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EU TAMBÉM SOU LOLITA Por Aloisio Villar (Rio de Janeiro, RJ) (2018) 1

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EU TAMBM SOU LOLITA

Por Aloisio Villar

(Rio de Janeiro, RJ)

(2018)

PERSONAGEM

LOLITA

POCA: ATUAL; LOCAL DO DRAMA: RIO DE JANEIRO

(Cena vazia onde tem apenas uma cadeira ou sof, tambm pode ter um cabideiro com adereos que Lolita usar durante a pea. Ela entra em cena ao telefone, parece aflita)

LOLITA (Ao telefone) Essa entrega j est atrasada eu tenho que sair daqui a pouco. Aonde est seu funcionrio? No trnsito, ai meu Deus!! Mas tem uma noo de aonde exatamente no trnsito? Ok, no to longe daqui, mas com trnsito pode levar quase uma hora..Sim, evidente que j testei, chegar e colocar..Mas olha, eu quero desconto por esse transtorno!! timo, fico aguardando e por favor, no sei como, mas deem um jeito de apressar essa entrega e me avisem quando estiver chegando, obrigada.

(Desliga e comea a falar sozinha enquanto digita novamente no telefone)

LOLITA Maldito trnsito dessa cidade. As pessoas costumam dizer que o pior trnsito do Brasil de So Paulo, mas o trnsito do Rio est cada vez pior. Mas tambm!! Eu nunca vi povo para gostar tanto de carro, usam carro at para ir na padaria da esquina. Qualquer cidade decente existe a carona solidria, vo trs, quatro em um carro e aqui cada um sozinho no seu, fora que ningum usa transporte pblico. Saco isso!!

(Ao telefone)

LOLITA Oi, a entrega vai demorar um pouco. Trnsito n, o que mais poderia ser nessa cidade? Trs coisas so caractersticas do Rio de Janeiro trnsito, calor e tiroteio, boa parte das vezes temos que encarar os trs juntos. Imagine pra mim que sou gorda? Suo pra cacete nesse calor desgraado e por ser maior viro alvo preferencial de bala perdida. A bala sai da pistola zunindo e diz Olha a gorda ali!! Mais fcil de acertar!!. Sim, s fazendo piada numa hora dessas, mas enfim, te aviso quando estiver mais prximo e voc vem t? Beijos.

(Desliga)

LOLITA (Olhando para cima e contando) Deixa ver, todos os cs esto aqui? Carteira, celular, chave de casa, carto, cigarro e camisinha? Sim, esto..Camisinha principalmente porque to to nervosa que quero dar muito essa noite, ele que no se atreva a me comer muito bem hoje e..

(Olha para o pblico e d um sorriso sem graa)

LOLITA Oi, no tinha reparado que tinha companhia. Tudo bem com vocs? Foram bem recebidos? Esto confortveis? Tiveram desconto na entrada? No?? Que bom, porque preciso desse dinheiro.

(Pega a cadeira e se senta olhando o pblico)

LOLITA No conheo vocs e vocs tambm nunca me viram mais gorda..Pois , no sei vocs repararam, mas eu sou gorda (Levanta e faz poses, senta novamente). Quer dizer, gorda eu era quando tinha cinco quilos a menos, agora estou quase uma bola imensa, mas acreditem, esses termos so muito melhores que aquele termo babaca..(Fala mais baixinho) Obesa...

(Se levanta)

LOLITA Pois , na boa, no sei vocs, mas eu acho que a palavra em portugus mais escrota criada at hoje obesa. Eu j me sinto enorme de gorda, se algum me chama de obesa eu sinto como se tivesse engordado trinta quilos s na pronncia. Eu decido emagrecer, boto roupa de ginstica, ando no calado, fao crossfit, suo, como salada com suco de tomate, sento um pouco pra descansar e algum me chama de obesa pronto, sinto como se tivesse engordado tudo de novo, entro em depresso e s uma pizza portuguesa gigante acompanhando uma brotinho de chocolate e uma coca cola so capazes de me animar e querer prosseguir nessa vida obesa e infeliz. Obeso uma merda, obeso uma sacanagem com o gordo. Qual o problema de chamar gordo de gordo? Por que tem que criar nomenclaturas rspidas como obeso ou tentar suavizar com fofinha? Eu sou l travesseiro pra ser fofinha? Eu sou toalha? S faltam me chamar de fofinha e felpuda!! Bem, felpuda posso ser porque sou macia, lisinha e sempre me raspo. Outra coisa babaca chamar gordo de forte. (Imita voz de algum falando) Voc t forte hein?. No minha filha, forte o Schwarzenegger, eu sou gorda mesmo!!

(Entra Physical de Olivia Newton John, ela faz exerccios de alongamento e continua falando)

LOLITA Vamos l!! Malhar ficar gostosa!! Entrar no padro de beleza!!Brasileiro gosta de peito, bundo, mas o padro magra, esqueltica, cara de cadver. Bulimia? Anorexia? No importa. Fique doente, morra jovem e seja um cadver leve!! Vamos l!! Malhando!! Malhando!! Um!! Dois!! Um!! Dois!! Aff..

(Faz cara de cansada, se agacha botando as mos no joelho e a msica para)

LOLITA Cansei..No sou nada disso, nunca fui. Nunca estive no dito padro de beleza, longe disso. Eu estou com a maioria que segundo pesquisas est acima do peso. Mas se pra estar acima fao misria no. Sempre estive bem acima do peso. Lembrei de uma expresso mais filha da puta que obeso, obesidade mrbida. O mdico chega para voc e fala (Imposta a voz como um mdico) Voc est com obesidade mrbida. Pronto, puta que pariu, voc se sente com o p na cova, pior, com o p na cova e com conscincia pesada pensando nas pessoas que vo carregar seu caixo obeso. Fique doente, morra jovem e seja um cadver pesado.

(Senta)

LOLITA Mas no sou apenas um rosto bonito cheio de banhas e tecido adiposo. Muita gente no acredita, mas um gordo tem corao, sentimentos e uma vida por trs das camadas de gordura (olha o relgio) a entrega vai demorar mesmo, acho que tenho tempo para me apresentar para vocs.

(Sonoplastia bota uma msica, Lolita se levanta e uma voz diz Voc est no Esta a sua vida)

LOLITA (Fingindo emocionada) Ai que emoo..Sempre quis estar nesse quadro (Volta ao normal) Levo jeito para atriz n? Quem sabe um dia fao uma novela? A mocinha? Nem pensar. Voc j viu protagonista de novela gorda? Nunca n? Negros at pouco tempo no vamos tambm, no mximo faziam papis de escravos e empregados, agora tem at uns protagonistas apesar de outro dia fazerem uma novela que se passava na Bahia e s tinha brancos. Ainda tem gente que diz que no tem racismo no Brasil..Mas enfim, os negros a frceps conquistam seu lugar, ns estamos muito preocupados com hambrguer e milk shake para isso. Gordo em novela s para ser o carinha engraado ou a amiga da mocinha. Fui para outros ramos artsticos, mas novela? No, no mximo faria programa de humor.

(Anda um pouco pelo palco)

LOLITA Estou conversando h uns minutos com vocs e nem me apresentei n? Meu nome Lolita. Sim, o nome realmente Lolita, no apelido para Lola, Dolores, nem algo parecido. Tambm no sou descendente de espanhis, minha famlia tijucana mesmo. Me chamo Lolita Quintanilha Alves. Voc mais novo no deve ter a mnima ideia de por que Lolita, mas o mais velho j deve imaginar. Sim, por isso mesmo.

(Toca uma msica suave, ela dana um pouco)

LOLITA (Enquanto dana) Minha me, dona Iracema, sempre foi apaixonada por literatura e foi da que me apaixonei por livros e artes em geral. Lolita um romance mundialmente conhecido feito em 1955 pelo russo Vladimir Nabokov e relata o romance entre um professor universitrio de meia idade e sua enteada de 12 anos. Hoje seria considerado pedofilia, mas na poca era arte e at onde soube livros no foram queimados nem proibidos. Eram tempos mais modernos que o atual.

(Para de danar)

LOLITA Lolita desde ento virou sinnimo de ninfetinha atraente, que seduz os homens mais velhos. Ironias do destino. Ironia eu ter nome de um grande personagem literato assim como minha me Iracema xar da personagem principal de um romance de Jos de Alencar. Ironia maior justo eu, a gordinha sempre deixada de lado, zoada, ter o mesmo nome de um smbolo sexual adolescente.

(Senta)

LOLITA Nem sempre foi assim. Por incrvel que parea fui magra um dia. Nasci magra e fui assim at meus cinco anos de idade. Lembro vagamente desse tempo, tenho algumas fotos. Mas na minha infncia achavam que criana tinha que ser gordinha. Minha av reclamava com minha me que eu era muito magra e tinha que engordar. Disse para minha me me dar abridor de apetite e assim o meu abriu e nunca mais fechou. Com cinco anos era uma menina magrinha, com seis gordinhas e nunca mais deixei de ser..

(Levanta e anda um pouco pelo palco)

LOLITA Disse que minha famlia tijucana e de fato , mas eu sou gacha. Pois , gacha de Santa Maria. Vocs conhecem Santa Maria? Uma terra linda, hospitaleira que infelizmente ficou mais conhecida devido a tragdia da Boate Kiss. Sou de l por acidente porque meu pais so tijucanos, para quem no sabe tijucano o nascido no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, mas meu pai era cabo do exrcito e naquela poca estava servindo na cidade gacha,. Fiquei l apenas at os seis meses de vida e meu pai foi transferido novamente para o Rio de Janeiro.

Uma famlia feliz sem dvidas. Minha me, como eu j disse, adorava literatura, sempre me dava livros, revistinhas da turma da Mnica e me levava ao cinema. Sou da gerao anos 80 ento j viu, fzaa de De volta para o futuro, Curtindo a vida adoidado, Clube dos cinco, Garota de rosa shocking, Dirty Dancing..Sonhava em seu a mocinha de Dirty Dancing com um gal bem bonito, um Patrick Swayze me tirando para danar.

(Toca a msica do filme Time of my life, ela dana)

LOLITA Mesmo sendo gorda sempre tive jeito para dana, sempre amei danar. Dana vitamina para alma, tira todo nossos stress, tristezas, derrotas do dia a dia, sempre foi uma forma de extravasar pra mim. E eu era apaixonada pelo Patrick Swayze. Tantas e tantas vezes imaginei o Patrick me tirando pra danar. Eu correndo e pulando do palco nos braos dele. No mundo dos sonhos no somos feios, bonitos, brancos, negros, gordos, magros, podemos ser o que quisermos, viver o que quisermos e eu fui a namorada do Patrick Swayze!! Tive alguns flertes com Robby Rosa, mas meu amor sempre foi Patrick Swayze.

(Msica para)

LOLITA Fiquei muito triste quando ele morreu. To jovem..

(Senta)

LOLITA Quando ele morreu terminou meu sonho de um dia conhec-lo. Fiquei triste por ele, no pelo meu sonho no realizado porque se tem uma coisa que aprendi desde pequena que a maioria dos nossos sonhos nunca iro se realizar. O ser humano nasceu para o fracasso, para as derrotas. Preste ateno na sua vida, a maioria das coisas que planejou fazer deram errado no foi? Voc exatamente aquilo que planejou ser quando criana? Aposto que no, mas nem sempre isso ruim. Penso que fracassar, termos sonhos no realizados nos faz valorizar nossas vitrias e acredite, elas ocorrem.

(Levanta)

LOLITA Mas confesso que difcil essas vitrias virem para uma criana e adolescente gorda. Robby Rosa nunca cantou pra mim, Patrick Swayze nunca me tirou para danar e nessa fase da minha vida nunca ningum cantou para mim e muito menos me tirou para danar. Nas festinhas eu ficava no canto com as meninas.

(Entra numa catarse como se vivesse aquilo de novo)

LOLITA Vestido branco, fita rosa na cabea que mame fez pra mim. Eu sentava sorrindo, empolgada nos bailinhos e no comeo tocava as msicas agitadas como Michael Jackson. Depois vinham as romnticas at que entrava Menudos. Nessa hora os meninos se aproximavam e tiravam as meninas para danar, uma a uma (Comea a cantar) If you not here, by my side (Toca a msica) Todas as meninas danando com rosto colado, felizes, alguma dando selinho na boca e eu..

(Msica fica mais alta e ela se aproxima da boca de cena)

LOLITA E eu continuava l sentada. A nica que no foi tirada para danar. Todas as meninas danando menos eu. Patrick Swayze no me tirou para danar. Pedrinho tambm no me tirou para danar. Pedrinho era o menino que eu gostava com 11 aos de idade. Ele preferiu tirar a Verena, minha melhor amiga e na hora do refro deu um beijo nela.

(Msica aumenta)

LOLITA Por dentro eu chorava, mas no rosto sempre um sorriso. No podia demonstrar aos outros minha tristeza, seria sinal de fraqueza. Eu nem podia culpar o Pedrinho at porque nunca contei que gostava dele. Ser que ele est a no meio de vocs hoje? Se tiver vai ficar sabendo. Eu gostava de voc Pedrinho!! Mas voc nunca olharia pra menina gorda que sentava perto da professora n? A chupeta de baleia, cotonete de elefante, Wilza Carla da rua Afonso Pena ou outros apelidos que sua turma de amigos colocou em mim e voc ficava quieto. No ria, mas tambm no me defendia. S o meu dirio soube que eu gostava de voc. Agora vocs tambm sabem..Chega de Menudos!!

(Msica para)

LOLITA Peguei raiva de Menudos depois daquele bailinho. Comecei a gostar mais do Domin.

(Anda pelo palco)

LOLITA Negro sempre foi discriminado, se rebelou contra isso e hoje em dia racismo crime. Eu lembro quando era criana que era normalssimo contar piadas de negros, hoje em dia ningum louco de contar, ou era, porque esse pas est cada vez mais esquisito. Gays so muito discriminados, morrem todos os dias nas mos do preconceito, mas homofobia hoje em dia se no crime algo que debatido. Mulheres hoje tem vrias leis lhe protegendo. O fiu fiu, que at por um tempo sonhei ganhar e nunca recebi na rua, hoje pode ser considerado assdio e existe nome para o crime contra a mulher por ela ser mulher, o feminicdio. Todas as minorias discriminadas se organizaram, lutaram e hoje no legal zoar com elas. E os gordos? Gordo tambm sofre discriminao, preconceitos, zoado, sofre bullying, pessoas se matam por serem gordas e no aguentarem as piadas, discriminaes, gordo colocado para baixo e sua autoestima vai para o ralo prejudicando o resto de sua vida. Quantas e quantas vezes gordos no sofrem piadas, so zoados ou mesmo ofendidos na rua por desconhecidos apenas por serem gordos? Humilhados na escola quando crianas, adolescentes.. Quem gordo a? (Pergunta para o pblico) quando voc senta em um banco no nibus sentam logo no mesmo banco que voc ou normalmente voc um dos ltimos a ter algum sentando ao lado? Todo mundo faz piada de gordo e no se pode achar ruim isso porque ser mimizento, querer tolher a arte, o humor. Chamam gordo de vagabundo, sem vergonha por estar comendo, por ser gordo sendo que hoje em dia todo mundo j sabe que a tal palavra escrota, obesidade, doena. A compulso por comer uma doena como alcoolismo, o vcio no tabagismo, drogas, mas com uma diferena. Com fora de vontade voc pode nunca mais fumar, beber, usar drogas..Mas se voc nunca mais comer morre. No d para no consumir mais a sua droga. Comemos quando estamos felizes, comemos quando estamos tristes, comemos para celebrar, comemos entediados, comemos, comemos, comemos, comemos e no fim engordamos e falamos que temos problema de glndulas.

(Toca whisky a go go, ela dana)

LOLITA Wisky a go go!! Eu amo Wisky a go go!! (Canta) Eu perguntava Do you wanna dance!! Te abraava Do you wanna dance!! (Falando) Eu sou uma das maiores fs do Roupa Nova, j fui em todos os lugares possveis assistir show deles e essa paixo pelo Roupa Nova peguei da minha me que me acordava com Roupa Nova no ltimo volume da vitrola e mesa farta de caf da manh. Po, queijo, presunto, manteiga, suco, caf, ma..Ma eu dispensava, o resto mandava pra dentro. Um po? ruim hein, pelo menos trs ao som de Roupa Nova

(Msica para)

LOLITA Minha me sempre foi uma pessoa muito alegre. Gostava de danar, ir na gafieira, desfilava na Mangueira..Meu pai era um cara mais srio. Era amvel comigo o Sargento Alves. Chegava em casa, dava um beijo em minha testa, sentava na sala e abria o jornal para ler as ltimas notcias de poltica e do Flamengo s parando para ver o Jornal Nacional. Depois jantvamos enquanto passava a novela das oito. Meu pai fingia que no gostava de novelas, mas era noveleiro sim. Gostava de imitar Sinhozinho Malta mexendo uma pulseira imaginria e dizendo To certo ou to errado?, tambm foi o nico l em casa que acertou o assassino da Odete Roitman. Eu era filha nica, a filha mimada do casal e ramos uma famlia feliz. Pelo menos eu achava.

(Entra a msica Certo algum de Lulu Santos)

LOLITA (Cantando) Quando um certo algum, cruzou o teu caminho e te mudou a direo (Falando) Acontece n? Ningum est livre disso. Uma das coisas mais bacanas da vida a imprevisibilidade, no saber o que ir acontecer com voc na prxima esquina. Pode ser uma notcia ruim? Pode, mas que graa seria a vida se fosse composta por um roteiro que j conhecssemos de antemo? Deus o melhor dramaturgo que j existiu. Sabe fazer reviravoltas, surpreender, prender o pblico como ningum e felizes so aqueles que sabem utilizar esse roteiro para fazer grande atuao, para viver.

(Msica para)

LOLITA As mulheres de minha famlia so conhecidas por serem impulsivas, pelos arroubos. S atuamos nessa pea uma vez, sem ensaios e sem uma segunda atuao para corrigir os erros da primeira e acho, sinceramente, que devemos sempre, at nosso ltimo suspiro tentar desesperadamente sermos felizes. Minha me fez isso, no sei se agiu certo ou no, mas fez.

(Senta)

LOLITA Um dia acordei e estranhei no ouvir o barulho de msica. Desci as escadas e estranhei no ver o caf da manh. Minha barriga j roncava quando percebi meu pai sentado na cadeira. Perguntei pela minha me e resmunguei minha fome..Ele nada respondeu. Insisti e em um rompante meu pai disse que precisava sair. Se levantou e saiu pela porta da frente.

Nada entendi quando vi um bilhete sobre a mesa. Peguei para ler e cada palavra lida era como um soco no estmago. Cada pargrafo encerrava a minha infncia e me apresentava vida adulta. Naquele bilhete minha me simplesmente contava ao meu pai que se apaixonara por outro e estava fugindo com ele.

..Minha me simplesmente se apaixonou e fugiu de casa. Li aquele bilhete e sentei catatnica, no sabia o que pensar, alis, pensava nada. Fiquei ali sentada olhando para o nada quando meu pai voltou, disse que iria fazer o almoo e foi para a cozinha.

(Se levanta e anda)

LOLITA Olhava meu pai quieto, srio, com olhar triste fazendo o almoo e conseguia dizer nada. Tinha vontade de perguntar se ele estava bem, mas que idiota eu sou, evidente que no estava. Quis perguntar se precisava de algo ou simplesmente lhe dar um abrao e ficar em silncio, mas no consegui fazer nada. Minha me foi em busca da felicidade dela pagando um preo alto. Me deixou para trs, deixou seu lar para trs, meu pai para trs sem pensar em sua felicidade, sua vida e aquilo me deixou com muita raiva. (Com raiva) Ela no tinha direito de fazer isso com ele!! Comigo!! (Mudando o tom) No tinha? Mas quem sou eu para julgar algum? Quem sou eu para julgar o que se passa no corao de algum? Quem sou eu para invadir a mente de algum que se deita para dormir e ler seus pensamentos junto ao travesseiro? Ningum perfeito meus amigos, todos ns temos defeitos e se minha me errou ou no serei eu a julgar? No posso. Posso sim lamentar minha famlia desfeita, mas no poderia desejar a ela algo diferente que felicidade. Era minha me n?

(Parada na boca de cena)

LOLITA Aquilo no fez bem ao meu pai. Ele se fechou ainda mais em um mundinho prprio. Cada vez mais srio, introspectivo comeou a beber. Bebia cada vez mais e dava pena ver meu pai naquele estado. Virei a dona da casa, a chefe da famlia e cuidava de nosso lar ao mesmo tempo em que cuidava de meu pai. No foram poucas as vezes que buscava meu pai bbado em bar ou dormindo na calada.

(Senta)

LOLITA Meu pai comeou a sofrer de problemas maiores, ter atitudes estranhas. Pessoas prximas comearam a falar que estava ficando louco. Sargento Alves alternava momentos de sanidade onde at conseguia sorrir para mim e perguntar por meus estudos com outros que sei l, estranho demais (Se emociona). Um dia estava em casa quando comearam a gritar meu nome. Fui janela perguntar o que ocorria e me disseram que meu pai estava pelado na praa. Fui at l com um roupo na mo e encontrei meu pai pelado cantando marchinhas de carnaval com as crianas rindo dele. Algumas daquelas crianas estudavam comigo, eram da turma que me botava apelidos. Com toda dor e amor possveis cheguei em meu pai, coloquei o roupo nele e o levei pra casa. Meu pai no estava bbado, no tinha ingerido nem uma gota de lcool. Ele simplesmente desistira da sanidade, desistiu da racionalidade, desistiu de pensar que a mulher da vida dele lhe largara por outro atravs de um bilhete nem lhe dando chance de tentar reverter aquela situao. Sem chance de despedida.

(Comea a tocar Balada de um louco)

LOLITA Meu pai foi internado no Pinel, um famoso manicmio aqui do Rio de Janeiro e eu ia visita-lo de vez em quando, Ele alternava momentos de completa loucura com outros onde com ternura perguntava como eu estava e se estava me alimentando direito. Eu estava com tios que ofereceram a casa para que eu ficasse temporariamente at que a situao fosse resolvida. Meu pai ficou dois meses no Pinel e teve que tambm ir para a casa de meus tios porque ficou doente. Ningum conseguia identificar a doena, os mdicos faziam exames e mais exames e no conseguiam descobrir o que ele tinha. Meu pai totalmente insano perdeu a fora das pernas e depois dos braos no conseguindo mais levantar da cama. Depois de algum tempo perdeu a viso e depois a fala. Fo perdendo cada sentido aos poucos, mas antes de perder a fala ainda comentou Voc parece com sua me Lolita.

(Msica para e ela se levanta)

LOLITA Foi o ltimo momento de sanidade de meu pai comigo. Depois de um tempo ele no acordava mais e sua respirao cada vez mais fraquinha parecendo sofrer muito. Nenhum de ns conseguia entender aquilo, nicos barulhos que ele fazia eram grunhidos de dor. At que..

(Senta de novo)

LOLITA Um dia estava no quarto dele pegando sua mo. Mo gelada, fraca, ele com os olhos fechados respirava mal e soltava grunhidos de dor. Meu tio entrou e ao meu lado apenas comentou Ele est sofrendo muito, no pode ficar assim. Perguntei o que poderamos fazer e ele pediu que eu fechasse os olhos. Fechei, mas nem tanto deixando um pouco aberto. Meu tio pegou o nariz de meu pai impedindo que respirasse.

Eu fiquei sem reao. No sabia se gritava, pedia socorro, pedia para que ele parasse com aquilo..Fiz nada..Meu tio no segurou o nariz de meu pai muito tempo. Meu pai deu um ltimo grunhido e parou. Estava morto. Meu tio virou para mim e disse Acredite, ele estava sofrendo muito. Logo depois saiu do quarto indo comunicar a morte de meu pai. Eu me aproximei de seu corpo e botei a cabea sobre seu peito ficando em silncio por um bom tempo. Ali entendi a doena que meu pai e teve e de que ele morreu. Meu pai morreu de amor.

(Toca I will follow him e ela dana)

LOLITA Me sentindo no filme Mudana de hbito, adoro esse filme. A vida teve tinha que continuar e para mim continuou. Meus tios alegaram que no tinham como cuidar de mim e me colocaram em um colgio interno. Para vocs verem, no fim dos anos 80 ainda existia esse hbito de colocar em colgio interno. Tive que ir, mas no posso dizer que foi a melhor fase da minha vida (Msica para). Perdi meu pai para o amor, minha me para a vida e fiquei sozinha, me sentia sozinha. No existe solido maior que aquela que voc passa acompanhada e mesmo com tantas meninas l, com as freiras nunca me senti to sozinha, to abandonada quanto naquele perodo. Perdi a conta de quantas noites eu chorava baixinho na minha cama com saudades de meu pai, saudades de minha me mesmo com toda mgoa que eu carregava dela. Eu sempre gostei da chuva, via a chuva como minha companheira, uma forma de tirar as impurezas da terra, de ns, uma limpeza e eu torcia para chover naquelas noites no colgio interno. Quando chovia eu encostava meu rosto na janela e tentava sentir a chuva tocando em minha face mesmo tendo o vidro da janela nos separando. Teve um tempo que a chuva se tornou minha melhor amiga e eu pedia que ela trouxesse minha me de volta para mim. At que um dia trouxe.

Trouxe em uma manh de inverno em que eu sentia muito frio. Varria um dos quartos quando a freira me chamou dizendo que eu tinha visitas. Estranhei porque nunca recebera visitas naquele colgio e imaginei ser meus tios. Mas estava ela l. Mais bonita, parecia que tinha remoado. O amor fez bem a dona Iracema. Minha me abriu os braos e emocionada gritou Lolita!!. Eu apenas consegui me aproximar sem pronunciar nenhuma frase e nesse momento ela me abraou sem ser correspondida.

(Senta)

LOLITA Minha me perguntou como eu estava e apenas respondi bem. Fiquei monossilbica, no tinha muito o que falar. Minha me me fez algumas perguntas, falou um pouco e eu quando no dava respostas curtas apenas balanava a cabea. Chegou um momento em que ela levantou.

(Levanta)

LOLITA Se levantou, virou para mim e disse Acho que voc espera que eu te pea perdo e talvez at tenha que pedir mesmo, talvez isso fosse o certo. Talvez, talvez..Sabe qual o grande problema e o grande barato dessa vida Lolita? O talvez porque por mais que a gente viva, por mais experincias que a gente passe nunca teremos certeza de nada. Nossa vida sempre passa por cruzamentos onde no temos a mnima certeza de qual o caminho certo. Talvez seja o da direita? Talvez o da direita? Talvez. No sei, mas o que no podemos ficar paradas no cruzamento porque seno a vida vem, buzina e te atropela. Viver correr ricos, apostar no talvez porque a nica certeza que temos que iremos morrer um dia e a iremos nos arrepender de todos os talvez que no transformamos em quem sabe e no arriscamos. Talvez eu conseguisse ser feliz indo embora como fiz. Com certeza no estava antes de decidir ir.

Nisso eu perguntei para ela se era feliz, minha me virou de costas, ficou quieta por alguns segundos, virou-se para mim e sorrindo respondeu Talvez.

Voltou a sentar, pegou a minha mo e disse que iria me visitar sempre e que eu no precisava falar nesses encontros. Ela queria apenas mostrar que estava comigo e que um dia teria condies de me tirar dali para morar com ela. Deu um sorriso, acarinhou meu cabelo e levantou partindo.

(Anda)

LOLITA Cumpriu o prometido e continuou me visitando. Eu ficava em silncio enquanto ela contava sobre sua vida, seu novo relacionamento e o quanto estavam ralando para melhorar de vida e me levar. Em determinado dia reclamou que levara leite condensado para mim e no deixaram que entrasse com ele. O colgio era rigoroso em alguns aspectos, rigoroso em exagero poderia assim dizer e no deixava que entrasse alimento de fora. Combinou comigo ento que toda tera de manh deixaria um pote de leite condensado em cima do muro atrs do colgio. Assim fez na tera seguinte. Peguei a escada, subi o muro e o pote estava l. Desci com o mesmo por baixo da minha blusa, corri para o banheiro e devorei o pote. Foi meu dia mais feliz naquele colgio, o dia mais feliz em muito tempo. Gordo fica feliz com muito pouco, basta comida para isso.

(Para)

LOLITA Assim foram por alguns meses, uma traquinagem deliciosa. Ela fazia isso nas teras e nas quintas ia me visitar. Esse nosso segredo acabava que aos poucos derrubava a parede que existia entre ns e eu j conseguia pronunciar algumas palavras, conversar mais um pouco mesmo que a gente no entrasse no assunto sobre meu pai e sua fuga. Era um caminho, eu sabia que aos poucos iriamos acabar nos entendendo. At que..

(Senta)

LOLITA Teve uma tera que ela no apareceu. Subi o muro e no encontrei o leite condensado. Na quinta seguinte ela no apareceu, na outra tera novamente o leite no estava l, nem ela na quinta. Minha me no apareceu mais nem o leite condensado. Eu no sabia o que acontecera com minha me, se algo grave tinha ocorrido ou mesmo morrido. A falta de informaes me assustava, sua ausncia me entristecia. Voltei a me sentir sozinha tendo apenas a janela e s vezes a chuva como amiga.

(Respira e continua)

LOLITA Fiz amizades no colgio, at que tinha umas meninas legais. Uma delas era a Bianca. Da minha idade mais ou menos, magrinha, tipo de mulher que homem gosta, quer dizer, homem gosta de todos os tipos de mulheres, mas prefere as magras. Eu, ela e mais algumas meninas fizemos uma turma legal no colgio. Meu primeiro beijo dei nela. Pois , no foi de lngua, nada demais, um selinho, mas deu vontade e dei o beijo. Essa outra particularidade minha. Sou como Renato Russo, gosto de meninos e meninas.

(Levanta)

LOLITA Eu tinha treze anos, era virada dos anos 80 para os 90 e queria viver, aproveitar minha adolescncia e no ficar enfurnada em um colgio interno onde minha me no me visitava mais e nenhum familiar aparecia para ver como eu estava, para me buscar para passar fim de semana ou alguma data comemorativa. Pagavam o colgio, mas nada de afeto ou algum tipo de carinho. Minha famlia virou essas amigas e elas estavam como eu, querendo viver, querendo experimentar a vida.

(Toca New Kids On The Block, ela dana)

LOLITA Minha nova paixo era New Kids On The Block. Tambm curtia Guns, REM, Legio, eu sabia toda Faroeste Caboclo de cor. Conseguamos fitas com esses artistas de forma ilegal. Uma menina recebia de familiares e ouvamos juntas. Digo de forma ilegal porque alm de leite condensado no podamos ouvir msica do demnio. Aquele colgio estava mais para priso.

(Msica para)

LOLITA Ficvamos escondidas ouvindo esses artistas e sonhando em ir a um show, barzinho, boate, qualquer coisa que lembrasse que ramos adolescentes. Bianca no era fcil, reuniu a gente e props que fugssemos uma noite. Disse que era s colocar uma corda de colcha no muro e a gente pulava aps as freiras dormirem. Podamos ir para a gandaia, voltar de madrugada e para a cama sem que elas percebessem. As meninas se entusiasmaram, eu sempre fui cagona.

(Como se falasse com Bianca)

LOLITA Ai Bianca, no sei, isso t com jeito de cagada, cara de cagada, vai dar cagada.

(Volta ao normal)

LOLITA Eu fui. Fui e no me arrependi porque foi legal pra cacete!! Fomos a uma boate e dancei a noite toda (Entra algum sucesso danante da poca, ela dana) Eu precisava daquilo!! Precisava danar e exorcizar meus demnios!! Tirar tudo de ruim de dentro de mim!!! Dancei muito!! Curti muito!! Beijei muito!! Mentira, nenhum menino quis me beijar, fui a nica que no beijou, mas foi demais. Comecei a beber, nunca tinha bebido e tomei o primeiro porre da minha vida. Mas foi foda!!

(Msica para)

LOLITA Fiquei mal, vomitei, chorei, tudo aquilo que bbado faz. As meninas decidiram me levar de volta para o colgio e fomos andando porque gastamos o dinheiro todo que tnhamos na boate esquecendo que tnhamos que voltar. Andamos bastante, passamos por lugares barra pesadas. Passando por um reparei que tocava msica estilo fossa e tinha umas mulheres com roupas curtssimas, bolsas no ombro, bebendo e conversando com homens. Que liberdade elas tinham!! Queriam ser como elas!!

(Faz voz diferente, como se fosse Bianca)

LOLITA So prostitutas Lolita!!

(Faz voz normal)

LOLITA Oi?

(Volta a ser Bianca)

LOLITA- So prostitutas, fazem sexo por dinheiro.

(Volta ao normal e a conversar com o pblico)

LOLITA Prostitutas..Evidente que j tinha ouvido falar em prostitutas, no era to ingnua assim. Mas nunca tinha visto uma!! Achei estranho porque me pareceram ser mulheres normais, podia ser eu, uma de vocs..Esquisito isso n? Soa como preconceito eu achar que prostituta fosse uma mulher diferente, como se tivesse um carimbo na testa. Eu, um alvo de preconceitos sendo preconceituosa. Algo normal no ser humano.

Enfim, chegamos no muro e no encontramos a corda de colcha. Deve ter batido um vento forte porque a corda arrebentou e voou longe. Bateu um desespero. E agora? S tinha uma soluo. Teramos que pular o muro mesmo sem a corda.

As meninas foram pulando uma a uma. Sobramos eu e Bianca e ela de cima do muro estendeu a mo e disse Vem. Tentei escalar, pular, mas nada. Gorda n benzinho? E alm de gorda estava bbada. No iria conseguir pular aquele muro nunca.

Bianca desceu e tentou me subir, Fez pezinho com a mo, me empurrou, tentou de tudo e nada. Resignada pedi que ela se salvasse e pulasse o muro que eu enfrentaria o castigo. Bianca me olhou, pegou firme a minha mo e tocou a campainha. Uma das freiras atendeu e sorrindo Bianca disse Oi madre!!

Fomos expulsas do colgio e nunca mais vi a Bianca, mas mesmo assim sei que conquistei uma amizade para a vida inteira. Amigo assim, no precisamos estar juntos para amar.

(Entra msica O porto de Roberto Caros

LOLITA No, a volta no foi to amistosa assim. Meu cachorro no me sorriu latindo. Na verdade meus tios me deram uma grande bronca, nenhum momento contaram porque no me visitavam, apenas me deram bronca. Fu matriculada em colgio pblico e minha tia me colocou para trabalhar com ela em sua loja de material de construo. Disse que eu tinha que pagar meu sustento.

(Msica para)

LOLITA Nem achei to ruim assim. Ok, o colgio que at nome tinha, era tradicional, s tinha nome. Nvel de ensino pssimo, professores ganhando mal e entrando sempre em greve, prdio abandonado. Engraado isso, escolas caindo aos pedaos, faltando material, merenda, professores, que deviam ser os profissionais mais bem pagos do mundo, ganhando uma misria, isso quando recebem e um monte de z ruelas se preocupa com Doutrinao ideolgica. Mas enfim, a escola era ruim, mas a turma at que era legal e fora que trabalhando recebia salrios, tinha meu sustento. Meus tios no ligavam para mim mesmo ento era como se eu com 13 para 14 anos fosse uma mulher independente, adulta.

(Senta)

LOLITA Turma bacana e eu fui bem aceita. Gordo aprende desde criana que tem que ralar mais para ser bem aceito pela sociedade, pelos jovens da sua idade e qual a arma do gordo? Sim, o humor, gordo sempre o amigo engraado. Curioso isso porque o gordo sempre associado ao humor, ao jeito bonacho e no raro quando humorista emagrece falarem que ele perdeu a graa. Olha, mas isso para ganhar um Nobel de cincia, comprovar que a graa vem da gordura. Acho que no devia mais existir stand ups, sitcons de humor, nada disso. Para rirmos basta irmos a um aougue e pedir pro aougueiro mostrar uma pea com gordura, a a gente olha e comea a rir. Aougueiro est perdendo dinheiro como empresrio artstico e nem sabe.

Voltando a vaca gorda fria eu fui para o lado engraado. Sabia que nunca seria a gatinha, a miss, a musa, no seria do tipo que levaria cantadas, olhares desejosos nada disso ento foi uma forma de ser aceita. Saamos sempre indo para bares, boates, pro samba. Foi uma poca bem bacana da minha vida e outros porres vieram. Aprendi a beber e bebi de tudo. Cerveja, chopp, cachaa, caipirinha, vodka. Chegava bbada em casa e meus tios nem ligavam. Eu era como um objeto da casa, era como se eu no existisse.

(Levanta)

LOLITA Mas minha turma gostava de mim, minha turma me achava engraada e quando eu bebia riam mais ainda, gargalhavam de cair da cadeira. (Melanclica) No fundo, no fundo at hoje no sei se riam das minhas piadas ou riam de mim, mas nunca quis saber de verdade, achei melhor.

Uma noite teve festa de aniversrio na casa de uma das meninas do grupo e fomos l. Bebi como de costume e fiquei alegre como sempre ficava ao beber. A bebida a melhor amiga do solitrio. L pelas tantas Ricardinho me chamou para danar. Ricardinho era bonito, atleta de natao, as meninas eram caidinhas por ele e chamou justo a mim para danar. Eu que nunca tinha sido chamada para danar na vida. Vocs tem noo de como fiquei?

(Toca algum sucesso romntico do incio dos anos 90)

LOLITA Eu flutuava, levitava mesmo com todo peso que tinha. Foi maravilhoso, eu queria que o tempo parasse. Danamos uma, duas, trs msicas e o Ricardinho me beijou. Sim!! Meu primeiro beijo de lngua!! Meu primeiro beijo hetero!! Demos mais alguns beijos e ele me chamou para conversar do lado de fora.

Fomos at seu carro. Como um cavalheiro abriu a porta do carona e entrei, ele entrou pela sua e conversamos, ele me contou de sua vida e perguntou sobre a minha. Era carinhoso, um gentleman. Depois de um tempo comeamos a nos beijar, ele desabotoou um pouco minha blusa e botou a mo em meu seio.

(Msica para)

LOLITA Eu queria, mas no queria aquilo. Na verdade eu no sei se queria aquilo ou no, estava muito bbada para raciocinar direito. Pedia para parar sem muita firmeza e ele continuou. Abaixou meu banco, tirou minha calcinha, abriu sua cala, subiu em cima de mim e me penetrou. , assim perdi minha virgindade sem saber direito o que estava fazendo e se realmente queria fazer aquilo. Ele ficou nem um minuto em cima de mim arfando e beijando minha orelha, eu fiquei sem reao, no senti prazer, no senti nojo, senti nada. No ouvi fogos, no me senti na Lua, balanar de sinos, nada que dizem que uma primeira vez. Ele gozou, saiu de cima de mim, fechou a cala e disse que ia pra casa perguntando se eu queria carona. Sem olhar para ele apenas respondi que sim. Cheguei em casa, deitei e tentava entender o que ocorrera.

(Senta)

LOLITA No dia seguinte tinha aula. Cheguei e dei de cara com ele. Abri um sorriso, cumprimentei e ele de forma seca respondeu. Percebi que algumas pessoas riam de mim, mas achei que fossem s as risadas de sempre. S que as risadas continuaram e eu fiquei sem entender aquilo tudo at que uma das minhas amigas me chamou em um canto e disse que o Ricardinho espalhou que tinha transado comigo e com isso ganho uma aposta.

(Levanta)

LOLITA Fiquei furiosa com aquilo e sa em disparada atrs do Ricardinho. Ele conversava em um grupo, puxei seu ombro e perguntei que histria era aquela. O safado riu, confirmou e disse que me dava uma parte da grana que ganhou. Mandei que ele enfiasse o dinheiro no cu e ele teve a coragem de dizer (Fazendo voz de homem) Voc deva me agradecer por ter tido coragem de te comer. Dei um tapa na cara dele e ns dois paramos na secretaria.

Minha tia foi me buscar na escola e soube do ocorrido. Me levou para casa j que fui suspensa por uma semana. Ricardinho? Sofreu s advertncia, tinha torneio interescolar em alguns dias e a escola no queria perder uma de suas maiores estrelas. Ao chegar em casa minha tia me deu um tapa no rosto e disse que no admitia vagabundas na sua casa. Meu tio apareceu perguntando o que ocorrera e ela disse para irem ao quarto que ela contaria.

(Senta)

LOLITA Sa da escola, no queria continuar numa escola de filhos da puta como aqueles onde ensinavam injustia e humilhao. Continuei trabalhando com sonho de juntar um dinheiro e sair daquela casa. Eu no merecia passar por tudo aquilo. Mas alguma coisa tinha mudado com aquele episdio, alguma coisa mudou em mim, mas no s em mim.

Uma noite eu dormia e senti uma mo em minha perna. Pensei que fosse impresso minha, apenas sonho, mas depois percebi que no. Acordei assustada e vi que era meu tio. Ele ps uma mo em minha boca e com a outra fez sinal de silncio completando baixinho J mulher, esperava por esse dia. Tirou minha calcinha e subiu em cima de mim como o Ricardinho.

Dessa vez no tive dvidas, estava sendo estuprada e no tem sensao pior para uma mulher que essa. Um horror que deve ter durado dois minutos, mas que para mim parecia uma eternidade. Tentava gritar, mas no conseguia, minha voz no saa, depois olhava pro alto e parecia que minha alma estava l me olhando. Pedi por meu pai, minha me, que algum aparecesse, mas ningum apareceu, estava sozinha como sempre. A gente ouve histrias dessas, de estupros e nunca imagina que um dia ir ocorrer com voc, ainda mais vindo de um familiar. Eu sempre via homens com bons olhos, com desejo, como prncipes como o Patrick Swayze, mas os homens da minha vida, os homens que se apresentavam na minha vida no eram assim.

(Levanta)

LOLITA Os homens me apresentavam vida adulta da pior forma. Meu tio me violentou e no foi apenas naquele dia. Durante um ms, um longo ms ele foi pelo menos dez vezes ao meu quarto para me violentar e eu no tinha foras para reagir (se cala um pouco, faz cara de emoo). Me desculpem, difcil para mim falar nisso, mas continuando eu no tinha foras para reagir, no tive coragem para contar a ningum, me sentia suja, culpada como se eu tivesse culpa por ser humilhada, subjugada me perguntava se alguma atitude minha tinha acendido meu tio, mas no, no fiz nada, eu era uma criana de 14 anos ainda, tinha peito, bunda por ser gordinha, mas era uma criana.

(Para um pouco, respira e continua)

LOLITA Um dia uma vizinha foi at em casa conversar com minha tia que no estava. Sentou na sala para esperar enquanto eu lavava louas. Meu tio disse a ela que minha tia j chegava e que eu lhe faria companhia, pois teria que sair. Antes de sair passou por mim e discretamente apertou minha bunda. Ele saiu, lavei mais um pouco, mas no aguentei desabando no choro. A vizinha se assustou, levantou me perguntando o que acontecera e eu no aguentei, desabafei contando toda a verdade.

Ela ficou horrorizada e me levou na mesma hora para a delegacia. O delegado ouviu minha histria e ordenou busca ao meu tio. Ele j estava em casa com minha tia quando chegou o carro da polcia, a vizinha e eu. Os policiais contaram sobre a denncia de estupro e disseram que queriam falar com ele.

Interrogaram meu tio em um quarto enquanto eu, minha tia e a vizinha ficamos em silncio na sala. Os policiais saram e disseram que ele seria convocado na delegacia indo embora. Depois que foram embora minha tia gritou comigo ordenando que eu fosse embora de sua casa. A vizinha ainda tentou argumentar, mas minha tia no quis saber. Aos gritos me expulsou de casa s dando tempo que eu pegasse algumas roupas.

(Senta)

LOLITA , minha tia ficou do lado do meu tio como boa parte das esposas fazem. No existe solidariedade feminina na hora que (Faz sinal de aspas com os dedos) sua famlia ameaada, poucos suportam a solido e para evitar a ela at aceitam fechar os olhos. Pra ser sincera no esperava solidariedade dela, minha tia nunca se importou comigo, quem se importava comigo morreu com o nariz tampado. Mas o tempo mostrou a ela quem estava certo. Meu tio repetiu os abusos com uma menina da rua, mas o pai dela no foi na delegacia, invadiu a casa dos meus tios e deu cinco tiros nele na frente de minha tia. Fiquei feliz? No, no fiquei, no queria a morte de ningum. Fiquei triste? Tambm no. Senti nada, todos os tipos de sentimentos que ele poderia puxar de mim morreram quando ele me penetrou.

Eu vaguei pelas ruas. No tinha dinheiro, no tinha o que comer, no tinha onde dormir. O desespero comeava a me invadir e eu no sabia o que fazer. Viraria mendiga? Morreria de fome? Vagando pela cidade que lhe vira as costas sempre que est com dificuldades acabei parando naquele lugar que a Bianca apontou como de prostituio. Olhei por um tempo e vi mulheres de todos os jeitos, todas as formas, algumas velhas, algumas gordas, respirei e pensei Por que no? J me tiraram toda a dignidade. Entrei no local.

(Levanta)

LOLITA Entrei no local vendo aquelas mulheres seminuas, os homens fedendo a cachaa. No queria estar ali, minha vontade era de fugir, mas minha necessidade era maior. Fechei os olhos e fui em frente. Cheguei em uma senhora no balco e ela perguntou se eu queria alguma coisa, respondi que queria trabalhar. Me perguntou se eu tinha certeza e respondi que no, mas precisava.

Ela ento me levou em um canto para conversar me passando todas as normas da casa. Eu ouvia, mas no ouvia, parecia no estar ali s respondendo tudo bem. Me deu uma roupa, perguntou se dava e mandou que me trocasse (rindo) perguntou se dava, at na hora de virar puta lembram do meu peso.

Desci e fui para o salo esperar por homens. Sentei em um canto e observava as meninas animadas conversando com eles e me perguntando como elas conseguiam, como tinham estmago. Ainda no conhecia nenhuma ento me indagava sobre suas histrias, o que as levou para l, se tinham famlia, filhos, amigos..

(Imposta voz como homem)

LOLITA Posso me sentar?

(Com voz normal como se revivesse a cena)

LOLITA Oi?

(De novo como homem)

LOLITA Gostei de voc, posso me sentar?

LOLITA (Voz normal com o pblico) Claro n? O que eu iria responder? Ele sentou, pediu uma cerveja e bebi com ele. Eu tremia, ele percebeu e perguntou se estava tudo bem, respondi que sim, s estava com frio. Frio, era vero no Rio de Janeiro, impossvel sentir frio. O homem passou a mo em meus cabelos e comentou Primeira vez n? Vamos l, serei carinhoso com voc.

(Entra cano O mundo um moinho)

LOLITA Peguei camisinha, papel higinico no balco e subi com o cliente. Passos lentos naquela escada que do nada ficou enorme. Entramos no quarto, tranquei e ele comeou a tirar a roupa. Vi que tinha que fazer o mesmo e fiz. Ficamos nus, coloquei a camisinha nele, fiz um oral rpido cheia de nojo e fiquei de quatro para que ele me penetrasse. A primeira penetrada di, no fisicamente, mas moralmente porque no momento que o pnis dele entrou em mim me tornei oficialmente uma prostituta. Depois ele iniciou o vai e vem e a cada movimento fui me acostumando, acostumando ou resignando, acho que resignando a melhor palavra. Chegou um momento em que ri quando me toquei de uma situao curiosa. Era a primeira vez que mantinha relaes sexuais de forma realmente voluntria. O programa acabou, ele se vestiu, deu um beijo em minha testa e foi embora. Dei sorte, meu primeiro cliente era um cara legal. Ao ficar sozinha corri para o banheiro e tomei banho. Me limpava, esfregava, queria nunca mais sair de l, mas no dava, bateram na porta dizendo que tinha cliente procurando a gordinha nova.

(Msica para)

LOLITA Gordinha nova..No tinha jeito, eu sempre seria a gordinha, at em um puteiro. O curioso que fiz sucesso no bordel por ser gordinha, precisei virar puta para descobrir que tinha homens que gostavam de gordas. O fato de eu ser menor de idade tambm ajudava, mas muitas ali eram menores com rgs falsificados. Era estranho porque eu sempre achei que uma mulher que se prostitua era uma muito pobre, beirando a misria, que nunca teve oportunidades na vida e eu estava l branca, gordinha, classe mdia, que teve oportunidade de estudar em bons colgios..Em pouco mais de um ano fui de colgio interno pra puteiro, no podia reclamar de rotina em minha vida.

(Anda)

LOLITA Como disse fiz sucesso. Aquele homem no foi o nico da noite, transei com mais seis homens s naquela madrugada. Eram seis, sete por noite dos mais variados tipos. Homens casados, solteiros, pau pequeno, pau grande, com dinheiro, outros que contavam moedinhas, cheirosos, fedendo, carinhosos, rudes, a democratizao da putaria. Ganhava um bom dinheiro, comeava a juntar grana e sonhava sair dali, mas ainda no dava, precisava de muito mais. At que chegou uma menina.

Morena como ndia, bonita, sorriso tmido, chegou assustada como eu, menor de idade como eu e logo fizemos amizade. O tempo tinha passado na velocidade de um programa, eu j estava h dois anos naquela casa quando ela chegou. J era a puta experiente quando surgiu a Lusa.

(Toca Lusa de Tom Jobim)

LOLITA Lusa era diferente, ela parecia no pertencer aquele local, como eu disse lembrava a mim quando cheguei. Quis ser sua amiga, quis protege-la, quis am-la. , quis am-la. Como eu disse sou bissexual e j sabia disso, mas at ento s tinha tido umas atraes passageiras que deram em nada, mximo de lesbianismo que experimentara foi o selinho em Bianca. Mas Lusa era diferente, ela me fez sentir o que at ento s sentira por homens.

(Msica para)

LOLITA Alguns rapazes contrataram algumas de ns para uma orgia. As meninas aproveitaram para beber, cheirar, eu no. S bebi, nunca curti drogas e Lusa tambm no. Mas bebi sim, bebi para tomar coragem. No meio da noite, j bbada aproveitei e beijei a boca de Lusa. Fu correspondida.

No dia seguinte pedi desculpas para minha amiga, ela sorriu e respondeu que estava decepcionada, no esperava desculpas e sim a continuao da noite anterior. Tomei coragem e a beijei novamente agora com as duas sbrias. Aproveitamos o silncio da casa e fomos para o quarto fazer amor. Primeira vez que transei com uma mulher, primeira vez que fiz amor seja com homem ou mulher.

Comeamos um caso, um caso discreto, mas intenso. Viramos namoradas e com o tempo assumimos isso para todos. Eu estava apaixonada, fazia planos de ir embora com Lusa, morar com ela e fazermos uma famlia. Ela parecia querer tambm.

(Senta)

LOLITA At que um dia me chamou para conversar. Perguntei o que acontecera e ela me disse que ia embora, ia voltar para sua cidade. Parecia que meu cho sumira, eu caa em um abismo e perguntei o porqu daquilo. Lusa me explicou que fizera as pazes com a famlia e sua me pediu seu retorno. Achou que era melhor para ela.

E era sim, eu tinha que admitir. Voltar ao conforto do lar, a uma famlia, quem dera se eu tivesse uma coisa ou outra. Passei a mo em seu rosto e disse Vai indiazinha, vai ser feliz. Passamos a noite juntas, fizemos amor pela ltima vez e quando acordei no dia seguinte ela j tinha ido embora. Restava um vazio na cama e uma carta. Abri a carta e tinha foto nossa em um circo. A noite em que fomos nos divertir como adolescentes normais, uma das raras noites at ento que fui feliz.

(Levanta)

LOLITA Os dias se passaram e continuei trabalhando. Com o tempo comecei a sentir enjoos, passar mal e fiquei preocupada com a situao. A dona do bordel insinuou que eu pudesse estar grvida e respondi que era impossvel, eu s transava com camisinha. Ela olhou para mim e falou So muitos homens cherrie, vocs no tem controle sobre isso, camisinhas furam. Olhei abismada para ela que completou Acidente de trabalho.

Pois , o tal acidente de trabalho aconteceu, eu estava grvida. Sem casa, sem famlia, sem amor com 17 anos e grvida. Comecei a sentir saudades de quando meu nico problema era o peso. Continuei trabalhando mesmo grvida, me sugeriram vrias formas de aborto e cheguei a cogitar fazer, mas pensei Ser que essa criana no uma redeno? A oportunidade de criar uma famlia? Acabar com minha solido?. Decidi levar a gravidez adiante com a vantagem que quase nenhum cliente percebia minha gravidez por j ser naturalmente gorda. Essa merda tinha que ter alguma vantagem.

Mas com o tempo comecei a trabalhar menos. Me sentia cansada, com dores e os clientes j no me procuravam tanto o que era ruim para mim que vivia daquilo. Uma noite eu olhava a chuva pela janela, sempre a chuva e a janela como companhias, quando um senhor que devia ter mais de 70 anos, podia ser meu av, se aproximou perguntando quanto era o programa e se podamos ir para o quarto. Nunca discriminei idade at porque naquele momento no podia mesmo recusar clientes e topei.

Fomos para o quarto, fechei a porta e quando comecei a tirar a roupa ele me impediu e mandou que eu sentasse. No entendi nada, sentei e perguntei o que ele queria. O senhor deu um sorriso tmido e respondeu Quero nada no, s quero conversar com voc, te reparo h semanas e voc tem o mesmo olhar que o meu. Perguntei que olhar era e ele me respondeu O olhar de quem est sozinho.

Ele se sentou, olhou para mim de forma serena e perguntou Voc no acompanhante? Ento, me faa companhia. Conversamos por algum tempo sobre a vida, sem entrar profundamente na minha ou na dele at que o tempo acabou. O homem se levantou e agradeceu minha companhia. Antes que ele sasse perguntei seu nome e ele disse Euclides.

(Senta)

LOLITA Euclides..De onde surgiu aquele homem? Por que ele fez aquilo? No sabia explicar, s que h muito tempo no encontrava um homem assim, que me respeitasse. Foi meia hora que passei com ele, mas me senti protegida, acalentada como no me sentia desde o tempo de meu pai. Acho que era isso, algum l em cima se lembrou de mim e me mandou um anjo porque ele continuou frequentando a casa. Ia pelo menos trs vezes por semana conversar comigo sobre a vida, amenidades... Conversava sobre poesia e literatura. Falei para ele do meu amor pelos livros e ele me deu um livro esprita chamado Violetas na janela, disse que me faria bem, me faria entender o que ocorreu com meu pai. Li em uma noite, Euclides j era importante para mim, eu ansiava por sua vinda.

(Levanta)

LOLITA At que teve uma semana que ele no apareceu. Uma semana, duas, trs, lembrei de minha me e da forma que me abandonou. Ser que era esse meu destino? Que as pessoas boas me abandonassem em algum momento? No, com ele no seria assim (sorri) ele voltou.

Apareceu com um buqu de flores para mim pedindo desculpas por sua ausncia. Euclides era um gentleman, eu nunca tinha recebido flores na vida. Fomos para o quarto e ele explicou que esteve doente, mal com pneumonia e a primeira coisa que fez ao ter alta foi me ver. Enquanto me preocupava com sua sade dizendo que ele precisava descansar Euclides rebateu dizendo Quem tem que descansar voc, est grvida de quantos meses?.

Oi? Como assim grvida? Nunca comentei com ele que estava grvida, poucas pessoas sabiam. Perguntei como ele sabia j que por eu ser gorda poucos tinham notado alguma mudana. Euclides sorriu e respondeu que tinha 82 anos, j vivera muito na vida e ter os olhos cansados pelo menos para alguma coisa servia.

Sentei dizendo que estava de cinco meses e ele argumentou que eu no podia mais trabalhar naquela vida, faria mal ao beb. Expliquei que precisava, tirava meu sustento daquilo e ele finalizou dizendo No mais, vai viver comigo, preciso de algum que cuide de mim

(Senta)

LOLITA Cuidar dele, ser que no percebeu que ele era quem cuidava de mim? Ah, percebeu sim, no era bobo. No mesmo dia fiz as malas, agradeci a dona da casa por tudo e fui embora. Passei a morar na casa de Euclides virando sua enfermeira, cuidando dele. Era um homem sozinho que acordava cedo para cuidar dos passarinhos e colocava Cartola no cd.

(Toca As rosas no falam e ela se levanta)

LOLITA (Cantando) Bate outra vez com esperanas o meu corao, pois j vai terminando o vero, enfim..(Volta a falar e a msica para) A esperana tinha voltando ao meu corao. Esperana nos homens, na humanidade. Como era bom acordar com Cartola, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro (Canta quando comea a tocar Senhora tentao) Sinto abalada minha calma, embriagada minha alma, efeitos da tua seduo (fala)Euclides no gostava apenas de poesia, ele era poeta, foi compositor da Mangueira e fazia parte da velha guarda da escola. Euclides saa poucas vezes de casa, mas uma coisa que ele no abria mo era de botar o terno verde e rosa para ir a eventos da velha guarda. Eu lavava e passava no capricho o terno para ele que era um homem muito elegante e parecia irradiar o cu com aquele terno.

No entendia um homem to culto, to inteligente, bacana sozinho. Uma vez estvamos sentados em cadeiras de balano na varanda vendo a chuva quando tomei coragem e perguntei sobre sua famlia. Euclides vendo a chuva respondeu que os filhos estavam pelo mundo. No comeo ligavam, mas h uns quatro Natais no telefonavam mais para lhe desejar feliz Natal e prspero ano novo, finalizou ironizando ao dizer Devem ter perdido meu telefone.

Arrumei coragem e perguntei pela mulher bonita que tinha em um retrato na sua mesa de cabeceira. Ele sorriu e respondeu que era Irene, o amor da sua vida. Primeira namorada, nica esposa por quase quarenta anos. Burramente perguntei se ela tinha morrido, evidente j que no estava por l e ele respondeu Quem amamos nunca morre, apenas vai morar com a saudade.

(Senta)

LOLITA Morar com a saudade..S um homem como aquele poderia dizer algo assim. Chegou a hora de meu filho nascer e Euclides me levou ao hospital. Parto difcil, beb estava sentado, mas veio ao mundo. Uma menina, uma linda menininha que dei o nome de Regina. Sonia Regina.

(Comea a tocar Valsa para uma menininha)

LOLITA Regina..Ser to pequenino, to frgil que com um choro poderoso mudou minha vida ao sair de meu ventre. Impressionante a fora que a maternidade d. Eu a partir daquele momento tinha motivos para lutar, para ser felizes ou ao menos a obrigao de tentar. Sabia que a partir daquele momento no estava mais sozinha, nunca mais estaria sozinha. Regina era uma razo que eu tinha para viver, para levantar da cama todos os dias e para despejar o tanto de amor que eu tinha acumulado em minha vida e nunca pude dar. A menininha do meu corao, minha Regina, minha rainha.

Euclides entrou no quarto do hospital enquanto eu amamentava. Olhava embevecido para mim quando ofereci que ele pegasse. Respondeu que era melhor no, estava velho, com os braos frgeis e tinha medo de deixar cair. Respondi No conheo ningum mais forte que voc, passei Regina para seus braos e ele pegou. Olhava cantando baixinho para ela quando perguntei se queria ser seu padrinho. Ele respondeu que no e me assustou, antes que eu falasse algo completou Serei seu pai.

(Levanta)

LOLITA Euclides nem deu tempo que eu respirasse e perguntou Quer casar comigo?. Pois , assim que eu casei. No foi com vu e grinalda em uma igreja chique como toda mulher sonha. No foi com o prncipe encantado, o homem dos meus sonhos..No foi, ser que no foi mesmo? Existia algum homem no mundo melhor que o Euclides? No conheci, , era um prncipe encantado. O prncipe encantado idoso que casou com a princesa obesa. Um conto de fadas completamente diferente do habitual e que bom, acho o previsvel um saco.

(Comea a andar)

LOLITA Nos casamos e ele registrou Regina dessa forma protegendo a mim e ela. Sem me avisar me matriculou em um supletivo e disse que eu era inteligente demais para no ter estudos. Perguntei quem cuidaria dele enquanto estudava e ele respondeu Regina, tem algum melhor?. Dessa forma terminei o primeiro grau em um ano e fiz o segundo grau em trs, da forma normal. Fui oradora de minha turma na formatura com Regina nos braos de Euclides na primeira fila me assistindo. Dediquei aquele momento a minha filha e ao melhor marido do mundo.

Estudei com afinco para o vestibular me dividindo entre Euclides, Regina e os estudos. Consegui passar e sa correndo para casa e assim contar para minha famlia. Encontrei Regina brincando na sala e perguntei pelo pai. Encontrei Euclides na cadeira de balano na varanda e disse que tinha passado no vestibular.

(Senta)

LOLITA Ele nada respondeu. Percebi que estava dormindo e mexi nele para que acordasse e contasse assim a novidade. No acordou. , no estava dormindo. Limpei as lgrimas, dei um beijo em sua testa e disse Cuide bem do nosso prncipe Irene.

S eu e Regina fomos ao enterro, mais ningum. triste ver algum se despedir dessa forma, ainda mais um homem como ele, mas eu posso dizer que na minha vida ele fez diferena. Foram cinco anos com aquele homem, uma relao em que entrei como menina assustada e sa como mulher feita, me e estudante de letras na faculdade. Nunca fomos marido e mulher de verdade, nunca transamos nem mesmo nos beijamos, nossa relao era muito maior que isso e cabia a mim a partir daquele momento honrar o nome do Euclides. Obrigada meu amigo. Obrigado meu homem.

(Levanta)

LOLITA A vida prosseguiu e graas a tudo que ele fez e deixou para mim tinha como dar vida digna para minha filha. Trabalhava em um salo de beleza de dia e fazia faculdade de noite, Regina ficava na creche e assim os anos foram passando. Me formei, mas acabei no seguindo a profisso, gostava do salo, eu fazia um cabelo que era uma beleza. Meu sonho naquele momento era ter meu prprio salo.

Mas evidente que no vivia s para o salo e Regina, eu precisava namorar, dar uns beijos at porque fiquei cinco anos sem fazer nada em respeito ao Euclides. Conheci mulheres, homens, mas nada que mexesse realmente comigo. Quem mexeu mais foi o Z Carlos, mecnico que trabalhava em uma oficina na esquina.

(Anda)

LOLITA Uma tarde andava na rua quando ouvi um assovio seguido por Norinha que mame pediu a Deus. Achei, como sempre, que era com outra mulher, mas ele insistiu dizendo Carne boa tem gordurinha. Gordurinha? Opa!! Podia ser comigo!! Parei e olhei!! Era!!

Ok, vocs devem pensar que eu devia me sentir ofendida e devia mesmo, Carne boa tem gordurinha? Que coisa baixa, coisa que no se diz a uma mulher. Mas porra!! Vocs tem ideia de quantas vezes sonhei em levar uma dessas cantadas baixas e baratas na rua? Quantas vezes passei na frente de oficinas, construes esperando um assovio, uma cantada e nunca recebi? No estava em condies de ficar indignada. Na mesma noite fomos ao forr e paramos em motel de quinta, mas sexo de primeira.

Os anos se passavam e era quase uma balzaquiana. Minha filha pr adolescente e eu feliz namorando o safado do Z Carlos. Safado sim porque se tinha um homem safado, galinha e gostoso era aquele!! Ganhava um dinheiro legal trabalhando no salo e comecei a juntar para realizar um sonho. Tentar emagrecer e tentaria fazendo cirurgia baritrica.

Tinha medo da cirurgia, medo do ps operatrio, mas resolvi encarar mesmo com Z Carlos me desencorajando dizendo que gostava de mim fofinha. Cacete, cada vez que ele me chamava de fofinha dava vontade de dar um soco na cara dele!! Enfiar o macaco de levantar pneus no seu cu!! Fiz todo o procedimento pr operatrio, consultas com psiclogo e me internei. Me internei para operar, para finalmente comear a ser magra.

At que quase dormindo esperando amanhecer e operar comecei a sentir um cheiro de queimado. Quando abri os olhos vi pessoas correndo pelo hospital dizendo que o mesmo estava pegando fogo. Pois , deu curto em um ar condicionado e s deu tempo de correr pra rua com aquela camisola que deixa a bunda de fora!! Uma vergonha!! Um mico!! Do lado de fora via com outros pacientes o fogo consumir todo o hospital. Mas no era possvel!! Faltando uma noite para fazer baritrica!!

(Senta)

LOLITA Tive que voltar para casa e esperar agendamento em outro local pra a cirurgia. Confesso que aquele incidente me fez pensar se era o certo que eu fazia, sei l, parecia um sinal. O sinal mais forte veio trs dias aps o incndio. Uma querida amiga que fazia parte de nosso grupo pr baritrico morreu na mesa de cirurgia. Foi um baque, sei nem definir o que senti naquele momento. Lamentei por minha amiga que deixava marido e dois filhos pequenos, imaginei que pudesse ser comigo.

Queria emagrecer? Muito, era o sonho de minha vida. S quem gordo sabe a dor do preconceito, das risadas, de todo mundo apontar o dedo para voc dizendo o que tinha que fazer, como agir para emagrecer, os amores que perdemos para outras pessoas e ns tendo que nos contentar com o ttulo de melhor amiga, as oportunidades perdidas de vida, profissionais porque por incrvel que parea at hoje tem empregos que exigem boa aparncia e no acham gordo uma pessoa com boa aparncia. As roupas que sonhamos colocar, mas no cabem na gente. Gordo no escolhe roupa, roupa que escolhe gordo. Tentei vrias dietas na vida, passei fome, tomei remdios e nada. Pensei na baritrica numa forma de vencer esse eterno drama. Meu sonho era ser magra nem que fosse por um dia, mas eu no sabia o que fazer. Precisava de um sinal para guiar minha vida, me fazer tomar coragem novamente para fazer a baritrica ou finalmente me aceitar como gorda..O sinal veio.

(Levanta)

LOLITA Uma tarde atendia uma velha senhora muito distinta chamada Zonaide Spencer. Na verdade era uma transformista das mais importantes que a cidade j conheceu, mas j tinha passado da fase do glamour e vivia das confisses do que fez na vida e ajeitar o cabelo que dizia ser seu maior patrimnio fora a boca de veludo que sabia guardar segredos. Nessa tarde eu estava muito pensativa em relao a baritrica e ela perguntou o que tinha. Contei toda a histria e ela emendou com a frase que mudou a minha vida.

(Sonoplastia bota voz de um transformista)

ZONAIDE - Voc devia virar modelo plus size.

(Telefone toca)

LOLITA Pera gente (Atende) Oi, t chegando j? Ta aonde? , ta chegando mesmo, vou aguardar, obrigada.

(Desliga)

LOLITA Ufa, no irei me atrasar (Digita celular) Oi, pode vir j, Regina vai direto, sim, ela tambm vai, vo as duas, te espero, beijos.

(Desliga)

LOLITA Dia corrido hoje. Onde eu estava? Ah sim, Zonaide me falou em virar modelo plus size. Modelo? Que piada era essa? S se fosse modelo de roupa de elefante. Fala srio n? Modelo esqulida, tem anorexia, bulimia, vomita tudo que come, v se eu vou desperdiar comida vomitando?

ZONAIDE (Sonoplastia) Plus size boba, modelos gordas, a nova tendncia do mercado. Existem muitas j.

LOLITA (Falando pausadamente, cara de espanto) Eu? Modelo?

ZONAIDE (Sonoplastia) Claro. Voc linda, gata, se eu gostasse da fruta ia querer pegar nessas carnes e como disse Roberto Carlos quem foi que disse que tem que ser magra pra ser gostosa?

LOLITA (Da mesma forma) Ser?

ZONAIDE (Sonoplastia) Uma pessoa muito importante pra mim me disse uma vez que podemos ser tudo na vida, menos apticos. Agora vai!! Se joga pro mundo racha que eu j participei muito dessa pea e eu no sou coadjuvante de pea dos outros!! Tenho meu prprio monlogo!!

(Luz em cima de Lolita. Ela pausadamente tira a roupa ficando apenas de calcinha e suti. Olha para frente se apalpando como se tivesse olhando um espelho, est insegura)

LOLITA Mas eu sou gorda, sempre fui gorda e desde sempre aprendi que era feia por ser gorda. Olha esse corpo? Imenso, eu no tenho gordura localizada, estou localizada na gordura. A calcinha quase no aparece devido aos pneus, pneus de caminho..Como me sentir bonita assim? At hoje tenho vergonha de ficar de lingerie na frente dos outros, como ser modelo?

(D uma voltinha e olha de novo para frente com outro olhar, olhar confiante)

LOLITA (Voz confiante) No sou feia, sou gorda, mas e da? Olha meu cabelo? Minha pele? Meu sorriso? Tenho bunda, peito, sei rebolar como ningum, inteligente, divertida, fodo bem pra caralho e sei ser elegante quando quero!! Sim, eu sou bonita, sou gostosa e no nenhum filho da puta que parece um saco de ossos, magro de ruim que vai falar algo diferente!! Vou ser modelo sim!! Vai ter gorda na passarela e tirando fotos!!

(Bota roupa. Sonoplastia toca Material girl de Madonna e ela comea a desfilar, desfila falando o texto)

ZULMIRA O idiota do Z Carlos tentou impedir, disse que mulher dele no desfilava. Deixei de ser mulher dele. Conheci o mundo queridinhas!! So Paulo, Nova York, Paris, Milo, Tquio!! Desfilei, fiz capas de revista, posei nua!! Sim, posei nua para um ensaio com fotgrafo bacanrrimo e fez sucesso!! Isso a meu povo a prostituta virou modelo!! Eu dei a volta por cima!! Como diz a minha amiga Zonaide eu no estava por cima da carne seca porque isso coisa de pobre!! Estava por cima do salmo!! Do caviar!!

(Msica para e ela tambm)

LOLITA Foi a que eu conheci a Duda.

(Entra msica romntica)

LOLITA Maria Eduarda Paixo. Olhe, paixo at no nome, no tinha como no me apaixonar. Ela era fotgrafa e fez um dos meus ensaios. Acabou o ensaio e ela me chamou para beber um chopinho. Fomos, papo vai, papo vem e nos beijamos. Um cara da mesa ao lado reclamou de duas mulheres se beijando, mandamos se foder e beijamos mais ainda, de lngua com o povo aplaudindo.

(Para a msica)

LOLITA Amor sereno, tranquilo. Viajamos juntas, curtimos juntas, tnhamos os mesmos gostos. Duda olhou uma vez as coisas que eu escrevia e disse que eu devia levar aquilo a srio. Comecei a pensar mais sobre e acabou que criei um blog falando de minha vida como modelo plus size. Tambm comecei a escrever um romance, sempre gostei de contar histrias, inventar histrias. Acho maravilhosa a forma que escritor brinca de Deus. Escritor um cara mentiroso, ele inventa uma histria da mente dele, nada daquilo real e consegue convencer as pessoas, que sabem que aquilo mentira, a gostarem, se envolverem com os personagens, se emocionarem. Quantas vezes vocs no foram a um filme, uma pea de teatro e no se envolveram? Se emocionaram com o personagem, a histria contada mesmo sabendo que tudo aquilo mentira? No existe? Escritor um ser mentiroso e ns amamos ser enganados por eles.

(Senta)

LOLITA Regina crescia bem. Adolescente magra, ao contrrio de mim, se preparava para o ENEM sonhava em fazer nutrio. Filha de gorda nutricionista, curiosidades da vida. Arrumou um namorado, tomou p na bunda, sofreu, chorou, consolei, arrumou outro. Tudo seguido o script de uma relao entre me e filha, relao normal como deve ser. Me, filha..O que ser que ocorreu com a minha me. Por qu sumiu? Regina era especial. Cabea aberta aceitou a Duda como madrasta. Gerao dela tinha cabea muito boa, aceitava o diferente bem, no sei quando esse pas mudou..

(Levanta)

LOLITA Fiquei dois anos com a Duda at que percebemos que o amor, o teso acabaram e tnhamos virado amigas, grandes amigas. Sentamos para conversar de boa e decidimos que o melhor era nos separarmos e manter aquela amizade que seria pro resto da vida. Ao dar ponto final na relao nos abraamos forte chorando e prometemos que nunca sairamos da vida da outra. Demos depois uma big festa para nossos amigos.

(Entra msica festiva)

LOLITA - Eles nada entenderam, perguntaram o porqu daquela festa e em determinado momento fizemos discurso para contar que estvamos nos separando. Um amigo perguntou No entendi, esto comemorando o fim?, respondi No, estamos comemorando a certeza da eternidade.

(Msica para e semblante dela muda)

LOLITA Certeza da eternidade, se tem uma coisa que temos certeza que no somos eternos.

(Senta)

LOLITA Fazendo auto exame nas mamas senti um caroo. Fiquei preocupada e logo corri para o mdico. Fiz uma srie de exames e o pior foi constatado. Cncer de mama. Com trinta e cinco anos apenas, em uma carreira bem sucedida como modelo plus size tomar uma porrada assim. A morte a nica certeza da vida, a certeza que evitamos falar sobre, pensar sobre, evitamos ao mximo sua presena. Tolo o ser humano, briga com algo que sabe no ter a mnima chance de vencer. Sabemos que vamos morrer um dia, mas nunca imaginamos que podemos morrer, controverso isso. Somos finitos, produtos perecveis com prazo de validade e pela primeira vez perceber que meu prazo podia chegar ao fim me assustou demais. Eu no estava pronta pra possibilidade de morrer. Justo agora que finalmente as coisas iam bem na minha vida?

(Levanta)

LOLITA O mdico constatou que estava em seu incio e no tinha metstase, dava para curar, mas assustava. Palavra que as pessoas tem medo at de pronunciar n? Cncer..Tudo me assustava, mas uma coisa em especial mexeu demais comigo. Eu teria que remover parte do seio.

(Tira a blusa, suti, fica com seios expostos e se toca. Olha para a plateia como se olhasse para o vazio)

LOLITA Seios..Justo a nica parte do meu corpo que sempre gostei. Desde que comearam a surgir em meu corpo me deram orgulho. nico momento em que os homens olhavam para mim sem ser rindo, mulheres sem debochar, nica parte que recebia elogios. No so seios perfeitos at porque no sou mais nenhuma mocinha, mas so meus, meu orgulho, minha feminilidade. Feminilidade..Iria perder a minha, j no bastavam todas as perdas que tive na vida? (Chora) Por que voc no gosta de mim Deus? Justo agora que eu finalmente passei a gostar de me ver no espelho voc vai tirar isso de mim? Por que tantas tragdias? Tantas desgraas? Como vou usar meus decotes agora? Os homens me olharem com desejo, mulheres com inveja. Como vou ter coragem de me olhar no espelho de novo? Como vou ter coragem de me despir na frente de algum de novo? (Se ajoelha chorando) Eu no mereo isso, juro que no mereo (Fica mais um tempo ajoelhada em silncio, levanta a cabea e comea a por suti e blusa devagar) Mas no vou desistir, nunca desisti de nada na minha vida e por pior que seja perder um seio eu tenho outro, tenho braos, pernas, corao, (Grita) uma vida!! (Fica de p) e vou lutar por ela, tenho uma filha pra criar, tenho muitos anos pela frente e nada, nem ningum, muito menos uma doena vai me tirar isso!!

(Limpa as lgrimas, respira e continua)

LOLITA O mdico me disse que dava pra por uma prtese de forma rpida e que se eu no contasse ningum perceberia que removi o seio, mas pediu pressa, tinha que operar logo. Que saudades do tempo em que meu medo de cirurgia era apenas de uma baritrica. Na noite anterior a cirurgia no conseguia dormir no hospital. Virava de um lado para o outro at que pedi papel e caneta. Olhei por um tempo o papel e comecei a escrever o que sentia naquele instante. Escrevi, escrevi e quando vi estava escrevendo sobre minha vida. Determinado momento deitei para dormir. Se iniciava ali minha auto biografia.

(Senta)

LOLITA Na manh seguinte fui levada a sala de cirurgia com Duda e Regina me acompanhando segurando minhas mos. Deram beijos em minha testa dizendo que tudo daria certo. Depois no lembro mais de nada. S lembro que sonhei estar no colgio interno olhando a chuva na janela. Determinado momento vi um vulto na janela e achei ser minha me. Sa correndo do colgio, fui ao ptio e encontrei a figura de costas. Toda molhada me aproximei e puxei seu brao. Quando ela virou percebi que no era minha me. Era a morte com uma foice na mo. Dei um grito e acordei gritando. Minha filha me olhava naquele instante.

Regina me perguntou se estava tudo bem e respondi que sim, apenas tivera um pesadelo e perguntei se ela estava h muito tempo ali. Com voz trmula respondeu que acabara de entrar. Perguntei o que ela tinha por estar nervosa, Regina respondeu que uma pessoa queria me ver. Falando isso saiu e a pessoa entrou.

Era minha me.

(Levanta)

LOLITA Minha me, sim, minha me estava l depois de vinte anos de ausncia. Eu ali deitada com aquela pessoa encostada na cama perguntando como eu estava. Eu no conseguia falar nada, estava paralisada. Minha me beijou minha testa e disse que estava comigo. Adormeci de novo.

(Andando)

LOLITA Acordei e vi o quarto vazio. Levantei na hora mesmo com soro no brao e sa do quarto andando. Enfermeiras mandavam que eu voltasse pro quarto e eu s sabia repetir Cad ela? Cad ela? Sei que no foi sonho, cad ela?. Encontrei minha me conversando com Regina perto de uma janela, Regina saiu e nos deixou a ss.

(Para de andar)

LOLITA Perguntei o que significava aquilo. Como ela sumira por vinte anos do nada e do nada tambm reaparecia daquela forma. Eu queria uma explicao por todo aquele sumio. Minha me abaixou os olhos pedindo esculpas e comentou que fora presa.

(Senta)

LOLITA Sentei em uma cadeira sem entender e pedi que me explicasse aquela histria. Minha me contou que o homem com que ela fugiu era estelionatrio e usou o nome dela em vrios golpes sem que ela soubesse. Na manh daquela tera que iria me visitar a polcia bateu na porta dos dois com mandato de priso contra eles. O homem no aliviou o lado dela, muito pelo contrrio, jogou toda a culpa nela e os dois foram condenados. Minha me comentou que ficou dois anos presa e quando foi solta correu ao colgio para me procurar, mas eu no estava mais l, correu na casa da minha tia, mas ela tinha se mudado depois da morte de meu tio. No tinha mais contato, no tinha mais como me achar. Perguntei porque presa no entrou em contato comigo, no me contou o que ocorria e ela respondeu Preferia que voc pensasse que estivesse morta que presa. Nos olhamos um tempo em silncio e fiz a pergunta que sempre quis fazer Valeu a pena? Valeu a pena ter largado meu pai por tudo isso. Ela olhando a janela somente respondeu Era o meu destino, s posso me arrepender daquilo que no fiz.

(Levanta)

LOLITA Minha me passou a mo em meus cabelos e me pediu perdo. Respondi que era muita coisa pra minha cabea e eu precisava pensar sobre aquilo tudo. Dona Iracema respondeu que me entendia e eu disse que tinha que voltar para o quarto. Levantei, caminhei calmamente (repete os gestos) deixando minha me para trs e parei (para) virei para ela (vira) e perguntei como ela tinha me achado.

Minha me respondeu que vira na televiso reportagem sobre mim e passou a me acompanhar, colecionar tudo que era meu. Perguntei porque ela no tinha me procurado ao me achar e ela respondeu que por vergonha de tudo que passou, me perguntou se eu j tinha sentido vergonha na vida e respondi que tinha sido o meu sentimento mais presente nela.

Me virei novamente (Faz novamente o gesto) comecei a caminhar e de novo parei, me virei para ela (vira) e perguntei O que te fez aparecer agora ento?. Minha me se aproximou, passou a mo em meus cabelos e respondeu Primeiro porque voc precisava de mim, segundo para te entregar isso. Abriu a bolsa e me deu um pote de leite condensado. Completou dizendo Estava te devendo.

(Senta)

LOLITA (Emocionada como se olhasse um pote de leite condensado) O leite condensado que ela no me entregou naquela tera, o leite condensado que eu sonhei por tantas semanas pegar naquele muro. O leite condensado que nos unia, que fazia nos lembrar que por mais distncia que existisse entre ns, separao fsica, emocional, ela era minha me. Eu fiquei ali (Limpa os olhos como se chorasse) olhando aquele pote enquanto ela ia embora andando devagar, sentindo j o peso da idade e tudo que viveu quando levantei e gritei (Levanta e grita) Espera!!

(Olha para algum canto do palco como se fosse para ela)

LOLITA (Muito emocionada, como se falasse com ela) Promete pra mim que esse no ser o ltimo pote!! Promete pra mim que eu no vou mais ficar te esperando aparecer e voc no ir!! Promete pra mim que voc nunca mais vai me deixar!! Promete..

Ela me interrompeu me abraando forte e ns duas comeamos a chorar (Toca Somewhere in time) era um encontro meu com meu passado, voltava para algum lugar do passado para corrigir tudo o que sofri, tudo o que passei. Fantasmas foram exorcizados a partir daquele abrao, daquelas lgrimas minhas e dela que se misturavam. Minha me era o que tinha restado do meu passado, da minha infncia, daquela criana gordinha, mas cheia de sonhos, planos, que acreditava em um mundo bom, que tinha seu pai e sua me perto dela e achava que estaria protegida no mundo para sempre. Que aos poucos foi perdendo tudo, pessoas que amava, dignidade, mas que a cada porrada que tomava da vida levantava, oferecia o queixo e dizia manda outra que eu aguento!! Meu Deus, como eu precisava daquele abrao!! Como eu precisava daquela mulher!! Como eu precisava me sentir de novo aquela Lolita!! Eu no dava um abrao em minha me desde criana!!

(Msica para, ela fica em silncio um tempo, respira)

LOLITA Naquele abrao eu no perdoei apenas a minha me, eu recebi o perdo da criana cheia de esperanas que fui um dia.

(Senta)

LOLITA As emoes que passava eram grandes e eu no podia me +emocionar assim. Estava frgil e tinha uma luta imensa pela frente. Duda, Regina e minha me ficaram do meu lado todo o tempo. Fazia sesses de quimio, meus cabelos caram, evidente que no tive como modelar, precisava distrair minha mente ento eu escrevi. Prossegui minha biografia escrevendo compulsivamente. Decidi contar tudo desde a minha infncia, no escondi nada que passei, no dourei nada. Acabei em poucas semanas e de forma bem rpida o livro foi publicado. Livraria lotada no lanamento, cheia de amigos, fs..Cheguei l fraca, com bandana na cabea para disfarar os cabelos ralos e em cadeira de rodas empurrada pela Duda, mas cheguei com sorriso no rosto. Autografei muitos livros sem tirar o sorriso, sem cansar e algumas semanas depois qual no foi a surpresa de encontrar o livro entre os mais vendidos do pas e a quantidade enorme de crticas positivas que ele recebeu.

(Levanta)

LOLITA Mas adiantava nada passar por tudo aquilo e morrer. Que sacanagem essa? Desisti definitivamente de ser modelo e decidi me jogar de cabea em algo que sempre esteve dentro de mim, a literatura. Continuei escrevendo, parti para a feitura de uma obra ficcional, um romance e escrevia quase vinte e quatro horas por dia s parando para momentos especiais como uma consulta mdica muito importante. A consulta para saber se o cncer tinha sumido.

O mdico olhou atentamente os exames, olhou para mim srio e abriu um sorriso dizendo No tem mais nada, sumiu. Dei um sorriso como poucas vezes dei na vida e perguntei se era verdade, ele respondeu que sim, que eu devia manter as consultas de forma regular para vigiar, mas no tinha mais nada.

(Suspira e vai para a boca de cena)

LOLITA Isso j faz cinco anos e o cncer nunca mais voltou, estou clinicamente curada. Pude colocar a prtese e realmente quem no sabe que eu tive o cncer nem desconfia. A vida continuou. Regina se formou em nutrio na faculdade e no dia da formatura me apresentou seu namorado. Casaram ms passado e claro, j estou enchendo o saco pelos netinhos. Netinhos..nunca me imaginei av, mas tantas coisas ocorreram na minha vida que eu nem podia imaginar..

(Anda um pouco, bota o p na cadeira fazendo pose de poderosa)

LOLITA Lancei o romance e foi um grande sucesso, mais um best seller premiado. Escrevia compulsivamente e depois vieram mais dois livros, os dois entrando na lista dos mais vendidos e sendo premiados. Tudo isso em apenas cinco anos!! Depois dos quarenta anos finalmente me encontrei. Sim, eu era uma escritora, uma mentirosa como falei anteriormente e tinha muito orgulho disso. Uma grande revista semanal me colocou na capa como a maior revelao literria do comeo do sculo e logo depois virei colunista da mesma. Assim como na poca de modelo viajei o mundo com meus livros participando de feiras, debates e dois dos meus livros j viraram filmes e deram bilheteria recorde. Mas as notcias boas no param por a. Ms que vem estreia meu programa de tv!! Pois , terei meu prprio talk show !! , pela primeira vez na vida podia realmente dizer que eu era um sucesso.

(Tira o p)

LOLITA - Faltava algum n? Uma mulher ou homem que mexesse comigo. Duas semanas atrs conheci um cara bacana, um jornalista premiado chamado Luis Eduardo Gouveia. Sabem o apelido dele? Duda!! Pois , sou pouco original com nomes de affair. Moreno alto, bonito e sensual Duda inteligente, carismtico, engraado e me come muito gostoso, o que mais posso querer? To apaixonada? Sei l, s sei que to curtindo muito. Minha me, Regina e a Duda, que est casada com uma cientista, gostaram. Se elas aprovam meio caminho. Por falar em caminho..Ta na hora desse entregador chegar...

(Campainha toca)

LOLITA Finalmente!!

(Vai para a coxia e volta com um cabide e nele tem uma roupa)

LOLITA Faltou que eu contasse uma grande novidade para vocs, a maior de todas.

(Tira a roupa ficando de calcinha e suti e bota a roupa que est no cabide, um fardo)

LOLITA (Se mostrando com o fardo para o pblico) Hoje dia de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, me tornar uma imortal. pensando bem eu estava errada, a morte no necessariamente nosso fim.

(Finge que est olhando no espelho se ajeitando, mexendo no cabelo)

LOLITA Que mulher linda, maravilhosa, gostosa..E pensar que quase fiz baritrica, que babaquice!! Olhe aqui Ricardinho!! Olhe o que voc perdeu seu babaca e te contar? Fode mal pra cacete e tem pau pequeno!! Vamos l!! Vamos tomar posse da cadeira 36 da ABL!! Se eu nunca consegui ter manequim 36 pelo menos o 36 vai me marcar em algo!!

(Volta a olhar para o pblico e falar com ele)

LOLITA E assim acaba minha histria de amor, pelo menos por enquanto porque tenho certeza que viverei muitas coisas ainda. Vocs devem estar se perguntando, histria de amor? Ricardinho? Luisa? Z Carlos? Dudas? Mas como? Nenhum deles pareceu ser to marcante assim. verdade, mas minha histria sim uma histria de amor, totalmente de amor e do amor mais importante de nossas vidas. No foi fcil conquistar minha pessoa amada. uma pessoa doce, mas difcil, alegre e triste, cheia de complexos, mas linda, no foi nada fcil ter amor por ela, no foi nada fcil que ela tivesse por mim, mas consegui conquistar e ter o amor da pessoa que eu realmente precisava. O meu. Essa histria uma histria de amor minha comigo mesmo. Da forma que eu consegui me amar e ser correspondida. Eu me amo do jeito que eu sou e pau no cu de quem no me amar!!

(Sonoplastia toca buzina)

LOLITA (Olhando janela imaginria) J vou!! To descendo!! (Para o pblico) o Duda, ele chegou pra me levar pra Academia, preciso ir.

(Chega na beira do palco)

LOLITA Lolita ninfetinha? Magrinha? Estereotipada? Desculpe Nabokov, mas no existe apenas a sua Lolita..(Grita batendo no peito) Eu tambm sou Lolita!!!

(Se encaminha para a coxia, antes de sair se vira para o pblico)

LOLITA (grita batendo no peito) E eu merecia esse final feliz porra!!!

(Lolita sai de cena, luz se apaga e ela volta com microfone na mo cantando Perigosa das Frenticas)

FIM

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