Rodrigo Naves Uma Azar Histórico

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  • UM AZAR HISTRICODESENCONTROS ENTRE MODERNO E

    CONTEMPORNEO NA ARTE BRASILEIRA1

    Rodrigo Naves

    RESUMOO artigo descreve um movimento complexo e contraditrio nas artes brasileiras entre fins dadcada de 1950 e comeo dos anos 90. No exato momento em que as obras de nossos melhoresartistas modernos obtinham uma visibilidade e uma compreenso compatveis com sua quali-dade esttica, rupturas artsticas que se do nos Estados Unidos e na Europa contra a autonomiada experincia esttica defendida pelos modernos, em nome de uma aproximao entre arte evida, acabam por minar tal movimento de formao do gosto. A forte presena desses pa-rmetros levar a um estreitamento de nossa arte moderna, agora medida a partir de critriosalheios sua origem, bem como a uma sobrevalorizao das obras de Hlio Oiticica e LygiaClark, em detrimento de vrios de seus contemporneos.Palavras-chave: arte moderna brasileira; arte contempornea; Lygia Clark; Hlio Oiticica.

    SUMMARYThe article describes a complex and contradictory movement in Brazilian arts between the endof the 1950's and the beginning of the 1990's. At the same time that works of the best Brazilianmodem artists reached visibility and understanding according to their esthetical quality, artisticbreakdowns in the United States and Europe against the autonomy of esthetical experienceadvocated by the moderns, in name of a closer relation between art and life, ended upundermining that movement of taste formation. The strong presence of these parameters leadto a shortening of the Brazilian modern art, measured now through an alien criteria, as well asan overevaluation of Hlio Oiticica' and Lygia Clark's works, in prejudice of other contempo-rary artists.Keywords: Brazilian modern art; contemporary art; Lygia Clark; Hlio Oiticica.

    (1) Este ensaio serviu de base minha exposio no colquio"Modernismos no Brasil 80anos: interpretaes", organi-zado pelo Museu de Arte Mo-derna de So Paulo por oca-sio da exposio das coleesCisneros e Nemirovsky no pri-meiro semestre deste ano. Paraa realizao deste texto conteicom a ajuda inestimvel de Gi-ovana Milani Bedusque. Agra-deo ainda as informaes da-das por Carlos Zilio, Paulo

    Para Maristela Bouzas, in memoriam.

    Poucas vezes tivemos a oportunidade de ver reunidas num mesmoespao tantas obras de arte brasileiras de qualidade como nessa seleo dascolees Cisneros e Nemirovsky apresentadas no Museu de Arte Modernade So Paulo. Colees privadas envolvem escolhas afetivas, juzos pessoais,idiossincrasias e, hoje em dia, at a colaborao de especialistas, e por issomesmo no tm o compromisso de reunir amostragens significativas deperodos histricos, de vertentes artsticas ou de toda a arte de um pas, comoseria de se esperar de instituies pblicas ligadas s artes visuais. H por

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    certo lacunas, irregularidades e desnveis em ambas as colees, mas no essa a impresso que prevalece quando, ao deixarmos a exposio, procura-mos trazer mente as experincias que mais despertaram nossa sensibilida-de. Ao menos para mim, ficaram a lembrana de um conjunto pontuado porvrios momentos altos alguns realmente tocantes e a quase convicode que talvez tenhamos criado, mesmo que tardiamente, um conjunto ra-zoavelmente diversificado e qualitativamente significativo de obras moder-nas que, por fim, adquiriram um considervel reconhecimento pblico e umforte peso na formao da arte que hoje se realiza no pas.

    No entanto, no creio que seja obra do acaso o fato de exposiesdesse nvel ocorrerem apenas nos nossos dias. Digo mais: h poucos anosexposies e colees como essas seriam impensveis, sobretudo se conside-rarmos que uma delas foi reunida fora do pas, na Venezuela, o que supeque a relevncia de parcela da arte brasileira tenha ultrapassado nossasfronteiras e conquistado fora artstica em outros centros. Faz muito poucotempo que condies e critrios rigorosos relativos a obras de arte ganharamuma razovel dimenso pblica no Brasil. Para ser um pouco mais preciso:de uns quinze anos para c, se tanto. Nesse sentido, penso que a coleoNemirovsky que realizou a maior parte de suas aquisies nos anos 1960e 702 se ressente de juzos pouco amadurecidos, que a discusso da pocaainda no permitira que se delineassem.

    Quando as colees privadas passam a assumir valores artsticos quevo alm da simples inclinao pessoal ou dos valores apontados pelomercado, creio que temos um indicador de que comeou a se constituir nopas um meio de arte mais arejado e em contato com as mais importantesdiscusses em torno dos trabalhos de arte as que envolvem seu valoresttico e seu significado. Duas outras exposies recentes a coleoAdolpho Leirner e a coleo Dulce e Joo Carlos Figueiredo Ferraz, quetambm tiveram lugar no MAM-SP, respectivamente em 1998 e 2001 revelam como nosso meio artstico tem ganhado em discernimento e quali-dade. Assim, aos poucos vai se estabelecendo um jogo enriquecedor entrecolees pblicas e privadas, j que as ltimas precisam de certo modoincorporar como critrio a possibilidade de vir a mostrar-se publicamente, oque envolve a considerao de juzos que minimamente justifiquem suasescolhas.

    Mas nem sempre as coisas foram assim. At os anos 1970 a artebrasileira tinha uma avaliao crtica muito semelhante sua visibilidade:pouca, precria, conservadora. Os acadmicos3 no apenas tinham valor demercado, como tambm ocupavam uma posio pblica prestigiosa, anima-da pelo ensino tradicional das belas-artes e pelo nacionalismo autoritrioque vinha desde os anos do varguismo. No plano decididamente artstico,porm, eram os modernistas ligados ao iderio da Semana de 22 que aindadavam as cartas na mirrada participao que as artes plsticas tinham nomeio cultural e artstico do pas. Portinari, Di Cavalcanti de longe osartistas de maior projeo pblica , Anita Malfatti, Tarsila do Amaral,Brecheret, Rego Monteiro, Lasar Segall, Ccero Dias pareciam resumir as

    Venancio Filho, Raquel Arnaude Rubens Gerchman. Evidente-mente, toda a responsabilida-de pelo manejo dessas infor-maes cabe exclusivamente amim. Sou grato tambm a Al-berto Tassinari, Nuno Ramos eRoberto Conduru, por vriassugestes e comentrios, e aIvo Mesquita, por ter me enco-mendado este trabalho.

    (2) Ver Milliet, Maria Alice. "Acoleo Nemirovsky: breve his-trico". In: Espelho selvagemarte moderna no Brasil da pri-meira metade do sculo XX.Sao Paulo: MAM, 2002, p. 33.

    (3) Evidentemente nem todosos artistas da passagem do s-culo XIX para o XX devem serconsiderados acadmicos. Cas-tagneto que o diga. No entan-to, a falta de critrios fez queat recentemente todos essesartistas fossem postos no mes-mo saco, interessando sejacomo antigidade requintada,seja como documento de po-ca. Uma avaliao crtica dessaproduo ainda est por serfeita. E um certo revivalismodos acadmicos que se nota noar atualmente apenas recolo-ca, em bases aparentementeeruditas, a velha barafunda desempre.

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    ambies e singularidades da arte brasileira. A essa altura talvez apenasAlfredo Volpi reunisse ao mesmo tempo uma obra de alta qualidade e umreconhecimento considervel.

    Certamente quase todos os modernistas chegaram a produzir trabalhosde interesse, embora a descontinuidade e a irregularidade da grande maioriade suas obras revelem mais os limites de seus projetos do que suas potenciali-dades. Contudo, no foi em seu desnvel que, em geral, esses trabalhos foramavaliados. Seu profundo comprometimento com a construo de uma identi-dade nacional de resto, uma meta de toda a Semana de 22, mas que teve napoesia e na literatura uma interpretao muito mais complexa e menosedificante que nas artes visuais parecia conduzi-los naturalmente a umafeio inteiria, apropriada a um projeto que, tambm ele, buscava criar umaimagem sem fraturas do Brasil. Mesmo quando procuravam denunciar nossasmazelas sociais, como no caso de Portinari, acalentava-se a esperana de que,pela compaixo, aquelas desigualdades se redimiriam e uma nova unidadesocial surgiria no horizonte. E foi assim, como conjuntos homogneos eharmnicos, que esses trabalhos, por muito tempo, foram considerados. Deresto, penso que foi esse compromisso com a edificao de um imaginriopositivo a razo de quase todos esses artistas manterem em relao a seusmeios expressivos fossem eles pictricos ou escultricos uma atitude decomedimento e de pouca radicalidade, uma vez que a preocupao de firmarcomunicativamente os smbolos que construam mulatas, camponeses ouestranhas figuras semifolclricas necessariamente pedia de seus trabalhosum certo compromisso com formas tradicionais de percepo.

    Mas se at os anos 1970 nosso meio artstico ainda se via s voltas comquestes pr-modernas, desde os anos 50, e sobretudo a partir dos anos 60,artistas de diferentes geraes e variadas orientaes artsticas vinham pro-duzindo obras que aos poucos constituam um solo artstico cuja densida-de e diversidade eram at ento desconhecidas no pas. Artistas to dis-tintos como Oswaldo Goeldi que morre em 1961, mas que at os anos 50vinha construindo uma obra quase sem paralelo no pas , Lygia Clark,Weissmann, Barsotti, Hlio Oiticica, Amilcar de Castro, Lygia Pape, Guig-nard que, na sua inconstncia, realiza na dcada de 60 uma pintura admi-rvel , Willys de Castro, Milton Dacosta, Maria Leontina, Volpi, Iber Ca-margo, Sergio Camargo, a atualizao intelectual proporcionada pelos con-cretos de So Paulo que nem sempre se traduziu em obras de artesignificativas e, quem sabe, Rebolo, o mineiro Celso Renato e o paranaen-se Miguel Bakun4 a essa altura j tinham praticamente vislumbrado o sentidode suas intuies, embora no tivessem um reconhecimento pblico e umacompreenso altura de sua produo. E no precisamos criar novasmitologias: embora o trabalho desses artistas seja, na mdia, bem superior aoda gerao modernista, h tambm a muito desnvel, desigualdade, fins decarreira melanclicos, incompreenso do significado da prpria obra e odiabo a quatro.

    A efervescncia poltica e cultural dos anos 1960, porm, tratar demover as geraes de artistas mais jovens na direo da conquista de uma

    (4) Quanto a Rebolo, Celso Re-nato e Miguel Bakun evito ju-zos mais afirmativos porqueno tive a oportunidade de versuficientemente suas pinturas.Duas outras obras que talvezpudessem tambm ser consi-deradas detidamente so a dePancetti e a de Bandeira.

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    maior visibilidade cultural, o que, em boa medida, j havia sido alcanadopor quase todas as outras artes. A mostra Opinio 65, organizada por JeanBoghici e Ceres Franco e realizada no MAM-Rio, ento o principal plo dasartes visuais no Rio de Janeiro , proporciona ao trabalho daqueles artistasuma divulgao poucas vezes alcanada no pas. Artistas brasileiros entreeles Antnio Dias, Carlos Vergara, Hlio Oiticica, Waldemar Cordeiro, Ru-bens Gerchman, Gasto Manoel Henrique e treze artistas europeusrealizam mais do que apenas uma exposio coletiva. Em sua interpretaosingular da voga p o p que ento se espraiava por todo o mundo, buscavamcriar uma situao nova no meio de arte brasileiro, uma ao em conjuntoque, embora no partisse de um grupo homogneo como as exposiesde concretos e neoconcretos , coordenava esforos e fazia avanar adiscusso em torno da arte que se produzia no Brasil. E realmente poucasvezes uma exposio de artes plsticas alcanou tanta repercusso no pas.

    No ano seguinte, Opinio 66 no consegue fazer o mesmo barulho daexposio anterior. Traz porm novidades que sero importantes nos anosseguintes: deixava de ter curadores e era organizada pelos prprios artistas,reatando com uma tradio que caracterizou boa parte dos movimentos devanguarda modernos. E quando, em 1967, a partir de uma idia de HlioOiticica, se organiza a exposio Nova Objetividade sempre no MAM-Rio,como as anteriores , no apenas a organizao da exposio fica a cargodos prprios artistas como o texto de apresentao da mostra ser escrito porum deles, Hlio Oiticica, numa das primeiras intervenes tericas desse tipode um artista brasileiro5.

    Em So Paulo, em 1963, artistas ligados ao grupo Ruptura mas noapenas se organizam para viabilizar um espao que divulgasse e comer-cializasse suas obras, tentando estabelecer um canal direto com o pblico. Aexperincia, que resultar na criao da Galeria Novas Tendncias6 cujologotipo foi desenhado por Willys de Castro e Hrcules Barsotti , durapouco, e em 1965 a galeria deixa de funcionar. Em 1966 forma-se o GrupoRex, de que participavam Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Geraldo deBarros, Jos Resende, Carlos Fajardo e Frederico Nasser. Mais duchampiano,o grupo no pretende propriamente constituir um espao institucional paraa divulgao de seus trabalhos. Em sua breve durao, ironiza por atos epalavras o provincianismo do meio de arte de So Paulo "AVISO: AGUERRA", declarava o jornal Rex Time em letras garrafais, na primeirapgina de seu nmero de estria. Mas haveria o que combater? Na ltimaexposio organizada pelo grupo de Nelson Leirner o pblico eraconvidado a carregar as obras gratuitamente, depois de transpor algunsobstculos: pular uma piscina, livrar os trabalhos de correntes que os atavame por a vai.

    Desde o incio dos anos 1950 a Bienal de So Paulo era o maisimportante plo de atualizao e exposio da arte brasileira. E duas de suasedies da dcada de 60 traro trabalhos de artistas norte-americanos quesero decisivos para a formao de vrias importantes vertentes brasileirasdos anos seguintes: na VIII Bienal, de 1965, uma sala especial de Barnett

    (5) Essa idia me foi sugeridapor Carlos Zilio. Participaramdesta exposio, alm de Oiti-cica e do prprio Zilio, Ray-mundo Colares, WaldemarCordeiro, Antnio Dias, PedroGeraldo Escosteguy, RubensGerchman, Gasto ManoelHenrique, Maurcio NogueiraLima, Roberto Magalhes,Anna Maria Maiolino, AntnioManuel, Marcelo Nitsche, Ly-gia Pape, Glauco Rodrigues,Maria do Carmo Secco, IvanSerpa e Thereza Simes. A pro-psito dos desdobramentos daarte brasileira nos anos 1960, leitura indispensvel o livro dePaulo Srgio Duarte, Anos 60 transformaes da arte noBrasil (Rio de Janeiro: CamposGerais, 1998).

    (6) Na primeira exposio daGaleria participam Alberto Ali-berti, Alfredo Volpi, CaetanoFracaroli, Hermelindo Fiamin-ghi, Judith Lauand, Kazmer Fe-jer, Lothar Charoux, Luis Saci-lotto, Maurcio Nogueira Lima,Mona Gorovitz e WaldemarCordeiro. O texto do catlogo de Waldemar Cordeiro, ante-rior portanto ao mencionadotexto de Oiticica (ver "Novastendncias". In: Waldemar Cor-deiro: uma aventura da razo.So Paulo: MAC-USP, 1986, pp.123-124). Agradeo a RobertoConduru por essas informa-es.

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    Newman ampliar a compreenso das inovaes introduzidas pelos expres-sionistas abstratos americanos, e as obras de Donald Judd e Frank Stellaapresentaro no calor da hora as pesquisas minimalistas que posteriormenteinfluenciaro muita arte feita no Brasil; na IX Bienal, de 1967, ser a vez daarte pop , que no entanto j deixara pegadas por aqui.

    Todos esses esforos no apenas contriburam para dar s artes visuaisuma presena pblica mais intensa, como tambm criaram condies maisadequadas para a recepo e compreenso dos melhores artistas de gera-es anteriores. Embora no seja fcil documentar a percepo que artistasde geraes mais jovens tm dos artistas que os antecederam, at onde pudeverificar por experincia prpria, por entrevistas, por leituras e, sobre-tudo, pela observao das obras por eles produzidas fica claro que osartistas que comearam a surgir na dcada de 1960 j tinham como refernciatambm alguns de seus colegas brasileiros mais velhos, no contando entoapenas a ateno ao que ocorria internacionalmente. Tambm no ter sidopor acaso que dois de nossos crticos mais importantes Mario Pedrosa eFerreira Gullar ganhassem relevncia justamente no momento em que aproduo artstica brasileira alcanava uma densidade considervel. Foiigualmente nesse perodo que Frederico Morais teve um dos momentosimportantes de sua trajetria. A maior complexidade alcanada pela pro-duo artstica pedia um esforo terico altura, e nos anos 70 surge umapublicao pioneira a revista Malasartes7 que rene artistas e crticosdo Rio e de So Paulo. Tendo durado apenas trs nmeros, realizados nosanos de 1975 e 1976, a revista no se limitava a ser uma publicao sobreartes plsticas. Era ela mesma graficamente, tematicamente, programati-camente um esforo esttico, a tentativa de criar um espao de reflexoque trouxesse em si mesmo, na sua prpria linguagem, algo daquilo que sedefendia em textos e imagens.

    No entanto, quando comecei a fazer crtica de arte, em 1977, tanto euquanto os crticos com que mais me identificava Ronaldo Brito, PauloSergio Duarte, Paulo Venancio Filho, Alberto Tassinari nos vamos aindaobrigados a, simultaneamente, tentar avaliar e compreender a produo con-tempornea e nos voltar tambm para as obras modernas, num movimen-to praticamente incompreensvel num pas com um meio de arte estrutu-rado. Acontece que seria intil tentar formular critrios para a avaliao dasobras contemporneas se no se estabelecesse um mnimo de organicidadedessa produo com a tradio moderna que, bem ou mal, tnhamos produ-zido.

    Olhando retrospectivamente, havia um qu de Ssifo nesses esforostodos. Sempre h. Os espaos para exposio de arte contempornea e danossa melhor arte moderna, mesmo nos anos 1970, ainda eram praticamenteinexistentes. No Rio de Janeiro, alm do MAM, apenas comeavam a surgirgalerias comerciais um espao antes ocupado quase exclusivamente porleiles que trabalhavam com uma arte de nvel mais alto, como a GaleriaRelevo, de Jean Boghici, e a Galeria de Luiz Buarque e Paulo Bittencourt.Em So Paulo, aps a iniciativa pioneira da Collectio no incio dos anos 70,

    (7) Os editores de Malasarteseram Ronaldo Brito, CarlosVergara, Carlos Zilio, Jos Re-sende, Baravelli, Rubens Ger-chman, Waltrcio Caldas e Ber-nardo Vilhena.

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    surgem na mesma dcada importantes marchands, como Raquel Arnaud que teve um papel decisivo no meio de arte paulistano ao criar a figura dogalerista que trabalhava a partir de escolhas criteriosas e a longo prazo, semceder aos imperativos do sucesso comercial imediato , Luisa Strina e PauloFigueiredo (este j no comeo dos anos 80). Como se v, as coisas haviammelhorado, mas ainda se tratava de um ambiente provinciano e altamenterestrito. E a ausncia de instituies fortes e com continuidade uma dasraras excees a Bienal de So Paulo, cuja irregularidade e rigidez noentanto esto sempre na iminncia de torn-la cada vez mais irrelevante demonstra at hoje a precariedade que permeia as artes visuais brasileiras, eque eu no poderia, neste rpido esboo certamente sujeito a incorrees elacunas, pretender adensar por meio do alinhamento cansativo de fatos edatas pouco significativos8.

    Escrever sobre um tema com pouca realidade envolve l os seus riscos.E o maior deles talvez consista em fazer do prprio ponto de vista um dadoprobatrio. Sei que no estou livre dessa tentao no entanto, na pior dashipteses trao aqui um esquema que pode ajudar em novas pesquisas edebates, mesmo que seja para refutar as teses que defendo. Da maneiracomo vejo as coisas, foi somente no final dos anos 1980 que passamos a terno Brasil alguma coincidncia entre qualidade artstica e reconhecimentopblico tanto de nossos melhores artistas modernos quanto de artistascontemporneos. E no por acaso: como tentei mostrar, foi tambm nessapoca que as artes visuais conseguiram sair do gueto e adquirir uma visi-bilidade maior, que supunha mais debate, mais vontade de constituir para siuma esfera pblica.

    E nesse ponto que queria chegar. Exatamente no momento em queconseguamos obter para nossos melhores artistas modernos uma situaocrtica compatvel com suas realizaes final dos anos 1980 , comeama ganhar fora no Brasil as crticas a que artistas e crticos contemporneosdos Estados Unidos e da Europa vinham submetendo a produo moderna.Com isso, aquele nosso descompasso estrutural em relao realidade ar-tstica dos pases desenvolvidos adquiriu uma direo decididamente com-plicada. Passou-se ento a avaliar a arte moderna brasileira segundo o fluxoe refluxo das tendncias dominantes em certo momento nos grandes centrosculturais. Podiam ser afirmados Tarsila e Bispo do Rosrio quando a nfaserecaa no multiculturalismo e na defesa das diferenas. Ou ento Farnese deAndrade e Ismael Nery, na hora em que a causa de planto era a da afirmaode individualidades irredutveis e da crtica ao que seria o arrogante universa-lismo moderno. Mas foram Lygia Clark, Hlio Oiticica e, em muito menorescala, Mira Schendel os artistas que mais se beneficiaram dessa conjuntura.E as razes para isso me parecem razoavelmente claras.

    A discusso e a distino entre arte moderna e contempornea podemevidentemente ter vrias abordagens, e no poderia ser minha intenoneste artigo historiar uma polmica ainda em pleno curso. Contudo, um dostraos diferenciadores fundamentais tem sido a defesa, por crticos e artis-tas contemporneos, de uma extrema aproximao entre arte e vida, num

    (8) Escusado dizer que no pre-tendo traar aqui uma forma-o da arte moderna no Brasil.Apenas esbocei alguns de seusmomentos decisivos nas dca-das de 1960 e 70, em virtude daquesto de fundo deste artigo.

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    movimento que em tudo se oporia reivindicao moderna de autonomia daarte. Desde o incio dos anos 1960, vrios foram os sentidos assumidos poressas tentativas de transpor o fosso entre duas instncias diversas. A popamericana principalmente nos trabalhos de seu artista mais significativo,Andy Warhol tratou de incorporar ao repertrio da pintura toda uma sriede emblemas da indstria cultural, no que seria uma superao da diferenaentre alta e baixa cultura. Mais: encontrou uma forma pictrica que revelavacom preciso a mediao dessas imagens onipresentes que se interpunhamentre os homens e a realidade. Mediante o uso de mscaras de silk-screensuperpostas e sem registro obtinha-se uma relao de justaposio e desajus-te entre as imagens e sua "substncia" as cores , a indicar a origemambgua daquelas representaes artsticas. Entre ns e a Marilyn Monroe"real" erguia-se uma membrana translcida a imagem fotogrfica deMarilyn e era essa realidade intermediria que interessava apontar; era elaque impedia que imagens e cores se casassem. As representaes resultantesdesse processo ao contrrio de uma tela moderna no nasciam de umarelao expressiva com o mundo, pois nem se sabia mais o que "mundo"vinha a ser. Elas eram essa realidade dbia, semi-artstica, inexpressiva: blueMarilyn, green Marilyn, pink Marilyn, numa srie infinita e frouxa, j quesempre indecisa entre ser s coisa ("Marilyn") ou s qualidade ("blue"), oque correspondia exemplarmente s posies deslocadas que objeto e su-jeito ocupavam nessa relao.

    Tambm entre os minimalistas a srie foi a sada encontrada para su-perar a antiga distino entre objetos artsticos e demais objetos do mundo.A realizao de obras que se limitavam a simples ordenaes "uma coisadepois da outra", na clebre definio de Donald Judd fazia que o seuinteresse deixasse de residir em complexas e inovadoras relaes internas fossem elas de cor, de fatura, de linhas etc. , como teria sido estabelecidopela tradio, do Renascimento at o expressionismo abstrato. Assim, apercepo, na tentativa de apreender e encontrar o significado do trabalho dearte, se deslocava do objeto propriamente dito para os acontecimentos que sedavam entre observador e coisa observada9 . Como na vida mas tentandoreverter o carter mecnico dos atos cotidianos, reforado pelo hbito , asobras de arte conduziriam a prticas corporais que, elas sim, determinariamo "contedo" dos objetos com que nos relacionaramos. Diante de uma sriede caixas de Donald Judd dispostas verticalmente, a percepo e as prpriascoisas vistas se determinariam por relaes prticas, que iriam desde a ilu-minao do espao altura do observador.

    Na Europa, Joseph Beuys defendia as noes de escultura social econceito ampliado de arte, que pretendiam restituir ao mundo da vida aintensidade que fora limitada imaginao artstica. Mas para Beuys nobastava romper em termos pragmticos como para os minimalistas asbarreiras entre arte e vida. Tratava-se antes de, meio alquimisticamente,proporcionar a experincia de um mundo transubstanciado, por meio deobjetos e de aes que revelassem a possibilidade de um reespessamentoda existncia e da realidade. O carter simblico que alguns materiais

    (9) A esse respeito, ver Morris,Robert. "Notes on sculpture".In: Battcock, Gregory (org.).Minimal art: a criticai antho-logy. Nova York: Dutton, 1968.

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    sobretudo feltro, gordura, cera e cobre adquirem em seus trabalhos retira-os da simples esfera instrumental para devolver-lhes uma aura de pureza esacralidade, da mesma forma que suas aes pense-se, por exemplo, noconvvio durante dias com um coiote no espao fechado de uma galeria, aao "I like America and America likes me" pretendiam instaurar realida-des originais, na medida em que restabeleciam unidades h muito perdidas.

    Algo dessas preocupaes, mas com uma entonao um pouco menosromntica, pode ser encontrado em boa parte das obras e teorizaes da artepovera italiana. Germano Celant o crtico de arte que, ao menos nos anos1960, praticamente d voz a esse movimento artstico justifica o nome"arte pobre" pela oposio s pretenses de dominao do que seria uma"arte rica": uma arte "involuda porque baseada na imaginao cientfica, emestruturas altamente tcnicas [...] nas quais o juzo individual se contrape,imitando e mediando o real, ao prprio real"; "uma arte complexa, que man-tm viva a correo do mundo, na tentativa de conservar o 'homem bemarmado diante da natureza'"10. E contra essa arte que, ao manipular omundo, dele se afasta, p rope novas formas artsticas se que ainda sepode falar em forma que o apresentem, em lugar de represent-lo:

    O seu trabalho [do artista povero] no busca servir-se dos mais simplesmateriais e elementos naturais (cobre, zinco, terra, gua, rios, chum-bo, neve, fogo, erva, arte, pedra, eletricidade, urnio, cu, peso, gravi-dade, calor, crescimento etc.) para uma descrio ou representao danatureza; o que lhe interessa , ao contrrio, a descoberta, a apresenta-o, a insurreio do valor mgico e maravilhoso dos elementos natu-rais11.

    Seria possvel encontrar divergncias considerveis entre as primeirasvertentes artsticas que defenderam essa aproximao entre arte e vida. Abem dizer, fica-se mesmo sem saber ao certo do que se est falando quandose menciona a palavra "vida". "Arte", por sua vez, nunca foi mesmo umtermo pacfico. Alm disso, desdobramentos posteriores body art, ps-modernismo, neo-expressionismo, multiculturalismo etc. tambm forammudando constantemente a maneira de formular essa relao. Contudo,resta um discurso bastante uniforme em seus objetivos vagos. Com ele foipossvel atacar por vrios flancos o que seria a busca de "pureza" moderna a autonomia da arte e acus-la de elitismo, etnocentrismo, aristocratis-mo, conservadorismo, homofobia etc.12. Como sntese disso tudo ficou apecha de formalismo quase um palavro na boca dos crticos da artemoderna , que a princpio caracterizaria apenas parte considervel damelhor crtica moderna e de fato Roger Fry e Clement Greenberg setornaram os dois anticristos do pensamento "contemporneo" e que aospoucos foi se es tendendo tambm aos artistas modernos. No esse o lu-gar de mostrar a maneira pela qual a arte moderna incorporou e projetou a

    (10) Celant, Germano. Arte po-vera. Turim: Umberto Alleman-di, 1989, p. 19.

    (11) Celant, Germano. Arte po-vera. Milo: Gabriele Mazzotta,1969, p. 225.

    (12) Se o leitor pensar que exa-gero, recomendo a leitura dedois textos de um dos mais re-nomados tericos desse tipode pensamento, Thomas Mc-Evilley: Art & otherness. Kings-ton: McPherson & Co., 1992; eo prefcio para 0'Doherty, Bri-an. Inside de white cube. Theideology of the gallery space.Santa Monica: The Lapis Press,1986.

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    realidade, um movimento que realizou com uma grandeza talvez s com-parvel da arte do Renascimento. De todo modo, nunca simples formasincomodaram tanto.

    Foram esse discurso, essas obras e esse tipo de preocupao quederam, n u m certo momento, aos trabalhos de Lygia Clark e Hlio Oiticicauma atualidade espantosa para quem s veio a conhec-los l pelo fim dosanos 1980. De fato, esses dois grandes artistas vinham levantando questesdessa ordem desde a dcada de 60 simultaneamente portanto s vanguar-das europias e norte-americanas , embora a direo que seus trabalhos as-sumiam adviesse de uma tradio estritamente moderna nomeadamente,o construtivismo , e portanto absolutamente diversa da posio daquelesartistas europeus e norte-americanos que mais ou menos no mesmo perodobuscavam superar questes que, a seu ver, tornavam o projeto modernolimitante e conservador. E no custa lembrar que a ateno que europeus enorte-americanos passaram a dedicar s obras dos dois brasileiros a partir dofinal dos anos 80 e penso que a nica exceo seja o crtico ingls GuyBrett, que desde os anos 60 no s percebeu a importncia de ambos ostrabalhos como ajudou-os a ganhar espao na Europa derivava em boamedida de uma atitude politicamente correta (hlas!) que por tabela termi-nou por impregnar o multiculturalismo, com sua condescendente atenopara com os pobres irmos do Sul.

    Essa posio preeminente de Lygia Clark, Hlio Oiticica e Mira Schen-del se formalizou definitivamente na XXII Bienal de So Paulo, de 1994,quando o curador da mostra, Nelson Aguilar, os elegeu como "os farisbrasileiros" (subttulo de seu artigo no catlogo da Bienal)13. Aguilar justifica-va assim suas escolhas:

    Da obra plstica e terica de Oiticica nasceu o tema da mostra [a crisedos suportes tradicionais]. Ao afirmar, em 1961, que j no tinhadvidas de que a era do fim do quadro estava definitivamente inaugu-rada, Oiticica apontou para um outro momento da arte. "O problema",dizia ele, " da integrao do espao e do tempo na gnese da obra, eessa integrao j condena o quadro ao desaparecimento e o traz aoespao tridimensional, ou melhor, transforma-o em no-objeto".O prprio titulo da antologia que rene seus textos escritos entre 1954 e1969 Aspiro ao grande labirinto revela uma viso dionisaca daarte, em que a pura visualizao substituda pela participao doespectador. Em seus Penetrveis, o pblico entra na obra, ouve sons,sente aromas, tem sensaes tteis. O monoplio do olho colocado emxeque14.

    E continuava sua anlise mostrando aspectos semelhantes nas obras deLygia Clark e Mira Schendel, at concluir:

    (13) Repetindo: evidentementeSchendel no obteve o mesmopapel de relevo de Hlio e Ly-gia nesse processo de reavalia-o da arte brasileira. Na XXIIBienal foram expostos traba-lhos que, no por acaso, teriammais afinidade com essa ques-to arte-vida: obras grficas,sarrafos e "Ondas paradas deprobalidade" (uma obra "pe-netrvel" exposta pela primei-ra vez em 1969, na X Bienal, ereconstruda com notvel com-petncia por Paulo Malta).

    (14) Aguilar, Nelson. "A artefora dos limites". In: XXII Bie-nal Internacional de So Paulo salas especiais. So Paulo:Fundao Bienal de So Paulo,1994, p. 24.

    NOVEMBRO DE 2002 13

  • DESENCONTROS ENTRE MODERNO E CONTEMPORNEO NA ARTE BRASILEIRA

    O anseio da Bienal fazer desses trs artistas brasileiros as bssolascapazes de iniciar o pblico brasileiro na trajetria da arte contempo-rnea, ajudando-o a navegar por conta prpria, com instrumentos deaferio to precisos que cada um dos visitantes se torne um crtico dearte sua maneira. Atravs de Oiticica, Lygia e Mira, se chegar aosoutros artistas para verificar como eles se soltaram do suporte tradicio-nal para atingir o indito que caracteriza a arte contempornea15.

    Minha inteno com essas citaes no absolutamente a de polemizarcom Nelson Aguilar, que de certa forma ps pela primeira vez ao alcance dogrande pblico uma amostragem razovel das obras desses trs artistas. Masseu texto e suas escolhas ajudam a compreender o quadro que progressiva-mente embora j comeara a se desenhar antes se foi traando para acompreenso de suas obras. Ou seja, tratava-se de enfatizar nos seus traba-lhos aquilo que indicaria a passagem para uma outra etapa da arte, e que secaracterizaria justamente por aquela aproximao entre arte e vida (a partici-pao do espectador, o pblico que entra na obra), pela recusa aos suportestradicionais e ao que seria uma relao contemplativa com as obras de arte.No seu raciocnio tudo tende a extrapolar os seus limites: o pblico se tornatambm crtico de arte, a arte se confunde com o mundo, as artes visuais ex-trapolam os limites da visualidade e assim por diante. Se consideramos oquanto essas idias se banalizam ao cair na mdia que acaba dando o tomdesses acontecimentos de massa , no fica difcil perceber como aos pou-cos aquilo que seria uma priorizao da vida sobre a arte vai deixando de seruma quase posio poltica para se transformar num slido critrio esttico.

    E tambm o texto sensvel e instigante do curador desta exposio dacoleo Cisneros, Ariel Jimnez, reforar esse tipo de viso:

    As linhas a seguir so uma tentativa de compreender alguns dos proble-mas levantados por quatro dos mais significativos artistas abstratos daVenezuela e do Brasil, a saber, Jess Soto e Carlos Cruz-Diez, HlioOiticica e Lygia Clark. claro, no meu entender, que a obra desses artistas se torna muito maissignificativa medida que consegue superar os limites de um certoformalismo muito ou at demasiadamente usual na abstrao geom-trica de ambos os pases. tambm evidente que, entre aqueles queescaparam a esse formalismo, destacam-se os artistas que o fizeram porvia de uma abertura ao espao real e da maneira como enfrentaramtodos os problemas de ordem plstica, antropolgica ou poltica queessa passagem ao espao lhes impunha16.

    Em seguida Jimnez analisa o movimento que conduz a passagem do planopictrico ao espao real na obra desses quatro artistas, concluindo:

    (15) Ibidem, p. 27.

    (16) Jimnez, Ariel. "Definindoespaos. O espao de uma co-leo". In: Paralelos, artebrasileira da segunda metadedo sculo XX em contexto. Co-leccin Cisneros. So Paulo:Fundacin Cisneros/MAM-SP,2002, p. 24.

    14 NOVOS ESTUDOS N.64

  • RODRIGO NAVES

    Todas estas experincias, as da abstrao concreta e neoconcreta noBrasil e em particular a abertura antropolgica de artistas como HlioOiticica e Lygia Clark, conformam, como o cinetismo na Venezuela,uma herana que marcar grande parte das geraes seguintes17.

    Como se v, aos poucos tambm vai se insinuando, para alm do que seriamas inovaes desses artistas, uma dimenso prospectiva, ou seja, "uma he-rana que marcar grande parte das geraes seguintes".

    Mas bem antes de Nelson Aguilar e Ariel Jimnez apenas doisexemplos de alto nvel num mar de mediocridades escrito sobre essesartistas apontarem o carter avanado dessas obras, Guy Brett que,como j apontei, foi um dos primeiros, ainda nos anos 1960, a reconhecer aimportncia no s de Lygia Clark e Hlio Oiticica, mas tambm de MiraSchendel e Sergio Camargo j apontara, em 1989, seu alto teor antecipat-rio. Aps mostrar a resistncia das instituies artsticas dos pases centraisem reconhecer as realizaes de artistas dos pases perifricos, ele afirma:

    Como parte de uma evoluo diferente [da dos pases centrais], Oiticicafez seus blides, incorporando terra, carvo, conchas etc, quatro anosantes de serem exibidas as caixas "Non-site" de Robert Smithson, assimcomo Lygia Clark, em seus trabalhos com borrachas flexveis quepodiam ser pendurados ou suspensos em qualquer superfcie, anteci-pou os trabalhos de feltro de Robert Morris. Seus trabalhos tangenciam(ou mesmo iniciam) vrias correntes da arte recente em muitos pontos:minimalismo, earth art, cineticismo, arte ambiente, conceitualismo,poesia concreta, body art, performance. E precisamente no modocomo eles tangenciam esses movimentos que algumas diferenas vitaisficam claras.Em relao a todos esses "ismos", Oiticica e Clark colocam a presenafsica do espectador no centro. Eles contestam a tradio do objetoesttico autnomo e nesse sentido mesmo uma performance pode serum objeto como veculo tanto para a singularidade e poder expressi-vo do autor quanto para a passiva contemplao do espectador. Paraeles, os objetos existem para estabelecer ligaes; os objetos eram vistoscomo "relacionais"18.

    No penso que as coisas sejam bem assim como Guy Brett as descreve,sobretudo quando localiza a singularidade das obras de Lygia e Hlio na"presena fsica do espectador", uma afirmao que seria mais adequada atrabalhos como o de Richard Serra, e no a experincias que tendem aacentuar radicalmente uma noo ldica, intimista e introspectiva dosindivduos, como provam trabalhos como os "Bichos" de Lygia Clark e os"Ninhos" e camas de Hlio Oiticica. Mas o que principalmente tem conse-

    (17) Ibidem, p. 45.

    (18) Brett, Guy. "Hlio Oiticica:reverie and revolt". Art in Ame-rica, janeiro de 1989, pp. 112-114.

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  • DESENCONTROS ENTRE MODERNO E CONTEMPORNEO NA ARTE BRASILEIRA

    qncias para a questo que estou desenvolvendo a nfase de Guy Brett nocarter antecipatrio de Lygia e Hlio.

    A insistncia nesse tipo de raciocnio fez que se solidificasse emrelao aos dois artistas brasileiros um dos cacoetes mais criticados no queseria o pensamento modernista nas artes plsticas: um finalismo que arran-java toda a histria da pintura moderna em funo de um movimento emdireo de uma pintura cada vez mais planar e abstrata, e que no caso deClement Greenberg levou criao de uma linhagem ininterrupta que iade Manet a Pollock19. Da mesma forma, em relao a Lygia Clark e HlioOiticica foi se criando um finalismo que interpreta a histria da arte de frentepara trs, privilegiando assim as obras de arte modernas que desembocari-am na arte contempornea, e numa arte contempornea oposta a caracte-rsticas fundamentais da arte moderna. A partir desse tipo de raciocniocria-se infelizmente uma espcie de justificativa terica para a superioridadedas obras de Hlio e Lygia, apoiada no fato de que teriam antecipado ummovimento necessrio e irreversvel da histria da arte. Ora, esse argumen-to falacioso principalmente porque resolve numa direo unvoca umarelao entre a arte moderna e a arte contempornea que permaneceem discusso20, a menos que se queira reduzir toda a produo contempor-nea a um s aspecto. Alm disso, esse carter de necessidade que se imputaquele movimento de passagem retiraria dos trabalhos de Hlio e Lygia boaparte da enorme liberdade que os animou, j que estariam condenados atrabalhar, desde que quisessem conquistar algo ambicioso, num sentido jinscrito no curso da histria. E de fato esse tipo de raciocnio tem prevalecidona anlise de ambos os artistas a reverncia de que so vtima no Brasil(e mesmo em certos crculos artsticos internacionais) igualmente pe delado toda e qualquer liberdade na anlise de suas obras, para limit-la a umaadeso afetada e irrestrita. Desse modo, ainda vo conseguir tornar Hlio

    ironicamente, o artista que, num estandarte em homenagem a Cara-de-Cavalo, escreveu "Seja marginal, seja heri" e Lygia dois cones nacionais.

    No entanto, essa teleologia disfarada de generosidade j queacolheria em seu seio aquelas tendncias que ampliassem o alcance da arte traz um cansao que convm analisar, ao menos de passagem. O fina-lismo moderno que, ocioso dizer, no se limita aos textos de ClementGreenberg tinha um tom afirmativo, de quem corria riscos e acreditavamais em suas aes propositivas do que numa montona corrida de bastocom o passado. Em 1919, Kandinsky escreve:

    Paulatinamente, as diferentes artes se dispem a dizer o que melhorsabem dizer e pelos meios que cada uma delas possui exclusivamente.Apesar de ou graas a essa diversificao, as artes nunca estiveram toprximas umas das outras como nos ltimos tempos, na hora damudana rumo ao espiritual.Em tudo que citamos aqui vemos brotar as tendncias em direo aono-natural, ao abstrato, natureza interior. Consciente ou incons-

    (19) Diga-se de passagem, emfavor de Greenberg, que a in-cluso de Pollock numa traje-tria to linear no se tratavaem absoluto de um raciocniosimplista e redutor. Muito aocontrrio.

    (20) Um dos trabalhos que de-fendem de forma mais arejadae esclarecida uma relao decontinuidade (e no de ruptu-ra) entre arte moderna e con-tempornea O espao moder-no, de Alberto Tassinari (SoPaulo: Cosac & Naify, 2001).

    16 NOVOS ESTUDOS N64

  • RODRIGO NAVES

    (21) Kandinsky, Wassily. De Ioespiritual en el arte. Barcelona:Barrai e Labor, 1983, p. 49 (aprimeira e a terceira das pas-sagens grifadas so realcesmeus).

    (22) Raciocnios mais ou me-nos semelhantes podem serencontrados nos escritos de,entre outros, Malevich, Mon-drian e Klee.

    (23) Oiticica, Hlio. Aspiro aogrande labirinto. Rio de Janei-ro: Rocco, 1986, p. 98.

    (24) Burckhardt, Jacob. berdas Studium der Geschichte,apud Kudielka, Robert, "Wel-tkunst Allerweltkunst? VomSinn und Unsinn der Globalisi-erung in den bildenden Kns-ten". In: Jahrbuch 14derBaye-rischen Akademie der SchnenKnste. Munique, 2000, vol. 1,p. 447.

    (25) Cabe ressaltar que Moran-di foi muito visto no Brasil: par-ticipou da I Bienal de So Pau-lo, ganhou prmio de gravurana II Bienal e de pintura na IVBienal.

    (26) A primeira grande exposi-o internacional de Hlio Oi-ticica comeou em 1992 noWitte de With, Center for Con-temporary Art, de Roterd, edepois percorreu o seguintetrajeto: Galerie Nationale duJeu de Paume (Paris), Funda-ci Antoni Tpies (Barcelona),Centro de Arte Moderna daFundao Calouste Gulbenki-an (Lisboa) e Walker Art Cen-ter (Minneapolis). Posterior-mente, dezenas de exposiesmenores ajudaram a consagrarinternacionalmente seu traba-lho. Quanto a Lygia Clark, suaprimeira grande mostra inter-nacional teve incio, em 1997,na Fundaci Antoni Tpies, se-guindo depois para o MAC (SoPaulo), Galeries Contemporai-nes des Muses de Marseille,Fundao Serralves (Porto), So-cit des Expositions du Palaisdes Beaux-Arts (Bruxelas) ePao Imperial (Rio de Janeiro).Do mesmo modo, a essa gran-de exposio seguiram-se v-rias outras, de maior ou menorrelevncia.

    cientemente, obedecem frase de Scrates: "Conhece-te a ti mesmo!".Consciente ou inconscientemente os artistas retomam principalmentea seu material, o estudam, colocam sobre a balana espiritual o valorinterior dos elementos com os quais sua arte pode criar21.

    Nada mais "modernista". Para Kandinsky, a arte tendia no apenas aum movimento reflexivo de considerao de seus prprios meios umraciocnio que ser retomado praticamente ipsis litteris por Greenberg mas tambm, e por conseqncia, abstrao22. Ainda que Kandinskypartisse da anlise da obra de alguns contemporneos seus Picasso eMatisse, por exemplo , tratava-se, antes de tudo, de trabalhar num sentidosem fim vista. Foi justamente essa liberdade que o historicismo contem-porneo ps de lado ao analisar trajetrias artsticas (obviamente no apenasas de Hlio e Lygia) e ao gerar uma parte significativa de sua produo toda a arquitetura ps-moderna, por exemplo, se entende como um enormeesturio em que desguam estilos de todas as pocas. O lema combativo deHlio Oiticica "Da adversidade vivemos!"23 transforma-se ento no seuoposto.

    O grande historiador suo Jacob Burckhardt tem uma passagem emseu livro Sobre o estudo da histria que me parece um excelente antdotocontra esse historicismo, contra esse determinismo: "Na vida histrica tudoest carregado de bastardia, como se ela mesma entrasse essencialmente nafecundao de processos espirituais maiores"24. No sei em que extensoessa afirmao teria validade para a histria entendida em sentido amplo.Para a histria da arte, no entanto, ela me parece perfeita. A construo deuma histria que tende a um fim posto de antemo obriga ao estabelecimentode relaes "legtimas", como se tudo no processo histrico se assemelhassea um movimento que fosse da semente ao fruto. Nada na histria da arteconfirma essa linearidade. A obra de Chardin embora tivesse sua impor-tncia reconhecida por Diderot precisou esperar quase um sculo e meiopara que pudesse ser retomada (e, at certo ponto, compreendida) em suagrandeza pela pintura de Morandi. Por sua vez, Morandi decididamenteencontrou um desdobramento muito mais interessante na pintura do brasi-leiro Milton Dacosta em suas telas das dcadas de 1950 e 60, as maisconstrutivas do que em qualquer pintor italiano25.

    O alto grau de reconhecimento dos trabalhos de Lygia Clark e HlioOiticica teve origem em grande parte em importantes mostras realizadas noexterior26. E at certo ponto essa trajetria ajudou a atrair a ateno inter-nacional para outros artistas brasileiros, o que tem l sua importncia. Noentanto, esse mesmo movimento ajudou a enviesar a viso que se criava aquide nossa prpria arte. Os curadores estrangeiros que se encantaram comrazo, seja dito de passagem pela obra de Lygia e Hlio no tinham e notm maior intimidade com a arte brasileira, e em geral moviam-se no sentidode revelar em alguma medida premidos pela onda multiculturalista valores perifricos que antecipassem ou endossassem o sentido que identifi-

    NOVEMBRO DE 2002 17

  • DESENCONTROS ENTRE MODERNO E CONTEMPORNEO NA ARTE BRASILEIRA

    cavam na arte europia ou norte-americana. Sem mencionar a glria curato-rial de descobrir "primeiro" um talento relegado a segundo plano pela incom-preenso dos bugres locais. E, como si acontecer, a colnia aceitou gostosa-mente o juzo que a metrpole fazia sobre alguns de seus filhos bafejadospela sorte e nos pusemos a correr num trilho que no fora feito para nossabitola.

    O que estou querendo apontar no tem nada de nacionalismo, comopode parecer primeira vista. Mas tem, sim, a ver com a reivindicao de umolhar mais generoso e criterioso sobre a arte moderna produzida no pas.Temos uma histria da arte modesta, e de nada interessa estreitar um campoj demasiadamente estreito. Precisamos ver e compreender melhor a arteque produzimos no sculo XX a partir de seus valores intrnsecos e de suahistoricidade, antes de querer restringir precocemente o que por si j bas-tante restrito.

    Submeter a arte brasileira a parmetros estranhos sua formao como no caso da leitura contempornea que se ope produo moderna conduzir inevitavelmente a um empobrecimento e a uma simplificaodo que temos de melhor em nosso descompasso em relao aos grandescentros: uma complexidade que no nasce de uma constituio rica e sim deuma historicidade complicada. Procurei mostrar em outro texto27 que partesignificativa de nossa arte moderna tem uma presena tmida, um modo deaparecimento moroso e contido, em tudo oposto a caractersticas centraisdas grandes obras modernas. Por outro lado, algumas obras tiraram umproveito admirvel dessa dificuldade de formalizao, convertendo-a emfora esttica. Esses dois aspectos singulares de nossa produo modernaparadoxalmente a aproximam da fragilidade formal e da tenso existencialreivindicadas pelo discurso contemporneo no fossem as muitas dife-renas.

    A pintura de Volpi vive, simultaneamente, de uma singeleza que aaproxima do anonimato artesanal a presena obediente mas vacilante damo, a recusa regularidade geomtrica, as formas que parecem nascer maisdo uso do que do controle e da determinao e de uma historicidadeespessa, de uma estranha erudio que avizinha suas cores esmaecidas eluminosas dos afrescos dos primeiros renascentistas e dos primitivos italia-nos, como se a sua nica afirmao possvel no presente se apoiasse notestemunho agonizante e dbil de uma realidade que agora se limita a emitiros ltimos sinais de uma grandeza evanescente. Vm da a leveza e alegriados trabalhos de Volpi: esses ltimos suspiros de uma longa tradio noslivram afinal de todo o peso da histria.

    Amilcar de Castro que no cansa de nos surpreender revela maisa resistncia do mundo deciso formal do construtivismo do que odesdobramento unvoco do projeto moderno na realidade. Em suas obrasmais recentes apresentadas pela primeira vez em 1999, no Centro de ArteHlio Oiticica e na vizinha Praa Tiradentes, Rio de Janeiro, com curadoriade Ronaldo Brito o espao adquire uma dinmica admirvel, na qual arapidez dos deslocamentos proporcionada pelas seces "perspectivadas"

    (27) Naves, Rodrigo. A formadifcilensaios sobre arte bra-sileira. So Paulo: tica, 1996.

    18 NOVOSESTUDOSN.64

  • RODRIGO NAVES

    convive com a presena lenta do ferro oxidado. E ento a potencializao e amultiplicidade do real levantadas pelas chapas de ferro incorporam a lenti-do dos lugares marcados pela experincia, retirando-os da homogeneidadetopogrfica pela assimilao de um tempo de espera.

    Praticamente nada dessas obras foi visto fora do Brasil. E mesmo aqui hmuito desdm envolvendo esses e outros importantes trabalhos modernos. Etodos perdemos com isso. Temos uma histria difcil, que vem emperrandoum processo de diferenciao social no sentido de conduzir a uma arti-culao forte de grupos e interesses que encontrem fora e autonomia ,fundamental para a ampliao da democracia. Essa experincia social engen-drou obras modernas que, paradoxalmente, parecem se aproximar de ques-tes contemporneas: o anonimato das telas de Volpi, a matria avessa aformalizaes dceis de Amilcar. Mas os trabalhos de ambos que a meu verapontam em direes quase opostas so atravessados por um tempo meioindolente, uma histria que reluta em se afirmar no presente e que portanto seapia nessas formas tmidas ou travadas. Penso que essa estranha comple-xidade da arte brasileira teria muito a dizer discusso que ope sem maismodernos a contemporneos no tivssemos sido reduzidos a apenas doisartistas que, aparentemente, seriam os nicos aptos a embarcar na viagemque querem nos obrigar a fazer.

    E penso que um exemplo de outra rea talvez nos ajude a ver com maisclareza o interesse dessa nossa posio enviesada. Possivelmente a grandezada msica de Joo Gilberto a meu ver, nosso maior artista vivo venhada capacidade de lidar com o passado de maneira a nos tornar mais livres,possveis. O admirvel em sua relao com a tradio musical brasileira nose limita somente excelncia das escolhas, um bom gosto espantoso, queretira um Z da Zilda ou um Boror da massa quase annima de composito-res populares e revela a grandeza do que parecia apenas mediania. Fabulosode verdade o dom de encontrar a forma de abrir o passado, de torn-loporoso, significativo no presente. H nas interpretaes de Joo Gilbertojusteza (a afinao, o tom certo) e deslocamento (as divises inusuais, asduraes alteradas), uma continuidade feita de ajustes sutis um Brasil emque o "jeito" deixa de ser o escamoteamento das dificuldades para tornar-setalvez a maneira mais sbia de compreend-las2 8 . No seu modo de cantar opassado, Joo Gilberto, por frinchas e dribles, faz a histria emergir no pre-sente.

    Nas artes plsticas, a dificuldade de forma e a fragilidade formal de boaparte de nossa melhor produo poderiam aproxim-la daquela busca detransio entre arte e vida que move muito da produo contempornea. Epenso que foram tambm esses aspectos que tornaram as obras de Hlio eLygia to cativantes. Mas nas artes plsticas a proximidade da vida se mostracomo presso, acossamento, incapacidade de envolver a experincia numatrama que torne a realidade passvel de articulao e mudana. Justamente ocontrrio do que Joo Gilberto consegue obter.

    Vivemos um momento confuso, um momento de transio sabeDeus para onde! na poltica, na economia, nas relaes internacionais, e

    (28) Esse texto sobre Joo Gil-berto apareceu, com pequenasalteraes, como depoimentomeu no livro de Zuza Homemde Mello, Joo Gilberto (SoPaulo: Publifolha, 2001, pp. 82-83).

    NOVEMBRO DE 2002 19

  • DESENCONTROS ENTRE MODERNO E CONTEMPORNEO NA ARTE BRASILEIRA

    seria demais esperar que as artes ficassem alheias a essa falta de rumo. A au-sncia de propostas polticas transformadoras j conduziu busca de todasorte de sucedneos para a velha e boa classe operria: foram as mulheres, osloucos, os homossexuais, minorias de toda ordem. Parece ter chegado a horados artistas! Nada mais temerrio: sobretudo porque realmente tudo pareceinclinar a balana para o lado dos artistas (e no para o lado da arte), j quenesta aproximao entre arte e vida nunca os primeiros tiveram tanta preemi-nncia vis--vis quilo que produzem.

    Lygia Clark, em sua sincera generosidade, procurou usar seus objetosrelacionais para lidar com pacientes psicticos, para quem a verbalizao dasterapias tradicionais no tinha eficcia. Assim, tambm realizava-se plena-mente o projeto de fundir arte e vida. Sua proposta, a "estruturao do self,retira alguns ensinamentos da psicologia sobretudo de algumas vertentesda psicanlise, de Melanie Klein, de Winnicott , mas fundamentalmenteprocura dar um sentido teraputico s propostas que vinha desenvolvendodesde a dcada de 1960 ("Luvas sensoriais", "Mscaras abismo", "Arquiteturasbiolgicas", de 1968) e que posteriormente, na dcada de 70, quando passa atrabalhar na Sorbonne, adquirem crescentemente um carter catrtico, nosentido original de "purgao", de "limpeza" ("Tnel", "Baba antropofgica","Canibalismo", de 1973). Escrevendo sobre seu processo teraputico, Lygiaanota, num texto publicado primeiramente no Brasil em 1980:

    O corpo se "apropria" de toques, de contactos, de rgos de corposadultos, de acidentes dolorosos que o atingem, de desnivelamentos dosespaos, de intervalos de sensaes corpreas, boas ou ms, numprocesso de metabolizao simblica que vem a constituir o ego. Asfrases feitas como "colocar os ps em falso ", "cara de pau" "cabea devento", etc. nascem de experincias de sensao pelas quais passa ocorpo e que so depois simbolizadas. Em meu trabalho aflora a "me-mria do corpo": no se trata de um viver virtual mas de um sentirconcreto; as sensaes so trazidas, revividas e transformadas no localdo corpo, atravs do "objeto relacionai" ou do toque direto de minhasmos29.

    No gostaria de forar a nota, mas do meu ponto de vista quaseimpossvel no ver nessa sntese de seus procedimentos como que adescrio de um processo construtivo no sentido artstico do termo.Aquilo que se formou caoticamente numa histria de vida, deixando suasmarcas no corpo, se reestrutura e reside a a dimenso teraputica apartir do contato com os objetos relacionais (dos quais suas mos so parteintegrante)30: um bicho corporal. Um bicho, finalmente! No entanto, Lygiaparece apostar todas as suas fichas justamente na dimenso "esttica" do seumtodo. Precisamente ela que teria abandonado desde fins dos anos 1960 apreocupao com a criao de obras de arte31! Quando diz, no texto citado,

    (29) Clark, Lygia. "Objeto rela-cionai". In: Lygia Clark. Barce-lona: Fundaci Antoni Tpies,1997, pp. 325-326.

    (30) No cabe aqui discutir ocontedo do mtodo de LygiaClark, que tinha muito de intui-tivo e que, no comeo de suaprtica, contava com o apoioda psicanalista Ins Besouchete do psiquiatra Cincinato Ma-galhes. No entanto boa partede seus procedimentos tem umaspecto analgico que certa-mente levantaria discussesmuito interessantes (por exem-plo: "pego com as mos todo ocorpo, junto as articulaes do-cemente e com firmeza, o qued a muitos a sensao de 'co-lar' ou 'soldar' pedaos do cor-po"; ibidem, p. 320). Para umamelhor compreenso dessa ati-vidade de Lygia Clark, aconse-lho a leitura dos textos de LulaWanderley, que foi seu parcei-ro por muitos anos: "Em buscado espao imaginrio interiordo corpo". In: XXII Bienal...,loc. cit., pp. 57 ss.; O dragopousou no espao. Rio de Janei-ro: Rocco, 2002.

    (31) Numa entrevista a MatinasSuzuki Jr. e Luciano Figueire-do, pergunta "De uma certamaneira nesse perodo em quevoc ficou trabalhando com ocorpo [entre 1970 e 1977, naSorbonne] voc deixou de pro-duzir obras?", Lygia responde:"J tinha largado antes disso"("Folhetim". Folha de S. Paulo,02/03/1986, p. 5).

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  • RODRIGO NAVES

    "no se trata de um viver virtual mas de um sentir concreto; as sensaes sotrazidas, revividas e transformadas no local do corpo, atravs do 'objeto re-lacionai' ou do toque de minhas mos", o que se enfatiza justamente umaintensificao da experincia de natureza esttica. Ou seja, o que j no seriaarte e sim sua verso dissolvida na existncia adquire os poderes cura-tivos de quando a arte ainda no se distinguia da magia.

    Em comparao a Lygia Clark, Hlio Oiticica teria permanecido aindano campo da arte. sua maneira continua a produzir "obras". No entanto, vaiaos poucos projetando uma vida em suspenso, uma realidade que seenrodilha em osis de serenidade e repouso: penetrveis, tendas, ninhos,camas. A experincia de autonomia proporcionada pelas obras modernascuriosamente passa a operar "para fora", como se adquirissem forma erealidade emprica. A suspenso momentnea da vigncia do mundo pro-porcionada pelo contato com relaes de outra ordem a alegria das obrasde Matisse, a potncia dos trabalhos de Picasso tende a mostrar, nasinstalaes de Hlio, uma realidade plena e sem tenses com qualquer outrainstncia. E estou convencido de que essa inverso operada por Hlio temuma significao muito interessante, que conviria estudar detalhadamente.Sua morte prematura deixou para sempre incompleto o seu grande labirinto.Ou no? Essa nsia de interioridade e repouso no suporia para sempre umGrande Exterior a lhe velar o sono? Acredito que as obras de Hlio Oiticicatm uma fora maior que as de Lygia Clark, e penso que essa fora deriva emboa medida do fato de ter mantido alguma distncia em relao s desmesu-ras almejadas por Lygia para sua "arte". Ambos no entanto revelam um termocomum: a antecipao concreta daquilo que as obras modernas apontavamapenas como possibilidade e que, como experincia diferencial, iria indicarseu potencial de autonomia.

    A arte contempornea parece fadada a viver dessa tenso entre arte evida. E as melhores obras atuais so, a meu ver, aquelas que conseguiramtirar seu significado dessa relao irresolvida. Caso contrrio, em lugar de umenriquecimento das determinaes da arte teremos apenas um empobreci-mento da concepo de vida, na medida em que continuidade pura esimples da relao "arte e vida" dever corresponder uma vida entendidacomo continuidade. Para a arte brasileira como tentei mostrar esse risco ainda maior, pois nossa histria acentuou uma indiferenciao e uma de-sestruturao social que facilitam uma compreenso regressiva da vida,como essa nsia de proteo e abrigo que identifico nas obras de HlioOiticica e Lygia Clark e que, em outros textos, procurei caracterizar em di-ferentes obras visuais brasileiras. Muitos trabalhos de arte contemporneospensam essa aproximao entre arte e vida como um "entrar dentro" dasobras, donde instalaes, ambientes etc. Poucos tm conseguido "sair" da.

    Recebido para publicao em19 de agosto de 2002.

    Rodrigo Naves historiador daarte e professor. Publicou nes-ta revista, da qual j foi editor,"Volpi: anonimato e singulari-dade" (n 25).

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    N64, novembro 2002pp. 5-21

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    intellectual standards.' Edward Said

    POLITICS:Michael Mann on 'Globalization after September II' and Mike Davis on 'The Flames ofNew York' (NLR 12). Jrgen Habermas on why Europe needs a constitution (NLR I I ) . GranTherborn's panorama of global politics: 'Into the 2IST Century' (NLR IO). Fredric Jameson on'Globalization and Political Strategy' (NLR 4). Perry Anderson on the US elections and itsportents for the European centre-left (NLR 8). Robin Blackburn on the current state of theCuban Revolution (NLR 4). Tariq Ali on the rise to power of the Taliban and the bombing ofIraq (NLR 2 and 5). Gopal Balakrishnan on Hardt and Negri's Empire (NLR 5).

    THE GLOBAL ECONOMY:Robert Brenner on the US 'Boom and Bubble' (NLR 6). R. Taggart Murphy and GavanMcCormack on Japan's economic crisis (NLR I and I3). Ronald Dore on 'Worldwide Anglo-Saxon Capitalism?' (NLR 6). Robert Wade on the World Bank and the US Treasury Department(NLR 7). Andrew Glyn, 'Irrational Exuberance?' (NLR 5).

    CULTURE:Roberto Schwarz on Paulo Lins's Cidade de deus (NLR I2). T. J. Clark on postmodernism (NLR2). Hal Foster: 'Art Criticism, R.I.P.?', and Peter Wollen on the Situationists and architecture(NLR 8). Franco Moretti, 'Conjectures on World Literature' (NLR I) . Silvana Silvestri on thefilms of Gianni Amelio, and Leo Chanjen Chen on Edward Yang (NLR IO and II).

    PROTEST MOVEMENTS:Naomi Klein on anti-globalization as a series of struggles against privatization, and GabrielGarcia Mrquez interviewing Subcomandante Marcos (NLR 9). John Sellers of the RuckusSociety on direct action from Seattle to Doha (NLR IO). An interview with Jos Bov, demol-isher of McDonald's (NLR I2). David Graeber on the new anarchism (NLR I3).

    INTERNATIONAL RELATIONS:Daniele Archibugi, Geoffrey Hawthorn, David Chandler, Timothy Brennan and Peter Gowanon 'Cosmopolitics': projects and counter-proposals on world government and the future ofthe nation-state (NLR 4, 5, 6, 7, II and I3).

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