Riscos Alimentares Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente
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No prelo em Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente. n. 5/2o.semestre 2002.(Dossier da
Revista NSS-Natures, Sciences,Socits. Paris, DUNOD). Curitiba, Editora da UFPR.
RISCOS ALIMENTARES: NOVOS DESAFIOS PARA
A SOCIOLOGIA AMBIENTAL E A TEORIA SOCIAL
Julia S. Guivant (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)1
Introduo
O tema dos riscos ambientais e tecnolgicos tem passado a ocupar um lugar cada vez
mais central na recente teoria social para caracterizar as sociedades da alta modernidade,
envolvendo questes como as relaes entre leigos e peritos, o papel da cincia e os desafios
que estes riscos colocam para as polticas pblicas. Mas a temtica dos riscos no nova
dentro das cincias sociais. Uma vasta produo tem sido desenvolvida, em especial desde os
anos 80, configurando uma dinmica rea sub-disciplinar (Guivant, 1998).
Um dos pontos comuns nesta bibliografia sobre riscos a crtica s anlises tcnicas e
quantitativas, dominantes internacionalmente na definio, avaliao e controle dos riscos,
por ignorarem que tanto as causas dos danos como a magnitude de suas conseqncias esto
mediadas por experincias e interaes sociais, assim como por no reconhecerem a
existncia de diferentes racionalidades influenciando as percepes de riscos. Os riscos
alimentares tm sido destacados como um dos melhores exemplos para mostrar os limites dos
mtodos cientficos de anlise de riscos.
Entretanto, as crticas formuladas desde a cincias sociais aos mtodos dominantes
para avaliar os riscos as vezes incorrem no problema oposto; isto , numa certa idealizao do
conhecimento leigo sobre os riscos e numa impreciso da categoria leigos, como se esta se
referisse a um grupo homogneo de atores sociais.
Tambm os questionamentos parecem dirigir-se a uma verso destas anlises bastante
radical no referente a desconsiderao dos conhecimentos leigos, deixando-se de lado
1 Programa de Ps-graduao em Sociologia Poltica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, Brasil. E.mail: [email protected]
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formulaes mais light. Se tomarmos estas em conta, ainda que mantendo diferenas
substantivas, podemos observar alguma confluncia sem dvida, em parte resultado das
prprias crticas- no reconhecimento da importncia de lidar com as incertezas do
conhecimento cientfico nas anlises de risco e da necessidade de considerar ainda que em
diferentes graus- o conhecimento leigo.
Outro crucial ponto em comum o nvel de impreciso sobre como implementar estes
alertas na avaliao e manejo dos riscos. O ritmo e a dimenso que tomaram os debates em
torno aos riscos das sementes transgnicas apresentam um desafio sem precedentes
particularmente para as anlises sociais dos riscos. Sem dvida que a reao,
fundamentalmente dos consumidores europeus, expe os limites to questionados das anlises
quantitativas e tcnicas sobre os riscos. E neste sentido, pode destacar-se que a contribuio
das anlises sociais sobre os riscos permite dimensionar este debate no contexto da crise de
confiana nos critrios, regras, instituies e produo cientfica envolvidos em garantir
tambm a seguridade dos alimentos que consumimos. A reflexividade mais ampla sobre a
sade e a qualidade de vida, tem emergido no s apesar da falta de acordo cientfico sobre os
riscos, mas justamente por causa deste. As freqentes marchas e contramarchas da pesquisa
cientfica sobre a relao entre alimentos e sade acabam no s estimulando as incertezas
entre o pblico consumidor como tambm provocando dvidas em relao confiabilidade
das prprias informaes cientficas e das instituies que as emitem, acirrando os conflitos
entre o conhecimento leigo e o perito (Beardsworth e Keil, 1997). Por exemplo, qual a dieta
mais saudvel, que alimentos estimulam o cncer, as doenas do corao, etc?. O consumidor
deve navegar num mar de informaes difundidas nos meios de comunicao e transmitidas
pelos mdicos, que podem ser altamente contraditrias e tambm desmentidas em tempo
acelerado.
Como traduzir as contribuies das perspectivas que questionam os mtodos
dominantes para a anlise dos riscos de graves conseqncias (invisvies, irreversveis e
globais) em procedimentos operacionais, no s frente a um conflito entre leigos e peritos,
mas que tambm envolve influncias polticas, poder das corporaes, velocidade da mudana
tecnolgica, efeitos econmicos diversos? Neste artigo argumento que as abordagens
construtivistas sobre os riscos (Wynne, 1987, 1989, 1996; Irwin, 1995, 2001; Hanningan,
1995; Adam, 1995) e as teorias sociais como a da estruturao (Giddens, 1991, 1994 a,b), a da
sociedade global de riscos (Beck, 1992) apresentam srias limitaes nas suas propostas sobre
como lidar com os riscos de graves consequncias, fundamentalmente pela falta de respostas
precisas sobre como e por quem devem ser tomadas as decises em relao a tais riscos. Um
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avano significativo na operacionalizao de um espao de debate pblico mais democrtico
encontra-se na recente confluncia da teoria do ator- rede com as anlises scias dos riscos
(Latour, 1998, 1999 e Callon et al, 2001), abrindo novos desdobramentos para discutir o
prprio papel da teoria social na gesto dos riscos de graves conseqncias.
Leigos, peritos e incertezas nas anlises convencionais de risco
A seguridade alimentar innclui a produo primria dos alimentos (aspectos agrcolas e
veterinrios), processos industriais, estocagem, distribuio e comercializao, envolve um
amplo espectro de assuntos, como o controle dos elementos patgenos, produtos qumicos
txicos, irradiao, aditivos e danos fsicos, e temas como nutrio, qualidade dos alimentos,
rotulao e educao (National Research Council, 1998:17; European Union, White Paper on
Food Safety, 2000).
Especialmente a partir dos anos 60 os estudos tcnicos e quantitativos sobre os riscos
alimentcios passaram a serem realizados com a contribuio de vrias disciplinas:
toxicologia, epidemiologia, sade pblica, estatstica, cincias dos alimentos, microbiologia,
agronomia, medicina veterinria, tecnologia de alimentos, engenharias.
Os mtodos formulados foram adotados como centrais para os procedimentos
regulatrios sistematizados por agncias internacionais, como a FAO e a OMS, cujas
recomendaes orientam medidas a serem adotadas em diversos pases, especialmente atravs
do Codex Alimentarius -rgo subordinado a ambos organismos e destinado a formular
padres de segurana alimentar apropriados. Os critrios internacionais em relao
seguridade alimentar visam garantir a proteo dos consumidores e facilitar o comrcio
internacional de alimentos. Este foi um dos importantes resultados da Rodada de Negociaes
de Uruguai, que se aplica a todos os pases membros da OMC (Agreement on the Application
of Sanitary and Phytosanitary Measures -APS Agreement).
Esta abordagem tcnico-quantitativa considera o risco como um evento adverso, uma
atividade, um atributo fsico, com determinadas probabilidades objetivas de provocar danos, e
pode ser estimado atravs de clculos quantitativos de nveis de aceitabilidade que permitem
estabelecer standards, atravs de diversos mtodos. Os standards de segurana alimentar se
referem a nveis de riscos aceitveis. Alguns exemplos incluem: 1) standards de risco-zero:
usualmente implcitos nos nveis mnimos de tolerncia; 2)standards de equilbrio: segundo
relaes de custo-benefcio, custo-eficincia; 3) standards de limites: nos quais um risco-zero
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estipulado como aceitvel e 4) standards de procedimento: onde o nvel aceitvel de risco
determinado por um acordo, atravs de negociao ou referendum.
Chega-se a estes standards atravs da anlise de risco, que envolve trs nveis: 1)
Avaliao dos riscos: envolve tanto a identificao cientfica dos standards dos riscos
aceitveis em relao a diferente tipo de perigos alimentares quanto o estabelecimento de
procedimentos que assegurem que os riscos estejam mantidos dentro dos limites definidos por
aqueles standards. 2) Administrao dos riscos: refere-se aos processos de ajuste de polticas
pblicas para implementar os standards, para minimizar ou reduzir os riscos e selecionar
alternativas apropriadas. 3) Comunicao dos riscos: orienta o processo interativo de
intercmbio de informaes e opinies sobre os riscos entre os que estimam, administram e as
outras partes interessadas, os consumidores. Nesta comunicao dos riscos localiza-se um dos
desafios mais importantes para os peritos. Os leigos tendem a serem identificados como
receptores passivos de estmulos independentes, percebendo os riscos de forma no cientfica,
pobremente informada e irracional.
Nos anos 70 e 80 emergiram entre acadmicos, ambientalistas e setores indstrias
diversas crticas em relao a estes mtodos, tais como: falta de dados cientficos
quantitativos suficientes para relacionar a exposio a substncias qumicas e riscos sade;
divergncias graves de opinio dentro da comunidade cientfica sobre como interpretar as
evidncias e a incerteza dos resultados. Em parte, como resposta a estes questionamentos, os
mtodos quantitativos continuaram sendo desenvolvidos com recursos probabilsticos cada
vez mais sofisticados, mas tambm procurando discriminar mais acuradamente as percepes
dos leigos.
A partir dos ltimos anos da dcada de 90 dois aspectos podem destacar-se em alguns
documentos de rgos internacionais (FAO/WHO,1995; 1997) e do National Research
Council dos Estados Unidos (1996; 1998). Por um lado, afirma-se a necessidade de adoo de
um sistema de segurana alimentar mais baseado na cincia, como o programa HACCP
(Hazard Analysis Critical Control Point), que possibilita a preveno da disseminao de
elementos patgenos em todas as etapas do sistema alimentar. Por outro lado, reconhece-se a
existncia de reas de incerteza na avaliao de certo tipo de riscos alimentares 1) colocados
pelos produtos qumicos nos alimentos; 2) doenas como a vaca louca, que levam ao
reconhecimento de que existem ilhas de conhecimento num oceano de incerteza, e 3)
alimentos transgnicos. Junto com a aceitao da incerteza, nestes documentos observa-se
uma certa aproximao com idias desenvolvidas pelas anlises sociais sobre riscos: 1) a
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prpria definio de segurana alimentar passa a ser entendida como um valor social; 2)
reconhece-se a importncia de fatores sociais influenciando o papel e o uso das gestes de
risco e 3) recomenda-se que a percepo dos consumidores deve ser incorporada, no s a
nvel da comunicao, mas permeando os outros processos da anlise dos riscos (National
Research Council, 1998).
Estas so recomendaes apresentadas em relatrios encomendados a peritos, que
mostram um distanciamento em relao as vises rgidas sobre o sistema de controle dos
riscos alimentares, que se apoiavam na mera oposio entre conhecimento leigos e cientficos.
Mas, entretanto, no chegam a especificar claramente quais seriam as formas de
operacionalizar isto ou quais seriam suas implicaes prticas.
Indeterminao, incerteza e conflitos entre leigos e peritos desde a Sociologia de Riscos
O papel da incerteza na anlise dos riscos ambientais e tecnolgicos tem sido
amplamente estudada desde a perspectiva construtivista na sociologia ambiental,
desenvolvida a partir de meados dos anos 80. Sem negar a existncia de uma realidade
objetiva nem o poder causal independente dos fenmenos naturais, levanta-se a necessidade
de entender os conflitos que no s atravessam as relaes entre peritos e leigos, mas tambm
dividem a prpria comunidade cientfica, pelo fato de que a definio de um incidente de
poluio, um padro de qualidade ambiental ou um alimento seguro dependem de
julgamentos sociais em combinao com evidncias cientficas.
Um dos cientistas sociais que tem contribudo no questionamento das anlises tcnicas
B. Wynne (1987;1989;1996), que identifica fundamentalmente trs problemas que
comprometeriam significativamente o efetivo controle dos riscos:1) A falta de considerao
do papel que tem entre os leigos a confiana no desempenho, as atitudes, a abertura ou
transparncia das instituies que controlam e regulam os riscos tecnolgicos e ambientais. 2)
A sociologia ingnua assumida pelos peritos, estudando os riscos como se o mundo real
fosse equivalente ao mundo dos laboratrios, onde se controlam as operaes, inspeo,
manejo ou manuteno dos riscos, sem reconhecer-se nveis diferentes de incerteza. 3) A
falta de reconhecimento da indeterminao das prticas sociais pelos responsveis da
administrao tcnica dos riscos, que define de forma standarizada situaes de risco, no
problematizando as possibilidades de reorganizao do comportamento social para se adequar
ou no aos modelos de comportamento social implcitos nos standards.
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Sem poder aqui entrar em mais detalhes desta interpretao, nos exemplos que
apresenta Wynne tendem a enfrentar-se, por um lado, leigos geralmente com uma avaliao
acurada dos riscos, mais abertos a mudanas circunstanciais e a novas informaes, mas
vtimas da desconsiderao dos sistemas peritos - e, por outro, os peritos com dificuldades
de incorporar o conhecimento leigo e de ajustar o cientfico a novos contextos. Esta
perspectiva polarizante e mais crtica do conhecimento perito que do leigo encontrar-se em
outras anlises sociais de risco (Powell e Leiss,1997; Irwin, 1995). Faltaria uma explcita
diferenciao interna de cada um destes setores, em particular no referente ao conhecimento
leigo. De certa maneira, perde-se a contribuio de Douglas (1994) na diferenciao da
pluralidade de racionalidades do pblico leigo.
Questionar uma tendncia ao tratamento acrtico e essencialista do conhecimento leigo
implica a necessidade de diferenciar tipos de conhecimento leigo assim como reconhecer que
estes podem j ser resultado de uma hibridao de conhecimentos, com a absoro e
transformao tambm de conhecimentos peritos. O conhecimento assim emerge como
resultado de acomodaes nas situaes de interface entre diferentes mundos dos atores,
sejam leigos ou peritos (Latour, 1987). Estas situaes so definidas como pontos crticos de
interseo entre diferentes sistemas, campos ou domnios sociais onde tendem a encontrar-se
descontinuidades segundo diferenas de valores, interesses e mundos-de-vida (Arce e Long,
l992; Guivant,1997; Guivant e Miranda, 1999).
Entretanto, se as anlises tcnico-quantitativas deixam, por enquanto, s no plano das
propostas o apelo integrao da incerteza e das percepes dos consumidores nas diversas
etapas de anlises dos riscos alimentares, esta abordagem construtivista tambm carece de
respostas claras sobre como operar em relao aos diferentes tipos de riscos analisados. Isto
no diminui a sua contribuio ao aprofundar nos desdobramentos e desafios decorrentes de
ter que lidar com inevitveis potenciais fontes de risco de segunda ordem, como a ignorncia
e a indeterminao, assim como com incertezas que no necessariamente levam a futuras
certezas e tambm com certezas contraditrias, que dividem de forma irreconcilivel os
sistemas peritos. Como prope Wynne, estes aspectos deveriam situar-se no centro dos
debates sobre as implicaes sociais de uma determinada tecnologia ou substncia perigosa,
envolvendo os peritos num processo de aprendizagem social, para lidar com a
condicionalidade do conhecimento e entender as bases socio-institucionais de toda definio
dos riscos. Desta maneira, se abririam espaos para negociaes e debates sociais, sem
procurar eliminar conflitos, ambigidades ou indeterminaes dos conhecimentos e das
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prticas sociais. Resta em aberto a questo de quais leigos e quais peritos participariam das
negociaes, j que, como foi acima colocado, ambas categorias envolvem uma
heterogeneidade de atores sociais.
A sociedade de risco e a poltica da vida
Dois dos mais importantes e influentes tericos sociais contemporneos, Beck e
Giddens, consideram os riscos, em especial os ambientais e tecnolgicos de graves
conseqncias, como chaves para entender as caractersticas, os limites e transformaes do
projeto histrico da modernidade. diferena da sociedade industrial, prpria da
modernidade, a sociedade da alta modernidade enfrenta estes riscos no como meros efeitos
colaterais do progresso, mas como centrais a este e que ameaam toda forma de vida no
planeta. Sempre a humanidade conviveu com riscos, mas a especificidade dos atuais deriva da
"incerteza manufaturada". No se trata de que atualmente tenhamos uma vida de mais riscos
que antes, mas que estes so diferentes no que diz respeito as suas fontes e a sua abrangncia.
Os riscos aparecem com um carter irredutvel, sem garantias, sem certezas, com efeitos
globais, invisveis e, s vezes, irreversveis, como seria o caso dos pesticidas e outros
ingredientes qumicos nos alimentos freqentemente tratados por estes autores como
paradigmticos da sociedade de risco.
O conceito central de "sociedade de risco", primeiro proposto por Beck e logo
assumido por Giddens, aponta a que vivemos numa sociedade na qual leigos e peritos em
reas especficas devem fazer escolhas diariamente em termos de riscos, num contexto em
que a estimao dos mesmos em grande parte impondervel. Como na alta modernidade a
cincia est desencantada e a certeza de seu conhecimento aparece minada, at nas cincias
naturais, as decises cotidianas acabam permeadas de dvidas e ansiedade, frente s quais os
atores sociais se protegem atravs de certos mecanismos de adaptao.
Definindo o risco como uma forma sistemtica de tratar com os perigos e inseguranas
induzidos e introduzidos pela prpria modernizao, Beck desenvolve uma brilhante crtica
aos limites do modelo cientfico de anlise de risco, particularmente tomando como exemplo
o caso dos resduos de pesticidas, que privilegia o conhecimento obtido em laboratrio, em
pesquisas com animais, resumido em frmulas qumicas e que considera os seres humanos s
enquanto matria orgnica.
Beck e Giddens coincidem na crtica aos limites das anlises tcnicas dos riscos, e
aproximam-se ainda que de forma no explcita - das abordagens culturais ao considerar que
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as frmulas cientficas sobre estimao de riscos levam implcitas definies sociais, culturais
e polticas, envolvendo interesses de empresas, setores industriais, grupos cientficos e
profissionais. Segundo a definio tcnica dos riscos que seja formulada, se delimitar quem
vencedor ou ganhador em termos econmicos: os riscos so tambm oportunidades de
mercado. Desta maneira, questes como o que desejvel e aceitvel em termos de risco
esto impregnadas de valores. Beck se detm com mais cuidado na anlise de como os peritos
geralmente esto sob enorme presso poltica e econmica.
No referente a como podem ser implementadas as suas propostas, Giddens (1994b,
1996) oscila entre sugestes muito vagas sobre os riscos de grandes conseqncias,
recorrendo imagem de uma utopia de cooperao global e consideraes detalhadas sobre
como lidamos, individualmente, com riscos e incertezas. Neste caso, muito otimista no
papel da teoria social na formulao de prospectivas das sociedades futuras, mas tende a
deixar sem resposta clara como a sociedade da alta modernidade pode lidar com os riscos
artificialmente manufaturados.
Beck questiona os mtodos tcnicos na anlise dos riscos pelos seguintes argumentos
(Mol e Spaargarem, l993): 1) limitado alcance dos mtodos, devido a que no todas as
substncias podem ser avaliadas no seu potencial de risco, nem podem ser avaliados os efeitos
das combinaes nos nossos corpos e no meio ambiente; 2) no consideram os efeitos
acumulativos a longo prazo; 3) projetam-se resultados estudados em animais para os seres
humanos de uma forma controvertida e 4) ignoram-se os fatores sociais que podem influenciar as
peculiaridades da sensibilidade dos indivduos.
As alternativas para o controle dos riscos de graves conseqncias so menos difusas
que as apresentadas por Giddens, com um carter mais normativo. No livro Risk Society,
Beck apresentava uma forte crtica ao papel da cincia na gerao dos riscos ambientais de
graves conseqncias mas mantinha um apelo ao conhecimento cientfico como caminho de
sada para tais riscos. Pelo fato de haver limites para que os standards dos riscos potenciais
possam ser determinados exclusivamente pelo conhecimento cientfico, no s devem ser
tomadas decises, mas tambm devem ser restabelecidas as regras e as bases em que se
tomam tais decises: abrindo-se o dilogo e o processo decisrio e reconhecendo-se a
ambigidade e a ambivalncia dos processos sociais como inevitveis, sem se procurar
solues definitivas (Beck, 1994).
Neste sentido, a perspectiva construtivista seria chave para poder responder a
questes como: How, for example, is the borroed self-evidence of realistic dangers
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actually produced? Which actors, institutions, strategies and resources are decisive in its
fabrication?(Beck, 1999: 24). Desde esta perspectiva, falar da sociedade global de riscos
significa no se apoiar exclusivamente no diagnstico cientfico para lidar com os riscos
de graves conseqncias. Mas tambm Beck reconhece da posio realista que os riscos
da produo industrial so agora globais, demonstrveis por descobertas cientficas, e
exigindo polticas formuladas por instituies transnacionais.
A sntese da posio de Beck a de que os riscos existem, mas a sua transformao
depende de como so percebidos socialmente. Beck v um contedo interpretativo no que
denomina realismo reflexivo, com um poderoso potencial a ser assumido nas estratgias
de poder: Such a reflexive realism does delve into the sources which make of reality
constructsa realityfor the first time; it investigates how self-evidence is produced, how
questions are curtailed, how alternative interpretations are shut up in black boxes, and so
on (Beck, 1999: 26).
A este realismo reflexivo soma-se proposta de um construtivismo institucional,
que seria a resposta de Beck a questo de como lidar com a natureza depois de que acabou
como um mbito separado da sociedade: Natureand the destruction of nature are
institutionally produced and define (in lay-expert conflicts) within industrially
internalized nature. Their essential content correlates within institutional power to act and
to mould. Production and definition are thus two aspects of the material and symbolic
productionof nature and the destruction of nature; they refer, one might say, to
discourse coalitions within and between quite different, ultimately world-wide, action
networks(Beck, 1999: 31).
Pelo fato de haver limites para que os standards dos riscos potenciais possam ser
determinados exclusivamente pelo conhecimento cientfico, no s devem ser tomadas
decises, mas tambm devem ser restabelecidas as regras e as bases em que se tomam tais
decises: abrindo-se o dilogo e o processo decisrio e reconhecendo-se a ambigidade e
a ambivalncia dos processos sociais como inevitveis, sem se procurar solues
definitivas.
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Para isto, prope fruns de negociao, envolvendo autoridades e empresas, assim
como sindicatos, representantes polticos, etc. Estes fruns no necessariamente procurariam
o consenso, mas possibilitariam tomar medidas de precauo e preveno, integrando as
ambivalncias, mostrando quem so os ganhadores e perdedores, fazendo isto assunto
pblico, e finalmente, desta forma, melhorando as pr-condies para a ao poltica.
Alguns parmetros bsicos que devem nortear o prprio processo de negociao
dentro de uma nova poltica para enfrentar os riscos seriam (Beck, l995b, Guivant, 1998): 1)
estabelecer correlaes de standards como fundamento para o reconhecimento legal do dano,
em lugar de uma estrita prova de causa, que muito dificilmente pode ser atingida, dada a
interdependncia global da produo de riscos; 2) mudar a responsabilidade da prova, de
forma que os agentes industriais e os peritos devam passar a estar obrigados a se justificar em
pblico; 3) responder s reclamaes por segurana tcnica com responsabilidade (liability)
pelos danos; 4) reformular o princpio do poluidor-pagador criando accountabilities regionais
para setores econmicos beneficiados e prejudicados; 5) sugerir e negociar acordos sobre o
reconhecimento do dano e sobre pagamentos compensadores entre as plantas industriais de
uma regio e sua populao, e 6) instaurar comits e grupos de peritos nas reas cinzas da
poltica, cincia e indstria, incorporando representantes de diferentes disciplinas, de grupos
alternativos de peritos e de leigos.
Para estabelecer estes comits ou fruns de debate, Beck (l995a; l998) descreve com
bastante preciso os aspectos que implicariam: 1) a populao deveria deixar para trs a noo
de que os administradores e peritos sempre conhecem exatamente tudo, ou pelo menos
melhor, sobre o que recomendvel para todos. Isto implica uma desmonopolizao do
trabalho dos peritos; 2) o crculo de atores que devem participar no pode permanecer fechado
aos especialistas, mas aberto a outros atores sociais que estejam diretamente envolvidos no
problema em questo; 3) todos os participantes do frum devem aceitar que as decises
devem ter um carter aberto, uma vez tomadas para possibilitar ajustes posteriores; 4) deve-se
garantir um espao pblico para estes fruns, de forma que as negociaes no tenham lugar a
portas fechadas, entre peritos e atores chaves nos processos decisrios, passando-se a ser
aceito o carter de incontrolabilidade dos processos de debate como elemento enriquecedor;
5) as normas dos fruns - modos de discusso, protocolos, avaliaes das entrevistas, formas
de votar e aprovar as medidas - devem surgir de um acordo entre os participantes e passar a
ser autolegisladas.
Beck tambm, assim como Wynne, deixa num terreno difuso quais leigos e peritos
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estariam envolvidos nestes procedimentos que sugere, deixando implcito que, em certa
forma, o grave problema sempre a oposio entre leigos e peritos.
A teoria do ator-rede e a democracia dialgica
Uma das confluncias mais interessantes entre a teoria da sociedade de risco e a
sociologia do conhecimento cientfico tem acontecido recentemente com a teoria do ator-
rede, formulada principalmente por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, entre outros
(ver Law e Hassard, 1999), sendo uma corrente de grande influncia e capacidade de gerar
polmica no mbito da sociologia da cincia. A teoria do ator-rede passou por diversas
fases, que foram se superpondo. Inicialmente os trabalhos eram sobre as redes scio-
tcnicas formadas nos laboratrios (Latour, 1987). A seguir podemos identificar novas
pesquisas sobre processos de inovao tecnolgica e cientfica j fora dos laboratrios
(Callon, 1986). Outro momento engloba uma srie de trabalhos mais gerais sobre teoria
social, questionando os conceitos de modernidade, de agncia, e de prioridade dada aos
humanos em contraposio a pressupor-se uma simetria entre eles e os no-humanos
(hbridos, artefactos, etc) (Latour, 1994). Mais recentemente, este processo de expanso
das anlises deste grupo de pesquisadores passou a estabelecer relaes estreitas entre a
teoria do ator-rede e a sociologia ambiental, dada a existente preocupao com as relaes
entre cincias sociais e naturais, e entre os diversos tipos de atores sociais identificados.
Nesta ltima fase, alguns trabalhos dentro da teoria do ator-rede tm aberto um
dilogo com a teoria da sociedade global de riscos (Latour, 1999; Latour, 1998; Callon et
al, 2001), coincidindo no chamado a que as cincias sociais passem a ter um papel central
na organizao do debate pblico sobre os riscos assim como reconsideram o papel das
relaes entre pesquisa bsica e aplicada. Ambas abordagens tericas coincidem na
centralidade para a teoria social de mostrar como no mais possvel separar o social do
natural nem o sociolgico do cientifico. Tambm compartilham a preocupao com os
processos decisrios sobre riscos incertos, especialmente com o papel dos fruns
democrticos.
O debate pblico aberto pelos transgnicos analisado em detalhe por Callon et al
(2001), que defendem a abertura de fruns como a melhor estratgia para o processo
decisrio em relao a riscos incertos e as controvrsias scio-tcnicas, por tratar-se de
espaos abertos onde os grupos sociais podem mobilizar-se para debater a escolha de
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tcnicas. Estes fruns devem ser espaos hbridos, combinando peritos e leigos e tambm
por permitir incluir tanto temas dentro de um registro variado, como ticos, econmicos e
tcnicos. Tambm, em oposio a uma democracia delegativa, que aumentaria o
descontrole sobre os riscos incertos, os fruns abririam um espao de negociaes de
carter democrtico dialgico. Por isto, os fruns propostos por Callon et al. diferenciam-
se das pesquisas de opinio e os referendums, que no permitem diferenciar posies
divergentes, ao encobrir estas dentro do conceito de opinio pblica.
Modelos de fruns democrtico dialgico seriam os grupos focais ou de discusso,
as pesquisas de consulta pblica e os comits locais de informao e consulta. Estes
espaos pblicos deveriam oferecer igualdade de condies de acesso aos debates,
transparncia e rastreabilidade dos debates, e claridade das regras que os organizam.
A proposta de Callon et al. (2001: 215-230) avana significativamente na
preocupao com operacionalizar estes critrios, analisando os significados de diferentes
grau em que podem apresentar-se a partir de diversos exemplos tomados dos debates na
Frana em torno dos transgnicos. Tambm os autores detalham os problemas que podem
emergir nos fruns, como a sua instrumentalizao, como um simples meio de legitimizar
decises j tomadas.
Entretanto, a pesar desta maior especificidade na anlise e da rica agenda de
pesquisa que abrem, os recentes trabalhos da teoria do ator-rede mantm uma abordagem
limitada as experincias da Frana. Assim como nas anlises da sociologia ambiental e da
teoria social acima comentados, falta uma perspectiva mais abrangente e comparativa
sobre a dinmica global dos riscos de graves conseqncias.
Concluses
As anlises sociais sobre os riscos ambientais e tecnolgicos, seja desde uma
perspectiva mais especfica, seja desde uma mais terica, tm contribudo significativamente
para mostrar os limites das anlises tcnico-quantitativas destes riscos. Relatrios recentes
elaborados por peritos internacionais na anlise de riscos alimentares mostram certa
incorporao dos questionamentos, ao reconhecer a necessidade de lidar com as incertezas do
conhecimento cientfico e de incorporar as percepes e valores dos leigos no s na etapa
final de comunicao dos riscos avaliados pelos cientistas.
A dimenso atingida pelos debates sobre os riscos dos transgnicos, deslocando as
decises do plano de afirmaes cientficas inquestionadas para o terreno de uma demanda
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por uma cincia que deve explicitamente discutir valores e implicaes polticas e
econmicas, coloca desafios operacionais tanto para os peritos ligados rgos internacionais
definidores de diretrizes para a segurana alimentar quanto para cientistas sociais j altamente
crticos de uma cincia pretensamente neutra na anlise dos riscos alimentares.
Colocando os transgnicos na perspectiva de uma sociedade global de riscos, pode-se
observar que a interpretao do debate como uma simples oposio entre leigos e peritos no
se sustenta. Se nos pases europeus encontramos uma mobilizao mais generalizada entre
consumidores, no o caso do Brasil, onde certos setores peritos junto com grupos
organizados de defesa dos direitos dos consumidores e outras ONGs concentram as aes.
Estes leigos e peritos, por sua vez, podem estabelecer alianas no necessariamente produto
de acordos explcitos, mas de afinidades eletivas- com outros setores internacionais,
gerando dinmicas impremeditas nas negociaes em torno dos transgnicos.
Talvez uma das conseqncias da crise provocada pelos transgnicos seja a de ter
gerado condies mais favorveis para uma "desmonopolizao do conhecimento perito
assim como para priorizar o princpio da precauo. A desagregao operacional desta
proposta deveria considerar que tanto leigos quanto peritos so atores com racionalidades e
interesses diversos, que podem estabelecer alianas cruzadas, impuras, de formas mais ou
menos explcitas, com especificidades regionais e nacionais e tambm articulando-se cada vez
com mais facilidade no plano internacional, frente a determinados focos de risco; o que no
garante a sua permanncia frente a outros tpicos. A partir do reconhecimento desta
impureza, se poderia incorporar nas anlises de riscos este outro nvel de indeterminao
social, para estabelecer parmetros, talvez mais realistas, de como deveriam ser os debates e
as negociaes sobre tais riscos. Mas isto j num contexto onde no seja mais esperada a falsa
promessa do modelo de anlise de risco tcnico-quantitativo de que podemos esperar viver
numa sociedade de risco-zero.
Desta maneira, um dos desafios frente a esta possvel desmonopolizao do
conhecimento perito, que se coloca fundamentalmente para as anlises sociais dos riscos,
ser o de como lidar com as diferenas internas entre leigos e entre peritos, com diferentes
alianas, dentro das peculiaridades regionais e nacionais, mas articuladas na complexa
dinmica da sociedade global de riscos. As perguntas sobre as quais no temos respostas
nem tampouco estas poderiam ser expressas em frmulas pre-determinadas- referem-se a
quem decide (quais leigos, quais peritos, quem os representa) e como se decide (atravs de
que procedimentos se estabelece a participao? Fruns locais, nacionais, internacionais?
Plebiscitos?) entre os riscos ambientais e tecnolgicos aos que podemos estar expostos.
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A contribuio da teoria do ator-rede tem sido o de avanar nas respostas a estas
questes, detalhando mais o carter destes espaos pblicos e os caminhos para construir uma
democracia dialgica, como forma de fortalecer a democracia representativa. Mas ainda
permanece em aberto para a sociologia ambiental ambiental e a teoria social a formulao
integrada de uma perspectiva comparativa que considere as especificidades dos pases do
Norte e do Sul nas suas possibilidades de estabelecer estes fruns e nas diferentes relaes
que se estabelecem entre leigos e peritos.
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