Risoleta C. Pinto Pedro, "O homem da minha vida"

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Risoleta C. Pinto Pedro A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli Risoleta C. Pinto Pedro: aqui

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Risoleta C. Pinto Pedro, "o homem da minha vida" ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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Risoleta C. Pinto Pedro

A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

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O HOMEM DA MINHA VIDA...

... é um homem da rua. Vou contar-vos como cheguei aqui. Ou como

percorri este caminho religioso entre a paixão e a compaixão.

Desde muito pequena tive uma consciência aguda da precariedade da

minha condição social. Foi sempre muito claro para mim que apenas

uma circunstância, aleatória ou não, mas muito frágil, fizera com que

eu nascesse daqueles pais, e que não me tivessem trocado na

maternidade, e que eles não tivessem morrido cedo ou ficado sem

emprego, ou que o meu pai não tivesse ido parar à prisão deixando a

família na miséria, ou que uma terrível doença não me tivesse

atacado tendo como consequência que os meus pais me

abandonassem, ou que uma profunda tragédia não me tivesse

empurrado para o alcoolismo e a marginalidade, etc, etc, etc.

Bastava que tivesse havido um incêndio, uma inundação, um tremor

de terra, uma epidemia, uma guerra, uma viagem, um crime, um

suicídio, uma bancarrota, um negócio menos feliz, uma infidelidade,

um naufrágio, um golpe de estado, um assalto, um desvio de fundos,

uma condenação, um ataque de loucura, uma vingança, uma

maldição, um divórcio, uma paixão, uma promessa não cumprida,

uma assombração, um despedimento, uma desilusão, um tornado,

uma mentira ou uma terrível verdade, um equívoco qualquer, um

pequeno deslize do destino, e eu já não seria... a ilusão que pareço

ser. Seria... outra ilusão que pareceria ser.

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Quando considerava esta imensa e inumana lista de possibilidades

como rochas que a frágil embarcação que eu era conseguira

contornar sem acidentes, apercebia-me do milagre de ser, um

milagre de salvação por entre escolhos. Por isso, ainda hoje quando

olho um pobre sem abrigo de qualquer sexo ou idade, encontro aí um

eco de possibilidade de mim ou um triste Narciso inconsciente de o

ser. E penso sempre que são eles os verdadeiros alicerces do nosso

conforto. Enquanto existirem eles, não seremos nós. Quando eles

deixarem de o ser, qualquer um de nós pode tomar o seu lugar.

O mundo é assim feito: eles e nós. Eles são o alicerce, a pedra bruta

sacrificada à luz, nós a parte visível, a que, sem mérito, brilha.

Um dia destes fui abordada por um sem-abrigo. Um tipo visivelmente

idoso, visivelmente triste, visivelmente doente, visivelmente...

invisível. Desses com quem o nosso olhar se cruza sem os ver,

desses de quem o nosso olhar se desvia, um homem sombra, um

homem consciência, uma testemunha viva do nosso inconsciente, um

homem invisível.

Não sabemos que fazer com eles, nem o que pensar deles, umas

vezes damos esmola, outras nem por isso, umas vezes apiedamo-

nos, outras indignamo-nos, umas vezes ouvimo-los, outras cansamo-

nos, umas vezes olhamo-los, outras ignoramo-los. Umas vezes

enfrentamo-los, outras tememo-los. Como a parte de nós que não

queremos ver. O arquétipo daquilo que (ufff!) nos safámos de ser.

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Este homem sombra abordou-me como tantos outros. Era para

comer, para pagar a dormida, para medicamentos, o que mais me

comovesse. Estava em dia sim, eu. Tudo me comoveu. Dei-lhe mais

do que o razoável. Para comer, para a dormida, para os

medicamentos, para que se fosse embora. Estava em dia não, eu.

Não se foi embora. Estava em dia sim, ele. Ou talvez não.

Que queria mais? Não lhe chegava?!

Sobrava.

Sobrava? Então?

Não queria tanto. Não precisava.

Não precisava?! Guardasse para amanhã!

Que não podia. Roubavam-lhe. Enquanto dormia, roubavam-lhe tudo.

Não podia ter excedentes.

Pois que lhe roubassem. Era sinal de prosperidade.

E para que lhe servia isso, a prosperidade?

Eu estava quase a passar-me. Tinha-lhe dado todo o dinheiro que

trazia comigo, mas não era demasiado para mim como extravagância

de um dia. E tinha o cartão multibanco. Que ficasse com a porcaria

do dinheiro, que o desse, que o engolisse, que se limpasse a ele, que

o deitasse fora, mas que não me chateasse.

Que era demasiado... queria devolver-me o excesso. Só precisava de

um tanto.

Ora eu não podia receber dinheiro de um sem-abrigo. Não queria.

Não ficava bem. Era absurdo. Contra a lógica do mundo. Um sem-

abrigo não devolve dinheiro, não dá troco, sei lá por onde andaram

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as moedas que me queria devolver. É claro que igualmente não o sei

relativamente a todo o dinheiro que recebo das mais variadas

origens, mas é diferente. Uma pessoa... decente, uma pessoa de

bem, não aceita dinheiro de um sem-abrigo. Vai contra o estatuto,

contra a dignidade, contra a lógica, contra a decência, contra tudo,

pronto. Tentei explicar-lhe. Não tentou entender. Não consegui que

compreendesse, ou que, pelo menos, reconhecesse. Enfim, não o

demovi.

Irritada, virei-lhe as costas. Segui o meu caminho. Veio atrás de

mim. Ignorei-o. Persistiu. Parei. Insistiu. Aceitei. Sorriu. Eu nunca

tinha recebido dinheiro de um sem-abrigo.

Senti-me humilhada. Fiquei especada com o dinheiro na mão,

durante algum tempo; depois guardei-o rapidamente no bolso, com

medo que alguém visse. Sentia-me um excedente, tal como o

dinheiro que acabara de receber.

Nunca ninguém me dera uma tão silenciosa e eloquente lição acerca

da minha verdadeira natureza: um miserável e inútil excedente cheio

de ideias feitas acerca das ilusões do ser.

Comecei a estar atenta. Passei a encontrar o sem-abrigo nos mais

diversos sítios. Ele era omnipresente. Umas vezes mais novo, outras

mais velho, umas mais esfarrapado, outras menos, às vezes mais

esfomeado, às vezes menos, mas sempre o mesmo ar, o mesmo

olhar, a mesma intransigente segurança interior. Um dia encontrei-o

num parque de estacionamento ao pé da Sé (*). Fazia de

arrumador. Dei-lhe uma moeda prudente. Agora tinha sempre muito

cuidado com a generosidade. Aprendi a dosear. Desta vez não me

deu troco.

Daí a pouco:

- Então, já de volta?

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- Pois, a Sé está fechada.

- Ah! Não gosto nada de receber uma moeda assim...

Recomeçamos..., pensei.

Agora vai devolver-me a porcaria da moeda!

Estava enganada. Este homem conseguia sempre surpreender-me:

- Olhe, ali a igreja de Santo António está aberta e até há

missa a esta hora. Por que não vai até lá?

Confesso que não me apetecia nada ir à Igreja de Santo António. O

meu espaço é a Sé. Sempre foi a Sé. A Sé é a estética, a história, o

silêncio e a pedra. É isso que lá vou fazer: parar um bocadinho o

tempo, descansar de mim, ouvir o silêncio. Não me apetecia nada ir à

igreja de Santo António, muito menos à missa. Mas lá fui. Antes que

ele me devolvesse a moeda.

A missa já tinha acabado. Felizmente. O Santo António lá estava com

um ar desafiador como o do meu sem-abrigo.

- Por que me olhas assim? Por nunca te ter pedido nada? Não

sou de pedir, devias sabê-lo. Se quiseres dás, se não quiseres,

paciência. Pára de me olhares dessa maneira. Eu já sei que não

aprovas esta minha leveza relativamente ao amor. És homem

de casamentos, estabilidade. Mas sou assim, que queres? Cada

um é como pode. Se me aparecer o homem da minha vida,

logo se vê... Olha, já agora, se quiseres tentar... não recusarei.

Não perdes nada. E conquistavas-me. Definitivamente.

Bom, o Santo António já tem uma certa idade, o ouvido com certeza

já lhe vai faltando, deve ter tomado esta minha conversa como uma

oração. Ou um pedido. Ou uma promessa.

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Quando voltei ao parque lá estava o meu sem-abrigo todo contente

por ter merecido a moeda que recebera. Mais céptica estava eu

acerca do merecimento.

Não o vi durante uns tempos.

Voltei a encontrá-lo a meio de uma peregrinação. Levava uma

mochila às costas, como de costume. Ao princípio tive dúvidas que

fosse ele. Porque não cheirava mal, era mais jovem, muito jovem

mesmo, e não me pediu nada nem tentou devolver-me nada.

Mas tinha o mesmo olhar doce e digno e firme e humano e desafiador

e irónico e inquietante e pacificador e inteligente. E... amoroso.

Era ele, sem dúvida. Pegou-me na mão e seguimos o caminho juntos.

Nunca mais nos separámos. É o homem da minha vida.

Risoleta C. Pinto Pedro

(*) Este episódio do arrumador foi em parte inspirado num outro que

faz parte de uma das crónicas da série “Quarta- Crescente” que fiz

para o Programa DESPERTAR DOS MÚSICOS na Antena 2 entre

Janeiro e Setembro de 2003, crónica essa por sua vez parcialmente

inspirada num episódio real.