Rodrigo Carvalho Marques Dourado - Bonecas Falando Para o Mundo
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Bonecas falando para o mundo: (Trans)identidades na cena brasileira Rodrigo Carvalho Marques Dourado Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas - UFBA Doutorando - Corpos e(m) Performance - Or. Prof. Dr. Fernando Passos Bolsa CAPES Jornalista e Encenador Resumo: O trabalho investiga as relaes histricas, estticas e polticas entre os grupos Vivencial, Trupe do Barulho e Coletivo Angu de Teatro, numa panormica da cena queer recifense dos anos 70 do Sculo XX atualidade. Analisamos como esse trs grupos representam o desviante sexual, com suas teatralidades mestias e performativas, e perguntamos por que essas narrativas encontram ecos to apaixonados em audincias to amplas? Suspeitamos que no somente por metaforizarem uma experincia subalterna ligada s sexualidades, mas por traduzirem uma identidade original impossvel, um desvio permanente, criando um audincia solidria na diffrance que sintetiza a (trans)identidade brasileira. Palavras-chave: queer, sexualidades, performatividade, subalternidade, identidades
Em 1974, surge em Olinda cidade vizinha ao Recife o grupo de Teatro
Vivencial, formado por integrantes do movimento pastoral da Arquidiocese de Olinda e
Recife. Tendo como objetivo dar voz aos jovens da periferia da cidade e utilizando como
material o noticirio jornalstico, crnicas, contos, poemas e textos de autores como Jean
Genet e Bertold Brecht, o primeiro espetculo do grupo, intitulado Vivencial I, chama
imediatamente ateno do movimento artstico da cidade, tornando-se um repentino
sucesso. A partir de ento, o Vivencial constroi uma meterica trajetria (1974-1982) que
marca para sempre a cena local. Com cerca de vinte espetculos, performances e shows
e a criao de um caf-teatro na regio perifrica do manguezal que divide Recife e Olinda
o Vivencial se torna o principal aglutinador da cena de vanguarda da cidade; um foco de
resistncia artstica e desbundada ao Regime Militar.
Em sua curta trajetria, o Vivencial estabelece um dilogo permanente com a
cena noturna da cidade. Em seu caf-teatro, tinham lugar shows musicais, performances de
naturezas diversas e nmeros de transformistas. Com o tempo, o espao, que freqentado
pela classe mdia intelectualizada da cidade, vai cedendo cada vez maior espao aos
nmeros de transformistas e essa se torna a principal marca da casa e do grupo. Bonecas
falando para o mundo o espetculo aglutinador dessas performances e, em seu ttulo,
parodia o tradicional slogan da Rdio Jornal do Comrcio, Pernambuco falando para o
mundo, desafiando a cultura machista e penetradora local.
Em 1982, em virtude da desagregao de seus membros, o Vivencial fecha as
portas. Mas sua chama no se apaga. Menos de dez anos depois, em 1991, estreia o
espetculo Cinderela, a histria que sua me no contou, de autoria de Henrique Celibi.
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Ele, que era um pr-adolescente poca do Vivencial e foi praticamente criado nos
camarins do grupo, retoma a verve anrquica, satrica e homossexual do grupo olindense e
faz de Cinderela... aliado a um competentssimo elenco de comediantes - o maior
sucesso de bilheteria da histria do teatro pernambucano, em cartaz por mais de uma
dcada.
Para seus detratores, o espetculo um subproduto da flama subversiva das
vivecas (como eram chamados os integrantes do grupo de Olinda), um remanescente
prdigo da esttica vivencialesca, calcado no riso popular, no grotesco. Mas a verdade
que Cinderela, a histria que sua me no contou coloca em cena novamente a figura do
transformista e a cultura da periferia recifense, tensionando atravs do riso - as
identidades sexuais contemporneas e a condio subalterna do brasileiro. A Trupe do
Barulho (grupo criador do espetculo) se torna, assim, a mais bem sucedida companhia
profissional do teatro pernambucano, apostando na esttica transformista e na comicidade,
completando em 2010, dezenove anos de carreira, com mais de dez espetculos no
curriculum.
J nos anos 2000, um outro rebento Vivencialesco nasce: O Coletivo Angu de
Teatro. O grupo encena em 2004, Angu de Sangue, com textos do autor pernambucano
(radicado em SP) Marcelo Freire. A montagem, com direo de Marcondes Lima, aborda a
experincia urbana do Recife: violncia, prostituio, misria. E investe fortemente na
questo homoertica. Alm disso, o espetculo traz um quadro que homenageia Pernalonga
(ator-transformista), cone do Vivencial, encenando a tragdia de sua morte: assassinado
por ladres, o ator teve socorro negado por populares em virtude de sua soropositividade. O
grupo assume desde j seu dbito e sua ligao com a esttica Vivencialesca. At que em
2007 encena pera, com textos de Newton Moreno (outro autor pernambucano radicado
em SP), e estabelece em definitivo seu parentesco com as vivecas. O espetculo aborda de
maneira direta a questo da homoafetividade e tem seus quadros intercalados por nmeros
de transformismo.
Se por um lado, a prtica transformista (trans)versaliza a produo desses trs
grupos, neles podemos verificar filiaes com uma cena performativa como 1) o apreo
pelas formas fragmentrias e pela matria textual no dramtica; 2) os procedimentos
pardicos; 3) a permanente intertextualidade, que sinaliza para impureza e o hibridismo das
formas; 4) bem como um permanente dilogo com as linguagens udiovisuais.
Ao investigar as relaes histricas, estticas e polticas entre os trabalhos
desses trs grupos, numa trajetria de quase quarenta anos da cena queer recifense,
verificamos que, apesar do foco desta cena estar nas identidades sexuais contemporneas,
seu discurso d voz a uma multido de subalternos, que com ele se identificam de maneira
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apaixonada. Nesse sentido, observamos como esses conjuntos operam deslocamentos
formais no panorama teatral da cidade, na direo de uma cena performativa e mestia.
Para capturar a dimenso transgressiva dessa cena ao promover deslizamentos
nas representaes cannicas da identidade local e brasileira, utilizamos como aporte
terico a noo de (des)identidade presente nas elaboraes de Jos Esteban Muoz
(1999), bem como alguns conceitos definitivos para o debate sobre as identidades
contemporneas, como a noo de diffrance oriunda de Jacques Derrida. Balizamos ainda
nossa investigao no pensamento de Judith Butler (1990/2003) e nos Estudos Queer
particularmente nos conceitos de Pardia e Performance de Gnero - e em suas
articulaes com o pensamento ps-colonial de autores como Homi Bhabha (1994/2007) e
Beatriz Preciado (2007).
Muoz (1999: 196) v em algumas prticas transformistas (re)apropriaes e
(des)apropriaes dos objetos culturais e discursos hegemnicos historicamente elaborados
para oprimir homossexuais, mulheres, negros e todos os outros da cultura heterocentrada
branca, masculina e euro-americana. Para ele, essas apropriaes servem para desafiar as
pretenses totalitrias e de verdade desses discursos, promovendo, ao mesmo tempo,
reiteraes e reciclagens, que (de)formam e (re)formam as narrativas cannicas sobre o
mundo.
Seu pensamento faz eco s ideias de Butler, Bhabha e Preciado e todos
parecem ter como ponto de partida o postulado ps-estruturalista, em especial as
elaboraes de Jacques Derrida em torno da Diffrance. Os Estudos Queer apropriam-se
desse conceito, questionando a presena de um masculino ou de um feminino original,
lanando mo das prticas do transformismo e do travestismo como emblemas da ausncia
de um original, da negatividade da presena.
A prtica do transformismo nos grupos Vivencial, Trupe do Barulho e Coletivo
Angu parece ter algo bastante importante a nos dizer, no somente numa perspectiva das
sexualidades, mas, de maneira ampliada, num debate sobre a identidade subalterna, que
abrange questes de classe, etnia, gnero e localismos. Tomado nessa perspectiva, o queer
assume uma dimenso poltica muito maior que aquela das sexualidades mesmo que seja
por ela articulada na direo de uma multido queer, como queria Preciado (2007), uma
nao de proscritos de toda sorte que se identificariam e promoveriam coalizes
estratgicas a partir do reconhecimento de suas impurezas. O que para ns torna-se uma
hiptese razovel para compreender o sucesso e a empatia desses conjuntos junto ao
pblico pernambucano.
Ao imitar o ideal de feminilidade, o transformista parodia a identidade da mulher,
promovendo deslizamentos, fraturando sua pretensa autenticidade, apropriando-se dela de
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maneira deformadora. Nesse sentido, para ns, o trabalho dos grupos que pretendemos
estudar lida atravs da figura do transformista - diretamente com a ideia de imitao, nos
termos em que Bhabha (1994/2007) analisou a condio do sujeito colonial, desenvolvendo
a noo de Mmica, que seria um acordo entre a imitao da identidade do dominador -
necessria ao estado de sujeio e a produo de uma diferena, de uma mudana.
Elaborando, assim, uma linguagem em si mesma fronteiria, fruto de inmeras
tradues, contaminaes e deslocamentos, esses grupos se negam a afirmar a existncia
de um lugar originrio e puro (PRECIADO, 2007: 392, 393).
Vo se produzir assim uma srie de escritos fronteirios, mestios, bilnges ou mesmo multilnges, como o caso do clssico de Gloria Anzaldua, Borderland/La Frontera (1987). Surge assim um conjunto de noes como transculturao, contraponto, coiote, malinche, bastarda, ciborgue, vrus e dildo que deslegitimam a pureza, a teleologia e a unidimensionalidade das representaes coloniais, sexuais e cientficas dominantes.1 (PRECIADO, 2007: 390, 391).
precisamente essa produo ruidosa, essa fala fronteiria, entre a norma e o
desvio, que as prticas do transformismo colocaro em evidncia. Assim, debruamo-nos
sobre o trabalho dos trs grupos em questo, para entender em que medida a presena
transformista, como eixo dessa cena, traduz e metaforiza potica e politicamente a condio
subalterna brasileira e nossa (trans)identidade.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BHABHA, Homi. O local da cultura (1994). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007; BUTLER, Judith. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003; MUOZ, Jos Esteban. Disidentifications: Queers of Color and the Performance of Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999; PRECIADO, Beatriz. Multides queer: notas para uma poltica dos anormais. Disponvel em http://www.rizoma.net/interna.php?id=216&secao=desbunde. Acesso em 22 de Maio de 2007.
1 Se van a producir as una serie de escritos fronterizos, mestizos, bilinges o incluso multilinges, como es el caso del clsico de Gloria Anzaldua, Borderlands/La Frontera (1987). Surgen as un conjunto de nociones como transculturacin, contrapunteo, coyote, Malinche, bastarda, cyborg, virus y dildo que deslegitiman la pureza, la teleologa y la unidimensionalidad de las representaciones coloniales, sexuales y cientficas dominantes.