Ricoeur - Memória e História

download Ricoeur - Memória e História

of 7

Transcript of Ricoeur - Memória e História

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    1/7

    A verso original desta conferncia foi escrita e proferida em ingls por Paul Ricoeur a 8 de

    Maro de 2003 em Budapeste sob o ttulo Memory, history, oblivion no mbito de uma

    conferncia internacional intitulada Haunting Memories? History in Europe after

    Authoritarianism.

    Paul Ricoeur

    Memria, histria, esquecimento

    O ttulo que dou a esta conferncia relembra, obviamente, o do meu recente livro; contudo, o

    que eu proponho aqui no um simples afloramento desse volume, feito de trs partes, masantes uma espcie de releitura crtica a partir de uma inverso de ponto de vista. Em que

    sentido? O fio condutor do meu livro a escrita da histria de acordo com a definio lexical

    da histria como historiografia. Da a ordem seguida pela temtica: em primeiro lugar, a

    memria enquanto tal; depois, a histria enquanto cincia humana, e o esquecimento como

    dimenso da condio histrica de humanos que somos. A memria, segundo esta construo

    linear, era vista simplesmente como matriz da histria, enquanto a historiografia desenvolvia o

    seu prprio percurso alm da memria, desde o nvel dos testemunhos escritos conservados

    nos arquivos, at ao nvel das operaes de explicao; depois, at elaborao do

    documento histrico como obra literria. O esquecimento era, neste caso, tratado sobretudo

    como uma ameaa para a operao central da memria, a reminiscncia, a anamnesis dos

    gregos, e, logo, como um limite da exigncia do conhecimento histrico de providenciar uma

    narrativa que ligue os acontecimentos passados. Do ponto de vista da escrita da histria, a

    noo de passado histrico parece ser a ltima e irredutvel referncia de todo o trabalho da

    historiografia.

    O que proponho hoje, deslocar o ponto de vista adotado, o da escrita para a leitura, ou, mais

    genericamente, da elaborao literria do trabalho histrico para a sua receo, seja ela

    pblica ou privada, de acordo com as linhas de uma hermenutica da receo. Este

    deslocamento dar-me- oportunidade de extrair certos problemas cruciais que dizem

    manifestamente mais respeito recepo da histria do que sua escrita, para os trazer luz.

    As questes em jogo dizem respeito memria, j no como simples matriz da histria, mas

    como reapropriao do passado histrico por uma memria que a histria instruiu) e muitas

    vezes feriu.

    Como veremos, a questo do dever de memria ou de outros problemas cruciais que apelam a

    uma poltica da memria amnistia vs crimes imprescritveis - podem ser colocados sob o

    ttulo da reapropriao do passado histrico por uma memria instruda pela histria, e ferida

    muitas vezes por ela.

    Proponho-me aqui extrair as consequncias mais interessantes deste deslocamento de pontode vista no que diz respeito relao entre a memria e a histria. Se a tratarmos de um modo

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    2/7

    no linear mas circular, a memria pode aparecer duas vezes ao longo da nossa anlise: antes

    de mais, como matriz da histria, se nos colocarmos no ponto de vista da escrita da histria,

    depois como canal da reapropriao do passado histrico tal como nos narrado pelos relatos

    histricos. Mas esta modificao do ponto de vista no implica que abandonemos a descrio

    fenomenolgica da memria em si, seja qual for a sua ligao com a histria. No poderamos

    falar seriamente da reapropriao do passado histrico efectuado pela memria, se no

    tivssemos, considerado previamente, os enigmas que incomodam o processo da memria

    enquanto tal.

    O primeiro enigma em jogo relaciona-se com a prpria ideia de representao do passado

    como memria. Como se v em Aristteles, no seu pequeno tratado Da memria e da

    reminiscncia, a memria do passado. Que sentido dar a essasimples preposio de?

    Este: uma recordao surge ao esprito sob a forma de uma imagem que, espontaneamente,

    se d como signo de qualquer coisa diferente, realmente ausente, mas que consideramos

    como tendo existido no passado. Encontram-se reunidos trs traos de forma paradoxal: a

    presena, a ausncia, a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordao est

    presente no esprito como alguma coisa que j no est l, mas esteve.

    Uma metfora tem um papel importante ao longo do trabalho de elucidao desse enigma e

    pode ajudar-nos num momento: o da impresso, como o da marca do sinete na cera; a noo

    de rasto faz, tambm ela, parte do mesmo conjunto de metforas teis. Mas permanece o

    mesmo enigma: a impresso ou o rasto, ambos, esto plenamente presentes, no entanto, pela

    sua presena reenviam para a chancela do sinete ou para a inscrio inicial do rasto. Alm

    disso, a noo de ausncia tem mltiplas significaes: pode referir a irrealidade de entidades

    fictcias, de fantasmas, de sonhos, de utopias; ora a ausncia do passado qualquer coisa de

    inteiramente diferente. Compreende o sentido da distncia temporal, do afastamento, do

    afundamento na ausncia, marcado na nossa lngua pelo tempo verbal ou por advrbios como

    antes, depois. Reside a o enigma que a memria deixa como herana histria: o passado

    est, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausncia, mas trata-se de uma

    ausncia que, no estando mais, tida como tendo estado. Esse tendo estado o que a

    memria se esfora por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse tendo estado. A

    tese que o deslocamento da escrita para a receo e a reapropriao no suprime esse

    enigma.

    Confrontada com um tal enigma, a memria no deixa de ter recursos. Desde Plato e

    Aristteles, falamos da memria no s em termos de presena/ausncia, mas tambm em

    termos de lembrana, de rememorao, aquilo que chamavam anamnesis. E quando essa

    busca termina, falamos de reconhecimento. a Bergson que devemos o ter recolocado o

    reconhecimento no centro de toda a problemtica da memria. Em relao ao difcil conceito

    da sobrevivncia das imagens do passado, seja qual for a conjuno feita entre as noes de

    reconhecimento e de sobrevivncia do passado, o reconhecimento, tomado como um dado

    fenomenolgico, permanece, como gosto de dizer, uma espcie de pequeno milagre.

    Nenhuma outra experincia d a este ponto a certeza da presena real da ausncia do

    passado. Ainda que no estando mais l, o passado reconhecido como tendo estado. claro

    que podemos colocar em dvida uma tal pretenso de verdade. Mas no temos nada melhordo que a memria para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    3/7

    declarssemos lembrar-nos dela. Isto simultaneamente o enigma e a sua frgil resoluo,

    que a memria transmite histria, mas que ela transmite tambm reapropriao do

    passado histrico pela memria uma vez que o reconhecimento continua um privilgio da

    memria, do qual a histria est desprovida. Mas dele est igualmente desprovida a

    reapropriao do passado histrico pela memria. A histria pode, no mximo, fornecer

    construes que ela declara serem reconstrues. Mas entre as reconstrues, to precisas e

    prximas dos factos quanto possvel, e o reconhecimento, subsiste um fosso lgico e

    fenomenolgico. Ns podemos a partir de agora antecipar as situaes conflituais que

    resultam da reivindicao de fidelidade da memria, demasiado facilmente assimilada a uma

    rememorao que no acaba perante as estratgias longas e complicadas da histria.

    Gostaria de dizer algumas palavras a propsito da histria como epistemologia. No podemos

    economizar esta etapa na medida em que a receo da histria, como modo de apropriao

    do passado pela memria, constitui o contraponto de toda a operao historiogrfica. na

    possibilidade e pretenso de reduzir a memria a um simples objeto da histria entre outros

    fenmenos culturais que se diferenciam muito claramente as duas abordagens. Essa reduo

    um dos efeitos mais surpreendentes da inverso dos papis gerada pela emergncia e

    desenvolvimento da histria como cincia humana. Podemos atribuir a primeira fratura

    potencial entre a histria e a memria ao desenvolvimento da escrita como meio de inscrever

    a experincia humana sobre um suporte material, distinto do corpo: tijolo, papiro,

    pergaminho, papel, disco compacto, para j no falar das inscries que no transcrevem a voz

    humana: marcas, desenhos, jogo de cores no vesturio, jardins, estelas, monumentos

    Poderamos seguir a linha de fratura com a memria ao longo das etapas da constituio do

    conhecimento histrico. No isso que nos ocupa aqui hoje, e contudo quero abrir uma

    exceo pelo interesse por certos mtodos crticos com os quais a memria, que se reapropriado passado histrico hic et nunc, pode ter de se confrontar.

    Limitarei a trs grandes fenmenos essa incurso no trabalho da historiografia.

    Primeiramente, o lugar e o papel do testemunho na fase da investigao documental. O

    testemunho , num sentido, uma extenso da memria, tomada na sua fase narrativa. Mas s

    h testemunho quando a narrativa de um acontecimento publicitada: o indivduo afirma a

    algum que foi testemunha de alguma coisa que teve lugar; a testemunha diz: creiam ou no,

    em mim, eu estava l. O outro recebe o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. O

    testemunho reforado pela promessa de testemunhar de novo, se necessrio; o que implica

    a fiabilidade da testemunha e d ao testemunho a gravidade de um sermo. A dimensofiduciria de todos os tipos de relaes humanas assim trazida luz: tratados, pactos,

    contratos e outras interaces que repousam na nossa confiana na palavra do outro. Mas o

    testemunho , ao mesmo tempo, o ponto fraco do estabelecer da prova documental. sempre

    possvel opor os testemunhos uns aos outros, quer no que diz respeito aos factos relatados,

    quer no que respeita fiabilidade das testemunhas. Uma parte importante da batalha dos

    historiadores para o estabelecimento da verdade, nasce da confrontao dos testemunhos,

    principalmente dos testemunhos escritos; so levantadas questes: porque foram

    preservados? Por quem? Para benefcio de quem? Essa situao de conflito no pode limitar-

    se ao campo da histria como cincia, reaparece ao nvel dos nossos conflitos entre

    contemporneos, ao nvel das questes fortes, s vezes formuladas coletivamente, em prol deuma tradio memorial contra outras memrias tradicionais.

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    4/7

    Uma segunda srie de caractersticas relativas fase explicativa da operao histrica ter

    consequncias no estdio da leitura e da receo. Isso prende-se com o cruzamento de

    explicaes causais e intencionais. A esse respeito no h nos historiadores imposies

    estabelecidas quanto aos diversos empregos do termo porque, em resposta questo

    porqu?. Certos usos da conexo causal esto muito prximos daqueles que so utilizados

    nas cincias da natureza: o caso na histria econmica, na demografia, na lingustica e

    mesmo no tratamento de configuraes culturais. So, ao mesmo tempo, explicaes em

    termos de razes, e razes de agir de tal ou tal forma. Neste ltimo caso, deveramos poder

    falar mais de compreenso do que de explicao. A essa arquitetura complexa do que se

    chama a explicao histrica, preciso juntar a possibilidade da operao histrica de variar a

    escala de um fenmeno, e de passar de uma escala a outra no que diz respeito s duraes

    temporais: longa durao de Braudel, em suma intervalos de tempos no gnero de micro

    histria que a escola italiana pratica. Este jogo de escala apenas um exemplo do

    emaranhado de interpretaes, sejam elas causais ou finais, durante o processo explicativo.

    Com a interpretao, passa a primeiro plano a implicao pessoal do historiador. Semsobrestimar os preconceitos, as paixes, a parcialidade do comprometimento do historiador,

    suficiente sublinhar o papel que estes elementos tm na escolha do seu tema de predileo,

    do seu campo de pesquisa, a escolha dos arquivos que frequentam, e at a escolha de

    explicaes causais ou finais. A interpretao no uma fase margem do conjunto da

    operao histrica; pelo contrrio, ela trabalha a todos os nveis, desde o estabelecimento do

    testemunho e dos arquivos at explicao em termos de finalidade ou de causalidade, desde

    a esfera da economia da cultura.

    com a histria cultural que a pretenso da histria de anexar a memria esfera da cultura

    atinge o seu auge. Da memria como matriz da histria passmos memria como objeto dahistria. Com o desenvolvimento do que chammos a histria das mentalidades embora este

    termo esteja atualmente mais ou menos desacreditado essa insero da histria entre

    outros fenmenos culturais que podemos chamar representaes, est, em princpio,

    legitimada. Ela pode at revelar-se til no interesse da autocrtica da memria, sobretudo ao

    nvel da memria coletiva. O carter seletivo da memria, auxiliado nesse aspeto pelas

    narrativas, implica que os mesmos acontecimentos no sejam memorizados da mesma forma

    em perodos diferentes. Por exemplo em Frana, depois de 1945, o discurso pblico

    concentrou-se primeiramente sobre o que se apresentava como factos de colaborao e de

    resistncia. S mais tarde, com o processo Barbie, que a especificidade da atroz experincia

    dos judeus, com as narrativas da deportao e exterminao de milhes de judeus, foireconhecido como um crime distinto de todos os outros. Aqui, a fronteira entre a memria

    objeto de histria e a memria efetiva dos indivduos e das comunidades chamemos-lhes

    comunidades histricas esboroa-se. O caso das narrativas realizadas pelos sobreviventes ,

    aqui, exemplar: pertencem histria como fenmenos culturais entre outros.

    Esse dilema leva-me ao assunto que introduzi no incio desta conferncia sob o ttulo da

    memria instruda pela histria. no ponto de interseo entre a histria como trabalho

    literrio e a leitura como meio de receo privilegiado, no sentido de uma hermenutica da

    receo, que a memria instruda; ela instruda por esses dois processos, de escrita e de

    leitura. Passaramos ao lado dessa conjuno de base se no tomssemos em linha de conta altima etapa da operao historiogrfica: a produo de uma literatura que lhe prpria.

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    5/7

    Naturalmente, a tarefa histrica repousa inteiramente sobre a escrita, como indica o papel

    desempenhado pelos testemunhos escritos dos nossos arquivos: ousamos inclusive ligar a

    origem da histria da escrita. Mas a histria gera novas espcies de escrita: livros e artigos,

    conjunto de cartas, de imagens, de fotos e de outras inscries. justamente nesta fase que a

    historiografia, no sentido lato do termo, pode instruir a memria. Essa conjuno da escrita e

    da leitura encontra-se na experincia partilhada da narrativa; at a histria econmica ou

    demogrfica descreve mudanas, ciclos, desenvolvimentos que so narrados; o que implica

    imposies narrativas de maneira a permitir ao historiador fornecer uma legibilidade ao texto

    e uma visibilidade aos eventos que narra, por vezes, em detrimento da complexidade e da

    opacidade do passado histrico. A isto acrescenta-se a parte mais discreta desempenhada

    pelas imposies retricas que possibilitaram a alguns exagerar o risco de aproximar a histria

    da retrica mais do que da cincia. O que no impede que a ideia de objetividade histrica

    merea ser defendida contra formas de relativismo que privariam a historiografia da sua

    ambio primeira: a de oferecer uma representao fivel do passado. Essa afirmao de

    fiabilidade deve ser renovada no s contra o tratamento retrico do conhecimento histrico,mas tambm contra alegadas reivindicaes que nascem e so preservadas por memrias

    comunitrias. Sem essa ambio de verdade do saber histrico, a histria no teria o seu papel

    no confronto com a memria; voltarei a isso mais adiante. Certamente que a histria est

    privada dessa graa do reconhecimento que d memria uma espcie de iluminao; essa

    ausncia cria o seu mal-estar, mas no a condena; podemos apenas esperar das suas

    construes que elas sejam conduzidas como reconstrues segundo uma lgica de

    probabilidade, para utilizar os termos de C. Ginzburg a propsito do seu modelo da verdade

    histrica.

    Na ltima parte da minha conferncia cingir-me-ei a trs questes cruciais do problema damemria instruda pela histria: o mal-entendido potencial entre historiadores e advogados da

    memria, a questo to controversa do dever de memria e, para finalizar, os usos e abusos

    do esquecimento.

    A primeira questo discutiu o possvel choque entre os objectivos que o conhecimento

    histrico persegue e os da memria, sejam eles pessoais ou coletivos. A histria engloba um

    horizonte de acontecimentos passados mais amplo do que a memria, cujo alcance mais

    reduzido e pode parecer devorado pelo vasto campo do tempo histrico. Alm disso, a histria

    pode introduzir comparaes que tendem a relativizar a unicidade e o carter incomparvel de

    memrias dolorosas. Acrescente-se a isso a pluralidade de perspetivas que a histria abresobre os eventos: econmica, social, poltica, cultural. Enfim, esse esforo de compreenso

    pode dar a impresso de que se impedido de julgar, de condenar; contrariamente ao juiz ou

    ao cidado comum, no inclusive permitido ao historiador concluir; a sua preocupao reside

    em compreender, explicar, discutir e debater. Todas estas razes fazem com que possa existir

    um mal-entendido persistente entre o conhecimento histrico e a memria. A memria

    coletiva no est privada de recursos crticos; os trabalhos escritos dos historiadores no so

    os seus nicos recursos de representao do passado; concorrem com outros tipos de escrita:

    textos de fico, adaptaes ao teatro, ensaios, panfletos; mas existem igualmente modos de

    expresso no escrita: fotos, quadros e, sobretudo, filmes (pensemos em Shoah de Claude

    Lanzmann, em A Lista de Schindlerde Spielberg). Alm disso, o gnero retrospetivo prprio histria concorre com os discursos prospetivos, os projetos de reforma, as utopias; em suma,

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    6/7

    concorre com os discursos voltados para o futuro. Os historiadores no devem esquecer que

    so os cidados que fazem realmente a histria os historiadores apenas a dizem; mas eles

    so tambm cidados responsveis pelo que dizem, sobretudo quando o seu trabalho toca nas

    memrias feridas. A memria no foi apenas instruda mas igualmente ferida pela histria.

    Esse comentrio leva-me ao segundo problema, o do dever de fazer memria, como se diz; odever de no esquecer, para antecipar a nossa ltima reflexo. O dever de memria , muitas

    vezes, uma reivindicao, de uma histria criminosa, feita pelas vtimas; a sua derradeira

    justificao esse apelo justia que devemos s vtimas.

    a que a incompreenso entre os advogados da memria e os adeptos do saber histrico

    atinge o seu auge, na medida em que a heterogeneidade das intenes exacerbada: por um

    lado, o campo demasiado breve da memria face ao vasto horizonte do conhecimento

    histrico; por outro, a persistncia das feridas feitas pela histria; por um lado, o uso da

    comparao em histria, por outro, a afirmao de unicidade dos sofrimentos suportados por

    uma comunidade particular ou por todo um povo; para os historiadores, a dimensoincomparvel de um evento s pode ser afirmada depois de se terem avaliado as semelhanas

    e as diferenas. Para arbitrar estas reivindicaes concorrentes, pode ser til olhar para os

    conceitos da psicanlise: num ensaio intitulado Erinnern, Wiedreholen, Durch/arbeiten,

    [rememorao, repetio, perlaborao], Freud introduz a noo de Errinnerungarbeit

    [trabalho da memria], para caracterizar a luta a empreender contra a imposio de repetio

    estabelecida sob a presso das resistncias solidamente estabelecidas. Dela podemos

    conservar e transpor alguma coisa para o campo da memria histrica, sobretudo se

    completamos a noo de trabalho de memria pela de trabalho de luto, tomado de um outro

    ensaio consagrado ao luto e melancolia. Sugiro que unamos a noo de dever de memria,

    que uma noo moral, s de trabalho de memria e trabalho de luto, que so noes

    puramente psicolgicas. A vantagem desta aproximao que ela permite incluir a dimenso

    crtica do conhecimento histrico no seio do trabalho de memria e de luto. Mas a ltima

    palavra deve ser do conceito moral de dever de memria, que se dirige, como se disse,

    noo de justia devida s vtimas.

    O nosso terceiro e ltimo problema diz respeito ao lugar do esquecimento no campo que

    comum memria e histria; deriva da evocao que acaba de ser feita do dever de

    memria: este pode ser igualmente expresso como um dever de no esquecer. O

    esquecimento , certamente, um tema em si mesmo. Diz respeito noo de rasto, de que

    falamos antes, e da qual tnhamos constatado a multiplicidade das suas formas: rastos

    cerebrais, impresses psquicas, documentos escritos dos nossos arquivos. O que a noo de

    rasto e esquecimento tm em comum , antes de tudo o mais, a noo de apagamento, de

    destruio. Mas este processo inevitvel de apagamento no esgota o problema do

    esquecimento. O esquecimento tem igualmente um polo ativo ligado ao processo de

    rememorao, essa busca para reencontrar as memrias perdidas, que, embora tornadas

    indisponveis, no esto realmente desaparecidas. De uma certa forma, essa indisponibilidade

    encontra a sua explicao ao nvel de conflitos inconscientes. A esse respeito, uma das lies

    preciosas da psicanlise que esquecemos menos do que pensamos ou cremos. Podemos

    reencontrar uma experincia traumtica da infncia com a ajuda de procedimentos especficosprprios quilo que se chama talking cure. Freud atribui s resistncias solidamente

  • 7/30/2019 Ricoeur - Memria e Histria

    7/7

    instaladas, a compulso para repetir em vez de se rememorar. Rememorar uma forma de

    trabalho; o trabalho de luto, ao qual Freud consagra um outro ensaio importante, Luto e

    melancolia, no est afastado dele.

    Mas essa aproximao atravs da psicanlise das ambiguidades do esquecimento, no deve

    impedir-nos de explorar outras formas de esquecimento s quais podemos ter de responder.Comeamos por essa nota muito simples segundo a qual as recordaes so, por assim dizer,

    narrativas e que as narrativas so necessariamente seletivas. Se somos incapazes de nos

    lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar; a ideia de narrativa exaustiva

    uma perfeita insensatez. As consequncias no que diz respeito reapropriao do passado

    histrico so enormes. A ideologizao da memria, e todas as espcies de manipulaes da

    mesma ordem, tornaram-se possveis atravs das possibilidades de variao que o trabalho de

    configurao narrativa dos nossos textos oferece. As estratgias do esquecimento enxertam-se

    diretamente no trabalho de configurao: evitamento, evaso, fuga.

    Falmos de reapropriao do passado histrico, preciso falarmos igualmente da privao dosatores do seu poder originrio, o de narrarem-se a eles prprios. difcil destrinar a

    responsabilidade pessoal dos atores individuais, da das presses sociais que trabalham

    subterraneamente a memria colectiva. Essa privao responsvel por esta mistura de abuso

    de memria e de abuso de esquecimento que nos levaram a falar de demasiada memria aqui

    e de demasiado esquecimento ali. da responsabilidade do cidado guardar um justo

    equilbrio entre estes dois excessos.

    No quero dar por encerrada esta srie de notas sobre os ardis do esquecimento, sem

    mencionar a dimenso jurdica e poltica deste problema. A prtica da amnistia vem-me

    cabea. Ela comea com o famoso decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., segundo oqual interdito recordar os crimes cometidos pelos dois partidos, crimes a que chamamos de

    infelicidade; da o juramento pronunciado pelos cidados um a um: no recordarei as

    infelicidades (mnesikakein contra- memria). Muitas democracias modernas fazem amplo

    uso deste gnero de esquecimento por imposio, por honrosas razes que visam a

    manuteno da paz social. Mas subsiste um problema filosfico: no ser a prtica da amnistia

    prejudicial verdade justia? Por onde passa a linha de demarcao entre a amnistia e a

    amnsia? As respostas a estas questes no se encontram ao nvel poltico, mas ao nvel mais

    ntimo de cada cidado, no seu foro interior. Graas ao trabalho de memria, completado pelo

    de luto, cada um de ns tem o dever de no esquecer mas de dizer o passado, de um modo

    pacfico, sem clera, por muito doloroso que seja.

    Gostaria de concluir a minha conferncia com uma frase plena de poesia que devemos a Isak

    Dinesen e que Hannah Arendt colocou no frontispcio do seu captulo consagrado ao conceito

    de ao emA condio humana:

    All sorrows can be borne if you put them into a story or tell a story about it.

    As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportveis se as narrarmos ou fizermos delas

    uma histria.