Rigotto e Ellery - Cap 2. Caminhos na produção do conhecimento cuidados, incertezas e...

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    CAMINHOS NA PRODUO DO CONHECIMENTO: CUIDADOS, INCERTEZAS E

    CRIAO

    Raquel Maria Rigotto

    Ana Ecilda Lima Ellery

    Os trabalhadores da cincia estamos iniciando, h cerca de quatro dcadas, um processo de

    reflexo sobre os (des)caminhos da cincia moderna, sua contribuio na produo da sociedade

    capitalista contempornea e suas responsabilidades diante da sociedade de risco que hoje constitui-se

    em ameaa vida no Planeta. Urge construir outro paradigma de cincia, como discutimos no captulo

    1. Esta conscincia estava muito presente para ns ao iniciar esta pesquisa, e decidimos dialogar com

    estes desafios no s na definio de um referencial terico crtico, mas tambm no processo de

    construo da metodologia e da dinmica da trajetria emprica, em permanente comunicao com o

    territrio em estudo.

    Por isso, contamos aqui, de forma organizada, a histria desta pesquisa pelo menos uma boa

    parte dela: por que decidimos nos debruar sobre este tema e este territrio, como definimos o objeto

    de estudo, como fomos reunindo trabalhadores da cincia com pontos em comum para chegar a

    constituir uma comunidade de pesquisa. Descrevemos o desenho metodolgico que, com dificuldade e

    vagar, fomos traando para responder s nossas perguntas de investigao. De forma cuidadosa,

    narramos os caminhos de nossa trajetria ao longo destes quatro anos de trabalho, no s porque

    sabemos que isto fundamental para que os leitores compreendam o contexto de produo e avaliem o

    conhecimento produzido, mas tambm porque foi uma experincia to rica para ns, que gostaramos

    de compartilh-la. Em formato de boxes, inserimos casos, estrias, acontecimentos que ilustram o

    dilogo progressivo com o campo emprico. No ltimo deles, os prprios pesquisadores registramos o

    significado desta experincia para cada um de ns.

    Intumos que ainda no sistematizamos com a necessria profundidade esta criao coletiva e

    por isto conclumos o texto com o breve item Um pouco do muito que aprendemos, mas suspeitamos

    que pode ser nela que resida o carter inovador que alguns de nossos interlocutores viram nesta

    pesquisa. E vamos ficar muito contentes se pudermos contribuir tambm para a construo de

    processos de trabalho em pesquisa que apontem alternativas de como produzir conhecimento de forma

    compartilhada com sujeitos de diferentes campos do conhecimento, de diferentes instituies e

    formaes, nutrindo o caudal de um paradigma emergente de cincia. Construir, ainda, percursos

    metodolgicos onde os sujeitos que vivenciam os fenmenos estudados no sejam meros

    informantes, mas tambm membros de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa (Dantas, 2009),

    no sentido de serem envolvidos nas diversas fases do processo de produo do conhecimento, em

    especial, nos momentos reflexivos e analticos, que possuem potencial de transformao do vivido.

    Este um desafio e uma esperana.

    Assim, o captulo est estruturado da seguinte forma:

    1. Como nasce a pesquisa

    2. Constituindo a equipe interdisciplinar e suas teias de relaes

    3. O desenho da pesquisa

    4. De como os caminhos metodolgicos foram se delineando no processo da pesquisa

    5. Um pouco do muito que aprendemos

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    1. Como nasce a pesquisa

    A pesquisa Estudo epidemiolgico da populao da regio do Baixo Jaguaribe exposta

    contaminao ambiental em rea de uso de agrotxicos nasceu da inquietao de homens e mulheres

    com as conseqncias da matriz tecnolgica que orienta o agronegcio, envolvendo produo em larga

    escala, monocultura, incorporao de tecnologias mecanizadas de plantio e irrigao, e,

    particularmente, vasta utilizao de agrotxicos.

    O episdio gerador deste projeto de pesquisa foi a divulgao de informaes sobre o nmero

    de internaes por intoxicao por pesticida no estado do Cear nos anos de 2004/2005. Os dados

    divulgados pelo Ncleo de Epidemiologia da Secretaria Estadual de Sade, aps questionamento do

    Conselho Gestor do Centro Estadual de Referncia em Sade do Trabalhador do Cear (CEREST)

    Manoel Jacar, indicavam que o nmero de internaes quase dobrara, passando de 639 casos em 2004

    (8,1/100.000 hab./ano) para 1106 em 2005 (13,7/100.000 hab./ano), configurando-se num quadro

    bastante grave e preocupante. Embora este nmero fosse bastante elevado, havia indcios de que eles

    estivessem ainda subestimados, considerando que foram tomados apenas os dados relativos ao Sistema

    de Informaes Hospitalares, que no registra os casos que no necessitaram de internao para

    tratamento, como pode ser o caso de intoxicaes sub-agudas ou crnicas, ou mesmo os casos agudos

    leves. A maioria dos casos, tanto em 2004 como em 2005, foi causada por acidentes (96,9% e 98,1%,

    respectivamente). Os casos ocorreram predominantemente na regio do Baixo Jaguaribe, na Chapada

    do Apodi. Os municpios de Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte e Jaguaribe apresentaram os

    maiores nmeros de casos: respectivamente, 414, 117 e 99. Foi detectado um alto nmero de casos

    tambm nos municpios de So Joo do Jaguaribe (70), Alto Santo (69), Quixer (63), Pereiro (45),

    Potiretama (37), Jaguaribara (34) e Erer (30). Todos eles esto na rea de implantao de grandes

    projetos de agronegcio, envolvendo empresas produtoras de frutas para exportao.

    Estes casos causaram preocupao aos movimentos sociais e comunidade cientfica. Uma

    manifestao de cerca de 500 mulheres da Via Campesina, objetivando denunciar o uso de

    agrotxicos e seus impactos sobre a sade, as guas e a biodiversidade, bloqueou a Estrada do

    Agronegcio, em Limoeiro do Norte"1, em maro de 2007.

    Os rgos pblicos responsveis, segundo a Lei 7.802/89 sade, ambiente e agricultura, no

    esclareceram uma srie de questes fundamentais, como: quais os tipos de agrotxicos usados nestas

    regies e que tm causado estas intoxicaes; em que quantidade foram utilizados; em quais cultivos;

    se houve receiturio agronmico; quais as condies de transporte e armazenamento; quais as formas

    de aplicao; como foram utilizados e qual a destinao dos resduos e embalagens. Tambm no

    dispnhamos de informaes oficiais sobre o meio ambiente, no tocante a contaminao do solo, das

    guas superficiais e subterrneas, como tambm da contaminao dos alimentos e a extenso da perda

    de biodiversidade. Ou seja, evidncias epidemiolgicas da existncia de danos sade e de riscos, ao

    lado da ausncia de evidncias de efetivas medidas de monitoramento, controle e preveno.

    Numa feliz coincidncia, quando da divulgao dos dados referidos e da discusso dos

    mesmos, foi lanado o Edital: MCT-CNPq/MS-SCTIE-DECIT/CT- Sade N 24/2006, com a linha

    de apoio para Estudo epidemiolgico em populaes expostas contaminao ambiental em reas de

    1 (www.mst.org.br/acesso em 07.mar.2007)

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    uso de agrotxicos na regio nordeste NE. Era o momento oportuno para transformar as

    preocupaes e indignao em ao concreta, em pesquisa engajada e comprometida em responder as

    questes de sade pblica que se apresentavam.

    Uniram-se no desafio da construo do projeto pesquisadores de instituies de ensino:

    Universidade Federal do Cear (UFC), Universidade Estadual do Cear (UECE); tcnicos do Instituto

    Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), da Secretaria de Sade do Estado, da Escola de

    Sade Pblica, da Secretaria Municipal de Sade de Fortaleza; e integrantes do Movimento dos

    Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Comisso Pastoral da Terra e do Movimento dos

    Atingidos por Barragens (MAB). Na integrao entre academia, servios de sade e movimentos

    sociais, o projeto de pesquisa foi gerado, pactuando compromissos de dilogo e cooperao. Foi

    definido o foco no Baixo Jaguaribe, especialmente nos municpios de Limoeiro do Norte, Quixer e

    Russas (ver mapas no captulo 3).

    2. Constituindo a equipe interdisciplinar e suas teias de relaes

    O projeto de pesquisa foi acolhido no Ncleo Tramas Trabalho, Meio Ambiente e Sade,

    vinculado ao Departamento de Sade Comunitria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal

    do Cear. O Ncleo estrutura as aes de pesquisa, ensino e extenso ligadas linha Produo,

    Ambiente, Sade e Cultura no Nordeste Brasileiro na Ps-Graduao em Sade Coletiva da UFC.

    Gestado por diferentes mos e coraes, o projeto assumiu o objetivo de desenvolver um

    estudo epidemiolgico da populao da regio do Baixo Jaguaribe exposta contaminao ambiental

    em rea de uso de agrotxicos, compreendendo as diversas dimenses que compem este complexo

    objeto de estudo. Tais objetivos exigiram a composio de uma equipe multiprofissional, que

    possibilitasse diferentes aportes sobre o problema, trabalhando de forma integrada e cuidando de

    anlises que nos aproximassem da compreenso da totalidade.

    Trata-se, portanto, de pesquisa interdisciplinar, envolvendo diversos olhares sobre a realidade,

    numa perspectiva crtica e transformadora. Neste contexto, uma investigao que deve ser

    radicalmente diferenciada daquela preconizada pelo positivismo, que defende o absoluto do fenmeno,

    abandonando a considerao das suas causas. Para alm do positivismo, esta pesquisa inseriu-se no

    campo do pensamento complexo, buscando as interrelaes entre os diversos fenmenos da realidade,

    rompendo com os limites da simplificao e do reducionismo, como apontado no captulo 1.

    Na equipe da pesquisa contamos com dezesseis formaes profissionais, cerca de metade

    delas extrapolando o que se conceitua comumente rea da sade: agrnomos, gegrafos,

    mdicos, enfermeiras, fonoaudiloga, assistente social, psicloga, fisioterapeuta, pedagogo,

    bilogo, farmacuticas, gelogo e economista, educador fsico, alm de estudantes de medicina,

    enfermagem, direito e cincias ambientais, em iniciao cientfica. Participaram professores da

    Universidade Federal do Cear, procedentes dos Departamentos de Geografia e de Sade

    Comunitria. Boa parte dos membros da equipe so alunos do Programa de Ps-Graduao em

    Sade Coletiva da Universidade Federal do Cear, na linha de pesquisa Produo, Ambiente,

    Sade e Cultura no Nordeste Brasileiro, ou ex-alunos dele, seguindo hoje no Ncleo Tramas.

    Participaram ainda da pesquisa uma ento doutoranda do Programa de Ps-Graduao em

    Sade Pblica USP, inserida na Escola de Sade Pblica do Cear, alm de profissional do INCRA.

    De fora do estado, houve uma parceria com o Grupo de Estudos de Sade do Trabalhador Rural/

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    GESTRU, da Universidade Federal de Minas Gerais. De Braslia, participaram um pesquisador da

    Embrapa e um professor da Universidade de Braslia. E de Pernambuco, pesquisadora da

    Fiocruz. De movimentos sociais, tivemos conosco uma representante da Comisso Pastoral da

    Terra (CPT) e uma liderana e uma mdica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    (MST).

    Mas qual o cimento que une este grupo? Talvez mais adequado seja falar de uma resina

    como as vegetais: ela vai sendo produzida cotidianamente, se modifica e se adqua de forma dinmica.

    No princpio, alguns elementos j estavam colocados, como o reconhecimento da necessidade (e o

    desejo) de dilogo com outras reas do conhecimento e com outros saberes. Vrios de ns, pela

    experincia anterior de pesquisa ou pelo contato com os campos da Sade do Trabalhador e da Sade

    Ambiental, j havamos apreendido a relevncia do desafio a contido. E por isso nos identificamos e

    nos escolhemos enquanto espao coletivo de produo de conhecimento.

    Por outro lado, nos une a cosmoviso da indignao com a injustia, a desigualdade e a

    destruio da natureza convico de que este estado do mundo foi produzido historicamente pela

    sociedade humana, como resultado de uma correlao de foras que preciso e possvel alterar, em

    favor dos mais vulnerveis, do permanente processo de emancipao das pessoas, grupos e classes

    sociais, em profunda conscincia da interdependncia entre ns e a natureza. Estes elementos de uma

    cosmoviso demandam a construo de uma trajetria coerente no mundo, seja na forma como damos

    vida nossa interveno no espao acadmico bem alm do discurso da neutralidade; seja na relao

    universidade-movimentos sociais num dilogo que no cabe na noo clssica de extenso; seja

    nas escolhas que norteiam nossas vidas de cidados, familiares ou pessoais. Em suma, situando-nos

    enquanto um grupo no caudal da contra-hegemonia, tivemos colocado no centro do trabalho de

    pesquisa o compromisso de contribuir no processo de emancipao e bem viver destes grupos sociais2.

    2 No momento em que escrevia este pargrafo (21.04.2010) recebemos a notcia do assassinato do Jos Maria Filho, liderana da Comunidade do Tom, atuante nas questes da contaminao ambiental por agrotxicos. Documentando a resina que nos une enquanto equipe, um membro do grupo enviou-nos em seguida este poema: Projetos de Pesquisa... Pesquisa para quem? Pesquisa para vida. Pesquisa de quem vem? Pesquisa de quem fica. Que vida gera? Que gera vida? Que morte era? Que morte fica? Mensagem de quem luta... Que a luta a mensagem! Que a dor a passagem. Legado Roubado Assassinado Calado Pesquisado... ... a cova que te cabe nesse latifndio envenenado! ... luta que nos deixa, com seu sangue derramado! o "Deus" desenvolvimento... Universal ?! Inquestionvel ?! Onipresente ?! o Capital Inabalvel Onisciente o Animal Indisfarvel

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    Formamos, assim, uma Comunidade de Pesquisa, como docemente nos nomeou o Prof. Alcides

    Miranda, aps participar de uma Oficina de Planejamento com o grupo.

    Ao longo da pesquisa, fizemos vrios exerccios de compreenso e anlise do objeto de estudo,

    em contexto de dilogo inter/transdisciplinar, rumo a uma ecologia de saberes. A necessidade de criar

    bases e vnculos para a pesquisa junto aos sujeitos, comunidades e autoridades da regio foi ficando

    cada vez mais clara para ns: o problema em estudo vivido por eles; eles detm conhecimentos

    especiais e insubstituveis; a eles caber apropriar-se do processo e dos resultados como esperamos

    ferramentas de transformao e emancipao. Para tanto, tambm aportaram seu saber e seu

    compromisso atores sociais da regio, como professores da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano

    Matos FAFIDAM, da Universidade Estadual do Cear UECE, do CENTEC (hoje IFCE), tcnicos

    da Diocese e da Critas de Limoeiro do Norte, sindicatos de trabalhadores, ONGs locais como o

    Instituto de Educao e Poltica em Defesa da Cidadania/IEPDC, profissionais do SUS, com os quais

    realizamos reunies, oficinas, seminrios, consultas, avaliaes.

    Tambm estava clara a importncia de aproximao com o poder pblico nos nveis federal,

    estadual e local, tendo em vista o papel do Estado na garantia de direitos aos cidados e, ao mesmo

    tempo, a distncia a vencer entre as polticas pblicas e as necessidades das populaes. Assim, fomos

    ampliando teias de dilogos e apoios com a Promotoria de Meio Ambiente do Ministrio Pblico

    Estadual e do Ministrio Pblico do Trabalho no Cear e em Limoeiro do Norte, com as Clulas

    Regionais de Sade que abrangiam os trs municpios estudados, e mais seus Secretrios Municipais

    de Sade e as Coordenaes da Ateno Bsica e da Vigilncia, com o Centro Estadual de Referncia

    em Sade do Trabalhador do Cear CEREST/CE, e com o Departamento de Sade Ambiental e

    Sade do Trabalhador DSAST do Ministrio da Sade, alm de tentativas menos exitosas de

    envolver a Secretaria Estadual de Sade3.

    Esta equipe iniciou a construo de nossa trajetria metodolgica com o estudo bibliogrfico

    sobre vrios aspectos do problema em estudo e com a realizao de uma oficina em que pesquisadores

    que j haviam realizado estudos na regio, profissionais de sade envolvidos com polticas pblicas e

    movimentos sociais do campo trouxeram seus olhares. Em seguida organizamos dois cursos um de

    Epidemiologia Ambiental, ministrado pelo Prof. Volney Cmara/UFRJ, e outro sobre o Paradigma da

    complexidade e os desafios da metodologia de pesquisa interdisciplinar, conduzido pela Profa. Lia

    Giraldo Augusto/Fiocruz-PE; que nos permitiram apropriar e debater conceitos, ao tempo em que

    construamos uma linguagem comum entre ns. Sentimo-nos em condio, ento, para realizar a

    primeira visita exploratria em campo, e no Box 1 apresentamos fragmentos do dirio de campo sobre

    Complacente Projetos tm lado! Pesquisa tem lado! Estou do lado do Severino, Do Z Maria-Severino Do Z-Severino Dos Zs: somos todos Zs!! Presente, Presente, Presente!!! Vicente Almeida (Z)

    3 Na trajetria em campo, pelos conflitos envolvidos em abordar questes que tangenciam interesses de grandes grupos econmicos, houve momentos que a segurana da equipe esteve ameaada e agentes da segurana pblica nos foram disponibilizados

    para garantir a integridade da equipe.

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    ela.

    Box 1 Complexidade, Perplexidade e Criatividade

    Estvamos perplexos com a complexidade de nosso campo emprico. A primeira visita

    exploratria da nossa equipe ao territrio tinha sido riqussima gente de muito diferentes formaes

    lanando seus olhares sobre a Chapada, o rio Jaguaribe, o canal do permetro irrigado, a extenso do

    bananal, a placa da associao dos ex-irrigantes sem terra (?!), o olhar perdido do mdico do posto

    de sade diante de nossas perguntas, o eco dos textos do Idelbrando contando a histria dos pomares,

    dos cataventos, da cera da carnaba; o medo dos trabalhadores de falarem sobre o seu trabalho...

    No nibus, no retorno da primeira ida a campo, uma verdadeira assemblia inter-trans-

    disciplinar, trocando observaes, pontes, textos, referncias, afinando conceitos, tecendo perguntas,

    ensaiando hipteses... Cabeas e almas em ebulio, o corpo suado e a bota cor da terra.

    Questes afloravam e multiplicavam-se: Como desenhar um estudo epidemiolgico ali?! Como

    determinar um n a ser amostrado e investigado? N de que? Tem muita gente exposta a

    agrotxicos! Mas, como misturar o trabalhador do agronegcio, que acabou de perder sua terra e se

    proletariza em 1300 hectares, com um outro que ainda resiste e tenta produzir em seus 4 hectares? Ou

    que, acossado pelas dvidas, faz uma parceria com a grande empresa? E, falando delas, h

    diferenas entre as nacionais e as que vm de fora? O pacote tecnolgico do parceiro o mesmo da

    grande empresa mas ser que o risco tambm o mesmo? Como se distribuem as toneladas de

    agrotxicos que informaram no EIA/RIMA?

    As descobertas e o cruzamento de informaes tecem uma rede de relaes que se implicam

    mutuamente, revelando a complexidade do real: no assentamento de reforma agrria, comearam

    dizendo que no usavam veneno, mas depois foram abrindo o armrio caseiro (onde guardam o

    frasco de 1 litro que, com muito custo, juntaram dinheiro para comprar e usar o ano todo); a

    embalagem rebolada no mato; o curso de agricultura orgnica que o jovem Reginaldo fez; os dois

    casos de malformao congnita existentes na comunidade; o gostoso poder que gozam agora de no

    ter que expurgar contra o vento, porque no tem mais patro mandando ganhar tempo... J em Lagoa

    dos Cavalos, comunidade agroecolgica, nem pensar em veneno! As abelhas so como filhas,

    cuidadas e poupadas. Do seu mel, das cabras, da agrofloresta vivem h anos. A natureza no deixou

    de ser sagrada l.

    No Tom, as monoculturas (banana, melo, abacaxi) encostando nas cercas dos quintais, as

    roupas secando no varal ficam fedendo a veneno quando passa o avio pulverizando: tem que lavar

    de novo, me explicou o Z Maria. Mas a gua que vem pelo canal, descoberto, no tem como lavar.

    Ser que o veneno cai nela? Ser que d para dosar ou ele degrada rpido, com a luz do sol? De

    qualquer forma, com esta gua mesmo que a me vai ter que fazer a mamadeira do nenm. A

    promotora quer provas da contaminao para acionar as empresas. S com provas, sempre maiores

    do que as que as comunidades conseguem produzir, reclamaram as lideranas.

    Um trabalhador que passou 15 anos em So Paulo chegou esperto e disse que a empresa usa

    veneno proibido no Brasil. Mas, o patro tem suas artimanhas: coloca tudo num caminho ba

    amarelo quando vem a fiscalizao, e esconde no meio do mato. Mas medo mesmo as empresas tm

    do Eurepegap o passaporte delas para entrar no mercado europeu com suas frutas. Quando chega

    a auditoria deles, haja se virar!

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    E prosseguem as falas de cada pesquisador, no retorno da frtil visita exploratria: o SUS

    transformou os casos de intoxicao que apareceram no SIH em erros de digitao, mas no assinou;

    a responsvel pela vigilncia muito simptica, mas tem sempre muitas tarefas. No sindicato, os

    trabalhadores confiam pouco. Na unidade de sade, se o paciente da grande empresa, o mdico no

    quer dar atestado.

    Foi diante de tudo isto (e muito mais) que a gente comeou a desconfiar que a exposio ao

    perigo agrotxico acontece num contexto delineado por n (agora sim!) dimenses, fatores,

    aspectos, que precisam ser identificados, compreendidos e articulados adequadamente, para que se

    possa estimar o risco, aproximar do real e propor caminhos de sustentabilidade. Foi assim que a

    gente comeou a falar em contexto de risco, e ver como equacionar isto do ponto de vista

    metodolgico.

    3. O desenho da pesquisa

    Se o problema das populaes expostas em reas de contaminao ambiental por agrotxicos

    objeto de nosso estudo foi situado e compreendido preliminarmente neste contexto de inter-relaes

    complexas, tnhamos que construir um desenho do estudo que permitisse abordar estas diferentes

    dimenses em suas especificidades e, ao mesmo tempo, empreender o esforo de integr-las no plano

    analtico e sinttico. Nos agravos sade, o corpo dos trabalhadores e moradores da regio registra e

    expressa de alguma forma o contexto histrico-social de risco em que esto vivendo. Ler e interpretar

    estes registros dar incio a um processo de desocultamento das caractersticas do modo de produo e

    consumo, evidenciando a desigualdade na distribuio dos benefcios e dos danos do modelo de

    desenvolvimento em curso, como nos alerta o conceito de Injustia Ambiental.

    Para ser coerente com esta compreenso, ela deveria estar refletida no desenho

    metodolgico da pesquisa. Assim, ela foi organizada em quatro estudos, como pode ser visto na

    Figura 1: a) Caracterizao do contexto scio-histrico; b) Caracterizao ambiental e avaliao da

    contaminao; c) Caracterizao da exposio humana e dos agravos sade relacionveis aos

    agrotxicos; d) Resistncia e alternativas ao desenvolvimento, e construo da poltica local de sade

    do trabalhador e sade ambiental.

    Figura 1 - Viso geral dos estudos que compem a Pesquisa

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    Para nos proteger do risco da fragmentao, desde o incio foi assumida a necessidade de

    permanente dilogo e alimentao recproca entre os estudos, seja na demanda da produo de

    informaes e conhecimentos que cada um fazia ao outro, seja no debate integrador deles no

    conjunto do processo de aproximao do territrio.

    Aqui se inserem tambm os outros saberes, para alm do cientfico, abrigado nas

    comunidades tradicionais, no conhecimento campons, na experincia de militantes sociais e dos

    trabalhadores pblicos. Com eles dialogamos permanentemente, atravs de reunies, seminrios,

    oficinas, entrevistas, como est detalhado no item 4 deste captulo. Alm de agregar qualidade

    produo de conhecimentos, tambm uma forma de cumprir a funo social da pesquisa e alimentar

    seu compromisso com a resoluo de problemas que ameaam a vida e a sade, na medida em que se

    cuida de comunicar com o territrio local em todo o tempo do trabalho cientfico, e no apenas ao

    final, divulgando resultados.

    A pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica em Pesquisa da Escola de Sade Pblica, atravs

    do Protocolo CEP/ESP-CEN 53/200, tendo sido cumpridas todas as exigncias da Resoluo 196/96

    do Conselho Nacional de Sade, conforme detalhado na introduo da Parte II.

    Apresentamos, a seguir, aspectos gerais da metodologia de cada um destes estudos, que

    foram alm da desnecessria polarizao entre o quantitativo e o qualitativo, e envolveram desde as

    tcnicas epidemiolgicas at a abordagem etnogrfica, passando pela avaliao da contaminao

    ambiental e a pesquisa-ao.

    Estudo 1: Caracterizao do contexto da exposio humana aos agrotxicos

    Em primeiro lugar, procuramos conhecer os aspectos histricos, econmicos, demogrficos,

    poltico-institucionais e scio-ambientais dos territrios onde est acontecendo a exposio humana a

    agrotxicos. Isto foi feito por meio de estudo bibliogrfico e contato direto com grupos de

    pesquisadores da rea de Geografia, Sociologia, Agronomia e Recursos Hdricos, com estudos j

    realizados na regio, nela entendida tambm a poro potiguar da Chapada do Apodi, onde processos

    produtivos semelhantes se desenvolviam h mais tempo. Atravs das redes sociais, fomos tambm

    identificando o campo social e seus atores instituies de ensino, religiosas, governamentais,

    Estudo 1:Caracterizao do contexto sciohistrico da

    exposio humana aos agrotxicos

    Estudo 2: Caracterizao ambiental e avaliao da

    contaminao da rea por agrotxicos

    Estudo 3: Caracterizao da exposio humana e dos

    agravos sade relacionveis aos

    agrotxicos

    Estudo 4: Alternativas ao Desenvolvimento; Sade do

    Trabalhador e Sade Ambiental no SUS

    Comunicao permanente com

    os sujeitos do territrio local

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    entidades e movimentos sociais, polticos. Foi dada nfase caracterizao dos modelos de produo

    agrcola estabelecidos, caracterizados no projeto inicial como agronegcio, agricultura familiar e

    assentamentos de reforma agrria, no intuito de elaborar categorias analticas que possibilitassem a

    caracterizao dos principais segmentos expostos e seus contextos de risco, com vistas a subsidiar o

    desenho do estudo epidemiolgico.

    Seguindo nos estudos em campo, nos aproximamos das Comunidades da Chapada do Apodi -

    Cabea Preta, Baixa Grande, KM 60, KM 68, Santa Maria, Santa F, Tom em Limoeiro do Norte e

    Quixer para, atravs de observao direta, entrevistas semi-estruturadas e registros fotogrficos,

    construir o Diagnstico Socioeconmico das Comunidades (Sampaio et al, 2008). Abordamos tambm

    a Federao das Associaes de Produtores do Permetro Irrigado Jaguaribe-Apodi FAPIJA,

    importante espao e ator nos processos em curso.

    Fomos ento verificando que o contexto de exposio aos agrotxicos bastante diferenciado

    nos diferentes segmentos sociais, incidindo diversamente no s sobre o processo sade-doena, mas

    tambm sobre as estratgias de interveno. Foram assim caracterizados trs segmentos: Empresas de

    fruticultura voltadas para a exportao e seu entorno; Pequenos agricultores, voltados para o mercado

    nacional/regional; Comunidades produzindo para subsistncia e mercado regional/local (Figura 2).

    Figura 2: Principais modelos de produo e segmentos sociais identificados no Baixo Jaguaribe

    No primeiro segmento est a fruticultura irrigada para exportao (abacaxi, banana e melo,

    principalmente), com modo de gesto integrada s redes mundiais de capital, com uso intensivo de

    agrotxico - para o qual dispe de mais recursos financeiros e de informao. Por seu porte e escala,

    este segmento cria novas condies territoriais que afetam tambm aos demais segmentos. Tambm

    neste segmento esto pequenos e mdios agricultores que se relacionam com o agronegcio atravs de

    contratos de integralizao comercial os chamados parceiros, especialmente na produo da

    banana, que desenvolvem o mesmo processo tcnico de produo.

    Empresas de fruticultura voltadas

    para a exportao e seu entorno

    Abacaxi

    Melo

    Banana

    Pequenos agricultores voltados para o mercado

    nacional/regional

    Agricultores no Permetro

    irrigado/FAPIJA

    Agricultores de sequeiro

    Comunidades produzindo para

    subsistncia e mercado regional/local

    Assentamento de Reforma Agrria

    Comunidades tradicionais em

    transio agroecolgica

  • 10

    O segmento dos pequenos agricultores bastante heterogneo, compreendendo aqueles que

    tm terras dentro do Permetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, sendo assim associados Federao de

    Associaes (FAPIJA). Compreende tambm aqueles que tm terras fora deste Permetro,

    desenvolvendo agricultura de sequeiro, bem como seus empregados, muitas vezes diaristas. Sua

    produo est mais voltada para gros, como milho, feijo e soja. Embora operem em escala territorial

    e produtiva menor, e contem com recursos mais limitados para despesas com agroqumicos, a eles

    freqentemente atribuda culpa pelos casos de intoxicao e contaminao, desinformao e

    resistncia ao uso de Equipamentos de Proteo Individual (EPIs).

    O terceiro segmento est focado, principalmente, na produo de subsistncia e se articula com

    o mercado local, baseado em tcnicas de manejo que respeitam a biodiversidade e cultura locais. So

    camponeses vivendo em minifndios assentamento de reforma agrria e comunidades em transio

    agroecolgica, que resistiram aos programas governamentais de modernizao da agricultura

    regional. o grupo mais vulnervel aos efeitos da degradao scio-ambiental promovida pela onda

    verde irrigada.

    Estudo 2: Caracterizao ambiental e avaliao da contaminao da rea por agrotxicos

    A proposta metodolgica desenhada inicialmente para a caracterizao e avaliao da

    contaminao ambiental da rea por agrotxicos, apoiou-se no Modelo DRASTIC, que permite o

    mapeamento e determinao da vulnerabilidade das guas subterrneas, baseado em sete parmetros

    (D - profundidade da zona no-saturada; R - recarga do aqfero; A - material do aqfero; S - tipo de

    solo; T topografia; I - material da zona no-saturada; C - condutividade hidrulica) (Aller, 1987).

    Este mtodo inclui ndices de vulnerabilidade formados por parmetros hidrogeolgicos, morfolgicos

    e outras formas de parametrizao das caractersticas dos aqferos de modo bem definido. Para sua

    eficaz aplicao deve-se ter como pressupostos que o contaminante introduzido superfcie do

    terreno, e no diretamente no aqfero, deslocando-se com a mesma mobilidade da gua,

    verticalmente, at alcanar o aqfero, permitindo mapear satisfatoriamente as reas com potencial

    susceptibilidade contaminao.

    As inseres no campo emprico e as aproximaes com a complexidade do objeto que envolve

    a utilizao de agrotxicos apontou importantes limitaes para a aplicao do mtodo DRASTIC, seja

    no que diz respeito obteno de dados hidrogeolgicos e morfolgicos em quantidade e qualidade,

    seja pelo fato de no possibilitar a obteno de informaes sobre a vulnerabilidade das guas

    superficiais, especialmente aquelas do canal de irrigao do permetro irrigado, consideradas de grande

    importncia por estarem expostas diretamente pulverizao area, e serem a principal fonte de

    abastecimento humano das comunidades na regio do estudo.

    Por outro lado, o cenrio do estudo revelava mltiplas dimenses que conformam o contexto de

    risco em populaes expostas a agrotxicos, que se articulavam e definiam novas formas,

    apresentando-se como se fosse uma mandala. Cada incurso no campo mostrava a necessidade de

    uma metodologia que agregasse elementos tcnico-cientficos transformao da realidade dos

    agentes sociais envolvidos.

    Foi ficando claro que a caracterizao socioambiental da rea do estudo carecia de elementos

    essenciais sua determinao, e por seu carter complexo precisava ser tecida junto com os sujeitos,

  • 11

    nas viagens exploratrias, em entrevistas com os trabalhadores, moradores das comunidades e

    lideranas locais, considerando as subjetividades e percepes, impossveis de serem expressas

    somente em nmeros, em equaes matemticas. Dessa forma, o estudo se distanciou do mtodo

    DRASTIC e incorporou a abordagem ampliada da vulnerabilidade das populaes expostas aos

    agrotxicos.

    Para montar o mosaico dessa complexa trama de inter-relaes envolvidas na caracterizao do

    risco socioambiental, o mtodo foi sendo tecido pela soma de elementos, que so mais detalhadamente

    apresentados especialmente no captulo 5:

    Caracterizao scio-ambiental da rea e elaborao de mapas;

    Evoluo da rea plantada, cultivos e estimativa de uso de agrotxicos;

    Identificao do fluxo dos agrotxicos, da aquisio ao descarte, e definio das rotas de

    contaminao;

    Estudo in loco dos processos de produo e das prticas de gesto em relao aos agrotxicos;

    Anlise dos Estudos de Impacto Ambiental das empresas e projetos de irrigao, bem como de

    outros dados secundrios disponveis sobre os compartimentos ambientais;

    Mapeamento das vulnerabilidades socioambientais junto s comunidades;

    Acompanhamento da pulverizao area;

    Pesquisa de resduos de agrotxicos em amostras de gua superficiais e subterrneas,

    sedimento e solo;

    Estudo da percepo de risco de trabalhadores e moradores;

    Avaliao dos mecanismos institucionais de monitoramento, controle e preveno.

    Cabe ressaltar o estreito e permanente dilogo e articulaes mantidas com o campo emprico,

    pesquisadores e movimentos sociais, como forma de correo de rumos, enfrentamento e superao

    dos desafios do estudo. Os pesquisadores, aqui, eternos aprendizes, apontam nova maneira de definir o

    caminho metodolgico em um campo do conhecimento entranhado de incertezas cientficas, de

    desconhecimento das mltiplas formas de interao dos agrotxicos e seus metablitos, da fragilidade

    do Estado em vigiar, promover e proteger a sade dos cidados. Aprendemos que o caminho se faz

    caminhando (Freire et Horton, 2009).

    Estudo 3: Caracterizao da exposio humana e dos agravos sade relacionveis aos

    agrotxicos

    O estudo epidemiolgico propriamente dito adotou estratgias metodolgicas diversificadas:

    entrevista estruturada, exame clnico, anlises laboratoriais - detalhadamente descritas na segunda

    parte do captulo 6; grupos focais; estudo do processo de trabalho em cada modelo de produo

    estudado, atravs de observao direta e informantes-chave; estudo da incidncia de cncer entre

    trabalhadores rurais no Estado do Cear; busca ativa de casos de intoxicao por agrotxicos em

    servio de emergncia; investigao de causa de morte de trabalhador do agronegcio.

    Foi realizada entrevista estruturada com um total de 545 sujeitos, pertencentes aos diferentes

    segmentos constantes da Figura 2. O roteiro de entrevista constou de 87 questes organizadas em nove

    blocos temticos, a saber:

    Caractersticas socioeconmicas

  • 12

    Hbitos de vida

    Histria familiar

    Caracterizao do trabalho

    Caracterizao das relaes de trabalho

    Caracterizao da exposio do trabalhador

    Orientaes para o trabalhador em rea de uso de agrotxicos e medidas de controle do risco

    adotados pela empresa

    Caracterizao clinico toxicolgica

    Histria clnica e exame fsico do trabalhador

    O instrumento bsico foi adaptado s especificidades de cada segmento e grupo estudado,

    mantendo sua estrutura geral. A entrevista foi realizada por diferentes profissionais de sade, sendo

    que os dois ltimos itens foram conduzidos por mdicos. Foi seguida da coleta de material biolgico

    para realizao de anlises laboratoriais, de acordo com o protocolo adotado pelo Centro de Referncia

    em Sade do Trabalhador da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG:

    Hemograma completo

    Glicemia

    Colesterol total e fraes

    Triglicrides

    Protenas: totais, globulinas, albumina

    Funo Renal: uria, creatinina

    Bilirrubinas

    Funo heptica: albumina, fosfatase alcalina, transaminases oxalactica e pirvica, Gama

    globulina

    Sumrio de Urina

    Exame parasitolgico de fezes

    Tivemos clara a necessidade de contatar os trabalhadores fora de seu local de trabalho, de

    forma que pudessem escolher livremente participar e falar na pesquisa. E de faz-lo de forma a no os

    expor a situaes de maior vulnerabilidade, tendo em vista a possibilidade e o medo de perder o

    emprego. Este medo, fortemente presente entre os trabalhadores do agronegcio, somou-se a outras

    dificuldades, como a falta de cooperao das empresas para nos fornecer uma listagem de seus

    empregados, e a alegada inexistncia dela no sindicato de trabalhadores, para nos fazer assumir que

    se tratava de uma populao de difcil acesso. Assim como tem acontecido em outros estudos

    epidemiolgicos, nos reconhecemos impossibilitados de trabalhar com uma amostragem aleatria.

    Partimos ento para a estratgia das redes sociais, acessadas atravs de agentes comunitrias de

    sade, de lideranas sindicais e comunitrias e de movimentos sociais. A abordagem dos trabalhadores

    acontecia nos finais de semana, em prdios pblicos de seus bairros/comunidades escolas, igrejas,

    unidades de sade, a partir da apresentao dos objetivos da pesquisa, da leitura conjunta do Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), do esclarecimento das dvidas e da adeso ou no dos

    convidados.

    Desde o teste do instrumento de entrevista estruturada, ficou clara a vontade dos trabalhadores

    de falar mais sobre seu trabalho e foi isto que nos levou a introduzir na metodologia tambm a

  • 13

    realizao de grupos focais por segmento de trabalhadores, dos quais participavam entre 8 e 15

    pessoas, em sesses orientadas por questes sobre como viam as transformaes em curso no

    territrio, especialmente o trabalho, o ambiente e a sade. Aps os mesmos procedimentos ticos

    descritos acima, os grupos focais eram gravados para posterior transcrio.

    Tambm realizamos o estudo do processo de trabalho nas empresas, unidades de pequenos

    produtores, assentamento e comunidade em transio agroecolgica. O estudo foi orientado por roteiro

    adaptado a partir do proposto por Rigotto (2004), e tambm contemplava as especificidades de cada

    segmento, contendo basicamente os seguintes blocos de informao:

    Identificao da empresa/unidade

    Aspectos histricos

    Processo de produo

    Organizao do trabalho

    Instalaes da empresa/unidade

    Descrio das condies ambientais de trabalho

    Agrotxicos e prticas de manejo

    Relao com o meio ambiente

    Ateno sade

    Das quatro grandes empresas includas na amostra, trs responderam afirmativamente

    solicitao formal de acesso aos locais de trabalho para coleta de informaes e observao direta,

    aps nveis diferenciados de pedidos de esclarecimentos e postergao. Em um dos casos, houve a

    intermediao de uma auditora do Ministrio do Trabalho e Emprego. Via de regra, esta atividade

    durava entre 4 e 7 horas, e foi autorizado o registro imagtico na maioria das instalaes e operaes.

    Em uma das empresas, foram colocados sucessivos obstculos e exigncias, no sendo possvel a

    realizao da atividade. Aps a atividade, a equipe elaborava coletivamente o relatrio correspondente,

    organizando as informaes e imagens coletadas.

    Realizamos ainda estudo com o objetivo de identificar a incidncia de cncer entre

    trabalhadores rurais no Estado do Cear, a partir dos registros de internaes hospitalares no Instituto

    do Cncer do Cear (ICC) e das Autorizaes de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC)

    (Ellery et al, 2008).

    No intuito de avaliar um possvel subdiagnstico de quadros de intoxicao por agrotxicos,

    fizemos tambm busca ativa de casos, acompanhando o atendimento no setor de triagem do Hospital

    pblico de Limoeiro do Norte, no ms de julho de 2009, a partir de roteiro especfico.

    Ainda no mbito deste estudo, foi investigada a morte de um trabalhador do almoxarifado

    qumico da monocultura do abacaxi, cujo bito teve como causa hepatopatia grave de provvel

    etiologia induzida por substncias txicas. O laudo foi entregue viva e ao Ministrio Pblico do

    Trabalho, sob requisio (Rigotto et al, 2010a).

    Os resultados deste estudo esto apresentados nos captulos da Parte II do livro. Ressaltamos

    que o banco de dados organizado bastante extenso, e que muitas anlises ainda sero possveis.

  • 14

    Estudo 4: Alternativas ao desenvolvimento e construo da poltica local de Sade do

    Trabalhador e Sade Ambiental

    Construo de alternativas ao desenvolvimento em comunidades em transio agroecolgica:

    Compreender como comunidades agrcolas em transio agroecolgica Lagoa dos Cavalos,

    Junco, Barbato e Crrego Salgado, municpio de Russas, Cear, tm construdo alternativas ao

    desenvolvimento em defesa de seu modo de vida e como estratgia de resistncia expanso do

    agronegcio na sub-bacia do Baixo Jaguaribe: este foi o objeto deste estudo (Braga, 2010). O campo

    em estudo refere-se a comunidades rurais que tm buscado formas de autogesto por alternativas

    agroecolgicas de convivncia com o semirido, situadas no municpio de Russas. Elas agora esto

    ameaadas pelo projeto Tabuleiro de Russas, para expanso de permetros irrigados na lgica da

    modernizao agrcola conservadora, que integra o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC).

    Num contexto de desenvolvimentismo, conforma-se o conflito ambiental com disputa em torno de

    recursos naturais, prioritariamente gua e terra.

    Como caminho para conhecer o modo de vida tradicional e o conflito em curso, utilizamos a

    abordagem terico-metodolgica fundamentada em J. Thompson (1995) conhecida por hermenutica

    de profundidade (HP). A construo deste referencial terico transita tambm pelos autores

    Malinowsky (1978) e Geertz (1989) que aliceraram o processo de pesquisa de campo.

    Um conjunto de ferramentas foi utilizado para contemplao dos objetivos deste projeto. O

    desenho metodolgico interrelaciona a observao participante como cerne da proposta e todas as

    demais tcnicas utilizadas, como: entrevistas individuais, documentao fotogrfica, anlise

    documental e oficinas sobre biodiversidade e saber popular, sobre resgate da memria local e de

    fotografias e, perspectiva dos jovens para a terra.

    Como caracterstico da opo metodolgica, o cronograma de atividades ocorreu em um

    perodo de dois meses de trabalho de campo mais intensamente (abril e maio de 2009) quando a

    pesquisadora permaneceu vivenciando o cotidiano da comunidade, participando de atividades culturais

    e processos de trabalho, reunies, assemblias e audincias. O registro da coleta de informaes foi

    mediante o dirio de campo, gravador e fotografia (Minayo, 1993). Estas ferramentas condizem com a

    proposta de investigao da observao participante:

    [...] como um processo no qual a presena do observador numa situao social mantida para

    fins de investigao cientfica. O observador est em relao face a face com os observados, e,

    em participando com eles em seu ambiente natural de vida, no seu cenrio cultural, coleta dados.

    Logo, o observador parte do contexto sendo observado, no qual ele ao mesmo tempo modifica

    e modificado por este contexto. O papel do observador participante pode ser tanto formal como

    informal, encoberto ou revelado, o observador pode dispensar muito ou pouco tempo na situao

    da pesquisa; o papel do observador participante pode ser uma parte integrante da estrutura social,

    ou ser simplesmente perifrica m relao a ela. (Schawartz & Schawartz, 1995, apud Hagette,

    2003, p. 71).

    Este estudo interrelaciona sade, ambiente e produo a partir de uma investigao emprica e

    traz reflexes sobre o potencial endgeno das comunidades para construo e efetivao de polticas

    pblicas de desenvolvimento territorial rural e promoo da sade no campo. Como resultados da

    descrio do modo de vida agrcola tradicional das comunidades Lagoa dos Cavalos, Junco, Barbato

    e Crrego Salgado, desvelamos o processo scio-histrico na construo de alternativas de

  • 15

    convivncia com o semirido; caracterizao da agrobiodiversidade e sua interrelao com os

    processos de trabalho na agricultura familiar e na apicultura; o potencial da organizao comunitria e

    da transio agroecolgica na promoo da sade no campo. Em relao caracterizao do conflito

    socioambiental entre comunidades agrcolas e o rgo governamental DNOCS, desvelamos as tramas

    do conflito entre o modelo de produo do agronegcio e os modos de vida agrcolas do serto do

    Cear; as limitaes dos instrumentos de avaliao de impactos ambientais; o movimento de

    resistncia local; construo de alternativas territoriais como contraproposta ao projeto original do

    governo federal, como veremos no captulo 15.

    Construo da poltica local de Sade do Trabalhador e Sade Ambiental em

    Lagoinha/Quixer:

    Os desafios observados no trabalho de campo em relao operacionalizao das polticas de

    Sade Ambiental e Sade do Trabalhador no SUS contriburam para optarmos pela realizao de

    pesquisa-ao. Esse tipo de pesquisa facilita a aproximao dos pesquisadores com os trabalhadores,

    profissionais do servio de sade e a comunidade, bem como o dilogo entre a cincia e a vida, pois

    pressupe na sua feitura a participao de sujeitos coletivos. Conforme Thiollent:

    [...] a pesquisa-ao um tipo de pesquisa social com base emprica que concebida e realizada

    em estreita associao com uma ao ou com a resoluo de um problema coletivo e no qual os

    pesquisadores e participante representativos da situao ou do problema esto envolvidos de

    modo cooperativo e colaborativo. (Thiollent, 2008, p. 16).

    Em consonncia com o expresso pelo autor, encontram-se os objetivos almejados por este

    estudo no que concerne a subsidiar o SUS, movimentos sociais e trabalhadores para o enfrentamento

    dos problemas, evidenciando-se as necessidades de sade com base no territrio em transformao

    (Pessoa, 2010).

    Para a pesquisa-ao organizamos um grupo de agentes sociais composto de 14 participantes,

    com as pessoas da equipe de Sade da Famlia que quiseram participar, sendo contemplados na sua

    constituio: mdico, enfermeiro, agente comunitrio de sade, auxiliar de enfermagem e auxiliar de

    servios gerais da unidade de sade. As demais pessoas que integraram o grupo foram dois usurios

    do SUS, dois representantes dos movimentos sociais, um trabalhador do agronegcio, uma conselheira

    municipal de sade, um vereador, o presidente da associao dos trabalhadores rurais, uma professora

    da escola local, e ns, os pesquisadores. O grupo reuniu-se em datas definidas com intervalo mdio de

    21 dias, sendo que cada encontro do grupo correspondia a oito horas, totalizando uma carga horria de

    44 horas, em 5 encontros, que foram denominados oficinas.

    As tcnicas utilizadas para coletar material emprico foram o dirio de campo na observao

    participante; a realizao de conversas com informantes-chave, usurios, profissionais e gestores, para

    obteno de mais informaes sobre a realidade; e realizao das oficinas utilizando perguntas

    norteadoras da discusso na pesquisa-ao.

    A pesquisa-ao promoveu uma reflexo por meio da sensibilizao e ao conjunta com os

    movimentos sociais, profissionais da sade e gesto do SUS local e propiciou a apropriao do

    territrio pelos sujeitos envolvidos no estudo, e discutida no captulo 18.

    4. De como os caminhos metodolgicos foram se delineando no processo da pesquisa

  • 16

    Como vimos, o desenho e a trajetria metodolgica da pesquisa foram sendo construdos de

    forma dinmica, apoiada, de um lado, no referencial terico-metodolgico indicado anteriormente e,

    de outro, no permanente dilogo com o campo emprico, seus atores, e os desafios e reflexes que nos

    impunham. O Quadro 1 apresenta a linha do tempo da pesquisa, indicando os momentos mais

    marcantes e as principais atividades desenvolvidas.

    Fomos encontrando espaos diversificados para esta construo: seminrios de planejamento,

    reunies da equipe, a circulao de informaes e as discusses na lista eletrnica; o compartilhamento

    dos dirios de campo para elaborar os relatrios das atividades; o esforo de preparar, em parceria,

    trabalhos para apresentar em congressos ou falas em eventos. Um destaque especial deve ser dado s

    viagens a campo, como comentamos no Box 2.

    Figura 4 Equipe ao trmino do Seminrio de Planejamento da Pesquisa em 2009.

  • 17

    Quadro 1 Linha do Tempo das principais atividades da Pesquisa

    2007

    1. I Oficina da Pesquisa Agrotxicos

    2. Primeira Visita Exploratria ao Baixo

    Jaguaribe

    3. Curso Pesquisa em Sade Ambiental

    4. Curso Epidemiologia Ambiental

    5. Segunda Visita de Campo a Regio do Vale

    do Jaguaribe

    6. Visita Exploratria sobre uso de agrotxico

    na Chapada do Apodi

    7. Reunio da Equipe Pesquisa Agrotxicos,

    Discusso da metodologia

    8. Reunio com o SUS Federal, Estadual,

    Regional e Municpios

    2008

    9. Acompanhamento de Pulverizao Area na

    Chapada do Apodi

    10. Seminrio Desenvolvimento e

    Conflitos,Scio-ambientais - UFMG

    11. Estudo in loco do Processo de Trabalho no

    monocultivo do Abacaxi

    12. Diagnstico Socioeconmico das

    Comunidades no Permetro-Irrigado Jaguaribe-

    Apodi

    13. Seminrio Agrotxicos no Vale: Novos

    Ares e Desafios para uma Atuao Pblica

    14. Processo de Definio do Desenho

    Metodolgico Geral

    15. Seminrio Pesquisas de Interesse da

    Vigilncia Ambiental,Braslia

    16. Capacitao de 20 Mdicos do MST nos

    instrumentos do estudo epidemiolgico

    Incio do exame dos trabalhadores

    2009

    17. Seminrio de Planejamento 2009

    18. Acompanhamento da pulverizao area na

    Chapada do Apodi

    19. Estudo in loco do processo de trabalho no

    monocultivo da banana (e empresas, 3

    unidades)

    20. Participao na Comisso de Vigilncia em

    agrotxicos no Ministrio da Sade

    21. Seminrio da ANVISA, Braslia

    22. Busca ativa de casos de intoxicao aguda

    por agrotxicos no Hospital de Limoeiro do

    Norte

    23. Participao no Frum do Semi-rido,

    Limoeiro do Norte

    24. Investigao da morte do trabalhador VMS,

    do monocultivo do Abacaxi

    25. Jornada Mundo Rural, Agrotxicos e Sade

    e Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades

    Socioambientais

    26. Grito dos Excludos na Chapada do Apodi

    27. Oficina sobre Vigilncia em Sade e

    Agrotxicos

    28. Apresentao de trabalhos Iniciao

    Cientfica UFC

    29. Congresso Brasileiro de Agroecologia

    30. Congresso da Abrasco

    31. Encontro do FEPMAT

    2010

    32. Seminrio de Planejamento da pesquisa

    33.Seminrio gua, Meio Ambiente e Direitos

    Humanos

  • 18

    34. Assassinato Jos Maria do Tom 21 de

    abril

    35. Retorno dos produtos da pesquisa aos

    sujeitos locais 1 reunio

    36.Seminrio Violao dos direitos

    fundamentais frente aos impactos scio-

    ambientais do agronegcio na Chapada do

    Apodi Fac. Direito/UFC

    37. Audincia Pblica da Cmara Municipal de

    Vereadores de Limoeiro do Norte sobre

    Pulverizao Area

    38.Audincia Pblica da Assemblia

    Legislativa do Estado do Cear sobre

    Agrotxicos

    39. Seminrio Conhecimento e Ao:

    Resultados da Pesquisa Agrotxicos/UFC

    40. 1. e 2. Oficinas de Sistematizao dos

    Resultados da Pesquisa com os sujeitos locais

    41.Entrega de Dossi da Pesquisa s

    autoridades pblicas

    42. Retomada do Frum Agrotxicos de

    Limoeiro do Norte com presena do

    coordenador do Frum Nacional/MPT-PE

    43. Seminrio Agrotxicos : Exposio humana

    e Promoo da Sade

    44. Seminrio Frum Nacional Agrotxicos,

    Sade e Meio Ambiente - MT

    45. Seminrio Agrotxicos e Sade - Via

    Campesina

    46. Congresso Latino-americano de Sociologia

    Rural - PE

    47. Articulao Latinoamericana de

    pesquisadores em Agronegcio, Agrotxicos,

    Ambiente

  • 19

    Box 2 Aprendendo com o campo emprico e tecendo interdisciplinaridade nas assemblias

    mveis.

    Geralmente saamos cedinho para o vale do Jaguaribe, eram cerca de 200 km que vencamos

    em quase trs horas. Algumas vezes fomos em micro-nibus ou veculos maiores, para comportar boa

    parte da equipe. Outras vezes, ramos quatro ou cinco. A estrada e seu tempo criavam condies

    especiais para a conversa estvamos ali juntos e inteiros, disponveis; no havia pauta, apenas

    idias, assuntos, inquietaes, e todas cabiam, sem uma ordenao lgica. Comumente no sentamos

    a presso por deliberar ou encaminhar, e quando isto era necessrio, era sem pressa, mais ou menos

    como se ouve dizer que fazem os indgenas em suas aldeias. E ento amos compartilhando as

    notcias, as novidades, o que estvamos fazendo, o que nos preocupava, e recebendo os aportes dos

    outros olhares, digerindo, discutindo. Detalhvamos o que fazer naquele dia, a partir da agenda

    previamente preparada, e que s vezes nos dividia em subgrupos, cada um com uma tarefa.

    O trabalho em campo dois a trs dias de cada vez - era sempre diversificado: a audincia

    com a promotora de meio ambiente, a visita a um pequeno produtor, o encontro com as agentes

    comunitrias de sade para combinar a mobilizao dos trabalhadores para o exame, o estudo do

    processo de trabalho numa grande empresa, o acompanhamento e registro da pulverizao area, a

    coleta de amostras de gua e solo para anlise, a reunio com a Clula Regional de Sade, a

    aplicao do questionrio, o exame mdico e a coleta de material para as anlises clnicas e

    imunogenticas, a oficina com o grupo da pesquisa-ao ou o grupo focal com os trabalhadores, o

    encontro com o diretor do hospital para combinar a busca ativa...

    Voltvamos cansados, suados, e enriquecidos de informaes, experincias, questionamentos,

    indignao, dvidas, encantamento, surpresa... Era s fechar a porta do carro e se iniciava a partilha,

    nas estradas do conhecimento. Experimentvamos fortemente a riqueza da diversidade de olhares,

    que chegava a surpreender: como algum pode ver por este lado?! E ali amos trocando conceitos,

    referncias bibliogrficas, impresses e avaliaes, incertezas e inseguranas. E assim iam surgindo

    propostas de como prosseguir a abordagem, encaminhar o caso ou resolver o problema, e algum

    assumia de anotar tudo e dividir as tarefas, inclusive de elaborao do dirio de campo coletivo - este

    era um outro instrumento de construo interdisciplinar no grupo: registrar em escrita todo o vivido

    no campo, a perspectiva e os aportes de cada um e os prximos passos.

    Estas eram as nossas assemblias mveis. Em movimento, na estrada da vida e do

    conhecimento. No foram previstas na metodologia, mas foram fundamentais para a construo

    interdisciplinar e a integrao entre os diferentes estudos. Por a passava tambm a discusso dos

    objetos de estudo dos ps-graduandos que se aproximavam de nossa linha de pesquisa. E foram se

    formalizando, chegando a ter relator e encaminhamentos!

    Logo fomos compreendendo que, no mundo rural atual, as abordagens dos problemas de sade

    ambiental e do trabalhador no podem se reduzir ao tema dos agrotxicos, no s porque h outros

    agentes de risco, mas porque h um contexto de risco, produzido no processo de desterritorializao

    induzido pela modernizao agrcola o que Marinho (2010) demonstra fartamente em sua tese.

    Aprendemos tambm que os atingidos no so apenas os trabalhadores diretamente envolvidos nos

    novos processos produtivos, mas tambm suas famlias e as comunidades vizinhas aos

    empreendimentos, que tm sua vulnerabilidade ampliada.

  • 20

    Diante do desafio que se configurava para acessar e examinar os mais de 500 trabalhadores

    previstos em nossa amostra, muitas vezes nos questionamos sobre o sentido prtico de realizar o

    estudo epidemiolgico, e entendemos muito bem a afirmao de Porto:

    Como desafio para a sade pblica, seria mais importante entender os processos que levam

    determinados grupos ou regies a se tornarem mais ou menos vulnerveis ao defrontarem-se

    com determinadas situaes de risco, do que se restringir a classificar determinadas doenas e

    formas de morrer da populao e seus fatores de risco associados. (Porto, 2002: 133)

    No que diz respeito ao que denominamos de etapa transversal da pesquisa, enquanto processo

    de dilogo permanente com as instituies pblicas e os movimentos sociais, houve situaes em que

    questionamos se deveramos estar disponibilizando, ao momento, as informaes e conhecimentos que

    amos reunindo ao longo da pesquisa: ser que a divulgao de dados parciais iria criar resistncias ao

    desenvolvimento do projeto, fechar algumas portas? As empresas vo aceitar nosso pedido de visita?

    Este era, sem dvida, um cuidado necessrio. Por outro lado, esta deciso no era to simples: como

    silenciar diante da morte de trabalhadores expostos aos agrotxicos? Como guardar na gaveta as fotos

    de homens, mulheres e crianas manipulando, em precria usina de reciclagem, o material plstico

    proveniente dos monocultivos, contaminados com agrotxicos? E os imperativos ticos, como ficam?

    Como lidar com os jornalistas que comeam a buscar informao? Colegas j haviam faceado esta

    questo...

    Aps vrias reflexes do grupo, fomos reconhecendo que a pesquisa j estava tendo influncia

    na realidade local nossa simples presena e os contatos que fazamos iam levantando poeiras...

    Fomos ento assumindo formalmente a dimenso tambm de interveno no plano local, desde

    j juntando investigao e ao. Estvamos nos aproximando da intencionalidade emancipatria,

    com o "pensar sempre na prtica", e o conceito de prxis, na esteira do que propem a Escola de

    Frankfurt e Paulo Freire. (Costa*, 1991)

    Nesta perspectiva, em nossa trajetria metodolgica, vale destacar alguns momentos da relao

    com o Sistema nico de Sade SUS e com as entidades e movimentos sociais.

    Como j colocado, a idia da pesquisa nasceu no seio do Conselho Gestor do CEREST/CE

    uma instncia de controle social do SUS, e nosso propsito foi contar com profissionais da Secretaria

    Estadual de Sade na equipe de pesquisadores, de forma a criar um fluxo permanente de comunicao,

    integrao e ao. Entretanto, isto no se viabilizou.

    Assim, percebendo nas visitas exploratrias a campo a fragilidade do SUS na regio no que diz

    respeito ateno integral sade, e especialmente s aes de Sade do Trabalhador e Sade

    Ambiental, organizamos um encontro para o qual convidamos estas coordenaes no Ministrio da

    Sade, no SUS estadual e os CERESTs estadual e regional; nos municpios, os secretrios de sade e

    as coordenaes de Ateno Bsica e de Vigilncia, alm das Clulas Regionais de Sade. Foi um

    momento simples, em que apresentamos o projeto de pesquisa e o gestor do Ministrio da Sade

    apresentou as atribuies legais dos municpios no que toca a estas aes. Mas ficou claro, no debate,

    o grande hiato entre as legislaes e polticas e as prticas institucionais. Ao final do dia, o Secretrio

    de um dos municpios reconheceu com simplicidade: eu fui visitar uma empresa dessas, porque me

    convidaram, e fiquei foi encantado com aquela modernidade toda! Eu no olhei aquilo com os olhos

    do gestor da sade!. Agendamos um novo encontro em um ms, mas ele foi sucessivamente adiado e

    postergado pelos gestores.

  • 21

    Avolumavam-se os problemas identificados demandando interveno do SUS. Dessa forma,

    durante o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para a atuao pblica, realizado

    oito meses depois, aproveitamos a presena de autoridades do Ministrio Pblico Estadual e do

    Trabalho, bem como de gestores federais do SUS, para voltar a reunir as autoridades sanitrias locais,

    explicitar as demandas e buscar contribuir para que o SUS se colocasse em movimento para

    equacionar respostas.

    Se as respostas foram escassas no mbito municipal e estadual, no plano federal fomos nos

    constituindo em grupo de interlocuo no campo dos agrotxicos. Participamos do Seminrio

    Agrotxicos e Sade, organizado pela ANVISA/MS, levando conosco quatro lideranas de

    movimentos sociais, numa oportunidade de intensa contribuio deles e tambm de aprendizado e

    articulao com redes sociais ali presentes. Uma destas lideranas passou a fazer parte da Comisso de

    Vigilncia em Agrotxicos no Ministrio da Sade, levando ao Planalto Central a voz dos territrios

    cearenses atingidos pela modernizao agrcola. Membros da equipe tambm foram convidados para a

    Oficina sobre Vigilncia em Sade e Agrotxicos, realizada em Braslia, em outubro de 2009,

    participando da implementao de polticas e aes integradas.

    O Frum Estadual de Proteo do Meio Ambiente de Trabalho do Cear, de iniciativa do

    Ministrio Pblico do Trabalho, respondendo visibilidade crescente dos problemas relacionados aos

    agrotxicos, pautou seu Encontro de 2009 com este tema, favorecendo dilogos interinstitucionais.

    Os desafios seguem, e as melhores perspectivas de contribuio com o SUS foram abertas pela

    pesquisa-ao realizada no municpio de Quixer, parte do Estudo 4.

    No campo das relaes com os movimentos sociais, alguns momentos foram marcantes. Um

    deles foi exatamente o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para a atuao pblica,

    realizado em agosto de 2008. Ele foi construdo em conjunto com o Ministrio Pblico Estadual, a

    Diocese e a Critas de Limoeiro do Norte, a FAFIDAM/UECE, nosso Ncleo Tramas, o Instituto de

    Educao e Poltica em Defesa da Cidadania/IEPDC, a 10. CERES, CENTEC, Esplar, Via

    Campesina, Articulao do Grito dos Excludos. Pensvamos em ter um pblico de cerca de 60

    pessoas, e programamos tambm a Oficina de Educao para a Sade no Campo - Agrotxicos e

    Sade: Conhecendo para reduzir os riscos no dia anterior ao incio do Seminrio, para quem quisesse

    se aproximar do tema.

    Mas o auditrio da FAFIDAM, com 300 lugares, permaneceu lotado nos trs dias. Acontece

    que, naquele momento, eclodiu a greve dos trabalhadores da Empresa Del Monte Fresh Produce Brasil

    Ltda: 1300 trabalhadores recm-proletarizados cruzaram os braos, denunciaram diversos problemas e

    reivindicaram dignidade no novo modo de vida, como veremos no captulo 16. Vrios deles venceram

    o medo e soltaram suas vozes, na rdio local e no Seminrio. Em suas falas (veja algumas delas no

    Box 3), descortinavam para si e para a cidade como era o trabalho nas empresas do agronegcio,

    contrapondo o real vivido ao mito do progresso e do desenvolvimento que gera emprego.

    Figuras 5 e 6 - Pessoas presentes ao Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para

    a atuao pblica, e um trabalhador adoecido que conclua seu depoimento no palco.

  • 22

    A Procuradora Regional do Trabalho, que estava chegando cidade para participar de uma

    Mesa Redonda no Seminrio, mudou seu destino e foi logo se reunir com os trabalhadores e depois a

    empresa, impondo a readmisso de 197 grevistas j demitidos. Este momento de trabalho conjunto

    entre as entidades, instituies e movimentos fortaleceu o cho da pesquisa no local, as parcerias.

    Como caminho de continuidade e ao, foi proposta a constituio do Frum Agrotxicos, articulando

    estes e outros atores, que passaria a conduzir as iniciativas sociais em torno do problema na regio.

    Box 3 Trabalhadores descortinando as entranhas do desenvolvimento

    Eu trabalho na Delmonte, trabalho com aplicaes de veneno, corro risco de vida todo dia l

    dentro, o que ns passamos l dentro chega a humilhao.

    Spray-boom a maquina que ela aplica o veneno dentro do abacaxi, a a questo que esses

    venenos um produto que ns corremos risco todo santo dia l, aonde tem nosso colega hoje doente

    que talvez nem soluo mais pra esse problema no tem... A questo que tem outro colega meu na

    cidade alta que ele est contaminado j pelo veneno, tem outro rapaz tambm que ele est encostado

    pelo mdico e o mdico falou pra ele que se ele quisesse viver mais ele no poderia voltar pra l.

    A questo da alimentao que ns no temos, a questo dos refeitrios que at perto da

    mistura [de agrotxicos]. S pra voc ter uma idia, o nosso refeitrio, o refeitrio que ns janta,e a

    zona de mistura vizinho... Ns somos obrigados a estar l dentro porque se ns estamos l porque

    ns temos preciso de ganhar. Eles pagam pra ns um adicional de insalubridade - s ns que

    trabalhamos nas aplicaes - setenta reais, setenta reais s! E quando o tcnico de segurana vai dar

    um treinamento a ns l o que que ele bota, o pouco que ele bota naquela insalubridade pra algum

    dia que ns adoecer, ns termos com que se curar. A a gente olha pro tcnico de segurana e diz:

    meu amigo, como que a gente j no ganha nem um salrio, a vai tirar todos os ms setenta reais

    da insalubridade pra depositar numa conta pra quando um dia ns adoecer ns se curar com aquele

    dinheiro?! Voc no tem idia nem do que voc est dizendo!

    A gente pergunta por que que est botando pessoas pra casa e sem ter explicao nenhuma.

    O gerente falou: no, essas pessoas a, elas que falam muito. Mas eu digo: doutor, a gente fala com

    educao - mesmo que ele seja mal educado com ns, ns temos obrigao de ser bem educados com

    eles, que pra eles entender que ns somos cidado! (aplausos) Que ns trabalhadores estamos l

    para produzir pra empresa, mas ns queremos ganhar o nosso tambm, no queremos que s a

    empresa enrique s nossas custas! Ns no queremos que s ela enrique s nossas custas e ns

  • 23

    morrer de se sacrificar l dentro, como hoje tem colega nosso, como teve um agora pouco aqui com a

    sua perna amputada, cortada...

    Depoimentos de trabalhadores em greve, durante o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos

    ares e desafios para a atuao pblica. Limoeiro do Norte/CE, agosto de 2008.

    A partir de ento, a equipe da pesquisa era convidada para os eventos organizados por estas

    entidades e instituies, os quais se constituram em espaos de compartilhar informaes, perscrutar

    percepes, afinar a abordagem de questes complexas e aprofundar alianas. Preparar nossas falas

    nestes encontros era tambm uma oportunidade de, com data marcada, nos levar a elaborar anlises e

    snteses em processo do que vnhamos fazendo. Assim foi, por exemplo, com o VII Encontro

    Estadual do Frum em Defesa da Vida no Semi-rido, realizado em Limoeiro do Norte em julho 2009,

    ou com a Semana gua, Meio Ambiente e Direitos Humanos, em maro de 2010. Compreendemos

    que, alm da questo dos agrotxicos ser bastante sentida e denunciada pelos trabalhadores e

    comunidades vizinhas aos grandes empreendimentos o que a pautava neste tipo de evento, o fato da

    equipe da pesquisa ter assumido o modelo interpretativo do real aqui descrito, que situa o problema

    dos agrotxicos no contexto mais geral da modernizao agrcola, facilitou e promoveu estes dilogos

    e articulaes.

    Figura 7 Plenria do VII Encontro Estadual do Frum em Defesa da Vida no Semi-rido,

    realizado em Limoeiro do Norte em julho 2009, em que a equipe da pesquisa participou.

    Em agosto de 2009 tivemos a defesa da primeira dissertao produzida no mbito da pesquisa,

    voltada para os trabalhadores da monocultura do abacaxi (Alexandre, 2009). Ela ocorreu pela manh na

    UFC, em Fortaleza, e noite foi apresentada na Comunidade onde vive boa parte deles, em Limoeiro

    do Norte, com a presena inclusive da banca examinadora. Assim comeou a Jornada Mundo Rural,

    Agrotxicos e Sade, que contou tambm com uma Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades

    Socioambientais e Contextos de Promoo da Sade, junto s Comunidades da Chapada do Apodi e

    do Tabuleiro de Russas (detalhada no captulo 5) e com um evento em Praa Pblica na comunidade

    do Tom, onde o Prof. Vanderlei Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, falou de

  • 24

    suas pesquisas no mundo rural naquele estado e da pulverizao area, e tambm lideranas

    comunitrias se manifestaram, entre elas o Jos Maria Filho, assassinado menos de um ano depois.

    Figura 8 - Participantes da Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades Socioambientais e

    Contextos de Promoo da Sade, realizada na Comunidade do Tom, em agosto de 2009.

    Figura 9 - Prof. Vanderley Pignati, da UFMT, expondo os problemas da pulverizao area em

    sua regio no adro da igreja da Comunidade do Tom.

    Ainda no campo das relaes da pesquisa com os movimentos sociais, tivemos a oportunidade

    de fazer uma parceria com o MST quando mdicos ligados ao movimento, recm-formados em Cuba,

    envidavam esforos para validar seu diploma no Brasil. De acordo com anlise realizada pela

    Faculdade de Medicina da UFC, uma das disciplinas que necessitavam ser complementadas era Sade,

    Trabalho, Ambiente e Cultura, de responsabilidade de nosso setor de estudos junto graduao

    mdica. Construmos ento um entendimento de que a disciplina seria oferecida a uma turma de vinte

  • 25

    destes mdicos, nos finais de semana, pois eles estavam cursando a especializao em Sade da

    Famlia no Sistema Municipal de Sade de Fortaleza, e organizada com foco nas questes da sade no

    campo, e tendo como territrio de prticas as comunidades e assentamentos na regio do Baixo

    Jaguaribe. Assim, pudemos form-los e convid-los a contribuir conosco no enorme trabalho do estudo

    epidemiolgico, ajudando-nos a vencer o desafio de ganhar a confiana e examinar mais de 500

    trabalhadores da regio, nos finais de semana, em suas comunidades. Que outro perfil de mdico

    aceitaria este desafio?

    No Seminrio de Planejamento da Pesquisa em 2010, o ltimo ano previsto para seu

    desenvolvimento, foram priorizadas, entre outras, as aes de retorno da pesquisa s instituies,

    entidades e movimentos sociais com as quais viemos caminhando entre elas este livro, por exemplo.

    A reunio com eles foi um momento muito especial em nossa trajetria acadmica pois, aps uma

    breve apresentao do conjunto de resultados produzidos ou em fase de sistematizao e anlise, no

    mbito dos quatro estudos, recebemos a satisfao dos presentes pelo cuidado com o retorno ao

    territrio (diferentemente de suas experincias com outros grupos) e o reconhecimento de que estes

    produtos so ferramentas de trabalho importantes para eles, na construo da sustentabilidade scio-

    ambiental.

    A partir da foi elaborado um processo de sistematizao dos resultados da pesquisa, com base

    na metodologia proposta por Oscar Jara Holliday (2006), que a concebe como [...] aquela

    interpretao crtica de uma ou vrias experincias que, a partir de seu ordenamento e reconstruo,

    descobre ou explica a lgica do processo vivido, os fatores que intervieram no dito processo, como se

    relacionaram entre si e por que o fizeram desse modo. O processo foi coordenado por Gigi Castro

    artista e educadora popular, e o objetivo foi produzir materiais para comunicar o conhecimento

    produzido junto aos sujeitos envolvidos com a problemtica, no s na regio, mas tambm no estado

    e no pas, tendo em vista o macrofenmeno da expanso agrcola na modernizao conservadora.

    Numa primeira oficina, os diferentes atores locais e a equipe da pesquisa se apropriaram da

    metodologia de sistematizao, definiram os pblicos-alvo e construram a linha do tempo do

    problema em estudo. Na segunda Oficina, foram apresentados todos os estudos produzidos no mbito

    da pesquisa tese, dissertaes, monografias, dossi, etc a partir dos quais o grupo refletiu, discutiu

    e selecionou os contedos que deveriam estar contidos nas publicaes4.

    Figuras 10 e 11 - Representao dos resultados da pesquisa como ferramentas de luta, elaborada

    em mstica preparada pelo MST, e Oficina de Sistematizao, em trabalho coletivo para

    reconstruo da linha do tempo no Baixo Jaguaribe.

    4 Este processo constituiu-se me parte do objeto de estudo de um dos membros da equipe Marcelo JF Monteiro, devendo consistir em sua dissertao de mestrado.

  • 26

    J em abril de 2010, o assassinato da liderana comunitria Jos Maria Filho, pequeno

    agricultor e ambientalista popular residente na Comunidade do Tom/Limoeiro do Norte, chamou a

    ateno da sociedade e da mdia para a violncia no campo, em pleno sculo XXI, e para o problema

    dos agrotxicos, tendo em vista as freqentes denncias da contaminao ambiental e sua participao

    no movimento pela proibio da pulverizao area de agrotxicos no municpio, que resultou na

    aprovao, em 08 de outubro de 2009, da lei n 1478/2009 (Teixeira, 2010).

    Entretanto, pressionada por projeto de lei do executivo municipal que inclua a revogao desta

    proibio, a mesma Cmara Municipal realiza audincia pblica em 12 de maio de 2010. Dela

    participam cerca de 300 pessoas, e a pesquisa convidada a apresentar os dados j produzidos sobre a

    contaminao ambiental. A mdia divulga o tema e a Assemblia Legislativa do Cear tambm

    convoca audincia pblica sobre o tema, em 20 de maio data em que Cmara de Vereadores de

    Limoeiro do Norte se rene e revoga a proibio da pulverizao (veja captulo 17).

    Na dialtica dos processos histricos, a morte gera vida: desde ento, a cada dia 21,

    Movimentos sociais e entidades como o MST, Critas Diocesana, estudantes, Conlutas, associaes

    comunitrias e instituies acadmicas tm feito constantes manifestaes e divulgao de

    informaes sobre o problema, junto ao Ministrio Pblico e outras instituies pblicas responsveis

    pelas polticas nesta rea. Dentro da dinmica metodolgica que assumimos nesta pesquisa, estas

    diferentes formas de violncia e a organizao da resistncia a elas tambm se conforma enquanto

    objeto de estudo de um novo projeto de pesquisa, conduzido por professora da Universidade de

    Braslia que se soma ao nosso grupo (Hoefel, 2010).

    Seguindo a tradio dos Seminrios locais da pesquisa, realizados em agosto de 2008 e

    de 2009, realizamos em 2010 o Seminrio Conhecimento e Ao: Resultados da Pesquisa

    Agrotxicos/UFC. Para este momento preparamos um dossi contendo os principais problemas

    identificados pela pesquisa e que apresentavam relevante impacto sobre a sade pblica, exigindo

    portanto aes das autoridades responsveis (Rigotto et al, 2010b). Tomando como base a Resoluo

    196/96 do Conselho Nacional de Sade5, o documento apresentado aos presentes e entregue aos

    Promotores do Ministrio Pblico (Trabalho, Sade e Meio Ambiente) continha os seguintes itens:

    1. Uso e contaminao de guas subterrneas, superficiais e para consumo humano.

    2. Pulverizao area de agrotxicos na cultura da banana.

    3. bito de trabalhador por hepatopatia txica e os casos de cncer entre agricultores.

    4. Agrotxicos e seus resduos.

    5. A questo fiscal-tributria e o consumo de agrotxicos.

    6. Outros aspectos da Vulnerabilidade populacional e da vulnerabilidade institucional.

    No mesmo Seminrio, foram apresentados tambm os trabalhos concludos entre 2009 e 2010,

    sobre a comunidade de Lagoa dos Cavalos, o assentamento Bernardo Marin II, a pesquisa-ao em

    Lagoinha/Quixer e o Mapeamento de vulnerabilidades scio-ambientais entre as comunidades da

    Chapada do Apodi.

    5 De acordo com o artigo III.1 - A eticidade da pesquisa implica em: o) comunicar s autoridades sanitrias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condies de sade da coletividade p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefcios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa

  • 27

    Box 4 - Experimentando a mobilidade e insustentabilidade do agronegcio: as

    pragas venceram?

    Quando iniciamos as exploraes em campo, uma comunidade j havia nomeado os

    agrotxicos como problema, e levado sua voz esfera pblica. O tcnico da Critas, que nos auxiliou

    nestas incurses, logo pautou em nossa agenda uma visita a esta comunidade - Baixa Grande, no

    municpio de Limoeiro do Norte. Ela estava colada cerca de uma das empresas de agronegcio -

    conhecida como a empresa dos gringos, que ali cultivava abacaxi em cerca de 1300 hectares e

    Dona Liduna nos contou do cheiro de veneno que havia dentro das casas, nas latas de mantimentos;

    do trator que passava pulverizando com os braos abertos e jogava veneno a noite toda no ar e por

    cima da cerca; dos problemas de sade que as pessoas sentiam. Havia ainda uma caieira empresa

    de beneficiamento de cal, que tambm polua o ar.

    Passamos uma tarde em reunio na comunidade, onde residiam 75 famlias com cerca de 295

    pessoas, das quais 50 estavam presentes. Ouvimos relatos emocionados, como o da me de uma

    criana de 1 ano e 8 meses que desenvolveu uma anemia severa, vinha perdendo peso, e que os

    mdicos sugeriam a possibilidade de contaminao por agrotxicos. Todos os presentes se queixavam

    de dor de cabea e tonteira. A diretora da escola contou que alguns alunos traziam o cheiro de veneno

    nos cabelos, e que produziram o vdeo intitulado Cad a minha casa? Poluio Comeu! retratando

    a histria de sua comunidade, conhecida como Km 69. A Agente de Sade local afirmou ter resultados

    das anlises das guas que abastecem as famlias comprovando a contaminao por agrotxicos.

    Comeamos a avaliar que aquela poderia ser uma primeira unidade territorial de anlise

    (UTA), reunindo a rea da empresa de cultivo de abacaxi e a comunidade vizinha. Os dados

    aportados sugeriam que ali poderamos desenvolver uma metodologia-piloto para abordar aquela

    regio to complexa: estariam presentes uma unidade de produo em grande escala e um local de

    moradia de ex-pequenos produtores; poderamos investigar tanto as questes de sade do trabalhador

    como de sade ambiental, e depois ampliar para outras unidades de anlise. Chegamos a nos

    organizar para elaborar o mapa desta UTA, identificar e caracterizar as comunidades; analisar o

    solo, o sedimento e bentons do canal e a gua de consumo humano; estudar a percepo das pessoas

    sobre os agrotxicos.

    Qual no foi a nossa surpresa ao saber pela Dona Liduna que a empresa (ou a terra?) estava

    parando de produzir abacaxi na sua vizinhana: um trabalhador empregado nela que mora na

    comunidade recebeu a tarefa de colher seis espcimes para anlise laboratorial e j no conseguiu

    encontrar nos contou ela. Na monocultura, a empresa fertilizava o substrato solo com toneladas

    de produtos qumicos e enfrentava pragas como a broca-do-fruto, broca-do-colo, podrido-do-topo e

    a fusariose com pelo menos 13 tipos de agrotxicos, entre fungicidas, inseticidas, acaricidas e

    herbicidas, em aplicaes dirias de elevados volumes. E nem assim conseguia produzir mais! As

    pragas venceram?! A empresa iria agora ocupar novas terras com este mesmo cultivo e tecnologia...

    Tivemos uma experincia muito concreta da mobilidade do capital e da insustentabilidade

    deste modelo de produo, deixando atrs de si as marcas da degradao scio-ambiental e da

    desertificao a herana maldita de que nos fala Acselrad, enquanto avana sobre novas terras e

    comunidades. Na Oficina com a comunidade, este modelo de relao com o ecossistema foi chamado

    de gafanhoto praga devastadora, desde o Egito...

  • 28

    Tambm como trabalhadores da cincia, tivemos que reorganizar nossos planos de

    investigao... As novas dinmicas temporais e espaciais do agronegcio desorganizam no s os

    territrios, mas tambm o processo de trabalho na pesquisa: na modernidade lquida, tudo o que

    slido desmancha no ar.

    Em abril de 2011, o j fortalecido e nomeado Movimento 21, organiza as atividades de

    celebrao de um ano do assassinato do Z Maria do Tom, e consegue trazer s ruas os moradores das

    comunidades, que comeam a vencer o medo e explicitam num panfleto suas reivindicaes, inclusive

    sobre a contaminao por agrotxicos. Em paralelo, a equipe da pesquisa organiza mais uma vez na

    Fafidam um Seminrio de apresentao de resultados junto aos diferentes segmentos e atores, e j

    convida outros territrios do Cear e do Rio Grande do Norte que tambm enfrentam o problema dos

    agrotxicos, para um dilogo de cooperao e articulao.

    5. Um pouco do muito que aprendemos

    Estes foram quatro anos de um intenso e profundo aprendizado para todos ns da equipe, e em

    dimenses que vo desde a cosmoviso, a compreenso da cincia e suas prticas e nosso papel nela,

    passando pelas formas como as polticas pblicas alcanam (ou no) os territrios, at as maneiras de

    sentir e expressar das comunidades da regio. Alguns membros da equipe registram suas impresses

    deste processo no Box 5.

    Sistematizar estes aprendizados de natureza epistemio-metodolgica umas das atuais tarefas

    da equipe, a partir de um processo crtico-reflexivo em que sero importantes, entre outros, os aportes

    tericos, o distanciamento e o dilogo com atores externos equipe, para dar suporte a uma

    consistente metanlise, no intuito de garimpar e refinar as possveis contribuies epistemolgicas e

    metodolgicas desta trajetria para uma cincia emergente.

    Figura 12 Teia de elementos que podem facilitar a prxis na pesquisa

    Territrio

    PrxisDinmica

    metodolgica da pesquisa e as mltiplas

    dimenses do real

    Os trabalhadores e o processo de trabalho

    em pesquisa: disposio para a contra-hegemonia

    Cuidados na definio dos

    objetos

    Teorias crticas:Problematizao

    do real

    Ecologia de saberes e poderes

    Compromisso tico e poltico

    com a emancipao e

    a transformao social

    Sistematizao e comunicao do conhecimento

    produzido

  • 29

    A Figura 12 evidencia alguns elementos que, neste momento, identificamos como facilitadores

    em nossa trajetria: o cuidado na definio dos objetos de estudo, priorizando aqueles que contemplam

    demandas de produo de conhecimento formuladas por aqueles que tm menos acesso e que

    necessitam dele para empoderar-se; o apoio de teorias crticas para a problematizao do real; a

    abertura para a construo dinmica e processual da metodologia, em dilogo com o campo emprico e

    seus atores; a ateno com os trabalhadores e os processos de trabalho em pesquisa, de forma a criar

    condies para a apreenso da complexidade do real, para a anlise interdisciplinar profunda, e para a

    produo de snteses que ampliem a compreenso da totalidade; o profundo respeito aos saberes e

    poderes tradicionais e populares, e a postura sincera de escuta e dilogo; e o compromisso tico e

    poltico com a emancipao e a transformao social, em benefcio dos mais vulnerveis, expresso

    tambm no esforo de sistematizar o conhecimento produzido de forma a fomentar sua apropriao

    pelos sujeitos envolvidos no problema.

    Seguimos no caminho.

    Box 5 Com a palavra, os pesquisadores!

    Pesquisar para mim, significa descobrir e descobrir-se! Empreender esforos, emoes,

    lutas, sonhos, encontrar-se consigo e com o outro na vida to curta que temos. Ento fazer parte do

    mundo da vida, recheada de incertezas, apreenses, angstias, dores e tecer um novo jeito de fazer

    valer a vida! Ir em busca de um novo tom de luz, que acalente a alma dos sofridos, o corpo dos

    docentes, uma perspectiva de fazer cincia que articule e integre os seres e saberes. Ser parte da luta

    e da conquista de uma vida digna, justa tica que abrace a diferena, mas que garanta o princpio do

    bem viver para todos.

    So estas motivaes, como tambm so os desafios e sentimentos que passam pelas minhas

    aes de pessoa- pesquisadora da uma nova forma de viver. Uma forma de viver saudvel em paz

    consigo, com os outros, com o planeta.

    Ser pessoa-pesquisadora de forma prazerosa, de transformar a misria, a pobreza, a injustia,

    a desonestidade, a corrupo, a iniqidade em passado, histrico de nossa civilizao; possibilidade

    de propor estratgias, mtodos que tragam proposies e realizaes de novos arranjos para os

    indivduos, famlias, trabalhadores, pesquisadores- pessoas no mundo.

    Ser produtora de uma cincia, a servio da vida, no que esta tem mais sublime, um

    conhecimento til e coerente com as necessidades dos seres. Cincia que gera vida e inclui novas

    ferramentas para arar o campo sem aniquilar o solo e as pessoas.

    Atuar consciente, criticamente, evidenciando os gritos e os silncios no fazer cincia.

    (Vanira Matos Pessoa)

    "Participar desta pesquisa vem sendo para mim exercitar a arte da descoberta, enveredando

    nas trilhas da incerteza, do novo, do desconhecido. Ousar pisar em falso, contaminar-se pela dvida,

    deixar-se invadir pela sede do conhecimento.

    E para qu? O que nos move, nos impulsiona, na busca incessante da construo e da

    descoberta?

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    Penso que seja parte da nossa misso como pessoa que nasce para ser grande, para viver sua

    essncia. Construir conhecimento com compromisso social.

    Mas como isso se d? Dar-se somente no encontro com o outro, com a natureza, com o

    infinito...No encontro com o sutil, que eleva o esprito, fortalece o corpo, diminui o peso e nos ajuda

    a flutuar.

    Esta pesquisa tem sido para mim o lugar do ENCONTRO:

    - da academia, com as instituies da prtica e os movimentos sociais;

    - do novo, do velho, do perene;

    - da dvida, da aproximao e da possibilidade;

    - da impermanncia, do slido e da fluidez;

    - da teoria, da prtica, da prxis;

    - do campo, da cidade, do rural e do urbano.

    A pesquisa vem sendo a experincia de ser pesquisador, profissional da prtica, cidad, me,

    mulher, companheira.

    O que isto significa? Significa a experincia da integrao, da possibilidade da fala dos

    medos, das dv