Rodovia BR-364

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encARte especiAl Homens e mulheres, jovens e crianças, famílias inteiras que já não tinham esperança de uma vida melhor e passaram a planejar um futuro diferente Rodovia BR-364 A história dos que vivem às margens da mais importante rodovia do Estado

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Rodovia BR-364 - Especial Jornal Página 20

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Rio Branco – Acre, QUINTA-FEIRA, 23 de junho de 20111 Página 20 www.pagina20.com.brencARte especiAl

Homens e mulheres, jovens e crianças, famílias inteiras que já não tinham esperança de uma vida melhor e passaram a planejar um futuro diferente

Rodovia BR-364A história dos que vivem às margens da mais importante rodovia do Estado

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Uma obra que vai integrar o Acre e transformar a vida nas cidades �TexTo: Tião ViTor �FoTos: sérgio Vale

Quem trafega nos 672 quilômetros da BR-364, no trajeto que liga a capital do Acre, Rio Branco, a Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Estado, sabe da importância dessa rodovia para

a integração e desenvolvimento do Acre. Sabe o que ela significa para as cidades que atravessa e sabe das dificuldades e desafios para construí-la. Mas são poucos os que conhecem o que ela realmente representa para aqueles cidadãos anônimos que vivem às suas margens. A estrada trouxe qualidade de vida e, com ela, a cidadania e a garantia de um dos direitos mais fundamentais do homem, que é o direito de ir e vir.

Durante décadas, essas pessoas sequer tinham o direito de visitar um amigo, um parente, pois a impiedosa estrada fazia das distâncias obstáculos quase intransponíveis. Vencê-los era tarefa para poucos. Essas pessoas viveram desassistidas do poder público durante muitos anos. Hoje, com a estrada reaberta e a garantia dada pelo governo do Estado de que ela permanecerá aberta ao tráfego de veículos mesmo durante o período de chuva, os moradores ao longo da BR-364 passam a ter nova vida e o direito de sonhar.

São homens e mulheres, jovens e crianças, famílias inteiras que já não tinham esperança de uma vida melhor e passaram a planejar um futuro diferente e se tornam donos de seus destinos.

Quem viaja com tempo e pode parar em algumas

residências na BR-364 pode ouvir muitas histórias inte-ressantes e se emocionar com relatos como o de dona Maria do Carmo da Silva Campos, 48 anos completados no últi-mo dia 10 de junho. Ela é ca-sada com Odilon Monteiro da Silva, 53. Os dois são casados há 27 anos e têm sete filhos. Moram na margem esquerda da rodovia a 38 quilômetros depois da cidade de Manuel Urbano, numa casinha sim-ples no alto de um barranco.

Conversar com dona Ma-ria do Carmo rejuvenesce. Ela é uma mulher simples e de aparência sofrida, mas é dona de um sorriso largo e de uma jovialidade comum apenas àqueles que nunca deixam de sonhar e que nun-ca se deixam vencer pelas di-ficuldades. Maria do Carmo e Odilon contam como era quando não existia estrada. Eles lembram que havia ape-nas uma picada no meio do mato. As tabocas cobriam o trajeto onde um dia os trato-res rasgaram a terra. A dis-tância que os separa de Ma-nuel Urbano não era vencida em menos de três dias.

“Saí várias vezes para Ma-nuel Urbano com cargas de borracha. Passava até três dias para chegar. Dormia na estrada escura, no meio da lama, sem comida e correndo todo tipo de risco”, lembra com tristeza Odilon. “Agora eu saio daqui a pé de manhã cedo e chego ainda de dia”, garante Maria do Carmo, que se gaba do feito nunca antes pensado. “Mas agora não pre-

ciso andar a pé, pois tem car-ro na porta toda hora.”

Odilon está contente, pois a notícia de que um novo su-permercado que deve se ins-talar em Manuel Urbano que tem a pretensão de comprar a produção dos agricultores das redondezas o fez vislum-brar um aumento nos seus ganhos. Sua propriedade tem 100 hectares e ele planta ma-caxeira, arroz, milho e outros grãos. Já pensa em ampliar a área plantada, algo que ja-mais imaginava fazer sem a garantia da estrada, pois tudo que plantasse mais do que aquilo que poderia consumir teria que deixar apodrecer no campo, já que não tinha a quem vender. Com a estra-da, veio também a energia. A qualidade de vida melho-rou sensivelmente. A energia possibilitou a compra de uma geladeira, televisão e outros eletrodomésticos.

“A gente agora pode guar-dar a carne na geladeira sem medo de perder”, alegra-se Odilon. “A gente vivia no escuro. Quando iluminava alguma coisa era com o com-bustol. Quando não tinha, o jeito era queimar o sernambi para poder ver alguma coisa de noite”, relembra. O clima de alegria é quebrado quando Maria do Carmo se lembra de pai, que morreu afogado. Por causa da distância, ela não pôde ver o corpo dele. Fo-ram dias de caminhada pela rodovia. Quando ela soube do ocorrido, o corpo já tinha sido sepultado. “Quando eu me lembro disso eu choro, pois nem o corpo de meu pai eu pude ver enterrado.”

Três dias para vencer apenas 38 quilômetros de estrada

Dona Maria do carmo agradece pela

oportunidade de voltar a sonhar com

um futuro para ela e para sua família

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Na escola, pela primeira vez Maria do Carmo merece muito mais do que menções em um texto sobre a BR-364. Ela e o marido Odilon re-presentam a história viva de quem viveu no sofrimento e no abandono. Um retrato fiel de quem teve que enfrentar enormes desafios para sobre-viver no isolamento. Mas eles são muito mais do que isso. São o retrato da esperança de dias melhores e a certeza de que, daqui para frente, pode--se viver um presente digno e lutar por um futuro melhor.

Nenhum de seus filhos co-nheceu a escola. Não havia nenhuma perto de sua casa.

“Ainda ontem passou a di-retora pegando o nome dos meninos, pois vão construir uma escola aqui perto. Eles agora vão poder estudar”, alegra-se Maria do Carmo. No meio da conversa ela afirma: “Agora, até eu vou estudar”. A frase é dita em meio a sor-risos orgulhosos. “Vai eu, vai ele [Odilon] e todos os me-ninos, pois a escola vai ficar bem aí.” O marido também sorri e afirma que está con-

tente de ir à escola junto com os filhos, mesmo já tendo pas-sado dos 50 anos. “A estrada trouxe tudo isso, pois ninguém nunca ouvia falar que ia ter es-cola por aqui. Eu, por exem-plo, nunca pisei numa escola, nunca pude estudar. Aprendi alguns nomes vendo as pesso-as lendo e eu escutando. Até o meu nome eu aprendi também assim”, emociona-se Maria do Carmo. “Este ano, eu já uma velha, vou poder estudar, se Deus quiser”, sorri de felici-dade. Bem mais à frente, já a 45 quilômetros de Manuel Ur-

bano, na escola José Augusto Marques de Araújo, alunos assistem todos os dias às aulas do professor Vanderlan da Sil-va Oliveira. É uma turma de 5ª série, com 17 alunos. A maio-ria mora a mais de um quilô-metro da escola. Uns chega-ram de bicicleta, outros vieram a pé e outros pegaram carona. Tudo isso era algo impossível de pensar há algum tempo.

“Os alunos que moram mais longe tinham dificuldade de chegar à escola porque a lama não deixava”, lembra o professor. Dulcenir de Souza

e Ronilson Lima da Silva, am-bos de 16 anos, moram a pou-co mais de três quilômetros da escola. Eles demoram mais de 15 minutos no trajeto, mas isso só é possível no período de estiagem. “A gente vem de bicicleta. Mas quando cho-ve, não tem jeito, não dá pra andar mesmo, pois o barro trava as rodas”, conta Dul-cenir. “Quando não dá para vir de bicicleta, não dá nem vontade de vir para a aula, já que a gente leva quase uma hora até chegar à escola”, la-menta Ronilson.

cavalos eram usados para socorrer até os tratores que tentavam vencer a rodovia durante o período de chuvas intensas

Odilon comemora a reabertura definitiva da estrada BR-364 foi um desafio para quem nela se aventurava

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A poucos quilômetros da casa de Maria do Carmo

e de Odilon, mora outro per-sonagem da BR-364. Ele se chama Arismar da Silva Mi-randa, 26 anos. Mas é conhe-cido mesmo como “Num”, um sujeito alegre que troca a letra R pelo L, igual ao Ceboli-nha, o personagem de Maurí-cio de Souza. “Num” é magro e de estatura mediana, mas é valente como poucos. Na re-gião ele é conhecido como matador de onça. Disse que já matou “umas quatro”. Mas só mata para defender a família e a criação de porcos e algumas cabeças de gado que cria em sua área de terra localizada há 30 quilômetros de Manuel Urbano. A última onça que matou faz pouco tempo e foi praticamente numa luta cor-poral com o felino.

“Nós estávamos moendo garapa. Aí ela comeu meus porcos, e minha mulher foi me chamar. Daí, eu voltei lá e bo-

tei os cachorros em cima dela, mas era de tarde e eu não con-segui matar”, disse. “No outro dia, ela passou aqui no igara-pé onde a gente toma banho. Aí eu botei os cachorros nela de novo e eles acuaram ela na mata. Foi aí que eu a matei. Eu dei um tiro nela e ela caiu no chão e correu. Eu fui atrás e os cachorros também. Eles já estavam pegando ela, estavam mordendo ela. Aí eu dei ou-tro tiro e errei. Ela pegou um cachorro meu. Eu tinha uma facona assim grande e eu ti-rei da bainha e só fiz soltar a espingarda e ‘avoei’ em cima dela. Ela deu um esturro assim e voou em cima de mim. Ela pensava que eu ia correr. Eu empurrei-lhe a faca nas coste-las dela e ela caiu”, relatou.

“Num” disse que não mata as onças por prazer, mas para se defender. Ele contou que na região havia muitas e que atacavam sempre a sua cria-ção. Ele disse que na proprie-

dade de um vizinho, as onças comeram dez porcos e diver-sas cabras que ele criava. “Se a gente não matar, elas acabam com tudo mesmo”, garante. “Num” é casado com Rai-munda, de 20 anos. Os dois têm quatro filhos e vivem do que plantam e colhem. Na semana passada, ele estava ti-rando madeira para construir uma nova casa. Ele quer que o pai venha morar na proprie-dade. A madeira é tirada no meio do mato e arrastada por um boi até a sua casa. Bois e burros sempre foram funda-mentais para ele.

“Aqui, na estrada, a gente só conseguia andar antes se fosse de burro ou no lom-bo de um boi, pois a lama era demais. A gente passa vários dias para chegar à cidade”, conta. “Era muito ruim viver aqui. Mas já me-lhorou muito. Agora a gen-te vai para a cidade quando quer, volta quando quer.”

Num O matador de onça

O leitor já se imaginou sofrendo um acidente

ou contraindo uma enfermi-dade grave e estando isolado no meio de um deserto? Não é algo agradável de imaginar, não é mesmo? Pois casos as-sim aconteciam e ainda acon-tecem em meio a outro tipo de deserto - o deserto ver-de da imensidão amazônica. Nele, as distâncias se medem em horas, dias ou semanas e, nesse contexto, o socorro se torna uma tarefa quase im-possível. Era em tal situação que viviam os moradores das margens da BR-364. Maria das Graças de Souza, 55 anos, sabe bem o que é isso. Ela é casada com Edmilson Ribeiro de Lima, 44 anos, tem seis fi-lhos e mora a 17 quilômetros depois de Manuel Urbano. Ela lembra como era quando a estrada não dava passagem e se via sem poder dar o so-corro adequado a um filho quando ele adoecia, ou mes-mo quando ela própria ou o marido passavam mal. Agora o socorro chega mais rápi-do. Ela conta dois casos que

O socorro chega mais rápido“num” não tem medo de onça, mas prefere evitar a lama da estrada

exemplificam muito bem essa mudança. Há alguns dias Ed-milson passou mal. Por sorte o asfalto já estava na sua por-ta. “Eram altas horas da noi-te. Nós só fizemos ligar para Manuel Urbano e, em pouco tempo, o carro da saúde che-gou e na mesma hora levou ele para o hospital”, contou. O caso mais grave aconteceu com ela própria. Há cerca de três meses ela caiu e quebrou o braço direito. Foi socorrida por um vizinho e levada para Manuel Urbano, onde recebeu todo o atendimento de emer-gência. Em seguida foi levada para Sena Madureira e depois para Rio Branco, quando rece-beu atendimento especializa-

do. “Se fosse naquele tempo, eu teria que ir de cavalo para Manuel Urbano, no meio da lama, correndo o risco de cair e piorar ainda mais.”

Isolado na periferia de Cruzeiro - Bem mais distan-te de Maria das Graças, já em Cruzeiro do Sul, mais espe-cificamente no bairro Miri-tizal, outro caso comprova a importância da estrada e das pontes ao longo da rodovia. Ali um homem agonizava horas sempre que tinha uma crise hepática, mesmo estan-do na periferia de Cruzeiro do Sul. Manoel da Cruz da Silva, 57 anos, sofre de hepatite e tem crises intensas muito do-

lorosas que o fazem gritar de dor. Quando elas vêm, a dor só passa depois que é medicado. O problema é que o Miritizal fica a poucos metros do centro de Cruzeiro, mas separado da ci-dade pelo rio Juruá. Como não havia pontes ligando a cidade ao bairro da periferia, chegar ao hospital era uma odisseia. Quando as crises eram notur-nas, a situação se complicava, já que era difícil encontrar uma catraia ainda em atividade ou um barqueiro que se dispusesse a cruzar o rio com o paciente.

No último dia 3, a ponte so-bre o Rio Juruá foi liberada para o tráfego em solenidade que também marcou a reabertura da BR-364. Nesse mesmo dia, Ma-

nuel se viu com uma nova crise. A dor intensa na barriga chegou de imediato. Rapidamente os fi-lhos chamaram um mototáxi e em menos de dez minutos ele estava sendo atendido no hos-pital-geral da cidade. “Quando isso acontecia, meus filhos me levavam nos braços até a beira do rio. De lá, a gente ia de ca-traia, quando tinha, se não, tinha que correr atrás de alguém que me levasse ao outro lado”, con-tou. “Dessa vez, foi bem rápido. Eu fui para o hospital e lá me atenderam em poucos minu-tos”, afirmou. “Essa ponte foi uma grande obra. Eu agora me sinto mais seguro, pois tenho certeza de que não vou mais morrer à mingua sem socorro.”

Maria das Graças Manoel da cruz

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São muitas as histórias en-contradas ao longo da BR-

364. A maioria delas mostra o quanto a vida das pessoas mu-dou e está mudando a partir de uma obra como a pavimen-tação da rodovia e a chegada do Programa Luz para Todos, que é realizado pelo governo federal em parceria com o go-verno do Estado. Os fios que transportam a energia estão esticados nas margens da es-trada e em cada casa a que che-gam levam muito mais que a luz, levam a praticidade da ge-ladeira ou do freezer, levam a informação e o entretenimen-to através do rádio ou da te-levisão e todo o conforto que os eletrodomésticos podem dar. A casa de Maria das Gra-ças citada acima é um exemplo disso. Ali ela tem uma vendi-nha, onde comercializa refri-gerantes, laticínios e outros produtos. Na sala, um apare-lho de som toca suas músicas preferidas e uma televisão está disposta na estante para ser as-sistida na hora das novelas ou nos programas preferidos dela e do marido Edmilson.

“Quando que a gente podia pensar em ter essas coisas aqui em casa? Nunca! Agora está tudo aí, graças à energia que chegou aqui na nossa porta. Antes era só escuridão e muita lama”, garante a mulher. Pou-co mais de 45 quilômetros de-pois de Tarauacá mora Juarez Ferreira de Almeida, a mulher Maria Antônia Alves da Silva e mais quatro filhos. Estão ali há mais de 15 anos. O local é um dos mais belos da região. A casa deles fica localizada um pouco abaixo da estrada e cercada por morros, uma bela paisagem. O casal conta com satisfação que a energia e a estrada alteraram suas vidas para melhor. “A gen-te fica mais tranquilo quando os filhos da gente vão para a aula. Não tem mais o perigo que tinha antes, não tem mais a lama que havia antes também. O medo agora é só os carros que passam aqui com veloci-dade, mas é só a gente ter mais cuidado”, afirma.

“Aqui em casa também melhorou, pois não precisa mais usar a lamparina, temos água gelada e a gente pode

guardar carne na geladeira, que não estraga mais”, relata. Bem mais à frente, no quilô-metro 641, a 160 quilômetros de Cruzeiro do Sul, uma ca-sinha se destaca pela simpli-cidade. Ela é uma pequena choupana, feita de madeira e coberta de palha. No quintal, muitas flores, pimenteiras, fruteiras e algo que chama atenção: uma antena para-bólica. Na casa mora o casal Raimundo Pinheiro da Silva e Adalgisa Batista da Silva, uma filha e alguns netos. “A televi-são é uma maravilha para es-sas crianças”, afirma Adalgisa. “A gente tem também uma geladeira. Mas o bom mesmo é ter luz de noite. Ter luz para iluminar a frente da casa e ter luz na cozinha.”

As parabólicas são comuns na maioria das casas. Quase todas as residências localizadas nas margens da estrada têm antenas do tipo. Sem elas, seria impossível sintonizar canais de televisão. Esse é um “luxo” que só foi possível graças aos investimentos feitos pelos go-vernos estadual e federal.

As leis de mercado são im-placáveis. São elas que

determinam os preços, e não adianta protestar. Quando a oferta é grande, os preços caem; quando o produto é escasso, o preço vai lá para cima. É a tal da lei da oferta e da procura. Nas cidades ao longo da rodo-via BR-364 essa lei é cumprida à risca. Quando a estrada está fechada, os produtos não che-gam àquelas localidades. Fru-tas, verduras, legumes e tudo mais começam a rarear nas prateleiras. É aí que os preços disparam. Isso porque, com as chuvas fortes que provocam o fechamento da estrada por até oito meses, fica impossível o transporte dessas mercadorias por via terrestre. Tudo chega por balsa através dos rios ou de avião. O custo do frete sobe bastante e acaba influenciando no preço de tudo.

Um quilo de feijão, por exemplo, pode ser vendido por até R$ 7 em Cruzeiro do Sul

quando a estrada está fechada. Este ano a estrada abriu mais cedo e a diferença já pode ser sentida com a queda dos pre-ços. “Os preços estão bem melhores. Do jeito que estava não dava para a gente comprar nada. Dou graças a Deus que essa estrada abriu”, disse a do-méstica Elizete Ferreira Farias. João Freitas Valente, granjeiro, também agradece a reabertura da estrada. Ele vendia a dúzia de ovos no comércio local a R$ 3,50 no período de chuva. Já os comerciantes vendiam no vare-jo a dúzia por até R$ 5. “Tudo fica mais caro com a estrada fechada. A ração é o que pesa mais”, explica João Freitas. “Agora a gente vende a dúzia por até R$ 2,50.”

Em Cruzeiro do Sul, o fei-jão já custa R$ 4, e o arroz, R$ 2,50. O centro de Cruzeiro do Sul fervilha nessa época do ano. O mercado é reabaste-cido e os preços despencam. Caminhões e mais caminhões

chegam todos os dias carrega-dos de mercadorias. É possível comprar não apenas alimentos, mas uma série de outras coisas, como roupas, panelas e até ele-troeletrônicos.

Em Feijó não é diferente. No centro da cidade, os cami-nhões param na praça e fazem a venda direta ao consumidor. Suely e o marido Bobys Sau-lino são proprietários de uma lanchonete em Rio Branco. Ele também é caminhoneiro e o casal tem ainda uma caminho-nete. Este ano eles alugaram a lanchonete, compraram merca-dorias - frutas e verduras, em sua maioria - e se aventuraram em Feijó. Só nos primeiros dez dias deste mês, o casal já tinha feito sete viagens levando cer-ca de sete mil quilos de produ-tos variados em cada uma. “A gente resolveu fazer um teste e deu muito certo. Daí resol-vemos trazer o caminhão e a caminhonete e demos muita sorte. A gente vende tudo em

Quintal da casa de Juarez e de Maria Antônia é decorada com belas flores. O

casal e os netos apreciam a tV e as comodidades que a energia trouxe

Vidas transformadas

um dia, no máximo um dia e meio”, contou Suely.

Eles vendem tudo na rua mesmo. Estacionam o cami-nhão na praça, montam uma barraca para se proteger do sol e oferecem os produtos. Clien-te não falta e o lucro é certo. A dona de casa Suzi Cardoso Sil-

va é uma das clientes. Ela disse que somente nesse período é possível se alimentar bem. “O quilo de tomate chega a R$ 7, mas agora a gente compra até por R$ 3. A gente só come bem quando a estrada abre, pois é difícil manter boa alimentação com os preços altos”, alegou.

Menos carestia: custo de vida cai nas cidades com a reabertura da rodovia

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Este ano a história da ro-dovia BR-364 muda com-

pletamente. Ela foi reaberta no início do mês e não deve mais fechar para o trafego de veículos, mesmo no período de chuvas. A garantia foi dada pelo governo do Estado. Esse também é um compromisso assumido pelo governador Tião Viana desde o período de campanha. Para concluir a estrada faltam apenas pouco mais de 70 quilômetros, distri-buídos em três trechos entre Manuel Urbano e Feijó. Em alguns desses trechos há mui-to ainda que se fazer, mas o Departamento de Estradas de Rodagem, Hidrovias e Infra-estrutura Aeroportuária (De-racre) garante que é possível deixar a estrada no ponto de garantir tráfego o ano inteiro. O diretor-presidente do De-racre, engenheiro Marcus Ale-xandre Médici, explicou que o problema maior é a drenagem.

Ele disse que a obra da rodovia exige uma grande es-trutura para garantir o bom escoamento das águas plu-viais. “Enquanto no Vale do Acre a média chega a ser um bueiro por quilômetro, na BR para Cruzeiro a média é de três bueiros por quilômetro. Só no trecho Sena/Feijó, nós fizemos dez pontes médias e grandes. A quantidade de curso d’água que a gente tem que transpor é muito gran-de”, explica o diretor. Alexan-dre reforça que as obras nos trechos em questão estão se concentrando na construção dos bueiros e galerias, evitan-do assim a formação dos ato-leiros que impedem o tráfego de veículos.

Depois de prontos, as empresas que trabalham na estrada devem concluir as bases de terraplanagem, permitindo que a estrada se

torne estável, mesmo não tendo ainda a cobertura as-fáltica. “Nós temos cerca de quatro meses para fazer esse trabalho. É tempo mais do que suficiente, pois se esse trabalho estiver concluí-do, daí para frente é só dar a manutenção para evitar que as chuvas provoquem o fechamento da estrada”, garante Marcos Alexandre. O diretor do Deracre afir-ma que o governo está com cuidado maior para evitar que a estrada seja prejudica-da com o excesso de peso. Duas balanças rodoviárias foram instaladas ao longo da rodovia. Caminhões com peso acima do permitido são proibidos de passar.

Marcus Alexandre faz um apelo para que as pessoas tenham cuidado ao trafegar pela rodovia. Ele lembrou que há muitas máquinas na pista. Há também enormes rebanhos de gado que es-tão sendo transportados. Os riscos de acidente são grandes quando se transita com velocidade. Ele lem-bra, também, que o período não está propício para quem trafega em carros pequenos, haja vista que faz poucos dias que a estrada foi libera-da, por isso há ainda alguns trechos onde o tráfego para esse tipo de veículo não é re-comendado. Ele orienta que as viagens com veículos de passeio sejam concentradas a partir de julho, quando a estrada dará melhores con-dições de tráfego.

Seis empresas trabalham nas obras de pavimentação da

BR-364. Nos canteiros espa-lhados ao longo da rodovia, é possível encontrar brasileiros de diversas naturalidades. São operários, homens e mulheres que vieram do Sul, do Centro--Oeste, do Nordeste, Sudeste e dos demais Estados do Norte. São engenheiros, operadores de máquinas, pedreiros e ajudantes de serviços gerais. Voltam para suas cidades quando chegam as chuvas e as obras param, mas retornam no ano seguinte quan-do as máquinas voltam a rodar nos trechos, enquanto outros ficam por aqui e acabam se fi-xando no Acre. Esse é o caso do apontador José dos Reis. Ele trabalha na empresa JM, é de Brasília e está trabalhando nas obras da BR-364 desde 2005, mas já se considera acreano.

Gente de todo o Brasil se encontra nas

obras da rodovia

“Eu casei com uma moça de Tarauacá e já estou moran-do na cidade. Não penso em sair mais daqui”, conta, alegre, o operário. Edinalva Evan-gelista (foto) é do Maranhão. Ela trabalha como técnica em segurança do trabalho há três anos, mas retorna para seu

Estado sempre que as chuvas impedem o trabalho e volta quando a estiagem chega. “Eu tenho minha família lá, mas gosto muito daqui. É um lugar muito bom para se viver”, elo-giou. Os acreanos são a maioria e muitos deles aproveitam para aprender com os companhei-ros que vêm de fora. Antônio Ivo trabalha há três anos como operador de máquinas. É ele quem manobra a vibroacaba-dora, a máquina que coloca o asfalto na pista. Antes ele era apenas mais um operário sem muita qualificação.

“Eu ajudava, mas não sa-bia operar nenhuma máquina. Daí, fiz amizade com um ope-rador de fora e ele prometeu que ia me ensinar. Fui olhan-do e ele me explicando. Agora eu opero a maioria dessas má-quinas”, afirmou Ivo.

Deracre: “A estrada não fechará mais”

Máquinas trabalham em ritmo

acelerado para garantir o tráfego de

veículos em definitivo a partir de agora

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Os desafios para construir a rodovia BR-364

Ao todo, o trecho acreano da BR-364 tem 56 pontes. 47 delas estão

entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul. É nesse trecho, também, que estão as mais belas e mais modernas pon-tes da Amazônia, com destaque para a ponte sobre o Rio Juruá, com 550 metros. “Nós temos pontes de todos os tipos. Temos pontes rodoviárias, que são as convencionais, aquelas de viga reta em concreto. Temos pontes com tecnologias mais avançadas, que é o caso da ponte sobre o Rio Caeté, que foi construída em viga metálica, e a do rio Purus, que tem viga metálica e também outra tecnologia chamada balanço sucessivo, que é igual à quarta ponte de Rio Branco. E tem as estaia-das.

A do Rio Envira e a do Rio Taraua-cá são as do tipo extradorso, que têm

os estais, mas também têm função es-trutural no tabuleiro, e tem a do Rio Juruá, que é 100% estaiada”, declarou Marcus Alexandre. De acordo com o diretor do Deracre, é a do Juruá a ponte mais moderna de todas.

Ele explica que ela reúne todas as tecnologias usadas nas demais e ain-da uma tecnologia que a faz suportar abalos sísmicos, já que a região do Vale do Juruá é a mais propícia no Estado a sofrer esse tipo de acidente geológico. A ponte do Juruá deve ser inaugurada em agosto. Ela é suspen-sa por uma única pilastra central, que mede 56 metros de altura e por 22 es-tais, que são cabos de aço fixados do alto da pilastra central para a base da ponte em concreto. Os estais dão um visual diferenciado à ponte, que pare-ce flutuar sobre o rio.

Know-how na construção de pontes

Construir na Amazônia não é coisa fácil. As intem-péries se mostram obstácu-los implacáveis. Além disso, no Acre não há materiais básicos para a obra, como a pedra, por exemplo. Para se ter uma ideia das dificulda-des que a isso impõe, o sei-xo, uma das matérias-primas utilizadas na obra, vem da fronteira com a Colômbia, a 3.409 quilômetros. Ele é transportado por balsas e demora cerca de 60 dias para

percorrer o caminho. Já a brita vem das pedreiras de Rondônia. Quando há a pos-sibilidade de tráfego, o mate-rial vem pela rodovia. Quan-do o período é chuvoso, a brita é levada de caminhão até Porto Velho e de lá é em-barcada em balsas e levadas à região acreana onde a obra é realizada. O cimento, em sua maioria, vem de Manaus e também é transportado por via fluvial. O aço vem de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Ele chega de carreta até Porto Velho e depois é em-barcado em balsas e trans-portado até o Acre. Desde que o governo do Estado decidiu pela conclusão da

obra da BR-364, há 13 anos, que essa logística é montada, ano após anos. Uma grande soma de recursos é investi-da só para garantir que não falte material nos canteiros de obra, encarecendo em muito o custo do quilôme-tro de estrada. Este ano o governo do Estado fez a compra antecipada dos in-sumos e aproveitou a cheia dos rios para garantir o transporte dos materiais até o Acre. Tudo o que vai precisar para o trabalho na rodovia este ano já foi ad-quirido e já se encontra no Estado desde o início do ano. Veja na tabela ao lado, a relação de insumos.

ponte sobre o Rio Juruá é uma das mais bonitas e modernas já construídas na Amazônia

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Uma viagem épica pelas veredas

da BR-364

Rio Branco – Acre, QUINTA-FEIRA, 23 de junho de 2011Página 20www.pagina20.com.br

A rodovia BR-364 que se vê hoje não era mais do que um rumo no ano de 1995, uma vereda rasgando as matas do

Acre de uma ponta a outra. Não é preciso repetir que só se aventurava por ela quem tinha estrita necessidade, pois

as intempéries tornavam a viagem uma epopeia. Naquele ano, um grupo de jornalistas resolveu encarar o desafio

de cruzar o Estado do Vale do Acre ao Vale do Juruá pela estrada. A viagem que se faz hoje em poucas horas

levou longos 20 dias. Entre esses jornalistas estava o hoje apresentador Washington Aquino e o fotógrafo

Sérgio Vale. Entre os dias 10 e 12 passados, eles repetiram a viagem, dessa vez de carro. Foram e

voltaram e aproveitaram para parar em locais que conheceram naquele ano. Eles contaram o quanto sofreram para vencer a lama e a mata,

que em muitos trechos impediam que a luz do sol batesse no leito da via.

“A viagem foi feita no fim de julho, no auge do verão”, disse o jornalista. “Nós fomos de Toyota [Bandeirantes] de Rio

Branco até Sena Madureira. Lá tinha uma comitiva de burro nos esperando e também dois mateiros que eram os

nossos guias, pois ninguém sabia onde era a estrada e onde era a mata”, relembra

Aquino. “Eram 16 animais para nove pessoas”, completa Sérgio Vale.

A história dos dois foi contada em um restaurante logo após o Rio Acurauá,

onde hoje uma ponte facilita a travessia. “Nesse rio, eu tive que passar amarrado

numa corda, pois eu não sei nadar e não tinha ponte para atravessar”, disse

o apresentador. Além dos burros, o grupo também viajou em cavalos e a

pé. Washington Aquino disse que, em certo trecho, não conseguia mais andar.

O meu pé estava em carne viva devido à bota que machucava. Tive que esperar os ferimentos sararem um pouco para poder continuar, contou. O resultado da viagem

se transformou em uma reportagem premiada. Ela ganhou o Prêmio Nacional de Mídia, promovido pela Confederação

Nacional dos Transportes (CNT).