Roberto Schwarz_esau e Jaco

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Entra cantando, Apolo, entra cantando. Machado de Assis A poesia das páginas iniciais de Esaú e Jacó (1904) é especial. O segredo, até onde vejo, está no andamento digressivo da prosa, que sujeita um episódio trivial, impregnado da atmosfera bra‑ sileira de ex‑colônia, a uma inesperada sucessão de contiguidades. Como quem não quer nada, à maneira solta da crônica de jornal, o narrador vai e vem entre uma cena da vida privada fluminense, os há‑ bitos de passeio dos demais moradores da cidade, algo da vida ingle‑ sa do tempo, um pouco de Grécia antiga e outro tanto de escravidão negra e mestiçagem. Surgidas ao acaso da narrativa, é claro que estas vizinhanças em aparência disparatadas não têm nada de casual. O seu conjunto forma uma trama de referências bem calculada, a cuja luz a vida dos brasileiros civilizados parece encontrar a sua medida. [1] Este artigo faz parte de um vo‑ lume de homenagem aos 70 anos de Davi Arrigucci Jr., a ser publicado em 2015. DANÇA DE PARÂMETROS 1 Roberto Schwarz RESUMO A abertura de Esaú e Jacó é um dos grandes momentos da narrativa brasileira. Subjacente ao seu andamento errático, há um sistema engenhoso de tópicos e pontos de vista, em que está configurada a experiência histórica de uma ex‑colônia. PALAVRAS‑CHAVE: Machado de Assis; Esaú e Jacó; romance brasileiro; romance moderno. ABSTRACT The opening of Esau and Jacob is one of the great moments of Brazilian narrative. Underlying its erratic progress, there is an ingenious system of topics and viewpoints, in which is set the historical experience of a former colony. KEYWORDS: Machado de Assis; Esau and Jacob; Brazilian novel; modern novel. NOVOS ESTUDOS 100 ❙❙ NOVEMBRO 2014 163

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Novo texto crítico de Roberto Schwarz sobre a obra de Machado de Assis. Agora, trata-se da abordagem de "Esaú e Jacó", obra até então não discutida pelo crítico machadiano.

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  • Entra cantando, Apolo, entra cantando.Machado de Assis

    A poesia das pginas iniciais de Esa e Jac (1904) especial. O segredo, at onde vejo, est no andamento digressivo da prosa, que sujeita um episdio trivial, impregnado da atmosfera brasileira de excolnia, a uma inesperada sucesso de contiguidades. Como quem no quer nada, maneira solta da crnica de jornal, o narrador vai e vem entre uma cena da vida privada fluminense, os hbitos de passeio dos demais moradores da cidade, algo da vida inglesa do tempo, um pouco de Grcia antiga e outro tanto de escravido negra e mestiagem. Surgidas ao acaso da narrativa, claro que estas vizinhanas em aparncia disparatadas no tm nada de casual. O seu conjunto forma uma trama de referncias bem calculada, a cuja luz a vida dos brasileiros civilizados parece encontrar a sua medida.

    [1] Esteartigofazpartedeumvolumedehomenagemaos70anosdeDaviArrigucciJr.,aserpublicadoem2015.

    DANA DE PARMETROS1

    Roberto Schwarz

    RESUMO

    A abertura de Esa e Jac um dos grandes momentos da

    narrativa brasileira. Subjacente ao seu andamento errtico, h um sistema engenhoso de tpicos e pontos de vista, em

    que est configurada a experincia histrica de uma excolnia.

    PALAVRASCHAVE: Machado de Assis; Esa e Jac; romance brasileiro;

    romance moderno.

    ABSTRACT

    The opening of Esau and Jacob is one of the great moments of

    Brazilian narrative. Underlying its erratic progress, there is an ingenious system of topics and viewpoints, in which is

    set the historical experience of a former colony.

    KEYWORDS: Machado de Assis; Esau and Jacob; Brazilian novel;

    modern novel.

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    [2] MachadodeAssis,Esa e Jac.RiodeJaneiro:LivrariaGarnier,1988,p.19.

    [3] Id.,ibid.

    O romance comea com duas mulheres subindo o morro do Castelo. Mal comearam a subida, entretanto, j na terceira frase, antes ainda que elas tenham feito o que quer que seja, o narrador as deixa de lado e observa que [m]uita gente h no Rio de Janeiro que nunca l foi [ao morro], muita haver morrido, muita mais nascer e morrer sem l pr os ps. Atravs da digresso, que interrompe o fio incipiente da intriga, as duas annimas se veem contrastadas com um semnmero de conterrneos, passados, presentes e futuros. Quem so eles? Qual o sentido da comparao? Ser favorvel? Desfavorvel? Por um lado, como sabiam os leitores, o morro no era frequentado por todo mundo e menos ainda pela gente bemposta. Por outro, ter ido a um lugar que muita gente ignora ou evita no deixa de contar como uma superioridade, pois [n]em todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Embora no esteja dito que as annimas conhecessem o Rio de Janeiro de fio a pavio, certo que elas se aventuraram onde muita gente nunca esteve e que, em plano rarefeito, o cotejo as mergulhava em cheio na efervescncia urbana discretamente configurando uma situao de simultaneidade moderna. Assim, entre as donas, a muita gente que nunca l foi e os raros que conhecem tudo da cidade, se que estes existem, se estabelece um jogo virtual, ligeiramente cmico, da ordem do diz que diz, do comentrio mtuo, da discriminao e da competio, que ele mesmo um achado. Com risco de exagerar, digamos que no plano dos pronomes h uma dana abstrata das mais sutis, um cotejo entre as duas, a muita gente e os nem todos, apontando para o carter fluido e dividido da cidade, para a indiferena, os vetos e o interesse recprocos. Em chave implcita, alm de minimalista, so fraes da capital do pas que rivalizam a propsito de um bairro habitado pelo povo pobre, o qual faz parte ntima do conjunto, a despeito da separao2.

    Antes ainda que termine o pargrafo, o episdio quase inexistente adquire um raio maior, para no dizer planetrio, por efeito de uma intercalao intempestiva: Um velho ingls, que alis andara terras e terras, confiavame h muitos anos em Londres que de Londres s conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrpole e do mundo3. A que vem aqui este ingls de anedota, que torce o nariz para o planeta, no sem antes percorrlo todo, e que alm do mais no reaparecer ao longo do livro? Ele seria um smile amplificado das donas audaciosas, que vo aonde outros no foram? Ou seria do outro partido, para o qual as terras e terras no valem o clube do costume? Impossvel saber. Perto de suas andanas, em que vagamente ecoam a superioridade e as dimenses do Imprio Britnico, e, por tabela, a posio secundria do Brasil, a ida das duas mulheres ao morro pouca coisa. claro que a comparao, meio humorstica, no teria ocorrido a elas. mais outra digresso do narrador, o conselheiro Aires, que por

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    [4] Id.,ibid.,p.24.

    sua vez um diplomata viajado, dono de uma prosa ultrarrefinada, alm de afetada, que na ocasio nos faz saber que frequenta ambientes exclusivos em Londres. Seja como for, embora o paralelo faa sorrir, a comparao est feita. Curiosamente, a despeito da ironia, ela no desqualifica a aventura fluminense das duas senhoras, a qual sai de seu enquadramento brasileiro e erguida ao mesmo mundo e tempo do ingls globetrotter a cena contempornea , sem prejuzo da grande distncia geogrfica e social. Embora no parea, o mundo um s e pode despertar curiosidade em todos os seus pontos, mesmo os remotos. O morro do Castelo, a cidade inteira do Rio de Janeiro e a ordem internacional cuja metrpole Londres so cenrios imbricados, o que literariamente era e uma proeza.

    Natividade e Perptua assim se chamam as senhoras, alis irms sobem o morro para consultar uma vidente. Meio s escondidas, com o vu baixado sobre o rosto, elas procuram a casa da cabocla do Castelo, cujos poderes sobrenaturais naquele momento davam o que falar na cidade. Desejam conhecer o futuro presumivelmente grande dos gmeos de Natividade, nascidos h pouco mais de um ano. Depois do pargrafo algo impalpvel que j comentamos, mais de sugestes que de figuras, que evitava denominar a matria das tenses sociais, entram em cena os contrastes de raa, cultura, religio e classe, alm do nome prprio das personagens. As cores agora so francas, por oposio tenuidade e abstrao eufemstica que dominavam nas linhas iniciais. Sem meias palavras, o povo do morro pobre, composto de crianas, lavadeiras, crioulos, soldados, padres, lojistas etc., ao passo que as freguesas da adivinha, que preferem no ser identificadas, pertencem chamada boa sociedade do Rio de Janeiro. Diante da diversidade tensionada do real, os pronomes indefinidos os alguns, nem todos, a muita gente funcionam como parfrase discreta, ligeiramente irnica, ou como libi para a desigualdade. Generalizando, digamos que esse vaivm entre os registros abstrato e concreto, entre o pronome e a coisa, entre a impessoalidade e a pessoa fsica, a que se prende um humorismo prprio, um procedimento constante da prosa machadiana, em que ressoa uma experincia histrica. O seu suporte de fundo a discrepncia entre a paisagem social da excolnia, marcada pelo colorido prburgus, retardatrio a seu modo, alm de extico, e a idealizao engomada da civilizao europeia moderna.

    Tratandose de gente fina, que se queria superior ignorncia popular, a visita cabocla podia ser um passo em falso. Natividade e Perptua sabiam disso e consideravam que estariam perdidas se fossem descobertas embora muita gente boa l fosse4. Esta ltima ressalva, que para as duas senhoras significava uma atenuante, para o leitor avisado funciona como uma piscadela do conselheiro Aires, que faz saber aos atentos que a sociedade carioca era menos esclarecida do

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    [5] Id.,ibid., pp.35e47.

    [6] Id.,ibid.,p.20.

    [7] Id.,ibid., pp.1920.

    que pretendia. Vejase neste sentido o marido de Natividade, um banqueiro que escarnece das crendices da gente reles ao mesmo tempo que ele prprio faz uma consulta esprita, naturalmente autorizada por leis cientficas5. Com a arrogncia de menos, a posio das irms igualmente representativa: Tinham f [na cabocla], mas tinham tambm vexame da opinio, como um devoto que se benzesse s escondidas6. De passagem, notese a malcia com que a prosa do conselheiro mescla a terminologia catlica da f, da devoo e da bno esfera da religiosidade afrobrasileira. Em suma, as duas senhoras precisavam passar despercebidas, a) para no se verem misturadas ao povo do morro, j que pertenciam s classes distintas da sociedade, e b) para no serem malvistas em sua prpria classe social, que entretanto era menos evoluda do que se dizia. Diferentemente da consulta esprita do banqueiro, a visita cabocla deixava transparecer afinidades com o fundo popular do pas, cuja composio cultural e social miscigenada, herdada da Colnia, era justamente o que interessava classe alta esconder. Completando a desfeita aos esquemas aprovados, observese ainda que nas circunstncias o objeto da curiosidade no era o mundo popular, com sua gente mestia e religio brbara, mas sim as duas senhoras, que faziam figura extica no ambiente. Uma crioula perguntou a um sargento: Voc quer ver que elas vo cabocla? E ambos pararam distncia, tomados daquele invencvel desejo de conhecer a vida alheia, que muita vez toda a necessidade humana7. Sem alarde, o deslocamento da iniciativa, ou melhor, do invencvel desejo de conhecer a vida alheia, faz diferena, contrariando as precedncias de classe implcitas, por exemplo, no enfoque naturalista da poca. Por um momento, a narrativa adota a tica dos de baixo, ao passo que a marca do exotismo se aplica aos de cima. O procedimento desautomatiza a hierarquia corrente e torna mais arejado o quadro, ao qual confere a dimenso policntrica do conflito social. Graas a transformaes pequenas mas decisivas, o que pode parecer uma simples crnica da periferia pobre da cidade, com seu pitoresco unilateral e sem surpresa, ganha a liberdade da verdadeira literatura.

    No mesmo esprito de impertinncia velada, a narrativa anota que a sala da adivinha simples, com paredes nuas, sem nada que sugira o sobrenatural nenhum bicho empalhado, esqueleto ou desenho de aleijes , salvo um registo da Conceio colado parede, que entretanto no assusta. Rindo para dentro, com iseno esclarecida, de livrepensador, o conselheiro no faz diferena entre a imagem da Virgem Imaculada e os demais petrechos simblicos da superstio. Em seguida, depois de relativizar o mistrio cristo, alinhandoo entre outras formas populares de credulidade, o narrador troca o rumo das comparaes e enaltece a religiosidade do povo, agora posta em paralelo com os costumes da Grcia antiga. Rel squilo, meu amigo, rel

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    [8] Id.,ibid.,p.20.

    [9] Id.,ibid.,p.37.

    [10]Id.,ibid.,p.126.

    [11] Id.,ibid.,p.22.

    [12] Id.,ibid.,p.21.

    [13] Id.,ibid.,p.22.

    as Eumnides, l vers a Ptia chamando os que iam consulta []8. Tambm aqui o propsito de confundir o leitor bempensante, que olha de cima a sacerdotisa do morro. No h dvida que o conselheiro estava sugerindo que o Rio de Janeiro da cabocla um caso de polcia, segundo certo desembargador9 poderia ter algo em comum com a Atenas de squilo. Nesse caso, o nosso vergonhoso atraso popular teria virtualidades clssicas, e chegaria talvez a ser o bero de uma civilizao? uma sugesto lisonjeira, que se ope ao pessimismo pseudocientfico das teorias naturalistas, da raa e do meio, que condenavam o nosso povo inferioridade. Dito isso, a comparao tem tambm um ponto de fuga oculto, menos favorvel, que num livro to maquinado precisa ser levado em conta. Nas Eumnides, os augrios horrendos da Ptia precedem uma viravolta triunfal, a instituio da justia propriamente humana na cidade; interrompese o ciclo brbaro e interminvel das vinganas de sangue e abrese uma nova era. Ao passo que as palavras da cabocla anunciam o contrrio: os gmeos de Natividade, que mal ou bem alegorizam a vida poltica do pas, brigaro por toda a eternidade, a propsito de tudo e de nada, numa rivalidade de classe alta, sem sentido e medocre. Cabe ao bom leitor, que segundo Aires dotado de vrios estmagos, como os ruminantes10, decidir se a aproximao com a Grcia clssica um gesto de reivindicao nacional, um sarcasmo dirigido ao establishment ou as duas coisas.

    O discernimento com que conduzida a cena em que Natividade consulta a vidente admirvel, sem concesso ao sobrenatural nem desprezo ilustrado pela vida popular uma posio que em cem anos no envelheceu. O transe da cabocla descrito sobriamente, com leve estilizao clssica, longe do exotismo ou sensacionalismo. Agitavase agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braos, ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino11. At onde vejo, no h aqui inteno de desmistificar, mas tampouco de fazer crer. De fato, as palavras ulteriores da adivinha no tm nada de inexplicvel, uma vez que s profetizam o que a prpria Natividade sugeria ou deixava entrever. Nem por isso so invencionices, pois traduzem o que os olhos da cabocla, lcidos e agudos, ou tambm opacos, que entravam pela gente e revolviam o corao, lutavam por adivinhar12. Neste sentido, a ironia que cerca o captulo no se refere vidente, que afinal de contas faz bem o seu ofcio, mas sua freguesa da alta roda, um tanto envergonhada de estar ali, que paga para saber de antemo o que no podia deixar de acontecer, ou seja, que os filhos dos ricos sero ricos e importantes. Avanando um passo, Natividade leva a superstio ao ponto de chamar simptica a cabocla, na esperana de captar a sua boa vontade e melhorar o destino dos gmeos J de outro ngulo ela to bruxa quanto a vidente, de quem no tira os olhos, como se quisesse lla por dentro, e com a qual luta de igual para igual13. Quer

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    [14] Id.,ibid.,p.23.

    [15] Id.,ibid., p.23.

    que lhe diga tudo, sem falta, tudo, naturalmente, o que ela prpria deseja ouvir14. Tomando recuo, digamos que a cabocla, o morro com seus populares, a senhora da altaroda e o narrador cosmopolita compem uma situao cheia de complexidade real e literria, em que as imensas distncias que separam os polos da sociedade brasileira se relativizam, criando um espao comum. As posies sociais afastadas, os interesses contrrios e as crenas incompatveis se determinam mutuamente, ao contrrio do que supe o dualismo ilusrio, para no dizer estpido, entre civilizados e brbaros, que estava em voga naquele comeo de sculo e at hoje nos persegue.

    Concluda a consulta, ouvese o pai da cabocla na pea ao lado, cantando uma toada do Norte.

    Menina da saia brancaSaltadeira de riachoTrepame neste coqueiroBotame os cocos abaixo. Quebra coco sinh, L no cocSe te d na cabea, H de rachMuito hei de me riMuito hei de gost,Lel, coc, nai15.

    Na primeira quadra, em portugus culto, a sinh manda a menina presumivelmente uma negrinha subir no coqueiro para botar abaixo os cocos. Na sequncia, em lngua de preto e com sadismo alegre, a menina diz que, se acaso um coco rachar a cabea de sinh, muito h de rir, muito h de gostar. Lel, coc, nai.

    Completase o desfile dos assuntos fortuitos, que entretanto dimensionam o quadro. A est, como um comentrio oblquo sob forma de cantiga, um ponto de vista sado da escravido, recmabolida no momento em que se escrevia o romance.

    Roberto Schwarz crtico literrio e professor aposentado da Unicamp.

    Rece bido para publi ca o em 8 de dezembro de 2014.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    100, novembro 2014pp. 163168