ROCHE Daniel Cultura Das Aparencias Cap.3

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3 e sé.cu tCJ sé.cu tCJ XIX Novas modas, se pretendem ter sucesso, devem estar em harmonia com o espírito de sua época. J.-C. F1üge 1, Le rêveur nu. NÃO SE ESCAPA da moda, façamos então o melhor uso dela. Entre os séculos XVII e XVIII, esse gran de fenômeno recebeu um novo ímpeto, propiciando sua difusão além da França, que agora o tom para toda a Europa. Um dos fatores mais importantes, embora bastante negligenciado, nesse desenvolvi- mento era de ordem econômica: a exi stência de uma indústria de roupa de luxo, concentrada em Paris, com uma tradição, clientes e grandes interesses em jogo. Para sobreviver, ela precisava manter um fluxo de novas roupas e, para expandir, ne cessitava acel erar a freqüência com que eram substituídas. A partir daí, pod emos nos interrogar sobre a antiguidade da função de troca da moda 1 e sobre sua nature za de certo modo equivalente no mercado. A velocidade da mudança das prát icas e:dos hábitos fo i contemporân ea da explosão da economia política, do que existem muitos indícios. Depois de 1 J. Baudrillard, Le systeme des objets, Paris, 1968; e L:échange symbolique et la mort, Paris, 1976.

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Novas modas, se pretendem ter sucesso, devem estar em harmonia com o espírito de sua época.

J.-C. F1üge1, Le rêveur nu.

NÃO SE ESCAPA da moda, façamos então o melhor uso dela. Entre os séculos XVII e XVIII, esse grande fenômeno recebeu um novo ímpeto, propiciando sua difusão além da França, que agora dá o tom para toda a Europa. Um dos fatores mais importantes, embora bastante negligenciado, nesse desenvolvi­mento era de ordem econômica: a existência de uma indústria de roupa de luxo, concentrada em Paris, com uma tradição, clientes e grandes interesses em jogo. Para sobreviver, ela precisava manter um fluxo de novas roupas e, para expandir, necessitava acelerar a freqüência com que eram substituídas. A

partir daí, podemos nos interrogar sobre a antiguidade da função de troca da moda1 e sobre sua natureza de certo modo equivalente no mercado.

A velocidade da mudança das práticas e:dos hábitos foi contemporânea da explosão da economia política, do que existem muitos indícios. Depois de

1 J. Baudrillard, Le systeme des objets, Paris, 1968; e L:échange symbolique et la mort, Paris, 1976.

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Séc. XVII e XVIII- difusão da moda para toda a Europa, a França dava o tom da moda. Fator importante da difusão da moda a partir de Paris: ordem econômica, a existência de uma indústria de roupa de luxo, concentrada em Paris, com uma tradição, clientes e grandes interesses em jogo. Para sobreviver, ela precisava manter um fluxo de novas roupas e, para expandir, necessitava acelerar a frequência com que eram substituídas. Depois de 1750 - multiplicação dos livros, dos jornais econômicos e das coleções de moda, os economistas começaram a refletir sobre o luxo indumentário e sobre o papel do consumo, veículo de criação de riqueza, de roupas comuns.
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ssoe. Para uma história da indumentária

1750, paralelamente à multiplicação dos livros, dos jornais econômicos e das coleções de moda, 2 os economistas começaram a refletir sobre o luxo indu­mentária e sobre o papel do consumo, veículo de criação de riqueza, de roupas comuns. Em 1770, Bonnaud publicou um artigo sobre "a degradação da espécie humana pelo uso aviltante do corpete de barbatanas de baleia",* no fournal de l'agri.culture; em 1779, Gauthier, pároco de Savigny, trouxe a público seu Traité contre l'amour des parures et le luxe des habits, 220 páginas de fulminações; em 1780, Saint-Vallier escreveu um Discours sur les modes. Esses são apenas três entre muitos títulos que tratam do assunto. Seus autores repetem a crítica habitual ao luxo das roupas, em nome da economia política cristã, mas eles o associam a efeitos danosos à moral, à civilização e à transmissão de conhe­cimento pelo ensino: a educação estava na ordem do dia. Por fim, como os grandes textos em louvor do luxo,3 eles redescobrem a alternativa clássica: ou ele é prejudicial e causa do despovoamento, ou é visto como útil à sociedade. A moda pode, então, ser decodificada, como o mercado; ela também era um modelo de circulação, porém não mais necessitava de equivalente genérico e palpável, como o ouro ou as moedas. Ela era um sistema de troca de diferen­ças e, a exemplo do intercâmbio humano em geral, precedia ou anunciava o econômico. No fim do Antigo Regime, em todo o caso, modificações profundas da sensibilidade, 4 o aumento da circulação das pessoas e das coisas e a multi­plicação dos meios de informação prepararam uma enorme ruptura.

O vestir e/ou a vestimenta

O estudo histórico da vestimenta relaciona dois níveis de realidade, o do vestir (habillement), que Roland Barthes identifica com a palavra no siste­ma lingüístico saussuriano, 5 ato individual por meio do qual o indivíduo se apropria do que é proposto pelo grupo, ou o do traje ou vestimenta (vétement), visto de um ponto de vista sociológico ou histórico como um elemento de um sistema formal, normativo e sancionado pela sociedade. Nossa leitura de Flügel mostrou como os fatos primitivos de proteção, adorno e modéstia só se

J .-C. Perrot, "L'économie politique e t ses livres", e m Histoire de l'édition française, tomo 2, Paris, 1984, pp. 240-259; C. Rimbault, La presse fémin ine de la ngue française au.XVIII' siecle, tese de 3° ciclo, École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris, 1981 . A barbatana da baleia e ra usada para enrijecer o corpete ou o espartilho. (Nota do tradutor.) Voltaire, Le mondain, A. Morise (org.). A. Corbin, Le miasme et la jonquille, Paris, 1982; D. Roche, Le peuple de Pa ris, Paris, 1981. R. Barthes, "Histoire et sociologie du vêtement", em Annales ESC, 1957, pp. 430-441; e Le systeme de la mode, Paris, 1967.

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Textos sobre moda- surgem uma série de textos, livros e artigos que falam sobre a moda. Textos críticos- "Seus autores repetem a crítica habitual ao luxo das roupas, em nome da economia política cristã, mas eles o associam a efeitos danosos à moral, à civilização e à transmissão de conhecimento pelo ensino: a educação estava na ordem do dia." Textos de louvor ao luxo- "ou ele é prejudicial e causa do despovoamento, ou é visto como útil à sociedade. A moda pode, então, ser decodificada, como o mercado; ela também era um modelo de circulação". Moda mercado- sistema de troca diferente. Ao fim do Antigo Regime - Ruptura - modificações profundas da sensibilidade, aumento da circulação das pessoas e das coisas, multiplicação dos meios de informação prepararam uma enorme ruptura.
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tornam fatos de vestimenta quando são reconhecidos por diferentes grupos sociais e se inserem em conjuntos culturais definidos por vínculos e códigos. Compreender essas regras e encadeamentos - tanto o poder das restrições como a extensão das transgressões - continua sendo o objetivo dessa história. É, portanto, menos úma questão de registrar fatos, imagens e traços de cos­tumes- outros o fizeram e muito melhor, Quicherat sobretudo-, mas, antes, de compreender as articulações normativas em que se revelam significados e práticas sociais.

A moda situa-se no cruzamento do fato de vestir, que um indivíduo pode lançar e generalizar no sistema indumentária, em que ela se torna proprieda­de comum, com o fato de vestimenta, generalizada numa maneira de vestir e reproduzida em escala coletiva, na alta-costura, por exemplo. As mudanças podem ser compreendidas nessa relação, com o significado da roupa crescen­do à medida que se passa do ato pessoal ao gesto comum. A relação entre o indivíduo vestido e a sociedade que propõe o código do vestir pode ser medida nas grandes mudanças, que afetam o sistema indumentária, e, por compara­ção, nas possibilidades de difusão e recepção. Entre os séculos XVII e XVIII, exigia-se um alto grau de artificialidade e exuberância no vestir dos homens e mulheres das classes superiores. Um quarto de século antes da Revolução, a crítica filosófica denunciou, em nome da natureza, os excessos generalizados da moda e do consumo aristocrático, e acabou impondo a artificialidade do natural, que nada tinha de econômico. Ao mesmo tempo, a função socioindu­mentária dos sexos, agora sujeita a diferentes éticas, até mesmo a ritmos di­ferentes, separou-se, numa redistribuição dos papéis masculinos e femininos, entre o privado e o público.

Dois exemplos ilustram o espírito e a proposta desta minha análise: pri­meiro, uma discussão da noção de moda num período em que esta estimulou a reflexão dos moralistas, muito embora o tema da roupa da moda seja em parte um anacronismo, uma vez que no século XVII, ao contrário dos séculos XIX e XX, não havia um corpus exemplar, textual ou pictórico que a explique;6 se­gundo, uma discussão de como o sistema indumentária funcionava no século XIX/ período em que se promoviam tanto o anonimato como o indivíduo, fato esse que joga com dois princípios estimulantes um tanto contraditórios: o an­seio por uma aparência distintiva e o desejo de uniformidade e conformismo.

6 L. Goddard d e Donville, Significations de la mode sous Louis XIII, Aix-en-Provence, 1978, pp. 11-12, cuja obra toda conduz a essa reflexão . P. Pe rrot, Les dessus et les dessous de la bourgeoisie, une histoire du vétement au XIX' siécle, Paris, 1981, pp. 8-9.

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Vestir e/ou vestimenta Vestir, vestimenta- Os atos de vestir se tornam fatos de vestimenta quando são reconhecidos por diferentes grupos sociais e se inserem em conjuntos culturais definidos por vínculos e códigos. História da indumentária e da moda - compreender regras e encadeamentos, o poder das restrições e a extensão das transgressões.
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Essa tensão entre diferença e identidade coletiva ainda inspira nossas escolhas de roupa, e, como prova disso, bastaria olhar um anfiteatro universitário ou um programa de televisão. Meu estudo abrange o período que vai da primeira crítica do fe·nômeno social da moda até seu incontestado triunfo - isto é, do pe­ríodo clássico ao Século das Luzes-, embora os significados do vestir tenham mudado pouco.

Nos reinados de Luís XIII e Luís XIV, a moda tinha dois significados: de um lado, os costumes, as maneiras de viver, os modos de fazer as coisas, um conformismo das práticas; de outro, tudo o que mudava de acordo com o tem­po e o lugar. Havia objetos, lugares e hábitos da moda. A noção não se aplicava apenas a adornos e roupas, mas a todos os meios de expressão, "é o homem por inteiro que ela abrange e transforma".8 Assim, a vestimenta deve ser locali­zada em um vasto conjunto de fronteiras cambiantes, abrangendo os conflitos e aspirações da época. Em seu La mode, publicado em 1642, Grenaille advertiu seus leitores de que nada era mais polimorfo: "Eu apresento uma descrição geral de nosso século", e, quando seu amigo Fitelieu publicou seu Contre mode, na mesma época, ele sustentou que "o mundo inteiro é afetado pela moda".

Se a moda é um mundo encantado de códigos, a prudência requer que evitemos o risco de diluição e nos limitemos à análise dos escritores, que fo­ram buscar na moda um pretexto para suas narrativas. A escolha é inevitável, tanto mais que não existe literatura especializada, e o assunto pode ocorrer em qualquer tipo de texto. Por isso, é preciso observar um duplo viés; encon­tramos não um desejo de informar sobre a moda, mas variações em torno do tema, sendo a discussão fundamentalmente moral e antropológica; poucos livros deixam, numa análise mais aprofundada, de reconduzir ao ser humano e à sociedade, ou de servir de pretexto para satirizar os homens e a época. A

moda opera de três principais maneiras: primeiro, pela imitação, ressaltando o habitus social diferente da corte, da cidade e do povo; segundo, pelas conven­ções em voga, a moda revela a natureza humana por meio da inconstância e do artificio, do amor e seus estratagemas; por fim, os estilos desejados confron­tam com as afirmações dos manuais de boas maneiras, instrumento da educa­ção das pessoas respeitáveis, que o costume, o bom senso e as conveniências ditam e limitam. É uma outra maneira de ler a sociedade antiga, além daquela da economia política cristã.

Para os contemporâneos de Luís XIII, uma aparência na moda era um traço específico do caráter nacional.

R. Konig, Sociologie de la mode, Paris, 1969.

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Os franceses, cuja fama é amedrontável Por todos os cantões desta terra habitável, Vêm se submeter a meu comando, Para fazer tudo o que demando ...

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Assim proclamava, em 1613, o Discours nouveau sur la mode,9 afirmando a universalidade da tirania da moda, a necessidade de se submeter a suas leis e o significado dessa submissão como meio de reconhecimento de uma co­munidade. Os autores que estudaram os costumes das nações, como d'Avity10

e Sorel,'' viram nisso um fator de coesão dos povos e Estados. Os que não seguiam seus ditames eram objeto de riso e corriam o risco de exclusão como ultrapassados ou excêntricos. Mas, ao mesmo tempo, os mecanismos de reco­nhecimento são os dos poderes sociais. Era o rei que ditava a moda, que fazia cortar as barbas, alongar ou encurtar os cabelos; a corte o seguia, assim como o resto da França, que se espelhava em suas atitudes, conforme observou Mon­taigne: "A moda reside sem dúvida no en contro entre os gostos dos franceses e a autoridade daqueles que os franceses admiram".12 A nobreza, que encarnava a quintessência do espírito nacional, promovia uma política igualitária quan­do ditava e sancionava os modelos de estima social. A paz de Paris, após os conflitos dos reinos anteriores ao de Luís XIII, e o advento de um novo tipo de cortesão, formado nas antecâmaras do Louvre, criaram a moda da corte, que se afirmou unificadora para todos.

Mas, ao mesmo tempo, a moda era uma maneira de afirmação da indi­vidualidade. Isso se observa na atribuição e no batismo das invenções muito copiadas, como os sapatos à Pompignan, os cabelos "em rabicho" de Monsieur de Cadenet, irmão de Luynes, o drapeado de Monsieur de Baligny e a pérola do conde de Brantes. A originalidade criadora podia inspirar imitações distin­tivas, sem perda da unidade básica.

A moda era, portanto, antes de tudo , um ponto de equilíbrio entre o co­letivo e o individual, uma maneira de marcar a hierarquia social, ao mesmo tempo fixa e móvel. À medida que floresceram as distinções indumentárias, a fantasia de alguns e o conformismo de outros desen cadearam ação defensiva de parte de instituições (a Igreja) ou grupos (a burguesia) que haviam ficado para trás. A moda, então, revela as relações sociais e a maneira como elas

9 P. Fournier (org.), Variétés historiques et littéraires, tomo 3, 10 vols., Paris, 1855-1856, pp. 241-263; e L. Gordard de Donville, Significarions"de la mode sous Louis XIII, cit., pp. 20-33.

10 D'Avity, Le théâtre de l'univers, ou abrégé du monde, Paris, 1646. " C. Sorel, La science universelle du vétement, tomo 1, Paris, 1641 , p. 194. " Montaigne, Essais , NRF, Paris, 1950, p. 308; e L. Godard de Donville, Significations de la mode sous Louis

Xlii, cit., p. 32.

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evoluem. A longevidade de uma prática parece constantemente ligada aos obs­táculos que encontra e que se opõem ao sucesso de sua difusão. "A maneira como as nossas leis tentam regulamentar as despesas tolas e fúteis da mesa e do vestuário é .contraproducente [ ... pois serve para] aumentar o desejo de fazê-las", escreveu Montaigne. 13 As denúncias dos moralistas e as leis suntuá­rias visavam o mesmo alvo- a economia do luxo, que estimulava o desejo e que, encorajando a ostentação, refreava, embora sempre a suscitando e pro­longando, a imitação, que não era puro determinismo.

A moda e as leis suntuárias

Monsieur Fogel demonstrou a íntima ligação do social e do político na gênese das leis monárquicas dirigidas contra as "despesas extravagantes". 14 Os dezoito decretos estatuídos entre 1485 e 1660 revelam, no tocante às roupas e adornos, uma política econômica e uma defesa da aparência aristocrática. O preâmbulo do decreto de 1514 identifica explicitamente o título e as roupas: "Proibindo absoluta e categoricamente todas as pessoas, plebéias, não-nobres [ ... ] de assumirem o título de nobreza, seja no estilo ou nos trajes". Durante quase dois séculos, a monarquia pelejou para restringir as sedas aos nobres, definir a h ierarquia das cores e proibir o ouro e a prata nos tecidos e ornamen­tos, em suma, limitar o amálgama das condições. Quando as justificativas mo­netaristas prevaleceram no início do século XVII, as leis suntuárias davam a impressão de um país onde a extravagância dos consumidores estava desvian­do o metal precioso dos circuitos úteis e dos cofres do Estado. O policiamento dos gastos agora afetava todos os súditos. Nobres e plebeus estavam igualmen­te unidos nos excessos indumentárias, que desencadeavam a ação do Estado. Se, de um lado, a moda afirmava a primazia da nobreza, de outro, a realeza esvaziava um pouco esse privilégio a fim de confiná-lo ao supremo enclave da distinção social, a corte. A legislação ecoava os tratados; as leis suntuárias atacavam os mecanismos de registro do mimetismo social. Até que ponto essa legislação foi aplicada é fato menos importante para o nosso tema do que sua contribuição para definir a imagem de um modelo de gastos reservados.

13 L. Godard de Donville, Significarions de la mode sous Louis Xlll, cit., pp. 35-40. " J. Nagle & M. Foge!, "Modele d'État et modele social de dépenses, les !ois somptuaires en Fra nce de 1485,

à 1660", em Colloque CNRS, Prélevement et redistriburion dans la genese de l'État moderne, Fontevrault, 1984, publicado em 1987.

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As práticas da corte gradualmente tomaram forma. O estilo de vida se­nhorial exigido pela proximidade com o rei, a existência suntuosa de uma sociedade exibicionista, o fausto das equipagens a desfilarem a todo instante, em suma, o espetác_ulo que a alta nobreza a todos oferecia mudou um pouco de significado. A demonstração de um poder político e social até então ainda compartilhado, um espetáculo visto, sonhado, imaginado pelo homem comum das ruas ou pelos leitores dos opúsculos que se difundiam em sucessivos cír­culos, o esplendor da corte alimentando o desejo de imitação em todo o reino, tudo isso teve conseqüências. Redobraram as condenações do luxo por todos aqueles que denunciavam o esbanjamento e a perversidade que suscitava. Pu­get de La Serre expressou o que já se tornara lugar-comum nas prédicas:

Thdo o mundo se esfalfa para parecer o que não é, e ninguém se esforça para ser visto como realmente é. Um fará o príncipe apenas vestindo roupas, quero dizer, sem ter o mérito, a qualidade, nem as rendas, e com esses ornamentos emprestados procurará espelhos por toda a parte, para fazer amor consigo mesmo. 15

A vaidade das aparências e o narcisismo da moda fazem do mundo um teatro, e a posição dos moralistas que denunciavam a h ipocrisia espiritual com­plementava a afirmação tridentina da economia cristã. Mas, ao mesmo tempo, o espetáculo, como as proibições, desencadeou uma outra onda de inovações e contrafações. "O estilo da corte" fornecia uma medida comum para a padro­nização da linguagem das aparências mediante a condenação do luxo ostenta­tório dos novos-ricos e da aparência exagerada dos intrigantes. O requinte de alguns contribuía para o declínio social dos outros, e as obras satíricas também enfatizavam o contraste entre o traje do cortesão e o do burguês, modelo de tradição, conformismo, respeito pelos imperativos da moral religiosa e social.

Entre essas duas tendências, padronização e transformação, há a prepa­ração para uma grande ruptura do período moderno: a porta estava aberta para a confusão das posições sociais; "uma evolução incontrolável, cuja natureza mesma escapa à análise" ,16 havia começado. Thdavia, ver o respeito esperado para as leis suntuárias como uma novidade é ignorar o conservadorismo da le­gislação real e sua permanência ao longo de dois séculos: a ruptura não come­çou aí. Ademais, aceitar que a realidade cambiante da virada dos séculos XVI e XVII tenha causado a explosão dos textos satíricos denunciando as inúteis

ts Puget de La Serre, r:entretien des bons esprits sur les uanités du monde, Lyon, 1631, p. 157; e L. Godard de Donville, Significations de la mode sous Louis Xlll, cit., pp. 111-112.

15 L. Godard de Donville, Significations de la mode sous Louis Xlll, cit., p. 76.

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proibições e a desordem das hierarquias é também aceitar o próprio caráter do discurso conservador, isto é, o mito de uma idade de ouro finda, e a exis­tência de um ethos burguês perene, hostil a modificações e crédulo da ordem estabelecida. O desconforto provocado na população urbana pelo crescimento da moda não pode ser percebido apenas com base na análise dos textos, sobre os quais muitas questões permanecem sem resposta (qual sua influência na produção moral, por quem, para quem?); para compreender como a moda funcionava, e a rejeição a ela, entre a corte e a cidade, devemos estudar o con­teúdo concreto das práticas.

Por fim, esses livros e panfletos não podem ser separados de um con­junto mais amplo de material basicamente inspirado pelos teólogos católicos e protestantes, que tentavam definir as normas novas e retificadas de uma aparência ascética e devota. Por trás do burguês, havia um problema moral oculto, fundamental para as igrejas reformadas, o do uso da riqueza num siste­ma de desigualdade social, 17 ou, retomando a expressão de Jean-Claude Perrot, o da "transformação do luxo em caridade". Essa visão era mais importante do que a da burguesia conservadora na crítica das modas, que desestabilizava a economia estacionária e a sociedade holística. As boas maneiras eram asso­ciadas não apenas à evolução dos tipos de aparência, reveladoras das relações sociais, mas a uma profunda concepção das conexões entre o ser e o parecer. Os textos enfatizam o caráter teatral da vida, um mundo barroco extravagan· te, fascinado pelo movimento, com um gosto pelas metamorfoses, um apego às inversões e transmutações, por tudo enfim que explica a vitória de formas literárias complexas - analogia, hipérbole, anamorfose - , como mostra a aná· lise de Jean Rousset. 18 A moda e a fantasia tornaram-se a própria expressão do ser contrastado da época, símbolos de instabilidade e artificio. Ponderá-los era redescobrir a questão do significado do homem e do universo, a relação com Deus, que não pode ser nem instável nem artificial. Os dois aspectos lançam luz sobre a antropologia barroca das aparências.

A moda como princípio de leitura do mundo

A inconstância está em toda a parte; está na essência das coisas, cujo destino é a mudança. A moda torna-se um prin.cípio de leitura social e moral,

11 Cf. J.-C. Perrot, em seminário de 3• ciclo Économie, Population, Subsistance, Université de Paris-EHE'S'i, 1984-1985, inédito.

18 J. Rousset, "Circé et le Paon", em La littérature de /'áge baroque en France, Paris, 1954.

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que não faz distinção entre o ato de vestir e a condição integral do h omem. Grenaille explicitou essa idéia no título de sua obra: La mode ou caracteres de la religion, de la vie, de la conversation, de la solitude, du compliment, des habits e du style du temps. 19 Esse é um traço típico, banal mesmo, de todas as descrições de costumes, um lugar-comum para pregadores de todo tipo, que exageram um elemento - a instabilidade -, a fim de equacionar as variações do indivíduo com as do universo. As mudanças na aparência revelam as leis universais do coração humano, e permitem compreender o comportamento humano, ligado à mudança e à novidade. O projeto de Grenaille constitui uma verdadeira ana­morfose, pois sua reflexão faz convergir, como nas representações plásticas, o sentido profundo dos fenômenos de falsificação, excentricidade e incons­tância: "Thdo participa de tudo tanto quanto de si mesmo".20 O microcosmo indumentária en carnao macrocosmo do universo. A moda é um retransmis­sor entre as pessoas e as coisas, entre o imutável e o instável, a expressão não tanto da liberdade humana quanto da decadência da humanidade. "Mesmo a curiosidade, com a qual justificamos a liberdade de n ossas modas, é apenas um defeito ilusório, uma vez que é muito mais uma sutileza engenhosa para nos atormentar do que um remédio para os nossos males."21 O mito da nudez original está por trás da paixão pelo conhecimento, e os críticos da moda jun­taram suas vaze& ao coro dos alarmistas antimundanos. Cada mudança provo­cava a condenação das práticas instáveis nas quais se manifestava o artifício.

Na mesma oportunidade, Fitelieu de Rodolphe et de Montour publicou La contre mode,22 que "condena sem apelação um poder considerado, no sen­tido estrito das palavras, alienante e demoníaco". 23 A moda, cujas vicissitudes revelam o irracional, revela a "loucura de nossos espíritos". Seu princípio de inconstância contamina todo o universo, e sua diversidade põe em xeque até a unidade da religião. Castigando os mundanos, Fitelieu os conclama a se con­verterem, a abjurarem das falsas divindades, Circe e a moda, a rejeitarem os disfarces e as máscaras. Ele denunciou a ilusão e o artifício, antinaturais, pois impostos pelas convenções das aparências, uma corrupção dos fins naturais e das práticas. O corpo, em todos os seus elementos, considerados segundo a an­tiga tipologia dos sentidos, revelava-se inteiramente corrompido. As funções pretendidas por Deus são desviadas de seu fim, "a sociedade civil é interrom-

" Grenaille, La mode ou caracteres de la religion, de la vie, de la conversation, de la solitude, du compliment, des habits e du style du temps (A moda ou características da religião, da vida, do diálogo, da solidão, do cumprimento, dos hábitos e do estilo da época), Paris, 1646.

"' L. Godard de Donville, Significations de la mode sous Louis XIII, cit., pp. 119-169. 21 Grenaille, La mode ou caractêres, cit., pp. 126-127. 22 Fitelieu de Rodolphe et de Montour, La contre mode, Paris, 1642. 13 L. Godard de Donville, Significations de la mode sous Louis XIII, cit., p. 152.

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pida". Renunciar à moda é redescobrir a liberdade das criaturas de Deus, esco­lher a natureza, rejeitar o mundo. Vemos aqui uma meditação cristã rigorística, tentando reformar os costumes. Entretanto, ela coexistia com outras formas de expressão mais preocupadas com as realidades urbanas, que tentavam definir um caminho intermediário entre as exigências da moral religiosa e as da vida civil. A sabedoria dos costumes prevaleceu sobre os preceitos do rigor.

Entre os conciliadores, Grenaille aparece ao lado de Pierre de Marbeuf, Du Lorens, Faret, Renaudot, La Mothe Le Vayer e Sorel, o abade Du Bosq e do magistrado de Aix-en-Provence, Figuiere.24 Essa tendência correspondia à expansão social e geográfica da moda, além dos círculos da corte, além da nobreza, da capital às províncias mais remotas, em conseqüência do desenvol­vimento de uma sociedade urbana25 que então descobria um novo equilíbrio e na qual florescia a civilização das boas maneiras e da decência. Um primeiro modelo reduziu a moda a uma coleção de costumes, principalmente indumen­tárias e cotidianos; um segundo a utilizou mais exatamente para dar uma nova definição do comércio social.

As práticas corretas constituíam uma arte de bem viver, a que o sensato devia se submeter:

O costume é o senhor das coisas Quem não quer segui-lo Mostra que não sabe viver direito As rosas nascem na primavera Cumpre pois seguir o seu tempo.26

Essa linha de pensamento rejeitava a censura sistemática aos costumes da época e ampliava o público potencial para as maneiras aristocráticas na cidade, como revela a conferência de abertura feita por Théophraste Renaudot no bureau d'adresse. Tratava-se de um modelo acadêmico aberto ao público em geral, e durante nove anos especialistas debateram todos os assuntos possíveis e imagináveis, das ciências à retórica, da literatura aos costumes. 27 Um debate

24 "Le misogyne•, em M. Aliem (org.), A nthologie poétique française, XVII• siecle, tomo 1, Paris, 1965, p. 344; J. Ou Lorens, Satires, Paris, 1633; T. Renaudot, Conférences du bureau d'addresse (1633, 1644), Lyon, 1656; N. Faret, L'honnête homme oul'art de plaire à la Cour, Paris, 1630; F. de La Mothe Le Vayer, Opuscules ou petits traités, Paris, 1643; C. Sarei, La bibliotheque fra nçaise, Paris, 1667; Ou Bosq, L'honnête femme, Paris, 1626; Figuiere, La uerttt à la mode, Aix, 1641. r;ssas obras constituem o substrato docume ntal dos dois últimos capítulos de L. Godard de Oonville, Significations de la mode sous Louis XIII, cit., pp. 170-204.

25 R. Chartier, "La ville acculturante', em Histoire de la France urbaine, tomo 3, Paris, 1981. 26 "La Moustache des filous arrachés", em P. Fournie r (org.), Variétés historiques et li ttéraires, cit., tomo 2, 10

vols., pp. 152-153. 27 H . M. Solomon, Public Welfare, Science and Propaga nda in Seuenteenth Century Fra nce, the Innouations of

T Renaudot, Princeton, 1972, pp. 60-99.

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História, moda e sistemas indumentárias do século XVTI ao século XIX Q- 67

sobre maquiagem, realizado em 1636, mostra que a visão desses círculos sobre a moda e o artificio estava nas antípodas das diatribes de Fitelieu. As pessoas respeitáveis recusavam as extravagâncias e definiam uma via intermediária aceitável pelos grandes. e pela burguesia. Elas obedeciam às leis da modera­ção. No seu Honnête homme ou l'art de plaire à la cour, publicado em 1630, Faret inseriu essas idéias na reorientação burguesa e paroquial do modelo de boas maneiras. Esse burguês de origem humilde, que se enobreceu como secretário do rei, retratou a corte como o coroamento das hierarquias, a arena dos triun­fos, onde, para ser reconhecido, era imperativo conhecer as regras. Na nova civilidade, a moda se tornou não

[a curiosidade] de alguns doidivanas entre os jovens da corte, que [ ... ] ou enterravam metade de seus corpos em grandes botas, ou mergulhavam até às axilas em seus calções, ou ainda escondiam o rosto por inteiro sob as abas de chapéus tão amplos como pára-sóis da Itália. Mas eu entendo essa moda que, sancionada pelos mais admirados entre os homens gran­des e honestos, serve de lei para todos os outros. 28

As boas maneiras, transmitidas por uma pedagogia de imitação distinti­va, definiam as regras para uma aparência sensata e modesta. É um notório desvio na evolução de um gênero que materializava os hábitos comuns do comportamento indumentária, não sem desconfiança em relação às novida­des e à extravagência. O fantasioso continuava sendo condenado, mas o razoá­vel tornou-se civil. 29

Desse primeiro uso da palavra e dos temas que a acompanhavam, pas­samos imperceptivelmente à hipótese da moda como princípio de savoir-faire em sociedade e meio de estabilidade social em geral. Aceitar os costumes da época, sobretudo em matéria de vestir, tornou-se uma faculdade inerente à sociabilidade. Foi na polêmica moral e religiosa que teve início um descom­prometimento "em relação a possíveis conflitos entre a religião e os costumes". A doutrina da virtude da moda, que subentende a noção de boas maneiras, ajuda a relativizar a religião na esfera do decoro. Em face dessa retirada, certos autores na tradição do humanismo cristão foram além da oposição entre moda e devoção. Du Bosq dedicou um capítulo de seu Honnête femme a afastar os cristãos das roupas extravagantes e dos adornos e a aconselhar moderação em tudo. Em Du Bosq, a submissão aos costumes e à condição social reconciliou a

,. N. Faret, Honnéte homme ou l'art de plaire à la Cour, cit., pp. 179-180. :. F. de La Mothe Le Vayer, Opuscules ou petits traités, cit., pp. 208-259 (Des habits e de leur mode d ifféren­

te).

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tendência conservadora de uma sociedade desigual e cristã com uma preocu­pação pelas aparências, aceitável sem excesso no homem honesto.

Pode-se falar de uma indumentária do Antigo Regime?

Entre o reinado de Henrique IV e a ascensão de Luís XIV, a moda é fun­damental para qualquer relato sobre o desenvolvimento da indumentária do Antigo Regime. Força motora por trás da diversidade das aparências, ela foi retratada por pregadores, moralistas e até economistas como uma causa de desperdício e confusão, motivo pelo qual toda uma tendência rigorista tentou limitar-lhe os efeitos. Os sermões veiculavam a mesma mensagem que as leis suntuárias; o consumo de roupa devia ser governado por um princípio: a cada um segundo sua posição. A roupa estava, pois, no centro do debate sobre civi­lização, e as sociedades do período barroco viviam dilaceradas entre liberdade e rigor, entre instabilidade e artificio e fidelidade à natureza cristianizada. En­

tretanto, a mudança social, o florescimento da civilidade urbana e o aumento do consumo cortesão encorajaram o anseio por acomodação. Os manuais de boas maneiras aceitaram a necessidade de respeitar as práticas, os tratados aconselharam a submissão moderada aos costumes. Cada um devia parecer o que era, mas também podia parecer o que ambicionava ser.

Essa tensão básica explica a ambigüidade da idéia de uma indumentá­ria do Antigo Regime e a dificuldade de uma tentativa de compreender sua evolução e a transição para um outro sistema. Desse ponto de vista, o triunfo das diferenças é medido pelo progresso das singularidades e da individuali· dade dissociadas da posição social. Ele coincide com transformações técnicas e econômicas importantes, que atingiram seu apogeu na segunda metade do século XIX. Um aburguesamento geral das aparências levou a uma glorifica· ção da moda e a uma hostilidade contra o nivelamento das classes superiores. Novas normas de elegância e comportamento se impuseram a todos. A idade dos conformismos sociais começou com um aumento da difu são dos modelos e com uma renovação das convenções. Paris tornou-se o centro de um vasto comércio, agora de amplitude planetária, de roupas e adereços de luxo. Phi·

lippe Perrot mapeou esse desenvolvimento: nas obras de grandes escritores - incluindo Balzac, o primeiro a introduzir a moda na literatura - e de autores menores, leituras compósitas nas quais palavras e objetos se correspondem. Pinturas, desenhos e gravuras oferecem uma vívida galeria de personagens diversos, em que a imagem de moda dá o tom e a caricatura força o traço. A

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História, moda e sistemas indumentários do século XVII ao século XIX ~69

burguesia emergente e, em última análise, triunfante dominou a paisagem social da roupa e do vestir.

Meu projeto postula a existência de uma indumentária do Antigo Regime, com três principais características: inércia e imobilidade, sobretudo no que diz respeito às classes populares e aos meios rurais; uma convergência da roupa e da posição social; um desejo de controle, que impôs às autoridades as leis sun­tuárias e a todos os costumes, normas de etiqueta e conformismo. Vimos como esses princípios foram, no século XVII, de certo modo diluídos pelo crescimento da economia urbana e da moda e pela subseqüente confusão das posições so­ciais, que se aceleraram no século XVIII. Sabemos também que as leis suntuárias promoveram o crescimento da moda na França, ao mobilizarem a inventividade dos seus artesãos e ao darem à corte o papel de motor nas distinções indumentá­rias. Por fim, parece que não podemos mais olhar a sociedade setecentista como dominada por uma aristocracia agonizante, ameaçada pela burguesia e perden­do sua legitimidade sociaP0 Norbert Elias e Philippe Perrot, que compartilham dessa visão, não estão de todo corretos quando falam das "rendas estacionárias"31

da nobreza. A economia aristocrática não dera sua última palavra, e as conse­qüências sociais de sua supremacia não foram exatamente como sublinharam os autores. Isso ocorreu ou porque o modelo aristocrático acelerou a circulação dos signos, provocando· o colapso do antigo código indumentária e a prevalência do reino arbitrário da moda; ou porque um outro modelo burguês desafiou a imita­ção dos hábitos aristocráticos, impondo um outro estilo de consumo como meio de se distinguir das classes superiores, em nome de uma ideologia igualitária, que podia facilmente acomodar uma variedade de aparências. Um estudo de textos e arquivos ainda precisa ser feito, a fim de mostrar a interação e mesmo a coexistência dessas duas aspirações.32

De qualquer modo fica claro que a crítica da moda fazia parte da dupla tradição da oposição conservadora ao luxo (que, aliás, não era apanágio da burguesia; a Igreja teve sua participação, mais do que o Estado, uma vez que os inspetores das manufaturas encorajavam a produção, portanto o consu­mo) e da crítica burguesa em nome dos valores da economia e da austerida­de necessárias à acumulação de capitaJ.33 A legitimidade do consumo fizera

JO P. Perrot, Les dessus et les dessous de la bourgeoisie, une h istoire du uêtementau XIX' siêcle, cit., p. 35. ~ N. Elias, La société de Cour, cit. , pp. 44-45, apud P. Perrot, Les dessus et les dessous de la bourgeoisie, cit., p~ .

" O texto do abade Coyer utilizado por P. Perrot para mostrar a escalada da crítica dos imitadores da moda aristocrática retoma tradições antigas e deve ser visto sob essa luz.

33 O que se segue é resultado direto do seminário em comum que realizamos com J .-C. Perrot em 1985-1986. Gostaria de agradecer-lhe muito particularmente por me haver orien tado na interpretação econô­mica do consumo.

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70 eoG> Para uma história da indumentária

progressos desde o século XVII, pois estava profundamente ligada ao desen­volvimento da circulação monetária e à exaltação do comércio. "Todas as riquezas se resumem no consumo", escreveu Boisguilbert num panfle to de 1707; a roupa" e a indústria do vestuário tiraram força da noção de que o gasto dos ricos era uma das chaves do desenvolvimento econômico, mesmo que o dinheiro dos pobres fosse mais fecundo, uma vez que tinha um impacto maior sobre a produ ção. Os emblemas ideológicos e a imbricação do discurso moralista antigo e do moderno n ão devem nos cegar para a realidade da mu­dança. A moda representava a cartada simbólica n a batalha das aparências numa sociedade em que a distribuição e a difusão das riquezas estavam em processo de mudança, permitindo uma maior ou menor mobilidade social. Era uma questão para a nobreza e para a burguesia, para as elites e para os que ainda não haviam chegado.

A roupa de cima e a roupa de baixo no século XIX

O antigo sistema indumentária, entretanto, perdeu sua legalidade no ano II da. República,* em conseqüência das m edidas revolucionárias que pro­clamavam a liberdade de ação:

Pessoa alguma poderá constranger um cidadão ou cidadã a se vestir de uma determinada maneira, sob pena de ser considerada suspeita e trata­da como tal, e processada como perturbadora do sossego público; todos são livres para usar a roupa de seu sexo que lhe convenha.

Embora não destituído de uma certa dose de irrealidade (quem , afinal, nunca constrangeu alguém a vestir alguma coisa no domínio indumentária?), esse texto marcou uma ruptura fundamental. E essa é visível na transforma­ção que inverteu ou modificou os hábitos dos homens e das mulheres no co­meço do século XIX. No caso dos homens, uma completa mudança de direção teve início com a adoção das calças e do casaco, de um certo asseio e rigidez, de uma austeridade na forma, no tecido e na cor. O preto triunfou. Uma so­ciedade masculina, e sem cor, agora se vestia com me il faut, * * proclamando seu apego a noções de decência, correção, esforço, prudên cia e seriedade. A burguesia, sobriamente vestida, manifestava as virtudes adequadas ao capital e ao trabalho. Mas, ao mesmo tempo, sinais discretos criavam a necessária

• O ano 11 da República corresponde ao período que vai de 22-9-1 793 a 22-9-1 794. (Nota do tradutor.) Como se deve, ou seja, convenientemente. (Nota do tradutor.)