Robin Jones Gunn - Série Cris 01 - Promessa de Verão
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Serie CrisSerie Cris
1 - Promessa de Verão1 - Promessa de Verão
Robin Jones GunnRobin Jones Gunn
Editora BetaniaDigitalização: deisemat
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/
PROMESSA DE VERÃO
1
ROBIN
JONES
GUNN
Começando Mal
1
- Eu te detesto! gritou Cris Miller, olhando-se no espelho do closet.
Com um gemido de gata ferida ela enrolou a toalha de "praia e jogou-a no espelho,
observando como ele distorcia sua imagem de magricela.
- Cris, querida? veio do corredor uma voz aguda. Voltou tão depressa da praia?
- Sim, tia Marta, disse Cris, pegando uma escova e fingindo desembaraçar seu longo
cabelo castanho.
Sua tia era uma mulher esbelta e elegante, com cerca de quarenta anos de idade.
Abrindo a porta do quarto de hóspedes, ela olhou em volta e perguntou:
- Que barulheira foi essa, querida? Com quem estava falando?
- Com ninguém. Só estava pensando alto, respondeu Cris calmamente, tentando
abafar o vulcão de emoções prestes a explodir.
- Por que você não está na praia, meu bem? O dia está maravilhoso e você fica aí,
trancada nesse quarto, falando sozinha! Marta apontou para a porta de modo teatral.
- Você devia estar lá fora se bronzeando! Aprenda a surfar! Divirta-se!
A garota mordia o lábio, sem resposta.
- Você está na Califórnia! Viva um pouco! Nós não trouxemos você lá do Wisconsin
para passar o verão enfurnada no quarto. Saia e procure fazer amizade com o pessoal aí.
De repente o vulcão interno explodiu, jorrando palavras e lágrimas.
- Eu tentei, tá bem?! engasgou Cris. Tentei me enturmar com a galera na praia, mas
são todos uns esnobes! Não os suporto! Eles são mal-educados e maldosos. Riram de
mim.
Dizendo isso ela cobriu o rosto com as mãos; as lágrimas escorriam entre os dedos.
- Eu não imaginava! disse a tia, mudando o tom de voz e conduzindo Cris à beira da
cama.
- Senta, querida. Diga-me o que está acontecendo.
Cris levou alguns minutos para se recompor e dizer:
- Eu não tenho nada a ver com as pessoas daqui. Elas me acham careta.
- E você é? desafiou a tia.
- Sou o quê?
- Careta.
A garota não respondeu. Ficou olhando sua imagem refletida no espelho, do outro
lado do quarto.
- E então? insistiu Marta.
Cris pulou da cama e colocou-se de pé diante dela.
- Olhe pra mim, tia. Eu sou branca como um picolé de coco, e meu corpo é reto
como uma tábua! Se isso não é uma tremenda caretice na praia de Newport, não sei o que
é!
- Ora Cris, repreendeu Marta, um picolé de coco?
- Olhe pra mim, insistiu Cris, esticando os braços para mostrar seu metro e setenta,
com cinquenta quilos de peso. O maio inteiriço cobria seu corpo de Olívia Palito como um
esparadrapo verde-cheguei.
- Diga que eu não pareço um picolé!
- Você não parece um picolé, respondeu a tia.
- Você só está dizendo isso para me consolar, disse Cris, sentando-se no chão e
cruzando os braços.
- Ora, vamos, Cris. Talvez você demore um pouco para florescer, mas é um encanto
de menina e tem um potencial tremendo.
- Ah é? Vá dizer isso para os surfistas lá na praia. Os que iram de mim e disseram:
"Oi, gatinha! Onde você arranjou essa vagem com alças? Num catálogo de compras?"
Marta parecia confusa.
- E o que eles queriam dizer com isso?
- Estavam se referindo ao meu maio, tia Marta!
Cris deixou as lágrimas correr e fungou alto.
- E isso aborreceu você? Um comentário bobo sobre um "maio que parece vagem"?
- Não. Você não entendeu? Eu comprei mesmo num catálogo de compras!
A garota cobriu o rosto com as mãos e chorou até as lágrimas escorrerem pelos
braços. O tipo de choro que vem do fundo do estômago e traz consigo uma forte dor de
cabeça. O tipo que a pessoa fungar e urrar, e por mais que se sinta idiota e tente parar, não
consegue.
- Por favor, acalme-se, querida. Não é tão ruim assim. Podemos comprar-lhe um
maio novo hoje mesmo.
Cris respirava meio ofegante, tentando relaxar. A tia aproveitava a oportunidade
para reforçar uma idéia que vinha defendo?
- É exatamente por isso que eu disse à sua mãe que queria ir você passasse o verão
conosco. Você merece mais do que seus pais podem lhe dar no momento. Gostaria muito
de oferecer-lhe mais oportunidades do que sua mãe e eu tivemos.
Cris limpou o nariz com as costas da mão.
- Use isso, por favor, disse Marta, entregando-lhe um lenço de papel. Como eu
estava dizendo, meu alvo nestas férias é proporcionar a você algumas das melhores coisas
da vida. Quero também ensinar-lhe, Cristina Juliet Miller, a ser mais autoconfiante.
A moça piscou e tentou segurar um forte arroto que surgira em consequência do
choro. Tarde demais. O som embaraçoso, embora abafado, saiu sem querer.
- É, parece que não vai ser fácil, hein, querida?
- Desculpe, respondeu Cris, sentindo uma vontade incontrolável de rir. Você tem
certeza de que conseguirá transformar um picolé arrotante numa pessoa autoconfiante?
Pode ser perigoso!
Ao dizer isso, caiu na risada, mas a tia continuou séria.
- Começaremos amanhã, Cristina. Vou tentar marcar às nove horas com uma
especialista para escolher suas cores. Depois iremos comprar umas roupas novas pra você.
Imediatamente a moça ficou séria.
- Tia, eu não trouxe quase nada de dinheiro.
- Não seja tola! É um presente meu. Não são umas simples roupinhas que vão me
deixar pobre. E mais uma coisa: precisamos cortar seu cabelo. Um estilo curtinho, bem na
moda. Meu cabeleireiro, Maurice, faz um trabalho divino. No fim, você vai se sentir e
parecer outra pessoa.
Ela falou com tanta fineza que Cris quase acreditou. Um novo guarda-roupa? Novo
corte de cabelo? E o que ela queria dizer com "escolher suas cores"?
- Por que você não toma um banho e se arruma, meu bem? Seu tio ainda não sabe,
mas ele vai levá-la para jantar hoje à noite, e depois vocês irão ao cinema, anunciou Marta
ao sair.
Cris aproximou-se do espelho com uma nova perspectiva. Segurou o longo cabelo
castanho no alto da cabeça, e fez diversas poses, tentando imaginar como ficaria de cabelo
curto. Mas não dava para visualizar muito bem a mudança.
Queria que Paula estivesse ali com ela. Paula, sua melhor amiga, sempre lhe dava
conselhos quando estava diante de grandes decisões. Mas a amiga também tinha lá suas
falhas. Afinal, fora ela que a ajudara a escolher aquele maio verde!
Cris franziu o nariz e chegou o rosto bem perto do espelho para ver se havia novas
manchas na pele. Nenhum cravo ou espinha, mas as bochechas estavam coradas demais.
Além disso, o nariz vermelho e os olhos inchados revelavam sua choradeira.
- Meus olhos são totalmente sem graça, murmurou. Não são azuis, nem verdes. São
uma espécie de nada, como tudo em mim.
- Posso entrar? perguntou o tio Bob, diante da porta entreaberta.
Imediatamente ela soltou o cabelo e afastou-se do espelho, envergonhada por ter
sido vista em meio a esse auto-exame aborrecido.
- Parece que nós iremos ao cinema hoje. Você quer assistir a algum filme em
especial? perguntou, observando-a sorridente. Ele estava usando um quepe branco e, a
julgar pelas marcas de suor em sua camiseta, parecia estar voltando do campo de golfe.
- Não, respondeu a moça.
- Tudo bem. Vou dar uma olhada no jornal para ver o que está em cartaz. Sua tia não
gosta muito de cinema. Espero que você não se importe se formos só nós dois.
- Não.
- Vamos sair daqui a uma hora, está bem?
- Tudo bem.
- A propósito, disse ele, tirando o quepe e limpando a testa. Ainda não lhe disse, mas
estou muito contente por você ter vindo passar as férias conosco. Você é minha sobrinha
predileta, sabia?
- Também; sou a única!
- Detalhe de mínima importância, minha cara, mínimo detalhe, brincou ele, saindo e
fechando polidamente a porta.
Com um suspiro, Cris jogou-se sobre a cama. Não sentia vontade de tomar banho e
não ia demorar para se trocar. Como tinha uma hora livre, resolveu escrever à Paula.
Gostava de escrever, principalmente quando estava preocupada. Colocaria tudo no papel
e, então, quando relesse, seria como olhar para os próprios pensamentos num espelho. As
idéias saíam claras no papel, mais do que quando tentava falar. Pegou a caixa de papel de
carta com ursinhos e começou a escrever.
Querida Paula,
Como estão as coisas aí na fazenda? A viagem de avião foi divertida no começo, mas depois ficou chata.
Não vi nenhum artista de cinema no aeroporto, mas guardei seu bloco para pegar alguns autógrafos,
caso eu encontre alguém famoso.
Lembra quando você telefonou quinta passada e eu lhe disse que não podia conversar? É porque meus
pais estavam me dando o maior sermão sobre minha viagem para cá. Me fizeram prometer que nestas férias eu
não faria nada de que pudesse me arrepender mais tarde. Você acredita?
O engraçado é que a única coisa da qual me arrependo é ter vindo para cá. Detesto este lugar! Não há
nada para fazer, e todo mundo é tão metido! É uma chatice. À noite fico sentada, vendo televisão com meu tio.
Pelo menos uma coisa boa vai acontecer. Amanhã minha tia vai me levar para fazer compras e, sabe o
que mais? Provavelmente vou cortar o cabelo! Você acredita?
Estou com um pouco de medo, mas acho que ela quer me dar uma nova imagem, ou algo parecido.
Bem, tenho de parar agora. Na próxima carta contarei como foi a grande transformação. Imagine só,
talvez você nem me reconheça quando eu descer do avião, em setembro! Acho bom você me escrever!
Com carinho,
Cris
A Transformação
2
Na manhã seguinte, Cris acordou com o barulho do mar. Parecia um gigante
respirando fundo, tranqüilo, a cada ida e volta das ondas. Abriu as cortinas e ficou
olhando umas gaivotas que sobrevoavam a praia à procura de comida. As brancas
brilhavam como um flash no azul do céu. Abriu a janela para curtir a brisa. Estava
encantada com o oceano. Ondas espumantes quebravam na praia, apagando as pegadas de
duas pessoas que haviam corrido ali mais cedo. Tudo parecia refrescante e novo.
Vestiu-se depressa, correu para a cozinha e disse um "Bom dia!'" animado ao tio
Bob, ao qual ele respondeu:
- Bom dia, olhos brilhantes! Espere só pra ver o que eu preparei para você!
- Hummm! O cheirinho é de panqueca.
- Acertou! disse o tio, tirando a primeira panqueca fumegante da frigideira. Tem
manteiga e calda na mesa, e esta é pra você. Eu mesmo preparei a massa e devo admitir
que parece que saiu perfeita, merecedora de um premio.
- Estou impressionada!
Cris foi correndo passar manteiga na panqueca, cortou-a com cuidado, fechou os
olhos e levou a primeira garfada à boca. De repente Marta entrou na cozinha e exclamou:
- Cris, queridinha! O que você pensa que está fazendo?
- Tomando meu café da manhã.
- Mas meu bem, você sabe quantos carboidratos têm nessa panquequinha? Isso não é
um desjejum apropriado para uma moça que quer que seus olhos brilhem, sua pele seja
perfeita e seu cabelo sedoso!
- Será que eu quero mesmo? Quer dizer, não é bom não?
Com o garfo a poucos centímetros da boca e manteiga escorrendo pelos dedos, Cris
olhou para o tio à procura de apoio. Bob apenas sorriu.
Marta tirou algo do armário, bateu no liquidificador e ofereceu à sobrinha.
- Aqui está, meu bem. Isto é muito melhor para você. Tem todas as vitaminas e sais
minerais de que necessita para que os rapazes a notem.
Entregou-lhe um copo com uma bebida espumante, rica em proteína.
- Vamos, beba! Experimente!
Cris soltou o garfo e pegou o copo. Parecia horrível. Tomou um gole. O gosto era
péssimo.
- Eca, tia Marta. Você quer que eu beba isso?
- Claro. Tome tudo. E tenho mais uma coisa pra você.
Tirou da geladeira metade de um grapefruit em gomos, num prato de vidro com uma
toalhinha de papel enfeitado. Com ar muito satisfeito, entregou à garota a fruta amarga.
- Aí. Não é uma maravilha? O desjejum perfeito. Acabe logo enquanto eu troco de
sapatos. Só temos vinte minutos antes de sua consulta de cores. Dizendo isso saiu da
cozinha.
Cris olhou para a panqueca e o grapefruit. Virou-se então para o tio que, tentando
conter uma imensa gargalhada, disse:
- Vitaminas e sais minerais, hein?!
- Não achei graça! retrucou Cris, esforçando-se para segurar uma risada.
- Não sei... parece um excelente desjejum.
- Então beba você! disse ela, empurrando-lhe o copo.
- Eu não! Sua tia já tentou mudar minha alimentação uma vez. Pra mim chega!
Cris olhou para a bebida, depois para a panqueca e, enfiando duas garfadas enormes
na boca, pediu:
- Não conta pra ela não, tá?!
- Seu segredo está seguro comigo. Bob deu unia piscadinha e tirou outra panqueca
da frigideira.
- Você sabe que as intenções dela são boas, não sabe?
- Sei, sim, disse Cris com um suspiro. Tio, você acha que eu devo cortar o cabelo?
Ele sentou-se ao seu lado à mesa, estudando seu rosto e cabelo como um fotógrafo
em busca do ângulo certo.
- Acho que não sou a melhor pessoa para responder isso. Sempre gostei do seu
cabelo do jeito que é. Sua tia é que entende de moda. Por que não pergunta a ela?
- Esse é o problema. Ela quer que eu corte o cabelo hoje, e não tenho certeza se
devo.
- Bem, disse o Bob, cortando sua panqueca. O único conselho que posso dar é "a ti
mesma sê fiel".
- A mim mesma o quê?
"A ti mesmo sê fiel" é uma citação de Shakespeare. Quer dizer, faça o que você quer
fazer e não tente agradar a todo mundo. Siga sua própria cabeça.Tenho adotado essa
filosofia há anos, e, provavelmente, é por isso que tenho tanto sucesso nos negócios
imobiliários. Simplesmente sigo meu "faro" e sou autentico. Sempre fui fiel a mim
mesmo.
Marta entrou na cozinha vestida com um macaquinho lilás que exibia seu corpo
esbelto.
Cris levou discretamente os pratos para a pia e jogou fora a bebida de proteína, antes
que a tia notasse.
- Espero que você tenha contado à Cris que muito do seu sucesso vem também da
secretária maravilhosa que tinha em seu primeiro escritório imobiliário. Dizendo isso
abraçou o marido e beijou seu rosto, deixando uma mancha de batom cor maravilha.
- Sabe, né? Aquela doce secretária, com quem você acabou se casando...
Trocaram um sorriso e um beijo rápido.
- Está vendo, Cris? ressaltou Bob. Sempre vale a pena seguir sua voz interior!
- Bem, minha voz interior me diz que temos de correr! exclamou Marta.
Deu então uma olhada para a sobrinha e perguntou:
- Querida, você vai assim? Bem, não tem importância. Não temos tempo de trocar.
Vamos!
A garota olhou para a saia xadrez rosa e azul com babados, e a blusa azul clara de
mangas bufantes. Era um dos seus melhores conjuntos, e gostava dele; mas o comentário
da tia fez com que se sentisse cafona.
Sentiu uma onda de depressão, mas não tinha tempo de deixá-la tomar conta de seus
pensamentos como no dia anterior. Marta já estava tirando o Mercedes prateado da
garagem.
- É melhor você correr, disse Bob. Quando sua tia entra nessa corrida, não há quem
a faça parar.
Bob estava certo. Ao lado da tia Marta, o dia voava. Na primeira hora e meia, uma
senhora elegantíssima "vestiu" a jovem com variados tecidos de cores diversas. O objetivo
era determinar quais eram as "suas" cores e quais não lhe caíam bem. Selecionou então
algumas amostras de cores e tecidos e entregou-as a Cris. Ela deveria levá-las consigo
sempre que fosse comprar roupas.
- Estas são as suas cores, disse a especialista. Jamais use uma cor que não esteja
entre as amostras selecionadas.
O verde forte do seu maio não estava na seleção de "suas" cores. O azul claro da
blusa que vestia também não. Cris nunca soubera o quanto era desinformada a respeito de
moda.
Enquanto perambulavam por lojas super chiques, Cris tentava, com dificuldade,
acompanhar o pique da tia. Quando se tratava de fazer compras, Marta ia a todo vapor.
Nada a fazia parar e nada estava fora do seu limite de preço.
Ao meio-dia pararam para comer uma salada no restaurante Bob Burns, que Marta
disse ser o único lugar com a atmosfera adequada em toda a "Ilha da Moda". Cris não
gostou nada do lugar. Achou o ambiente escuro e silencioso demais, mas acompanhou a
tia a um dos ambientes. Caindo sobre um assento almofadado, empurrou as sacolas contra
a parede.
- Estou achando nosso progresso muito lento, queridinha, disse Marta, espremendo
uma fatia de limão no chá gelado. Você não está gostando das compras? Parece com medo
de provar as coisas. Ainda não experimentou um maio sequer! Qual o problema, Cris?
A garota passou os dedos pelas pontas do cabelo e resolveu ser sincera com a tia.
Afinal de contas, o tio Bob lhe dissera que fosse autêntica.
- Não sei se gosto das mesmas coisas que você. As duas blusas e a sandália que
compramos são peças básicas, mas não sei se me sentiria bem usando alguns dos
conjuntos que você estava me mostrando. Além do mais, não sei, eu acho estranho deixar
você pagar tudo. Nunca fiz tantas compras assim na vida!
A garçonete chegou com as saladas e perguntou a Cris se ela queria pimenta em seu
prato. Cris olhou-a meio perdida por um momento e respondeu:
- Não, acho que não.
Não conhecia aquele tipo de pimenta.
A garçonete parecia não ter notado a inexperiência de Cris. Havia-se voltado para
Marta e oferecia-se para salpicar pimenta na salada dela.
- Escute, continuou Marta. Já lhe disse que hoje quem paga sou eu. Não estrague o
meu prazer! Vamos começar a comprar!
Cris acenou concordando e empurrou o tomate para o lado do prato.
- Vou tentar me soltar.
- Isso nos leva a outro assunto, Cris. Você precisa se esforçar para ser mais
extrovertida se quer fazer amizade com a turma da praia Tome as rédeas do seu destino,
querida. Defina o que você quer c vá em frente. Lute para assumir o controle de sua
própria vida. Dê o primeiro passo! Seja atirada! É a única maneira de vencer.
- Sei não. Não é assim que sou.
- Então torne-se assim! Levante a cabeça e diga a si mesma que tudo que quiser é
seu!
Cris terminou a salada e olhou com vontade para a bandeja de sobremesas que a
garçonete lhes apresentava.
- Aceito aquela coisa de chocolate ali, disse ela, apontando para uma torta de nozes e
chocolate.
- Querida! exclamou tia Marta. Antes que a tia pudesse repreendê-la, a garota falou:
- Você acaba de me dizer que tudo que quiser é meu, e eu quero um pedaço de torta!
Marta deu uma risada leve que removeu por um momento sua capa de sofisticação,
revelando a moça simples de cidade do interior que fora um dia.
- Está bem, você venceu. Já estou satisfeita, disse, dirigindo-se à garçonete. Virou-se
então para a sobrinha:
- Saboreie depressa seus carboidratos pra gente sair e fazer mais compras.
Na cabine de provas de uma das lojas em que entraram, Cris havia experimentado
uma dúzia de maiôs, quando Marta trouxe um que parecia encantá-la.
- Este é maravilhoso! exclamou ela com entusiasmo renovado. Não é cavado demais
como o vermelho, mas está bem na moda. Confie em mim, querida. Vai ficar
absolutamente divino em você!
O maiô tinha alças fininhas cruzando nas costas; era preto, com pequena estampa
azul-turquesa. Definitivamente não era o tipo de maio que Cris teria escolhido, mas
resolveu experimentá-lo para ver a reação da tia.
Marta realmente gostou do maiô.
- Ah, Cris! Eu não lhe disse? Ficou perfeito em você. Absolutamente perfeito.
Vamos, saia desse cubículo e olhe-se nesse espelho de corpo inteiro!
Enquanto a garota saía timidamente, Marta chamou a atendente:
- Veja minha sobrinha neste maiô. Não está maravilhosa?
Que vergonha! Cris viu no espelho o reflexo da atendente, que sorria e concordava
educadamente.
- Será que devo comprar? perguntou Cris, olhando a etiqueta de preço, onde
marcava oitenta dólares.
- Mas é claro! respondeu Marta. Agora, vamos ver o que mais a gente encontra aqui.
Eles têm uma coleção maravilhosa.
Meia hora depois, Cris observava a caixa somando o preço de suas roupas novas.
Além do maiô, levava três calças sociais, seis blusas, dois vestidos de alça, um blusão de
moletom, uma saia jeans e quatro shorts.
- São setecentos e oitenta e sete dólares e cinquenta e oito centavos, disse a moça
com um sorriso.
Marta tirou o cartão de crédito e, entregando-lhe ainda um par de brincos amarelo-
cheguei, perguntou:
- Pode acrescentar estes também? Ficarão perfeitos com esse vestidinho de alça, não
acha, Cris?
A jovem ainda estava sem fôlego pelo total da compra. Sua mãe costumava fazer a
maior parte de suas roupas, e quando tinham de comprar alguma, não podiam gastar mais
de quarenta dólares numa tacada. Mas agora estava com a tia Marta, e esse era o jeito
dela. Então respondeu:
- Claro, são lindos.
Na saída, passando pela seção de cosméticos, Marta exclamou:
- Ótimo! Ainda bem que passamos por aqui. Meu perfume esta quase no fim.
Pediu à balconista o tamanho maior do "Private Collection". Em seguida, disse, em
parte para a balconista e em parte para a sobrinha:
- Ei, tenho uma idéia! Vamos aproveitar e fazer sua maquiagem aqui!
A balconista concordou com prazer, e antes que Cris se desse conta, estava sentada
numa banqueta alta diante de um espelho, com luzes voltadas para ela. A especialista em
cosméticos passou um chumaço de algodão sobre a face e o nariz da garota, explicando o
procedimento correto para a limpeza dos poros.
Deve ser um sonho! pensou Cris, enquanto a esteticista passava uma sombra lilás em
suas pálpebras. Com um lápis macio, a moça fazia um traço ao redor de seus olhos,
aplicando-o com cuidado nos cantos externos. A escova em sua pele parecia veludo, e
quando apertou os lábios, pensou em como o brilho tinha cheiro de morangos.
- pronto, disse a esteticista. Olhe-se no espelho. O que acha?
Cris abriu os olhos devagar.
- Será que sou eu? disse baixinho.
Era ela, mas não parecia ser. Aparentava mais idade e maturidade. E seus olhos!
Nunca havia notado como eles eram bonitos.
- Os olhos dela tem o formato perfeito, disse a esteticista. Ela pode fazer qualquer
coisa com eles, no que diz respeito às cores; eles têm uma cor azul-esverdeada tão
diferente!
- É mesmo? perguntou Cris, aproximando-se um pouco mais do espelho para
examiná-los melhor.
- Sim, assegurou-lhe a maquiadora, levantando o queixo de Cris para olhar mais de
perto. Conheço modelos que fariam de tudo para ter olhos como os seus.
Cris mal podia acreditar. Sentia uma empolgação diferente, quase como se tivesse
feito algo que não deveria.
Em casa, sua mãe só lhe permitia usar um pouco de brilho nos lábios. Tudo isso
agora era maravilhoso!
- Você fez um trabalho excelente, comentou Marta para a esteticista. Vamos
comprar um de cada produto que você usou.
- Tia Marta! Tem certeza? assustou-se Cris.
- Mas é claro! Não faça tanto escarcéu, querida! Voltando-se então para a esteticista,
acrescentou:
- Queremos também a linha completa de produtos para o sol.
Cris nem conseguia acreditar que tudo aquilo estava acontecendo com ela.
- Muito obrigada, tia!
- Por nada, querida. Marta entregou-lhe a sacola repleta de cosméticos, e disse:
- Agora só temos mais uma parada a fazer, caso você queira saber.
- E onde é? perguntou a sobrinha, vendo seu reflexo numa vitrine.
- O salão do cabeleireiro Maurice, é claro!
Percebendo a manobra da tia, Cris sorriu e comentou:
- É, parece que é agora ou nunca!
O Pesadelo
3
Chegaram em casa às quatro e meia da tarde e encontraram Bob no escritório, à
frente do computador, com uma pilha de correspondência.
- Tãtãtãtãam! anunciou Marta teatralmente.
Bob virou-se, e por um momento, pareceu chocado. Então seu sorriso voltou.
- Ora, ora, não sabia que você iria trazer uma atriz de cinema para jantar conosco! Se
soubesse teria vestido algo mais apresentável!
- Que é que você acha? perguntou Cris, dando uma voltinha. Gostou? Meu cabelo
ficou bom, curtinho assim?
Estava curto mesmo! Pouco abaixo das orelhas. Maurice havia feito uma escova
deixando-o todo cheinho. Ele cortara o cabelo do alto da cabeça bem curto, arrumando-o
num penteado espetadinho e puxando uma franjinha desfiada. Ao olhar-se no espelho,
Cris reclamou que estava parecendo um poodle. E embora tivesse dito isso baixinho,
Maurice ouviu e repreendeu-a severamente. Parecia ofendido por alguém ousar questionar
uma de suas criações. Todos os cabeleireiros elogiaram a garota, dizendo que estava
deslumbrante.
Contudo ela não se convencera. Queria saber o que Paula acharia. Mas como a
amiga estava a três mil e quinhentos quilômetros de distância, ficou ansiosa por ouvir o
que o tio Bob iria dizer. Sabia que ele seria sincero.
- Você me surpreendeu, mocinha! Se não estivesse com a mesma roupa que estava
usando quando saiu daqui hoje cedo, eu não a teria reconhecido. Ficou estonteante!
- O cara do salão me mostrou como se aplica esse negócio de musse, e eu trouxe
dois frascos. Comprei também um enrolador elétrico de cabelo que ele me ensinou a usar.
Mas não foi só isso! Espere só pra ver o que tem nessas sacolas. Nunca fiz tantas compras
assim em toda minha vida!
Animada, ela abriu todos os pacotes para mostrar os novos pertences. Logo o sofá
estava coberto de roupas, sapatos, acessórios e uma linha completa de maquiagem.
- Dá pra acreditar? perguntou Cris, toda sorridente. Queria poder usar tudo de uma
só vez!
Marta parecia muito satisfeita consigo mesma.
- É exatamente o que ela precisava, disse baixinho a Bob. Umas roupas novas e
coisas que a ajudassem a melhorar a auto-estima. Eu não lhe disse que ela ficaria mais
animada?
- Você estava certa! disse Cris, dando um gritinho. Estes brincos ficam ótimos com
este vestidinho. Não vejo a hora de sair com ele.
- Que tal pôr agora? Assim aproveito para levar minhas duas "namoradas" pra jantar
fora e comemorar, ofereceu Bob.
- Ótimo, Bob, disse Marta, naquele tom de quem está no controle da situação. Mas
tenho uma reunião com o grupo de mulheres hoje à noite. Vão vocês dois. Por que não a
leva à Cozinha do Siri?
- Está bem, concordou Bob. Parece uma boa idéia. Q que você acha, Cris?
A garota já havia ajuntado as roupas novas e estava correndo escada acima quando
respondeu:
- Estou pronta em cinco minutos!
Surpreendentemente, ela aprontou-se rápido mesmo e, quando desceu, encontrou o
tio ao telefone. Enquanto esperava notou que ele trocara de camisa e penteara o espesso
cabelo castanho. Bob era um homem atraente, que aparentava ter bem menos que os seus
cinquenta e um anos de idade. A pele, curtida pelo sol das muitas tardes no campo de
golfe, apresentava pequeninas rugas ao redor dos olhos, que se acentuavam quando sorria.
A voz suave e grave harmonizava-se com sua personalidade tranqüila. Seu jeito de ser
contrastava profundamente com o estilo de vida acelerado de Marta.
Quando Cris entrou na sala, Bob deu um assovio e ofereceu-lhe o braço.
- Posso ter a honra de acompanhá-la até o carro, gentil dama? Cris deu uma
gargalhada.
- Mas é claro, vossa "charmosidade".
Quando estavam saindo, Marta gritou:
- Divirtam-se!
Ao chegarem à Cozinha do Siri, descobriram que teriam de esperar uma hora para
conseguir um lugar. Então pediram um coquetel de camarão e caminharam até um longo
banco de madeira, passando por um grande número de pessoas.
- Que ventinho agradável, comentou Bob.
- Tem cheiro de peixe, acrescentou Cris.
- É porque o quebra-mar de Newport fica logo ali no fim da rua, explicou Bob,
apontando a direção com o garfo de plástico.
- É lá que todos os barcos descarregam a pesca diária.
- Puxa! Olha só aquele carro!
- Você está falando do Rolls Royce?
- É isso aí. Será que tem algum artista de cinema nele? Perguntou abaixando a voz.
- É pouco provável.
- Eu nunca tinha visto um carro desses, a não ser na televisão.
Cris levantou-se do banco e jogou o copinho de plástico do coquetel no lixo.
Naquele momento, um carro esporte, conversível, entrou no estacionamento.
- Aquele é que é meu tipo de carro! exclamou Bob, quando ele voltou ao banco. Tala
larga, rodas de magnésio, direção esporte. Deve ser um 68.
- Ah, respondeu Cris. Ela não parecia muito impressionada com o carro. Entretanto
ficou bastante interessada nos rapazes que desciam dele. Observando-os enquanto vinham
em direção ao restaurante, ela concluiu que eles representavam o que ela gostava na
Califórnia. Bronzeados, usavam shorts de surfista de cores vivas e camisetas estampadas.
Pararam a poucos metros, com ar de quem não quer nada.
Por um momento Cris pensou que estivessem olhando para ela. Devia estar
imaginando coisas. Mas Bob confirmou suas suspeitas.
- Aqueles caras estão olhando pra você.
- Não estão não!
- Claro que estão. Deve ser a roupa e o penteado novo. Quer que eu os convide pra
jantar conosco? brincou ele.
Cris virou as costas para os dois rapazes, que estavam realmente olhando na sua
direção.
- Pára! cochichou. Nem acredito que você tenha dito isso!
- Nossa! Para alguém que nem esteve no sol hoje você está vermelha demais.
Naquela hora a recepcionista do restaurante chamou:
- Sr. Robert, grupo de dois, por favor!
Parece que só conseguimos uma mesa para dois, disse Bob. Seus namorados vão ter
de esperar uma próxima vez.
Cris abaixou os olhos ao passar por eles. Bob sorriu e cumprimentou-os com a
cabeça. De dentes cerrados, ela ameaçou:
- Eu te mato, tio!
Depois que fizeram o pedido, ainda esperaram uns vinte minutos até serem servidos.
- Graças a Deus, disse Bob, ao ver o garçom aproximar-se. Estou morto de fome.
Seu comentário fez com que Cris perguntasse algo que vinha-lhe martelando a
mente havia algum tempo.
- Você e a tia Marta acreditam em Deus? Bob pensou um instante e explicou:
- Acho que encaramos a religião como algo muito pessoal. Algo interior, baseado
naquilo que se crê. Não ë uma coisa sobre a qual se deve falar publicamente.
- Vocês costumam ir à igreja?
- Claro, de vez em quando. Mas sempre acreditei que Deus está em todo lugar e é
parte de tudo, assim a gente pode adorá-lo onde estiver. Não precisa ir à igreja pra isso.
Cris freqüentava uma igreja desde que se entendia por gente. Toda sua família e suas
amigas de Wisconsin também freqüentavam. Na verdade, ela conhecera Paula numa
classe de escola .dominical para crianças. Eram amigas desde então. Nunca conhecera
ninguém que acreditasse em Deus que não tivesse o habito de ir à igreja.
- E então, disse Bob, com um suspiro profundo. Parece que você e Marta tiveram um
dia empolgante, fazendo compras. Como se sente com o novo visual?
Espetando o garfo num camarão, ficou a pensar por um momento. Estava gostando
de se sentir mais adulta e mais na moda, e no íntimo adorara a atenção daqueles rapazes lá
fora. A sensação de estar misteriosa e atraente instigava-lhe o desejo de experimentar um
estilo de vida que nunca vivenciara antes, mas sobre o qual fizera mil fantasias.
- Sabe, começou ela com a voz mais amadurecida possível. Realmente gosto. É
muito mais o "eu" de verdade, não acha?
Ele deu um daqueles sorrisos cativantes e declarou:
- Se você estiver feliz, Cristina Juliet Miller, é isso que importa.
*****
Aquela noite, obedientemente Cris aplicou o novo adstringente e o hidratante antes
de vestir o camisão de dormir. O adstringente cheirava a remédio, mas o hidratante tinha
uma fragrância de perfume fino. "Estou ate com cheiro de rica", pensou, deitando-se na
luxuosa cama e cobrindo-se com a colcha branca de bordado inglês.As palavras do tio
ainda lhe ecoavam na cabeça, no silêncio do quarto: "Se você estiver feliz, é isso que
importa."
Hoje ela se sentira feliz. Uma felicidade contagiante, empolgante. Mas aquela
empolgação trazia a tiracolo um novo temor. Uma vez no verão passado ela se sentira
assim quando voltava de um passeio com alguns amigos. O irmão de Paula havia lhe
sugerido que dirigisse sua pick-up. Ela não estava muito a fim. Contudo Paula e sua prima
já haviam dirigido naquele dia, e ela não poderia agora simplesmente dizer que não
queria.
Estava penas a setenta por hora quando os outros riram e desafiaram:
- Vai mais depressa!
Ela sentia um frio na barriga. Divertido? Talvez. Apavorante? Certamente.
Apagou a luz do abajur sobre a mesinha de cabeceira e dormiu, pensando em como
faria no dia seguinte, na praia, para parecer mais extrovertida, tomar seu destino em suas
próprias mãos e tudo mais.
Às duas da manhã, acordou assustada, coração disparado e a camisola ensopada de
suor. Acendeu depressa a luz e tentou respirar mais devagar.
- Ar fresco! Preciso de mais ar!
Pulou da cama e escancarou a janela. Tragando fundo a brisa que vinha do mar,
sentiu a mente começar a se aclarar.
- Que pesadelo horroroso!
Ela arfava, tremendo com a lembrança do sonho assustador: Estava deitada na praia
quando, de repente, veio sobre ela uma onda gigante que a arrastou para o mar. Depois de
muito lutar, finalmente ela conseguiu subir à tona. Contudo, em todas as direções que
olhava, só via água. A terra desaparecera.
À distância, avistou um barquinho a remo. Tentou nadar até lá, mas tentáculos
compridos e gosmentos de algas marinhas se enroscaram em suas pernas, tentando puxá-
la para baixo. Cada braço de alga tinha uma voz e, todos juntos, diziam:
- Pegamos você! Pegamos você!
Finalmente ela alcançou o bote e agarrou-se à sua borda, desesperada para pular para
dentro dele. Houve um momento aterrador em que ficou indecisa: não sabia se deveria
erguer-se e entrar no barco, ou entregar-se ao mantra das algas. Naquele instante crucial
estava paralisada pela indecisão.
Foi então que acordou.
- "Foi só um sonho", disse a si mesma. "Um sonho bobo e sem significado."
Respirou fundo mais uma vez, fechou a janela e pôs-se a andar para lá e para cá.
- "Foi só um sonho", repetia.
Então, deixando a luz acesa, enfiou-se debaixo da colcha e orou:
- Querido Pai celeste, protege-me e guarda-me em segurança. Esteja com minha
mãe, com meu pai e com o Davizinho. Amém.
Orando por sua família, Cris lembrou-se da promessa que fizera aos pais antes de
sair de casa. Acrescentou então:
E, querido Deus, ajuda-me a cumprir a promessa que fiz aos meus pais de não fazer
nada de que possa vir a me arrepender. Amém.
Instantes depois, estava dormindo.
Surfe e Algas Marinhas
4
Na manhã seguinte, se houvesse um concurso para ver quem leva mais tempo se
aprontando no banheiro, Cris teria tirado o primeiro lugar. Depois de quase uma hora e
meia de preparativos, abriu a porta e encontrou tia Marta no corredor, prestes a bater na
porta do quarto.
- Você está aí, querida? Nós já estávamos preocupados. Vamos ver, como está?
Esperando algum sinal de aprovação, Cris perguntou:
- E então, que tal estou?
- Seu cabelo, meu bem... seu cabelo parece... bem, digamos que, sendo a primeira
vez, você fez um bom trabalho.
- Acho que usei demais daquele treco de espuma: minha franja está grudada.
- Sim, talvez você deva usar menos da próxima vez. E pode maneirar um pouco no
lápis de olho. Mas o maiô... o maiô ficou lindíssimo em você, com essas suas pernas
compridas. Não vai ter sempre essas coxas se puxar a família da sua mãe; por isso se
quiser manter as pernas sempre esbeltas, tem de evitar comer massas.
- Está bem, tia Marta.
A voz de Cris demonstrava a irritação que sentia por causa dos constantes conselhos.
- Bem, você sabe o que dizem por aí: "Dinheiro e boa forma física nunca são
demais", acrescentou Marta.
As duas riram e desceram para o térreo.
- Você tem algum bom livro para eu levar pra ler na praia? perguntou Cristina.
- Claro, de todos os tipos, querida. Estão na estante no escritório. Escolha o que
quiser. Vamos à sua bebida matinal?
Cris ficou arrepiada só em pensar.
- Eu não estou com fome, tia. Só vou levar alguma coisa para beber na praia.
Tirou então um romance da estante.
Marta voltou da cozinha com duas garrafas de água mineral e colocou-as na sacola
nova de Cris.
- Aí está. Divirta-se e lembre-se: tente fazer amizade com outros jovens na praia.
- Sim, tia Marta.
Cris foi depressa para a cozinha, onde Bob lia o jornal.
- Psiu, sussurrou ela, com o dedo sobre os lábios e, abrindo a geladeira, trocou a
água mineral por duas latas de refrigerante.
Bob deu uma piscadela e voltou ao jornal.
Algumas nuvens finas velejavam pelo céu naquele final de manha, enquanto Cris
caminhava pela areia. Os "jovens", como Marta os chamava, estavam reunidos perto do
quebra-mar, onde os surfistas ficam. Cris aprendera com o tio Bob, em seu primeiro dia
ali, que o quebra-mar é uma longa península artificial feita de rochas. Ele funciona como
um divisor de águas no oceano, criando uma baía calma de um lado e as maiores ondas da
praia, do outro.
Cris parou e olhou a arrebentação batendo contra o quebramar. As ondas do norte se
formavam a certa distância, vindo como um enorme muro estourar com força sobre as
rochas.
“Controle seu destino!" As palavras de Marta ecoavam na martelando-lhe os seus
nervos. Ergueu a cabeça e para o mesmo grupo que tinha rido dela poucos dias atrás. Com
um novo penteado e um novo maiô, esperava que pensassem que fosse outra garota.
Estendeu a toalha e notou que alguns dos rapazes pareciam olhar para ela. Até aqui,
tudo bem! pensou.
Então, deitada de bruços, começou a ler seu romance, mexendo na areia com os
dedos do pé. Não sabia o que seria pior: se eles a ignorassem de novo, ou se alguém viesse
conversar com ela.
Pouco depois, arriscou uma olhadela tímida para ver se os rapazes ainda a estavam
olhando, mas não estavam. Tinham agora os olhos fixos numa garota incrivelmente bonita
que vinha em sua direção.
Alta e magra, ela estava de biquíni e óculos de sol, e vinha caminhando com leveza
sobre a areia. Seu cabelo loiro caía até a cintura, parecendo a crina de um cavalo
selvagem.
Parou bem perto de Cris. Depois, enquanto todos olhavam, aquele modelo de beleza
de praia acomodou-se na areia e olhou para o mar, como se estivesse posando para uma
propaganda de bronzeador.
"Que é que ela está tentando provar?" perguntou-se Cris, fingindo não notá-la. "Por
que veio sentar perto de mim? E se os rapazes vierem aqui conversar com ela? E se
puxarem conversa comigo?" Uma vontade imensa de fugir apoderou-se de Cris. Mas,
contudo, ignorou o jeito que seu coração acelerava e fixou os olhos no livro. A voz da tia
ressoava em sua cabeça: "Controle seu destino! Dê o primeiro passo! Seja ousada!"
O cheiro doce de óleo de coco que emanava da garota perturbou tanto Cris que ela
acabou virando-se e dizendo um tímido "Oi!"
A moça respondeu prontamente.
- Esse livro é ótimo. Já chegou à parte em que eles ficam presos num táxi em Hong
Kong?
Cris espantou-se com a simpatia da moça.
- Não.
- Então não vou estragar o suspense, disse com um sorriso. Mas a parte em Hong
Kong é ótima, e muito sensual.
- Ah, bem, replicou Cris, tentando estudar a garota mais a fundo. Parecia muito
boazinha, para uma esnobe. Então a moça perguntou:
- Já entrou na água? Está muito fria? Cris notou que ela tinha um sotaque diferente
ao dizer certas palavras.
- Não, disse Cris.
Depois, percebendo que não estava acrescentando nada à conversa, gaguejou:
- Quer dizer, ontem não entrei; hoje também ainda não. Mas antes de ontem ela
estava uma delícia.
Cris hesitou um pouco, mas acabou perguntando:
- Você esteve aqui ontem?
- Não, nós chegamos ontem. Meu nome é Alissa. E o seu?
- Cris. De onde você vem?
- Acabamos de chegar de Boston, da casa de minha avó, mas no ano passado
morávamos na Alemanha.
- É mesmo! Você é da Alemanha? Meu pai tem uns parentes lá. Sempre quis
conhecer...
- Só ficamos na Alemanha dois anos. Antes disso moramos no Havaí e na Argentina.
- Deve ser legal!
- Tem suas vantagens e desvantagens. Meu pai era da Força Aérea. E você? Mora
aqui?
- Não. Estou passando uns dias na casa de uns tios aqui. Eu moro no Wisconsin.
O Wisconsin parecia tão sem graça em comparação com a Argentina e o Havaí...
Entretanto Alissa não fez nenhuma gozação. Ao contrário, convidou-a para dar um
mergulho. Cris sentiu o olhar dos surfistas acompanhá-las enquanto caminhavam
devagarinho em direção ao mar. Quando estavam já com água na altura da cintura,
mergulharam numa onda espumante.
Cris sentia a água fria em cada poro. "Não existe no mundo sensação igual a esta!"
pensou com entusiasmo. Virando-se então para Alissa, disse:
- Adoro o mar! E você?
- Sem sombra de dúvida! Respondeu Alissa, flutuando numa pequena onda. Você
adoraria as praias do Havaí. A água é tão morna e clara... Dá vontade de ficar o dia todo.
E as ondas são perfeitas para pegar jacaré.
- Eu queria saber pegar jacaré, lamentou Cris. Sou desajeitada demais.
- É tudo questão de pegar a onda certa, na hora certa, explicou Alissa. Veja essa que
está chegando, por exemplo. Se esperar demais, ela quebra em cima de você e a leva ao
fundo. A gente tem de começar a bater os pés e nadar enquanto a onda está formando a
crista atrás. Daí deixamos que ela leve a gente até a praia, como se estivéssemos dentro
dela.
A onda surgiu atrás delas grande demais para que pudessem boiar. Então prenderam
a respiração e mergulharam fundo, onde a água estava tranqüila. Quando subiram, viram a
onda quebrar-se numa curva espumante em direção à praia.
- Essa teria sido perfeita para pegar jacaré, disse Alissa, alisando o cabelo
encharcado. Tá vendo aqueles rapazes lá embaixo? Eles pegaram a onda. Uns surfistas me
disseram no Havaí que a sétima onda é a melhor.
Haviam flutuado sobre mais quatro ondinhas quando Alissa disse:
- Olha a sétima onda. Deve ser a melhor dessa série. Passe por cima dela, que eu vou
tentar pegá-la. Talvez veja o que quero dizer com bater os pés antes da onda começar a
quebrar.
A onda ergueu Cris como um pai levanta seu bebe. Ela observou Alissa navegando
sobre ela com graça e destreza até a praia. "Ela dá a impressão de que é tão fácil!" pensou,
com um suspiro.
A galera da praia estava igualmente de queixo caído com a graça de Alissa. Quando
ela saiu da água, quatro surfistas largaram a prancha e correram para puxar conversa.
Cris olhava de longe, com inveja, enquanto Alissa, pingando água, puxava o cabelo
comprido sobre o ombro e o torcia.
"Ah, se eu tivesse um corpo e uma personalidade como da Alissa! Ela tem tudo que
se possa desejar." Cris a admirava e, ao mesmo tempo, sentia antipatia por ela.
Distraída com o que acontecia na praia, Cris não viu a onda enorme que surgia por
trás dela. Inesperadamente, a onda quebrou, puxando-a para baixo com uma força
esmagadora. Ela virou cambalhota debaixo d'água e, apavorada e sem ar, engasgou,
engolindo muita água. O pavor que sentira no pesadelo retornou, dando-lhe a sensação de
que estava lutando com um perigo maior do que o do oceano. Sem dó, a onda deu-lhe
mais um golpe, jogando-a na praia e raspando seu cotovelo na areia grossa.
Era seguida, a onda retrocedeu, deixando-a como uma foquinha ilhada na praia, bem
perto de Alissa e dos surfistas.
- Ah não! exclamou ela, enquanto o grupo disparava a rir. Saia água do seu nariz,
seus ouvidos estavam cheios de areia, as al;as dos maiô estavam retorcidas e um pedaço
grande de alga marinha envolvia seu tornozelo. Pior de tudo, seu cabelo estava em pé na
parte de trás e o lado direito emplastrado sobre o rosto, cobrindo o olho. Ela piscou,
olhando para o grupo em busca de uma "força", mas eles continuavam rindo. Alissa mais
que os outros.
Havia um surfista alto e bonitão, de cabelo louro, próximo a Alissa.
- Radical! gozou ele. Isso foi totalmente chocante!
Nesse instante notou que escorria sangue do seu cotovelo, que ardia quase tanto
quanto seu orgulho ferido. "Este é, sem sombra de dúvida, o pior momento da minha
vida", pensou.
Um dos surfistas aproximou-se e ajudou-a a desembaraçar as algas do tornozelo.
- Você está bem?
Era mais uma declaração do que uma pergunta.
- Sim.
Cris olhou para cima e viu um dos rapazes mais interessantes que já vira em toda a
sua vida. Era exatamente como o "cara perfeito" que ela descrevera para Paula meses
atrás: cabelo clareado pelo sol, olhos azul-prateados.
Ele a tomou pelo cotovelo e ajudou-a a levantar-se.
- Estou me sentindo ridícula! confidenciou ela.
- É posso imaginar. A maneira como ele falou expressava bondade. Parecia
realmente entender como ela estava se sentindo.
Os outros voltaram a paquerar Alissa. Cris caminhou pela areia até sua toalha. O
cara bonitão a seguiu e ficou ali, enquanto ela se enxugava e tentava tirar a areia dos
ouvidos.
Finalmente ela quebrou o silêncio.
- Obrigada por ter me ajudado.
- Claro, disse ele, sentando-se sobre a toalha de Alissa. Sua amiga se importa se eu
me sentar aqui?
Cris olhou para a "amiga", que flertava tanto com os surfistas que parecia nem
lembrar que ela existia.
- Acho que não.
- Meu nome é Ted. Disse ele, com um sorriso franco e amistoso.
- Eu sou Cris, respondeu ela, surpresa por estar tão calma ao lado desse cara
maravilhoso. Você mora aqui?
- Sim, durante o verão, com meu pai.
- E sua mãe? Perguntou Cris.
- Tallahassee.
- Onde é isso?
- Na Flórida. Meus pais são divorciados, e minha mãe mora em Tallahassee. Moro
com ela durante o ano letivo e passo o verão e alguns feriados com meu pai.
Naquela hora, Alissa e um dos surfistas vieram para perto deles. Pareciam estar se
dando muito bem. Ele estava com o braço na cintura da jovem, e cada um segurava uma
lata de cerveja.
- Quer um pouco? ofereceu o rapaz a Cris.
- Não, obrigada, respondeu, sentindo-se meio desajeitada.
- Ah! disse ele, com ar de superioridade. Você deve ser daquele tipo de amigos que
o Ted tem.
- Na verdade, eu trouxe uns refrigerantes, balbuciou ela, sem saber o que ele queria
dizer com "aquele tipo de amigos do Ted" Tenho dois. Você quer um, Ted?
- Claro. Ted aproximou-se de Cris, e o outro surfista sentou-se com Alissa, na outra
toalha. Ted apresentou o rapaz como Sam, e Cris apresentou Alissa.
Isso é bom demais pra ser verdade! pensou Cris. Sabia que sua tia ficaria encantada.
Ficaram papeando durante cerca de uma hora. Alissa praticamente dominava a
conversa. Tinha muitas histórias sobre vida na Alemanha. Cris gostou do seu sotaque, que
devia se uma mistura do jeito de falar de todos os lugares em que vivera.
- E aqui os carros vão tão devagar nas "autovias". Mas não é essa a palavra que
vocês costumam usar. Como é que vocês dizem? "Autopistas"?
- Não, disse Cris.
- Sim, disse Ted ao mesmo tempo.
Olharam um para o outro.
- Na Califórnia nós as chamamos de autopistas, explicou Ted..
- Bem, no Wisconsin nós as chamamos de rodovias, respondeu Cris, com uma
risada.
- Bem, seja como for, vocês dirigem muito devagar aqui, observou Alissa. Em
Stuttgart não era nada dirigir a 120 por hora.
Ted e Alissa começaram então a falar sobre carros, e Cris ficou escutando. Não
sabia sequer a diferença entre um Fiat e um Fiesta e tinha medo de dizer alguma bobagem.
Sam também ficou quieto. Parecia não estar nem aí, e seus olhos tinham um brilho
estranho. Cris sentia-se mal quando ele olhava para ela. Não tinha certeza, mas achava
que o olhar dele era o que os livros chamam de "lascivo".
- Olha só! exclamou Sam de repente, apontando na direção da água. Essa é de
rachar!
- O que ele quer dizer? perguntou Cris baixinho a Ted.
- Ta vendo aquele menino na prancha branca? Só tem uns oito anos e já surfa muito
bem.
- Quantos anos você tem? perguntou Alissa a Cris.
Pensando que provavelmente era a mais nova dos quatro, mentiu a princípio.
- Tenho quinze. Entretanto corrigiu-se logo em seguida. Na verdade tenho quase
quinze. Faço aniversário daqui a algumas semanas. E você?
- Dezessete.
Cris não sabia se Alissa estava mentindo ou não. Sua aparência era mesmo de uma
garota dessa idade, mas quando ria, parecia não ter mais que uns quatorze anos. Além do
mais, se tinha mesmo dezessete, por que estaria se relacionando com ela, que tinha
quinze?
- Vocês meninos, não nos disseram sua idade. Falou Alissa.
- Eu não me lembro, brincou Sam.
- Vamos lá Sam! disse Ted. Nós dois temos dezesseis anos. Ele esta com medo de
que você não queira sair com um cara mais novo.
- Não é isso não, negou Sam.
- Depende da minha fome, desafiou Alissa, lançando a Sam um olhar que deixou
Cris envergonhada.
Não sabia bem por que, mas sentia-se como uma intrusa numa brincadeira
particular.
Certamente Sam conhecia todas as regram do jogo, pois se abaixou e beijou Alissa
nos lábios. Cris desviou o olhar para o quebra-mar.
- Está com fome?
A voz de Sam tinha um timbre forte.
- Faminta, respondeu Alissa.
Sam levantou-se, puxando Alissa consigo, quando Ted quebrou aquele clima
romântico.
- Vamos surfar, Sam! As ondas parecem legais.
- Ah, mas é claro, debochou Sam. Alissa pegou sua toalha e os dois atravessaram
depressa a areia em direção à casa de Sam.
- Eles vão preparar um lanche ou algo assim? Perguntou Cris, confusa pela saída
repentina do casal.
Ted olhou para ela meio espantado.
- Não exatamente.
Cris não sabia bem o que ela não "pegara", mas percebeu que; o Ted não estava
muito contente com a saída do Sam. Contudo! ela não se importou nem um pouco.
Adoraria passar o resto do dia sentada ali, conversando com o Ted, olhando para
seus enormes olhos azuis. Nunca gostara de um cara como estava gostando dele. E só o
conhecera hoje Será que ele estava gostando dela? Parecia que sim, mesmo não tendo
tentado beijá-la, como Sam fizera com Alissa. Na verdade o pensamento a deixava
atônita. E se ele tentasse beijá-la assim?
- E aí, o que você quer? Perguntou Ted, interrompendo se devaneio.
O coração de Cris deu um salto.
- Quer o quê?
Será que ele estava lendo seus pensamentos?
- Quer surfar?
- Ah! disse Cris, com uma risada. Não sei. Como você deve ter notado, não tenho
muita coordenação na água.
- Eu lhe ensino.
- O que eu queria mesmo aprender é a pegar jacaré. Era o que a Alissa estava
tentando me ensinar.
- Não sou o melhor nisso por essas bandas, mas posso lhe ensinar o que sei.
Mergulharam no mar, e Cris teve novamente aquela sensação de bem-estar, agora
ainda mais intensa por causa da presença de Ted.
Como dois golfinhos, eles enfrentaram juntos as ondas, conversando e rindo. Com
paciência, Ted tentou ensiná-la a pegar jacaré, mas ela não conseguia se cronometrar.
Cada onda que passava levava Ted em sua crista e a deixava para trás, encharcada.
Depois de certo tempo, outro surfista passou por eles e Ted apresentou-o. Chamava-
se Douglas. Era uma gracinha, e ela o achou muito mais simpático que os outros surfistas
que encontrara antes.
- Experimente isso, disse Douglas, oferecendo-lhe sua prancha de Body Board.
- Como se usa? perguntou Cris, insegura sobre o que fazer com a prancha macia,
amarelo-cheguei, que ele oferecia.
- Bem... você só tem que subir nela e, e... ah, eu não sei! Usa-se como se usa uma
prancha de Body Board, disse Douglas.
- Aqui, eu mostro, ofereceu Ted.
Prendeu com velcro uma tira em volta do punho e esperou um instante. Quando veio
a onda seguinte, deitou-se de bruços na pranchinha e começou a bater furiosamente os
pés, deslizando à frente dela.
Cris e Douglas ficaram boiando e observando Ted, enquanto aonda estourava atrás
dele, levantando-o sobre a prancha de Body Board até à praia.
- Legal! exclamou Cris. Posso tentar?
- Claro, concordou. Use-a o quanto quiser.
- Obrigada.
Ted remou de volta com as mãos e entregou a prancha curta e esponjosa para Cris.
- Isso facilita pra pegar as ondas!
Meio sem jeito, Cris deitou sobre a pranchinha. Espero que meu traseiro não esteja muito
saliente! preocupou-se.
- Taí. Comece a bater os pés!
A garota bateu os pés sem parar e não olhou para trás. De repente a força da onda
levantou-a, puxando-a para cima e para a frente. Antes que conseguisse perceber o que
estava acontecendo, a onda a cobriu. Agarrou a prancha com toda força e sentiu o ímpeto
do mar impelindo-a para a praia. A prancha escorregou sobre a areia grossa da praia e,
imediatamente, a onda recuou.
Cris ficou de pé, sem um arranhão, e acenou para Ted e Douglas, que acenavam
parabenizando-a.
Quero fazer isso de novo! É por isso que o pessoal gosta tanto de surfar. Imagine como seria fazer isso
de pé numa prancha grande! Mesmo deitada nessa pranchinha já é uma delícia de tirar o fôlego!
Enfrentou as ondas e voltou para onde estavam Ted e Douglas.
- Que bárbaro! disse Douglas quando ela chegou.
- Que bárbaro? repetiu Ted. Ninguém mais diz "Que bárbaro" hoje em dia!
- Pois eu digo, respondeu Douglas rindo. Cris, você foi bárbara naquela onda. Aliás,
em todo o percurso!
- Ei, que horas são? perguntou Ted.
- Quase três e meia, respondeu Douglas, consultando seu relógio de mergulho.
- Tenho de ir, disse Ted. Vou dar uma carona à Trícia para o trabalho. Virou-se
então para Cris e perguntou:
- Você virá aqui amanhã?
Cris assentiu com a cabeça, tremendo um pouco por causa da água fria.
- Ei, essa aí parece uma boa!
Ted apontou para a imensa onda que se aproximava. Vamos todos nela!
Cris deitou-se sobre a pranchinha e os dois rapazes seguraram nas beiradas. Os três
estavam batendo os pés ao mesmo tempo, mas, quando a onda os alcançou, o impacto
separou-os, empurrando a garota mais depressa. Ela deu um gritinho ao sentir a força que
arrancou a prancha de debaixo dela. Virou urna vez debaixo da onda e saiu por trás dela.
A amarra no pulso permitiu que puxasse a prancha de volta. Ted e Douglas, agora ambos
à sua frente, saíam da água na beira da praia.
Cris deitou-se novamente sobre a prancha e deixou que a onda que veio em seguida,
menor e menos forte, a impelisse suavemente para a praia, onde Ted sacudia
vigorosamente a água do cabelo.
- Então vejo vocês amanhã, disse ele.
- Até mais! respondeu Douglas e, virando-se para Cris, perguntou:
- Você vai pegar mais onda?
Ela hesitou um instante e depois disse:
- Estou com um pouco de frio. Acho que vou tomar um solzinho. Obrigada por ter-
me emprestado sua prancha. Foi divertido!
De nada, disse ele, pegando-a de volta. Está sempre às ordens.
Ela esticou a toalha e deixou que o sol quente a tostasse. A água salgada secava
formando manchinhas nas suas pernas, e ela sentia a pele ressequida e coçando, e a boca
muito seca.
Douglas ainda estava na água, curtindo sua prancha de Body Board, e Ted não
voltaria mais naquele dia. Então ela resolveu ir embora.
Enquanto ia caminhando com cuidado na areia quente, pensava: Esse dia foi
realmente bárbaro, como diria o Douglas. Minha tia vai se orgulhar de mim! Ela tinha
razão: eu só precisava de um bom maiô e um belo corte de cabelo. Adorei me enturmar
com a galera do Ted. Nossa! A Paula nem vai acreditar...
O Convite
5
Na manhã seguinte, Cris foi bem cedinho para a praia, de cabelo arrumado e com
maquiagem nos olhos. Esperou ansiosamente pelo Ted. Não havia quase ninguém, exceto
uns poucos surfistas que não conhecia. Ninguém do grupo que conhecera no dia anterior
estava lá.
Voltou para casa, que ainda se achava em silêncio, e olhou para o relógio. Oito e
vinte e sete. Não era de espantar que ninguém estivesse na praia.
Esparramou-se sobre uma poltrona e ligou a televisão. Estava passando um
programa infantil. Cris ficou ali assistindo meio desligada, vendo um boneco que tentava
convencer o outro comprar um sorvete de picles e sardinha. O segundo ficava dizendo que
não gostava.
- Como pode dizer que não gosta se nunca experimentou?!
O primeiro insistiu tanto que o outro acabou comprando o sorvete.
- Eca! gritou ele ao experimentar o sorvete. Provei e não gostei.
- Ha-ha-ha! riu o primeiro boneco. Sabia que não ia gostar. Sinto muito, mas agora
sua moeda já está no meu bolso. Ha-há-ha! Ganhei o dia. He-he-he!
- Que chatice! pensou Cris, desligando a TV. Pensar que isso é um programa
"educativo", para criancinhas! Credo!
- "Provei, e não gostei!" disse ela arremedando o personagem.
- Não gostou do quê?
A voz de Bob veio da porta.
- Ah, um sorvete de picles com sardinha.
- E que tal uma omelete de picles, sardinha e queijo?
Cris riu da brincadeira do tio e replicou:
- Ótimo, se eliminar os picles e as sardinhas!
Enquanto tomavam o café da manhã, Cris conversou com o tio sobre Ted.
- Ele é o cara mais bacana que já conheci, e tenho certeza de que gosta de mim.
- Qualquer rapaz seria louco se não gostasse de você!
Era tão fácil conversar com o tio Bob. Ela queria poder relacinar-se assim com seu
pai, mas ele era um homem muito fechado. Conversar com ele consistia em ouvi-lo falar
sobre um assunto durante horas e, no final, a sua conclusão: "É assim que tem de ser. "
Ele não lhe dava espaço para ter suas próprias idéias e expressá-las. Ele era o pai, ela a
filha. Ele dizia, ela obedecia. Era assim mesmo. Estava gostando dessa liberdade de poder
dar suas opiniões, conversar sobre tudo e sentir-se capaz de tomar decisões acertadas.
Com a autoconfiança aumentada, dirigiu-se novamente à praia, lá pelas onze horas,
pronta para o que desse e viesse. Estava tão entusiasmada que, quando viu o Ted, correu
para cumprimenta-lo, sem perceber que ele estava conversando com outra garota, aliás,
uma graça de garota.
- Ei, Cris! disse Ted. Como vão as coisas? Esta é a Trícia.
- Oi, disse Trícia com um sorriso rápido. A jovem era baixa e magrinha. Tinha
cabelo escuro na altura do ombro e olhos vivos, cor de chocolate. Seu bronzeado era bem
mais intenso que o de uma modelo de propaganda de bronzeador.
Os olhos de Cris pularam de Ted para Trícia e novamente para Ted. Será que estava
interrompendo alguma coisa?
- Vocês se importam se eu colocar minha toalha aqui?
- Claro que não, respondeu Trícia. O Ted me disse que havia conhecido duas garotas
novas na praia ontem, enquanto eu estava trabalhando. Sua amiga virá?
- Não sei. Na verdade eu a conheci ontem e, depois que ela saiu com o Sam, não a vi
mais.
- Eu vi os dois hoje cedo, disse Ted em voz baixa. Provavelmente eles ainda vão
aparecer mais tarde.
- Não sei como você consegue ser tão amigo dele, disse Trícia a Ted.
- Eu e Sam somos amigos há muito tempo.
- Sei, mas vocês dois não têm mais nada em comum.
- Não posso simplesmente ignorá-lo, defendeu-se Ted.
- Não fique zangado, respondeu Trícia repreendendo-o. Eu só fico me perguntando
por que você ainda anda com ele, só isso.
- Onde você trabalha? interrompeu Cris, tentando melhorar o clima.
Não dava para saber se Ted e Trícia estavam conversando como, irmãos ou como
namorados.
- Na Sorveteria Hanson. Fica lá perto do Pavilhão. Quer um emprego? Eles estão
procurando mais alguém para trabalhar à noite.
- Não, mas obrigada pelo interesse, respondeu Cris, ainda tentando descobrir qual o
relacionamento de Ted e Trícia. Ted e Trícia! Até os nomes combinavam! Será que ele
gostava dela? Sentiu-se meio insegura sem saber direito o que ela era para ele.
- Que horário você trabalha hoje? perguntou Ted a Trícia.
- Meio dia às seis. Você ainda vai poder me dar uma carona?!
- Claro. É melhor irmos embora logo. Olh'aí, o Sam e a Alissa!
Agora é que Cris sentiu-se sobrando mesmo. Sam e Alissa chegaram abraçados,
nitidamente orbitando em uma galáxia particular.
Que será que estou fazendo aqui? perguntou-se Cris.
- Vocês irão todos à festinha amanhã à noite? perguntou Alissa.
- Que festa? murmurou Cris.
- Do Sam. Os pais dele vão estar fora da cidade no fim de semana.
- Você vai, Trícia? perguntou Cris.
- Não, não sou muito de festas. Além do mais, tenho de trabalhar.
- E você, Ted?
- Provavelmente darei uma passada por lá. O interesse de Cris aumentou. Se Trícia
não fosse, talvez ela tivesse mais chance com o Ted.
- Acho que eu vou, disse Cris. Vou pedir que minha tia me deixe lá.
- Ah! Não faça isso! disse Alissa com uma risadinha. Não numa festa dessas! São só
algumas quadras. Você pode ir comigo, se quiser.
- Ótimo!
Cris lançou um olhar para Ted para ver se ele se ofereceria para levá-la.
- Temos de ir, foi tudo o que ele disse. Vou levar a Trícia para o trabalho. Além
disso, prometi a meu pai que terminaria de pintar a varanda hoje.
- Tchau! Vejo vocês depois! disse Cris a Ted e Trícia, tentando não deixar
transparecer o desapontamento pelo fato de o Ted não passar o dia com ela.
Alissa e Sam também resolveram sair, e foram caminhando pela praia abraçadinhos.
O corpo bronzeado de Alissa atraía como um imã os olhares de todos por quem passava.
Certamente ela sabia que todo mundo estava olhando, mas agia como se não ligasse a
mínima. Cris tirou o romance da sacola e tentou não ficar muito deprimida por ter ficado
sozinha de repente. O sol da tarde queimava suas costas e, de tempo em tempo, ela erguia
os olhos na esperança de que Ted voltasse.
Não dava para entender. Ontem ele parecia estar realmente interessado nela. Hoje
ele e Trícia pareciam um casal, discutindo, ele levando-a para o trabalho...
Como é que eu fico nessa historia? questionou-se. Pelo menos ele vai á festa amanhã, e a Trícia não! Eu
queria saber lidar com os rapazes como a Alissa. Assim seria mais fácil conseguir que um cara como o Ted
gostasse de mim.
Depois de passar ali várias horas sem progredir muito na leitura, ela juntou suas
coisas e atravessou a areia quente aos pulinhos, imaginando como seria que a Alissa
conseguia andar com tanta elegância. Tudo que Alissa fazia era perfeito. Se pudesse ser
igual a ela...
O pior de voltar para casa era a certeza de que sua tia pediria um relato completo do
dia; e não havia muito a dizer. A não ser sobre o convite para a festa. Pelo menos tinha
isso de bom para esperar.
Marta estava deitada, esticada sobre uma espreguiçadeira no pátio, com um copo
grande de chá gelado na mão. Usava um maiô preto com uma faixa roxa na cintura e um
enorme chapéu de palhinha com fita também roxa. Só suas pernas estavam expostas ao
sol.
Estava lendo uma revista em formato de jornal, com a foto de uma artista de cinema
na capa, e uma manchete que dizia algo como: "Alexis quer vingança". Por um momento
Cris achou a tia um pouco parecida com a artista da capa.
- Olá, Cris! disse Marta, com uma expressão meio assustada. Não vi você chegando.
Como foi o dia querida. Tão bom quanto ontem?
Cris fez um relato, eliminando os detalhes. Não contou que acabara ficando sozinha
na praia, mas falou sobre o convite para a festa.
Marta disse com orgulho.
- Eu sabia que você conseguiria se entrosar com a turma mais popular, se tentasse! A
que horas devo deixá-la na casa do rapaz?
- Na verdade, a Alissa vem me buscar.
Cris esperava que Marta não insistisse em levá-la de carro, porque Alissa dera a
entender que ela ia parecer meio infantil se a tia a levasse.
- Bem, vou pensar no caso, disse Marta. Em seguida, acrescentou:
- Ó céus! Temos de sair para comprar um vestido bonito pra você usar.
- Mas tia, você me deu um guarda-roupa inteiro faz poucos dias, lembra?
- Sim, mas não compramos nenhum vestido de festa de verdade.
Marta parecia bastante preocupada.
- Vestido de festa? Sem essa! E se a gente for fazer alguma brincadeira mais
movimentada? Eu vou de jeans.
Para alívio seu, Marta se acalmou.
Quando Cris entrou na cozinha, Bob estava retirando um pacote de hambúrguer do
congelador.
- Nossa! exclamou ele quando a viu. Você se queimou!
- Mesmo? perguntou, parecendo contente. Estou surpresa por meu rosto estar
queimado. Fiquei de bruços quase o dia todo.
- Aqui, sua lagostinha, disse ele, oferecendo-lhe um tubo de gel de aloe vera. Passe
isto depois do banho, ou você vai inchar como tomate e assustar os garotos.
- Hoje na praia eu não os assustei, respondeu ela com certa petulância. Fui até
convidada para uma festa, anunciou, abrindo a geladeira e procurando algo para comer.
Minha nossa! retrucou Bob. Não estamos nos tornando uma borboletinha social de
repente?! Teremos a honra de sua presença no jantar hoje?
- Claro. A festa é só amanhã. Cris pegou uma colher e começou a tomar sorvete de
chocolate e nozes direto no pote. Bob parecia não se importar.
- Foi esse seu novo amigo, o Ted, que a convidou?
- Não, mas ele também vai estar lá, disse Cris, terminando de tomar o sorvete. A
festa é na casa do Sam, e eu vou com a Alissa, explicou, mexendo nos armários. Tem
alguma coisa pra se comer nesta casa?
- Daqui a algumas poucas horas teremos um jantar rnexicano no pátio, disse com
exagero dramático. Devo chamá-la quando estiver tudo pronto?
- Si, si senor! respondeu Cris, enquanto subia a escada.
Foi só quando olhou no espelho do banheiro que viu o que seu tio falara sobre a
queimadura de sol. Até suas orelhas estavam queimadas! Ao lavar o cabelo, a água do
chuveiro parecia mil agulhas enfiando-se nas suas costas.
Vestir-se foi um esforço monumental. Até mesmo o gel de aloe Vera ardia quando o
aplicava aos ombros.
Mais tarde, quando os três se sentaram à mesa para jantar, Marta olhou bem para o
rosto de Cris, e falou:
- Cristina, querida! Você está horrivelmente queimada! Não levou o filtro solar para
o rosto hoje?
- Está tudo bem, Marta, disse Bob acalmando-a. Eu lhe dei o gel de aloe vera. Ela
vai ficar bem.
- Não coma muito, querida. Você tem de sentir-se leve amanhã à noite.
- Deixa a mocinha! protestou Bob.
- Bem, amanhã vai ser uma noite importante para Cris, e só quero que ela esteja com
seu melhor aspecto.
*****
Cris não se sentia tão bem quando chegou a grande noite. Estava tão queimada de
sol que acabou passando o dia inteiro deitada pelos cantos, gemendo, tomando água
gelada e tolerando a tia, que besuntava uma variedade de misturas nos seus ombros e
costas doloridos.
Ela queria ir à praia para procurar o Ted, mas Marta não a deixou sair de casa.
Passou o dia pensando nele.
Lá pelas quatro da tarde começou a revirar o guarda-roupa a fim de decidir o que
vestiria. Finalmente resolveu pôr um jeans novo e uma camiseta com estampa de ursinho.
Era o tipo roupa que Paula teria usado. Mas o que ela queria mesmo era ter o número do
telefone da Alissa para perguntar-lhe o que ela iria vestir. Alissa era tão mais amadurecida
que Paula e, tendo morado em tantos lugares diferentes, sabia muito mais sobre , vida do
que todas as amigas de Cris de sua cidade.
Enquanto escovava o cabelo curto, pensava no lindo cabelo comprido de Alissa.
Resolveu deixá-lo crescer de novo. Quando completasse dezessete anos, ele já estaria
novamente do tamanho do Alissa. Virou a cabeça pra trás em frente ao espelho, imitando
sorriso de Alissa e sacudiu a longa cabeleira imaginária.
- O que está fazendo, meu bem?
Marta estivera olhando da porta do quarto.
- Oh! Só brincando, respondeu Cris, assustada.
- Está na hora de você começar a se aprontar. Já resolveu o que vai vestir?
Cris olhou para sua roupa.
- Isto. Vou usar isto. Já estou quase pronta.
Marta examinou a garota com ar de censura.
- Parece que você já se decidiu. Eu estava só querendo ajudar.
Virando-se então para sair, mudou o tom de voz e anunciou com uma alegria
exagerada.
- Bem, o jantar está pronto!
Não agüento isso! pensou Cris, com vontade de gritar. Primeiro os adultos insistem em dizer que
temos de crescer, ser autênticos e tomar nossas próprias decisões. Depois, quando a gente resolve, eles falam
que somos incompetentes e que nossas decisões são insensatas.
Jogou a escova no chão, abriu de sopetão a porta do armário, pegou o vestido novo
de alças e arrancou a camiseta. Ai! A pele queimada latejava. Caiu no choro e jogou-se na
cama ficando quietinha até sentir-se mais calma.
- Não me importa o que ela acha, disse bem alto. Vou vestir o que eu quero. O que é
que ela sabe sobre a turma?
Colocou novamente a camiseta, escovou o cabelo e desceu a escada.
A Festa
6
Á mesa do jantar Cris revirava, em silêncio, seu quiche de camarão. Marta retomou
o controle da situação.
- Estou ansiosa para conhecer sua nova amiga Alissa. Estou gostando de ver como
você tem feito amizades depressa. Até recebeu um convite para uma festa! É
absolutamente ma-ra-vi-lho-so!
Agora Cris nem sentia mais vontade de ir à festa. Mas começou a animar-se
novamente quando Bob contou, num jeito muito engraçado, como seu carro de golfe
quebrara no décimo quinto buraco aquela tarde. Quando Alissa tocou a campainha, Cris
estava contente de novo e disposta a se divertir.
Marta gostou imediatamente de Alissa. "O ápice da perfeição", diria ela mais tarde;
e um ótimo exemplo para Cristina.
Mas o entusiasmo da garota murchou quando abriu a porta, Alissa estava usando um
vestido. Um vestido branco incrível que destacava seu bronzeado. O ar da sala encheu-se
do seu perfume de gardênia enquanto ela, educadamente, conversava com Bob e Marta,
Cris analisou-a detidamente. Sua maquiagem estava perfeita, o cabelo muito bem
arrumado, tudo nela era perfeito! Cris a detestava e, ao mesmo tempo, daria tudo para ser
igualzinha a ela.
Quando estavam a caminho da casa do Sam, Alissa disse:
- Eu quase não vinha mais. O Sam é um boboca! Tão imaturo!
- Pensei que vocês já estivessem ficando apaixonados.
- Você pensou isso? disse Alissa, parecendo surpresa. Ele é um bebezão. Tenho
coisas melhores pra fazer do que criar menininhos.
Quando chegaram, Alissa desfilou pela sala com movimentos de bailarina. Primeiro
girando para cumprimentar uma pessoa, depois levantando graciosamente o braço para
acenar a outra.
Cris observava impressionada, e aquela música barulhenta fazia seu coração bater
mais forte. Nem Sam nem Ted estavam por perto. Era um mar de espectadores
desconhecidos observando o desempenho de Alissa, que cumpriu seu papel bem ensaiado
ate ir sentar-se no sofá, onde estava o cara mais maravilhoso da festa.
Cris calculou que ele tivesse vinte e um ou vinte e dois anos. De cabelo e bigode
escuros e espessos, lembrava aquele cara do antigo seriado TV, "Magnum". Ele estava até
usando uma camisa com estampa havaiana.
Obviamente Alissa decidira que ele seria sua conquista da noite. E ele deve ter
percebido suas intenções porque, em poucos minutos, deixou a moça com quem viera,
passou o braço em volta de Alissa, e os dois saíram juntos pela porta da frente.
Agora Cris estava sozinha, intimidada, assustada e dolorosamente consciente de que
era a única de jeans. Todas as outras garotas estavam com vestidos de festa. Ela se sentia
como uma menininha de três anos, tremendo num canto com sua camiseta de ursinho.
Como poderia admitir que a tia estava certa sobre o que ela deveria vestir?
Sentiu uma enorme vontade de sair correndo porta afora, mas não poderia ir para
casa agora. Não queria admitir para a tia que fracassara.
As pessoas à sua volta davam-lhe as costas, conversando, segurando latas de
cerveja, algumas fumando. Ninguém olhava para ela. Talvez se sentisse melhor se
estivesse com uma bebida como todo mundo.
Enchendo-se de coragem, saiu do seu cantinho e procurou a cozinha.
- Com licença, disse ela a um dos surfistas em pé, perto geladeira. É aqui que a gente
pega alguma coisa pra beber?
Ele não respondeu. Simplesmente apontou para uns tambores de gelo que estavam
no meio da cozinha e tomou mais um gole de cerveja. Cris enfiou a mão no gelo para
procurar um refrigerante. Só tinha cerveja. No outro tambor era a mesma coisa.
Não queria beber aquilo. Só havia experimentado cerveja uma vez, quando tinha dez
anos, e achou o gosto horrível. "Como alguém pode gostar disso?"
Outro surfista entrou na cozinha e gritou pra ela:
- Ei, manda duas geladinhas.
Cris assustou-se. Era a primeira pessoa que falava com ela desde que chegara à
festa.
Atendeu prontamente e, entregando-lhe as latas, perguntou:
- Você sabe onde está o Sam?
Ele pareceu não escutar por causa da música. Ela perguntou de novo, mais alto:
- Sabe onde está o Sam?
O surfista olhou para ela como se estivesse tentando lembrar de onde a vira antes.
- Lá em cima, respondeu. Daí ele conseguiu lembrar:
- Ei, a Alissa veio?
- Veio, mas já saiu com outra pessoa. Cris tinha de gritar porque a música estava
ensurdecedora Daí perguntou:
- Onde lá em cima?
- Ah?
- Lá em cima onde? Ela estava gritando no ouvido dele.
- Ah?
Ele parecia confuso e, de repente, a música parou.
- Eu só queria perguntar ao Sam onde tem Coca.
O silêncio foi total. Um dos rapazes disse:
- Qual é, gatinha?! Hoje é dia de festa! A menina ao lado dele riu.
Por que todo mundo está me olhando assim? Seu coração batia Será que estão me achando infantil por
ter pedido Coca em vez de cerveja?
Tentando manter a pouca compostura que ainda tinha, subiu a escada. Bateu na
primeira porta fechada que encontrou, e alguém gritou lá de dentro:
- Vá embora!
Bateu então numa segunda porta, e Sam apareceu.
- Oi, disse Cris, sentindo-se uma completa idiota.
Sam olhou em volta e atrás dela.
- Cadê a a Alissa?
- Saiu com um cara.
Sua voz refletia a irritação por ter sido deixada sozinha. Sam também estava irritado
e soltou uma série de palavrões que a deixaram totalmente chocada. Como eles podiam
parecer um par de pombinhos num dia e desprezar um ao outro no dia seguinte?
- Eu não queria incomodar você, Sam. Só queria saber se tem Coca ai?
Ele a olhou assustado, da mesma maneira que aquele rapaz a olhara na cozinha.
- Claro! Entre aqui!
Sam conduziu-a para o que certamente era o quarto de seus pais. Cinco ou seis
pessoas estavam sentadas na cama e no chão. Todos olhavam para um cara ao lado da
mesinha de cabeceira, que enrolava alguma coisa entre os dedos.
Ninguém conversava com ela, embora não a ignorassem totalmente. Era como se
tivesse entrado numa turminha particular e, alguma razão, eles a haviam aceitado.
Sam deu ao rapaz uma caixa de fósforos, depois aproximou-se de Cris e disse
baixinho:
- Não tem coca, tá legal? Mas esse aqui é de primeira. "Ouro de Kona”. Ce sabe,
muito melhor do que o que a gente consegue por aqui.
De repente Cris entendeu e exclamou:
- Quer dizer que isso é maconha?
Novamente todos olharam para ela como os outros na cozinha haviam olhado.
Agora ela estava entendendo por quê. De vem ter pensado que ela estivesse pedindo
cocaína, não Coca-Cola! Como ela pôde ser tão boba?
Sam parecia ofendido.
- É, como eu falei, a coca não pintou. Toma aqui! disse ele empurrando o baseado na
frente do rosto de Cris. Quer a primeira tragada?
Todo mundo estava esperando. O suor fazia arder seu rosto queimado pelo sol.
Depois de toda a confusão que causara, como poderia simplesmente dizer: "Não,
obrigada, tenho de ir embora”?
Desesperada, ela engasgou:
- Tudo bem, Sam, vá você primeiro.
- Tá legal, respondeu. Ele deu uma tragada, puxando a fumaça densa, de cheiro
adocicado, para dentro dos pulmões e prendendo a respiração antes de soltá-la.
Só aquele cheiro já estava deixando Cris com a cabeça leve. O que deveria fazer
quando ele oferecesse de novo o baseado?
A porta ficava do outro lado do quarto. Não dava para sair discretamente. O que
Alissa faria? O quarto parecia rodopiar sua volta. A música que vinha do andar de baixo
provocava uma vibração que ela sentia desde a sola dos pés até a cabeça. Sam entregou-
lhe o cigarro sem dizer nada. Ela tomou-o com mãos trémulas entre o dedão e o indicador
como o vira fazer. Fechou os olhos e levou-o à boca. A fumaça espessa enchia s narinas.
Ela abriu os lábio, mas, de repente, parou.
- Não posso! Simplesmente não posso!
- Parece até que é a primeira vez dela! disse uma das meninas, sentada à beira da
cama. Que criançona!
- Vamo lá, passe pra nós! pediu um dos rapazes. Cris entregou-lhe o cigarro,
sentindo o ardor das lágrimas nos olhos. De repente ouviu uma voz do outro lado do
quarto.
- Ei, legal! exclamou Ted. Ela é uma grande garota. É capaz de tomar suas próprias
decisões. Todo mundo olhou para ela.
- Bem, disse ela, engolindo em seco. Eu... ha... aprecio vi ter me convidado, Sam,
e... ha... foi muito bom, mas... a-a-acho que vou indo agora.
- Como você quiser, murmurou Sam, enquanto ela saía correndo do quarto e descia
apressadamente a escada.
Desesperada, ia empurrando as pessoas para abrir caminho entre amultidão que
bebia, ria e sacudia a cabeça ao som da musica. Passando pela porta da frente, deixou as
lágrimas escorrerem.
Sou mesmo uma criançona! pensou, com vontade de gritar.
De repente, alguém tocou em seu ombro. Cris virou-se bruscamente, pronta para dar
um murro em quem fosse.
Era o Ted.
- Você vai para casa agora? perguntou com ternura.
Ela desviou o olhar e tentou não chorar mais.
- Acho que sim.
- Vou com você.
Era mais uma de suas declarações. Não uma pergunta ou um convite, mas
simplesmente um fato.
- Vamos por aqui, acrescentou, caminhando em direção a praia. Cris passou o dedo
por baixo de cada olho, para limpar alguma mancha de rímel e lápis. Seguiu-o de boa
vontade, mas incerta quanto ao que poderia acontecer em seguida. Sentia-se insegura
demais para fazer qualquer outra coisa.
Tempo de Chorar
7
Atravessaram a areia macia e fresca em silêncio. O sol acabara de se pôr, deixando
tonalidades laranja e rosa no céu. Cris respirou fundo, sentindo o cheiro do mar. Queria
apagar da lembrança a hora passada naquele lugar.
Ted fitava o mar. Por que ele tinha vindo com ela? Ela havia sido tão tola na festa...
será que ficar sozinha com Ted seria outro passo errado? Ela não sabia mais em quem
podia confiar. Ted interrompeu os pensamentos confusos da garota.
- Quer sentar um pouco no quebra-mar?
- Eu... eu não sei. Acho que sim.
Ela sentia-se culpada por não confiar nele.
Ficaram em silêncio muito tempo. As ondas quebravam logo abaixo de seus pés,
espirrando gotículas de água na calça jeans de Cris. O ar estava morno, mas aquela
umidade provocava um friozinho que a fazia tremer. Ela puxou as pernas para cima,
sentando-se com as pernas cruzadas sobre a pedra tosca. A noite estava tranqüila, e a
atmosfera toda tinha um efeito calmante.
- Então, começou Ted. Era como se ele tivesse deixado, de propósito, um tempo
para a garota aclarar as idéias, e agora quisesse bater um papo.
- Não era o tipo de festa a que você está acostumada, hein?
- Não, admitiu Cris. A propósito, fiquei aliviada por você ter vindo me socorrer.
- Você não precisava de mim. Estava se virando muito bem sozinha; tomou sua
decisão sem que eu tivesse que dizer nada.
Cris notou pela primeira vez o quanto o rosto do Ted transmitia serenidade. Ele
tinha personalidade forte e sempre se expressava de maneira bem direta. Entretanto, ao
olhar para ele naquele momento, Cris viu algo terno em seus olhos. O que começara como
uma leve "paixonite" estava-se tornando algo que nunca sentira antes por um rapaz.
Estava gostando do Ted pra valer.
- Posso lhe dizer uma coisa? perguntou. Na verdade eu nunca fumei nenhum tipo de
cigarro. Nunca tinha visto nem sentido o cheiro de maconha! Me deu nojo, pra ser sincera.
- É por isso que você recusou o baseado? perguntou Ted.
- Não, disse ela, hesitando um pouco. Eu ia experimentar porque achava que era o
que a Alissa faria, e estava-me sentindo uma idiota parada lá daquele jeito. Foi por causa
de uma coisa que prometi aos meus pais.
- Que coisa?
- Antes de eu vir passar as férias aqui, eles me fizeram prometer que não faria nada
de que pudesse me arrepender depois.
- Parece sábio. Você está contente agora por não ter fumado?
Cris pensou por um momento.
- Sim, acho que sim. Tudo estava acontecendo tão depressa que não tive muito
tempo para pensar se queria ou não. Estava com um pouco de medo e também curiosa,
mas pensei que depois me arrependeria se experimentasse, e disse não.
Seguiram-se mais uns minutos de silêncio, mas logo após Cris indagou:
- Você gosta?
- Gosta do quê?
- De maconha. Você fuma muito?
Sua ousadia surpreendeu até a ela mesma, mas Ted não era o tipo de cara com quem
se pode fazer brincadeiras tolas.
- Não. Antigamente eu fumava. Mas não faço mais isso.
- Por quê?
Ted olhou-a direto nos olhos.
- Porque sou cristão.
Cris ficou surpresa. Nunca esperava uma declaração daquelas de um surfista de
Newport.
- E o que Cristo tem a ver com isso?
- Tudo.
- Bom, também sou cristã, declarou Cris, tentando recobrar-se do susto. Toda minha
família é. Fui batizada quando era bebe.
- Eu fui batizado bem ali, disse Ted, apontando para o mar No verão passado. Vinte
e sete de julho.
- Não brinca! disse Cris, descruzando as pernas e endireitando o corpo. É o dia do
meu aniversário!
Ted parecia querer dizer-lhe alguma coisa, mas foram interrompidos por um
barulhento grupo de pessoas que caminhava em sua direção.
Era o pessoal que estava na festa. Sam vinha na frente, gritando e fazendo muito
barulho, imitado pelo resto da turma.
Pararam na praia a poucos metros de onde estavam Ted Cris. Sam gritou alguma
coisa sobre surfar no quebra-mar de olhos fechados.
- Que é que ele está fazendo? perguntou Cris.
- Ele está pirado. Já o vi assim antes. Fica "chapadão". Parece que vai tentar surfar, o
que nessas alturas é uma loucura. Espere aqui um minutinho. Volto já.
Não dava para Cris ouvir o que Ted dizia para Sam, mas ela viu-o puxar o braço do
amigo. Então ouviu Sam berrar uma série de palavrões para Ted, terminando com:
- Eu não preciso de você! Me larga!
Sam mergulhou enquanto alguns da turma debochavam de Ted, que saiu
caminhando pela areia em direção a Cris.
- A Hanson ainda está aberta. Quer ir lá? disse ele com voz tensa.
- Ir onde?
Cris não se lembrava onde ouvira aquele nome antes.
- Tomar sorvete.
- Claro, mas, e o Sam?
- Eu tentei, né? Ele é responsável por seus próprios atos. A maneira como Ted
estava falando demonstrava ira e frustração, assustando-a um pouco.
Tentou animá-lo enquanto andavam até a sorveteria.
- Meu tio jogou golfe hoje, e aconteceu uma coisa tão engraçada... o carrinho dele
estragou e ele foi a pé até a sede do clube; só quando chegou lá é que lembrou que tinha
deixado todos os tacos no carrinho, perto do décimo quinto buraco!
Ted não disse nada. Obviamente o caso era muito mais engraçado contado pelo tio
Bob. O rapaz permaneceu sério até entrarem na sorveteria Hanson. De repente ele se
animou, e Cris sentiu um aperto no coração ao perceber por quê. Trícia trabalhava ali. Ela
estava equilibrando um banana split numa mão e milk shake, na outra.
- Trícia! Como vão as coisas? Ted mostrou-se mais alegre e encaminhou-se para
uma das mesas.
- Oi, gente! Já vou aí; um minutinho só. Ela fizera um rabo-de-cavalo no cabelo,
amarrado com uma fita rosa-choque que combinava com o babado do avental do
uniforme. Depois de entregar dois sundaes de chocolate na mesa ao lado da deles, ela
limpou as mãos no avental e exclamou:
- Hoje está tão movimentado aqui! Se vocês tivessem vindo a uma hora, não teriam
encontrado lugar pra sentar!
- O que você quer tomar, Cris? perguntou Ted, voltando a mostrar-se tranqüilo.
Cris resolveu provocar Trícia um pouquinho.
- Não sei, Ted. Eu não trouxe dinheiro.
- Não se preocupe. Eu trouxe, desde que você não peça a “extravagância do
Hanson".
- Por favor! gemeu Trícia. Fazer duas daquelas numa só noite é demais pra mim; e
já ultrapassei minha cota hoje!
- Então vou querer um sundae de flocos, sem nozes e com calda de chocolate
quente, disse Cris.
- E eu quero o de sempre, disse Ted, sorrindo para Trícia.
Cris ainda tinha ciúmes da intimidade dos dois. Contudo sentia-se contentíssima por
estar vivendo seu primeiro encontro com um rapaz.
Cerca de quatro meses atrás, ela e Paula haviam feito uma aposta para ver qual das
duas seria a primeira a ter um encontro de verdade com um garoto. As regras eram que ele
tinha de convidar, pagar a conta e levá-la em casa. Até ali, tudo bem. Parecia que a Paula
é que teria de arranjar os cinco dólares.
O "de sempre" do Ted era um milk-shake de manga com um pedaço grande de
abacaxi. Trícia, com mãos experientes, colocou o sorvete sobre a mesa e perguntou:
- Você não ia à festa do Sam, Cris?
- Eu fui, mas não estava pintando muita coisa lá, então nós viemos embora.
Por que fui falar isso? E se o Ted disser a ela que na verdade saí de lá correndo e aos prantos? pensou
Cris.
- Essa não é exatamente toda a história, disse Ted.
Cris se sentia uma boboca.
- Fico furioso da vida, Trícia. Quando saímos, Sam estava totalmente drogado.
Tentei evitar que entrasse na água, mas ele me xingou como se eu não valesse nada. Ted
parou e deu uma mordida no abacaxi.
- Quase bati nele, Trícia, continuou Ted. Quase quebrei a cara dele! Mas sei que isso
não ia resolver o problema.
Cris sentiu-se excluída da conversa, ao ver que Trícia dava conselhos ao Ted.
- Sei que é difícil, Ted, mas você não pode passar o resto da vida tomando conta do
Sam. É ele que está errado. Não é problema seu. Simplesmente entregue tudo ao Senhor.
Cris observou naquela conversa o mesmo clima de intimidade que havia notado
entre os dois no dia anterior, na praia. Parecia mais uma discussão entre irmãos.
- Mas ele é meu melhor amigo! Não posso fingir que não me importo! Você nunca
entendeu isso, Trícia. Sou leal aos meus amigos, mesmo quando eles são uns crápulas!
Trícia pediu licença.
- Tenho de atender mais umas pessoas.
- E então, disse Cris, tentando entrar no assunto. Você e Sam são bons amigos?
- É. Nós nos conhecemos desde que eu me entendo por gente, e andamos sempre
juntos. Sempre mesmo. Mas no ano passado, quando me tornei cristão, nós nos afastamos.
Não me interessei mais pelas coisas que ele fazia, a não ser pelo surfe.
Cris não entendia por que "tornar-se cristão" mudava a situação entre amigos.
Ted ficou um pouco retraído enquanto acompanhava Cris até sua casa. Ela lutava
contra o pensamento desalentador de que talvez ele não gostasse dela do jeito que ela
gostava dele. Mas, à porta, ficou mais animada.
- Quero o número do seu telefone, disse Ted, com seu jeito franco.
794... principiou mas parou, lembrando que esse era o número de sua casa. Não
sabia o número do telefone dos tios de cor.
- Espere um instante, disse, deixando Ted à porta e correndo para copiar o número
na cozinha.
Quando voltou, uma sirene de ambulância soava a algumas quadras. Estava tão alta
que quase não conseguiu escutar o que Ted disse ao despedir-se.
Será que ele disse: "Te vejo amanhã", ou, "te ligo amanhã" ?
De qualquer forma, a animação não diminuiu, mesmo quando encontrou a tia na
sala.
- Olá, querida! Estou morrendo de vontade de saber como foi a festa. Você e Alissa
se divertiram? O que vocês comeram? Brincaram muito como você pensava?
Cris riu até não poder mais.
- Não entendi, disse Marta. Por que está rindo tanto assim?
A garota esticou-se no carpete fofo e balançou a cabeça.
- Digamos que não era o tipo de festa que eu esperava. Mas acabei me divertindo
assim mesmo, e Ted me trouxe em casa. Talvez ele ligue pra mim amanhã, então é melhor
dizer ao tio Bob para não pegar no pé dele.
- O que você quer dizer com isso, Cris? perguntou Marta, ipiscando os olhos. Seu tio
jamais fará algo que possa envergonha-la!
- Ah, claro que não!
A garota subiu para o quarto morrendo de rir. Que noite! Que semana! Parecia que
havia amadurecido e mudado mais nos últimos dias do que nos últimos três anos.
Ainda estava super animada quando acordou na manhã seguinte. Enquanto limpava
o rosto e se maquiava, pensava em Ted. Será que deveria descer à praia ou ficar em casa
esperando seu telefonema? Enrolou o cabelo com um cuidado todo especial e estava quase
pronta quando o tio bateu à porta.
- Cris, telefone. Alguém de nome Fred, ou Ned, ou Ed, ou algo parecido.
- Ôbaaaa! gritou. Já vou!
Deu uma última olhada no espelho, e desceu a escada de dois em dois degraus, e
pegou a extensão na sala de leitura.
- Já peguei, tio Bob! disse, e em seguida ouviu o clique do aparelho sendo desligado.
- Olá!
Ela queria parecer meio distante, interessada e charmosa, tudo numa palavra só. Ted
parecia ser o tipo do cara que costuma fazer essa espécie de joguinho; mas por que ela não
podia?
- Cris, é o Ted. Estou no hospital. Você acha que sua tia ou seu tio poderiam trazê-
la? É no Hospital Memorial Hoag. A moça ficou tão assustada que quase deixou o fone
cair.
- Ted! O quê? Como? O que foi que aconteceu? Você está bem?,
- O Problema não é comigo. É com o Sam. Ele foi atirado contra o quebra-mar
ontem. Quebrou muitos ossos, perdeu muito sangue e ainda está inconsciente.
- Quando você ficou sabendo?
- Ontem, quando deixei você em casa. Vi uma ambulância na praia e tive um
pressentimento de que poderia ser o Sam, então fui seguindo-a até o hospital. Passei a
noite toda aqui. Os pais dele estão viajando. Acho que vou voltar para a casa dele pra
procurar os telefones de parentes ou alguém que saiba onde eles estão, concluiu com voz
cansada.
- Bem, o que eu posso fazer?
Cris estava abalada e se sentia incapaz de ajudar, mas faria qualquer coisa pelo Ted.
- Pensei que talvez você pudesse ficar aqui com ele. Se ele acordar, talvez saiba
dizer onde os pais foram. Eu não queria incomodar você, mas não consigo falar com mais
ninguém.
- Claro, Ted, respondeu Cris estupefata. Já estou indo aí.
Bob dirigia e Marta falava sem parar. Ted encontrou-os no saguão e disse o número
do quarto no hospital e do telefone da casa do Sam. Estava pálido e a expressão
angustiada não combinava com o rosto forte e terno que Cris conhecia. Teve vontade
abraçá-lo e chorar em seu ombro.
Ted foi embora e os três pegaram o elevador para o andar em que Sam se
encontrava. Tantas coisas aconteceram ao mesmo tempo que não dava nem para saber o
que havia realmente acontecido.
Sam parou de respirar e foi levado imediatamente para a sala de cirurgia. Havia
algum problema por ele ser menor de idade e seus pais não estarem presentes para assinar
os papéis permitindo cirurgia. Bob conversava com o médico em voz baixa, enquanto
Marta e Cris aguardavam no corredor.
Um policial surgiu de repente e uma enfermeira conduziu-o a Cris.
- Com licença, senhorita, disse ele, olhando bem para ela. O homem tinha quase dois
metros de altura, e só sua presença já amedrontava.
- Sou o oficial Martin. Posso fazer-lhe algumas perguntas?
- Sim, senhor.
Você estava com Sam Russell ontem à noite na hora do acidente?
- Sim. Isto é, não. Quer dizer, mais ou menos, balbuciou Cris.
- Sei, disse o oficial, levantando a sobrancelha. Talvez devêssemos sentar pra que
você me diga tudo que sabe.
Marta foi a primeira a sentar-se, mexendo nervosamente com as unhas.
- Conte tudo, querida, disse a tia, com a voz ainda mais alta e estridente que de
costume.
- Bem, teve uma festa na casa dele ontem à noite, e eu cheguei lá pelas oito,
começou Cris.
- Rolava droga na festa?
Marta engasgou.
- Céus, não!
O oficial parecia irritado.
- Talvez a senhora devesse deixar a jovem responder.
Marta encolheu-se no sofá.
O coração de Cris martelava.
- Sim, senhor.
- Havia drogas? repetiu ele.
- Sim, senhor.
Com o canto do olho, ela observava a tia empalidecida.
- Subi a escada, disse Cris, com voz tremula, porque um dos caras me disse para
subir. Eu estava procurando alguma coisa para beber que não fosse cerveja, e perguntei se
tinha Coca em algum lugar. Me mandaram pra cima, pra perguntar ao Sam. Sam Russell.
Era na casa dele. A festa, quero dizer.
Cris tremia tanto que não conseguia nem raciocinar direito.
- Continue, disse o policial.
- Bem, subi para o quarto e, quando entrei, tinha umas pessoas que estavam... bem,
no começo eu nem sabia o que estavam fazendo. Mas aí concluí que devia ser maconha.
- Oh, não!
Marta parecia que ia desmaiar.
- Senhorita Miller, disse o policial, inclinando-se e olhando firmemente para Cris.
Você participou no uso de drogas ilegais ontem à noite?
- Não!
A palavra lhe saltou da garganta como um gato acuado, Depois, contendo-se um
pouco, ela respondeu mais calmamente:
- Não, senhor. Eu não usei.
Nunca se sentira tão bem, tão certa de que tinha tomado decisão correta.
Marta suspirou aliviada.
- Sabe o nome de alguma outra pessoa que estava na festa? perguntou o oficial.
- Só o Ted. Acho que o sobrenome dele é Spencer, mas não tenho certeza. É ele que
está tentando localizar os pais do Sam.
- E você não conhecia mesmo as outras pessoas no quarto ontem à noite? Insistiu
ele, não parecendo convencido.
- Não, senhor.
- Está bem. Continue.
Cris deu mais alguns detalhes. De repente o policial interrompeu-a e perguntou:
- Quer dizer que o Ted foi embora com você depois que Sam entrou no mar?
Ela acenou que sim.
- Esse Ted tentou impedir Sam de entrar na água?
- Sim, senhor. Mas não adiantou. Ele disse que o Sam estava “chapado" demais e
não sabia o que estava fazendo. Cris notou que o tio vinha caminhando pelo corredor em
sua direção, com o rosto pálido como cera. Aproximou-se dela, segurou seu queixo com
cuidado e, com os olhos marejados de lagrimas, disse:
- Sinto muito, querida. Os médicos não puderam fazer nada.
- Ai, meu Deus do céu! exclamou Marta.
- O paciente expirou? perguntou o oficial sem emoção.
Bob acenou, confirmando.
- Bom, obrigado por sua ajuda, senhorita. Com licença, disse o policial.
Bob sentou-se e abraçou Cris. Ela começou a tremer incontrolavelmente e chorou
com a cabeça em seu ombro, deixando marcas de rímel em sua camisa de golfe azul-clara.
- Ted ainda não sabe! disse ela chorando. Temos de ligar pra ele. Cadê o número?
Marta se recompôs e voltou ao controle da situação.
- Deixe que seu tio faça a ligação Cristina. Fique aqui e procure acalmar-se.
A cabeça de Cris estava a mil enquanto olhava para o tio Bob na cabine telefônica, a
alguns metros. Como o Sam podia estar morto? Ela só o conhecera poucos dias atrás, e
agora se fora. Não podia ser verdade! As lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
Bob voltou e disse mansamente:
- Acho que é melhor a gente ir embora.
- E o Ted?
Cris chorava incontrolavelmente.
- Consegui falar com ele, disse Bob. Ele localizou os pais do Sam em Carmel. Eles
estarão voltando no próximo vôo, e Ted vai busca-los no aeroporto.
Falando em voz mais baixa, Bob acrescentou:
- Eles ainda não sabem.
A volta para casa foi incomoda. Tirando o fungar de Cris e os suspiros ocasionais de
tia Marta, tudo estava quieto. Quando chegaram na rampa de entrada da garagem, Marta
quebrou o silêncio.
- Na verdade, Cristina, eu não tinha idéia de que era esse tipo de amigos que lhe
faziam companhia! Ora, se eu tivesse pensado por um momento que você iria a uma festa
com drogas ontem eu...
Bob interrompeu-a com uma força que Cris jamais vira.
- Cala a boca, Marta! Não vê que foi você que a empurro para tudo isso?
- Eu?! Como eu poderia empurrar a menina? Marta bufava, pronta para se defender.
Bob insistiu:
- Sim, você! E você é teimosa demais; não vai admitir! Com isso bateu a porta do
carro e entrou em casa furioso.
- Que audácia! disse Marta, indignada.
Cris não sabia o que fazer. Nunca os vira brigando assim.
Do mesmo modo como uma onda espumante se retira, a ira de Marta desapareceu, e
ela recobrou a postura reservada de sempre.
- Cris, meu bem. Não fique sentida com seu tio. Tenho certeza de que ele não quis
magoá-la. Sabe o que mais? Vamos nós duas comer uma salada na Ilha Balboa? Há um
lugarzinho maravilhoso que há muito quero que você conheça.
Cris sentia-se como se o mundo inteiro estivesse girando e rodopiando à sua volta.
Como tia Marta podia falar em comer numa hora daquelas? A garota fitou os olhos na tia.
"Que mulher fria, insensível! Será que ela acha que fingindo não ver a realidade, fará as
coisas ruins desaparecerem?"
- Vamos? Insistiu Marta, procurando a chave do carro. Cris procurou responder com
toda a educação possível, mesmo com o espírito tão conturbado.
- Sinceramente, tia Marta, não estou com vontade de comer. Prefiro me deitar um
pouco, se não se importa.
O final veio intencionalmente sarcástico e, com um gesto de desagrado, Marta disse:
- Está bem. Então vou sozinha.
Cris saiu do carro e abriu a porta da frente com um gesto melancólico, enquanto o
conversível prateado descia a rampa da garagem e corria pela rua. Uma dor lacerante
parecia esmagar sua cabeça. Refugiou-se então no quarto, onde passou o resto do dia de
porta fechada. Por muito tempo ficou deitada na cama, fitando o nada a sua frente. Como
um disco arranhado que voltava sempre para a mesma linha, a morte de Sam não saía de
sua cabeça.
Os questionamentos eram tantos! Por que Sam? Ele tinha só dezesseis anos. É verdade que de
estava fumando maconha, mas sua morte foi um acidente. Deus não podia ter evitado que aquilo acontecesse?
Todos nós cometemos erros. E onde Sam estava agora? Será que estava no céu ou ... Será que o inferno
existe? As pessoas vão para o inferno quando morrem? Como é que ele foi morrer daquele jeito?
Não parecia verdade. Nada parecia verdade.
Talvez se escrevesse tudo, colocasse no papel todos os acontecimentos dos últimos
dias, conseguisse entender o que acontecera, ou pelo menos fazer com que aquilo parasse
de girar em sua cabeça. Escreveu tudo numa carta para Paula. Levou horas, e ficou com
cãibra na mão, de tanto segurar a caneta.
- Cris, chamou Bob baixinho, do lado de fora da porta.
A garota levantou a cabeça.
- Quer que eu prepare alguma coisa pra você? perguntou ele.
- Não, obrigada.
- Quer beber algo? Está com fome?
- Obrigada, tio. Só quero ficar sozinha, se não se importa.
- Claro. Não vou incomodá-la mais. Mas se precisar de alguma coisa, me chame,
viu? Qualquer coisa, tá bem?
- Está bem. Obrigada.
Ela continuou a escrever. Foi a carta mais longa que escreveu: vinte e quatro
páginas. Contudo, ao reler, não encontrou as respostas que procurava.
O sol começava a se pôr quando ela olhou pela janela. O mundo continuava seu
curso lá fora, As ondas continuavam a vir e voltar. As gaivotas sobrevoavam as latas de
lixo. As pessoas continuavam a fazer sua corrida de fim de tarde, no horário de sempre.
Nada havia parado. A vida continuava para todos os Outros. Não parecia justo.
Finalmente foi vencida pelo cansaço. Entrou no banheiro, encharcou um pano
felpudo com água morna e fez uma compressa no rosto, respirando o vapor. Tudo parecia
amargo como fel. Até o pano parecia áspero contra sua pele.
Mal conhecia Sam, no entanto estava dominada pela emoção. Como seria, pensou,
se isso tivesse acontecido com um amigo mais intimo?
Trôpega, caminhou até a cama, puxou o acolchoado sobre os ombros e caiu num
sono profundo.
Perguntas e Respostas
8
Os dias que se seguiram foram como uma névoa sobre o mar. Era como se Cris
soubesse que as coisas estavam acontecendo, mas não conseguisse distinguir os fatos com
clareza. Tudo parecia meio fora de foco em sua mente.
Bob e Marta haviam se reconciliado após aquela briga e ambos vieram pedir-lhe
desculpas. Marta ria como se tivesse sido algo sem consequência, enquanto as palavras de
Bob foram carregadas de sincera preocupação com os sentimentos da sobrinha.
Marta sugeriu que fossem juntos passar alguns dias em San Francisco. Queria ir no
dia seguinte e já havia feito as reservas de avião. Entretanto, com a ajuda do tio, Cris
conseguiu persuadi-la a adiar o vôo, para que pudesse assistir ao funeral do Sam.
No dia do enterro, ela ficou um tempão na frente do guarda-roupa, tentando resolver
o que vestir. Só tinha ido a dois velórios em sua vida, e eram de gente mais velha, e há
muito tempo. Não se lembrava do que havia vestido. Não tinha nenhuma roupa preta.
Além do mais, será que as pessoas ainda usavam preto em enterros?
Finalmente resolveu pôr a saia e a blusa velhas que usara no dia em que saíra para
fazer compras com sua tia. Talvez esse conjunto não estivesse tão na moda, mas era algo
conhecido, e sentia-se mais segura com ele do que com as roupas novas.
Encontrou o tio na cozinha, e descobriu que tia Marta havia-lhe preparado a bebida
protéica, e já estava ocupada arrumando as malas para a viagem. Só Bob a acompanharia
ao funeral.
Nenhum dos dois falou muito no carro. Quando Bob estacionou em frente à casa
funerária branca, em estilo colonial, Cris teve uma vontade enorme de pedir a ele que
virasse o carro e voltasse para casa. Entretanto mudou de idéia ao ver Ted e Trícia ali na
escadaria da frente.
Não vira o Ted desde aquela manhã, no hospital, e ele só havia telefonado uma vez
para dizer a hora e o local da cerimônia fúnebre. Cris respirou fundo e se dirigiu para onde
estavam.
Ao vê-la, Ted sorriu.
- Ainda bem que você veio, Cris.
Parecia exausto. Cris queria chorar, mas em vez disso estendeu os braços para Ted.
Ficaram abraçados por um bom tempo. Depois, sem palavras, se afastaram, e Trícia
também lhe deu um abraço forte, enquanto Bob e Ted se cumprimentavam com um aperto
de mãos.
Foram para uma pequena sala abarrotada de arranjos florais. O ar sufocava Cris,
fazendo-a engasgar com o perfume forte e doce. A música de órgão, lenta e monótona,
fazia sua cabeça latejar. Ela sentia vontade de vomitar.
Um padre careca, de batina preta, deu uma mensagem curta A mãe de Sam
encontrava-se na primeira fileira, chorando sem parar. Uma mulherona gorda e ruiva,
vestindo um tailleur cinzento, cantou um hino arrastado, juntando as mãos como se
estivesse numa ópera e não num enterro.
O padre voltou para o púlpito, anunciando que um dos amigos mais chegados de
Sam havia pedido para dizer algumas palavras. Com seu jeito firme e direto, Ted foi até a
frente. Parecia confiante, mas Cris notou que suas mãos tremiam.
- Sou amigo do Sam há muito tempo, começou ele, e parou para limpar a garganta.
Estive com ele na noite em que morreu. Provavelmente jamais me perdoarei por não ter
insistido mais com ele para que parasse.
Sua voz ficou embargada.
- Éramos realmente muito unidos. Estávamos sempre juntos até o verão passado,
quando me converti a Cristo. Eu queria que o Sam também se tornasse cristão. Não sei se
o fez
Foi aí que Ted se entregou ao choro. Com um soluço profundo, limpou rapidamente
os olhos com as mãos. Cris piscava para limpar as próprias lágrimas. Olhou para Trícia e
percebeu que também estava chorando muito, sem nem tentar segurar.
Bob tocou ternamente o braço de Cris, oferecendo-lhe um lenço. Ela olhou para ele
agradecida e ficou surpresa ao notar que ele não parecia emocionado. Não via em seu
rosto nem um pouco de sentimento.
Ted ainda estava tentando controlar-se e parar de soluçar. O padre viera à frente e
acenou-lhe para que se sentasse. Ted ergueu a mão como se dissesse: "Só mais um
minuto". Respirou fundo e limpou as mãos nos lados da calça.
- Gostaria de ler uma coisa, disse ele com voz rouca. Eu... fez uma pausa, pigarreou
e prosseguiu: encontrei um versículo no Evangelho de João que tem me ajudado muito.
Folheou a Bíblia com mãos trémulas e, ao encontrar o versículo, colocou-a sobre o
púlpito. Olhou então para o público, com os olhos marejados.
- No capítulo onze, um dos amigos mais chegados de Jesus havia morrido, e fico
admirado em ver que Jesus chorou. Aqui diz que ele chorou. Assim, tudo bem, a gente
pode se entristecer quando alguém a quem amamos morre.
Ted limpou as lágrimas que escorriam e continuou.
- Mas o que quero ler é o que Jesus disse para a família do amigo. Ele disse: " Eu
sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá!"
Fechando a Bíblia, Ted olhou para os pais de Sam. Seus olhos já não estavam tão
vermelhos, mas Cris ficou impressionada ao ver como ele estava pálido: seu rosto parecia
uma folha de papel.
- Bem, disse ele, dando uma rápida olhada para o padre que se encontrava de pé,
atrás dele. O que eu estou querendo dizer é que gostaria de poder voltar no tempo uma
semana. Queria que Sam estivesse vivo. Queria que ele tivesse crido em Jesus e entregado
a vida a Deus.
Apertando os olhos como se tentasse encontrar as palavras certas, continuou:
- Não sei se estou sendo claro, mas o que quero dizer é que Jesus me transformou de
maneira radical. Simplesmente orei pedindo-lhe para perdoar meus pecados e tomar conta
da minha vida. Eu me entreguei totalmente a Cristo e agora sei que passarei a eternidade
com ele no céu. Só queria... Só queria que Sam... e parou engasgado.
Ted não conseguiu terminar. Pegou a Bíblia, desceu e foi para seu lugar. Cobrindo
os olhos com as mãos, chorou.
Cris achou que não agüentaria nem mais um segundo. O padre voltou ao púlpito e,
com voz grave e sem emoção, finalizou com uma bênção formal.
O grupo se dispersou. Muitos fungavam, e a maioria olhava para baixo, em vez de
olhar para as pessoas. Cris andou depressa até o carro, engolindo o choro. Queria ir
embora imediatamente. Assistir ao sepultamento, jamais! Bob nem perguntou nada.
Dirigiu em silêncio até chegar em casa.
Só quando já estava no avião, a caminho de San Francisco olhando o oceano
Pacífico pela janela, foi que Cris soltou as emoções reprimidas na cerimônia fúnebre.
Virando o rosto para a janela, deixou as lágrimas jorrar.
De olhos embaçados, tentava distinguir a linha da costa da Califórnia, em miniatura
lá embaixo. De cima, as ondas pareciam uma linha fina de espuma de sabão. Inócuas,
macias e espumantes. Como essas mesmas ondas podiam ter tirado a vida de Sam?! Será que é assim que
Deus vê as coisas? Será que dessa altura tudo fica insignificante e sem valor para ele? Será que ele se importa
com o que as pessoas sentem?
Então ela lembrou-se do que Ted falou: "Jesus chorou. Ele si importa."
- Cris, chamou Marta, interrompendo seus pensamentos com um tapinha no ombro.
Tenho de lhe dizer uma coisa. Você não devia ficar assim tão emocionada com esse
funeral. Seus pais lhe ensinaram que deve ser uma menina boazinha e cristã, e você não
deve ficar pensando em coisas tristes e feias como a morte. Cris encarou a tia.
Como é que alguém consegue viver de maneira tão simplista, tentando fazer o mundo caber dentro de
sua bolsinha de festa? Tem de haver mais na vida do que dinheiro, roupas, popularidade e todas essas outars
coisas que ela vive martelando na minha cabeça.
Abaixou a poltrona com um puxão e colocou os fones de ouvido, deixando que o
ritmo da música levasse pra longe aqueles pensamentos sombrios.
*****
Cris se sentia como um robô, enquanto andavam pelo aeroporto de San Francisco, e
depois no táxi que os levaria ao hotel St. Francis. A cabeça latejava e o queixo doía de
tanto cerrar os dentes. Deveria estar impressionada com o carpete espesso, o teto todo
decorado e os lustres de cristal reluzentes do saguão. Deveria estar tentando memorizar
cada detalhe para depois poder contar tudo à Paula, mas não estava nem ligando.
Ficou de lado, esperando Marta acabar de registrá-los. Mexia com a alça da bolsa e
tentava não ouvir os ruídos ao redor. Havia gente falando em línguas estrangeiras,
atendentes e carregadores colocando malas sobre carrinhos de rodas e, do outro lado do
saguão, no restaurante anexo, alguém tocava piano.
Assim que chegaram às suítes, 1133 e 1134, Bob abriu sua mala e tirou um vidro de
aspirinas para Cris.
- Isso deve ajudar, disse ele, saindo em seguida para o apartamento adjacente.
Cris desembrulhou o copo que estava no banheiro e encheu-o de água. Tomou duas
aspirinas e olhou-se no espelho. Sua aparência não estava nada boa: olhos vermelhos e
inchados, os cantos da boca voltados para baixo e o cabelo murcho. Além disso, não se
sentia bem.
Dando uma volta pelo imenso quarto, tocou as maçanetas de vidro e passou a mão
sobre o sofazinho cor de salmão. Abriu a cortina e estava olhando para a praça Union,
quando Bob bateu à porta.
- Pronta para um passeio turístico? perguntou, entrando com Marta, que já trocara de
roupa. O quarto se encheu da fragrância de seu perfume.
- Tudo aquilo ali são lojas de departamentos? perguntou Cris, apontando para os
prédios altos que molduravam o parque, no meio da praça.
- É isso aí, disse Bob. Por que acha que nós sempre ficam no St. Francis?
- AMacy's é maravilhosa, acrescentou Marta, apontando à direita. Mas não podemos
deixar de passar também no I. Magnin, Nordstroms e Saks.
- Puxa! exclamou Cris, nunca vi tantas lojas grandes num mesmo lugar!
- Vamos! sugeriu Bob. Vamos pegar um bondinho.
Mesmo sendo quatro horas da tarde de um dia de verão, todos levaram agasalhos.
Depois de uma espera de quarenta minutos, conseguiram abrir caminho entre a multidão e
pegaram o bonde que se dirigia ao Cais do Pescador. Cris ficou em pé no estribo, e firmou
o braço no balaústre. O bonde sacolejava e balançava enquanto os cabos subterrâneos o
conduziam morro acima, rumo à baía azul, à frente. Sem fôlego, Cris segurava com toda
força. Que passeio!
E que clima festivo havia no ar! Será que vinha do bate-papo dos turistas no bonde?
Ou daquele vento forte tão agradável. Talvez fosse das casas à beira do caminho, que
pareciam tirada de um livro de histórias vitorianas, tornando o passeio ainda mais
encantador.
Fosse o que fosse, Marta notou claramente a animação de Cris.
- Eu não lhe disse, Bob? cochichou, sentada no banco de madeira. A pobrezinha
tinha que se afastar daquele estresse todo. Não é bom para uma menina de sua idade. Pode
causar rugas precoces!
Bob sorriu concordando e virou-se para o condutor, que se encontrava atrás dele,
manuseando as manivelas com mãos fortes, protegidas por luvas.
- Manejou muito bem o bonde naquela curva. Faz esse trabalho há muito tempo?
- Sim, senhor, respondeu ele, um homem alto, de quepe e uniforme elegante. Desde
1985, quando reabriram as linhas Antes disso, ficaram fechadas dois anos para reformas,
sabia?
- É, lembro-me de ter ouvido sobre isso. Bob parecia realmente interessado.
- Temos o maior orgulho dessa linha de bonde. É a única do mundo que se encontra
em pleno funcionamento.
- Que é divertido, é! gritou Cris, quando o condutor tocou o grande sino de bronze.
Dim-dim-dim! Cris deu uma risada e imaginou-se num anúncio de televisão de arroz com
macarrão, de San Francisco.
- Segura bem, mocinha! avisou o homem. Vamos passar por outro bonde.
Cris se encolheu toda, encostando o estômago nos joelhos de Marta. O bonde passou
raspando, e ela sentiu que a alça de uma bolsa de alguém que estava dependurado no outro
bonde, esbarrara nela.
- Essa passou perto! Exclamou.
Bob apertou seu braço. É bom ver esse sorriso de volta no seu rosto. O que você
quer fazer? Comer primeiro ou dar umas voltas pelas "armadilhas" para turistas?
- Vamos andar um pouco, dar uma olhada por aí, não é, querido?
Era evidente que Marta já fizera seu itinerário.
- Bob, você pode ir ver o seu barco de pescaria e depois nos encontramos, digamos,
às seis e meia no Alioto's para jantar.
- Tudo bem, concordou Bob. Quando o bonde parou, desceram e partiram em
direções opostas.
- Esses lugarzinhos são meio cafonas, cochichou Marta para a sobrinha, ao entrarem
numa pequena loja de suvenires. Mas pensei que talvez você pudesse encontrar uma
lembrança para levar para sua casa. Amanhã faremos compras de verdade, no Centro
comercial. Agora, se você achar alguma coisa de que gosta, basta falar.
Cris pegou uma caixinha de música colorida, com um bonde que subia e descia o
morro de cerâmica, tocando: "l left my heart in San Francisco" (Deixei meu coração em
San Francisco).
- Olha que bonitinho! exclamou.
Marta pediu à balconista que embrulhasse bem e colocasse numa caixa.
Enquanto a moça fazia o embrulho, Cris cantarolava baixinho aquela canção. Na
verdade, pensou ela, deixei meu coração em Newport Beach. Sonhava em estar junto ao
Ted no bondinho. Como seria bom sentir seu braço em volta de sua cintura enquanto
subiam e desciam os morros de San Francisco...
Marta trouxe-a de volta à realidade, chamando um jinriquxá* para irem ao Cais 39.
Papagaios de papel colorido voavam alto no céu da noite de verão, enquanto uma
variedade de atores de rua atraíam as multidões.
*Pequeno veículo montado sobre uma bicicleta, utilizado como táxi.
(N.E.)
Cris ficou fascinada por um malabarista que atirava facões de açougueiro para o
alto, mas Marta insistia em ir adiante. Entraram numa loja especializada em enfeites de
Natal, de toda espécie imaginável.
Então Marta teve uma inspiração repentina: resolveu escolher um tema para sua
árvore de Natal e comprar todos os enfeites ali. Depois de muita indecisão, escolheu
carneirinhos em vez de anjinhos e selecionou o suficiente para encher toda uma árvore.
- Vou ao caixa, Cris, disse Marta, animada com a compra. Encontrou alguma coisa
que quer levar?
- Ainda não sei.
Cris mexia num enfeite, um ursinho de madeira com o nome "Ted", pintado com
letras rebuscadas. Ela nunca havia compra do um presente para um homem antes, a não
ser seu pai e seu irmão, e queria levar uma lembrança para o novo amigo.
- E então, querida? indagou Marta, lá do caixa, pegando um cartão de crédito para
pagar a conta.
- Não, disse Cris, devolvendo o enfeite à prateleira. Não acho nada aqui. Talvez na
próxima loja.
A loja seguinte em que entraram era só de moletons. Havia uma coleção incrível de
todas as cores e tamanhos imagináveis, pendurada na parede, em grandes suportes de
madeira.
- Este é legal! exclamou, mostrando à tia um blusão preto e branco com os dizeres:
"Escaped from Alcatraz" (Fugitivo de Alcatraz).
Marta não pareceu gostar muito.
- Bem, não é muito feminino, querida, mas se é o que você quer, acho...
- Não, tia; não é pra mim! É pro Ted. Posso comprar pra ele Por favor?
- Entendi, disse Marta, examinando a blusa. É, suponho que não haja problema. Por
que você não escolhe uma para você também? Aquela azul com veleiro branco está um
amor, não acha?
Vinte minutos mais tarde elas encontraram Bob e sentaram-se numa mesa, ao lado
de uma janela no Alioto's. Enquanto passavam manteiga no pãozinho quente, observavam
a névoa que vinha lentamente cobrindo a baía. Cris pediu um prato que nunca havia
experimentado: caranguejo. Com cuidado, quebrava a casca e puxava a carne branca,
pelando de quente, e molhava-a em manteiga derretida. Que festa!
Estava limpando as mãos com um guardanapo de pano, quando Bob interrompeu a
tagarelice de Marta para filosofar com Cris.
- Há muitas coisas para se provar na vida, Cris. É bom experimentar tudo que quiser,
desde que saiba a hora de parar. Está entendendo o que eu quero dizer?
- Mais ou menos.
Na verdade, não estava entendendo nada.
- Bem, é como aquele passeio de bonde, continuou ele. Você estava-se divertindo
dependurada do lado de fora, sentindo a total do vento e o ímpeto do bonde. Mas daí, na
hora "H," quando íamos passar pelo outro bonde, você se jogou para dentro e ficou em
segurança.
- O que está querendo dizer, tio? perguntou Cris, colocando na boca o último pedaço
de caranguejo.
- Exatamente o que já lhe disse antes. Seja fiel a você mesma com o que tem
vontade de fazer. Seja autêntica. Aproveite a vida ao máximo porque é a sua vida. É isso
aí.
Pela primeira vez Marta permaneceu calada, enquanto Cris replicou:
- Mas tio Bob, o Sam fazia exatamente o que ele queria. Ele era mais ele, e olhe só o
que aconteceu. Está morto. Depois de uma pausa, Bob respondeu:
- E isso que eu estava dizendo sobre o bonde. Você tem de saber se jogar para dentro
na hora certa, para não se machucar.
- Sei não. Não tenho certeza se quero viver assim à beira do caos. E Deus? Onde ele
se enquadra? Será que ele simplesmente me larga pra me virar sozinha e, caso eu não
consiga me jogar para dentro a tempo, aí ploft, acaba tudo, e ele apenas diz: "Que pena,
hein Cris"? concluiu ela recostando-se na poltrona.
Marta parecia envergonhada de que estivessem discutindo essas coisas num
restaurante e tentou fechar a conversa dentro de seu embrulhinho compacto.
- Claro que não, querida! Deus é amor. Todo mundo sabe disso. Deus ajuda a quem
se ajuda. Você só tem de ser uma pessoa boa, como Bob e eu sempre fomos.
- Sim; mas tia Marta, você tem certeza de que isso é tudo Por exemplo, como
podemos ter certeza de que iremos para o céu ao morrer?
Marta armou-se com todas as suas defesas.
- Simplesmente não acho que esta seja a hora ou o lugar para uma discussão
teológica, Cristina. Voltando-se então para Bob, disse:
- Por favor, querido, pague a conta enquanto vou ao toalete Era como se um vento
gelado tivesse varrido a sala quando Marta se retirou. Cris sentia a névoa emocional dos
dias anteriores tornar a envolvê-la. Talvez fosse mesmo jovem, ingênua e inexperiente,
mas sabia que não era boboca. Por que não conseguia raciocinar e chegar a uma
conclusão?
Nunca lutara com tantas indagações assim antes. As respostas dos tios não
satisfaziam, mas estava resolvida a tentar compreender o sentido da vida. E pretendia
chegar a algumas conclusões antes de voltar para o Wisconsin.
O Barco ou a Praia?
9
- Depressa, tio Bob! O telefone está tocando!
Cris estava com as mãos cheias de coisas, diante da porta da casa de praia. Bob
estava retirando a bagagem do porta-malas do Mercedes e Marta ainda se encontrava no
carro, verificando o cabelo no espelho.
- Vamos depressa! gritou Cris. Entretanto quando Bob conseguiu enfiar a chave na
porta, o telefone já havia parado de tocar.
- Eu verifico a secretária eletrônica, disse Cris.
Bob continuou a descarregar o carro e Cris ficou ouvindo com atenção as mensagens
dos últimos três dias. Nenhuma das chamadas era do Ted. Paula também não telefonara.
Aparentemente, ninguém sentira sua falta enquanto esteve fora.
Com passos arrastados, subiu para o quarto. Por que ele não ligava? Será que sabia
que ela ia sair da cidade?
Bob empurrou a porta do quarto com a mala.
- Desculpe! Não sabia que você já tinha subido.
- Não tem problema. Faz o favor de colocá-la em cima da cama para mini?
A primeira coisa que tirou da mala foi a sacola com as blusas. Retirou a do Ted e
ficou com um dilúvio de dúvidas: Será que ele acharia tolice? Será que deveria dar o
blusão a ele? Talvez devesse esperar o momento certo, como quando ele viesse vê-la ou
quando a chamasse para sair, ou...
- Carteiro! gritou Bob da porta.
Seu coração saltou de esperança. Quem sabe ele lhe mandara um cartão daqueles
engraçadinhos, terno, sem ser meloso. Pegou os quatro envelopes e olhou depressa os
remetentes. Uma das cartas era de sua mãe, uma de Paula, não, duas de Paula e uma do
seu irmãozinho. Paciência! Chega de sonhos!
- Não fique empolgada demais, brincou Bob, vendo que ela estava chateada.
- Ah, não ligue pra mim, tio. Cris enrubesceu, surpresa por seus pensamentos
estarem tão evidentes. Abriu primeiro uma das cartas de Paula e, ao fazê-lo, uma nota de
cinco dólares caiu do envelope no chão.
- Dinheiro! exclamou Bob. Puxa! Bem que eu gostaria de receber cartas assim! Que
espécie de jogo você ganhou? Cris passou os olhos pela carta.
- É da Paula, uma amiga lá da minha cidade. Nós fizemos uma aposta e eu ganhei,
quero dizer, mais ou menos.
- Entendi, disse ele, levantando a sobrancelha.
- Bem, na verdade eu ganhei mesmo, mas não me sinto como achava que me
sentiria. Ah! Deixa isso pra lá!
Naquele momento Marta apareceu à porta.
- Ah, vocês estão aí!
- Ei, escutem essa! disse Cris lendo em seguida a carta de seu irmão de oito anos.
Querida Cris,
Sinto sua falta. Espero que esteja se divertindo na casa do tio Bob e da tia Marta. Espero que se divirta
quando for à Disneylândia. Não se esqueça de comprar uma lembrança para mim na Disneylândia. Eu quero um
chapéu. Divirta-se.
Com amor,
David Miller
- Não é uma gracinha? exclamou. Pena que no dia-a-dia ele seja um pestinha.
Quando é que vamos à Disneylândia? Seria divertido no meu aniversário, que é daqui a
poucas semanas. Taí a indireta!
Marta olhou para Bob procurando uma resposta. Como ele nao disse nada, ela falou:
- Eu não sou exatamente o tipo de pessoa que vai à Disneylândia. Esse é mais um
programa para o seu tio. Você pode ir lá com ela, no aniversário, não pode querido?
Com um sorriso esperto, Bob disse:
- Acho que eu não sou bem o cara com quem ela gostaria de ir a Disneylândia, se ela
pudesse escolher.
- Bob deu uma piscadela, Cris enrubesceu e Marta de repente entendeu.
- Ah, bem! exclamou. É claro que você prefere que o Ted a leve. Seria maravilhoso!
Bem, não se pode prever o que acontecer entre hoje e 27 de julho! Pensamento positivo,
Cris! Pode ser que seus sonhos se tornem realidade. Marta saiu do quarto, deixando no ar
seu rastro de perfume.
Cris leu as outras duas cartas. A vida por lá não mudara muito. Paula parecia a
mesma de sempre. Sua mãe também. Como elas podiam permanecer as mesmas, quando
tanta coisa diferente lhe acontecera?
Tirou o vestido novo, azul-cobalto, da mala e encostou-o ao corpo, estudando sua
imagem no espelho. Nem parecia a mesa garota que chorara por causa de sua aparência
diante deste mesmo espelho, semanas antes.
O cabelo curto agora caía em ondas naturais e, embora não tivesse tão deslumbrante
quanto no dia que Maurice o penteara, ainda estava bonito. Naquele momento não se
sentia arrependida por tê-lo cortado. Os ombros queimados pelo sol haviam descascado,
mas o rosto permanecia bronzeado e sardento, dando-lhe uma aparência esportiva. Estava
satisfeita com seu visual. E agora tinha esse vestido espetacular, com cinto e sapatos
prateados para combinar. Marta tinha um olho clínico para roupas. Escolhera esse traje
com cuidado no Macy's, perto do hotel. Na praça Ghirarde-III encontraram uns brincos de
prata com pingentes bem modernos, que complementavam o conjunto. Era o tipo de roupa
que deveria ser usada numa ocasião especial. Quem sabe num encontro com Ted?
Entretanto a única coisa que podia fazer a respeito disso era esperar.
Estava louca para ir à praia no dia seguinte: queria ver se o Ted estaria lá e saber se
ele a convidaria para sair. Sentia-se tão ansiosa que acabou indo à praia quando ainda não
havia viv'alma! Ou melhor, quase ninguém! Havia só uma pessoa: Alissa.
Sentimentos mistos inundavam Cris. Alissa não fora ao enterro de Sam. Talvez nem
soubesse. Pensou em voltar e correr em direção contrária, mas Alissa já a vira e acenava
para que se aproximasse.
- O tempo está perfeito hoje! disse Alissa, cumprimentando-a e parecendo realmente
contente em vê-la.
- Oi, respondeu Cris. Como foi seu encontro na festa, sema na passada?
O que realmente tinha vontade de dizer era: "Por que você me abandonou, traidora?
Por que você é tão perfeita e tão horrível ao mesmo tempo?"
- Foi ótimo! O nome dele é Erik, ele tem um Porsche, e de lá pra cá temos nos
encontrado todos os dias. Acabamos de voltar de Lajolla, onde passamos o fim de semana
juntos. Alissa parecida não ter vergonha de seu relacionamento obviamente "avançado"
com o namorado.
Cris não sabia muito bem como mencionar o acidente com Sam, mas começou:
- Alissa, você soube do Sam?
- Soube o quê? Cris engoliu em seco.
- Ele foi pegar onda lá no quebra-mar, na noite da festa. Você já tinha ido embora
com o Erik.
- E daí?
- Nem sei como lhe dizer, mas ele se chocou contra o quebra-mar e foi levado para o
hospital, mas não resistiu. Morreu na manhã seguinte.
- É uma pena, respondeu Alissa, passando óleo de coco nas pernas bronzeadas. Eu
lhe contei que o Erik tem um Porsche? É preto com estofamento interno preto.
Cris nem queria acreditar no que ouvia.
- Alissa! gritou. Eu acabo de lhe dizer que o Sam morreu, e você fica aí falando
sobre um carro! Você não me ouviu?
- Sim, ouvi, respondeu ela friamente.
- Não ficou chocada, emocionada, nada?!
- Escute, disse Alissa, olhando fixamente para Cris. Talvez você seja nova demais
para saber o que é a vida, então vou lhe dizer. A vida é dura, menininha, e quanto mais
cedo você entender iss, melhor será.
Cris retraiu-se enquanto Alissa continuava a destilar veneno.
- Sam morreu. E daí? As pessoas morrem, e não podemos perturbar muito quando
isso acontece. A gente tem de viver o que quer e deixar que o resto se lixe... Se quiser ser
feliz, te de lutar pela sua própria felicidade, porque quando acabar, acabou.
- Mas... disse Cris, interrompendo-a.
- Mas nada, menina!
O rosto de Alissa estava vermelho, mas os olhos permanecia gélidos.
- Sem essa, Cris! A gente está só, cada um tem de se virar. Não podemos ficar
parados esperando que alguém responda nossas orações ou realize nossos sonhos! Cris
suspirou e tentou pensar em alguma coisa para dizer, mas não conseguia.
Quando Alissa acabou de dizer tudo que queria, deitou em toalha, de olhos fechados
e rosto voltado para o sol, ignorando Cris.
Cris não sabia o que fazer. Estava morrendo de raiva. Como que uma pessoa pode
ser tão fria e sem coração? Quanto mais pensava nisso, mais queria gritar com Alissa e
dizer-lhe o quanto estava errada. Viver não é simplesmente aproveitar a vida ao maximo
para depois morrer! Mas só conseguia chegar até aí em seus argumentos íntimos. Não
sabia como refutar nada do que a outra dissera. Não tinha solução melhor.
Irritada, deu um pulo e correu em direção à água. Entrou apenas o suficiente para
molhar os pés e foi caminhando pela praia. Depois que seus pés e sua ira haviam esfriado,
voltou para onde estava sua toalha, decidida a enfrentar Alissa com calma.
Para alívio seu, Alissa havia ido embora. Então deitou-se, sobre a toalha, deixando
que os raios ternos do sol a consolassem. Meia hora mais tarde alguém aproximou-se dela.
- Olá. Tudo bem com você? Era o Ted.
- Oi!
Cris sentou-se depressa. Ficava sem palavras quando o via.
- Quer ir a uma apresentação musical hoje à noite? Ted era extremamente direto.
- Uma apresentação musical?! Claro! respondeu Cris, com coração disparado.
- Como foi a viagem?
Cris tentou acalmar-se e adotar um tom mais maduro.
- Muito boa. Me diverti bastante.
Com um sorriso largo e simpático, Ted convidou:
- Vamos entrar na água?
Nas horas que se seguiram Cris sentia-se mais viva do que nunca. A água brilhava
como um campo de brilhantes ao sol do meio dia, e as ondas estavam calmas.
Num momento em que surgiu uma onda maior, Ted agarrou a mão de Cris e disse:
- Mergulhe!
Seu tom de voz era forte, porém terno, e ela sentia seu calor mesmo na água fresca.
Quando a onda passou, ele soltou sua mão. Cris queria sentir novamente a emoção
daquele toque. Divertia-se imaginando como seria maravilhoso sentir seu braço sobre os
ombros à noite, durante a apresentação musical.
- To a fim de sair da água, disse ele. E você?
- Também. Estou faminta!
- Eu trouxe um pacotinho de "chips". Ted ofereceu-lhe o salgadinho enquanto se
enxugavam.
- Ótimo! disse Cris. Eu só trouxe água mineral, que minha tia pôs na sacola. Mas
pelo menos ela colocou duas garrafas!
Enquanto comiam, Cris contou-lhe como tinha sido a viagem a San Francisco:
passear de bonde, jogar moedas nas caixas dos violões dos músicos ambulantes, comer o
melhor chocolate do mundo na praça Ghirardelli, empanturrar-se de caranguejo no
Alioto's. Contou até da discussão que teve com os tios sobre Deus.
Ted escutou com atenção e depois perguntou:
- E o que eles disseram quando você perguntou a respeito das idéias deles sobre
Deus?
- Mudaram completamente de assunto. Eles são assim mesmo. Agem como se
soubessem tudo, mas quando procuro aprofundar mais uma questão, simplesmente
mudam de assunto.
- É, meus pais fazem a mesma coisa, comentou Ted.
Dois meninos pequenos que corriam até a água passaram por cima da toalha de Ted,
jogando areia dentro do pacote de salgadinhos.
- Deixe para lá! disse Ted, pegando o pacotinho e olhando lá dentro. Agora não
saberemos se estamos comendo sal ou areia. Ele tentou rir da própria piadinha, mas Cris
achou-o meio tenso.
- Ted, como você tem passado desde... desde, sabe, o enterro?
- Não tenho dormido muito bem. Fico pensando e remoendo aquela noite, tentando
imaginar o que eu poderia ter feito forçá-lo a parar.
- Deve ser horrível.
- E é.
Cris olhou em sua volta. A praia estava cheia, mas não estava vendo nenhum dos
outros surfistas.
- Ted, desde que Sam morreu, minha cabeça está cheia de perguntas sem resposta,
disse Cris em voz contida, e continuou: Acho que você é o único que talvez possa explicar
o que estou tentando entender. Posso lhe fazer umas perguntas?
- Claro.
- Tá bem, começou. Primeiro, como é que você sabe que vai para o céu quando
morrer?
- Porque no verão passado eu aceitei a Cristo.
- Mas o que você quer dizer com "aceitei a Cristo"? Eu o aceito, creio que ele é
Filho de Deus e tudo o mais. Nunca o rejeitei ou neguei.
Ted olhou para o mar. Parecia estar pensando muito.
- É tão simples que fica difícil explicar. As pessoas podem optar por viver do jeito
que elas querem ou conforme Deus quer.
- Mas qual o jeito de Deus? perguntou Cris, quase gritando. Meu tio fica me dizendo
para ser fiel a mim mesma, para seguir meu próprio rumo, e minha tia vive evitando a
realidade e tentando pensar positivamente. Estou tão confusa!
- Eu entendo como você está se sentindo.
Cris continuou.
- Em casa era fácil. Todo mundo freqüenta a mesma igreja e acredita em Deus.
Agora você me diz que se eu quiser ir para céu tenho de viver conforme o propósito de
Deus. Mas qual a vontade dele, afinal?
Ele desviou o olhar para o oceano. Não gostava de se sentir ignorante.
- É assim, explicou Ted. Você está olhando o oceano Pacífico, não é? Lá longe está
o Havaí. Suponha que o Havaí seja o céu. Você nunca chegaria lá a nado. Precisaria de
um barco. É com. se Jesus fosse esse barco. Tá acompanhando meu raciocínio?
- Mais ou menos.
- Bem, nós temos de escolher, Podemos rejeitar uma viagem gratuita de barco ao
Havaí, ou então sentar aqui e dizer: ''Eu acredito no barco e acredito no Havaí". Entretanto
se não entramos no barco, nunca chegaremos ao Havaí. Ted parecia contente com a
ilustração, mas Cris ainda se sentia confusa.
- Eu acredito em tudo isso, disse. Parecia haver algo mais profundo no que ele dizia,
mas ela simplesmente não conseguia entender.
- Sim, mas você entregou sua vida a Jesus? Ou está sentada na praia dizendo
"acredito no barco e no Havaí", sem subir no barco?
Ted estava mexendo numa área que ela ainda não estava muito disposta a encarar.
Imaginou-se subindo num barco que iria para o Havaí. Parecia arriscado deixar a
segurança da praia e enfrentar as fortes ondas do mar.
- Sei lá, disse ela com um sorriso. Pelo menos isso me da algo para pensar. Vou
refletir um pouco a respeito do que disse. Preciso ir embora.
- Pego você em casa hoje lá pelas seis e meia, está bem? disse Ted.
- Claro! Fico te esperando!
Cris pegou suas coisas e foi para casa.
A vida parecia realmente estar-se tornando bela. Isso era boimdemais para ser
verdade! Cris pensou no quanto ela já melhora por haver seguido os conselhos da tia.
Estava realmente tornando-se uma pessoa autêntica.
- Tia Marta! gritou, abrindo a porta. Tio Bob!
Encontrou-os na sala, olhando um livro de amostras de papel de parede.
- Adivinhem o que aconteceu? Ted me convidou para sair hoje à noite! Dá pra
acreditar? Uma apresentação musical! Ele vem me buscar às seis e meia! Só tenho três
horas para me aprontar. Vou já para o chuveiro. Estou tão contente!
- Oh, Cris! exclamou Marta. Que ótimo! O que você vai vestir querida? Será que o
vestido novo que compramos em San Francisco fica bem?
- Acho que sim. Nem pensei no que vestir. Só estou preocupada porque meu nariz
começou a descascar. Olhe só.
- Você não tem usado o protetor solar que eu te dei? repreendeu a tia enquanto
subiam a escada. Voltando-se então para Bob, acrescentou:
- Bob, querido, faz o favor de ligar para o Maurice e cancelar minha hora com a
manicure. Preciso ficar e ajudar a Cris a se aprontar!
Em pé, sozinho, com o livro de amostras de papel de parede na mão, Bob respondeu,
observando a animação das duas lá em Cima:
- Tuuuuuudo bem!
O Grande Encontro
10Eram exatamente dezoito horas. Bob colocou a travessa de rosbife à jardineira sobre
a mesa. Marta estava acabando de encher de água as taças de cristal, quando Cris apareceu
na porta, de vestido novo, azul, com acessórios prateados.
- Você está lindíssima, querida! elogiou Marta. Não acha que o cabelo dela ficou
muito bem desse jeito, Bob?
- É, minha sobrinha, você vai abafar. Esse rapaz vai ficar tonto quando olhar pra
você!
- Obrigada, disse Cris com um sorriso. Adorei o vestido que você me deu. Foi muito
legal.
Ao sentar à mesa, Cris comentou:
- Sabe, naquela festa que eu fui todas as pessoas estavam com roupas desse jeito, e
eu me senti péssima de jeans. Ainda bem que hoje estou com uma roupa legal.
Marta sorriu, contente consigo mesma .
- Que tipo de programa vocês vão assistir? perguntou Bob, passando mais manteiga
na batata.
- Sinceramente, não sei. Mas não se preocupe com o Ted. Ele é um cara bacana, e
tenho certeza de que não me levaria a nenhum lugar impróprio.
Às seis e vinte e cinco, foram todos para a sala esperar o toque da campainha. Cris
carregava um embrulho de presente, que deixou ao lado da porta.
- Que é isso? perguntou Bob.
- É o blusão de moletom que comprei para o Ted em San Francisco. Hoje vai ser a
ocasião perfeita para entregá-lo. Espero que ele goste!
- É claro que vai gostar! asseverou Marta. Ele deve estar chegando a qualquer
instante.
Esperaram até cansar. Finalmente, às sete, Bob começou a cantar hipóteses para
explicar por que Ted estaria atrasado.
- Talvez ele tenha parado para lhe comprar flores.
- Hoje em dia ninguém compra flores assim, tio.
- Então quem sabe ele ficou com medo e desistiu!
- Bob! Como é que você diz uma coisa dessa?! repreendeu a tia. Os olhos de
Cristina se encheram de lágrimas.
- Bem, eu estava só querendo ...
Naquele instante a campainha tocou. Cris piscou para evitar que a maquiagem
borrasse. Correu para a porta, pegou o presente e concentrou-se em melhorar a expressão
do rosto, mostrando um ar mais alegre. Afinal de contas, ele provavelmente tinha uma boa
razão para estar atrasado.
Abriu a porta e, com seu sorriso mais simpático, cumprimentou-o.
Aí gelou. Ele estava de bermuda! Bermuda e camiseta! Por que fora pôr um vestido
de festa?
Ted pareceu não notar que ela exagerara na roupa. Nem pediu desculpas pelo atraso.
Sua voz era tranqüila, natural.
- Olá, tudo bem? Vamos?
Cris gritou "tchau" e correu para fechar a porta antes que a tia pudesse ver como Ted
estava vestido. Tarde demais. Bob e Marta estavam no hall, e o tio estendia a mão para
Ted.
- Prazer em vê-lo, disse. Lembra-se de minha esposa, Marta, daquele dia no
hospital?
- Ted, disse Marta com um sorriso. É tão bom ver você novamente. Virou-se então
um pouquinho de lado e dirigiu a Cris um olhar apavorado. Você tem certeza de que está
pronta para sair, querida?
Cris entendeu a dica. Sabia que era a chance de correr par trocar de roupa, mas não
sabia o que iria vestir. Só queria saí com o Ted. Agora mesmo! Antes que acontecesse
mais algum, coisa e ela perdesse essa oportunidade.
- Acho que estou pronta, respondeu.
- Tem certeza, minha filha?
Marta lançou-lhe um olhar penetrante.
- Sim, tenho. Vamos, Ted.
- Boa noite, disse ele à Marta. Virando-se então para Bob acrescentou:
- Nós voltaremos antes das onze e meia, seu Robert.
- Ótimo. Divirtam-se.
Cris e Ted foram para o carro.
- O que é isso? perguntou o rapaz, olhando para a caixa.
- Quase me esqueci. É pra você, explicou com voz trémula
- Pra mim? O que é?
- Comprei em San Francisco. Se não gostar, tudo bem.
Por que foi ter a idéia de comprar uma lembrança para ele. Por que se achava vestida
para uma festa quando ele estava tão à vontade? Por que se sentia tão boba? Por um
segundo pensou em dizer que não estava se sentindo bem e não poderia ir. Mas já estavam
à porta da velha kombi, que ele chamava afetuosamente de "Kombi Nada".
Ted abriu a porta e Cris quase soltou um grito. O veículo estava lotado de gente. E
outra moça, Trícia, já estava sentada no lugar de passageiros da frente.
Ted fez as apresentações.
- A Trícia e o Douglas você já conhece. Estes são Bruce, Helen, Lillian e Michelle.
O único lugar vago era bem atrás. Cris sentou-se rapidamente, revoltada e
envergonhada.
E o pior de tudo é que todos estavam de jeans. Ela estava ridícula com aquela roupa.
O que é que aquelas pessoas estavam fazendo ali? Ted não a convidara para sair com ele?
O que a Trícia estava fazendo ao lado dele? Era de dar nojo!
- Que é aquilo? perguntou Douglas quando o carro saía.
- Uma coisa que Cris comprou pra mim em San Francisco.
- Deixa que eu abro! ofereceu-se Trícia.
Antes que Ted pudesse responder, ela já havia rasgado o papel e estava levantando o
moletom para que todos na kombi vissem. Os comentários ardiam como sal.
- É exatamente o que você precisava, Ted! Ela descobriu tudo sobre você, seu
bandido!
Cris não abriu a boca em todo o trajeto. Todo mundo falava e ria, mas não a
incluíam. Entraram num estacionamento do que parecia um centro comunitário, e a turma
foi para a porta da frente onde uma multidão ia entrando.
- Vamos! chamou Trícia, agarrada ao braço do Ted. Se andarmos depressa ainda
conseguimos lugar na frente.
Os outros se mandaram com Trícia, mas Cris ficou para trás, torcendo para que Ted
notasse e voltasse para andar com ela, ou pelo menos que lhe prestasse um pouco de
atenção. Mas ele nem se tocou.
Os sonhos que acalentara a tarde toda vinham pouco a pouco esvaziando-se como
um balão furado. Quando percebeu que teria de sentar-se entre Michelle e Helen, seus
planos acabaram de frustrar-se por completo. Trícia ficou entre Ted e Douglas no final do
corredor e virou-se para dar um alôzinho para Michelle.
- Pra mim chega! murmurou Cris. Vou-me embora.
- Você disse alguma coisa? perguntou Michelle.
- Não estou muito legal, respondeu Cris, assustada por Michelle tê-la ouvido e ainda
mais por ter falado com ela.
Acho que vou ligar para meu tio e pedir que venha me buscar.
- Não! Não vá agora! A apresentação já vai começar. Você não pode perder!
argumentou Michelle.
Naquele instante as luzes diminuíram e um jovem foi ao centro do palco anunciar a
cantora. Michelle cochichou para Cris:
- Você tem alguma das fitas dela?
- Quem?
Cris teve de gritar para que a outra a ouvisse em meio aos aplausos.
- Debbie Stevens! gritou Michelle, apontando para a artista magra e alta que
aparecera no palco, vestindo um conjunto vermelho vistoso.
- Não. Essa é a primeira vez que a ouço, respondeu Cris.
Sentia-se meio atordoada com a música alta e o entusiasmo da multidão. Forte e
clara, a voz de Debbie encheu o auditório:
"Todo mundo me diz
Que caminho devo escolher,
Mas ninguém tem as respostas!
Você sabe me dizer?
Não sou tola. Vejo que você
Não vive o que diz crer.
Alguém pode me mostrar?
Deve haver um modo melhor de viver!"
Cris ouvia atentamente e percebeu, meio surpresa, que conseguia entender bem a
letra. Aos poucos a música ia desfazendo a tensão que se formara em sua garganta e em
seu estômago. Com o canto do olho, via Trícia se balançando, batendo palmas ao ritmo da
música, rindo e se mexendo, livre como a brisa. Ted e Douglas faziam o mesmo. Quando
Debbie anunciou o número seguinte, assobiaram e aplaudiram de pé.
"Você não o encontra em lojas,
Nunca entra em liquidação,
Não pode pagar com cartão
Nem encomendar por reembolso.
Seu valor é incalculável,
Mas hoje é gratuito; de graça pra você.
Entregue o coração e a vida a Cristo
E eternamente vai viver.
Por esse bem você não pode pagar,
Essa dívida alguém já quitou;
Jesus lhe deu esse presente
Quando da morte ressuscitou."
- Esse show tem alguma coisa que ver com religião? perguntou Cris a Michelle.
- Sim. Essa é a igreja que nós freqüentamos. Cris deu uma olhada no salão. Parecia
um auditório qualquer, imenso e cheio de janelas. A única indicação de que aquilo era
uma igreja era o fato de haver bancos em vez de cadeiras.
A apresentação prosseguia e Cris ouvia atentamente. Percebeu que todas as músicas
tinham mensagens embutidas e, como o Ted gostava daquele tipo de coisa, queria
entendê-las também. Talvez ele se interessasse mais por ela se conseguisse conversar
Com ele sobre o "Senhor", como a Trícia.
Olhou para o rapaz na ponta do banco.
É um gato e tanto! pensou. Ah, se ele gostasse de mim...
Depois de cantar por uns quarenta minutos, Debbie pediu que todos se assentassem
antes de apresentar o último número.
- Quero lhes falar sobre algo que me aconteceu alguns anos atrás, principiou. O
auditório foi-se aquietando.
- Há quatro anos vim a este lugar com alguns amigos para ouvir uma banda tocar.
No final, o baterista disse que entregara sua vida a Jesus e que ele e todos os rapazes do
conjunto eram cristãos.
Debbie aproximou-se da beira do palco e continuou falando e gesticulando. Falava
com bastante entusiasmo, movendo a cabeça, fazendo tremer o cabelo cacheado em volta
do rosto.
- Eu não entendia o que eles diziam, porque havia sido criada numa família que
sempre freqüentava a igreja. Achava que era automaticamente cristã.
As palavras de Debbie penetravam fundo no coração de Cris.
- Então, um dos cantores disse como poderíamos nos converter, e muitas pessoas
oraram com ele naquele dia. Eu não. Não entendia por que precisava pedir perdão por
meus pecados. Afinal de contas, eu era uma pessoa muito legal. Não matava, não colava
nas provas e tentava obedecer aos meus pais. Não via por que Jesus teria de me "salvar",
como aqueles caras estavam dizendo.
Cris olhou de novo para o Ted, que lhe deu um sorriso. Seu rosto se aqueceu e ela
voltou o olhar para o palco.
- Bem, continuou a cantora. Na noite seguinte fui dar uma volta de bicicleta perto da
praia e resolvi sentar-me num banco. Fiquei ali pensando um longo tempo. Um dos moços
tinha citado um versículo da Bíblia que dizia: "Todos pecaram e carecem da glória de
Deus".
- Fiquei lá, ouvindo o ruído do mar e vendo o céu mudar de cor, apresentando vários
tons de rosa. Naquele momento reconheci que eu carecia da glória de Deus. De repente
tudo ficou claro! Só Deus é perfeito e santo. Eu jamais conseguiria ser boa o suficiente
para me apresentar diante dele, por mais que me esforçasse. Precisava que Jesus me
abrisse o caminho para que eu pudesse chegar a Deus.
- Naquela hora, naquele lugar, orei mais ou menos assim: "Senhor Jesus, eu preciso
de ti. Perdoa os meus pecados e entra em minha vida. Transforma-me, de modo que eu
venha a ser como queres que eu seja. Amém".
- Escrevi a próxima canção naquela noite, depois que voltei do passeio de bicicleta.
Foi uma das noites mais felizes da minha vida. Durante muito tempo eu pensei que não
precisava de nada, mas Jesus sabia que eu precisava dele e não desistiu de mim. A música
começou baixinho, de maneira lenta:
"Até hoje eu não sabia,
Que era de ti que eu precisava.
Mas de um jeito especial
Demonstraste o quanto me amavas,
Mostraste o teu interesse
Mesmo quando eu nem ligava.
Dou-te agora minha vida,
Entrego-a sem reservas,
Pois embora não soubesse
Era o Senhor que eu procurava.
Desde o princípio de tudo,
O Senhor já me amava."
Que música linda! disse Cris a Michelle.
DebBie repetiu o finalzinho da canção com os olhos fechados, segurando o
microfone bem próximo à boca: "Desde o princípio de tudo, o Senhor já me amava."
Os ouvintes estavam em silêncio total.
Os últimos acordes da música desvaneciam. Debbie abriu os olhos e disse:
- Se você ainda não entregou sua vida a Jesus, estou orando para que o faça hoje
mesmo. Ele está te esperando. Que Deus abençoe a todos! Obrigada por terem vindo!
As luzes se acenderam, e as pessoas começaram a conversar descendo os corredores
em direção às portas de saída. A galera de Ted permaneceu em sua fileira, esperando que
a multidão diminuísse.
- Gente! Vamos tentar ir aos bastidores falar com a Debbie, sugeriu Douglas.
- Ah, que é isso! replicou Helen, duvidando.
- Vamos! insistiu Douglas, puxando o grupo até o palco e procurando um jeito de
chegar aos bastidores.
- Querem alguma coisa? perguntou-lhes um rapaz que pertencia ao conjunto da
cantora.
- Queríamos conhecer a Debbie, disse Douglas, com confiança. Será que ela teria
um tempinho pra falar com uns fãs?
- Claro, por que não? Venham comigo, convidou o músico. Levou-os a uma porta
lateral, entrou por um corredorzinho, seguindo até um camarim, onde bateu à porta e
disse:
- Debbie, tem uns fãs aqui que querem conhecê-la. Debbie abriu a porta de chofre e
exclamou:
- Olá, fãs! Mas imediatamente ficou vermelha e, de brincadeira, deu um tapa no
colega.
- Mark! gaguejou. Pensei que estivesse brincando! Não sabia que tinha gente aqui
mesmo!
Todos riram, quebrando o gelo. Debbie se recompôs, cumprimentando a todos e
perguntando o nome de cada um. Quando chegou a vez de Cris, disse:
- Estou tão contente por você ter vindo hoje!
- Eu também, respondeu Cris.
- Sabe, disse Debbie, sempre gostei do nome Cristina. Quer dizer "seguidora de
Cristo", sabia?
- Não. Não sabia, respondeu Cris, surpresa com a amabilidade da cantora.
Sempre achara que as estrelas eram todas distantes, temperamentais e procuram
proteger ao máximo sua privacidade. Debbie, porém, irradiava autenticidade.
- Nós realmente gostamos do seu show, elogiou Douglas:
- Tenho todas as suas fitas, comentou Michelle. Você tem mais alguma para sair?
- Espero que até dezembro consiga lançar a próxima, respondeu Debbie com um
largo sorriso.
Seu cabelo negro reluzia em pequenos cachos que caíam na testa, e Cris ficou
pensando como ela era bonita. Não era por causa da maquiagem, porque não estava muito
carregada. Mas havia um brilho em seus olhos que a tornava linda.
- Gostei principalmente da última, disse Cris, meio sem graça. Me fez sentir algo
diferente.
- É? O que você sentiu? perguntou Debbie, com interesse sincero.
- É difícil explicar.
Cris queria que os outros não estivessem ali, todos olhando para ela.
Talvez Ted tenha sentido sua falta de jeito e interrompeu:
- Queremos comprar alguns dos seus discos, Debbie.
- Você autografa pra nós? acrescentou Trícia.
- Claro! disse Debbie. Quer ficar aqui alguns minutos para conversar, Cris?
Na verdade ela não queria, mas sentiu-se constrangida e não sabia como dizer não.
- Voltamos já, disse Ted, saindo com Trícia e os outros.
- Então, me diga: o que foi que minha música fez você sentir? perguntou Debbie
sentando e oferecendo uma cadeira a jovem.
Levou alguns segundos para Cris aclarar os pensamentos. Ali estava ela, sozinha
com uma estranha que lhe perguntava sobre seus sentimentos mais íntimos. E ela só
conseguia pensar no Ted. Talvez ele estivesse tentando livrar-se dela para poder abraçar a
Trícia ou coisa parecida. E se eles fossem embora e a deixassem para trás?
- Eu... eu não me lembro, gaguejou.
- Não tem importância. Não tive a intenção de deixar você sem jeito. É que gosto de
conversar com as pessoas depois das apresentações, para ver como o Senhor lhes fala
através da música.
- Na verdade, eu vim com umas pessoas que assistem a muitas apresentações como
esta. Talvez você devesse perguntar a elas o que acharam, porque falam o tempo todo
sobre Deus.
- E posso lhe perguntar uma coisa? disse Debbie, com os olhos brilhando.
- Claro.
- Cris, se você morresse hoje, tem certeza de que iria para o Céu?
O coração da garota latejava. Havia pensado mil vezes nessa questão quando Sam
morrera. Até questionara seus tios sobre isso, mas nunca ninguém lhe fizera essa pergunta.
- Bem, acho que sim.
- Existe uma maneira de ter certeza, disse Debbie. Peça a Jesus que perdoe seus
pecados e entre em sua vida.
Por que eles me deixaram aqui para a Debbie me encurralar desse jeito? Seu coração batia mais
rápido.
- Sim, sei isso tudo, disse. Freqüento a igreja desde que eu era pequena.
- Isso é bom, mas não basta, acrescentou. Todos pecaram, e isso nos torna incapazes
de nos apresentarmos diante de Deus, porque ele é santo. A penalidade do pecado é a
morte, e foi por isso que Jesus morreu. Pagou o preço dos nossos pecados. Só podemos
ser salvos através dele.
Por que ela está pregando para mim desse jeito? pensou Cris, sentindo ainda mais raiva da
galera por havê-la deixado ali sozinha.
- Obrigada por sua atenção, disse Cris, tentando ser educada. Mas preciso procurar
meus amigos antes que eles saiam sem mim.
- Está bem. Olhe, quero lhe dar uma de minhas fitas. Tudo que acabei de dizer está
na letra destas músicas.
Entregou uma fita cassete a Cris com sua foto e a palavra "AUTENTICIDADE", na
capa.
- Obrigada, murmurou Cris. Depois, com receio de ter sido grosseira por ter cortado
o papo tão depressa, acrescentou:
- Vou escutá-la. Prometo que vou.
Debbie pôs a mão em seu ombro e, com uma expressão carinhosa, disse:
- Prometa apenas que vai escutar o que o Senhor falar ao seu coração.
Cris desviou os olhos.
- Está bem. Mais uma vez, obrigada. Você foi muito gentil. Preciso ir. Tchau.
A volta para casa foi tão desagradável quanto a ida. Ted perguntou se queriam
comer alguma coisa.
- Claro, exclamou Trícia. Desde que não seja na sorveteria Hanson!
Sugeriu então que fossem à sua casa e de lá pedissem uma pizza.
A última coisa que Cris queria era passar mais uma hora com Trícia, ainda mais no
território dela.
- Acho que prefiro ir para casa, se você não se importa, Ted murmurou Cris no seu
cantinho lá atrás. Ela esperava que ele se importasse e insistisse para que os
acompanhasse.
- Tudo bem, falou o jovem, se é isso que você quer. Por que ele tinha de concordar
tão facilmente com tudo?
- Afinal, sua casa está no caminho da casa da Trícia. Para sua surpresa, em vez de
simplesmente parar o carro e deixá-la descer, Ted acompanhou-a até a porta.
- Fiquei contente por você ter vindo, disse ele sob a luz da varanda.
- Mesmo? Achei que você nem tinha notado que eu estava lá, entre tantos outros
amigos.
- Claro que eu notei você, replicou Ted, parecendo meio confuso. Espero que venha
outras vezes. Quando volta para Wisconsin?
- No final de agosto. Não me lembro exatamente o dia.
- Bom, boa noite, disse ele, dando-lhe um rápido abraço. Seu rosto bronzeado
chegou a apenas alguns centímetros do de Cris. Vejo você amanhã?
- Sim. A gente se vê, respondeu Cris, sentindo o coração derreter-se.
Como ele podia fazer isso com ela? Uma hora parecia gostar dela, na outra quase a
ignorava. Será que ele tinha noção da montanha russa emocional em que a estava
colocando, uma hora pra cima, outra pra baixo? Ela ficou olhando enquanto ele voltava
para o carro, e acenou, meio sem graça, para os outros que o esperavam no carro.
- Ei! gritou Ted. Gostei do seu vestido! Entrou na kombi e, com um solavanco e um
barulhão, desceram rua abaixo.
Bob e Marta aguardavam na sala de televisão. Bob assistia a TV com o som bem
baixo, enquanto Marta conversava ao telefone. Ao ver Cris, Marta desligou
imediatamente, curiosa por ouvir tudo sobre o grande encontro.
Cris recapitulou rapidamente os acontecimentos decepcionantes daquela noite,
deixando de fora o detalhe de que era uma apresentação de música cristã. Contou-lhes que
todos foram para a casa da Trícia, mas que ela não teve a mínima vontade de ir com eles.
- Mas que moça desagradável! exclamou Marta. Como ela se atreve a se meter com
seu namorado desse jeito!
- Ela não é tão má assim, admitiu Cris. E o Ted não é exatamente meu namorado.
Quer dizer, está na cara que ele também a convidou para sair. Mas ele gostou do meu
vestido e ainda disse que me veria amanhã, acrescentou com um sorriso.
- É isso aí! exclamou Bob, com os olhos ainda grudados na TV. Tem de dar tempo
ao tempo. Ele vai acabar caindo.
- Esse é o problema! lamentou a menina. Não tenho muito tempo. Vou voltar para
casa dentro de algumas semanas!
- Fique firme aí! Fique firme! murmurou Bob.
- Mas como vou ficar firme? perguntou Cris, tentando fazer com que o tio tirasse os
olhos da televisão e olhasse para ela. Como vou conseguir fazer com que ele goste de mim?
- Derruba ele! É assim! Derruba no chão! É a sua chance! Vá com tudo, vá em frente!
Cris olhou brava para o tio e para a televisão.
- Luta livre! gritou. Estou pedindo um conselho sério, pensando que você está me
escutando, e você está conversando com um lutador de televisão!
- Bob! repreendeu Marta.
- O quê? perguntou ele, olhando-a assustado. Você disse alguma coisa?
- Esses homens! exclamou Cris. São todos iguais! Todos esquisitos!
Tudo que Uma Garota Poderia Desejar
11
Cris caminhou devagar as quatro quadras até a casa de Alissa. Uma hora antes
Alissa telefonara, pedindo-lhe que fosse lá. Ela concordara, com alguma relutância, mas
quanto mais se aproximava da casa, mais temerosa e insegura ia ficando.
Alissa parecia chateada ao telefone, e Marta havia dito que ela tinha telefonado na
noite anterior, quando Cris estava fora. Que será que ela queria? E por que a chamou, em
vez de ligar para o Erik?
Quando a moça atendeu a porta, Cris percebeu que o cabelo cobria-lhe o olho
direito. O short e a camisa que vestia estavam amarrotados.
- Entre, disse ela secamente, indicando-lhe a sala.
Caminharam com cuidado para não pisar em algumas maas abertas, espalhadas pelo
chão, que aparentemente ela começara a arrumar. Alissa tirou uma caixa de cima do sofá
para que pudessem sentar.
- Você já vai embora? Pensei que sua família ia ficar até o fim de agosto.
- Íamos, mas agora não vamos mais, respondeu Alissa baixinho. Vou para Boston, a
casa de minha avo.
- E o resto da sua família?
- O resto da minha família?! repetiu Alissa rindo. O que você quer saber? perguntou,
com uma expressão de fúria no olhar. Vou lhe contar sobre o resto da minha família! EU!
Eu sou toda a família que tenho!
- O que você quer dizer com isso?
Cris temia que Alissa estourasse, mas viu algo diferente no seu rosto que lhe causou
dó.
- É isso mesmo. Sou filha única, e meu pai morreu de câncer pulmonar há três
meses, declarou Alissa, acalmando-se um pouco.
- Sinto muito. Não sabia.
- É, não lhe contei. Eu e minha mãe viemos para cá para espairecer e descansar
durante o verão. Só que minha mãe trouxe consigo uma velha amiga. Sua garrafa.
- O quê?
- Quero dizer que minha mãe é alcoólatra. Ela fez um tratamento alguns anos atrás,
mas, com a morte de meu pai, começou a beber de novo. Desde o dia em que chegamos
ela só ficou dentro dessa casa. Bebeu até não saber mais onde estávamos nem quanto
tempo havia passado.
Alissa virou a cabeça para olhar pela janela, e Cris notou que seu olho direito estava
machucado e inchado.
- Que horror, Alissa! Você está bem? O que aconteceu com seu olho?
- Minha mãe me deu um soco quando tentei fazer com que fosse para a cama ontem
à noite. O Erik ia passar aqui para me pegar, e ela estava deitada no chão da sala. Erik
ainda não a conhecia, e eu não queria que ele a visse naquele estado. Então tentei arrastá-
la para o quarto. Ela ficou furiosa, me bateu e jogou uma garrafa de vodca em mim.
Estava maluca, dizendo que ia me matar. Fiquei com muito medo e saí correndo pela rua
até ao telefone público. Chamei a polícia. Levaram minha mãe. Tenho certeza de que irão
colocá-la novamente em alguma clínica de recuperação.
- Puxa, que coisa terrível! Será que tem alguma coisa que eu possa fazer por você?
Alissa voltou ao seu jeito frio e calculista e disse:
- Eu gostaria que você me ajudasse a fazer as malas. Preciva dar tantos
telefonemas... Nunca vou conseguir arrumar tudo até a hora do vôo, às quatro.
Cris ficou arrumando as malas de Alissa durante uma hora. Suas roupas enchiam
três guarda-roupas. Tinha tantos vestidos lindos de seda, jeans caros de marcas famosas e
sapatos que não acabavam mais.
Enquanto Alissa terminava os telefonemas, Cris encheu uma maleta com os
cosméticos. Abrindo a última gaveta, tirou um,i porção de delineadores, um espelho e
uma caixinha cor-de-rosa redonda de plástico.
O que será isso? pensou Cris, destampando a caixinha. Dentro dela havia vários
comprimidos brancos, pequenos, numerados dispostos na forma de um círculo.
- Tudo resolvido, disse Alissa ao entrar no quarto. Minha mãe estava mais sóbria
hoje de manhã e concordou em assinar os papéis de admissão ao hospital. Se tudo for
bem, ela poderá voltar a Boston no final de setembro. Já arrumei a mala dela hoje cedo
para deixar no hospital quando for para o aeroporto.
- Como você vai para o aeroporto?
- O Erik disse que me levaria.
- Você tem sorte de ter o Erik, disse Cris. Ele parece gostar muito de você. Vai ser
horrível deixá-lo aqui, não é?
- Olhe só, onde você achou isso?! perguntou Alissa, estendendo a mão para pegar a
caixinha cor de rosa. Estou procurando isso há dias.
Antes que Cris pudesse responder a campainha tocou.
- Provavelmente é o Erik, disse Alissa, saindo para atender a porta e deixando Cris
no quarto.
Cris ouviu a voz de Erik ecoando pelo corredor.
- Vou sentir sua falta, sabia?
Ficou sentada na cama, pensando: Que doçura! Será que o Ted vai me dizer algo
assim quando eu estiver voltando para casa?
- Fico contente que você tenha vindo, Erik, disse Alissa com voz aveludada. Não sei
o que teria feito se você não tivesse vindo.
- Eu até cheguei cedo, você não notou?
- Ainda bem, porque tenho de deixar as coisas da mamãe no hospital.
- Isso não deve demorar, disse Erik em voz mais baixa. Você ainda tem tempo de me
dizer adeus.
- Pare com isso Erik! Agora não! Estou falando sério! A voz de Alissa ficou
abafada, e Cris só conseguia ouvir passos no corredor, vindo em direção ao quarto.
- Tem gente...
A voz de Alissa vinha do outro lado da porta.
Antes que ela pudesse terminar a sentença, a porta do quarto se abriu. Cris deu um
salto, olhos arregalados. Erik entrou abraçado com Alissa.
Cris se assustou. O que deveria fazer?
- Ei! gritou ele. O que você está fazendo aqui?
- Eu... eu... eu estava de saída! gaguejou Cris.
- Não precisa! gritou Erik, saindo pelo corredor.
- Erik, gritou Alissa. Preciso de você! Não vá embora! Ele abriu a porta da frente de
sopetão e replicou:
- Eu também precisava de você, mulher! Mas você não está nem aí para mim. Estou
cansado de suas desculpas e de seus joguinhos infantis. Cresça e amadureça! concluiu
batendo a porta.
Cris ouviu o barulho estridente dos pneus do Porsche descendo a rampa de entrada.
Esperou no quarto, sem saber o próximo passo a dar. Depois de alguns instantes, saiu
devagar pelo corredor.
- Alissa, você está bem?
- Que cara mais mau-caráter! Eu não gostava mesmo dele, disse Alissa, com os
olhos cheios de lágrimas. Cris sentou-se ao seu lado no sofá.
- Sinto muito ter atrapalhado você.
- Não foi você, disse a moça deixando as lágrimas jorrar. Ele é um meninão que não
sabe o que fazer quando não consegue o que quer. Tenho coisas melhores pra fazer do que
perder tempo com ele.
Aparentemente ela não estava convencida do que dizia. Enterrou o rosto nas mãos e
chorou até não poder mais.
- Calma, disse Cris procurando um lenço de papel. Vai ficar tudo bem. Você tem
tudo que uma garota pode desejar.
Alissa levantou os olhos vermelhos e encarou Cris com uma expressão de frieza.
- Tudo que uma garota pode desejar? perguntou com sarcasmo. Então por que estou
sempre tão sozinha. E por que estou tão infeliz que... que em dezembro passado tentei me
matar? Concluiu, depois de hesitar por um instante. Pode me responder? perguntou quase
gritando.
- Não, quer dizer, não sei, respondeu Cris, com lágrimas brotando nos olhos. Alissa,
não acredito que você esteja me dizendo tudo isso! Você tem tudo. Você é exatamente
como eu gostaria de ser!
- Não sou não, disse Alissa, enxugando as lágrimas e passando a mão no longo
cabelo loiro. Você não sabe como sua vida é boa. Continue sendo inocente, Cris. Continue
inocente.
Por um momento ambas ficaram em silêncio. Cris sentia o coração apertado. Queria
muito ajudar a amiga e oferecer-lhe respostas. Se tivesse alguma maneira de ajudá-la... De
repente teve uma idéia.
- Vou telefonar para o meu tio e pedir que ele leve você ao aeroporto, tá bem?
Não era muito, mas já era um começo.
Enquanto esperavam que Bob viesse, Alissa se recompôs e parecia ter se recuperado
do desentendimento com Erik. Dentro de vinte minutos Bob chegou e colocou no carro os
pertences da moça.
Durante o trajeto até o aeroporto, Cris ficou matutando como explicar ao tio aquela
situação. Entretanto ele foi bem discreto e não disse nada; foi só quando estavam a sós,
voltando para casa, que ele perguntou se ela queria conversar sobre alguma coisa.
- Os homens são esquisitos, disse Cris. Não dá pra acreditar na maneira como Erik
tratou Alissa. Ele simplesmente a abandonou, como se não ligasse mais pra ela.
- Imagino que Alissa tenha tido muitos namorados como o Erik, comentou Bob. Ela
dá a impressão de ser uma moça muito solta. Isso não é bom.
- Estou começando a perceber isso. Quando a conheci, achava que ela era perfeita.
Queria ser como ela em tudo. Hoje quase não acreditei quando ela contou como é infeliz.
Obrigada por ter vindo e por tê-la ajudado. Essa foi a segunda vez nessas férias que você
me socorreu quando meus novos amigos estavam em apuros.
- Estou sempre às ordens. Gosto de ajudar. Quer parar em algum lugar para jantar?
- Quero sim. Estou faminta. Desde que não seja na sorveteria Hanson.
- O que?
- Deixa pra lá. Esse é outro problema que preciso resolver.
Esperanças e Sofrimentos
12
- Cris? Bob? Vocês chegaram? Gritou Marta lá do quarto. Eram mais de dez horas.
Eles estavam chegando do restaurante onde haviam jantado, depois de deixarem Alissa no
aeroporto.
- Sim, querida, respondeu Bob.
Marta desceu a escada saltitando, vestindo um macaquinho amarelo-ovo.
- Cris, tenho ótimas notícias para você! Seu namorado veio aqui enquanto você
estava fora e perguntou por que não foi à praia.
Ela se acomodou no sofá e continuou, gesticulando muito.
- Eu disse a ele que você estava de papo pro ar lá na Alissa. Cris girou os olhos.
- Não estávamos bem de papo pro ar.
- Não importa, continuou Marta. Nós conversamos um pouco, e ele disse que ligaria
para você hoje à noite. O coitado já ligou duas vezes, mas acho que acabou desistindo
porque, na última ligação, disse que falaria com você amanhã. Ele é um encanto de rapaz,
Cris!
- Seria tão bom se ele também me achasse um encanto de garota...
- Ah! Já ia me esquecendo! Você precisava ver que gracinha! Ele estava com o
moletom que compramos em San Francisco. Ficou tão bem nele!
- Verdade? Não acredito!
- É um rapaz legal! Exclamou Bob, com um brilho de satisfação nos olhos. Dê
tempo a ele. Você ainda vai fisgá-lo.
- Você é um bobo! exclamou Cris com ar de riso, jogando uma almofada do sofá na
cabeça do tio. Em seguida foi para o quarto, onde resolveu escrever para Paula antes de
dormir, mas estava caindo de sono. Finalmente cedeu ao cansaço e, bocejando, entrou
debaixo das cobertas.
Na manhã seguinte, ficou mais de uma hora na cama, escrevendo uma carta para
Paula e outra para seus pais. Provavelmente teria ficado ainda mais, não fosse a ansiedade
de ver Ted.
Será que devo ir à praia ou ficar esperando em casa? Acho que vou esperar, pelo menos até o meio-dia;
depois, se ele não telefonar, vou para a praia.
Depois, com um cuidado todo especial, fez escova no cabelo e maquiou-se.
Como será que está a Alissa na casa da avó? Espero que as coisas melhorem para
ela. Não dá para acreditar que o Erik a tenha largado daquele jeito. Pensei que ele gostasse
dela. Pensei que a vida dela fosse tão legal...
Cris resolveu parar de pensar em Alissa e foi dar uma olhada no guarda-roupa.
Ainda havia roupas novas que não tinha vestido. Mas quanto mais olhava, mais
desanimada ficava.
- Não tenho nada pra vestir! reclamou alto, jogando-se na cama. Acho que vou usar
o maiô e uma camiseta de novo. Estou cansada de usar a mesma coisa de sempre.
- Cris?
A batidinha de unhas postiças na porta já era conhecida.
- Cris, querida?
- Entre, tia Marta.
- Com quem você estava conversando, meu bem?
- Comigo mesma.
- Você ainda está de camisola?
- É. Não consigo achar nada para vestir.
- Talvez estejamos precisando fazer mais compras. Mas não agora. Tenho uma
reunião. Que tal a gente ir ao shopping do South Coast Plaza hoje à tarde? Bob poderia
nos encontrar lá para jantarmos juntos. Além do mais, eu queria comprar algo para você
usar no seu passeio de aniversário.
- O que você está tentando me dizer, tia Marta?
- Nada, absolutamente nada, respondeu com uma risadinha forçada. Simplesmente
achei que seria bom fazer algumas compras para seu aniversário.
Marta olhou para o relógio cravejado de brilhantes.
- Céus! Preciso ir! Estarei de volta lá pelas duas e meia, poderemos sair logo depois.
Olhou novamente para Cris e disse:
- Você deveria se aprontar depressa. Não é educado deixá-lo esperando.
- Deixar quem esperando?
Marta olhou-a com uma expressão de interrogação.
- Quer dizer que eu não lhe disse?! Jogou a cabeça um pouquinho para trás e riu de
uma piada que só ela estava entendendo. Céus, querida! Onde estou com a cabeça? Subi
para lhe dizer que o Ted está esperando você na sala de televisão.
- É mesmo? disse Cris abafando um grito. Por que você não falou antes? O que é
que vou vestir?
- Preciso ir, meu bem. Divirta-se. Vejo você lá pelas duas e meia.
Saiu abanando a cabeça e rindo consigo mesma.
- Diga a ele que já vou descer, gritou Cris.
Correu para vestir um short e uma camiseta e se olhou rapidamente no espelho. Pelo
menos arrumei o cabelo e me maquiei, pensou, procurando animar-se antes de descer a
escada.
- Oi, Ted; me desculpe! Deixei você esperando! Minha tia não me disse que você
estava aqui. Isto é, só disse agora há pouco. Senão eu não teria deixado você sozinho aqui
tanto tempo.
- Não tem importância. Você gostaria de ir à Disneylândia? Ted não era mesmo de
fazer rodeios.
- Agora? perguntou Cris com um salto.
- Não, no dia do seu aniversário.
- Sério?! Claro que sim! Será divertido. Adoraria!
De repente Cris parou um pouco e, diminuindo visivelmente o entusiasmo, indagou:
- Quem mais vai?
- Só você e eu, disse o rapaz. A não ser que queira levar mais alguém. É seu
aniversário.
Cris ruborizou, envergonhada por haver pensado que ele estivesse planejando levar
outra "Kombi Nada" repleta de gente para a Disneylândia. Claro que não; era uma ocasião
especial: o aniversário dela. Ele deve ter pensado nisso.
- Não, respondeu ela delicadamente. Não quero convidar mais ninguém. A menos
que você queira.
- Não. Poderemos comemorar juntos o nosso aniversário. Você faz quinze anos e eu
completo um ano no Senhor.
- O quê?
- Lembra daquela noite na praia, depois da festa do Sam? Eu lhe disse que havia-me
tornado cristão no ano passado, no dia 27 de julho, e foi aí que você me contou que era o
dia do seu aniversário. Você faz quinze anos e eu faço um!
Ted ergueu o queixo quadrado e cruzou os braços. Cris achou-o um pouco parecido
com o tio Bob quando queria brincar com ela.
- Está com fome? Quer comer alguma coisa? perguntou. Ainda não tomei café, e
acho que meu tio está na cozinha. Quem sabe a gente descola um "rango"?
Encontraram Bob na cadeira de sempre, à mesa da cozinha, molhando um donut*
numa xícara de café fresquinho.
*Rosquinha frita, de massa semelhante à do sonho. (N.E.)
- Bom dia! cumprimentou ele. Vocês querem uns donuts?
- De onde vieram estes? perguntou Cris.
- Quando sua tia saiu hoje de manhã, disse que eu precisava de exercício. Então
andei a passos rápidos até a confeitaria, disse ele, dando uma piscadela para a sobrinha.
Preciso de ajuda para destruir a "prova do crime", entendeu?
Ted e Cris riram e sentaram-se à mesa.
- Quais os planos para hoje? perguntou Bob.
- Eu e Marta devemos ir ao South Coast Plaza por volta das duas e meia. Você
deverá encontrar-nos lá pra jantarmos juntos.
- Ainda bem que perguntei. Minha diretora social não tinha me revelado seus planos
para o fim da tarde. Deve ter sido uma daquelas coisas que ela esquece de falar, disse com
amabilidade.
- É, concordou Cris, lembrando do incidente no quarto, no começo da manhã. Ela
anda um pouco esquecida ultimamente.
- Sabe, são apenas onze horas. O que vocês acham da idéia de dar um passeio em
nossa bicicleta de dois lugares? Nós a compramos o ano passado, pensando em fazer
exercício, mas só usamos duas vezes.
- Legal! Você quer, Ted?
- Claro, vamos até a ilha Balboa.
Bob ajudou-os a tirar a geringonça da garagem e deu-lhes um empurrão para a rua.
Cris acenou rapidamente e colocou a mão de volta no guidão, para ajudar a firmar o
monstrengo capenga.
- Ainda bem que você está indo na frente, disse ela a Ted. Não tenho muita
coordenação em coisas desse tipo.
Ted dirigiu até o cruzamento. Cris tentava manter o equilíbrio, evitando olhar para
os carros velozes à sua volta. Pedalaram até a balsa da ilha Balboa. Ela levava apenas
alguns carros de cada vez, mas, como eles eram os únicos de bicicleta dupla, logo chegou
a vez deles.
Ted tirou umas moedas e pagou a taxa. O barco partiu com um movimento brusco,
fazendo muito barulho durante a rápida travessia até a ilha Balboa.
- Olha quanto barco à vela! exclamou Cris, achegando-se mais a Ted.
- Aquele é um catamarã* legal, disse Ted.
* Embarcação de esporte ou de recreio, de pequeno porte. (N.E.)
- Onde?
- Está vendo, lá adiante? apontou Ted. Cris aproximou-se, roçando o ombro no dele.
Não sabia o que era um catamarã, e não queria perguntar para não parecer boba. De
qualquer forma, estava achando ótimo ter uma desculpa para ficar mais juntinho do rapaz.
Seria tão bom se ele me abraçasse! pensava.
Mas antes que Ted pudesse se mexer, a balsa já estava ancorando no cais, e eles
desceram com a bicicleta. Subiram as ruas estreitas, repletas de chalés. Cris gostou das
janelas com vitrais coloridos e das flores de cor viva nos jardins.
- Quer um "esquimó" Balboa? perguntou Ted, virando um pouco a cabeça.
- Nunca comi, nem sei o que é, admitiu Cris. Pararam numa barraca de sorvetes e
Ted disse:
- Não se pode vir a Balboa sem tomar um "esquimó" Balboa. O que você quer no
seu? Confeitos? Castanhas? Chocolate granulado?
Cris olhou as gravuras dos diversos tipos de "esquimó" no cardápio. A fila atrás dela
estava longa e a balconista parecia impaciente.
- Não sei.
Ela detestava quando se sentia assim, perdida, insegura. Devolveu a decisão para
Ted.
- Eu aceito o que você escolher.
Ted pediu dois "esquimós" com castanhas na cobertura de chocolate. Cris não
gostava de castanhas, mas não disse nada. Andaram pelas butiques da rua principal,
curtindo o "esquimó".
Cris tomava o "esquimó" sem prestar muita atenção ao que viam nas vitrines.
Sentia-se abatida pela frustração que experimentara alguns momentos antes.
Por que tenho tanta dificuldade para tomar decisões simples? Por que sempre perco a confiança em
momentos-chave e ajo como uma completa idiota? Será que o Ted percebe a minha insegurança? Será que ele
gosta de mim? E a Trícia? Por que a Trícia é tão mais auto-confiante e alegre do que eu? Por que não consigo
ser como ela?
Veio-lhe então um pensamento estranho.
Como posso ser fiel a mim mesma como o tio Bob falou, se não gosto de mim do jeito que sou?
Cris reconheceu que sempre queria ser igual a outra pessoa. Primeiro Alissa, agora
Trícia. E em casa sempre tinha imitado a Paula.
Paula! pensou. Se a Paula me visse agora! Ainda bem que ainda não mandei aquela carta. Tenho tanta
coisa pra contar!
- Que tal? Gostou? perguntou Ted, apontando para o "esquimó".
- Gostei.
Na verdade, ela havia comido quase tudo e nem notara o sabor. O sol estava
derretendo o chocolate, e ela tentou lamber os pingos antes que caíssem em sua roupa.
Como estou sendo chata, pensou Cris. Quase não conversei com ele. Espero que o
Ted não fique pensando que não gosto dele!
- Então, falou ela, percebendo que já estavam voltando para pegar a bicicleta. O que
você conta de novo?
- Não há muito, disse ele, montando a geringonça e dando um empurrão para
começar a pedalar. E você? Dizendo isso ele sorriu e, do ângulo em que estava, Cris via
pequenas covinhas na pele bronzeada do seu rosto. Não as havia notado antes.
- Isso é divertido! Obrigada por ter vindo comigo aqui, disse Cris, aproximando o
rosto dos seus ombros largos, para que ele pudesse ouvi-la melhor.
- De nada, respondeu ele, virando-se novamente. Vamos voltar pedalando, passando
pela ponte em vez de pegar a balsa, tudo bem?
- Claro!
Cris inclinou-se para a frente para ver melhor suas covinhas. Imaginou como seria
sentir o rosto dele encostadinho no seu, e um beijo dele em seus lábios, como aquele que
Sam dera em Alissa.
Sua imaginação voou um pouco mais. E se o Ted realmente começar a gostar de mim, e
começarmos a namorar? Será que ele vai agir comigo como o Erik agiu com a Alissa? O que vai acontecer
nesses próximos dias, antes de eu voltar para casa? Será que vou quebrar minha promessa a meus pais e
acabar fazendo algo de que me arrependa mais tarde?
Ted disse alguma coisa, mas ela só ouviu o nome "Trícia". Cris cerrou os dentes e
disse:
- O quê? Não ouvi o que disse!
- Perguntei se você sabe as horas? Prometi buscar a Trícia no trabalho às duas.
Trícia! Por que ele tinha de falar nela?
Sentiu-se tola por pensar em ficar mais próxima de Ted quando, na verdade, ele nem
estava pensando nela. Ficou emburrada o resto do caminho pra casa. Ted pareceu não se
importar com seu silêncio.
Quando chegaram em casa, ele ajudou a colocar a bicicleta de volta na garagem.
Sorriu como se fosse dizer algo engraçado, mas acabou dizendo somente "até mais tarde",
e correu para a "Kombi Nada".
Cris ficou olhando a "Kombi Nada" descer a rua. Quando a traseira bege desbotada
desapareceu no trânsito, ela murmurou: "Até mais".
Entrando pela porta dos fundos, chamou os tios, mas não havia ninguém em casa.
Procurou na geladeira algo pra comer e decidiu-se por um pedaço de frango grelhado e
um copo de leite.
Então sentou-se, firmou o cotovelo na mesa da cozinha, apoiou o queixo na palma
da mão e ficou ali parada um tempão. A onda de depressão - que já conhecia bem -
começou a envolvê-la. Uma hora lá em cima, outra hora lá em baixo. Sua vida parecia
feita de ondas, sempre indo e voltando. Como seria bom se pudesse nivelar tudo, deixar
tudo igual... encontrar uma base estável em que pudesse se firmar.
Tendo passado as duas últimas horas com Ted, deveria estar feliz. Além do mais, ia
com ele à Disneylândia no seu aniversário, na semana seguinte.
Mas estava na pior. Desde o início das férias tinha conseguido tudo que queria e
mais um pouco. Havia comprado muita roupa nova e agora ainda ia fazer mais compras!
Nunca tivera antes tantas oportunidades de passear e fazer coisas tão interessantes. Vinha
sendo super paparicada pelos tios havia semanas, mas simplesmente não se sentia feliz e
não entendia por quê.
Olhou o relógio. Quinze para as três, e Marta ainda não estava em casa. Típico.
Vagou um pouco pela casa, olhando os enfeites caros. As compras nunca acabam
para minha tia, pensou. De repente lembrou-se da letra da música de Debbie Stevens:
"Você não o encontra em lojas".
"Ummm." De repente Cris começou a compreender algo: Talvez a Debbie esteja certa.
Talvez eu esteja mesmo precisando de Jesus. Entretanto não queria pensar sobre aquele assunto
naquele momento. Precisava sair daquela depressão. Ficar pensando na morte de Jesus na
cruz, e no fato de ser pecadora, certamente não iria ajudá-la a melhorar seu estado de
espírito.
Estava subindo a escada, tentando resolver que roupa iria vestir, quando a porta da
frente abriu-se de repente.
- Cristina, querida, você está pronta?
Cris voltou do seu marasmo e gritou de cima da escada:
- Já vou descer!
Correu para o quarto e, em tempo recorde, vestiu uma saia jeans e uma das blusas
que ainda não havia usado. Nem se olhou no espelho; desceu as escadas correndo e disse:
- Estou pronta!
Marta estava ao lado da porta com um maço de cartas na mão. Olhou para Cris e
franziu a testa em desaprovação.
- O que é que você fez com seu rosto, menina?!
- Meu rosto? Não sei.
Cris correu para o espelho do lavabo e Marta a seguiu. Tinha sujado o rosto com o
chocolate do "esquimó" que deixara nele uma mancha que ia desde o lábio superior quase
até a orelha!
Cris caiu no choro.
- Não! Não! Não! Não! Por que sou tão boba assim? Certamente o Ted me viu deste
jeito. Por que não disse nada?
Marta, achando aquela explosão exagerada, repreendeu-a:
- Vê se isso é modo de uma mocinha agir? Acalme-se. Vamos sair para fazer
compras, e você tem de subir e arrumar a maquiagem. A propósito, essa camisa não
combina bem com a saia.
Cris subiu para recompor o rosto conforme as instruções da tia, murmurando e
fungando.
Apesar da confusão, chegaram ao shopping do South Coast Plaza antes das quatro.
Mas Cris, depois da repreensão da tia, não estava conseguindo animar-se com as compras.
- Cris, você não acha esta saia uma gracinha? disse Marta, mostrando uma saia preta
de brim.
- Não. Você se lembra de que preto não é uma de minhas cores? Mas gosto desta,
disse, erguendo uma saia de listas vermelhas e brancas. Não é linda?
Não era tão bonita assim, além de ser algo que Marta jamais teria escolhido. Depois
de várias provas, Marta sentou-se numa cadeira e declarou resignada:
- Depende de você, Cris. Escolha o que você quiser, o que você gostar.
Então Cris fez algo que nunca fizera antes: correu a mão pelas roupas expostas e
pegou tudo que lhe chamava a atenção, levando em seguida para provar. Se ficava bem,
pedia a tia para comprar. Não olhou nenhuma etiqueta de preço. Talvez a pilha de roupas
somasse mais de quinhentos dólares. Cris sabia que o que estava fazendo era uma
bobagem, mas era o único jeito de se vingar da tia.
O total foi mais de setecentos dólares, mas Marta já ia pagar tudo com o cartão de
crédito, sem pestanejar. De repente Cris sentiu um mal-estar tremendo. Setecentos
dólares! Não tinha coragem. Além do mais, quem realmente pagava as contas era o tio
Bob.
- Espere, disse à vendedora. Eu... bem... acho que eu peguei algumas peças no
número errado. Você pode cancelar essa conta? Seria horrível chegar em casa e descobrir
que algumas coisas não me servem.
Marta parecia muito irritada.
- Bem, ande depressa querida. Precisamos encontrar com seu tio daqui a meia hora.
Cris entrou no provador, e a vendedora acompanhou-a, carregando aquele montão
de roupas. Fechou a porta e escolheu apenas cinco peças, todas combinando entre si. Eram
as que ela tinha gostado mais. Uma camiseta estava até em liquidação.
- Aqui, disse Cris, entregando à vendedora uma pilha bem menor de roupas. Só vou
levar isso.
- Tem certeza?
- Sim.
Marta não abriu o bico. Ficou em silêncio até encontrarem com Bob no restaurante.
- Muito bem! exclamou ele, olhando as sacolas. Parece que vocês tiveram um bom
começo!
Marta concordou friamente.
- Sim. Se o gosto de sua sobrinha por roupas fosse tão forte quanto a sua
impulsividade, estaríamos muito bem!
O comentário atingiu Cris como um vento gelado. Era isso! Algo deu um dique. Na
mente de Cris, a tia Marta transformou-se de uma ricaça sofisticada num pavão altivo e
egocêntrico. E daí, se ela podia comprar tudo que queria? Ela não tinha coração. Havia
demonstrado repetidas vezes que não tinha a menor consideração pelas pessoas. Vivia
abusando do tempo, e dos sentimentos daqueles com quem se relacionava.
Cris queria retrucar: " Estou cansada de ver você tentando fazer de mim a filhinha perfeita que você
nunca teve. Não preciso mais do seu dinheiro e dos seus sermões. Quero ser apenas Cristina Juliet Miller, de
Wisconsin. E se isso não bastar pra você, então, sinto muito!"
Entretanto disse apenas:
- Vou querer um filé. Pode ser, tio Bob?
- Claro, querida. O que você quiser.
Marta dirigiu-lhe um olhar de desprezo e pediu uma mini-salada da casa.
Embora Cris não estivesse com muita fome, comeu tudo, inclusive uma batata
assada com montes de manteiga e creme de leite. Depois ainda pediu um sundae de
caramelo só para provar à tia que ela era dona do próprio nariz.
À noite, porém, não conseguia dormir, sentindo dor de barriga, e ficou se
perguntando se havia realmente conseguido provar alguma coisa.
*****
Nos dias que se seguiram, continuou aproveitando todas as oportunidades de
rebelar-se, em silêncio, contra as tentativas de manipulação da tia. Eram coisinhas sutis e
mínimas, que no começo Marta nem notou. Mas, para Cris, cada insolência sua
intensificava o desprezo que sentia pela tia.
Uma tarde, quando voltou da praia, atendeu o telefone e anotou um recado para
Marta, sobre uma reunião especial no centro cívico, naquela noite às sete. Deixou o
recado escondido, de propósito, até às seis e meia. Então colocou-o em cima da
escrivaninha e perguntou:
- Você pegou o recado ao lado do telefone, não pegou?
Não era de seu feitio ser vingativa daquele jeito, mas quanto mais tentava segurar as
frustrações, mais sua amargura se manifestava. Havia convivido com Marta tempo
suficiente para saber o que a incomodava, e procurava fazer tudo que podia para aumentar
sua irritação. Comia na frente da televisão, deixava a toalha de praia cheia de areia no
chão do quarto e colocava o telefone no suporte com o fio do lado errado, cruzando Sobre
os botões da frente. Além disso procurava, sempre que possível, fazer duas coisas que a
irritavam mais: ficar encurvada, com a coluna torta, e roer as unhas.
Como uma fera ferida, Marta recuou. Parou de tratar a sobrinha de maneira
agressiva, passando a fazer-lhe apenas alguns lembretes gentis.
Quando voltava da praia uma tarde, Cris encontrou a tia na cozinha.
- Chegou uma carta para você. Está na sua cama, disse Marta.
- Ótimo.
Cris encheu a mão de biscoitos com "gotas" de chocolate, uma receita secreta de seu
tio, e foi para o quarto.
- Ó Cris, gritou Marta. Por que não deixa sua toalha aqui? Eu jogo na máquina de
lavar para você. E talvez seja bom você levar um guardanapo de papel, acrescentou
timidamente.
Cris enfiou um biscoito inteiro na boca, ignorando as sugestões da tia e procurando
sufocar o sentimento de culpa que lhe sobrevinha por estar agindo de modo tão
insuportável. Não gostava de agir daquela maneira, mas como já havia começado era mais
fácil continuar do que parar. Nunca fora boa em pedir desculpas. Especialmente se a outra
pessoa estava recebendo o que merecia.
Seu quarto, claro e refrescante, estava tão convidativo aquela tarde... Encontrou a
carta na cama, como a tia dissera. Para sua surpresa, era de Alissa. Leu e releu a carta,
percebendo como sua vida era boa. A vida de Alissa parecia tão triste e sem esperança!
Querida Cris,
Cheguei à casa de minha avó sem maiores dificuldades.
Quero agradecer a você e a seu tio por terem me levado ao aeroporto e pela sua ajuda na arrumação das
malas.
Minha mãe está firme no programa de controle do alcoolismo, e o diretor da clínica telefonou ontem para
dizer que, se ela continuar a melhorar, terá alta dentro de poucas semanas.
Vou ficar com minha avó até o começo das aulas, e depois ela vai me mandar para um internato. Meu
endereço está no envelope. Se você puder, escreva-me. Seria tão bom receber uma carta sua...
Tenho pensado muito em você, no Ted, no Sam e no Erik. Estou sentida pelo modo como agi em
Nevvport, especialmente porque foi tão pouco tempo... Sei que lhe disse umas coisas horríveis sobre o Sam, na
praia aquele dia. Só posso dizer que não sei por que as pessoas morrem, e não sei como encarar isso. Queria
encontrar um pouco de paz, em vez de toda essa dor que existe em minha vida. Minha avó arranjou um psi -
quiatra pra mim. Tenho consulta três vezes por semana para tratar dessas coisas. Ela me proíbe de sair sozinha.
Bem, não era minha intenção narrar a "triste história da minha vida". Só queria lhe dizer o quanto apreciei
seu apoio. Gostaria de me corresponder com você.
Queria que minha vida fosse como a sua: doce, inocente e livre, com uma família de verdade, numa
fazenda do Wisconsin. Parece um sonho.
Por favor, diga ao Ted que mando um abraço pra ele. Você tem sorte de tê-lo!
Sua amiga,
Alissa.
Cris chorou várias vezes enquanto lia a carta. Como estava tão longe de Alissa, a
única coisa que podia fazer era escrever. Mas acabava jogando fora toda carta que
começava. Queria de alguma maneira animar a amiga, dar-lhe alguma esperança, mas não
encontrava palavras. Tudo que tentava dizer parecia tão artificial.
Além disso, cada vez que lia aquela parte que dizia que tinha sorte por ter o Ted,
sentia-se perturbada. Ela não "tinha o Ted". Ninguém tinha o Ted. As coisas com ele
continuavam no mesmo vaivém de sempre. Eles se viam na praia todo dia, mas quando
parecia que a situação ia melhorar, Trícia aparecia, e ela acabava ficando em segundo
plano.
Além do mais, o Ted tinha uma porção de amigos surfistas, com os quais Cris não
conseguia se entrosar. Alguns eram super esquisitos. Parecia até que haviam levado um
bocado de pancadas na cabeça com a prancha, ou coisa parecida.
Naquela manhã um dos caras, quando saía da água, disse:
- Passei batido!
Sacudiu a cabeça de cachos loiros, respingando água em Cris, c continuou:
- Tá doido, cara! Só tem caixote!
Daí ele colocou a prancha debaixo do braço e foi embora murmurando:
- Tá um lixo!
Cris virou-se para Trícia e perguntou:
- Ele estava falando comigo? Acho que preciso de um intérprete!
- As ondas não estão boas. Ele vai para casa, interpretou Trícia.
- Ah! Ainda bem que o Ted não fala assim, disse Cris, olhando para o mar,
observando Ted surfar com sua prancha alaranjada.
- O Ted fala a língua de todo mundo. Ele tem seus amigos surfistas, mas anda com a
turma mais "certinha" também.
- Você o conhece bem, não é? começou Cris.
- Acho que sim.
Parecia estranho que Trícia fosse sempre tão amigável. Cris tinha de esforçar-se para
manter a calma e tratá-la bem. Ela era tão amável e autêntica... Por que será que ela não
lutava para conquistar a atenção do Ted? Finalmente, Cris ousou perguntar:
- Trícia, você gosta do Ted?
- Sim. Gosto muito.
- Então por que não fica com ciúme quando ele sai com outras garotas? perguntou.
Aproveitando a oportunidade, acrescentou: Amanhã, por exemplo, ele vai me levar à
Disneylândia para comemorarmos juntos meu aniversário.
- É mesmo? perguntou Trícia, sem um pingo de inveja. Espero que vocês se divirtam
bastante! E se eu não te encontrar amanhã, feliz aniversário.
- Obrigada, murmurou Cris, chateada por ver sua pergunta ficar sem resposta. E isso
não perturba você? concluiu.
- Não, nem um pouquinho. Eu e Ted somos amigos desde o ano passado. O mesmo
cara nos conduziu a Cristo aqui na praia.
- O que você quer dizer com "conduziu a Cristo"?
- Que ele nos explicou como nos tornarmos cristãos.
- Você quer dizer que ele explicou que a gente deve pedir perdão pelos pecados e
pedir que Jesus entre em nosso coração indagou Cris.
- É! Você também já fez isso?
- Não, não exatamente, mas sou cristã mesmo assim, replicou ela, caindo na
defensiva.
- Bem, sei que pode parecer duro, disse Trícia com meiguice mas ninguém pode
tornar-se cristão simplesmente por ser bom É por isso que Cristo morreu por...
- Eu sei de tudo isso! interrompeu Cris, mas não entendo por que vocês ficam
falando tanto em pecado.
- Porque é ele que nos separa de Deus. Enquanto estivermos separados dele, nunca
poderemos ser como ele quer que sejamos.
- Não estou entendendo o que você quer dizer.
- Você nunca sentiu culpa por alguma coisa que fez e depois desejou apagar tudo e
começar do zero?
Cris relembrou a semana que passara e o sentimento de culpa que tivera por causa
de seu comportamento para com a tia.
- Já.
- Você não precisa viver com esse sentimento de culpa. Pode livrar-se de todo esse
incomodo; basta confessar a Deus seu pecado e pedir que Jesus entre na sua vida e seja
seu Senhor.
Cris sentia-se meio sem jeito. Invejava o jeito tão livre de Trícia e a maneira como
ela falava sobre Deus. Era como se ele fosse para ela um amigo chegado, não uma força
distante e poderosa, pronto para castigar qualquer um que fizesse alguma coisa errada.
- Você dá a impressão de que você e Deus são tão amigos, disse Cris, começando a
abaixar as defesas.
- E nós somos. Grandes amigos.
- Sei não. Sempre pensei que Deus estivesse lá em cima, e eu aqui embaixo, e que
era minha obrigação ser uma pessoa boa. Enquanto conversavam, Ted chegou do surfe
todo molhado e sacudiu-se espirrando água nas garotas. Elas começaram a gritar e a rir.
- Cuidado! Está molhando minhas pernas! protestou Cris. Agora vou ter de passar
mais loção de bronzear.
- Ah, não quer se molhar, hein? disse Ted com um olhar maroto.
Cris viu de relance Trícia acenando um rápido "sim" para ele. Antes que pudesse se
dar conta do que estava acontecendo, Ted agarrou-a pelos punhos, puxou-a para cima e
começou a levá-la na direção da água.
- Não! Não! gritou ela. Eu entro sozinha!
Assim que ele soltou seus pulsos, ela correu na direção contrária, rindo e olhando
para trás para ver se ele a seguia. Douglas estava vendo tudo e agarrou-a pelo braço,
impedindo-a de fugir.
- Segura ela! gritou Ted. Cris esperneava:
- Não! Me solte!
- Pronta para um caldo? perguntou Ted, agarrando seus tornozelos.
- Parem!
Cris tentou soltar-se, mas com Douglas segurando as mãos e Ted segurando os pés,
não dava para escapar. Eles a levaram até a beira d'água.
- Um, dois, três!
Jogaram-na sobre uma onda espumante. Ensopada, ela levantou-se e gritou:
- Ainda pego vocês! Vocês me pagam! Douglas tinha corrido para a areia, mas Ted
permaneceu na beira da água.
- Olha gente, ela tá querendo surfar! brincou Ted.
Levantando bem os joelhos, foi caminhando até onde Cris o esperava com as mãos
na cintura.
- Vamos! Mergulhe! gritou Ted.
Então eles furaram a onda que se aproximava. Nadaram até o ponto em que as ondas
começavam a formar-se, e, por mais de uma hora, brincaram juntos na água.
Queria que esse dia não acabasse nunca! pensava Cris, enquanto outra onda a levantava e
carregava, enchendo-a de prazer. Queria ficar com essa sensação pra sempre.
Cris estava no quarto, deitada na cama, com a carta de Alissa ainda na mão. Via a
luz do dia diminuir pouco a pouco e ainda' sentia no corpo o movimento do mar. Também
ainda sentia alegria não só de surfar, mas de estar com o Ted.
Isso foi hoje. E amanhã, quem sabia como seria amanhã com o Ted? Um dia na
Disneylândia com ele. Seria ruim como o show da Debbie Stevens, ou maravilhoso como
quando brincavam juntos no mar? Seus pensamentos foram interrompidos por um, batida
na porta.
- Cris? Era a voz de seu tio.
- Telefone, querida. São seus pais.
- Obrigada, tio Bob. Vou atender no seu quarto, tá?!
Os pais de Cris conversaram com ela como sempre costumavam fazer. Sua mãe fez
rodeios para chegar ao ponto que realmente lhe interessava, mas seu pai interrompeu-a
com palavras ríspidas:
- Você vai voltar para casa domingo, Cris.
- Domingo? Quer dizer, neste domingo?
- É isso mesmo. Este domingo.
- Mas isso é daqui a três dias! Eu ia ficar até o final de agosto!
- Não discuta comigo, menina! As férias acabaram. Vê se não se atrasa para pegar o
avião.
- Mas pai... começou ela, ouvindo em seguida o clique do outro lado da linha,
indicando que ele desligara. Sua mãe ainda estava na outra extensão.
- Dei ao Bob as informações de vôo, querida. Ele disse que você tem se divertido
muito.
- Mãe, por que eu tenho de voltar pra casa? Cris lutava com todas as forças para não
chorar.
- Simplesmente tem de voltar. Não torne as coisas ainda mais difíceis para todos
nós.
- O que está acontecendo, mãe? Houve uma pausa.
- Nós explicaremos tudo no domingo, quando você chegar.
Cris voltou para o quarto arrastando os pés e deitou-se na cama. Queria chorar, mas
as lágrimas não vinham. Tudo parecia tão sem sentido. Teria de ir embora, e não sabia por
quê. Será que era a fazenda do pai? Será que as coisas haviam piorado financeiramente
para eles?
Ou era ela? Será que eles a estavam castigando por alguma coisa que tinha feito?
Mas ela havia cumprido sua promessa; não fizera nada de que pudesse se arrepender. (Ou
melhor, ainda não). Pelo menos ainda tinha três dias pra aproveitar, a começar por
amanhã, quando iria comemorar seu aniversário com o Ted.
Seu aniversário. Nem seu pai nem sua mãe lhe desejaram "feliz aniversário".
Quando se deu conta disso, as lágrimas brotaram. Lágrimas de amargura e de raiva.
O Reino Encantado
13
Na manhã seguinte, Ted apareceu exatamente às nove. Cris ainda estava procurando
suas sandálias novas.
- Não acredito que ele tenha chegado na hora! disse apavorada à tia.
- Vou conversar com ele. Ande depressa! disse Marta.
Cris lançou uma última olhada no espelho. Gostava muito desse conjunto. Short cor
caqui e camiseta cor de pêssego, com dez botoezinhos na frente.
"Na verdade o nome desta cor é camarão. É um dos estilos mais populares de nossa
coleção safári", dissera a vendedora.
E era assim que Cris estava se sentindo hoje: como se estivesse indo num safári
selvagem em lugares desconhecidos. Nunca mais teria esse tipo de liberdade. Quando
voltasse ao Wisconsin, sabia que seus pais iriam regular tudo: maquiagem, namoro,
roupas, horário para chegar em casa. Tinha de aproveitar agora, enquanto podia.
Desceu a escada com passos leves e cumprimentou Ted com confiança. Ted estava
vestido da maneira informal de sempre: short de surfista e camiseta num amarelo bem
vivo, com um logotipo comercial nas costas.
- Divirtam-se bastante! disse Marta, com um sorriso de aprovação.
- A que horas vocês voltam? perguntou Bob.
- A que horas o Sr. quer que a Cris esteja de volta? perguntou Ted.
- Aproveitem o dia, meninos! disse Bob. Nós só vamos começar a nos preocupar
depois de meia-noite.
- Tchau, disseram os dois, enquanto caminhavam para a "KombiNada".
Cris parecia que ia estourar de contentamento e empolgação. Ted abriu a porta e lá
estava Trícia, sentada como uma pedra no banco da frente.
- Olá, cumprimentou-a Trícia. Feliz aniversário! Cris descontrolou-se e ficou ali
parada.
- É isso que você chama de surpresa? Achei que íamos só nós dois à Disneylândia,
falou rispidamente.
- Calma. Só vou deixá-la no trabalho!
- Ah, desculpe, murmurou Cris, envergonhada.
- Tudo bem, disse Trícia com relutância, entregando-lhe um pacote em seguida.
Aqui. Isto é para você. Feliz aniversário.
Ted dirigiu até a Sorveteria Hanson em silêncio. Cris estava se sentindo mal à bessa.
Por que fora estragar o dia daquele jeito?
- Pode abrir quando quiser, disse Trícia ao descer da kombi. Sinto muito tê-la
magoado. Eu não queria aborrecer você.
- Você não aborreceu, não, Trícia. Eu estava sendo chata. Me perdoe.
- Não se preocupe, respondeu Trícia, voltando a falar no tom alegre de sempre.
Espero que vocês realmente tenham um dia ótimo! Pensem em mim enquanto eu trabalho
como escrava com baldes e baldes de sorvete o dia inteiro.
Rodaram em silêncio por alguns quilômetros antes que Cris olhasse para Ted. Seus
dentes estavam cerrados, o que fazia seu queixo parecer ainda mais másculo.
- Você está bem? perguntou timidamente.
- Na verdade não.
- É por causa do jeito como tratei a Trícia?
- Não. Isso é algo que vocês duas têm de resolver. A Trícia não se importa de eu
passar o dia com você. Por que você se importa de eu dar carona a ela até o trabalho?
- Não me importo. Acho que tenho inveja dela em algumas coisas.
- Não há razão para isso. Ela é uma das pessoas mais amáveis e atenciosas desse
mundo.
Seu comentário lembrou-lhe do presente.
- Será que devo abrir o presente agora?
- Claro, pode abrir. Eu já sei o que é. Espero que goste. Cris leu o cartão escrito com
a letra da Trícia:
Cris,
Esperamos que isto a ajude a entender tudo que lhe temos falado sobre o Senhor. Feliz aniversário!
Com amor,
Trícia e Ted
O presente é seu também? perguntou, rasgando o papel.
- É. Fui eu que escolhi, mas a Trícia fez a capa, o embrulho e tudo o mais.
Cris tirou o resto do papel e viu que era uma Bíblia. A capa era feita de um tecido
almofadado cor-de-rosa, com florzinhas brancas e bordado inglês nas bordas. Havia duas
fitas de cetim cor-de-rosa que funcionavam como marcadores.
- É linda, Ted. Obrigada!
No fundo ela desejava que tivesse sido algo mais pessoal. Uma Bíblia é o tipo de
presente que se recebe de um professor de escola dominical.
- Ainda bem que você gostou, disse ele, com um sorriso.
Colocou uma fita da Debbie Stevens no toca-fitas, abaixou o vidro e aumentou o
volume.
Cris também abaixou o vidro do seu lado, curtindo a brisa. Queria começar o dia
todo de novo, concentrando-se em aproveitar bem o tempo que passaria com Ted. Não ia
deixar que esse dia escapasse entre os dedos, como havia acontecido com o passeio de
bicicleta dupla à ilha Balboa.
- Eu lhe disse que fui surfar hoje cedo? perguntou Ted.
- Hoje cedo? Não brinca! A que horas?
- Lá pelas seis e meia. Meu pai me acordou quando saiu para o trabalho.
- As ondas estavam boas?
- Não, só lambe-tornozelos. Fiquei lá um pouco com minha prancha, mas essa coisa
toda com o Sam estava me arrasando. Nós costumávamos madrugar para surfar. Desde os
oito, nove anos de idade.
- Mesmo? Eu nunca teria imaginado... Vocês são tão diferentes. Quer dizer, eram.
Sei lá, o que deveria dizer?
- Tudo bem, eu sei o que você quer dizer.
Conversavam bem à vontade e, dentro de pouco tempo, estavam entrando no
estacionamento da Disneylândia. Ted entregou uma nota de cinquenta dólares ao
atendente do estacionamento.
- Não tem uma nota menor? perguntou o homem.
- Vou ver.
Cris ficou observando enquanto Ted abria uma carteira abarrotada de dinheiro,
chegando finalmente a um bolo de notas de vinte dólares.
Onde ele arranjou tanto dinheiro? pensou. Talvez a Disneylândia seja mais cara do que eu imaginava.
- Pronta para entrar no Reino Encantado? perguntou Ted, trancando o veículo. Cris
sorriu.
- Ótimo, disse, guardando as chaves no bolso. Ele é todo seu.
No portão de entrada, ele pagou os passes para o dia inteiro. Quando estavam
entrando, Cris apontou o jardim de flores que formava um desenho do Mickey.
- Quando era pequena, vi isso na televisão e tentei convencer minha mãe a plantar
nossas flores desse jeito. Ted riu.
- E ela plantou?
- Não. Eu tentei fazer sozinha com pedras e torrões de terra, mas não deu muito
certo. Queria ter uma máquina pra tirar fotografias daqui.
- Nada disso! A gente não leva máquina para a Disney, senão fica parecendo turista,
como aquelas pessoas ali.
Ted apontou para uma família. A mãe grandalhona e as três crianças gorduchas
estavam diante de um barber shop quartet* montado numa bicicleta de quatro lugares. O
pai se contorcia numa posição hilariante, tentando focalizar a comprida bicicleta.
*Quarteto masculino que costuma cantar músicas sentimentais, em estilo
antigo e harmonia bem simples. (N.E.)
Ted e Cris olharam um para o outro, tentando abafar o riso.
- Devem ser do Meio-Oeste, brincou Ted.
- Ei! disse Cris, dando-lhe um tapa no braço, de brincadeira Cuidado! Eu sou do
Meio-Oeste!
Ted olhou meio de lado. Suas covinhas apareciam ainda mais enquanto tentava
reprimir o riso.
- Eu sei, disse ele, estendendo-lhe a mão. Vamos lá! Vamos dar uma volta em alguns
brinquedos!
Cris deu a mão a ele e começou a sentir um calor nos dedos que foi subindo pelo
braço e espalhou-se pelo corpo todo. Não solte! pensou. Não solte minha mão nunca mais!
Ficaram meia hora numa fila, conversando e rindo enquanto esperavam para andar
de trenó. Ted entrou no trenó vermelho e sentou-se chegando bem para o cantinho e
ficando com as pernas prensadas contra os lados.
- Entre, por favor, pedia o atendente, que estava usando uma bermuda verde e meias
até o joelho. Parecia um pastor de ovelhas da Suíça.
- Onde é que eu sento? perguntou Cris.
- Aqui, disse Ted, indicando o pequeno espaço bem à sua frente.
Por um instante, Cris achou que jamais caberia ali. O atendente segurou seu braço e
apressou-a. Ela entrou com cuidado e encaixou o corpo. Estava quase no colo do Ted!
- Estou amassando você?
De repente o trenó deu um solavanco e começou a subir o Matterhorn.
- Recoste-se em mim, disse Ted. Tá tudo bem. Você parece pronta pra pular!
- Estou pensando nessa possibilidade mesmo! admitiu Cris, recostando-se em seu
peito.
Nesse momento ela pôde sentir seus músculos e seu calor. Queria tanto que ele a
abraçasse!
O tilintar dos trilhos foi ficando mais devagar até quase parar na crista do
Matterhorn. Cris só enxergava o céu à sua frente, e o medo ia só aumentando. Ela agarrou
as barras de segurança do trenó, fechou os olhos e deu um grito de terror quando o
carrinho desceu em disparada o outro lado da montanha. Que ficar juntinho que nada!
Deixa o momento de ternura pra depois! O negócio agora era segurar com todas as forças!
Depois de várias viradas e descidas fortes, o trenó passou ainda pela água e parou
com um solavanco. Outro atendente estendeu-lhe a mão para ajudá-la a sair.
- Você está bem? perguntou Ted, conduzindo-a para a saída.
- To.
Seu corpo todo tremia, e estava envergonhada por ter gritado.
- Pronta para a Montanha Espacial? perguntou Ted, com a empolgação de um
menino.
- Que tal beber alguma coisa primeiro? Preciso de alguns minutos para me
recuperar.
Ficaram o dia inteiro passeando, comendo e divertindo-se. Depois de provar algo em
cada carrinho de lanche que encontraram, e de experimentar todas as atrações na Terra do
Amanhã, foram para a Terra das Aventuras. Subiram na casa de árvore da família
Robinson, e, lá de cima, avistaram todo o imenso parque de diversões. Ted falou de seu
sonho de um dia viver numa ilha tropical.
- Vou surfar o dia todo, comer mamão e mangas e tomar água de coco, direto.
- Que exótico! E você vai morar numa casa em cima de uma árvore como essa?
- É isso aí. E vou dormir numa rede.
- E vai fazer o quê para ganhar dinheiro?
- Ah, vou trocar colares com os nativos e viver dos produtos da terra.
- Sabe, você teria dado um excelente hippie.
- Provavelmente sim. Meu pai foi hippie.
- Sério!
- Sim. Ele conheceu minha mãe em Berkeley, durante uma marcha de protesto e, na
manhã seguinte, estavam morando juntos. Isto é, depois que saíram da cadeia.
- Não acredito!
- É verdade.
Depois da casa de árvore, esperaram na fila durante quase uma hora para fazer o
passeio dos "piratas do Caribe". Quando voltaram, resolveram entrar na fila do restaurante
Blue Bayou para jantar. Cerca de meia hora depois haviam conseguido um lugar para
sentar.
Nenhum dos dois estava com muita fome, mas ficaram contentes por terem
encontrado um lugar silencioso onde pudessem sentar. Sua mesa estava bem na beirada, a
poucos passos do ponto em que os barcos dos piratas partiam. Cris ficara muito
impressionada com o incessante piscar dos vaga-lumes artificiais.
- Não é relaxante? Sinto-me como que transportada para outro tempo e lugar. Esses
vaga-lumes, então! São inacreditáveis! Eles são artificiais mesmo?
- Claro! respondeu Ted sorrindo. Parecem tão verdadeiros, não é? E aí, já sabe o que
quer pedir?
O pânico que geralmente sentia nesse tipo de situação não apareceu.
- Acho que o frango é uma boa pedida, mas, pra dizer a verdade, não estou com
fome.
Demoraram para comer e, quando o garçom trouxe a conta, Ted pagou com uma
nota de cinquenta dólares. Cris pensou sobre o dia. Ted havia jogado dinheiro para todos
os lados, como se fosse um jogo de Banco Imobiliário. Pagou tudo, inclusive um conjunto
de moletom da Minnie, um adesivo com a palavra Disneyland e um ursinho Puff, de
pelúcia.
Ted guardou o troco no bolso e disse:
- Bem, e agora, o que quer fazer?
- Vamos dar uma volta em mais alguns brinquedos. Depois quero comprar uma
lembrança para o meu irmãozinho.
Ted ficou segurando sua mão na saída do Blue Bayou, enquanto caminhavam pela
praça New Orleans. Ela queria tanto que suas mãos não estivessem suadas! Será que o
Ted notaria? A mão dele parecia tão forte e segura. Era muito agradável sentir-se próxima
a ele e segura, mesmo em meio à multidão.
- Ei, que tal um daqueles para o seu irmãozinho? disse Ted, apontando para uma
pilha de chapéus de Mickey numa vitrine.
Eles entraram e experimentaram todos os chapéus, rindo bastante um do outro.
Finalmente resolveram comprar um chapéu preto de pirata, com uma imensa pena azul.
- Davi vai gostar muito deste! Espero conseguir levar para casa sem amassá-lo.
- Quando você vai voltar? perguntou Ted, quando estavam na fila para entrar no
"Cruzeiro da Selva".
- Isso é uma coisa que eu precisava lhe falar, disse Cris, apertando um pouco mais a
mão do Ted. Meus pais telefonaram ontem à noite e me disseram que tenho de voltar
imediatamente. Vou embora no domingo.
- Domingo agora? Depois de amanhã?
- É.
- Mas por quê? perguntou Ted. As aulas só vão começar daqui a mais de um mês.
Eu só vou pra casa da minha mãe no dia primeiro de setembro.
- Eu sei, mas acho que as coisas não estão lá muito legais, e meus pais querem que
eu esteja em casa para passarmos juntos pela crise.
- Mas qual é o problema?
- Bem, só consigo imaginar que seja alguma dificuldade com a fazenda. Eu lhe falei
que meu pai é fazendeiro, não falei? Sei que não é nada tão interessante quanto um hippie
regenerado... Mas nos últimos três ou quatro anos não temos ido muito bem
financeiramente, e meu pai já vendeu uma boa parte da nossa terra. Acho que deve ter
acontecido alguma coisa depois que saí de lá, embora ainda não saiba exatamente o quê.
Só sei que eles querem que eu volte imediatamente.
- É uma pena.
- Vou sentir sua falta, Ted. Gostaria que você me escrevesse ou que a gente
mantivesse contato de alguma maneira.
- Sinceramente, não sou muito de escrever.
- Bem, Tallahassee não é tão longe do Wisconsin quanto a Califórnia! Estou certa?
Ted riu de sua lógica.
- Não sei.
Haviam chegado ao princípio da fila e entraram no barco. O guia, com roupa de
safári, recomendou aos passageiros que não colocassem as mãos para fora do barco
quando estivesse em movimento, devido aos animais selvagens que encontrariam à frente.
Ted colocou braço no encosto do assento:
- Esse era o meu passeio predileto, quando era garoto.
Parecia um menino agora, curtindo todos os sons daquela selva artificial. Dava até
pra imaginá-lo balançando-se em um cipó... Você Tarzan, eu Jane... sua mente vagava,
criando um romance na selva.
- Logo à frente, disse o piloto ao microfone, estão os hipopótamos selvagens. Mas
não tenham medo, minha gente. Eles só são perigosos quando mexem as orelhas!
Cris virou um pouco a cabeça para olhar para os hipopótamos selvagens que
surgiam na água, alguns metros adiante. O maior abriu a boca e começou a mexer as
orelhas.
- Oh, não! Minha gente, ele está mexendo as orelhas! O piloto pegou um revólver de
espoleta e atirou rapidamente no animal. Assustada, Cris gritou e agarrou-se ao Ted.
O casal idoso, ao lado deles, começou a rir quando o netinho passou a mão em Cris
e disse:
- Chora não, moça. Monstro foi embora!
Todo mundo no barco ficou olhando, enquanto Cris se afastava de Ted, que estava
muito envergonhado. O piloto aproveitou a ocasião para dizer:
- Está tudo bem, minha gente. Na verdade, nós a contratamos para vir e acrescentar
um pouco de empolgação à versão Disney do Barco do Amor.
Todos riram. Cris estava envergonhada, mas riu também. Ted colocou o braço em
seu ombro e sorriu tranqüilo; um sorriso super significativo para Cris. Seus olhos
pareciam dizer-lhe algo profundo... ou será que não?
Foi aí que Cris começou a pensar se ele iria beijá-la quando a deixasse em casa.
Distraiu-se com esse pensamento e quase não conseguiu prestar atenção no que estavam
fazendo o resto da noite. Nem escutava o que Ted estava dizendo. Retraiu-se preocupada
com sua aparência; imaginando se iria bater o nariz no dele, quando se beijassem; em
como deveria ficar com a boca... que tortura!
Lá pelas nove da noite, pararam perto da Terra dos Ursos, para ver a exposição de
fogos de artifício. Ted colocou o braço em sua cintura, e ela descansou a cabeça no seu
ombro, sentindo as emoções explodirem, enquanto cada explosão de luz rompia no céu da
noite. À distância, viam uma moça vestida de fada "Sininho". Presa por um cabo, ela
"voava" de cima do Matterhorn, em volta do Reino Encantado, até a Terra da Fantasia.
Ao sair do parque, fizeram a última parada no Emporium, para ver um soprador de
vidro fazer uma minúscula estátua da fada "Sininho". O vidro derretido parecia chiclete
transparente, enquanto o artesão o puxava, apertava e retorcia, chegando-o à chama azul
do maçarico.
- Que gracinha! disse Cris, quando o artesão terminou e lhe mostrou a estatueta.
- Você quer? perguntou Ted.
- Bem, não sei.
Cris hesitou. Toda vez que dizia gostar de alguma coisa, Ted tirava a carteira
empanturrada de dinheiro e comprava para ela.
- Com licença, disse Ted à vendedora de vestido longo e avental branco. Podemos
comprar a "Sininho" que ele acabou de fazer?
- Claro.
Ela pegou a estatueta de vidro e embrulhou em papel de seda, colocando-a numa
caixa.
- Obrigada, Ted, disse Cris, apertando-lhe o braço. Acho muito legal o que você está
fazendo, comprando todas essas coisas para mim. Obrigada.
- De nada. Quer comer alguma coisa?
- Acho que não vou conseguir comer mais nada durante uma semana!
Desceram a rua principal, e Cris notou as luzinhas piscando em todas as árvores. É
realmente uma terra de conto de fadas, pensou.
Tentando equilibrar todas as sacolas de compras, ela se deu conta de que Ted
também estava com as mãos cheias. Não havia percebido que fizera tantas compras, mas
agora as sacolas pareciam pesadas e desajeitadas. Os pés doíam, a garganta doía e os
braços doíam. Se ela fosse em mais algum brinquedo, nem conseguiria gritar, de tão
cansada.
- Você quer ver mais alguma coisa?
- Só quero um bom lugar pra sentar.
- Que tal a "Kombi Nada"?
- Boa idéia.
Tomaram o trenzinho que rodava pelo estacionamento e sentaram-se tentando
equilibrar todas as sacolas no colo. A maioria dos carros já tinha ido embora. O
estacionamento era muito maior que o parque de sua cidade, lá no Wisconsin.
A viagem de volta para casa foi sossegada. Ambos estavam cansados demais para
conversar. Provavelmente Cris teria caído no sono se não fossem as inquietantes
suposições sobre o momento da despedida. Reprisava mentalmente a cena toda hora. Será
que ele a beijaria? Como seria? Ela deveria fechar os olhos? E se estivesse com mau
hálito? Quase não estava suportando o suspense.
Finalmente chegou o momento quando Ted foi com ela até a porta da frente. Era
quase meia noite. Seu coração estava em disparada. Engoliu em seco.
- Obrigada Ted. Este foi o melhor aniversário da minha vida. Olhou para ele
timidamente, esperando para ver qual seria sua reação.
Ele deu-lhe um abraço apertado.
- Boa noite, Cris, murmurou ele, afastando-se sem tentar beijá-la.
- Boa noite, respondeu ela, disfarçando o desapontamento.
Ele enfiou as mãos nos bolsos e foi para a kombi. De repente, como se tivesse
esquecido alguma coisa, voltou. O coração de Cris gelou.
Ele está voltando! E agora? O que é que eu faço? Será que vai me beijar?
- Já ia me esquecendo. Toma aqui.
Ele tirou um bolo de dinheiro do bolso e entregou a Cris.
- O que é isso?
- É da sua tia. O que sobrou.
- Como? Não estou entendendo.
- É o dinheiro que sobrou do que ela me deu para levar você à Disneylândia. Nós
não gastamos tudo, então acho que você deve devolver-lhe o resto. Cris empalideceu.
- Quer dizer que minha tia pediu que você me levasse, e ainda deu o dinheiro?!
- Ei, não esquenta não. Foi legal. Nós nos divertimos muito. Agora estou contente
que ela tenha me convencido a ir.
- Ela teve de convencer você?!
Cris virou as costas e abriu a porta de sopetão, voando como uma bala escada acima.
Entretanto no terceiro degrau tropeçou e a sandália soltou-se de seu pé. Com a ira de um
guerreiro, agarrou a sandália, jogou-a em direção ao Ted e entrou no seu quarto. Que dia
esse no Reino Encantado! E o que dizer do "felizes para sempre"? A tia "fada madrinha"
na verdade era uma bruxa malvada, e o príncipe encantado acabara de se transformar num
sapo!
A Decisão
14
O relógio digital da mesa da cabeceira indicava 12:04. O sol brilhando na janela do
quarto estava tão forte que parecia berrar. Cris não se sentia nem um pouco melhor do que
na noite anterior. Havia jogado a sandália no Ted e atirado o dinheiro na tia, gritando:
"Saia da minha vida!" Para completar, ainda atirara um travesseiro no tio quando ele a
seguiu até o quarto, para tentar conversar.
Fizeram bem em deixá-la dormir, nas últimas doze horas. Mas não podia continuar
escondida na cama; tinha de se levantar e enfrentar o inevitável. Precisava entender-se
com a tia e ainda arrumar as malas para pegar o avião na manhã seguinte. Contudo quanto
mais pensava nessas coisas, mais ela queria afundar-se no travesseiro. Além disso, estava-
se sentindo horrorosa. Os cílios superiores estavam grudados nos inferiores. Os dentes
pareciam cobertos de pipoca caramelada, os olhos inchados de tanto chorar, e ainda estava
com a roupa com que fora à Disneylândia.
As sacolas de compras estavam espalhadas pelo chão, do jeito que as jogara na hora
da raiva, na noite anterior. Achavam-se repletas das lembranças que Ted comprara para
ela. Ou melhor, que sua tia havia financiado para que ele comprasse. O quarto estava uma
bagunça. Ela estava péssima. Sua vida era uma confusão só. .
Esse é o problema das explosões temperamentais, dissera-lhe Paula um dia. Quem acaba tendo
de arrumar tudo depois é a gente mesmo, e é humilhante.
O mais humilhante para Cris naquele momento foi ver a Bíblia nova aberta como
um leque; caíra de uma das sacolas. Envergonhada, escorregou da cama e pegou a Bíblia e
se pôs a alisar as páginas amassadas.
- Desculpe, sussurrou ela. É que não acho nada disso certo. Por que minha tia me fez
de boba assim? Por que o Ted concordou em fazer o que ela queria? E por que tenho de ir
para casa amanhã? Agora as coisas nunca vão dar certo entre mim e o Ted.
Cris percebeu que estava conversando com Deus como se fosse a coisa mais natural
do mundo, da mesma forma como vira seus amigos falarem com ele.
- Não sei qual é o meu problema. Só sei que estou perdendo o controle das coisas.
Parece que tudo ao meu redor está desmoronando. O que foi que eu fiz de errado, Deus?
No silêncio que se seguiu, uma lembrança atingiu-a como uma flecha: o pesadelo de
semanas atrás. Ao recordá-lo, todos aqueles sentimentos voltaram, derrubando-a como
uma onda em toda sua força. Era como se ela estivesse novamente dependurada na borda
de um barco. Os tentáculos de algas marinhas estavam se enrolando nela, cada vez mais
apertados. Estava vivenciando aquela sensação de terror novamente: o momento em que
tinha de resolver se entraria no barco ou se deixaria as algas puxá-la para o fundo do mar.
Só que desta vez estava acordada, e o sonho agora era a realidade que estava vivendo. Não
dava para ignorá-lo.
Como o Ted dissera, Jesus era o barco. E se ela quisesse ir para o céu (ou para o
Havaí, como Ted havia exemplificado), tinha de entrar no barco.
Cris compreendeu o que tinha de fazer, e teria de ser agora. Ajoelhou-se ao lado da
cama, inclinou a cabeça e fechou os olhos. Falou alto, mas com voz calma.
- Deus, eu sei que o que falta em minha vida é você. Quer dizer, eu tenho ouvido
falar de você minha vida inteira, mas não o conheço como o Ted e a Trícia dizem
conhecer. E quero conhecê-lo pessoalmente. Entra em minha vida, Senhor. Perdoa os
meus pecados e entra em minha vida agora mesmo. Prometo que todo o meu coração será
seu pra sempre. Amém.
Abriu os olhos e virou-se para ver seu reflexo no espelho Não parecia diferente de
quando se levantara da cama: cabelo desgrenhado, roupas amassadas, olhos de guaxinim
(por causa do rímel manchado). Mas por dentro sabia que havia mudado. Nada de loucura
emocional, nada disso. Simplesmente estava limpa. Segura. Feliz. Ela sorriu e abraçou a
Bíblia. Acabara de entrar no barco, e a aventura estava prestes a começar.
A primeira grande onda a enfrentar seria a tia Marta.
Tomou banho e vestiu-se rapidamente. Encontrou os tios sentados na varanda,
tomando chá gelado. Em silêncio, Cris passou pela tia e sentou-se na espreguiçadeira,
perto da cadeira do tio. Os dois agiam como se ela não estivesse ali, esperando que ela
desse o primeiro passo.
- Sobre ontem à noite... começou Cris, esfregando as mãos. Eu... eu lhes devo um
pedido de desculpas.
- Não, querida, disse Marta, virando-se para ela. Reconheço que eu é que tenho que
me desculpar.
Bob continuou em silêncio, mas franziu a testa como se não soubesse o rumo que
essa conversa iria tomar.
- Eu tenho muita culpa nisso tudo, prosseguiu Marta, e não sei se poderei me
perdoar por não tê-la preparado para sua primeira experiência...
- Bem, continuou Cris, procurando as palavras certas pra dizer. Não é que você
não... quer dizer, acho que eu é que não deveria ter esperado tanto do Ted. É que eu pensei
que ele queria estar comigo só porque gostava de mim, mas...
- Não, Cris, não se culpe assim. E não culpe o Ted. A culpa é minha. Eu deveria ter
previsto isso e tê-la preparado melhor.
- Só que dói, tia. E me sinto tão tola. Tão usada...
- Sim, concordou Marta. Os homens podem fazer com que a gente se sinta assim,
principalmente na primeira vez...
- O que você quer dizer com "os homens podem fazer com que a gente se sinta
assim"? perguntou Cris, em tom de guerra. VOCÊ me fez sentir assim, tia Marta!
- EU a fiz sentir assim? Como é que eu posso tê-la feito sentir-se usada?
- Dando ao Ted todo aquele dinheiro e subornando-o para que me levasse à
Disneylândia! Marta encarou-a meio espantada.
- Quer dizer que todas aquelas lágrimas ontem à noite eram por causa disso?! Os
gritos e aquele tumulto todo eram simplesmente porque eu ajudei a financiar seu passeio
de aniversário?
- Sim, respondeu Cris, encarando-a. O que você pensou que fosse?
- Nem queira saber o que ela pensou, disse Bob interferindo. Ela não sabe mais
como é a inocência da juventude. Tem assistido a novelas demais. Está com a mente
desvirtuada.
- Não mesmo, Bob! Eu não gosto quando você diz essas coisas! Eu realmente estava
preocupada, achando que a Cris tivesse tido sua primeira experiência sexual com um
jovem, sem que eu a tivesse preparado melhor! E estava sentindo-me culpada.
Cris estava aturdida. Ela preocupada com a possibilidade de Ted beijá-la, e sua tia
imaginando que eles tivessem ido para a cama!
- Desde que você chegou, eu não fiz outra coisa senão inundá-la de carinho,
continuou Marta. Tenho lhe dado tudo que uma moça pode desejar. Seu tio e eu temos
feito muitos sacrifícios por você. Se essa é a gratidão que recebemos, então talvez seja
melhor mesmo você ir embora amanhã. Quem sabe, assim que estiver em casa, valorize
mais tudo que compramos para você!
Cris teve vontade de correr para a tia, primeiro abraçá-la e depois bater nela! Como
é que ela pode pensar de maneira tão distorcida?! Como é que pode torcer tanto os fatos,
jogando toda a culpa em cima da sobrinha? Contudo em parte Marta estava certa. Cris
aceitara facilmente todas as roupas, os jantares em restaurantes e os passeios.
- Tia Marta, começou Cris com cuidado, esperando derreter o olhar gelado da tia. A
verdade é que tem algumas coisas que não se pode comprar no shopping.
Quando acabou de dizer isso, lembrou-se da canção de Debbie Stevens: "Você não
encontra em lojas". Agora entendia o sentido da letra da música.
- Mas, acrescentou depressa, estou muito agradecida por tudo que vocês têm feito
por mim. De todo coração. Nunca me esquecerei destas férias. Foram as melhores férias
da minha vida!
Marta não respondeu. Ficou olhando para o mar, com os lábios apertados de ira.
- Não tenho mais nada para dizer, Cristina.
- Sinto muito, disse Cris quase chorando. Sinto muito ter sido um problema assim
tão grande pra vocês.
- Você sabe que nós dois gostamos demais de ter você aqui conosco, disse Bob,
estendendo o braço e apertando o ombro de Cris. Por que você não aproveita sua última
tarde aqui e vai ver seus amigos na praia?
- Não sei se quero ver o Ted! Nem sei o que dizer se ele aparecer!
- Claro que quer! Além do mais, é sua última chance. Aproveite-a ao máximo, meu
bem. A propósito, será que isto por acaso é seu? indagou mostrando a sandália que ela
havia jogado na direção de Ted.
- Sim, respondeu envergonhada, pegando o calçado.
- Vai sim, sugeriu Marta. Você precisa acertar as coisas com ele antes de ir embora.
- Tenho de acertar as coisas com você também, disse Cris com ternura.
- Está tudo perdoado, respondeu Marta, com um sorriso amarelo.
Cris correu para a tia e abaixou-se para abraçá-la. Rindo, meio sem jeito, como se
não estivesse acostumada a demonstrações de carinho, Marta abraçou-a também.
- Agora vá.
Ela soltou a sobrinha e arrumou o cabelo que havia saído do lugar.
Vinte minutos mais tarde, Cris estava andando na areia, pensando no que poderia
encontrar perto do quebra-mar. Alissa estava em Boston. Sam morto. Trícia
provavelmente estaria trabalhando. Ted... quem sabia o que Ted estaria fazendo?
Afinal de contas, pensou, ninguém pagou para ele passar a tarde comigo hoje. Por que ele haveria de
estar por perto?
Olhou os surfistas na água, mas ele não estava entre eles. Aproximou-se da turma
que costumava andar com Ted, mas as únicas pessoas que conhecia eram Helen, Douglas
e Lillian.
Lembrando-se de como se sentira "sobrando" na noite do concerto, Cris hesitou, sem
saber se queria mesmo enfrentar a galera. Mas era tarde demais. Eles já a tinham visto e
acenavam para que se aproximasse.
- Oi, Cris, disse Douglas. Você acaba de desencontrar-se do Ted. Ele passou a
manhã toda aqui. Disse que vocês se divertiram pra "caramba" na Disney.
- Caramba? brincou Lillian. Ninguém mais fala "caramba" hoje em dia.
- Mas o Douglas fala! disse Helen com uma risadinha. A Trícia contou que ela e o
Ted lhe deram uma Bíblia. Isso foi muito legal.
- Oh! Legai! Essa é uma palavra super moderna, brincou Douglas.
Helen embolou uma camiseta e jogou nele.
- É, disse Cris, tentando parecer tranqüila. Foi muito bom. Ela queria contar-lhes
sobre sua decisão de entregar a vida a Cristo, mas não sabia como.
- Nós vamos fazer um churrasco hoje à noite, anunciou Douglas. Você não gostaria
de vir também?
- Onde vai ser?
- Lá naquela churrasqueira, disse Helen, indicando uma churrasqueira logo à frente.
Cada um traz alguma coisa, e a gente senta, conversa, canta... é mais ou menos assim. É
parecido com o nosso grupo da igreja, mas tentamos não ser fechados. Michelle, Douglas
e eu viremos. O Ted disse que talvez viesse e, se vier, trará o violão.
- O Ted toca violão? perguntou Cris.
- Cê não sabia? E toca bem, viu!
Durante as duas horas que se seguiram, Cris ficou conversando com Helen,
enquanto Douglas surfava com sua prancha de Body Board. Ficou deitada de costas o
tempo todo, para bron
- Cê não sabia? E toca bem, viu!
Durante as duas horas que se seguiram, Cris ficou conversando com Helen,
enquanto Douglas surfava com sua prancha de Body Board. Ficou deitada de costas o
tempo todo, para bronzear bastante o rosto. Assim, quando descesse do avião, todos
veriam que ela estivera na Califórnia.
Lá pelas cinco, Cris foi em casa pegar umas salsichas para grelhar e um moletom.
Na mesa, ao lado da porta da frente, havia uma carta para ela. A princípio pensou
que fosse a letra da Paula, mas depois percebeu que era da Alissa. Pensando bem, fazia
tempo que a Paula não lhe escrevia. Deixa pra lá. Amanhã estaria em casa e em breve
poderia contar à amiga tudo sobre a Disneylândia, a catástrofe com o Ted e a entrega de
seu coração a Jesus. Tantas coisas tinham acontecido em tão pouco tempo!
Sentou no primeiro degrau e leu a carta rapidamente. Parecia que Alissa estava um
pouquinho melhor do que demonstrava na carta anterior, mas talvez fosse por causa de um
novo namorado que mencionava. Até a avó o aprovava. Um universitário de nome
Everett. Mas todo mundo o chamava de Bret. Ela parecia mais feliz, mas Cris ficou
pensando quanto tempo isso duraria.
Colocou a carta de volta no envelope e resolveu que escreveria para a amiga quando
estivesse no avião. Agora ela achava que tinha algumas respostas a oferecer-lhe. Ter Jesus
no coração fazia com que não se sentisse mais só. Não precisava mais tentar decifrar as
coisas sozinha. Alissa precisa desse Amigo, pensou. Alguém que não a abandone.
Abriu a porta do quarto e encontrou o tio guardando uma calça jeans dela numa
mala.
- Espero que não se importe, disse ele. Acho que vamos ter de arrumar umas caixas
ou outra mala. Parece que vai voltar para casa com mais coisas do que trouxe!
- Não precisa fazer isso, tio. Eu arrumo mais tarde.
- Bem, sua tia fez uma reserva às seis e meia no restaurante Five Crowns, e eu
pensei em adiantar um pouquinho as coisas para você.
- Ah, não! suspirou Cris. Eu ia para a praia com o pessoal. Estávamos planejando
assar salsichas pra fazer cachorro-quente. Nós temos mesmo de ir ao restaurante?
- Acho que ela queria que sua última noite aqui fosse especial.
- Se eu puder passar com meus amigos, é que vai ser especial! argumentou Cris.
- Bem, disse Bob, com os olhos brilhando. A gente faz o seguinte: você sai bem
quietinha pela garagem, e eu coloco uma sacola com as salsichas na escada, na porta dos
fundos. Não se preocupe com sua tia. Eu dou um jeito de amansá-la.
- Você é radical!
Cris deu um abraço apertado no tio.
- Radical? Isso é bom?
- Com certeza!
Passou alguns minutos diante do espelho, arrumando o cabelo. Borrifou água fria no
rosto e passou um pouco de gel de aloe vera sobre a pele queimada. Parecia mesmo uma
garota da Califórnia: bronzeado escuro, cabelo clareado pelo sol.
Assim que eu puder vou mudar-me para a Califórnia, pensou. Talvez possa cursar a
faculdade aqui.
Era ali que se sentia em casa agora. Não estava mais ligada a vacas, nevascas e tudo
o mais lá do Wisconsin. Estava muito mais interessada agora em palmeiras e pranchas de
surfe.
Passou rímel, pegou o moletom e ficou na porta dos fundos esperando a sacola de
salsichas prometida. Bob entregou-a com uma piscadela, e ela correu para a fogueira que
já crepitava, preparada pela turma na praia. Trícia estava lá, arrumando os espetos para
assar as salsichas. Miúda e bonitinha, Trícia tinha um sorriso fácil e enormes olhos
castanhos. Cris tinha se esforçado tanto para não gostar dela, mas agora percebia o quanto
sentiria sua falta.
- Cris! O Ted me disse que você vai ter de ir embora amanhã. Não acredito! falou
jogando os espetos de lado e abraçando a amiga. Vamos sentir sua falta.
Cris olhou rapidamente à sua volta. Ted ainda não chegara. Sentia-se desapontada e
aliviada ao mesmo tempo.
- Obrigada, respondeu, abraçando Trícia. E obrigada pela Bíblia com a capa tão
bonita que você fez. Gostei demais!
- Mesmo? Fico feliz. Depois do nosso rápido encontro de ontem, fiquei sem saber se
deveria entregá-la a você ou não.
- Ainda bem que entregou. O Ted vem?
- Não sei. Brian, sabe se o Ted virá?
- Ele esteve aqui hoje cedo quando falávamos sobre o encontro, mas não disse nada.
- Quem sabe o que o "Sr. Imprevisível" fará? acrescentou Michelle.
Falou bem, pensou Cris.
Durante cerca de uma hora ela ficou olhando, esperando que o Ted aparecesse.
Contudo não sabia bem o que diriam um ao outro se ele viesse. Depois de algum tempo,
entretanto, parou de se preocupar com ele e tentou tirá-lo da cabeça. Todo mundo estava
tratando-a muito bem e estava fácil divertir-se.
- Se o Ted não vier com o violão, a gente canta assim mesmo, disse Trícia.
O sol desaparecia na linha do horizonte como uma imensa bola alaranjada.
O grupo de onze jovens ajuntou-se em volta da fogueira, começando a cantar
músicas que Cris nunca ouvira antes. Algumas eram suaves, outras mais animadas.
Contudo todas falavam sobre o Senhor, ou melhor, eram canções que eles cantavam para
Deus. A letra de uma das músicas era um versículo bíblico:
Buscai primeiroO reino de DeusE a sua justiça,E as outras coisas vos serão acrescentadasAleluia, aleluia.
Este é o lugar mais lindo do mundo, pensou Cris. Que noite perfeita! Seria tão bom se o Ted estivesse
aqui... Se não tivéssemos acabado a noite passada daquele jeito.... Mas este céu límpido, essa brisa, essas
músicas confortantes... Tudo isso é tão maravilhoso! Não quero ir embora! Quero ficar! Não podem me obrigar a
ir!
Michelle deve ter notado as lágrimas de Cris brilhando à luz da fogueira, porque se
inclinou para ela e cochichou:
- Provavelmente vai ser duro para você ir para casa. As lágrimas faziam arder a pele
queimada de sol, do rosto de Cris.
- Não quero ir embora!
- Vai dar tudo certo, você vai ver!
O cântico que cantaram em seguida era inspirado em outro versículo bíblico:
"Lançando sobre Deus a nossa ansiedade,
Pois Ele tem cuidado de nós.
Toda a minha ansiedade lanço sobre ti.
Os meus fardos deixo a teus pés.
Quando não souber como agir,
Entregarei meus cuidados a ti."
Cris nunca sentira o coração tão cheio de alegria como agora.
O grupo permaneceu em torno da fogueira até o último pedaço de lenha virar brasa.
Então cada um orou. Alguns oravam pela família, outros pela conversão dos amigos,
outros ainda agradeciam a Deus pelo que ele fez por eles. Cris foi a penúltima a orar e,
para sua surpresa, as palavras saíram com facilidade.
- Querido Senhor, quero lhe agradecer por ter entrado na minha vida hoje de manhã.
Esteja com minha família, ajudando-nos com os problemas que estamos enfrentando
agora, e por favor, esteja comigo na minha viagem de volta amanhã. Amém.
Douglas, que deveria orar em seguida deu um abraço em Cris e perguntou:
- Você fez isso mesmo?
- Isso o quê?
Cris abriu os olhos assustada. Todo mundo estava olhando para ela.
- Você convidou Jesus para entrar em sua vida hoje de manhã?
- Sim, respondeu, surpresa com a reação do pessoal.
Todos falavam ao mesmo tempo.
- Mas isso é ótimo! Que maravilha! Que legal! Temos orado tanto por você!
Ajuntaram-se todos ao seu redor e a abraçaram. Cris ficou admirada com a alegria
que eles estavam demonstrando. Nunca se sentira tão amada e aceita como naquele
momento.
Seria tão bom se o Ted estivesse ali também! Era horrível não saber se o veria
novamente. Depois daquela cena de ontem, então... Não fazia idéia como poderiam
resolver aquela questão, mas sabia que conseguiriam, se tentassem.
Ficaram ainda em volta da fogueira já meio apagada até todos começarem a sentir o
frio do vento noturno. Lá pelas onze, Douglas acompanhou-a até em casa.
- E então, aproveitou bem o verão? perguntou, passando a mão no cabelo curto.
- Acabou depressa demais.
- Estou feliz por ter conhecido você; e mais feliz ainda porque você tornou-se cristã.
Não vai se arrepender nunca.
- Será que Deus ajuda mesmo a gente quando as coisas vão mal? perguntou Cris.
- Sim, mas ele não tira as dificuldades. Ele nos ajuda a passar por elas. Além do
mais, todas as situações difíceis nos ajudam a crescer. A gente aprende a depender dele e
não de nós mesmos. Pelo menos é isso que acontece comigo, disse Douglas, quando se
aproximavam da escada na entrada da casa.
- Sabe do que eu vou sentir falta? De escutar as pessoas falando sobre Deus com
tanta facilidade e naturalidade. Aprendi muito com todos vocês nestas férias. Lá na minha
cidade não tenho amigos que amem a Deus como vocês.
- Bom, parece que você vai ter de falar com eles. Comece o seu próprio grupo de
amigos de Deus.
- Amigos de Deus? repetiu ela.
- É, ou qualquer outro nome que você queira dar ao grupo. Pra começar basta uma
pessoa.
Era tão fácil conversar com o Douglas! Por que ela não gostava dele do jeito que
gostava do Ted? Ele era gente boa, bonito e muito atencioso, mas havia um "algo mais"
no Ted.
Ted. Por que não era ele que estava ali com ela, em vez do Douglas? Ela havia
estragado o relacionamento deles ao jogar a sandália nele.
- Preciso entrar, disse Cris, tremendo um pouco por causa do ar frio. Até logo!
Espero ver você novamente algum dia. Douglas lhe deu um rápido abraço e disse:
- Aqui, ou no céu, se não te encontrar antes.
Cris riu e entrou. Encontrou o quarto totalmente limpo. Suas roupas estavam em três
malas novas, abertas no chão. Havia um bilhete de seu tio no travesseiro:
"Espero que tenha se divertido. Você terá de tirar alguma coisa da mala para usar na viagem amanhã.
Acordo você às seis para que tenha tempo de se aprontar.
B."
Cris não conseguia dormir. Havia tantas questões em sua mente... Por que Ted não
apareceu no churrasco? Será que o verei novamente? Por que tenho de ir para casa? Por que a vida é tão
complexa? Ficou exausta tentando encontrar as respostas.
Afinal, entregou os pontos. Resolveu simplesmente confiar no que Douglas lhe
dissera: que Deus a ajudaria a enfrentar as dificuldades, em vez de removê-las.
- Tudo bem, disse Cris em oração. Acho melhor depender do Senhor para me ajudar
nessas frustrações todas, senão vou acabar enlouquecendo tentando entender tudo isso.
Em seguida, entrou debaixo da coberta e começou a cantar baixinho "Toda a minha
ansiedade lanço sobre ti. O meu fardo deixo a teus pés..."
Adormeceu antes de terminar a música.
Na manhã seguinte Bob bateu em sua porta às 6:02.
- Temos de sair daqui a uma hora, Cris. Me chame se precisar de alguma coisa.
Ela tomou um banho e se vestiu, ainda meio tonta. Os ouvidos zumbiam como se
um aviãozinho de brinquedo estivesse dando voltas ao redor de sua cabeça.
Depois de arrumar o cabelo, enfiou o último dos cosméticos na mala e, abrindo a
porta, gritou:
- Estou pronta!
Marta apareceu no corredor.
- Tem certeza de que pegou tudo, querida?
Estava elegantíssima num conjunto amarelo e azul-marinho. Parecia friamente
calma, e nada em sua atitude lembrava o conflito de ontem. Aparentemente Bob havia
dado um jeito no problema do restaurante, mas Cris, prudentemente, achou melhor não
tocar no assunto.
- Sim, mas não consigo carregar estas malas. Estão pesando como chumbo!
Bob levou as malas para o carro uma a uma e acomodou-as no porta-malas.
Quando o carro estava descendo a rampa de entrada da garagem, Cris, chorando, deu
uma última olhada na casa e na praia, e pensou no Ted mais uma vez. Estava tudo
acabado: as férias, seu primeiro amor...
O carro parou no sinal fechado. Era o mesmo cruzamento que ela e Ted haviam
atravessado no passeio de bicicleta dupla. Ted. Só pensar nele dava uma dor no coração!
Cris engoliu em seco, tentando desfazer um nó na garganta.
- Estou de farol aceso? perguntou Bob a Marta.
- Não.
- Então por que o cara atrás de mim está piscando os faróis e abanando as mãos?
Cris virou-se.
- É o Ted! Fique parado aí!
- Mas querida, o sinal acabou de abrir! protestou Marta.
Cris saltou do carro e correu até a "Kombi Nada". Ted desceu da kombi, deixando o
motor ligado, e entregou-lhe um pequeno buquê de cravos brancos. Sua flor predileta!
Como ele sabia? Será que havia conversado com sua tia de novo? Nessas alturas, não
estava nem se importando mais.
- Ainda bem que você parou, disse Ted, com um sorriso que fazia aparecer as
covinhas. A buzina da "Nada" não quer funcionar hoje.
- Obrigada pelas flores.
- De nada. Ei! A Trícia me telefonou ontem e contou que você aceitou a Cristo!
- Sim! disse Cris, baixando timidamente o olhar. Finalmente tudo fez sentido, e
percebi que era hora de entrar no barco como você havia dito.
- Você nem imagina o quanto estou feliz! Tenho estado tão chateado com a história
do Sam... Mas saber que você tornou-se cristã é o fato mais animador que poderia me
acontecer no momento.
Olhando mais uma vez seu rosto forte e bronzeado, Cris tentava desesperadamente
memorizar tudo nele: os olhos azul-prateados, as covinhas, o cabelo clareado pelo sol.
O motorista do carro atrás de Ted, cansado de esperar, deu a volta, passou por eles
buzinando e atravessou o sinal amarelo.
- Acho que precisamos ir, disse Ted, com um daqueles seus maravilhosos sorrisos
confiantes. Meu endereço na Flórida está no cartãozinho das flores. Não prometo escrever
muito, mas se você me escrever, prometo responder.
- Tudo bem, concordou ela, esforçando-se para não chorar, e sussurrou: Até logo,
Ted.
Ele se inclinou, lá no meio da avenida, na frente de todo mundo, e lhe deu um beijo
suave nos lábios. Um beijo breve e terno. O tipo que vem somente do amor inocente, cuja
memória dura para sempre.
- Vou sentir sua falta, murmurou Ted.
- Eu também vou sentir sua falta!
Ted ergueu o olhar e mudou o tom de voz.
- Sinal verde de novo. Precisamos ir.
- Até logo! gritou ela, correndo para o carro. Prometo escrever.
Bob acelerou, deixando a "Kombi Nada" para trás no sinal fechado.
Por alguns instantes reinou profundo silêncio no carro, enquanto Cris encostava os
lábios no buquê de cravos, relembrando aquele primeiro beijo.
- Bem, disse Marta com satisfação. Só para você saber, eu não tive nada a ver com
esse encontro.
- Não mesmo? disse Cris com voz leve e em tom sonhador. Como ele soube que
cravos brancos eram meus prediletos?
- Kismet, declarou Bob.
- O que é isso?
- Algumas coisas são simplesmente inexplicáveis. Você tem de entender que há uma
força superior comandando tudo.
- E há mesmo! concordou Cris. Eu o conheço pessoalmente.
- Bem, isso é muito bonito, querida. É uma forma simpática de se pensar em Deus.
Marta abaixou o quebra-sol para verificar a maquiagem no espelhinho.
- É mais que isso. Eu fiz uma promessa a Deus nestas ferias.
Prometi a ele todo o meu coração. Agora confio nele e espero que ele faça aquilo
que achar melhor na minha vida.
- Isso é ótimo, querida, disse Marta apertando os lábios. Mas o meu conselho é: não
exagere nessa visão religiosa da vida. Quem controla o seu destino é você. Não adianta
ficar esperando que Deus faça aquilo que você mesma pode fazer.
- Você está certa, Marta, concordou Bob. Como eu lhe disse há algumas semanas,
"A ti mesma sê fiel". Cris riu baixinho e passou os cravos no rosto.
- Tentei ser fiel a mim e seguir minha própria cabeça, mas comecei a me afundar.
Prefiro seguir a vontade do Senhor. É muito melhor! Além do mais, agora tenho certeza
de que vou chegar ao Havaí.
Marta deu uma olhada meio de lado para Bob, e cochichou:
- O que será que ela quer dizer com isso?
O olhar de Bob dizia: "Sei não".
Cris apenas sorriu e passou os cravos na ponta do nariz, sentindo o perfume doce e
forte.
Uma alegria indizível brilhava dentro dela. Suas férias na Califórnia iam-se
acabando como a maré que se afasta, deixando tesouros na praia de seu coração e
mudando sua vida para sempre.
F I MF I M