento social so to profundos que no h espao para o discernimento entre o que tradio e o que opresso. E com tamanha difuso, qualquer movimento subversivo se torna impraticvel.A morte do Boi Santo contradiz a fala do beato ecoada no incio do filme. Ele diz que a redeno dos sertanejos vir quando estes atingirem o estado mximo do seu desespero. O assassinato do animal o exemplo claro de que este momento havia chegado. Subentende-se que a chegada ao pice do dilaceramento no ocasionar nenhuma mudana. Aquele estado de seca continuar a predominar no serto nordestino.

5.4 Viso social

Como tratado na anlise geral de Os Fuzis, o elemento centralizador da viso poltica de Ruy Guerra sobre o nordeste so os dois enredos (fita documental e fita de enredo). Na cena final este elemento que traz tona a viso de Guerra. Os dois setores da sociedade que esto em confronto, no caso os sertanejos e os soldados (representando um setor mais amplo, a elite), no entram em conflito. Todas as cartas esto sobre a mesa, as contradies esto expostas porm, estas no se transformam em conflito real devido a total alienao dos flagelados e tambm dos soldados, incapazes de enxergar as contradies presentes em sua funo.E esta viso de que as oposies no se materializam em confronto real expressa por Ruy Guerra atravs da descontinuidade dos enredos, algo que predomina durante todo o filme. A no existncia de nexo entre os acontecimentos que marcam a soluo dos problemas dos soldados e dos sertanejos na cena final, tambm traduz para a tela a interpretao de Brasil realizada por Guerra. como se houvesse dois fechamentos para dois filmes diferentes. H o fechamento do enredo dos soldados, formado pelo tiroteio travado entre os militares e Gacho, e o fechamento dos miserveis, constitudo pelo ataque ao Boi Santo. O enredo dos soldados no desdobra-se no dos sertanejos pois no existe nenhuma espcie de ligao entre os dois.

A revoluo poderia ser expressa no filme como o momento do clmax, pois este seria o momento no qual os dois polos opositores, sertanejos e soldados, se enfrentariam. Mesmo sendo uma revolta minoritria, esta poderia representar o incio de um movimento revolucionrio que se alastraria por todo o pas, como acreditava Glauber Rocha. Porm, isto no acontece pois no h nenhuma luta ou conflito entre os dois grupos antagonistas. O Brasil no chegou ao seu clmax. Para fim de sistematizao mais efetiva, conclui-se que o pilar de anlise do Brasil e do Nordeste realizado por Ruy Guerra a impossibilidade da Revoluo no Brasil em decorrncia da falta de embate e confronto real daqueles que constituem as contradies que necessitariam de uma revoluo para serem resolvidas.Os Fuzis utiliza-se de sua estrutura artstica para revelar a estrutura poltica que expe. De certa maneira, a forma flmica na qual se organiza converge com a estrutura poltica brasileira. Guerra utiliza-se da estrutura poltica da sociedade brasileira para estruturar sua obra. Se o Brasil constitudo por dois grupos antagonistas que no enxergam as suas contradies e que nunca travam uma luta real seu filme tambm constitudo por duas fitas completamente separadas que nunca entram em confronto. Durante toda a obra h a exposio e a afirmao de que os dois polos opositores que compem o espectro scio- poltico brasileiro no se enxergam e caminham em planos separados. E cabe cena final a exposio da certeza de que estes no se encontraro. O fechamento, o clmax, no acontece, pois esta luta no se materializa no plano do real. As impossibilidades histricas se tornam as impossibilidades artsticas. O filme realista no sentido de que o roteiro e o enredo no avanam mais do que a realidade brasileira o faz. Ruy Guerra utiliza-se da Histria e da sociedade como limites para a sua produo, fazendo com que estes elementos exeram o papel de balizadores do enredo, no permitindo com que este avance para algo ainda no atingido na realidade brasileira. Em sua no utopizao, a obra encontra a sua fora analtica e reveladora da sociedade. Em Os Fuzis, a arte se torna capaz de revelar a Histria atravs de sua prpria estrutura e organicidade. A esttica se torna social e poltica.

6.0 Sequncia inicial.

6.1 Os Fuzis

A abertura do filme de Ruy Guerra estrutura-se a partir da fala de um beato sobre a intensa fome que assolava o serto nordestino. H uma justificao do sofrimento dos camponeses atravs da ideia de castigo divino. Ele afirma que a vida miservel era uma resposta ao pecado cometido ao esquecer desta divindade superior. Alm disso, o beato afirma que o castigo somente cessar quando os homens atingirem o maior nvel de desespero e sofrerem mais do que Deus padeceu quando os homens do serto esqueceram o seu nome e sua existncia. A fala do beato pode ser transcrita da seguinte maneira (adaptada):

Quando j no havia mais folhas nas rvores e nem frutos na ramada ,e do cu vinha o divino castigo para o pecado homens, cerc