Ricoeur e a Identidade Narrativa

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Paul Ricoeur, a Identidade Narrativa e a ticaPor: Guaracy Arajo (Filosofia/PUC-MG)

A reflexo proposta pelo filsofo francs Paul Ricoeur a respeito das relaes entre narrativa e identidade pessoal (reflexo que culmina em O si mesmo como um outro, de 1990) toma como pressuposto a anlise, efetuada pelo autor em uma obra anterior 1, das relaes entre ao e narrativa tais como desenvolvidas por Aristteles em sua Potica.Tal anlise pretende encaminhar a seguinte questo: como as aes so articuladas a partir da narrao? Vejamos, inicialmente, a contribuio aristotlica para esta discusso. A teoria aristotlica articula a heterogeneidade e discordncia das aes humanas atravs dos conceitos correlatos de mithos e mimesis. O que significa esta correlao? Aristteles define inicialmente a obra potica por um elenco de funes que exercem papis mais ou menos variveis de acordo com os gneros e obras particulares. So estas o enredo, os caracteres, a expresso, o pensamento, o espetculo e o canto. O escopo ltimo destas funes o de representar a ao humana: ou seja, uma definio mais abrangente da obra potica justamente dada por seu poder de produzir uma ...mimese das aes (mimesis praxos). O que assegura privilgio, dentre as funes elencadas acima, ao mithos ou enredo? Seu carter prprio de agenciamento, de organizao. Por mithos entendida a operao que dispe em conjunto aes e fatos apresentados na obra potica. O mithos ordena assim aquilo que a mimese pretende representar. Est dada a estreita correlao entre os dois conceitos: o enredo a representao da ao. Tal ordenao possui os atributos da completude e totalidade - o conjunto das aes representadas deve ter comeo, meio e fim, de seu acordo

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depreendendo-se um todo - alm de uma extenso ou grandeza apropriadas para a exposio da obra. O encadeamento das aes operado pelo enredo leva a perguntar pelo estatuto do saber prprio ao fazer potico. Afinal, se Aristteles prope um nexo de necessidade entre as aes, este retira sua inteligibilidade do acidental ou episdico - do particular. Para Ricoeur, este um indcio da aproximao da inteligncia potica - mimtica e mitolgica (no sentido do mithos prprio Potica) ao saber mais prprio tica em Aristteles: a phronesis, chamada por Ricoeur de inteligncia da ao. Ou seja, se o saber visado na composio potica liga-se a um fazer produtivo, esta produo radica em um ajuizamento verossmil, mesmo que fictcio, das aes humanas. Desta forma, os enredos elevam-se da particularidade, produzindo universais poticos que merecem o ttulo na medida em que permitem o conhecimento, ou melhor: o reconhecimento seguido de prazer. Est assegurado o carter pedaggico do texto potico, vinculado prxis na medida em que os universais poticos estabelecem-se justamente na esfera da prtica. Se a arte potica estabelece-se com vistas a uma representao completa de um conjunto agenciado de aes, os efeitos suscitados por esta devem ser levados em conta. A Potica centra-se no gnero trgico, marcado por incidentes lamentveis e aterrorizantes cujo reconhecimento provoca no espectador sentimentos de piedade e terror. Trata-se da katharsis, entendida como depurao das emoes que fornece ao pblico um misto de ensinamento e comoo. Se a Potica de Aristteles elaborada em grande medida privilegiando o gnero trgico, Ricoeur apontar elementos que permitam no s superar este exclusivismo quanto articular sua prpria, e mais ampla, teoria da narrativa. O que encaminhado atravs da busca1

A saber, Tempo e Narrativa, de 1985.

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de traos que nesta obra indiquem o ponto de partida (os pressupostos) e o ponto de chegada (as conseqncias) da mimese potica. O que favorecido ao longo da Potica pela proximidade entre mimese e prxis: a expresso mimesis praxos, reiteradamente utilizada ao longo da obra, nesse sentido emblemtica. Ora, se a ao imaginada no mbito da potica se vincula ao real que tematizada pela tica, Ricoeur julga encontrar na prxis um termo de ligao entre real e imaginrio. Assim, se o texto potico opera uma ruptura em relao prxis efetiva (a mimese para Ricoeur uma atividade criadora, irredutvel a uma cpia) estas duas esferas se ligam na medida em que a representao tem como escopo justamente as aes. Assim, se a funo principal da atividade mimtica a criao operada no imaginrio, a inteligibilidade prpria a esta criao estar em seu papel de mediao entre os pressupostos da potica (relativos a uma pr-compreenso das aes) e suas conseqncias, que se instauram na esfera da prtica. Os traos da pr-compreenso das aes inscritos no texto potico tornam-se evidentes na contraposio ao discurso tico. Se a tica ensina como a ao virtuosa conduz felicidade, o vnculo entre estes dois termos no deixa de ser contingente (tomando-se a felicidade como algo de circunstancial); a arte potica trar a este vnculo certa inteligibilidade, mas toma emprstimos do estudo tico das aes e do carter a fim de retirar da sua coerncia. Ricoeur chegar a dizer que a verossimilhana e a capacidade persuasiva da obra potica se efetivam apenas se esta for culturalmente aceitvel por seu pblico. Em seguida, Ricoeur avanar a tese central de Tempo e Narrativa a saber, a afirmao de que tempo e narrativa so termos que se remetem um ao outro. Para o autor, o tempo s se torna humano na medida em que articulado de forma narrativa; e a narrativa s alcana seu pleno sentido ao se tornar uma condio da existncia temporal humana. Repare-

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se que aquilo com o que a narrativa lida o tempo da ao humana; narrativa , ao e tempo so tomados em conjunto. Exporemos de forma esquemtica o circuito das mimeses atravs das quais a narrativa trabalha o tempo da ao. Por mimese I, Ricoeur entende uma prefigurao narrativa da experincia humana no mundo, que se d pelo carter articulado das aes humanas (encadeadas numa rede intersignificativa em que se relacionam fins, motivos, agentes em interao, resultados, circunstncias), pela mediao simblica que se articula nos contextos sociais e pelos caracteres temporais (que movimentam a cadeia intersignificativa das aes dando-lhe uma continuidade) aos quais esto expostas as experincias. Mimese II a operao narrativa propriamente dita: a representao das aes por enredos que sintetizam os eventos narrados numa trama que, ao agenciar e compor a heterogeneidade dos acontecimentos e aes humanas numa totalidade inteligvel (a sntese do heterogneo), configura e d sentido experincia temporal humana. Mimese III compreende o conjunto de refiguraes ocorridas pelo contato entre narrativa e leitor, a partir da interseo entre o mundo vivido pelo leitor e o mundo descortinado pela narrao. O receptor, ao confrontar seu prprio mundo com o mundo revelado pelo texto, reformula suas prprias experincias e leva a termo a mimese narrativa. Na parte 4 de Tempo e Narrativa, Ricoeur analisar mais detidamente a Mimese III ou reconfigurao, buscando evidenciar de que modo a narrativa elabora respostas para os paradoxos da experincia temporal humana. Uma pergunta especialmente discutida pelo autor a seguinte: qual ser a referncia comum entre o tempo humano tal como configurado pelos textos de fico e o tempo descortinado pelos livros de Histria? A resposta : estes modos narrativos cruzam-se sobre o indivduo que assegura sua identidade narrando ao modo do enredo suas prprias experincias. O rebento nascido da

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unio entre Histria e Fico ser assim a identidade narrativa. O que significa uma retomada da questo do sujeito: este ser visto como uma entidade capaz de sintetizar suas prprias aes dando-lhes um sentido narrativo. Ao narrar-se seus prprios atos e experincias, o sujeito humano passa a dispor de uma "vida examinada", autointerpretada pelo medium da narrao. A narrativa redescreve e reapresenta o mundo da ao e cria as condies para uma reflexo renovada acerca da compreenso de si mesmo na medida em que liga atravs da leitura o sujeito em suas aes e os contedos fornecidos pela interao com a cultura. A identidade narrativa pode ser vista como este ponto de passagem da ordem da cultura da existncia, tanto em sentido individual como comunitrio (dado que as comunidades auferem sua identidade das narrativas que se formam e se fixam em seu interior). Na proposta da identidade narrativa formulam-se ainda noes privilegiadas a partir das quais o autor esboar o problema do sujeito (ao qual nos remeteremos, de acordo com os termos usados por Ricoeur, a partir do termo si): a ipseidade e a mesmidade. O conceito de identidade narrativa apresenta-se como resposta dialtica relao entre ipseidade e mesmidade. Que significam estes termos? Por mesmidade entende-se a busca de um critrio de estatuio de identidade humana que leve em conta invariantes, algo que no se modifica no tempo. Nessa perspectiva, a pergunta sobre o "quem" da identidade aparenta ser submersa na pergunta sobre o "qu" da identidade, que se deixa responder na enunciao de um substrato neutro, impessoal. A ipseidade pleitea por um critrio de identidade capaz de assumir a mudana, a transformao como constituinte. A seguinte citao, apesar de longa, bastante esclarecedora: Esta distino (entre ipseidade e mesmidade) constitutiva da noo mesma de si. A base fenomenolgica desta distino fcil de ser descrita. Ela concerne s duas maneiras diferentes pelas quais a identidade pessoal se relaciona ao tempo - duas maneiras mais precisamente de perseverar, de

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manifestar a permanncia no tempo de um ncleo pessoal: segundo a mesmidade ou segundo a ipseidade. Sob o ttulo da mesmidade ordenam-se diversos critrios de identidade:

identidade numrica da mesma coisa atravs de suas aparies mltiplas, identidade estabelecida sobre a base de provas de identificao e de reidentificao do mesmo; a identidade qualitativa, ou seja a semelhana extrema das coisas que podem ser trocadas uma pela outra sem perda semntica, salva veritate; a identidade gentica, atestada pela continuidade ininterrompida entre o primeiro e o ltimo estado de desenvolvimento deste que ns tomamos como o mesmo indivduo (da bolota ao carvalho); a estrutura imutvel de um indivduo reconhecvel na existncia de um invariante relacional, de uma organizao estvel (cdigo gentico ou outra). A identidade pessoal no exclui uma tal forma de mesmidade sob a figura do carter, feito de marcas distintivas e de identidades assumidas em que se reconhece um indivduo como sendo o mesmo.(...)Mas a identidade do carter somente um dos dois plos do par do idem e do ipse. perseverana do carter se ope a manuteno de um si a despeito das mudanas que afetam os desejos e as crenas, logo, de uma certa maneira, ao encontro da perseverana do carter. Estas duas modalidades da identidade me parecem se combinar na identidade narrativa... (Rflexion Faite, pag. 101/102 da ed. francesa) A identidade narrativa fornecer a Paul Ricoeur importantes intuies acerca do problema do si, visto que a narrativa parece conjugar de modo privilegiado as esferas da experincia e do sentido, da natureza e da cultura. Isto possvel devido crena de Ricoeur no carter representacionista de qualquer linguagem, mesmo que fictcia: se a narrativa apresenta aes, ela as representar. a partir da narrao das histrias de vida que o sujeito ou si poder auferir uma identidade, assim como a partir da narrao dos eventos fundadores de uma comunidade que

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se pode alcanar uma identidade social. Seu carter dialtico prende-se combinao de caractersticas da mesmidade (por ex. o carter, que sempre se pode identificar novamente como o mesmo) e da ipseidade (a manuteno da promessa, a despeito de toda a mudana de situao, o exemplo de Ricoeur). Em O si-mesmo como um outro Ricoeur apresenta a dialtica entre ipseidade e mesmidade a partir da identidade narrativa. Esta dialtica opera-se no personagem, desenvolvendo-se a partir da transferncia da configurao do enredo para a constituio daquele. O enredo, tomando em conjunto a diversidade dos acontecimentos na

inteligibilidade da histria narrada (=sntese do heterogneo), proporciona o surgimento de um modelo de permanncia temporal que entrelaa identidade e diversidade, concordncia e discordncia. Este modelo transplantado para o personagem da narrativa, atravs da constatao de que a identidade do personagem correlata inteligibilidade trazida aos acontecimentos heterogneos pelo enredo: o personagem ele prprio enredo. Ele dialetiza em si a tessitura do enredo, obtendo sua identidade na concorrncia entre os acontecimentos e aes com os quais se defronta e que produz e a exigncia retroativa de encaixar estes acontecimentos e aes em um modelo de inteligibilidade que s pode ser narrativo. A identidade do personagem torna-se correlata da histria em que este mobilizado. A identidade narrativa torna possvel atribuir aes e acontecimentos ao personagem e por extenso ao ser humano - entendido como personagem de sua prpria histria. A identidade narrativa tambm associa o tema do si ao campo da tica. A identidade narrativa atua de modo prospectivo em relao tica, na medida em que se encontra inevitavelmente permeada por suas implicaes. Este um ponto de vista repetidamente reiterado por Ricoeur: a narrativa ficcional funciona como um laboratrio para o juzo moral,

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na medida em que nos permite avaliar escolhas eticamente qualificadas a partir de seu desenvolvimento narrativo. Ricoeur aponta vrias dificuldades envolvidas com a proposta da identidade narrativa. Uma primeira linha de problemas prende-se busca de uma unidade para a prpria vida a partir da narrativa: a equivocidade da autoria quando se passa da fico - na qual os papis do autor, do narrador e do personagem so bem fixados - para a vida prtica, na qual somos no mximo co-responsveis por nossa prpria histria de vida. Alm disso, os limites (incio, encerramento) de nossa prpria narrativa no nos pertencem, tornando-a sempre inacabada. Lembre-se ainda o emaranhamento de nossa prpria narrativa com a de inmeras outras que nos afetam, e a inscrio das narrativas pessoais em um horizonte aberto pelos projetos e antecipaes que, por sua vez, selecionam e modificam incessantemente os elementos desta narrativa. Ricoeur espera superar estas dificuldades apelando para a idia de aplicao: no se trata de tomar o fluxo das experincias como uma narrativa permanente, mas de aplicar a estas os recursos de reformulao da experincia adquiridos atravs das narrativas. Uma segunda linha de problemas atm-se aos casos-limite da dialtica entre ipseidade e mesmidade. A identidade narrativa medeia entre a ipseidade mais prxima mesmidade do carter e a ipseidade pura da manuteno de si; nas palavras do autor, tornando narrvel o carter, a narrativa restitui-lhe o movimento, abolido nas disposies adquiridas, nas identificaes sedimentadas. Tornando narrvel a perspectiva da verdadeira vida, ela lhe d os traos reconhecveis de personagens amados ou respeitados. A identidade narrativa mantm juntas as duas pontas da cadeia: a permanncia no tempo do carter e a da manuteno de si.(O Si-mesmo como um outro, pgina 196) Mas, e quando a personagem torna-se ela mesma crtica, como o caso em diversas narrativas contemporneas? Como auferir uma resposta pergunta quem sou eu? se as

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prprias narrativas parecem apontar para uma perda da identidade? Para Ricoeur, estes casos remetem ipseidade sem o suporte da mesmidade; se aquele que pergunta quem sou eu? responde a si mesmo eu no sou nada, no deixa de ser paradoxalmente aquele que perguntou. Desponta o carter problemtico da identidade narrativa, quando entregue mais pura ipseidade. Mas, se a identidade narrativa pretende lanar as bases para uma tica, como combinar esta verdadeira perda de identidade no plano narrativo com a responsabilidade tica? Como esperar de uma identidade que pura transformao sem permanncia que seja capaz de cumprir suas promessas (tema privilegiado por Ricoeur na proposta da ipseidade)? A resposta ser de cunho tico: pois neste mbito que se articulam mais diretamente o sujeito ou si e o outro. Ricoeur refere-se a seu modelo tico a partir da idia de uma pequena tica. Esta pressupe a narrativa na medida em que o objeto da avaliao tica os comportamentos humanos torna-se compreensvel para o prprio si a partir de autonarraes. A identidade narrativa permite assim o advento da pessoa, do si enquanto ente confrontado com o tempo, enquanto identidade. Pois se trata aqui de discernir o estatuto de uma identidade capaz de concretizar o si enquanto pessoa existente no mundo. A narrao viabiliza a organizao da ao em esferas articuladas tais como as prticas jogos, profisses, artes - cujo sentido se d numa narrativa e nos acontecimentos marcantes na esfera pessoal - que atingem um sentido na larga sntese operada na narrativa. Mas, como a pessoa que se reconhece a partir de uma identidade narrativa relaciona-se ao seu entorno? De acordo com Ricoeur, trs figuras devem ser levadas em considerao nesse momento. Em primeiro lugar, o indivduo e seu desejo de viver bem. Em seguida, o outro com o qual podemos nutrir relaes simtricas de companheirismo, amizade e apoio, bem como relaes

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assimtricas, marcadas pela violncia fsica ou coero. Enfim, as instituies, que ao estabelecerem leis criam freios para os conflitos e tornam possvel, ao menos de forma ideal, os relacionamentos humanos. Estas trs figuras sero analisadas em trs momentos. Inicialmente, o momento tico que, em Ricoeur, marcadamente aristotlico e teleologicamente orientado. Ou seja, inicialmente colocam-se os projetos de felicidade, individuais e coletivos. No entanto, estes projetos so permeados pela tragicidade inerente s aes humanas nos mais diversos contextos: nem sempre existe uma pauta de ao que seja capaz de contemplar a todos os interesses, o que conduz ao risco permanente da violncia. Torna-se assim necessria a passagem ao momento deontolgico da moral, no qual o guia de Ricoeur ser a filosofia prtica kantiana. Se a violncia possvel em toda ao exercida sobre o outro ou sobre ns mesmos, normas de constrangimento ou obrigao de natureza racional se impem como nica forma de limitar os perigos da interao humana. No entanto, a aplicao de tais normas representar um passo frente ao universalismo e formalismo dos preceitos kantianos. O terceiro momento apontado por Ricoeur o do julgamento em situao que, a partir dos conflitos entre vida prtica e normas morais, elege como figura fundamental a phrnesis ou prudncia, a ser incorporada pelos legisladores e juzes. A imputao parece ser a forma especfica de auto-reconhecimento da pessoa no plano tico-moral. No caminho que vai de um desejo do indivduo de viver bem com os outros em instituies justas perspectiva deontolgica que constrange o indivduo, o outro e as instituies, e culmina em uma correo da moral por uma tica toldada pela racionalidade particularizada do julgamento em situao, o si passa a ser responsvel por suas palavras e aes.