rl.art.br · Web viewOs anos nos revelam que a inteligência sem sabedoria não possui valor. Que...
Transcript of rl.art.br · Web viewOs anos nos revelam que a inteligência sem sabedoria não possui valor. Que...
Devaneios
A Arte de Não Saber Viver!
Viver não é uma tarefa fácil. Somos apresentados,
logo na infância, aos moldes pelos quais a vida adulta nos
requisitará.
Somos submetidos a testes e pressões, aprendemos a
desempenhar funções, entender sentimentos, compreender
circunstâncias. Somos humanos, estamos crescendo.
Os anos nos revelam que a inteligência sem sabedoria
não possui valor. Que paixão sem amor, com o tempo fere, e
que perdão é o caminho mais rápido e seguro a uma vida
completa.
Vida, ela sabe como nos surpreender! O mesmo
sorriso que irradia e alegra, também é aquele que em um
instante se apaga, esmurece, some. Aprendemos a diferenciar
tristeza de infelicidade. Uma fere, a outra mata.
Sair, correr, brincar, amar, conviver...
A sociedade vista de fora é esplêndida! Somos
pessoas organizadas, trabalhamos, estudamos, saímos cedo,
chegamos tarde. Não sabemos quem são nossas famílias, não
temos amigos, somos colegas.
Somos parte, corpo, células do meio. Seres humanos
dotados de caráter, esperteza, mansidão. Vivemos e
aprendemos, convivemos, esperamos, crescemos.
Fomos forjados a responsabilidades que nos
moldaram ao sistema.
Sistema? Ah sim, sistema!
Tudo o que nos submete ao controle sob um interesse
social de crescimento. A ótica do poder que classifica os
seres em humanos e sub-humanos. Somos crianças, não
compreendemos.
A economia desperta o olhar a um ponto fixo. A
cegueira despreza o papel e suas faces. Somos classificados,
registrados, numerados.
É, viver não é uma tarefa fácil. Valores se invertem,
educação versus religião versus sociedade. Aprendemos
conceitos, desmistificam-se conceitos.
2
Temos tabús, somos caretas, religiosos, fanáticos,
céticos. Somos seres sociais, não somos seres sociáveis. Sim,
estamos vivendo.
Estamos com 10, 30, 70 anos, dentro de uma
constante que se transforma a cada minuto. Aliás, qual o
valor de um minuto? Para quem espera, um espaço vazio a
mais, para quem sofre, um momento irreparável, para o
prazer, meros segundos imperceptíveis.
Temos significados, somos significantes, ou não?
Aos olhos do poder somos massa, para quem nos
mantêm, números. Somos estatísticas, significados,
insignificantes.
Pais, mães, filhos, irmãos, empregados, patrões.
Títulos nos são revelados, temos vários, tudo depende do
ambiente, da realidade, da situação. O pai que repreende, a
mãe que acalenta, o filho que pede, o irmão que chora.
Sou o patrão que contrata, o empregado que trabalha e
sustenta o meio. Sou estereótipo, paradoxo, sociedade.
Continuamos crescendo...
3
Conhecemos nosso corpo, estamos nos
transformando. Pelos que nascem, olhares que mudam,
desejos, hormônios, sexo. A primícia da vida sendo revelada
pela descoberta do eu e, aliás, quem sou eu?
Sou aquele que entende, mas que também tem
dúvidas, aquele que chora e compreende o valor de cada
lágrima, sou o que sofre, se ilude, vive. Sou a incógnita da
aparência que revela o acaso, o momento. A dádiva do saber
reduzida a curvas, pele, toque.
Crescer, amadurecer. É possível suportar!
Sou o valor, destinado tragicamente a sinônimos
escrotos.
Quero casar!
Consigo viver só!
Minha carreira!
Curtição, estudos. Estamos ocupados, precisamos
crescer.
O dia ainda possui 24 horas?
Aonde estão minhas chaves?
4
Estou cansado, preciso parar e repensar meu futuro!
O sono não tem sido reparador, algo está
acontecendo. Preciso trabalhar.
Já são sete, seis, cinco da manhã...
Preciso acordar mais cedo.
São nove, dez, onze da noite...
Preciso dormir mais tarde.
Tenho compromissos, sou jovem, possuo força,
virilidade, eu aguento!
Final de semana de novo?
Já estamos em Julho?
Janeiro foi ontem!
Preciso analisar o quanto cresci.
A realidade é ilógica, aliás, como encontrar o sentido
lógico do real? Trabalhamos incessantemente, com o objetivo
de cedo podermos descansar. Não temos limitações, afinal,
nossos corpos tem se descoberto em um louvável estágio de
resiliência.
5
Vejo meus pais acordando antes do sol raiar.
Máquinas ligam, costura após costura, ponto após ponto... É
meio dia, hora de engolir o almoço e retornar. O dinheiro está
entrando, precisamos de mais.
Final do dia, já escureceu, precisamos dormir. Algo
está errado, temos dinheiro, não temos tempo, temos filhos,
não temos relacionamento, estamos de acordo com a
sociedade, não consigo compreender.
A casa está caindo, porta sem trinco, forro pendurado,
as crianças estão tristes, não temos um carro.
Sete, oito, nove meses... Sim, estamos na mesma casa,
mas o silêncio é absoluto. Não nos falamos, não nos
suportamos, somos família.
Aprendemos a amar quem é de fora, estamos carentes,
estamos crescendo. Frutos da escolha, do destino, queremos
mostrar nosso valor.
Hoje recebi um abraço, disseram-me que sou
importante. Sim, IMPORTANTE! Mas afinal, o que isso
significa, sendo que a palavra nunca ecoou dentro de nossa
6
casa? São várias definições e uma certeza, tenho mais um
título.
Vejo a família reunida, festa, comida. Não faz
sentido! Estamos reunidos, falando mal de quem não pôde
vir. Não é festa, é plebiscito, julgamento, sentença.
Todos se vão, volta o vazio, é hora de contabilizar.
Copos quebrados, pratos...
Quanta bagunça!
Ninguém ficou para ajudar.
Sentimentos forçados, agrados, sorrisos, tudo não
passou de teatro. Estamos ficando bons nisso, sabemos atuar!
Colocamos nossas melhores roupas, utilizamos nossos
melhores talheres, melhores louças. Realmente, sabemos
atuar.
Cortinas se fecham, luzes se apagam. Bem vindos!
Voltamos à realidade. Mostramos o status que nos envolve e,
aliás, que palavra fascinante. Quero ter, quero ser status!
Aonde vamos?
O que podemos comprar?
7
Hmmm! Este é o sentido. Ter para ser e não apenas
ser.
A mãe sociedade dita o ritmo, somos parte da canção.
Somos letra, melodia. Para uns, um ritmo dançante e festivo,
para outros, um cantico fúnebre que dilacera, mas não mata.
Nos vitimizamos pelo acaso. Acaso, chamado também
de destino, pré-disposição. Não vivemos a responsabilidade,
afinal, temos um status a zelar.
Atribuímos as consequências a pessoas e, quando não
as cabe o peso da culpa, o erro é elevado ao nível de
circunstância. Não falhamos, somos vítimas. Queremos
justiça, mas não queremos ser justos. O Segredo da vida vem
sendo revelado.
Num piscar de olhos tudo absolutamente passa e
novas afirmações permeiam o cerco pelo qual estamos
inseridos.
Nossa, como você cresceu!
Cresci? Mas, como? __Não percebemos, mais uma
vez.
8
Que lembranças trazemos em nossa bagagem? O que
temos para contar?
Sente-se, chegue mais perto, quero te conhecer. Não
me fale sobre o que construiu, o que comprou, ou como
chegou ao auge da carreira. Fale-me das suas dores, das
alegrias, dos amores, apenas fale, quero te ouvir. Ouvir seus
lamentos, contemplar o sorriso que notadamente mudou.
O tempo voou desde a última vez que nos vimos,
éramos crianças. Bem, teremos de nos conhecer novamente.
__ Muito prazer, sou o acaso, a rendição, sou o tempo
que passa, restaura, transforma.
Por que me olha assim? Não há por que duvidar!
Sou eu mesmo, não se afaste, preciso te ouvir.
A pressa tem fustigado as oportunidades, brindando-
nos com a sutil, porém egocêntrica presença da solidão, não
nos permitindo conhecer novamente àqueles que por tempo
fizeram parte de nós.
Vivemos em ciclos, escalas de tempo, controlados,
regrados, ínfimos.
9
A adolescência pouco a pouco concede espaço à idade
adulta e os objetivos não se realizaram conforme o planejado.
Prudência e esforço se fazem inimigos, não há controle. O
meio nos remete a ouvir a voz da força e usá-la sem
moderação, afinal, precisamos crescer.
A virilidade que na adolescência demonstrara está
ofuscada, algo está mudando. Saímos cada vez menos, o sono
reparador virou artigo de luxo.
O tempo em nosso leito é dedicado a pensar, nos erros
do passado, sem foco no aprendizado, nos negócios ainda não
fechados, nas contas que sem piedade não param de chegar.
Já somos maduros, alvos, presas, alienados. Precisamos
sustentar o país.
Bocas famintas e insaciáveis que devoram a dignidade
em busca do progresso incessante. Precisamos continuar,
afinal, o alvo ainda não foi alcançado. Será que o
alcançaremos?
É Terça-feira, vejo perto de casa um grupo de idosos
reunidos, hoje é dia de festa. Todos arrumados, há sorrisos,
espírito festivo, mas afinal, quem são eles? Quais suas
histórias? O que o destino os reserva?
10
Sobrevivemos ao presente almejando um futuro,
estamos crescendo?
Sinto-me perdido, os valores se inverteram. A verdade
absoluta ensinada pela escola não faz mais sentido, somos o
que temos.
Diante da premissa, enlouquecemos pouco a pouco, a
ponto de pagarmos altos preços para sermos ouvidos por
alguém que não conhecemos. Submetemo-nos ao mínimo de
atenção que aqueles que estão perto não conseguiram nos dar.
Nossa crise existencial exposta em 50 minutos. Sai paciente,
entra paciente, uma nova história se inicia. 50 minutos e
assim se repete, dia após dia, história após história.
Saímos da consulta com um novo aliado que acalma,
relaxa, vicia. A constante rotina que de 12 em 12 horas trará
um escape para os problemas. Precisamos produzir, a
qualquer custo, de qualquer jeito. O progresso depende da
força daqueles que, sem hesitar, exercem seu papel como
cidadão.
A sociedade vista de fora é esplendida!
11
Olhares profundos, rostos amargos, isso sempre foi
assim?
Queria voltar à infância, onde as escamas nos olhos
não permitiam ver o caminho podre do sucesso. Não é mais
uma opção, crescer é imprescindível.
Temos esposas, maridos, filhos, estão ali, precisam de
nós. Precisamos preparar as crianças, são alicerces da
sociedade. Somos formigas carregadeiras, precisamos
acumular.
A vida em sua especialidade tem o poder de nos
surpreender. Somos tudo, somos todos, somos nada,
conspirações de uma imaginação fértil. Uma micro-célula
disposta num universo infinito.
Dentre bilhões de galáxias, somos parte, acaso.
Sobrevivemos pelas ações de células, enzimas, somos seu
universo.
Universo de tantos, de poucos, de ninguéns. Talvez,
meros buracos negros sugando a energia daqueles que nos
rodeiam e permitem-se a tal.
12
É irônico saber que tudo passa depressa, que a vida é
apenas uma, quando poucos sabem vivê-la. Temos, temos,
temos...
Adoecemos pelas escolhas, morremos pela rebeldia de
atitudes ínfimas. Buscas incessantes que nos trazem novos
títulos. Somos tumores, depressões, acidentes vasculares,
minguados de vida, carregados de bens. Bens que pagam
bens, mas não devolvem essências.
Daria tudo para ficar bem.
Tudo seria diferente se uma nova chance me fosse
concedida.
Ah se todos estivessem aqui!
Sim, estamos crescendo, apenas crescendo.
Esquecemo-nos de aprender, até por que aprender custa caro.
Custa esforço, dedicação, apreço, tempo. É muito mais fácil
lançar o peso das más escolhas sobre o corpo que nos
suporta.
Somos a ação que move o mundo, o presente que
transforma, o futuro incerto que lança sorte aos que atentos
conseguem driblar as circunstâncias.
13
Um ato, uma palavra, um mero sinal é capaz de
modificar os rumos da história tornando-nos protagonistas do
que muitos ousariam chamar de acaso.
Com o passar dos anos entendemos que os momentos
são a essência da transformação. Não existe constância, não
há continuidade. Vivemos a imprevisibilidade dos momentos.
Flashes de sorrisos sinceros, de noites mal dormidas
pensando em um amor não correspondido. Vivenciamos por
lembranças um passado que castiga, mas que também deixa
saudades de pequenos gestos que nos fizeram crescer.
Dias inteiros brincando com os amigos na rua e ao
fundo, as vozes de nossas mães nos chamando para jantar.
Só mais um pouquinho!
Ah, como tudo isso era bom. Sair para acampar e
poder sentir o peso das primeiras responsabilidades e
confiança, dadas pelos nossos pais.
A primeira balada, o primeiro beijo, a primeira vez...
Confidências que quando crianças tínhamos e que
hoje nos fazem rir. Tempos em que as maiores preocupações
14
eram voltadas a quais brincadeiras faríamos e na casa de qual
colega iríamos.
Nada era perfeito, aliás, como toda a realidade que
nos envolve, mas era intenso, límpido, vivo. Por isso a
palavra momento faz tanto sentido e tem um significado tão
forte.
Somos um, dentre sete bilhões, cada qual com sua
história, um momento, um significado. Ninguém igual a
ninguém, mas semelhantes na essência de ser e crescer.
Trazemos dentro de nós significados que nos
diferenciam, aliás, palavra esta já destituída do seu posto por
meras proeminências que realçam o exterior.
Nossos compromissos excedem a razão do querer
estar. Não importam as vontades, os desejos e gostos, afinal,
a proeminência social é quem nos rege.
Estamos superficialmente envolvidos pela frágil
cristalinidade do meio. Reluzentes, gloriosos, porém,
ninguém mais além de nós mesmos conhece o lamaçal que
envolve nossos reais significados.
15
Somos responsáveis pela irresponsabilidade do querer
mostrar, e apenas mostrar. Diamantes brutos, que questionam
o valor da lapidação. Não queremos ser contrastados, passar
pela forja do interior para o exterior, alcançar a têmpera ideal.
Denominamo-nos autossuficientes, até percebermos
que a autossuficiência se constrói através de relações
maduras e convívio com o meio. Do contrário, não é
autossuficiência, mas sim, orgulho envolvido em fagulhas
embrasadas que não confortam, mas queimam vorazmente os
que dela tentam se aproximar.
Eloquentes em palavras, egocêntricos. Lançamos ao
ar figuras, conotações de uma realidade que ansiamos, mas
não vivemos.
Quantas dúvidas ainda nos restam? O que sozinhos
somos capazes de resolver?
Estamos conscientemente passando por constantes
metamorfoses ambulantes, como já dizia Raul.
Por mais que saibamos, nunca saberemos o suficiente,
nunca haverá uma linha de chegada. Há começo, não há final.
O que nos cabe é delimitarmos mentalmente uma linha e
16
procurar alcançá-la. Não saberemos tudo, mas o suficiente
para exacerbar o orgulho que sustenta nosso ego.
Talvez, nossa linha de chegada nos brinde em páginas
dos livros de história. Quem sabe nossos feitos alterem o
rumo social em longo prazo. No demais e na pior das
hipóteses, seremos lembrados pelos nossos filhos, pincelados
em lembranças pelos nossos netos e rascunhados pelos
bisnetos, sendo um arquivo na árvore genealógica na família.
A racionalidade do ser humano, neste ponto, torna-se
questionável. Escravizamos o melhor de nosso tempo, sob a
esperança de sermos libertos, mas, libertos de quê? De quem?
Corremos dia após dia, cada vez mais rápido, fazendo
coisas que não nos convém, para agradar quem não nos
agrada. Estamos hipnotizados, aficionados pelo futuro
incerto, desdenhando o presente sob a ótica “miraculosa” de
um futuro perfeito, onde o dinheiro e felicidade abundam.
Esquecemo-nos, porém, que tudo faz parte de uma contínua
construção.
O depois exerce o domínio a um alto custo, que só é
percebido quando perdemos aqueles que fariam parte da
história futura perfeita.
17
Diante da premissa, nutrimos expectativas incertas.
Por mais que reluza o hoje, sua face não nos remete a um
interesse lógico, e o agora não possui um significado real.
O amanhã sempre vem e surge regado de surpresas
que não estavam no roteiro que nós escrevemos. Mas, quem
disse que nós ditamos a regra do tempo?
Impiedosamente ele passa, mostrando-nos a nossa
pequenez, lembrando-nos a cada instante que não importa o
que façamos, em algum momento tudo vai acabar.
Ficamos perplexos com a velocidade e voracidade em
que tudo acontece, sem sabermos como devemos nos
posicionar.
A partir daqui, a palavra momento (mencionada
anteriormente) exerce um significado crucial em nossa
trajetória.
O segundo em que você leu este pequeno trecho já se
foi. O Significado que o acompanha tornou-se memória que,
em breve, se apagará. Este é o sentido, o segundo crucial está
passando. Vãs e vagas memórias arquivadas num
subconsciente que sequer sabemos existir.
18
Se existir, é ele um baú de histórias e lembranças que
muitos de nós não ousaríamos mexer. Não o vasculharíamos,
pois neste baú encontram-se os segundos preciosos que não
fomos capazes de desfrutar, afinal, estávamos muito
ocupados para torna-los eternos. Nossa sede por crescimento
enterrou o valor sob pilhas de escombros emocionais,
resultantes de futilidades que, emaranhados, formam a frágil
estrutura do que chamamos de subconsciente.
Nossa consciência se nega a compreender tal fato,
tornando cômodo o pensamento de que o que passou, passou.
Encoberto pelas camadas infindáveis de lembranças
encontra-se o futuro, regado pelos planos frustrados, pelo
amanhã perfeito que nunca chegou. É melhor mesmo
coibirmos a expressão da consciência a ouvirmos sua voz,
rasgando-nos diante da nossa incapacidade de administrar
nosso próprio querer.
O suor dos rostos, agora cansados, não foram capazes
de reluzir o direito à conquista dos momentos sonhados e
perfeitos.
Fidedignos, coabitantes do meio, céticos, ordenados,
pessoas nulas de si. Andamos até aqui como animais
19
selvagens em busca da presa ideal. O que nos preenche como
seres humanos dá traços de onde provém nosso verdadeiro
eu.
Muito do que temos por necessário, torna-se
extraordinário, tornando obsoleta a essência do que realmente
é preciso.
Compartilhamos histórias perfeitas em mídia social,
sob uma tentativa discrepante de demonstrar quão perfeita é a
imperfeição da realidade vivida. A falsa realização se faz
completa conforme os segundos de destaque se apresentam e
logo se vão.
Famílias perfeitas, casais em perfeita comunhão,
filhos completos. Um universo paralelo que escoa a
abundância, expondo frustrantemente o que queríamos viver,
mas não podemos. Talvez pelas escolhas, talvez pela falta de
oportunidade, um passo em falso.
Diante da perfeita dramatização, sustentamos
bravamente o poder da vida, até o momento em que nosso
livre arbítrio nos impõe a tirá-la. Uma vida imposta e
exposta, que não suportou o peso das circunstâncias,
20
preferindo o deleite do descanso antecipado, porém, que é
direito a todos os viventes.
Cedo ou tarde nos encontraremos em um mesmo
plano, em um mesmo estágio, e ela, a vida, em sua plenitude,
independente do grau de importância que exercemos em
nossa passagem, nos mostrará que o fim é a célebre conquista
concedida àqueles que puderam desfrutar do dom de sua
grandeza e majestade.
Morremos para as causas, morremos para as dores. O
fôlego de vida não nos pertence mais, tudo é empréstimo que,
cedo ou tarde, será requerido. Não somos donos de nada, não
somos família de ninguém. Somos o que somos e isso nos
basta.
Ao derredor do leito fúnebre, honrando o adorno que
envolve o corpo fétido e pútrefe, lágrimas escoam sob o ar
daqueles que, em alguns instantes, querem demonstrar ao
público que contempla o teatro da morte, tudo o que não
realizaram em décadas de oportunidades.
Uma lápide entoa a sonoridade das mensagens de
afeto que, em vida, os negócios e a rotina não permitiram
21
chegar. Flores e arranjos celebram a ceifa, a vitória da morte,
pondo em xeque a cobiça que enaltece a razão.
Dentro de poucos dias, as flores que adornaram a
cerimônia, dando respiro aos momentos de dor, secarão, as
lágrimas que dramatizaram os instantes finais, tornando-nos
protagonistas da grande peça, cessarão, seremos apresentados
a um sentimento novo denominado saudade, cuja companhia
será permanente, tomando um vasto espaço dentro de nós,
ofuscando a razão que sempre nos regeu.
Nestes momentos, lembramo-nos do poder do Criador
e da grande fragilidade da criação. Uma perfeita harmonia
que fomenta dentro de nós um grande aprendizado.
O tempo continua passando, continuamos crescendo
e, mesmo que tardiamente, estamos começando a aprender o
básico do que é viver.
Em que ponto estamos neste momento? Como
classificar o estágio se, com escamas nos olhos somos
forçados a seguir e às cegas alcançar tudo o que o meio
classificou como básico para nos mantermos?
22
Quem nos deixou, quem perdemos, não importa, as
próprias palavras rugem a força de seus significados. Fomos
deixados, perdemos.
Tudo soa com certo pessimismo, não é mesmo? Mas,
quantas são as verdades que negamos existir, pelo simples
medo de aceitá-las?
Crescer nunca foi tão difícil. A resiliência é a força
motriz que desde o início nos tem sido imposta, sendo nós,
expositores da decadência forçada do resistir.
Devaneios de uma mente saturada exprimem o que o
tempo e as circunstâncias são capazes de fazer. Uma mesma
espécie fisiológica que faz do psicológico sua força de
combate, reluz a destreza do poder de subordinação que ceifa
e extingue ideais.
Não há medida de força quando o poder está
ameaçado. Não há consciência quando a razão do querer
impõe-se sobre a razão do saber. Neste quesito, perda e
ganho não representam o ponto de equilíbrio da balança que
norteia nosso egocêntrico desejo de domínio.
23
Há uma força maior proveniente da lógica
infinitamente pobre que dita como e quando devemos agir.
Não vale a pena medir as consequências, afinal, fomos
apresentados ao descaso e aprendemos de forma rápida que
seu agir pode mudar os rumos que regem nossa história.
Não importa quem éramos e como crescemos, o que
aprendemos e se aprendemos. A escória do poder a qualquer
custo nos alcançou, tornando-nos novas criaturas em meio a
tudo aquilo que já vivemos.
Nascemos de novo, para um novo mundo. Lugar em
que tudo vale, onde as consequências não são medidas, lugar
em que a história, a ordem e o progresso não representam
mais do que meros escritos em um tecido, ou papel.
Aprendemos algumas artimanhas, ludibriamos, golpeamos,
nocauteamos àqueles que tentam nos barrar.
Ah, agora sim! O mundo gira ao meu entorno,
posso sentir o seu favor!
Uma nova perspectiva nos conecta.
Não tenho poder. Sou o Poder!
24
Poder enaltecido em manchetes, abrilhantado por
holofotes, trazendo aos menos favorecidos a falsa ideia de
segurança e coragem. Tudo é possível, não importa como, é
possível!
Dominantes e dominados dividem um mesmo espaço,
mas se distinguem em realidade.
Pessoas tornam-se parte dos imundos degraus, pisados
por aqueles que se deterioram pela sede insaciável do
empoderamento que denigre, desnutre, mata.
As feições no olhar desdenham a conjuntura da
apreciação daquilo que é real, o poder se mostra como fonte
de clausura ao valor, mascarando-o com ares sórdidos de
fracasso.
Não vale a pena esperar, quando a pressa diagnostica
a urgência do acontecer. Não há por que olhar o caminho
quando os atalhos se apresentam protuberantes, convincentes
e convidativos, aformoseados pela certeza de que não importa
quem fica e segue, vale muito mais a pena confinar o topo
sem o devido pudor à ordem ofertada.
25
A lógica infinitamente pobre do progresso está nos
afetando, está nos cegando para o viés racional e tornando-
nos veementes peças do xadrez social, onde perder não é uma
opção à mesa.
Somos a matéria prima do processo de mais valia,
reconhecidos pelo poder que exala nossos nomes.
Há tantos Josés, Marias, Pedros, Franciscos, sejam
eles dos Santos, de Souza, Silva, Pereira. Há um significado
em cada um dos nomes, um grau de importância estabelecido,
um anonimato que os fará ser apenas quem são.
Talvez sejam vizinhos, ou nem se conheçam. Quem
sabe nunca saberá um da existência do outro, com histórias
tão iguais, mas tão diferentes entre si.
Eles são a regra, a exceção, o produto final a ser
consumido no grande ciclo social.
Precisamos crescer, amadurecer, desbravar, impedir,
aceitar. São tantos desafios, há tantas exceções. O grande
circo da vida expõe seus espetáculos, tornando-nos
verdadeiros artistas do improviso.
26
Palhaços socialmente inseridos, nutrindo a bilheteria
que engorda as vísceras dos poucos ventríloquos que regem
todas as nossas movimentações.
Malabaristas das míseras migalhas colocadas em
nossas mãos com ares de demasiadas. Mágicos, animadores,
verdadeiros bobos da grande corte, também chamada
república.
Um espetáculo sem fim. O circo dos horrores
travestido de todo glamour que se possa oferecer. Lugar com
seleta plateia, sem cortina a ser fechada, pois o grande show
não pode parar.
Risos e estardalhaços do poder grotesco invadem o
picadeiro. Dentro de seus paletós, barrigas fartas que
enaltecem o poderio atrelado a seus ombros. Em seus peitos,
o orgulho que cega e os fazem seguir sem pudor, ou ordem.
Diante de suas frontes, a miserável geração que aceita tudo e
se cala, humilhando-se pelo direito adquirido de desfrutar das
sobras ofertadas.
Castos do verdadeiro conhecimento que enobrece e
enaltece. Consolidadores do fracasso consciente e coniventes
27
com a política despudorada que faz dos cidadãos, ratos que
operam o fluxo do esgoto denominado nação.
É preciso ser criança para entender o valor e adulto
para dominar o poder.
A cadeia dominante que nos cerca torna-nos
costumeiros amantes da realidade sórdida, delineada por um
destino fugaz, ladrilhado com suor dos menos favorecidos.
Damo-nos conta do quão é difícil crescer em um
mundo onde a hipocrisia é pré-requisito a uma vida de
sucesso.
Antes, supúnhamos estar atrelados a um processo
comum, instituído e pré-determinado, até nos darmos conta
de que o processo é um holograma psicológico que vincula o
ser ao esplendor da ilusão fornecida.
Nunca a sociedade mostrou-se tão vigorosa e tão
obstinada pelo trabalho. A agilidade que nos é propiciada e
tudo o que podemos alcançar através dela tem transformado o
processo de produção. Precisamos abastecer oito bilhões de
pessoas, acolhendo a raça humana com o mínimo de conforto
para que possamos uns servir aos outros de forma eficaz.
28
O processo comum, porém é lento. É preciso injetar
hormônios, fazer do tóxico um motivo legal de consumo,
afinal, precisamos produzir mais e melhor. Facilidades pelas
quais refletirão diretamente naqueles que estamos
sustentando. É irônico, mas não importa muito, o que
interessa é produzir e dispor à mesa tudo o quanto for
possível no menor tempo.
O processo educacional não nos mostra o que vem
sendo feito. É melhor mesmo alienar, os incômodos são
menores, as consequências políticas e econômicas também.
Quantos bilhões ainda nascerão e, assim como nós,
terão a consciência do processo de deterioração, mas
permanecerão calados e com medo de expressar o bom senso
pelo qual deve ser acuidado.
O topo da cadeia alimentar sendo dizimado pela
própria espécie, sob uma perspectiva de dominância plena e
seguridade permanente.
A imortalidade de um corpo medíocre e pleno de si
submete uma grande massa em prol da historicidade e
permanência de seu nome.
29
O Rol da fama acende a chama e desenvolve dentro
de cada um a sombria retórica de ser o topo e não apenas
alcançar o topo.
Está se tornando caótico, é difícil suportar. Debatemo-
nos diante de futilidades, buscando dentro de nós uma
identidade roubada ainda no ventre.
Havia um espaço, até pouco tempo, onde a expressão
era possível. Onde o livre estado do querer tinha a
possibilidade mínima de dominar. Havia lugares dentre os
quais podíamos ser quem somos. Tudo nos foi absolutamente
roubado.
Hoje nos restam devaneios, escalas fragmentadas de
memórias que confundem os sentimentos. Pensamentos que
nos permitem perder a noção do tempo e, mesmo que por
poucos instantes, relembrar sonhos que não conseguimos
realizar.
São poucas as lembranças reais, pois o tempo não foi
piedoso e, com extrema rapidez, simplesmente passou.
Parar e sonhar. Quando foi a última vez que fiz isso?
Pra falar a verdade, nem lembro se fiz.
30
Dentre tudo o que nos foi tirado, pelo simples fato de
permitirmos diante do conformismo, existe algo que
aprendemos a criar e cultivar diante da forçada maturidade
imposta dia após dia.
Aprendemos que existe, além da realidade, um lugar
desabitado que a cada um de nós cabe colonizar. Alguns
chamam de porto seguro, jardim secreto, ponto G da
consciência. Ele simboliza o verdadeiro prazer pelo qual a
realidade não teve o poder de suprir. Um lugar que, por mais
que descrevamos, ninguém além de nós mesmos será capaz
de conhecer com tamanha riqueza de detalhes.
Lugar onde as fantasias ocorrem sem medo da
repreensão, onde somos quem realmente gostaríamos de ser,
sem padrões sociais, sem a obrigatoriedade dos
compromissos.
O carpe diem que move o ser em busca de um novo
amanhã. Um amanhã real que nos desperta a retornar ao que
não se quer viver efetivamente.
Buscamos suprir nossas necessidades psicológicas em
conspirações. Investimos bilhões em grandes e elaboradas
missões a se descobrir resquícios de vida interplanetária,
31
quando nossa velha e vã filosofia ainda não é capaz de
atribuir um vínculo, ou não, entre mente e cérebro.
Um espetáculo midiático e social que impulsiona a
engrenagem elucidada pela análoga oportunidade de ser o
primeiro, pois é o posto quem realmente nos define.
Somos a gangrena que apodrece o leito do planeta,
tomando espaço e sugando a energia física do seu existir. Não
fomos moldados a olhar as circunstâncias por uma ótica
diferenciada, a não ser aquela que nos direciona a submetê-lo,
crendo nos “infindáveis” recursos postos a nossa disposição.
Incessantes máquinas de transformação e destruição,
que transformam de forma rápida em moeda recursos que
gratuitamente nos foram disponibilizados a usufruir. Não
existe bom senso.
É essa mais uma das regras do desregrado jogo que
submete o menos favorecido em fonte de aproveitamento e
lucratividade, visando o bem comum e individual.
A seleção natural exercendo seu papel com extremo
vigor, onde a grande vítima, vitimará cada um de nós. A
última porção de cada recurso é que ditará a cartada final e
32
através dela, talvez comecemos a compreender que dinheiro e
poder nunca exerceram um significado real dentro de nós.
As décadas passam e a força, pouco a pouco, se esvai
diante de nossos olhos. Conforme as limitações se
apresentam, vamos sendo gradativamente postos de lado,
sendo impiedosamente substituídos por novas forças que,
assim como nós, achavam ser insubstituíveis.
Quando enfim, conhecemos um pouco da vida e o que
ela é capaz de fornecer e fazer, percebemo-nos em um estágio
que contempla um novo ritmo de aprendizado. Aqui, o olhar
se torna difuso e custoso, o ouvir é longínquo e, em muitas
vezes, imperceptível. O ar que anteriormente fluía pelos
pulmões de forma rítmica, se torna escasso e pesado. Os
cabelos se veem brancos e o caminhar enaltece o peso da
idade.
Nas mãos, antes práticas diante de funções diversas,
uma bengala se torna acessório vital que, com dificuldade,
tem por função equilibrar o corpo que já não é tão firme.
A solidão, companheira de longa data, mostra-se mais
imponente, trazendo a falta de alguém que nunca existiu. O
ânimo já não é algo tão corriqueiro e o desejo de conquista
33
foca novas prioridades, dentre elas, viver o máximo com o
mínimo de tempo que ainda resta.
Nessa fase, assim como em todas as demais passadas,
nada é realmente fácil, porém, algo que parecia inalcançável
força sua entrada numa rotina adaptada dia após dia.
Somos apresentadas a paciência e, camuflada em suas
faces, encontramos a essência da sabedoria. A pressa da
conquista no pódio social nos permitiu ser fortes, ágeis e
habilidosos, mas nunca nos ofertou a possibilidade de sermos
sábios. Na verdade, nunca tivemos a destreza necessária para
que a sabedoria se apresentasse, a fim de termos um
relacionamento.
Diante da força física limitada, sem a possibilidade de
adestrar a rotina que nos rodeia, vivemos obsoletos, porém,
descobridores do íntimo, e agora, adestrados pelas
circunstâncias impostas.
Crescemos, nesse estágio, através do que nossa
limitação nos permite realizar. Passamos a refletir e fazer
balanços que nos levam a conclusões surpreendentes.
34
De casas cheias e sem relacionamentos, a lares vazios
e sedentos de companhia. Agora, velhos, resistindo ao tempo,
o matrimônio subsiste numa tentativa de transparecer uma
perfeição infundada. Olhares profundos e desesperançosos
denotam claramente que nada do que vivemos foi real e o
orgulho que ainda nos resta não é capaz de, mesmo que por
pouco tempo, recomeçar e findar os dias com o mínimo de
prazer autêntico.
Revirando as páginas da memória, é nítida a
percepção de que os mais genuínos atos de carinho e cuidado
resumiam-se a sexo, exacerbando o grito da carne em busca
de mais um escape para tudo o quanto rodeava a nossa rotina.
Aniversários de casamento serviam apenas para nos
lembrar de tudo o quanto podia ser evitado. A transformação
nunca foi uma alternativa passível de discussão.
Andávamos de mãos dadas na rua sem o menor pudor
sentimental, compactuando o que nos diziam ser a forma
correta de se relacionar.
Não eram naturais os elogios, e quando vinham,
seguiam por uma sequência de pequenos favores que
privilegiavam apenas um lado.
35
O dinheiro sempre regeu o ritmo do humor. Quando
estava disponível, havia um verdadeiro festival de sorrisos
que dominava o ambiente, sendo essa, a única fonte de
felicidade pelo qual a memória é capaz de recordar. Quando
faltava, instaurava-se o caos absoluto, revelando a essência
da natureza familiar.
Alegria e felicidade se confundiram por todos esses
anos e foi preciso tornar-se velho para parar e refletir sobre a
diferença grotesca que há entre ambas.
Quanto aos filhos? Ah, esses já não sei por onde
andam faz tempo! Saíram cedo de casa, pois diziam,
simplesmente, não aguentar mais.
Hoje, admito que o medo de ouvir a verdade latente
sempre ofuscou a possibilidade de permitir com que falassem
o porquê de pensarem assim.
A altivez dos olhos não nos permitiu enxergar o
melhor de nós. Deixávamos todas as oportunidades pra um
mais tarde que nunca chegara. A possibilidade de que um dia
a velhice nos seria apresentada era infinitamente longínqua
para que pudéssemos refletir nas consequências das atitudes
presentes.
36
Criamos cada um deles e os preparamos para serem
bons lá fora e para os de fora. Não tivemos capacidade de
entregar os ideais e formular, junto a eles, o devido valor
familiar.
Criamos dentro de cada um uma independência que
não seguiu o percurso cronológico devido, apressando-os de
todas as formas e os fazendo amadurecer antes da época.
Sentimos saudades de quem não conhecemos, afinal,
nunca fomos apresentados aos nossos netos. Espero que não
sejam eles o reflexo do que fizemos com nossos filhos lá no
passado. O sobrenome é a única coisa que ainda nos vincula e
que mantêm nosso título de família.
A cada novo dia, adentramos a reflexões que nos
frustram e minguam nosso ser e o nosso caráter. As
concepções que anteriormente tínhamos sobre vida e morte
revelam um outro lado, onde os protagonistas da ceifa
deixam de ser as outras pessoas, revelando-nos como plantas
maduras e próximas à colheita.
Sempre imaginamos chegar à velhice e pensar na
morte com a mínima sensação de dever cumprido. Hoje,
colho com ardor o que semeei durante os anos. Não há por
37
que ser hipócrita e dizer que não houve tempo, ou chance,
afinal as possibilidades sempre existiram.
Os papeis se inverteram e as consequências chegaram,
não há nada que possa ser feito. Não há ninguém que possa
mudar a realidade.
A sociedade, ao contrário do que esperávamos, não
foi capaz de retribuir com o mesmo zelo as décadas de nossas
vidas dedicadas ao progresso.
Capacitamo-nos ao máximo, para viver o mínimo de
nós. Crescemos intelectualmente, até o momento em que o
conhecimento nos enlouquece e nos torna irracionais diante
da responsabilidade atrelada a essência primitiva que
carregamos. Suprimos o desejo de saber mais e mais, porém,
esquecemos que a claridade do conhecimento exige que
sejamos aptos a administrá-lo.
A serventia nos é atribuída e vagarosamente retirada,
conforme os anos passam e a força já não se mostra com a
mesma eficácia.
Hoje, somos a sobra, o resto do que um dia já fez
parte do banquete daqueles que detêm o poder e a autoridade.
38
De prato principal, a restos que, no momento, aguardam
silenciosamente o processo de deterioração.
Quanto a elite? Estes, diante das infindáveis
condições, apenas aguardam a próxima safra do bom e velho
necessitado que fará de tudo para agradá-los e, como nós,
serem parte do futuro desleixo aguardando o descarte.
Mediante o tempo ocioso, profundos e longos
devaneios nos fazem perder a noção da realidade. Uma
intensa meditação que de forma recorrente se perde,
impossibilitando-nos de lembrar o que por minutos e muitas
vezes horas estávamos imaginando.
Eles tem se tornado mais comuns e cada dia mais
profundos, exigindo poucas movimentações, porém,
refletindo diretamente em nosso corpo.
São mínimas as caminhadas e cada vez mais custosas.
Ficarmos acomodados em uma cadeira, ou sofá, nos deixa
confortáveis e não nos fazem cansar tanto. Com o fôlego
pesado, o mínimo esforço requer o máximo do nosso
organismo que mostra sinais de debilidade acentuados.
39
Estamos em um caminho sem volta e cada dia mais
desesperançosos que algo possa mudar.
O dia amanhece e em nossas mentes não celebramos o
raiar do sol, mas lamentamos a realidade de ser menos um
dia.
Cada minuto nesse estágio de vida é realmente o que
conta. Mesmo com olhares longínquos e com pouca
comunicação, dentro de nós celebramos as vitórias que são
cada vez menores e mais valiosas.
Afazeres pelos quais eram automáticos e
imperceptíveis tomam proporções colossais, quase
transpassando nossa possibilidade de alcançá-los.
Beber água, comer sem engasgar, ir ao banheiro,
tomar banho. Maratonas diárias que nos levam a entregar os
pontos pouco a pouco, pois a exigência é demasiadamente
grande a pouca força que ainda nos resta.
O orgulho que nos ancorou durante a vida não nos
permitia, mesmo em constante decadência, admitir que já não
podíamos mais com nossos próprios corpos. Não há firmeza
40
nas mãos, não há segurança nas pernas, não há certeza em
nossa consciência.
Os dias amanhecem e, em um, dentre os tantos que
tem passado, a campainha toca. Confesso que até
percebermos seu toque, já havia passado algum tempo. Quem
poderia ser? Será que finalmente, depois de anos, teríamos o
prazer te ter a família reunida? Mal posso esperar, meus netos
devem estar enormes!
Uma alegria ofuscada por anos, de repente, invadiu
nossa casa. Um sorriso guardado tornou-se largo em nossos
rostos tão enrugados e maltratados pelo tempo.
Juntando o pouco das forças que ainda restavam,
passo após passo, abri a porta com um sincero sorriso e com
uma esperança inexplicável.
O que o destino nos reservara, porém, fugia
completamente de tudo aquilo que, em instantes, tínhamos
sonhado. Do lado de fora, um rosto estranho que nos faria
companhia até o fim do que resta de nossos dias.
Não eram nossos filhos, não eram nossos netos, uma
terceira pessoa que apenas nos deixará mais obsoletos,
41
mostrando a pequenez de nossa existência. Não temos
escolha, afinal, já não somos mais donos de nós mesmos e
por mais que falemos, nossa voz já não é capaz de ditar
nossas míseras vontades.
Adquirimos uma rotina que não era nossa, temos
horários, porém os tempos dedicados a pensar ainda tomam
grande parte dos nossos dias.
Temos, além da bengala e do andador, uma escora
humana que nos carrega diante de uma rotina pré-
estabelecida.
Andamos pelos mesmos cômodos, nos mesmos
horários, para fazermos as mesmas coisas sem a mesma
vontade de sempre.
Comemos uma comida que não é feita por nós e não
possui mais o tempero pelo qual fomos acostumados. Por
recomendação médica, devemos nos alimentar melhor,
porém, sabemos que o melhor são aquelas gororobas sem
gosto e em consistência de mingau que sempre nos deixa
rançosos só de olhar.
42
Quando tudo acaba, somos postos sentados, eu e
minha esposa, lado a lado na varanda de casa e ali esperamos
o tempo passar.
Deitamos cedo, aquém de nossa vontade para
podermos descansar e recuperarmos a pouca energia
dispensada durante o dia.
Em flashes de pensamentos, a reflexão de quanto
tempo ainda temos e quem de nós será o primeiro a desistir e
se entregar ao leito, se faz presente.
Diferentemente de tudo o que já vimos, de pessoas
que abandonaram o dom de viver e forçaram sua entrada na
mansão dos mortos, estamos num estágio em que não nos
cabe escolher o momento da partida e sim aguardá-lo com
ares de boas-vindas.
Como tudo o que nos norteia, a palavra morte não nos
assustava, mas o medo do que poderia acompanha-la, sim.
Fomos criados ouvindo histórias sobre o céu e o inferno e que
nossas atitudes delimitariam nosso destino diante de Deus.
Com brevidade, um de nós experimentaria seu deleite
e teria seus questionamentos sanados. A forma repentina com
43
que tudo ocorreu, realmente tornou o cenário frio ainda mais
gélido e desolador.
Em um ato de coragem, toco em uma das mãos
daquela que por anos suportou a consequência das escolhas
erradas ao meu lado. Diante do toque evitado por anos,
percebo quão frágil ela está. Sua pele está sensível, pálida.
Serenamente, percebemo-nos olhando um para o
outro, e um sorriso fraco, porém consolador, reflete em
nossos corações uma despedida silenciosa. Com olhos
marejados, chegamos ao final de nossa trajetória com uma
ligação até então não percebida. A hora é chegada.
Um adeus latente invade nossas almas, sabíamos que
o momento da separação havia chegado, porém, o silêncio
predominou e mantivemos o sentimento dentro de nós.
Não há o que dizer, não haveria tempo o suficiente
para expressar tamanha gratidão pela cumplicidade ofertada
mesmo diante do erro.
Na mesma noite, dentre meio as dificuldades para
dormir, ouço um profundo respiro e um silêncio estarrecedor.
44
Não queria imaginar o que podia ter acontecido e preferi
adormecer.
Conforme a claridade invadia nosso quarto, o medo de
enfrentar uma possível realidade tomava conta do meu ser,
confundindo razão e emoção diante da dolorosa realidade
reservada junto ao amanhecer.
Vagarosamente, olho para o lado e vejo um
semblante sereno, como nunca antes havia contemplado. Ela
apenas aguardara uma demonstração de afeto para poder
descansar.
Fiquei durante algum tempo contemplando seu rosto.
Diante do corpo gélido, cobri-a como ela costumara se cobrir.
Com um beijo na testa, em sinal de respeito, levantei-me e
segui até a cozinha.
Naquele dia pedi que nossa cuidadora levasse nosso
café na cama. Ela perguntou se estava tudo bem, mas preferi
fingir que não ouvi e voltar para o quarto.
Acariciei seu rosto, pensando em tudo o que podia ter
sido feito e não foi. Flashes do que aconteceu durante nossa
45
trajetória passaram em questão de segundos em minha mente.
Tudo estava terminado.
Com um toque na porta, nosso café é disposto à mesa
e imediatamente nossa cuidadora percebe o que aconteceu.
Olhamo-nos durante um tempo, sem saber o que fazer, ou
quem avisar, afinal, não tínhamos o contato de nossos filhos.
A dignidade, neste ponto, também não pertencia mais a nós.
Quando a equipe funerária chegou e a levou para o
preparo, percebi mais uma vez quão vazia foi nossas vidas.
Sentei-me, como de costume, à varanda e sobre a
cadeira vazia ao lado, seu cobertor agora me fazia
companhia.
As memórias e pensamentos se encontravam
embaralhados. O choque da certeza fez com que tudo o que
parecia estar organizado tomasse dimensões
desproporcionais, iniciando um processo de revolta e
sentimento de abandono.
Conforme o tempo foi passando, algumas pessoas
chegaram à nossa casa para formalizar o pêsame, sustentando
sua obrigatoriedade enquanto cidadão.
46
Senti-me ligeiramente seguro diante das poucas
pessoas que ali se encontravam. Eu sabia que estava sozinho,
porém, preferi focar no instante em que os poucos me
acompanhavam.
Aguardamos algumas horas até que ela chegou. Num
caixão imponente e adornada pelo leito fúnebre, rodeávamos
em casa em busca de um propósito para seguir.
Confesso que ela estava linda, reluzindo um descanso
invejável e uma beleza fascinante. Percebi-me ali,
apaixonado novamente. Sempre foi ela e sempre será a única
e verdadeira razão de um amor pelo qual a negligência
separou.
No silêncio do pesar, o fôlego de vida é quem me faz
companhia, mas sei que este, em algum momento também me
deixará, sendo eu, apenas um corpo a mercê.
Quando esse dia chegar, não haverá dor nem lamento,
apenas a simples obrigatoriedade de ser velado e, com
brevidade, descer ao sepulcro que me foi reservado.
Estaremos juntos novamente, eu e ela pela eternidade, tendo
os corpos consumidos, mas sem a consciência da culpa, ou do
desprazer do passado que, se analisado, possuía um ar pútrefe
47
pior do que a decomposição carnal que nos envolve.
Enquanto esse momento não chega, velo junto aos poucos
conhecidos, o que restou da honra de minha mulher.
Os cânticos que durante a vida entoávamos àqueles
que se foram antes de nós, agora exibem a realidade que
alcançou nossa existência. Cada palavra, cada melodia exerce
uma função nos acordes da dor.
Mesmo com a voz enfraquecida, dentro do coração,
cada letra de cada canção rugia de forma indescritível. Era a
última homenagem, era o melhor de mim dedicado a ela.
A noite foi longa demais para um físico debilitado,
porém, extremamente curta para o medo da separação
vindoura e definitiva.
Ao amanhecer, a chuva fina que caia tornava ainda
mais significativa à tristeza que ardia e abundava a alma de
um velho egoísta e autoproclamado independente de tudo e
todos.
Fomos convidados a nos dirigir a capela e, enfim,
dedicarmos nosso último adeus. Um cortejo pequeno e
silencioso acompanhou-nos pelos poucos quilômetros até a
48
igreja. Flores com dedicatórias diversas eram o adeus da
sociedade pelo qual ela sempre prezou.
Fiquei ao seu lado, não poderia deixá-la. Uma
cerimônia rápida marcou a memória de sua passagem, a terra,
enfim, a aguardava.
Firmei-me em uma das bordas do caixão e a
acompanhei. Os passos lentos tornavam-se ainda mais
vagarosos conforme nos aproximávamos de sua sepultura.
Entoamos os últimos cânticos e vivenciei um último olhar. A
hora era chegada e finalmente a baixaram até sua cova. As
lágrimas se misturavam a chuva fina que nos acompanhou em
todos os momentos. Uma rosa vermelha em uma das minhas
mãos trouxe o ardor da culpa. Não havia mais o que pudesse
ser feito. Lancei-a sobre seu túmulo e solitariamente prestei
minha salva de palmas pela sua existência.
Os últimos cumprimentos marcavam os momentos
finais da obrigatoriedade do meio social. As horas se
passavam e as pessoas, pouco a pouco, foram embora até não
ficar mais ninguém. Estava anoitecendo, era hora de partir. A
separação estava consumada e ficar ali parado olhando as
49
tábulas de cimento que a cobriam não melhoraria em nada
meu humor, nem acalentaria meus sentimentos.
Atordoado pelas longas horas acordado, havia dentro
de mim o medo de chegar em casa e vivenciar a nova
realidade imposta pelo destino. Mesmo sabendo de sua
partida, pelo menos por mais um dia a pudemos esperar e,
mesmo sem vida, ter a sua companhia.
A possibilidade de rever nossos filhos neste momento
de perda trazia um acalento irreal ao sentimento de dor,
porém, não foi essa a realidade reservada.
Ao chegarmos em casa, ainda no carro, o coração
batia forte. Ao abrir o portão, tudo estava absolutamente
igual, mas ao mesmo tempo, completamente diferente. Uma
cadeira de rodas foi colocada à porta do carro, mas preferi,
mesmo com dificuldade, andar e ter o desprazer me ver
sozinho dentro daquilo que por décadas chamamos de lar.
A companhia de alguém que recebe seus honorários
para estar comigo não é capaz de reverter a sombria sensação
de saber que ela não vai mais voltar.
50
Não permiti, num primeiro momento, que nada fosse
mexido. Sequer a roupa de cama pôde ser trocada. Mesmo
fatigado, fiquei por horas na cama acariciando o seu
travesseiro, numa tentativa frustrada de suprir o pouco de
carinho e amor que ela nunca recebeu.
Devo estar perdendo o senso do juízo. Mas era esse
um mecanismo de defesa para suprir um mínimo do
arrependimento pelo que jamais foi feito.
No primeiro amanhecer sem a sua companhia, o que
marcou minha vaga e limitada memória foi perceber na
bandeja do café da manhã, apenas uma xícara e um pequeno
prato de frutas. Não era concebível, era ilógico e intimamente
ofensivo.
Como relatado, não tínhamos um relacionamento
agradável, ou minimamente feliz, mas tínhamos a companhia,
o que tornava-nos acostumados e seguros por saber
simplesmente que o outro estava ali.
Não consegui tomar o café e levantei-me. Apesar das
dificuldades para caminhar, sempre mantive a força, nesse
dia foi diferente, perdi rapidamente o equilíbrio e cai.
51
Deve ser o cansaço pensei, não queria aceitar
que a virilidade que nos tempos de mocidade demonstrara
também estava me deixando.
Rapidamente fui acudido e posto na cadeira de rodas.
Ah como eu detestava aquela cadeira, tornava-me ela
dependente e limitado como um cão em sua guia.
Fui levado ao banho, como de costume, e
posteriormente nossa, aliás, minha cuidadora me levou a
varanda. Quão terrível foi aproximar-me do lugar onde por
anos, em silêncio, passamos nossos dias, eu e minha esposa.
Ao abrir a porta, uma nova surpresa. No lugar onde
sempre houve duas cadeiras de balanço, apenas uma estava
disposta. Eu queria perguntar onde estava a cadeira dela, mas
o nó na garganta me impedia de dizer qualquer coisa. Uma
lágrima imediatamente escorreu daqueles velhos olhos que
sempre foram tão altivos diante de tudo. Prostrei minha
fronte e ali, por horas, dei espaço ao luto pelo qual era
necessário passar.
Quais desagradáveis surpresas ainda poderiam estar
reservadas?
52
Dia após dia, sua presença era fustigada pela retirada
de suas lembranças. Roupas, acessórios, maquiagens... O que
eu poderia fazer se não apenas aceitar? Talvez, alguém, em
algum lugar, possa aproveitar e manter viva a essência e o
gosto excêntrico que só ela tinha.
Eu quis acompanhar tudo e, ofuscado pelas caixas de
bagulhos que se acumulavam, um vestido dentro de uma capa
transparente chamou minha atenção. Pedi que o mesmo fosse
retirado para que eu pudesse vê-lo e confesso que não pude
acreditar no que estava exposto na minha frente.
Seu vestido de casamento ainda subsistia ao tempo.
Óbvio que já amarelado, mas o tecido encontrava-se em
perfeito estado. Era o mais belo, destinado a mais bela das
mulheres da época.
O abandono fez com que, simplesmente, eu não
soubesse, ou não lembrasse de sua existência. Ele não poderia
sair da casa. Era a lembrança do melhor dia e do maior erro
que já cometemos. Ele precisava ficar.
De volta a sua posição original no guarda-roupas,
esteve ali por décadas e eu simplesmente nunca o vi.
53
Dentre todos os sentimentos já vivenciados, não há
nada que se compare ao sentimento de perda que sequer tem
o direito de receber um nome, de tão dilacerante e obscuro
que é.
Após deixarmos tudo organizado, retorno, como de
costume, à varanda. Uma forte pontada na cabeça e uma leve
tontura me deixam desconfortável, algo está errado, mas
prefiro manter-me quieto a sair de casa e ter que enfrentar
uma fila no pronto atendimento. As emoções têm sido fortes
demais para um ser que não se encontra em seus melhores
dias.
Tento arrumar uma melhor posição, porém sinto uma
fraqueza envolvendo meu lado esquerdo. Vagarosamente e
com certa dificuldade encontro uma posição agradável e, de
forma imperceptível, encontro-me em novos momentos de
devaneios e reflexões.
Pego-me na certeza de que o luto, em algum
momento, passará, porém isso não significa que sua
passagem não trará dano ou sofrimento. Há um processo de
reconstrução que cedo ou tarde precisará ser estabelecido, até
54
por que, através da negligência é que chegamos ao patamar
pelo qual nos encontramos.
Quantos mais ainda precisarão morrer, descer ao
sepulcro, ser adornado pelas lágrimas até que entendamos
que o agora não deve ser tratado como uma fundamentação
de um amanhã pelo qual nem sabemos se chegará?
A espera nos tornou velhos, negligenciados,
promíscuos de direitos, mesmo tendo cumprido com louvor e
dedicação cada um de nossos árduos deveres. Subestimados a
vontades de terceiros, quando o respeito e reverência
deveriam ser destinados a quem pôs o meio social aonde se
encontra.
Vidas foram ceifadas pela construção e agora, são
miseravelmente deixadas a mercê do tempo e das
circunstâncias.
As cartadas de sorte de alguns são os índices pelos
quais a mídia expõe orgulhosamente nos meios de
comunicação, protelando esperanças e frustrando,
posteriormente, os ideais dos que creram na grande
pegadinha formulada pela elite dominante.
55
Em tempos de revolta, uma pequena promoção
permite-nos colocar novamente as vendas e sermos levados
por onde quer que decidam, sem a possibilidade sequer de
questionarmos para onde estamos indo e se realmente vale a
pena seguir.
Vendemo-nos por nada, prostituindo nossa dignidade
através de poucas regalias que custarão nosso futuro, com
juros elevados pelos quais somente a morte será capaz de
saldar.
A velhice nos concede a chave das descobertas. Os
que alcançaram as infindáveis possibilidades antes dela, estão
nos altos cargos e dominando os que a aguardam chegar.
Quando o domínio psicológico já não demonstra mais
os ares de eficácia, a força bruta demanda sua protuberância,
intimidando-nos como frágeis resquícios do que um dia pôde
ser aproveitável de alguma forma.
Vale a pena gritar aos sete ventos o que querem nos
impor. De onde viemos e para onde vamos, pelos moldes
sociais, denigrem e confundem os ensinamentos vivenciados
sob anos de construção e cuidado familiar.
56
Fomos o início e o meio, somos agora um legado
socioeconômico que trouxe a bolsa de valores números
jamais vistos e uma estabilidade monetária jamais ofertada.
Na contramão desse caos politicamente organizado,
vislumbramos uns poucos heróis que tentam, mesmo sem
sucesso, transformar o que oito bilhões tem por verdade
absoluta. Verdade constituída em um longo e complexo
processo de construção e manipulação, através de um grito
que ecoou prazerosamente nos ouvidos de uns poucos
influenciadores e que, século após século, dominou o cenário
pelo qual nos encontramos.
A ideologia burguesa é um exemplo clássico,
surgindo sob um viés de independência monetária a todos,
hoje é a engrenagem mestre do capitalismo que rege todas as
nossas movimentações.
A possibilidade de sermos independentes sempre fez
parte do espírito competitivo que rege a raça humana. No
desespero da autoaceitação, compramos a opinião alheia, a
fim de mantermos um vínculo com a elite pelo qual nos
interessa e permeia.
57
Com o toque do telefone, recobro subitamente a
consciência com certo prazer por lembrar das reflexões que o
momento de devaneio me proporcionou. Por poucos
instantes, pude me desligar do mundo real e conceber mais
um pouco dos frutos que a ociosidade é capaz de propiciar.
O telefone é trazido até mim. Depois de anos sem
falar, nem lembro direito como funciona. Do outro lado da
linha, antes que eu dissesse qualquer coisa, a palavra que por
anos esperei ouvir, saiu de uma voz séria e trêmula:
Pai, é o senhor?
Confesso que fiquei mudo por alguns instantes, até
que aquela voz chamou-me novamente.
Pai, o que aconteceu com a mãe?
Passou-se quase um mês e somente agora sou
procurado para relatar que sua mãe havia falecido.
O luto que outrora vinha sendo tratado reabre sua
tumba e invade meu coração, não apenas pela saudade, mas
por simplesmente não conseguir acreditar que nossos filhos
ainda não sabiam da morte de sua mãe.
58
Imediatamente, devolvi o telefone e pedi para que a
cuidadora se retirasse. Como ela deu a notícia e se deu, já não
importava. Recordo apenas de ouvi-la dizer o quão longe
minha filha e seu marido estavam morando e de relatar a ela
quão fraco e debilitado eu estava. Eu não queria me ver
assim, mas era real o que ela falava.
Dentro do ciclo de sobrevivência, adaptamo-nos as
circunstâncias. Não há por que ficar se debatendo diante do
que é imposto, pois o gasto de energia e o estresse apenas
abreviariam os poucos dias que ainda restam de nossa
existência.
Saber caminhar e dar espaço a oportunidade de refletir
sobre cada passo dado, sem tornar automática cada uma das
ações, com certeza impediria muitos dos problemas e
desgastes, mas já é tarde pra pensar nisso e refletir sobre seus
benefícios.
O tempo sem fazer nada é tão grande que me permite
analisar circunstâncias das mais diversas formas e aplicar
uma solução compatível e aceitável a cada uma delas. É uma
forma de ocupar a mente e evitar que ela atrofie,
acompanhando o ciclo do corpo.
59
Diante de mais uma tarde sendo finalizada, num dos
primeiros jantares que me é ofertado após a viuvez, sou
levado até à mesa. Não havia dado importância quando, mais
cedo, senti a dor na cabeça e a fraqueza imediata no lado
esquerdo.
A consequência dessa negligência afetaria as
próximas semanas e o retardo em procurar uma solução para
mais este problema, consolidava, pouco a pouco, o fim de
uma trajetória marcada pelo descaso e frustração.
Como há tempos, o “banquete” restringe-se a uma
papa sem gosto e mal cozida. Consegui, com certa facilidade,
utilizar o talher com apenas uma das mãos, não
demonstrando a dificuldade sentida em relação ao domínio
do meu próprio corpo.
Obviamente que não haveria meios de esconder por
muito tempo essa nova condição que, assim como as demais,
não pediu licença para tomar o seu espaço e simplesmente
entrou, obrigando-me a aceitar e conviver, sem querer saber
se era possível aguentar, ou não.
Era ainda muito cedo quando peço para ser levado ao
quarto. Cumpro a rotina pelo qual estou acostumado e
60
solitariamente tento me colocar de pé. Precisava ser
cuidadoso, afinal, não poderia cair e correr o risco de
comprometer o pouco da mobilidade que ainda restava.
O andador estava próximo, porém, distante demais da
coragem de tentar e correr o risco de fracassar, tornando-me
escravo da companhia pelo qual eu mais detesto. A cadeira de
rodas.
Demora um tempo até a força de vontade vencer o
medo que me acometia, mas, se eu não queria ficar na
cadeira, em algum momento seria preciso sair dela.
Vejo-me uma criança em idade avançada,
reaprendendo tudo aquilo que por muito tempo foi
automático e imperceptível.
Firmei minhas mãos e, antes que pudesse tentar
levantar, percebi-me chocado com a impossibilidade de sair
do lugar.
Isso não pode estar acontecendo, deve ter sido a falta de
concentração. Pensei.
Numa nova tentativa constatei que, subitamente, a
força não estava mais sob o meu poder.
61
Frustração, medo e total dependência. Inúmeros
pensamentos nortearam minha mente em poucos instantes.
Eu estava inválido, eu era um inválido.
Apoiei minha perna direita e literalmente mergulhei
na cama, dando-me o direito de não aceitar o que estava
acontecendo. Não tive como me arrumar direito. O que já não
era fácil tornou-se impossível.
Foi um martírio tentar dormir. Não havia posição, até
por que não havia como me mexer. Eu estava dolorido, mas
não queria me dar o direito de chamar a cuidadora.
Quão longa foi à noite, quão desesperador foi pensar
no dia seguinte e na impossibilidade que me acometera.
Comecei a rezar e pedir para que tudo isso fosse apenas uma
estafa devido aos últimos acontecimentos, tornando esse
pesadelo algo passageiro e sem grandes consequências.
Mais um amanhecer, mais uma grande perda. Pouco a
pouco vou entregando os pontos, cultivando a certeza de que
estou perdendo a batalha da vida contra a morte.
Ainda havia uma esperança, porém, era preciso deixar
o orgulho de lado e admitir que eu precisava de ajuda. Com
62
dificuldade, chamo a cuidadora e peço ajuda para levantar da
cama. Ela me põe sentado e me olha fixamente. Sim, ela
percebeu que havia algo errado, mas não falou nada, pois
sabia que eu não aceitaria ser levado a um médico. Como já
trabalha em casa há um tempo considerável, ela, melhor do
que ninguém sabia de minha teimosia e que, obviamente eu
não aceitaria sair de casa para passar por um “check- up”.
Fui posto na cadeira e, conforme a rotina, cumpri com
minhas atribuições diante do possível. Ao contrário do que
estava acostumado, neste dia fui levado de volta para o quarto
ao invés de ir para a varanda.
Antes que pudesse me retirar da cadeira, pedi que
pusesse o andador diante de mim e prontamente a cuidadora
atendeu. Eu precisava tentar mais uma vez, era tudo ou nada,
mas, pelo semblante dela estava na cara que o tudo era uma
possibilidade improvável.
Firmei-me e frustradamente, por mais uma vez, não
consegui o menor movimento sequer. A longínqua
possibilidade de ficar preso numa cadeira era, agora, presente
e muitíssimo real.
63
Que motivos pra viver eu ainda poderia ter, sendo que
os maiores prazeres e as melhores companhias me foram
tiradas sem pudor algum?
Sou posto novamente na cama. Havia algo de estranho
neste dia e ninguém melhor do que a mulher que me
acompanhava pra saber disso. Eu pedi para ir pra rua, ficar na
varanda como de costume e desta vez foi ela quem fingiu não
me ouvir e saiu.
Passaram-se poucos minutos até que um carro
estacionou próximo à porta de casa. Percebo uma breve
conversa pela qual não consegui ouvir e repentinamente,
deparo-me com uma pequena equipe médica me cercando e
fazendo inúmeros questionamentos.
Diante de pequenos testes, sou comunicado que serão
necessários exames mais específicos e que precisarei, com
urgência, ser levado ao hospital. O conforto do lar estava
sendo diretamente confrontado com a possibilidade de se
descobrir algo e prolongar, ou não, meus dias na face da
terra.
Uma pequena mala já estava pronta. Tudo foi pensado
de forma premeditada e, por mais que negasse a vontade de
64
ir, assim como uma criança que não tem escolha, sou levado
à ambulância. Fui literalmente carregado, pois já não
conseguia mais caminhar sozinho. O carro que minutos antes
ouvi parar na porta de casa estava, agora, me levando, contra
a vontade, para um lugar que não era meu.
Morávamos nas proximidades, tornando rápido o
trajeto. Com certa inocência, pensei em fazer os exames e
com brevidade sair de lá. Entrei na recepção, onde
entregaram os documentos e encaminhado posteriormente ao
quinto andar do hospital.
Eu não pedi aquilo, queria apenas ficar em casa e
cumprir com todo o protocolo, conforme tudo vinha sendo
demandado.
Ao avistar uma enfermeira, pergunto que horas serão
os exames para que eu possa ir para casa. Ela me informou
que tudo dependeria do quadro clínico e mediante mais
informações me informaria.
Olhando para o quarto, havia do meu lado uma
senhora, aparentemente, em estado vegetativo. Estava
cercada de aparelhos e constantemente recebia os cuidados da
equipe de enfermagem. Perguntei-me se seria ela também
65
uma pessoa sozinha, mas, com brevidade, percebi alguém que
já era conhecido na enfermaria e que a acompanhava em
tempo integral.
Com certa agilidade, sou encaminhado à sala de
exames. Foram inúmeros procedimentos realizados a fim de
descobrir pontualmente o que aconteceu comigo e por que
perdi a movimentação do lado esquerdo. Como há tempos
não havia ido a um médico, demais exames foram realizados
para constatar a presença de outros problemas provenientes
da idade.
De volta ao quinto andar, sou informado que
precisarei passar à noite ali e que alguém da família deveria
ser avisado, pois eu já era uma pessoa idosa e necessitava de
acompanhamento.
Não havia ninguém que pudesse ser informado,
nenhum filho, parente. Eu não tinha contato com
absolutamente ninguém. Tudo isso era o reflexo de um
passado imundo que negligenciou a família, protelando
momentos em troca de dinheiro e bem estar profissional.
A única pessoa possível, na ocasião, era a
acompanhante que mantinha os cuidados básicos em minha
66
casa. Como convivemos em um meio pelo qual nada
acontece gratuitamente, ela concordou em acompanhar-me,
impondo seu preço. Era pegar ou largar.
Sua atitude me fez lembrar dos tempos em que as
pessoas eram subordinadas a minha posição profissional.
Quantos deles se dirigiam a minha sala, sob o intuito de
receber um pequeno aumento salarial, que traria a
possibilidade mínima de construir seus sonhos. Eu neguei,
não uma, nem duas vezes, pois o “rei” que havia dentro de
mim precisava do conforto que os “plebeus” não
conseguiriam compreender.
Preciso constantemente de ajuda para mover-me na
cama. As barras de segurança nas laterais traziam certo
conforto para que o sono fosse minimamente reparador.
Logo cedo, o médico vem ao quarto e solicita a
presença do familiar em seu consultório. Não tinha como eu
permitir que a cuidadora fosse e assumisse a responsabilidade
que é somente minha. Ela também não fez a menor questão
de ir. Como não havia outra possibilidade, o diagnóstico foi
dado ali mesmo.
67
Conforme as palavras dele soavam, ditando o
diagnóstico que poria um cronômetro a minha vida, percebi
que Deus havia sido misericordioso, poupando minha esposa
e levando-a antes que ela pudesse ser vítima das
circunstâncias e consequências que criamos.
Eu havia sofrido um derrame cerebral. Pelas imagens,
que pouco entendemos, a área de abrangência atingiu uma
parte importante do cérebro. As consequências somente não
foram maiores devido à restrita movimentação mantida em
casa. O lado esquerdo, contudo, estava paralisado e devido o
adiantamento da idade, as chances de recuperação eram quase
zero. Mais um golpe certeiro que vinha para fundamentar o
fim de minha passagem.
Olhei para a cuidadora que nitidamente se mostrava
assustada. Eu estaria dependendo por completo de sua ajuda e
não sei se ela seria capaz de suportar a pressão vindoura e
irreversível.
Uma nova rotina, conforme os dias passavam naquele
hospital, ia se estabelecendo. Do meu lado, a mulher que
vegetava, constantemente na mesma posição. Seu
acompanhante que vem e sai nos mesmos horários. O barulho
68
das sirenes das ambulâncias, a papa que chamam de comida,
as dificuldades para sair da cama na hora do banho. Tudo
exatamente igual, dia após dia.
Senti saudade dos momentos de devaneios, daquela
concentração intensa que me fazia perder a noção do tempo,
refletindo sobre as questões sociais que nortearam a
existência de nossa família. Tudo vinha acontecendo de
forma completamente diferente do que, no passado, eu havia
sonhado.
Foram inúmeras visitas médicas sob o intuito de trazer
um tratamento que melhor se adequasse as minhas condições
físicas. Confesso que minha capacidade intelectual não foi
capaz, nem de longe, de prever quão dificultosa seria a
tentativa de recuperar o mínimo da dignidade e
independência.
Dia após dia, minha condição humana subsistia às
circunstâncias. O semblante havia mudado, fazendo crescer
dentro de mim o desejo da entrega e desistência.
Quanto tempo mais isso tudo duraria? Havia um
veredito pré-estabelecido e uma contagem regressiva que
abalava o psicológico de forma mais agressiva do que o
69
próprio tratamento. Eu não sabia se comemorava por
amanhecer vivo, ou se lamentava por saber que o tempo
estava se findando.
Como os cuidados eram, de forma geral, por
remédios, solicitei alta para que eu pudesse findar meus dias
em casa. Seria melhor, era o meu ambiente, as minhas coisas.
Eu poderia ficar à varanda que por anos foi confidente das
mais profundas reflexões e ali definhar, acompanhando o
ritmo da doença. Não havia motivos para ficar ali tomando
um leito de alguém que possa precisar mais e ter a chance de
se recuperar.
Por consentimento médico, a alta foi concedida.
Dentre as infindáveis recomendações, além dos inúmeros
remédios, era necessário ter o acompanhamento de um
fisioterapeuta para estimular as movimentações básicas.
Seria, segundo a equipe médica, um processo de recuperação
extremamente doloroso, longo e sem garantias.
Finalmente, eu estava deixando o hospital e poderia
voltar para casa. A ambulância que dias atrás me buscava,
agora me levava de volta, despertando um sentimento de
70
alívio por saber que eu não passaria meus últimos dias
naquele lugar.
Desde a chegada em casa, até o cumprimento das
rotinas básicas, tudo era extremamente difícil. Eu dependia
de alguém pra tudo e esse alguém era a mulher que, mesmo
sendo paga, cuidou de mim até o último dia.
Sempre me remeti a ela como cuidadora. O título se
deve ao pouco caso que eu fazia pela não aceitação de
alguém que viesse ao meu auxílio para que eu pudesse
cumprir com as necessidades mínimas a sobrevivência.
Na verdade, seu nome é Rosana. Uma pessoa simples
e digna que trabalhava duro para sustentar seus dois filhos,
que ainda eram bem pequenos. Seu marido, pelo qual nunca
fui apresentado, era carpinteiro, e pelas poucas conversas que
tivemos sobre sua vida pessoal, demonstrava ser um
batalhador, esquecendo-se muitas vezes do matrimônio que
os envolvia, para garantir um futuro melhor para os filhos,
que, ao contrário dos meus, recebiam todo o zelo que
somente a simplicidade é capaz de oferecer.
Confesso que a vida deles me inspirava. Eu nunca
disse isso a ela, até por que eu não teria mais a oportunidade
71
de construir, assim como eles, uma família novamente. Das
poucas condições, eles tiravam os mais simples e belos
momentos juntos.
Era bom saber que a família primitiva ainda não
estava extinta. Havia valores dentro de sua casa pelos quais a
sociedade não foi capaz de ofuscar e isso os tornava felizes
por serem anônimos a elite, porém grandiosos dentro do
próprio lar. Heróis para os filhos que diziam querer ser iguais
a eles. Verdadeiros mestres da solidez e do cuidado.
Meus filhos nunca disseram querer ser iguais a mim,
ou a mãe deles, nem mesmo quando pequenos. Seria esperar
demais que depois de velho algum deles dirigisse esse tipo de
palavra, ou agradecessem pela influência positiva ofertada na
infância e adolescência.
Não tive a oportunidade de agradecê-la pelos serviços
prestados a nossa família, pois sempre reinou dentro de mim
um amargor paralisante que me impossibilitava de
demonstrar um mínimo de apreço por alguém.
Um instante, porém, pelo qual não me reconheci, foi
quando tive o privilégio de aconselhá-la, evitando que
cometessem o erro que eu, enquanto pai e marido cometi
72
junto a minha finada esposa. Pedi para que zelasse pelo bem
maior que a acompanharia até o fim dos seus dias. Seus
filhos, em breve, cresceriam e seguiriam seu rumo. Seu
marido, no entanto, estaria ao seu lado diante da invalidez e
juntos seriam alicerces de um para com o outro. Era minha
contribuição. Absolutamente tudo o que eu podia oferecer
enquanto ser humano.
A doença fez de mim um fardo a ser carregado por
todos os lados e o cansaço já acometia os olhos e o corpo
daquela mulher.
Mesmo sem demonstrar, era prazeroso pagar seu
salário. De nada me adiantava possuí-lo, pois ele não
devolveria minha saúde e muito menos a jovialidade.
Passei uma vida de mesquinharia com o intuito de, na
velhice, poder desfrutar dos seus poderes e prazeres. Sempre
imaginei que o casamento poderia dar uma reviravolta diante
do deleite das viagens e passeios que nunca ocorreram.
Novamente, à varanda de casa, me ponho a refletir.
Faltava minha esposa, aliás, faltavam muitas coisas, mas eu
estava lá, fazendo o que ainda me era permitido. Pensar.
73
Eu nunca admiti que um fisioterapeuta viesse me
tratar. Não retornei às consultas, alegando que minhas
últimas vontades deveriam ser respeitadas. Como não havia
nenhuma garantia, evitar qualquer novo sofrimento já
significava uma grande conquista.
Meu corpo estava, pouco a pouco, atrofiando. Eram
cada vez menores as movimentações e as dores começavam a
fazer parte do cotidiano. Às vezes, elas eram tão intensas que
os remédios mais fortes não eram capazes de amenizá-las.
Nem sempre eu conseguia levantar da cama. As necessidades
fisiológicas eram as únicas obrigações de me fazer sair dela,
sob gemidos e tensões quase insuportáveis.
Não valia mais a pena o esforço. Eu estava
ultrapassando os limites da racionalidade pelo simples fato de
não admitir que o término de minha passagem seria diante da
dor. De mãos dadas, a morte me puxava para o abismo com
agressividade, impondo sua magnitude e deixando-me,
rapidamente, sem forças para resistir.
Havia algo, porém, que poderia ser feito, não
demandando força física, mas um gesto de boa vontade, cujo
estava aprendendo a conhecer. Ainda não havia um
74
testamento e era necessário deixar os bens terrenos às pessoas
mais importantes.
Somente quem passou por isso sabe que é
extremamente perceptível os sinais que a morte da quando
está por perto. Não há como explicar. É algo que se sente e se
aceita.
Solicitei a presença de um escrivão e, diante dele,
ditei, ouvindo em uma das raras vezes a voz que vem do
interior, os nomes daqueles que tomariam conta daquilo que
foi construído através de muito suor e trabalho. Foi uma
conversa íntima, dificultosa e longa. Queria apenas que as
pessoas soubessem do testamento, imediatamente após serem
informadas sobre minha partida. Elas seriam donas do que
um dia eu pude chamar de meu e, quem sabe, conseguiriam
trazer a casa ares mais suaves e saudáveis, constituindo a
denominação de lar ao local.
Ao assinar o testamento, reservei-me ao direito de
descansar, sentindo o momentâneo prazer de ter feito a coisa
certa, às pessoas certas.
Restava-me aguardar que o tempo destacasse o esboço
de minha história das páginas do seu livro, idealizando um
75
recomeço sob uma nova ótica a um alguém qualquer que,
com o seu passar, teria o mesmo final.
Reconheci, conforme a idade avançava que a
plenitude de Deus se mostra através de pequenos gestos e
estes nos tornam mais parecidos com Ele. Nunca O culpei
pela minha condição, até por que eu havia procurado aquela
realidade. Não era nada fácil perceber-me daquele jeito,
completamente impossibilitado de qualquer outra coisa que
não fosse pensar. A simples consequência da imoralidade
psíquica e física nitidamente resplandecida pela debilidade
irreversível que leva vorazmente a força e vitalidade.
Fui a boa semente lançada em terreno pedregoso,
onde não houve cultivo e cuidados, produzindo,
dificultosamente, frutos pelos quais a grande safra não
aceitou.
Seriam tantas histórias, tantos medos, tão poucos
acertos a serem redigidos pelas velhas mãos que se fazem
frágeis e fracas, mas tenho consciência que por mais que se
modificassem as palavras, em algum momento as frustrações
e os devaneios se tornariam redundantes, densos e onerosos
ao tempo que não temos mais.
76
Palavras foram feitas para serem lançadas ao ar, mas
torna-se necessário saber o momento de parar para que se
possa recolhê-las e organizá-las. Foi isso que fiz, lancei-as e,
uma a uma, as recolhi, formando o rascunho daquilo que foi
vivido, esboçando com graça a desgraça de não saber viver.
O cheiro da morte ronda o ambiente. Ela está perto,
sedenta por mais uma ceifa, trazendo ao mundo a condição de
haver menos um. Aquele ano não se findaria sem que ela
cumprisse sua função com extrema competência e destreza.
Meu aniversário estava próximo, seria o último a ser
silenciosamente celebrado e era preciso passar por ele. As
forças limitadas precisavam ser resistentes a ponto de vencer
essa última etapa. Seria o primeiro sem minha esposa e o
último de minha existência.
Não foi fácil suportar sua chegada. As noites se
tornavam cada vez mais convidativas a entrega da alma, mas
o orgulho enaltecia uma força inexplicável que fazia a
resistência perdurar sobre a lógica.
Eu estava sendo humilhantemente exposto ao ridículo
a mim mesmo, querendo negar a realidade e não aceitando a
77
partida como se, de alguma forma, eu tivesse poder e
domínio para isso.
Os dias foram passando até que, finalmente, pude
triunfar uma última vitória. Havia chegado, enfim, o dia 8 de
agosto. Foi o mais prazeroso aniversário a ser celebrado.
Houve sacrifício, esforço para alcançá-lo e por isso há nele
um sabor diferente de todos os que vivenciei.
Galguei um último objetivo, completando meus 87
anos. A partir de agora, um ciclo curto, porém
psicologicamente saudável se inicia. Não haverá mais medida
de forças, mas sim, a plena aceitação de tudo o que pode
ainda ser ofertado a mim.
Recebi, como uma grata surpresa, o único, singelo e
tocante presente que trouxe um verdadeiro transbordar de
sentimentos, misturando tristeza, dor, saudade, alegria e
gratidão. Rosana, minha cuidadora, agraciou-me com um
pequeno bolo no café da manhã e, ao lado da bandeja, um
embrulho que despertou curiosidade.
Com a voz enfraquecida, agradeci-a pela bondade de
ter se disposto a tal atitude. Solicitei sua ajuda para abrir o
78
embrulho e dentro dele estava uma linda e delicada
lembrança.
Uma foto minha e de minha mulher, em um de nossos
últimos dias juntos, sentadinhos como crianças nas nossas
cadeiras de balanço, fazendo o nosso melhor, que era olhar
para o nada e respeitar o silêncio.
Olhei para Rosana que estava com os olhos
marejados. Eu não consegui falar mais nada a partir daí. Ela
sentou ao meu lado, na cama, e olhando nos meus olhos disse
que minha esposa estava bem, em um lugar bom. Não pude
conter as lágrimas e junto ao meu peito, mantive por horas e
horas o maior e melhor presente que alguém poderia receber.
Suas palavras me fizeram refletir e no decorrer dos
poucos meses que seguiram, percebi-me entregue e
minimamente em paz, aguardando que os dias simplesmente
continuassem vindo, aberto e receptivo aos seus possíveis
males.
Aproveitando-se dessa energia que compunha minha
existência, a morte gentilmente me convidou a dedilhar a
melodia da despedida.
79
Dentre meio aos devaneios que arguiram momentos
de bel prazer, na varanda de casa, sob o entardecer da
primavera e solitariamente, entreguei-me. Um momento
intimamente sonhado, contudo, protelado pela teimosia de
querer cumprir com mais uma meta e, por fim, dar um último
passo.
Aquela tarde de Outubro trouxe o fim de uma
trajetória negligenciada, promíscua e agora, conhecida por
todos.
Na lápide, jazem os nomes de Marília e finalmente,
junto a ela, Francisco. Dentre tantos Franciscos e Marílias,
cruzamos nossos destinos, completando-nos, mesmo que de
forma não habitual.
Deixamos três filhos lindos, dois rapazes, João e
MIguel e uma linda mulher, Gabriela. Futuras vítimas de uma
sociedade que se diz democrática e acolhedora.
Estamos aquém de um plano real. Prontos para viver a
abundância do sobrenatural, em um novo plano, sob uma
nova ótica onde o erro não faz parte do cotidiano.
80
Quem sabe, possamos consertar agora, com
sentimentos renovados, tudo o que foi quebrado e perdido no
decorrer de nossa existência humana. Sinceramente, o que
será a partir daqui já não importa. Estaremos juntos e isso sim
significa muito.
Deixei a vida com profunda dor de não ter visto meus
filhos e netos crescerem, em contrapartida, uma nova família
foi constituída através dos anos de convivência e cuidado.
Rosana se tornou filha, amiga e literalmente cuidadora tanto
minha, quanto de minha mulher. Espero que ela e sua família
desfrutem do melhor que nossa casa possa oferecer, afinal,
foi para eles que destinei todos os meus bens. Cada gesto,
mesmo os que eu desaprovei por inúmeras vezes, tornaram-se
peças do grande quebra-cabeça que me levou a considerá-los
aptos a administrar o patrimônio que um dia foi meu e de
minha “família”. Nunca soube, ao certo, quem a enviou para
cuidar de nós, mas agradeço, pois através desta mulher pude
abater o orgulho que sempre orquestrou minhas atitudes.
A Deus, resta a gratidão pela oportunidade de passar
por esse mundo e deixar registrado a inconsequente relação
entre ele (o mundo) e eu.
81