Rogerio duprat

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Regiane Gaúna escolheu para este livro

um personagem de difícil composição. Rogé­

rio Duprat - músico, compositor, arranjador e

instrumentista - não foi nacional ista, nem

dodecafonista, nem tropicalista e nem adepto

de nenhuma orientação que pudesse de algu­

ma forma imobilizar sua maneira muito pes­

soal de produzir sonoridades. Se esses e ou ­

tros movimentos musicais cruzaram seu

caminho e canalizaram parte de suas realiza­

ções isso se deve a sintonias circunstanciais de

propósitos que se dissipavam assim que surgiam

os primeiros sinais de cristalização das at i tu­

des. Passados esses curtos períodos, batia-lhe

a descrença - sua marca constante - e o mú­

sico seguia suas intuições artísticas muito mais

afinadas com a porção lúdica de cada dia do

que com as causas ideológicas aparentemente

mais ambiciosas ou duradouras.

Regiane foi diretamente ao ponto: aproxi­

mou-se do ser humano Rogério Duprat e des­

cobriu que suas famosas criações inesperadas

sempre nasceram não apenas da tão propa­

lada atração pelo novo - típica das gerações

artísticas dos anos 1950 e 1960 -, mas de sua

tendência, digamos constitucional, para a sin­

gularidade. No início da década de 1960, por

exemplo, compõe com Damiano Cozzella, Jú­

lio Medagl ia, Gilberto Mendes e Willy Correia

de Oliveira o Grupo Música Nova para explorar

as técnicas seriais, eletroacústicas ou aleató­

rias que constituíam total novidade no cená­

rio musical brasileiro. Antes que se esgotasse

o caráter inusitado do mov imento , Rogério

transfere os recursos do mundo erudito para o

arranjo de música popular de consumo e ob­

tém outra espécie de singularidade que con­

tribuiu decisivamente para o êxito do tropica-

l ismo. Do mesmo modo , passado a lgum

tempo, transfere essa experiência em forma de

manobra conjugada de todos os gêneros mu­

sicais - com participação especial dos comen-

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ROGÉRIO DUPRAT:

SONORIDADES MÚLTIPLAS

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ROGÉRIO DUPRAT:

SONORIDADES MÚLTIPLAS

REGIANE GAÚNA

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© 2001 Editora UNESP

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gaúna, Regiane Rogério Duprat: sonoridades múltiplas/ Regiane Gaúna.

- São Paulo: Editora UNESP, 2002.

Bibliografia. ISBN 85-7139-437-7

1. Duprat, Rogério, 1932 - Crítica c interpretação 2. Música - Brasil - História e crítica 3. Música popular -Brasil - História e crítica I. Título.

02-6194 CDD-780.920981

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Arranjadores musicais: Biografia c obra 780.920981 2. Brasil: Compositores musicais: Biografia e obra 780.920981

3. Músicos brasileiros: Biografia e obra 780.920981

Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes

e Pós-Graduados da UNESP - Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

da UNESP (PROPP)/Fundação Editora da UNESP (FEU)

Editora afiliada:

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Para Gilberto Assis e Alice Rosa

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AGRADECIMENTOS

Agradeço de forma muito especial a Rogério Duprat, pela opor­tunidade de acompanhá-lo em sua jornada como músico, e a Lali Duprat, pela generosidade e gentileza. A Gilberto Assis, não só pela troca de idéias, mas por tudo. A Marisa Fonterrada, pelo cuidado com que me orientou, e a Alberto Ikeda, pelo apoio sempre seguro e confiante.

Agradeço também a Marília Pini, a quem devo a inspiração desse projeto; a Cecília Salles, Cida Bussolotti, Luís Tatit, Régis Duprat, Silvio Ferraz, pela colaboração; e a Bel César, Jézio Gutierre e meus pais, pela força.

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SUMÁRIO

Prefácio 13

Introdução 17

1 Perfil

Da Vila Mariana a Darmstadt 23

1930 - Primeiros acordes 23

1940 - Samba, swing e a paixão pelos musicais 28

1950 - Office-boy, filosofia, composição e violoncelo 29

Casado e desempregado 32

1950 e 1960 - Violoncelista profissional 34

Atuação como professor 37

Processo composicional 46

1950 a 1990 - Rogério Duprat e a mídia 6 1

2 Duprat e os movimentos musicais

A busca de uma renovação 73

Música Nova 77

Tropicália 89

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3 O processo criativo

Análise de obras 109

Organismo (1961) (Composição erudita) 112

Objeto semi-identificado (1969) (Arranjo) 134

O pica-pau amarelo (1974) (Trilha sonora) 157

Reflexões sobre o processo criativo 176

Produção musical 181

Pensamentos e aforismos 190

Premiações 196

Considerações finais 197

Referências bibliográficas 209

Ficha Técnica do CD 2 17

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PREFÁCIO

Momentos privilegiados temos na vida universitária quando podemos acompanhar o desenvolvimento de alguma pesquisa cujo tema reconhecemos de imediato como de grande relevância. É o caso deste livro, enfocando o compositor e arranjador Rogério Duprat que é, sem dúvida, figura maior no cenário da música brasileira. A investigação é da musicóloga Regiane Gaúna, que teve a feliz inicia­tiva de se interessar por este compositor múltiplo e controvertido, cujas criações se iniciaram de modo mais sistemático na década de 1950 e alcançaram maior notoriedade sobretudo a partir da década de 1960. Pude ver de perto o processo de construção deste traba­lho e presenciar a busca determinada da pesquisadora em compre­ender Duprat.

Permiti-me iniciar este prefácio com algumas lembranças de minha argüição do dia da apresentação da dissertação de mestrado, intitulada: Rogério Duprat: artesão e filósofo das sonoridades múl­tiplas, que ora se publica. Não será demasiado comentar que nesse dia esteve presente o próprio "objeto da pesquisa", Rogério Duprat, e a banca examinadora contou com o também compositor e pes­quisador Luís Tatit, professor da Universidade de São Paulo, c cx-integrante/fundador do grupo paulistano Rumo. Promoveu-se, en­tão, não sob os refletores de um palco artístico, mas no ambiente um tanto mais austero da universidade, um encontro de sensibili­dades, de dois criadores importantes para a música no Brasil, de gerações distintas, que se voltaram para a renovação da linguagem musical, inclusive do ponto de vista teórico.

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Prefaciar um livro que trate de uma das personalidades mais controvertidas da música e da cultura no Brasil contemporâneo requer um certo cuidado, pois o compositor não se enquadra em correntes estéticas estanques. Estamos diante de um autor dono de uma rara versatilidade composicional, que vai do jingle, passando pela MPB e alcançando a vanguarda artística, na qual atuou com a mesma competência e criatividade. O enfoque pioneiro de um tema, como o faz Regiane, é realmente uma feliz aventura. Afinal, há de se estranhar que um criador do porte de Duprat não tivesse ainda um trabalho sistemático enfocando a sua vida e obra, o que se deve, em muito, à sua revelada modéstia.

O seu reconhecimento se deu principalmente a partir de dois importantes movimentos de renovação musical: o Música Nova, cujo manifesto programático data de 1963, voltado para a então denominada vanguarda, na música erudita; e, logo depois, em 1968, o Tropicalismo, de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e ou­tros, no qual Rogério Duprat atuou de forma notória e foi o arranjador do célebre LP Tropicália ou panis et circencis. Assim, Rogério passou a ser uma referência na nossa música.

Apenas para reavivar a memória sobre algumas outras realiza­ções do compositor, podemos lembrar que são dele os arranjos irreverentes do disco Os Mutantes (1968), das reconhecidas músi­cas "Construção" e "Deus lhe pague", de Chico Buarque de Hollan-da (1970), assim como do LP Arca de Noé, de Vinícius de Moraes (1982), realizados juntamente com o compositor e violonista Toqui-nho. Diante de algumas das suas variadas atuações, podemos dizer que dificilmente pessoas que tenham vivido entre as décadas de 1960 e l980 não tenham, em um ou outro momento das suas vidas, ouvido algo do autor, que foi do jingle publicitário puramente co­mercial à vanguarda, passando pelo rock, trilhas de filmes e novelas.

Embora sua criatividade sonora seja facilmente reconhecível por meio de algumas de suas personalizadas orquestrações e diver­sificadas realizações, pairava até o momento um certo mistério sobre Rogério Duprat, que, a partir de determinado momento e por sua própria vontade, preferiu levar uma vida mais reclusa, um tanto arredia. Visto como gênio por alguns e niilista por outros -sendo até comparado a George Martin, o reconhecido produtor/

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arranjador do grupo inglês The Beatles -, a verdade é que não cessam as contínuas tentativas de seus admiradores e jornalistas de fazê-lo participar de encontros, festivais, entrevistas e homenagens.

Além do trabalho analítico de várias obras do compositor, o livro traz ainda material inédito que não foi objeto de análise me­tódica, qual seja, no final, a autora selecionou vários aforismos que revelam as reflexões de Rogério Duprat sobre diversos assun­tos, além de fazer importante catalogação de sua produção musical; complementado por um CD com os raríssimos registros da com­posição Organismo, de 1961, e da trilha sonora do filme O pica-pau amarelo, de 1974. A investigação pôde contar com a documen­tação e depoimentos do próprio autor, o que configura um valor inestimável das próprias visões e interpretações em relação aos acontecimentos por ele vividos, resultado de uma feliz convivên­cia, em "sintonia fina", entre pesquisador e pesquisado, podemos assim dizer.

O livro, evidentemente, não teria como esgotar a multiplici­dade da vida e da obra de Rogério Duprat. Apresenta um interes­sante perfil biográfico, mas há sobretudo a preocupação de revelar o seu processo criativo, tomando como referência a análise de três obras diversificadas, exemplos das suas várias facetas criativas. Há de se ressaltar, também, o caráter documentativo do trabalho, que, certamente, constitui material precioso, de grande interesse e im­prescindível para futuros trabalhos sobre o compositor. As catalo­gações somente puderam atingir o detalhamento apresentado por­que a pesquisadora desfrutou da confiança e do apoio irrestrito do compositor.

Trata-se de uma obra referencial sobre o autor e sua época, uma contribuição meritória para o conhecimento da música e da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970, sobretudo. Como muitos podem se lembrar, foi uma época bastante conturbada do ponto de vista sociopolítico, em que tivemos a infelicidade de vi­ver a implantação de uma ditadura militar no país, a partir de 1964, que perdurou por vinte e um anos. O livro nos possibilita perceber os reflexos desse cenário na vida e produção de Rogério Duprat.

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Ainda, dentre tantos, determinados aspectos que podem ser salientados são algumas revelações, como: a passagem de Rogério Duprat como professor na Universidade de Brasília e os happenings que realizava, demonstrando a sua sintonia com os acontecimentos internacionais da época, que puderam aqui ser refletidos pelo pró­prio compositor.

O trabalho de Regiane Gaúna, com certeza, vem fecundar o campo da musicologia no Brasil, por meio de uma escrita fluente, de amplo alcance de público, em que buscou manter uma sensível fidelidade à natureza essencial da personalidade, sobretudo, artís­tica de Rogério Duprat. Acompanhemos essa trajetória.

São Paulo, junho de 2002 Alberto Ikeda (IA - UNESP)

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INTRODUÇÃO

Este livro é resultado, sobretudo, de inúmeras entrevistas e encontros com o compositor e arranjador Rogério Duprat. Pesquisar ao seu lado tornou-se uma tarefa, além de intelectualmente enri-quecedora, muito divertida, pois Duprat é dono de uma grande cultura somada a um senso de humor "genial". Mais do que tudo, o que inicialmente me chamou a atenção e, em seguida me cativou, foi a sua docilidade e o seu desprendimento diante de tudo. Carac­terísticas que estão diretamente refletidas em sua postura diante da vida e de sua experiência musical. De início, aconselhou-me a desistir deste trabalho, alegando não enxergar o propósito para tal empenho, já que entre ele e o "Zé das Couves" não havia diferença alguma.

Outra característica que se tornou evidente à medida que nos­so contato tornava-se mais freqüente foi a contestação. Quanto mais seu espírito contestatório e antiacadêmico se revelava, mais me inteirava de seu pensamento e de seus procedimentos composi-cionais. A cada entrevista concedida, seu modo de entender o mundo e a música ia sendo paulatinamente desvelado. Essas entre­vistas, somadas à leitura de artigos em jornais, revistas e de autores que, ao se dedicarem a escrever sobre a música brasileira acabaram por mencionar algo sobre o trabalho de Duprat, contribuíram para a constituição do material de base deste livro.

Conhecer a obra de Rogério Duprat teve para mim, por volta de 1995, um aspecto revelador. Ao tomar contato com sua produ­ção musical, dei-me conta de que estava diante de um compositor

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que, além de bastante complexo, era muito irreverente. Seu processo criativo apresentava-se, ora extremamente simples, ora com gran­de complexidade, mas a presença de aspectos nada convencionais sempre surpreendia pela originalidade e pelo inusitado. O conjun­to de sua obra reflete um intenso ecletismo musical. Ao longo de seu percurso, transitou por diferentes gêneros e estilos musicais que resultaram numa produção musical extensa e diversificada.

Visto que Rogério Duprat teve sua presença marcada na mú­sica brasileira, tanto pela sua atuação no movimento tropicalista e em trilhas sonoras cinematográficas, quanto na música erudita de vanguarda, e a esse conjunto de atividades se deve justamente a sua importância, o presente trabalho enfoca suas composições em diversas fases de sua produção, além de explorar os procedimen­tos composicionais que resultaram em seu estilo singular. Desse modo, salienta-se a idéia de que, sem perder a sua autenticidade, Duprat transitou em diferentes gêneros e estilos da música, pro­porcionando, por vezes, um encontro original entre a música po­pular e a erudita. Sua obra foi investigada com o intento de buscar compreender não apenas seus modos de organização, mas, tam­bém, a posição que ocupa no cinema nacional e dentro dos movi­mentos brasileiros Tropicália e Música Nova, aos quais encontra-se não apenas integrada mas numa condição de destaque. Esse proce­dimento visou apresentar o pensamento do compositor e sua sig­nificação na cultura brasileira atual, por meio da relação de sua produção musical com o contexto sociocultural em que se insere.

Dentro da produção musical brasileira do período que vai da década de 1930 até a de 1990, foram delimitados os aspectos cul­turais e musicais referentes às décadas de 1960 e 1970, época em que a produção musical do compositor foi mais intensa, apresen­tando elementos que permitem a compreensão da época por ele vivida no eixo Rio-São Paulo-Brasília.'

A figura de Rogério Duprat é relevante no cenário da música brasileira. Compositor e arranjador, trouxe uma face diferenciada para a música, contribuindo com trabalhos extremamente represen­tativos para a nossa cultura e para o pensamento musical de uma época. Diante disso, tornou-se importante um estudo do conjunto da obra desse autor que tem sido reiteradamente premiado em

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suas diversas áreas de atuação, contemplando sua multiplicidade e evitando o fácil desmembramento de sua produção, o que viria enfraquecer a significação de seu pensamento composicional. As­sim, visa-se a sua contribuição como compositor inserido na músi­ca contemporânea brasileira, sua participação efetiva como um dos principais arranjadores do movimento tropicalista e sua importân­cia como autor das trilhas sonoras de mais de quarenta filmes na­cionais.

A leitura de seus escritos - diários, artigos, textos e partituras -, a organização e o levantamento de sua produção musical intentam uma visão panorâmica de sua criação. Esse levantamento foi reali­zado diretamente com o compositor, por intermédio de entrevistas e do acesso direto a seu acervo particular. Porém, algumas dificul­dades apresentaram-se na realização do levantamento bibliográfico, pois, excetuando-se alguns verbetes enciclopédicos, não existem registros dedicados exclusivamente a Rogério Duprat. Apesar dis­so, alguns autores o consideram um dos precursores da música de vanguarda, realizada na década de 1960, assim como um dos prin­cipais arranjadores brasileiros. Autores como Décio Pignatari, Carlos Calado, Gilberto Mendes, José Maria Neves e Augusto de Campos tratam de forma especial a passagem de Duprat pela mú­sica erudita e popular.

Os dados fornecidos por esses autores somados ao estudo, desenvolvido paralelamente, de suas obras abriram possibilidades para novas reflexões. Uma delas foi a necessidade de traçar um perfil de Duprat integrado com suas idéias e seus procedimentos com-posicionais. De início, fiquei absorta com tantas contradições, pois o seu processo criativo é resultado de um movimento não-seqüen-cial e bastante sinuoso. No entanto, um elemento se mostrou unificador, suas idéias, bem como o conjunto de sua obra estão voltados para um mesmo propósito: sua busca pelo novo, pelo inu­sitado. Esse ponto é central e conduz a algumas indagações inevi­táveis; entre elas, o fato de a busca pelo novo ter sido uma espécie de elemento motivador, para a carreira de Duprat, não quer dizer que seus trabalhos fossem absolutamente novos. Assim, questio­nar até que ponto sua busca pelo novo encontra-se refletida em suas obras torna-se extremamente relevante para este livro. Ainda,

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muitos autores destacaram a presença de Duprat no cenário musi­cal brasileiro, porém, não deixa de ser pertinente questionar qual a sua importância efetiva para a música brasileira.

Para que essas questões pudessem ser exploradas, num pri­meiro momento, fez-se um estudo acerca de suas concepções mu­sicais e, num segundo, um estudo analítico de suas obras. O primeiro momento remete-se ao pensamento composicional de Duprat e, para que se tornasse mais claro o seu processo criativo e as suas influências, foi traçado um perfil com base no levantamento de fatos de sua vida e do contexto cultural do meio em que vive. Foram realizadas, também, algumas incursões, tanto no campo histórico da música contemporânea, como no da música popular brasileira. Para o segundo momento, ou seja, a abordagem analítica, três obras foram escolhidas para serem analisadas. As análises des­sas obras contribuíram, entre outras coisas, para que suas idéias pudessem ser confrontadas com o que de fato produzia.

No capítulo 1, por intermédio de um levantamento de seus dados biográficos mais relevantes, foi traçado um perfil do com­positor, maestro e arranjador Rogério Duprat, visando trazer ao conhecimento as principais fases de sua vida, a sua formação mu­sical e suas principais produções artísticas, aspectos de extrema relevância para uma melhor compreensão de seus pensamentos e procedimentos composicionais. Além disso, sua carreira como músico foi enfocada a partir dos seus três eixos de atuação: a mú­sica erudita contemporânea, a música popular brasileira e o cine­ma nacional. Para que o perfil de Duprat fosse delineado de forma abrangente, o seu percurso de vida foi traçado desde a sua infância até o último Prêmio Sharp de Música, recebido em 1997, pelo melhor arranjo da canção "Espaço/Tempo contínuo" de Lulu San­tos incluída no CD Liga lá.

O capítulo 2 teve como principal temática a atuação de Rogé­rio Duprat nos principais movimentos artísticos brasileiros ocorri­dos entre as décadas de 1960 e 1970: o movimento Música Nova, no âmbito da música erudita e o movimento tropicalista, no âmbito da música popular. É importante ressaltar que não se trata de um estudo detalhado sobre esses movimentos, mas da participação de Duprat, ou seja, seu grau de envolvimento com tais movimentos.

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Essa abordagem parte não só de artigos e da opinião de alguns autores que se ocuparam com esses movimentos, mas, principal­mente, do posicionamento do próprio Duprat, colhido em entre­vistas à autora e de seus escritos.

Diferentemente dos anteriores, no capítulo 3 o aspecto analí­tico teve prioridade ante o histórico, a produção musical de Rogério Duprat foi o objeto central. Suas diferentes áreas de atuação - a música popular, a erudita e o cinema - geraram uma grande diver­sidade de estilos entre suas inúmeras composições.

Mais especificamente, esse capítulo objetivou a compreensão do conjunto de obras de Duprat; analisam-se obras pertencentes a cada gênero musical, para se chegar à compreensão do conjunto de seus procedimentos composicionais e de seus caminhos estéticos. Para a escolha de obras que trouxessem consigo o potencial neces­sário para exprimir, ainda que de forma genérica, os procedimen­tos organizacionais utilizados por Duprat, bem como suas concep­ções estéticas, contou-se com a colaboração do próprio compositor. Assim, três obras foram escolhidas: Organismo (1961), "Objeto semi-identificado" (1969) e O pica-pau amarelo (1974), cada uma delas pertencente aos gêneros: composição erudita, arranjo e tri­lha sonora, respectivamente. Excetuando "Objeto semi-identifica­do", as outras obras encontram-se gravadas em CD anexo.

As análises contidas nesse capítulo não visam estritamente à compreensão dos procedimentos de estruturação, mas, preferen­cialmente, à elucidação do conjunto de características que contri­buíram para a construção de seu marcante estilo musical, ou, ain­da, o entendimento de suas concepções estéticas. Rogério Duprat, em cada uma das peças selecionadas para a análise, colaborou com a autora revelando, em entrevistas, aspectos de seu processo de criação. Tais revelações somadas a uma exploração de documen­tos conseguidos em fontes diversas, mas principalmente com o próprio autor, favoreceram um tipo de leitura analítica que privi­legiou os meandros da criação, sem que com isso os dados estrutu­rais fossem anulados. Esse processo aproximou-se da leitura gené­tica proposta por Cecília de Almeida Salles. Em seu livro o Gesto inacabado, ela propõe um tipo de leitura artística que tem como objetivo buscar um maior conhecimento do processo criativo, res-

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saltando os caminhos da criação a partir de documentos, rascunhos, entrevistas, diários, ou seja, qualquer tipo de informação que con­tribua para a elucidação acerca da elaboração da obra. Suas pro­postas contribuíram sobremaneira como ferramentas para um pen­samento que considerasse a interação entre as idéias e a produção artística de Duprat.

Além das reflexões em torno dos procedimentos composi-cionais de Rogério Duprat, o capítulo 3 contém uma relação com­pleta de obras do autor, envolvendo material musicográfico e fonográfico que inclui suas obras eruditas, populares, trilhas sono­ras para cinema, trilhas sonoras para teatro e novela, produções e orquestrações. Além disso, esse capítulo conta com vários pensa­mentos e aforismos de Rogério Duprat.

De uma maneira geral, os três capítulos que constituem este livro evidenciam as idéias de Duprat, bem como o seu envolvimento em movimentos de grande expressividade para a cultura brasileira.

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I PERFIL DA VILA MARIANA A DARMSTADT

E eu que fui artista e que fui antiartista, e que fui mass-man, e que fui, e que fui,

e que fui, e não cheguei.

(Rogério Duprat, 14.4.1971)

1930-PRIMEIROS ACORDES

Rogério Duprat nasceu em 1932 na cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1935, quando sua família se mudou para a cidade de São Paulo. Sua infância é vivida no período histórico que ficou conhecido como A Era de Vargas.

Além das profundas mudanças simbolizadas por Getúlio Vargas, um fato novo surgiu e provou ser um dos mais importantes da época pelas modificações radicais que iria causar na cultura e no modo de vida do brasileiro: o ingresso do país na era do rádio.

Embora a primeira emissão radiofônica brasileira tivesse ocor­rido em 1922, o rádio comercial só despontaria em 1930, a partir da legalização da propaganda. Com o crescimento da indústria e do comércio, o número de propagandas aumentou e o rádio trans­formou-se em um negócio lucrativo. O surgimento do rádio co­mercial trouxe consigo os anúncios cantados e os jingles que revo­lucionaram a propaganda radiofônica. Diversas rádios foram

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criadas, entre elas a Rádio Record e a Rádio Tupi de São Paulo e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, cada uma delas distinguida por seu próprio estilo, a exemplo da "Rádio Nacional que valorizou os eventos esportivos", enquanto a "Agência Nacional, estatal, pas­sou a transmitir em cadeia nacional compusória A hora do Brasil, programa criado pelo Estado Novo" (Houaiss, 1994, p.200).

Na música popular brasileira, esse momento é chamado de "Época de Ouro que vive sua fase mais importante, especialmente entre os anos de 1937 e 1942, quando os talentos revelados no. começo da década atingem o auge de suas carreiras" (Mello & Se-veriano, 1998, p.88). Compositores e intérpretes tornaram-se ídolos populares, entre eles, Isaurinha Garcia (1923-1993), Emilinha Borba, Marlene, Francisco Alves - o Rei da Voz (1898-1952), Ari Barroso (1903-1964), Zequinha de Abreu (1880-1935), Noel Rosa (1910-1937), Carmen Miranda (1909-1955), Sílvio Caldas (1908-1998), Orlando Silva (1915-1978), Vicente Celestino (1894-1968), Lamartine Babo (1904-1963), Elisete Cardoso (1920-1990), Araci de Almeida (1914-1988) e tantos outros.

A política de massas de Vargas envolvia o uso do rádio, canto­res e programas de auditório. A música popular brasileira e a polí­tica do Estado Novo andavam juntas, vivia-se a época do populismo. Para se garantir, o novo regime se munia de diversos instrumentos de controle e repressão, entre eles, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), com a tarefa de divulgar as ações do governo e vigiar ideologicamente os meios de comunicação. Era o órgão res­ponsável pela censura total da imprensa, rádio e cinema, e atuava sobre a música popular, de tal modo que canções "políticas" só eram divulgadas na rádio se elogiosas ao Estado Novo.

Rogério Duprat nasceu justamente na década em que se ini­ciou a Era do Rádio, e esse fato teria profundo significado sobre ele. Quando criança, ouvia pelo rádio os noticiários de guerra que o aterrorizavam e, também, não suportava escutar as transmissões dos eventos esportivos, embora a maioria estivesse ligada à paixão nacional, o futebol. Contudo, adorava ouvir os jingles e as histórias de "índios e heróis" transmitidas pelas radionovelas da época. Nessa fase, Duprat não imaginava quantos jingles publicitários iria fazer

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no futuro e, muito menos, o número de trilhas sonoras que criaria para o cinema brasileiro.

No circuito da música erudita, paralelamente à Era do Rádio, viam-se florescer as obras de Villa-Lobos, as quais deixavam entre­ver seus traços modernistas, nacionalistas e neoclássicos. Como exemplo dessas tendências, José Maria Neves destaca os seus Cho­ros, compostos no final da década de 1920, considerando-os como uma "síntese maravilhosa da música tradicional brasileira em es­truturas composicionais livres e modernas" (Neves, 1981, p.53), mas acrescenta que Villa-Lobos adotaria uma postura diversa a partir de 1930, quando influenciado pelo neoclassicismo. Neves associa a adoção dessa tendência por parte de Villa-Lobos ao populismo de Vargas:

É interessante notar que esta conversão coincide com o período de ideologia populista do compositor e com sua aceitação oficial pelo regime de Getúlio Vargas, com o qual o compositor vai colaborar em muitas circunstâncias (ainda que pessoas que conviveram e trabalha­ram com o mestre neste período afirmem que ele não se engajara pro­fundamente com o regime, conservando-se sempre apolítico) c do qual ele tiraria o apoio para a sua campanha em prol da educação musical universal. Na base desta conversão está o gosto de Villa-Lobos pelo classicismo, sobretudo pelo Haydn dos Quartetos, c a idéia de que a estruturação clássica permitiria a construção de obras mais facilmen­te aceitável [sic] pelas massas (o populismo de todos os países tenderá fatalmente, como se pode observar, para retornos às estruturas clás­sicas). (Ibidem)

Como instrumentista, Duprat teve uma experiência inesque­cível vivida com o compositor Villa-Lobos. Em 26 de setembro de 1957, como violoncelista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, tocou as Bachianas brasileiras n° 7 (Figura 1), regidas pelo próprio compositor. Duprat ficou encantado com a naturali­dade e simplicidade com que Villa-Lobos conduziu a orquestra. Pela primeira vez, viu um regente conduzir uma orquestra sem gestos dramáticos e exagerados, como era comum em tantos ou­tros. Nos ensaios desse evento, Duprat ficou surpreso com a res­posta que Villa-Lobos havia dado a um músico, que não tinha en­tendido qual a nota na região aguda que deveria ser tocada: "toque qualquer nota, nesta música cabe qualquer uma. Escolha".

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FIGURA 1 - Programa do Concerto Sinfônico da Orquestra Municipal de São Paulo, com regência de Villa-Lobos, em 26.9.1957. Acervo Rogério Duprat.

Depois de Rubens Ronchi Duprat, advogado falecido em 1978, Renato Ronchi Duprat, médico, e Régis Ronchi Duprat, musicólogo, Délio Duprat e Olga Ronchi Duprat tiveram outro menino, Rogério Ronchi Duprat, nascido em 7 de fevereiro de 1932, na cidade do Rio de Janeiro.

Seu pai, Délio Duprat, veio de uma família de origem france­sa muito bem posicionada em São Paulo. Seu avô paterno, Alfredo Duprat, possuía juntamente com o seu irmão, o barão de Duprat,1

uma gráfica em São Paulo, na hoje chamada Rua Barão de Duprat, destruída por uma bomba jogada por engano, por ocasião da Re­volução de 1932. Como conseqüência do ocorrido, seu Délio e dona Olga mudaram-se para o Rio de Janeiro, onde tentaram uma nova sociedade na abertura de um posto de gasolina. Essa socieda­de não teve êxito e, em decorrência disso, retornaram definitiva­mente a São Paulo, em 1935.

De volta a São Paulo, seu Délio começou a trabalhar como vendedor, mas foi acometido por uma doença no ouvido, que o

1 Prefeito de São Paulo durante o período compreendido entre 1910 e 1913.

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obrigou a submeter-se a uma cirurgia. Mas, as dificuldades não pararam por aí: em virtude de um erro médico, a operação deixou seqüelas em seu rosto, levando dona Olga a assumir o sustento da casa, ingressando também na área de vendas. Com seu trabalho, dona Olga conseguia sustentar a casa e encaminhar os filhos, pois o marido, envergonhado da imperfeição que ficara em seu rosto, por muitos anos recusou-se a sorrir e a sair de casa.

Em entrevista, Rogério Duprat revela que apesar de adorar os pais e os irmãos, não suportava mais a situação de ter que usar as roupas que iam passando de um para outro, até chegar nele, que era o último. Fez, em tom de brincadeira, uma analogia da sua busca pelo inusitado: "talvez venha daí a minha necessidade de ser o precursor em algo. Em busca de uma roupa nova, passei a buscar obsessivamente pelo inusitado, pelo novo, pelo nunca visto até então" (Entrevista, mar. 1998).

Apesar das dificuldades financeiras, seu Délio e dona Olga nunca deixaram de se preocupar com o ensino e a educação dos filhos. Sempre pleitearam vagas nas escolas públicas, que, naquela época, não era fácil conseguir, pois o ensino público era muito concorrido, considerado o melhor que havia. Rogério Duprat foi o primeiro aluno da classe por muitos anos. Freqüentou os cursos primário e ginasial - hoje ensino fundamental - de 1939 a 1946, no Colégio Ipiranga de São Paulo. Sobre a educação que tiveram, seu irmão Régis Duprat se recorda:

Apesar de vivermos com dificuldades financeiras, nossos pais sempre nos incentivaram para os estudos. Lembro-me que quando tirávamos notas baixas na escola, papai dizia: "Não tem problema, só que vou comprar uma carroça para vocês". Crescemos falando italiano com as nossas tias por parte de mãe e francês com meus pais, por termos origem italiana e francesa. Porém, Rubens, nosso irmão mais velho, foi trabalhar com doze anos de idade. Rogério também começou novo e trabalhou com diversas coisas; eu tive um pouco mais de sorte: profissionalizei-me cedo e logo comecei a trabalhar com música. (Entrevista, fev. 2000)

Os primeiros contatos de Rogério Duprat com a música, ain­da que intuitivos, se deram durante a sua infância. Aos dez anos de idade, ganhou de seus pais uma gaita de boca, com a qual participou

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de um quarteto de gaitas com os amigos. Além de seu contato com esse instrumento, tocou também, como autodidata, o violão de seu pai. Mais tarde, Duprat adotaria outro instrumento que o acom­panharia por toda a sua vida, o violoncelo.

1940 - SAMBA, SWING E A PAIXÃO PELOS MUSICAIS

No que se refere à música contemporânea no Brasil, a década de 1940 foi marcada pelo surgimento do movimento Música Viva, criado em 1939 pelo compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter (Freiburg, Alemanha, 1915), que fixou residência no Brasil, em 1937. Koellreutter introduziu o dodecafonismo no país e muitos dos compositores nacionais mais importantes estudaram com ele; entre eles, merece destaque Cláudio Santoro (1919-1989) que, por sua vez, foi o principal professor de composição de Rogério Duprat.

O importante no movimento iniciado por Koellreutter é o fato de ele ter trazido ao Brasil, absolutamente em primeira mão, as mais recentes experiências sonoras que se desenvolviam na Eu­ropa. Imediatamente, criaram-se dois grupos distintos: os que amavam e os que odiavam a música de vanguarda. Representando o segundo grupo, estava o compositor Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) cuja adesão ao nacionalismo levou-o a rechaçar as propostas de Koellreutter. Sobre esse episódio, Neves nos relata:

vem a grande bomba: Mozart Camargo Guarnieri, o compositor mais prestigiado do nacionalismo brasileiro (Villa-Lobos independia das classificações e das escolas) publica uma "Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil", documento que despertará o maior interesse no meio musical, dividindo-o cm duas facções opostas: os adeptos do nacionalismo e os defensores de liberdade criadora ilimitada. Du­rante muitos meses, os jornais de todo o país publicaram centenas de declarações, entrevistas, cartas, fazendo com que, pela primeira vez, um problema musical fosse levado à apreciação e ao julgamento do grande público. (1981, p.120)

Enquanto o público assistia a essa polêmica no cenário musical, outra grande arte era posta em evidência na cultura nacional: o cinema, considerado a grande "coqueluche" da época, exatamente

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como, anos mais tarde, iria ocorrer com a TV. Com a popularização do cinema, o Brasil aproximou-se das condições culturais que vi­goravam em outras partes do mundo. Por seu intermédio, passou-se a receber as mesmas informações que outros países recebiam, e a principal influência cultural do momento provinha dos Estados Unidos.

Seis meses após inventado, o cinema chegou ao Brasil. A pri­meira sala exibidora inaugurou-se na rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, em julho de 1897, c quinze anos depois os filmes eram a diversão favorita dos brasileiros. No entanto, as produções eram esporádicas. Na década de 1940, graças ao aparecimento da Atlântida, a produção voltou a crescer. (Houaiss, 1994, p.214)

Nessa mesma época, aparece também, como produtora cine­matográfica, a Cinédia, que lançou atores tão importantes quanto Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993). Em 1949 surge o mais ousado investimento da indústria do cinema brasileiro, a Companhia Vera Cruz, em São Bernardo do Campo.

Duprat freqüentou, desde muito cedo, os cinemas do bairro de Vila Mariana em São Paulo. Costumava ir a todas as matinês de domingo com a sua namorada Lali, que se tornaria sua esposa anos depois. Assistiam a filmes hollywoodianos, novelas e dramas nos antigos cinemas Cruzeiro e Phoenix. Nos "bailecos" durante os anos de 1947 e 1948, dançavam ao som das músicas de Glen Miller (1904-1944), Frank Sinatra (1915-1998), Bing Crosby (1903-1977), entre outros, sempre preferindo os ritmos de anda­mentos mais rápidos. Mas o que cativava Duprat, que se divertia com os sambas ou a dança do swing, era uma dança americana chamada Jitterburg. Pode-se nesse momento constatar, no gosto da juventude da época, a influência americana trazida pelo adven­to do cinema e de seus musicais.

1950 - OFFÍCE-BOY, FILOSOFIA,

COMPOSIÇÃO E VIOLONCELO

Entre os anos de 1946 e 1952, Rogério Duprat trabalhou em diversas funções, a fim de complementar o orçamento da casa. Seu

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primeiro emprego foi como office-boy, trabalhando em seguida como balconista nas lojas Sears. Aos dezesseis anos, prestou um concurso no Jornal Imprensa, onde atuou por seis meses como jor­nalista; posteriormente, trabalhou como bancário na Casa Bancária Crédito e Administração e no Banco Cruzeiro do Sul, agência de Santo Amaro. Nessa mesma época, completou o curso colegial -atual ensino médio - no Colégio Carlos Gomes em São Paulo.

Em 1950, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Le­tras da Universidade de São Paulo (USP), mas lá ficou por pouco tempo, abandonando o curso em 1952. Nesse momento, conseguiu divisar com clareza seu caminho: seu objetivo era concentrar-se nos estudos de música e desenvolver-se mais em seu instrumento. Sobre suas aulas de filosofia, ainda hoje, Rogério Duprat lembra-se com carinho do professor Gilles Gaston Granger, ex-discípulo do filósofo Gaston Bachelard (1884-1962), que muito o influenciou em suas divagações fisolóficas. Segundo Duprat, embora não tenha sofrido a influência desse mestre em seu processo criativo musical, as aulas de Granger o ajudaram muito a organizar-se intelectual­mente, ampliando a visão de mundo e o autoconhecimento.

Até os dezessete anos, Duprat tocou, intuitivamente, gaita, violão e cavaquinho. Durante seis meses, teve aulas de violão com o italiano Raphael D'Angelo, professor de violino de seu irmão Régis Duprat. D'Angelo o ensinava, por intermédio de um méto­do prático com base em cifras, canções italianas como "II sole mio", entre outras. Além das canções ensinadas por seu professor, Duprat acrescentava em seu repertório as músicas da época, à medida que as escutava no rádio e nos bailes que freqüentava, como por exem­plo: "Seresta brasileira", "Luar do sertão", um sambinha ou outro, boleros quaternários e músicas espanholas, assim como as canções de Gregório Barrios (1911-1978), Frank Sinatra, Glen Miller, en­tre outros. Entre os compositores que marcaram sua adolescência, um deles pode ser destacado: Dorival Caymmi. Sua admiração por esse compositor levou-o a declarar que uma de suas maiores frustrações, como músico, foi nunca ter desenvolvido nenhum tra­balho ao seu lado.

Duprat já havia tentado estudar seriamente piano e violino, porém não obteve grandes resultados. Finalmente, aos dezessete

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anos, começou a ter aulas particulares gratuitas de percepção, har­

monia, contraponto e composição com o professor e regente Olivier

Toni. Estudou com afinco durante o período compreendido entre

1949 e 1952 e, a respeito de seu desempenho como aluno, seu

próprio professor tece comentários: "Rogério aprendia com uma

facilidade admirável e era extremamente talentoso. Costumava

dizer a ele que, para compor, a última coisa que se faz é pôr no

papel. Primeiro, é necessário organizar o som, é preciso criar um

organismo" (Entrevista, jan. 2000).

Nessa mesma época, Olivier Toni, além de dar aulas particula­

res de várias disciplinas musicais para alunos, tais como Gilberto

Mendes, Willy Correia de Oliveira, Damiano Cozzella e outros,

estudava Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Foi quando

resolveu montar um conjunto de câmara na Faculdade de Filosofia,

que contava com um elenco diferenciado: Régis Duprat tocava

violino e, ele próprio, fagote. Nessa ocasião, Régis Duprat com­

prou um violoncelo para que Rogério Duprat começasse a estudar,

a fim de integrá-lo ao conjunto, o que de fato aconteceu. O profes­

sor Olivier Toni, em entrevista, comenta esse episódio:

Conheci o Régis através de minha esposa Maria Helena que é prima da Lali, esposa do Rogério. Ele tinha uma família muito aco­lhedora, "filei" muitos jantares em sua casa. Em um desses jantares, vi pela primeira vez o Rogério: ele era muito branquinho, miudinho, com muitas espinhas no rosto e tocava violão. Desde então, vivi gru­dado com eles. Quando organizei o conjunto de câmara na Faculdade de Filosofia [USP], trouxemos o Rogério conosco. O Régis é sempre muito racional, muito inteligente e na época o convenci a deixar o violino para começar a estudar viola; sempre achei que tinha mais a ver com ele.

Nunca vou me esquecer do primeiro solo do Rogério, tocado em concerto nesse conjunto. Quando o público aplaudiu no final, apontei para Rogério, ele ficou extremamente envergonhado e mui­to bravo comigo. (Entrevista, jan. 2000)

Apesar de Rogério Duprat gostar do processo criativo musical,

considerava-se preguiçoso demais para a disciplina que requer o

estudo de um instrumento musical; gostava mesmo era de ficar até

madrugada bebendo e jogando sinuca, em um bar. Toni, porém,

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conseguiu que tivesse aulas com o professor Calixto Corazza con­siderado, naquela época, o melhor violoncelista de São Paulo. Com isso, Duprat passou a se animar com a idéia de dominar um instru­mento de orquestra. Sobre esse fato, ele comenta: "O Toni foi o cara que me fez músico". Duprat teve sua primeira aula de vio­loncelo em 8 de julho de 1950, com o professor Calixto Corazza, violoncelista do Quarteto Municipal. Essas aulas duraram pouco tempo, porém seus estudos de violoncelo tiveram continuidade com o professor Luís Varoli, até 1958, ano que surgiu no Brasil o movimento musical Bossa Nova.

Ao mesmo tempo que estudava o instrumento, estudou maté­rias teóricas, tais como: teoria, harmonia, canto, análise harmôni­ca e construção musical, história da música e pedagogia, no Con­servatório Musical Heitor Villa-Lobos, em São Paulo, onde se formou em 1958.

CASADO E DESEMPREGADO

Eulalina Portella, a Lali, conheceu Rogério Duprat quando ainda criança; ambos moravam no bairro de Vila Mariana; Lali morava na Rua Araxans, atual Prof. Sudminch, e Duprat, na Ave­nida Conselheiro Rodrigues Alves. Quando Lali tinha onze anos de idade, em 1946, sua prima Maria Helena, hoje esposa do pro­fessor Olivier Toni, a apresentou para Rogério Duprat. A partir desse momento, Lali e Rogério começaram um namorico de criança que durou até completarem catorze anos. Quando tinha dezoito anos Rogério Duprat a procurou com a proposta de que voltassem a namorar. Desse namoro resultou um noivado de dois anos e meio até o casamento realizado em São Paulo, na Igreja Nossa Senhora Imaculada da Conceição,2 em 25 de abril de 1953. Um dado que aponta para a irreverência de Duprat, característica diversas vezes evidenciada em seu perfil no decorrer deste trabalho, é o fato de

2 Igreja construída pelo avô materno de Rogério, que era engenheiro civil.

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Lali ter casado grávida, o que configurava um escândalo para os

valores da época.

Logo depois de seu casamento, Duprat ficou desempregado,

pois a orquestra Angelicum, seu único sustento até aquele momento,

fora extinta. Como não tinha dinheiro para pagar a maternidade,

seu pai levou Lali para Olímpia, uma cidade do Sul de Minas,

onde Renato seu irmão era o único médico. Sobre essa passagem

na vida de Duprat , sua esposa Lali nos conta:

Rogério havia ficado em São Paulo fazendo alguns trabalhos pequenos, enquanto eu esperava o momento de dar à luz. Numa noite, quando comecei a ter as primeiras contrações, chamamos um táxi. Renato e sua esposa Maria da Luz me acompanharam até o hospital, porém, não deu tempo de chegarmos. Renato foi obrigado a fazer o parto ali mesmo. Raí nasceu dentro do carro, no meio da estrada que conduzia ao caminho do hospital. (Entrevista, ago. 1998)

Aproximadamente depois de um ano e oito meses, nasceu em

São Paulo, em condições mais favoráveis, seu segundo filho, Rudá,

em 14 de julho de 1955. Após quatro anos e três meses, nasceu seu

último filho, Roatã, em 24 de outubro de 1959. Nesse período,

Duprat encontrava-se mais estabilizado no trabalho, pois tocava

na Orquestra Sinfônica da TV Tupi.

O seu caçula foi o único que seguiu a carreira de músico e, em

entrevista, nos retrata um pouco de seu pai:

Peguei a fase mais agitada da vida dele e raramente o via na minha infância. Mesmo assim, acompanhei seu trabalho c isso ajudou a me formar pessoal e profissionalmente. Sua irreverência exacerba­da sempre lhe fechou várias portas e abriu tantas outras. Rogério é uma pessoa extremamente sincera e toda a vida me mostrou várias cores e nuanças da existência. Com seu gosto literário múltiplo, ele sempre foi uma caixinha de surpresas. Espero ser para o meu filho o amigo que o Rogério sempre foi pra mim. (Entrevista, mar. 2000)

Atualmente, Rogério e Lali têm cinco netos: Riã Duprat Lage

de 23 anos, Mel Duprat Lage de dezoito anos, Rui Horta Duprat

de catorze anos, Ivo Horta Duprat de onze anos e Bruno Dias Duprat

de nove anos.

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1950 E 1960 - VIOLONCELISTA PROFISSIONAL

Dona Ivone Levy, responsável pela coordenação da Orques­tra Sinfônica Juvenil do Museu de Arte de São Paulo (Masp), plei­teava bolsas de estudos para jovens músicos com o patrocínio de empresários, pois, já sob a coordenação de Pietro Maria Bardi, o Masp não dispunha de verbas para a manutenção dessa orquestra. O regente da orquestra juvenil tinha como critério indicar o aluno a ser bolsista, em razão da raridade do instrumento que tocasse. Duprat tocava violoncelo, o que era bastante incomum à época. E, portanto, ganhou a bolsa de estudos durante todo o tempo que permaneceu na orquestra, de 1950 até 1952. Tocar na Orquestra Sinfônica Juvenil do Museu de Arte de São Paulo foi sua primeira atuação como violoncelista e, depois dessa primeira experiência, não parou mais de atuar.

Como violoncelista, Duprat foi membro fundador da orques­tra Angelicum do Brasil, na qual permaneceu até 1953, juntamente com o seu irmão Régis, na viola. Começavam, de fato, a se profis­sionalizar, pois, nessa mesma época, assumiram os seus empregos como músicos profissionais, passando a receber salários para to­car, graças ao patrocínio do Banco Italiano de São Paulo.

A orquestra Angelicum do Brasil era formada por 23 estudan­tes brasileiros, o spalla era o professor Attilio Genocchi e o maes­tro, o italiano Mario Rossini. Essa orquestra foi inspirada nos moldes dos conjuntos musicais italianos, especificamente no gru­po Angelicum de Milão. Tendo sido fundada em 29 de setembro de 1952 e estreado no dia 29 de novembro do mesmo ano, a Angelicum do Brasil tinha como proposta trabalhar o repertório dos séculos XV, XVI e XVII.

Outra orquestra foi organizada em 1950, pelo compositor e regente Olivier Toni: a Orquestra de Câmara de São Paulo. "Toni dirigiu vários concertos no exterior (Dakar, Luca, Roma etc.) di­vulgando obras inéditas de compositores latino-americanos, dos séculos XVI e XVIII" (Campanhã & Torchia, 1978, p.259). Dessa orquestra, Duprat também foi fundador e, como violoncelista, to­cava basicamente sem remuneração, de 1952 até 1961.

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Duprat foi membro da diretoria da Sociedade Orquestra de Câmara de São Paulo, numa época em que raramente havia cachês pelos concertos. Como tesoureiro, cuidava do dinheiro que conse­guiam receber em patrocínio e o dividia entre os músicos. Mais uma vez, Dona Ivone Levy (esposa do arquiteto Rino Levy), atuando como uma espécie de mecenas da época, arrecadou fundos para a orquestra, junto aos empresários Sr. Hasso Weisflog (dono da Edi­tora Melhoramentos), Gerard Loeb (Jóias Bento Loeb), e outros.

Olivier Toni e Rogério Duprat criaram, de forma integrada à Orquestra de Câmara Municipal, um Grupo de Música Experimen­tal para jovens de até vinte anos. Duprat foi diretor desse grupo no período de 1956 até 1961. O objetivo do grupo era fazer música com jovens iniciantes e desenvolver um repertório bastante abran­gente, que compreendia desde peças antigas até Schönberg. A res­peito dessa experiência, a professora Marília Pini que, na época, era uma jovem violista nessa orquestra, comenta em entrevista:

Rogério treinava os jovens para tocar; as dicas que ele deu, de afinação, ataques, golpes de arco e vibratos, jamais esqueci, foram fundamentais para a minha formação como instrumentista. Impres­sionava o conhecimento musical que o maestro Duprat tinha; ele e seu irmão Régis eram considerados os intelectuais da época, pois além da vasta cultura musical, eles falavam muito bem francês e inglês. Lembro-me de que Rogério era por demais crítico, mas sempre man­tinha o coração muito aberto e extremamente generoso. (Entrevista, jul. 1999)

Além de atuar como instrumentista, Duprat compunha basi­camente para o repertório de câmara, e em 24 de maio de 1960, o seu Concertino para oboé, trompa e cordas foi executado pela pri­meira vez pela Orquestra de Câmara de São Paulo. Nela havia espaço para serem mostradas as peças dos novos compositores, o que não acontecia na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, que era muito restrita em termos de repertório, por causa da pos­tura conservadora de seus regentes: Armando Bellardi, Camargo Guarnieri, Eduardo Guarnieri, Souza Lima, Zacharias Autuore, e outros. A iniciativa dessa Orquestra de Câmara incentivou jovens compositores, àquela época, a escrever para o repertório de câma­ra. Sobre esse episódio, Gilberto Mendes comenta:

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Conheci o Rogério na década de 1950, através dos seus escritos comunistas no jornal Notícias de Hoje. Gostava demais das idéias avançadas desse autor e achava o nome Rogério Duprat bastante pomposo, porém não sabia quem era. Fiz contatos com o Toni, fi­quei ligado no pessoal da Orquestra de Câmara de São Paulo e, em uma leiteria, apresentaram-me Duprat, então, o reconheci. A orques­tra tinha, como proposta, divulgar o repertório de peças contempo­râneas. A primeira havia sido o Concertino de Rogério Duprat, a próxima seria a minha: Ricercare para duas trompas. Nessa época, me encontrava muito doente; no entanto, era necessário que se fizes­sem manuscritos das partituras para os músicos, e eram muitas cópias a se fazer. Não havia xérox e tudo era muito difícil, por esses moti­vos, disse a Toni que não seria possível a execução de minha peça. Fiquei maravilhado com a atitude do Rogério: ele fez todas as cópias sozinho para que o projeto pudesse ser realizado, tamanha era a von­tade de mostrar as novas músicas.

Duprat não só me ajudou nesse momento, como também na gravação do meu primeiro disco, intitulado Gilberto Mendes, lança­do pela EMI-Odeon, com peças experimentais, incluindo Beba coca-cola.3 Gravei o disco no estúdio que era dele, o Vice-Versa. Ele me fez um preço bem razoável, para que o disco pudesse ser concretiza­do. Não parou aí, ajudou também meu filho, Carlos Mendes, a gra­var seu disco Imã, fazendo arranjos e gravações. É um prazer falar de Rogério, tenho verdadeira admiração pelo humanista que é. Com o tempo, constatei que ele é exatamente o que escrevia, muito compa­nheiro do velho comunismo. Eu o amo muito! Ele mora no meu coração. (Entrevista, fev. 2000)

Nessa mesma época, Rogério Duprat começou a se projetar

como instrumentista, prestando concursos e atuando como violon­

celista em diversas orquestras da cidade. No período de 1953 até

1954, tocou na Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo, porém,

por falta de verbas, a orquestra foi obrigada a encerrar suas ativi­

dades musicais. Em seguida, começou a atuar no Quarteto de Cordas

da Associação Paulista de Música, no qual permaneceu até 1957.

Quando ainda não havia videotaipe, todos os canais de televi­

são mantinham suas orquestras fixas. Rogério Duprat atuou em

várias delas: na Orquestra Sinfônica da TV Tupi de São Paulo, nos

3 Obra composta em 1967, sobre poema de Décio Pignatari.

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anos de 1955 até 1960, na Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional e na TV Paulista de São Paulo, a atual TV Globo.

Foi aprovado por concurso, em 1959, pela Orquestra Sinfô­nica Municipal do Rio de Janeiro. No entanto, como Rogério Duprat fora efetivado pela Orquestra Municipal de São Paulo, não assumiu o cargo. Duprat foi contratado como extranumerário até 1960, pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e efetiva­do no cargo, por concurso. Porém, em 1964, pediu afastamento para poder assumir aulas na Universidade de Brasília. Durante sua estada em Brasília, de 1964 a 1965, também atuou como violon­celista na Orquestra de Câmara da Universidade de Brasília.

Paralelamente a suas atividades em orquestra, atuava como violoncelista autônomo, participando de diversas gravações. Duprat lembra que perdeu a conta de quantas vezes saiu de madrugada, diretamente dos estúdios de gravação, para os trabalhos das or­questras que começavam às oito horas.

Seu percurso como violoncelista foi marcado pela atuação em diversas orquestras brasileiras, além de gravações em estúdio. Por um lado, Duprat mostra uma visão positiva como compositor e regente: "Em meu trajeto como compositor, não existiu nada que eu não tenha realizado dentro daquilo que considerava ser impor­tante fazer naquele momento. Nunca ambicionei ser um grande regente. Atuei como regente por exigências profissionais, fiz o necessário". Por outro, como instrumentista, ele demonstra certa insatisfação: "Mas, como violoncelista ... não cheguei a ser o ins­trumentista que sonhei. É a minha maior frustração, porque com o tempo acabou sendo a maior paixão que tive na música: o violoncelo" (Entrevista, set. 1998).

ATUAÇÃO COMO PROFESSOR

Rogério Duprat não desenvolveu nenhum método didático específico para a transmissão de seus conhecimentos musicais. Isso se deve, principalmente, a seu desinteresse pelo mundo acadêmico e pelo seu curto tempo de atuação como professor, apesar de ter exercido essa função, no decorrer de seu percurso de vida, em diversas instituições. Embora sua presença no cenário musical seja

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destacada por sua atuação em outras áreas, suas experiências didá­ticas não podem deixar de ser mencionadas, uma vez que Duprat atuou como professor universitário, de instrumento e música de câmara, assim como palestrante em festivais de música e cinema. Não fez, porém, carreira universitária e também não deixou uma escola, no sentido em que não formou um número necessário de alunos para que isso se desse. Ao longo de toda a sua vida, apenas alguns alunos permanecem em sua memória e, entre eles, Guilher­me Vaz é de quem mais se recorda da época em que trabalhou na Universidade de Brasília. Muito talentoso, Guilherme Vaz profis-sionalizou-se, trabalhando com grupos de rock, e integrando a banda que acompanhava o cantor Ney Matogrosso, entre outros artistas famosos, o que não deixa de ser uma curiosidade.

Lecionar violão popular na década de 1940 foi, para Duprat, sua primeira atividade como professor. Por intermédio de um com­pacto feito por ele próprio, de dois métodos de ensinamento bási­co do violão da época, Garoto e Canhoto, Duprat ensinava por cifras. O repertório básico utilizado em suas aulas constituía-se das músicas tocadas nas rádios do momento, figurando, entre elas, canções em andamentos moderados, como as de Dorival Caymmi, Orlando Silva (1915-1978) e Sílvio Caldas (1908-1998).

No ano de 1956, Duprat lecionou para músicos profissionais que não sabiam ler partituras, desenvolvendo o curso de iniciação musical, no Departamento Musical do Sindicato dos Músicos Pro­fissionais, em São Paulo.

A partir da década de 1960, paralelamente às suas atividades como professor, Duprat compôs para teatro, TV, cinema e tomou parte no movimento Música Nova.4

Em 1962, fez música experimental e de computador com o compositor Damiano Cozzella. Foi regente e arranjador da TV Excelsior de São Paulo, cargo que ocupou até 1964, recebendo então prêmios pela sua música para o filme A ilha, de Walter Hugo Khouri, e em 1965 pela música para o filme Noite vazia, do mesmo

4 Grupo paulista, dedicado à música de vanguarda, formado em 1961 por Willy Correia de Oliveira, Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Gilberto Mendes.

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autor. Nessa ocasião, além de ter participado de happenings,5 foi convidado para lecionar na Universidade de Brasília. Sobre esse episódio, Vasco Mariz comenta que o compositor Cláudio Santoro (1919-1989), àquela época, encontrava-se em turnê pela Europa e fora convidado pelo reitor da Universidade Nacional de Brasília (UnB) para ocupar o cargo de diretor do Departamento de Artes. Santoro "voltou à pátria para organizar o departamento de música. Criou a orquestra de câmara e introduziu nossos métodos de ensino, o que lhe valeu a medalha de ouro do Jornal do Brasil. Mas esse período só durou dois anos (1964-1965) e se afastou de Brasília por motivo da crise na UnB. Regressaria treze anos depois" (Mariz, 1983, p.265). Durante o período em que permaneceu no cargo, convidou alguns músicos para lecionarem lá; além de Rogério Duprat, Damiano Cozzela, Décio Pignatari e Régis Duprat que também foram convidados. Em 1964, Duprat mudou-se com toda a família para Brasília, a fim de assumir as aulas na Universidade.

Era intenção de alguns professores de música montar grupos experimentais de criação, envolvendo, inclusive, produções de música aleatória (Figura 12). Para esse intento, utilizaram méto­dos informais, o que ocasionou a desestruturação e reformulação dos currículos tradicionais de música adotados pela Universidade. Duprat e Cozzella estruturaram um projeto para a divulgação de um laboratório sonoro, funcionando como Centro de Pesquisas Fonológicas e tornando viável um curso de Comunicação Sonora, como parte integrante do currículo de música.

Havia poucos alunos de música na Universidade, e estes traziam como bagagem cultural pouquíssima informação sobre música. Rogério Duprat procurava suprir essa carência em suas aulas. Ao lecionar violoncelo, ensinava basicamente as Suítes de J. S. Bach (1685-1750). Entre as disciplinas de perfil teórico, lecionou rítmica, dentro da qual incluiu ritmos brasileiros de música popular; teoria geral; contraponto tonai e modal, e harmonia. Ao estudo das disci­plinas tradicionais, Duprat não deixava de acrescentar as técnicas

5 Manifestação parateatral que floresceu no final da década de 1950 na Europa e Estados Unidos, sob a liderança de Jean-Jacques Lebel, Allan Kaprow e ou­tros (Vasconcellos, 1987, p.100).

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dodecafônicas e atonais, das quais possuía grande conhecimento. Suas aulas de composição estavam longe de seguir os procedimen­tos tradicionais da Universidade. Seus alunos executavam em aula as peças que eles próprios criavam, resultando muitas vezes até em sambas, estilo não muito usual em aulas de composição erudita, àquela época.

Em diversos sentidos, o Brasil da década de 1960 foi marcado por mudanças drásticas. A intervenção dos militares no ensino bra­sileiro impôs determinantemente uma outra mentalidade educacio­nal, impossibilitando de maneira radical que as propostas avança­das e liberais de muitos professores pertencentes a diversas áreas da educação continuassem a sobreviver como uma nova ideologia cultural.

A interferência dos militares atingiu a Universidade de Brasília. Professores de diversas áreas sofreram com a repressão, o livre pensar e a livre expressão estavam comprometidos e qualquer manifestação fora do novo cunho político poderia ser considerada de caráter subversivo pelo Ato Institucional n° 5, de 13 de dezem­bro de 1968. Assis Silva registra a respeito dos fatores determina­dos por esse Ato o trecho pertinente à cultura:

Considerando, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la:

Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de me­didas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolu­ção, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvol­vimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucioná­ria. (1997, p.298)

Muitas reuniões, associações conjuntas de professores e alunos eram mantidas na Universidade de Brasília, para posicionar a situação política vigente dentro do contexto universitário. Um professor de ciências sociais foi demitido, por ser acusado de má conduta de acor­do com as novas regras estabelecidas. Em sinal de protesto pelas

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novas medidas tomadas pelo governo, duzentos professores pediram demissão, foram embora da Universidade no ano de 1965, e Rogério Duprat estava entre eles. Décio Pignatari nos relata este fato:

Estávamos bolando um plano para realizar um laboratório so­noro e um programa para a TV de Brasília, com o intuito de apresen­tar só repertório de músicas contemporâneas. Lembro-me que havia ido a Viena para o 2o Congresso de Desenho Industrial, em 1965. Quando voltei para Brasília, foi que tudo aconteceu. Havia a rejei­ção por parte dos professores e alunos pelo reitor da Universidade e as tropas invadiram o campus. Nessa época, estávamos sob a presi­dência de Castelo Branco. Penso que venha daí a desilusão de Rogério com a vida acadêmica. A partir disso, ele não teve mais interesse em compor música contemporânea. (Entrevista, fev. 2000)

Desempregado, Duprat retornou com a família para São Paulo. Esse fato o obrigou a morar de favor na casa de sua mãe. Foi um período muito doloroso e sofrido para todos, configurando-se como o único momento, a respeito do qual, Duprat demonstra uma mágoa no seu trajeto como músico: a imposição autoritária do AI-5 devas­tando a liberdade de expressão. Apesar do momento difícil, em 1966 recebeu prêmios pelas trilhas sonoras dos filmes Corpo ar­dente, de Walter Hugo Khouri; e As cariocas, de Fernando de Bar­ros, Walter Hugo Khouri e Roberto Santos.

Residente em São Paulo, no final da década de 1960, Duprat começou, junto com Damiano Cozzella e Décio Pignatari, a fazer jingles e, também, arranjos para músicas populares. Desde então, Duprat começou a ser reconhecido como arranjador no meio mu­sical, atividade que lhe rendeu uma série de premiações. Em 1967, foi premiado pela TV Record como melhor arranjador do III Festi­val da Música Popular Brasileira, com a música "Domingo no par­que", de Gilberto Gil. Esse arranjo marca o início do envolvimento de Duprat com o Tropicalismo.6 Em 1968 recebeu o troféu Galo de Ouro, pelo melhor arranjo do III Festival Internacional da Can­ção (FIC), da TV Globo, no Rio de Janeiro, e foi diretor musical do

6 Nome que designa a intervenção do grupo de compositores baianos liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil no cenário da música popular nos anos de 1967-1968. (Enciclopédia da música brasileira, 1998, p.787)

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programa "Divino Maravilhoso", da TV Tupi. Nessa fase, Duprat participou também, como arranjador e regente das músicas apre­sentadas por Os Mutantes, Elis Regina e Chico Buarque, no Festival de Cannes (MIDEM), na França.

Em julho de 1972, Duprat foi convidado para realizar um curso de arranjo musical no Festival de Música em Ouro Preto. Utilizando um repertório previamente selecionado em fitas casse­tes e partituras para o qual havia feito arranjos, demonstrou passo a passo, aos participantes do curso, os procedimentos de construção de cada uma das obras escolhidas, visando com isso evidenciar o processo de criação. Dentre os participantes, a presença dos músi­cos Flávio Venturini e Vermelho7 pode ser destacada.

Em novembro desse mesmo ano, desta vez durante o Festival de Música em Belo Horizonte, Duprat realizou uma conferência que em nada se assemelha às convencionais. Ao contrário, seus procedimentos remetem de imediato a algumas manifestações ar­tísticas de vanguarda e em especial aos procedimentos adotados por John Cage (1912-1992), tanto no que se refere à preocupação com a imprevisibilidade como no que diz respeito ao formato de suas próprias conferências. Essa ligação com Cage não é omitida por Duprat, ao contrário, ela é totalmente assumida, assim como suas ligações com Oswald de Andrade (1890-1954), Erik Satie (1866-1925) ou com o dadaísmo.

Na preparação de sua conferência, Duprat confeccionou al­guns cartões, cada um deles contendo trechos do que pretendia dizer. Com exceção dos seis primeiros e do último, todos os outros cartões seriam lidos sem uma ordem prefixada. Dessa forma, o con­teúdo da conferência seria transmitido aleatoriamente e, segundo Duprat: "o objetivo era que o evento acabasse logo para que todos pudessem tomar um chope no bar da esquina".

Sobre o planejamento dessa conferência, o próprio compositor tece um comentário:

Em novembro de 1972 me convidaram prum papo no DA da Universidade de Belo Horizonte. Escrevi um papo curto em cada

7 Integrantes da banda musical brasileira 14 Bis.

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cartão pouco maior que uma carta de baralho. Na hora do papo, começamos com a exibição da foto-áudio-novela "Desatinos do Des­tino"8 (que fora pro ar no Plug, espetáculo que fizemos no Galpão, em São Paulo), com roteiro do Décio Pignatari, e cujos atores eram ele próprio, o Damiano Cozzella, a Tânia e eu. Em seguida, distribuí­mos os cartões em três pessoas (Sartori, Melão e eu), depois de embaralhá-los, e fomos lendo alternadamente. (Manuscritos da con­ferência, Duprat, 1972, p.l)

Alguns exemplos do conteúdo dos cartões:

- Não vou admitir que vocês façam perguntas: eu não as ouvi­ria e, ainda que as ouvisse, não saberia respondê-las.

- Poetar o logos e medir o resto. Pelo avesso. O now-knowledge: conhecimento de agora. Estamos falando de uma logoesia. Pensamento logoético: medir tudo, menos o que é mensurável.

A partir daí se encontra a ordem do caos e caos da ordem. Cage: introduzir ordem onde houver desordem e vice-versa. - Se disserem que estou copiando o tipo de palestra de John

Cage, não se amofinem: estou mesmo. Ou que isso é DADA; ou que amamos Oswald; que assim não chegamos a nada; ou que Satie já fizera.

Tudo. É isso tudo mesmo! Salve-se quem puder! - Neste cartão não escrevi nada. - Eles dizem que a TV veio prá ficar. Vocês entenderam bem? -A termodinâmica veio embananar toda nossa querida estética,

vulgarizando coisas como o princípio de incerteza e processos a esmo. Afinal, estava tudo tão perfeitinho antes! - Um sistema é um sistema. Auto-regulado. Altamente regulado. Organizado. Urgente quantificar a desordem e a qualidade. Edificar uma teoria dos quálea. E fabricar um entropímetro. (Duprat, 1972)

8 Trata-se de um curta-metragem montado a partir de slides e exibido no espe­táculo de música Plug, em 1970, no Teatro Galpão, em São Paulo. No tópico "Um novo gênero literário", do livro Contracomunicação, de Décio Pignatari, esse assunto é abordado detalhadamente.

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No que se refere ao intento de estabelecer alguns pontos que reflitam o perfil de Rogério Duprat e cumpram, portanto, o obje­tivo deste capítulo, essa conferência colabora em diversos senti­dos: primeiramente, a presença da ironia, que, como visto, é um elemento recorrente podendo, portanto, ser considerada um traço característico de sua personalidade e, até mesmo, de suas convic­ções. Outro fator que pode ser abstraído do conteúdo de sua con­ferência é o fato de ele ter explicitado as semelhanças com proce­dimentos adotados por outros compositores ou mesmo artistas plásticos e escritores. Seu objetivo era deixar claro que se tratava da coexistência de procedimentos já utilizados em outros países e, provavelmente, a citação do nome do escritor e poeta Oswald de Andrade visasse destacar a presença do elemento "antropofágico" na conferência que pode ser notado quando, depois de assumir as fontes que o inspiraram na confecção de sua conferência, ele es­creve: "Tudo. É tudo isso mesmo".

A influência de Cage não se restringe apenas ao formato da conferência, ela está também presente em seu conteúdo. Como se observa, um dos cartões possui a seguinte frase: "Neste cartão não escrevi nada". Note-se que o cartão poderia estar simplesmente em branco; neste caso, Duprat realmente não teria escrito nada, ele, porém, optou pelo paradoxo, ou seja, escrever uma frase que é exatamente a negação desse ato. Um procedimento semelhante pode ser encontrado em um trecho da Conferência sobre o Nada, proferida por Cage em 1949: "eu estou aqui e não tenho nada a dizer e o estou dizendo e isto é poesia" (Campos, Prefácio, in Cage, 1985, p.9).9

Neves refere-se a essa coexistência de procedimentos encon­trada na conferência de Duprat, como "um reencontro com o espí­rito dadaísta, com a filosofia de Cage, mas tudo isto com um sabor bem brasileiro" (1981, p.164). O trecho a seguir refere-se a sua versão desse evento:

A última criação importante de Rogério Duprat , lançada em 1973, foi a "Logoesia", série de dezenove cartões pensamentos que

9 Certamente, Cage e Duprat, atentos à discussão filosófica, estão aqui mencio­nando e identificando o conteúdo estético dos chamados "paradoxos da auto-referência" ou da "reflexividade". (N. E.)

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seriam lidos em conferências. O próprio compositor, numa "logo-entrevista" (cansado de dar entrevistas ele resolve logo-entrevistar-se), declara que ela vem do "Dada". Sua forma exterior é a da poesia concreta (sintética c especializada) c seu objetivo, "poetar os logos e medir o resto", "medir, menos o que é mensurável". "Introduzir or­dem onde houver desordem e vice-versa" (à Cage), "defender heroi­camente, os bastiões logoéticos com a bravura da incomunicação e o despudor do absurdo". (Ibidem, p.165)

Essa conferência ilustra alguns dos elementos estéticos pre­sentes no pensamento de Duprat, assim como suas principais in­fluências. Em um pequeno resumo de sua filosofia de vida e de trabalho, ele comenta, em entrevista concedida a uma revista suíça, um pouco dessas influências: "Eu fui sempre um grande admirador de Debussy, Erik Satie, Webern, Stockhausen, Damiano Cozzella, Pierre Boulez, John Cage, Frank Zappa e Spike Jones. Meu traba­lho, no Tropicalismo e fora dele, foi e é do domínio da parábola, do pseudo, da caricatura, do deboche e da metáfora" (Chrispiano, 1999,p.41).

Quando abandonou definitivamente a vida acadêmica, Duprat passou a atuar apenas como músico e seu contato com escritores, músicos, diretores de cinema e teatro, bem como com as produ­ções dos diversos segmentos artísticos de sua época, culminou com sua participação em importantes movimentos culturais.10

A despeito de sua opção em assumir a qualidade estrita de músico e não a de professor, Duprat reconhece a importância das instituições no ensino da música: "É importante o ensino de música encontrar-se nas instituições, os alunos precisam estudar em al­gum lugar, não há dúvida alguma sobre isso!". Ao que parece, sua opção estava mais ligada ao seu temperamento irreverente, do que a uma possível descrença no ensino acadêmico: "Foi uma opção pessoal não seguir esse caminho. Não tinha paciência para estar com a música num conhecimento tão mastigado. A minha vontade

10 A atmosfera cultural que influenciou Duprat, assim como sua atuação efetiva em manifestações culturais assumem grande relevância para esta pesquisa, e, portanto, serão abordadas com mais detalhes e de forma mais específica no capítulo seguinte, dedicado exclusivamente a esses assuntos.

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era muito grande de experimentar as coisas novas, não queria ficar preso a um sistema tão sério" (Entrevista, jul. 1998).

PROCESSO COMPOSICIONAL

Primeira fase: Nacionalista (1950)

Aos quinze anos, quando ainda estudava no clássico, Duprat inaugurou seu processo composicional. Como autodidata, compôs duas valsas ao estilo da época, românticas e tonais, chamadas Eu te vi e Amo esta vida, ambas de 1947, dedicadas à sua namorada, Lali. Porém, a primeira fase composicional de Duprat, a se conside­rar, deu-se na década de 1950. Nessa fase, seu estilo foi essencial­mente nacionalista; seu professor de composição era Olivier Toni, por sua vez, aluno do Mozart Camargo Guarnieri, principal com­positor nacionalista da década de 1940.

Duprat escolheu esse estilo de compor especialmente por ra­zões políticas, pois nesse período era radicalmente comunista. As propostas do movimento musical nacionalista vinham ao encon­tro do que Duprat acreditava e lutava ideologicamente: em prol da cultura do país. Nesse momento, o objetivo fundamental de Duprat era colocar em evidência a cultura nacional por meio da arte, utilizando técnicas e formas composicionais acessíveis ao públi­co, com o intuito de aproximar a música erudita do povo brasilei­ro. Nessa fase, uma das principais fontes de inspiração de Duprat foram os livros de Mário de Andrade (1893-1945), nos quais colhia temas folclóricos nacionais para usá-los como material de base para suas composições.

Anos mais tarde, Duprat romperá drasticamente com esses valores ideológicos, passando a ironizar sua fase nacionalista, que chama de "caipirismo". Mas, antes desse rompimento, viverá um segundo momento em seu processo composicional: o estilo dode-cafônico.

Desse período são as seguintes composições trabalhadas por Duprat, no âmbito da música erudita:

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1954 Canções sobre textos populares (voz e piano) 1955 Dança e cantilena (flauta e piano) 1955 Noturno para flauta, clarinete e cordas 1955 Toada para piano.11

1956 Seresta para cordas 1956 Suite infantil para cordas 1956 Variações sobre um copo d'água (cordas) 1956 Sonatina para violino e piano 1956 Sonatina para violoncelo e piano 1956 Lírica n° 1 (violoncelo e piano)

Segunda fase: Dodecafônica (Final de 1950)

Pode parecer estranho situar duas tendências aparentemente antagônicas tão perto, na mesma década. Mas, como se verá, foi isso que sucedeu. A adesão de Duprat ao dodecafonismo não o afastou do nacionalismo, pelo contrário, esses movimentos se entre­laçaram, como aliás, ocorreu com Santoro, seu professor. No final da década de 1950, Duprat iniciou seus estudos de composição em São Paulo, com o compositor Cláudio Santoro. Para Duprat, esse período foi marcado fundamentalmente pelo estilo de seu profes­sor. Santoro foi sua grande influência como compositor. Com ele, Duprat descobriu a sua necessidade de buscar algo novo e o que era, de fato, compor: "penso que seja um ato de bravura, uma necessi­dade fisiológica, o ato de parir um trabalho" (Entrevista, mar. 1997).

Duprat passou a compor no novo estilo e, como ele mesmo afirma: "estava envolvido com a idéia serial de compor com o máximo da organização de um sistema musical. Santoro tinha um jeito de aplicar o dodecafonismo nas formas brejeiras, tipicamente brasileiras e era por aí que eu me orientava para criar". Desse modo, Rogério Duprat manteve o estilo nacionalista, porém, servia-se da técnica dodecafônica como base estrutural de suas obras. Pode-se considerar essa opção estilística como fruto da influência de Santoro. O pesquisador José Maria Neves fala a respeito disso:

11 Executada em 1955 por Eunice Catunda, na Rádio Nacional de São Paulo.

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A partir de 1946 começa a seguir na música de Santoro tendên­cia de compromisso entre a técnica dodecadônica e o espírito do nacionalismo, correspondendo a seu desejo de tornar sua obra fruto de seu posicionamento ideológico. Por coerência, Santoro simplifi­cará sua linguagem, com vistas a torná-la mais imediatamente inteli­gível e atuante. (1981, p.101)

Para que a presença de Cláudio Santoro na produção musical

de Rogério Duprat seja melhor compreendida, serão destacados

alguns pontos relevantes sobre o histórico composicional de San­

toro. José Maria Neves conta que:

Foi a partir de 1939 que Koellreutter e um pequeno grupo de músicos jovens interessados em seguir de perto o movimento musical contemporâneo criou o "Grupo Música Viva", que se transformaria logo na mais viva célula de renovação musical do país.

O primeiro compositor a aderir ao grupo foi Cláudio Santoro, que nos anos de 1940 e parte de 1941 fizera-se aluno de Koellreutter. Mas Santoro e Guerra Peixe serão os grandes nomes do "Grupo Música Viva", seus melhores representantes no plano da criação; é em torno destes dois nomes que se fará a propaganda do movimento, suas obras serão os melhores argumentos na defesa da criação con­temporânea. (Ibidem, p.90)

Quando Cláudio Santoro foi para o exterior para ampliar os

seus estudos em música, desligou-se do Grupo Música Viva, adotan­

do novas orientações estilísticas. Segundo José Maria Neves, o

período de questionamento estético de Cláudio Santoro coincidiu

com sua viagem de estudos para a Europa. Parte para a França em

agosto de 1947, permanecendo até o final de 1948, .12 pois consegui­

ra uma bolsa de estudos para ser aluno de composição de Nadia

Boulanger. Sobre esse momento de sua formação, Neves acrescenta:

Deste modo, quando de sua volta ao Brasil, Santoro pouco ti­nha em comum com o "Grupo Música Viva", iniciando de modo solitário um caminho que o levaria a uma nova concepção do nacio-

12 1948 será um ano-chave na evolução da música em todo o mundo. De 20 a 29 de maio acontece em Praga o 2° Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais, daí saindo as recomendações que deveriam levar a todo o mundo os princípios básicos de "realismo-socialista" (Neves, 1981, p.l 19).

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nalismo. Pouco depois, muitos dos adeptos do dodecafonismo deve­riam tender também para este novo nacionalismo e alguns deles -como Guerra Peixe - fizeram desta mudança de posição o início de um combate àquela técnica de composição e seu maior divulgador, Koellreutter. E interessante ver, justamente, o paralelismo das carreiras musicais de Santoro e Guerra Peixe: ambos converteram-se ao dode­cafonismo na mesma época (Santoro em 1940, Guerra Peixe em 1944) e ambos tornaram-se defensores do nacionalismo no mesmo perío­do (Santoro em 1948 e Guerra em 1949). (Ibidem, p.101)

Na década de 1950, Cláudio Santoro fixou-se em São Paulo e assumiu o seu novo estilo de composição, o "novo nacionalismo". Nesse período, Santoro publicou um artigo na revista Fundamentos n° 3, intitulado "Problemas da música brasileira contemporânea em face das resoluções e apelo do Congresso de Compositores em Praga" (1948, p.233). Esse documento questionava o "falso moder­nismo" e propunha buscar uma arte que correspondesse ao novo período histórico. Justamente nessa época, Duprat iniciou os seus estudos com Santoro, que se estenderam do ano de 1952 até 1956.

Estão inseridas nessa fase as seguintes obras eruditas compos­tas por Duprat:

1958 Quarteto para cordas 1958 Seis pequenas peças para violoncelo solo 1958 Concertino para oboé, trompa e cordas 13

1959 Variações para doze instrumentos solistas e percussão 1959 Lírica n° 2 (viola, clarinete e cordas)

Concluído o período de estudos de composição com Santoro, Duprat iniciou uma nova fase. Mesmo que ainda dentro dos pre­ceitos serialistas, rompeu definitivamente com o nacionalismo, aproximando-se do estruturalismo via Pierre Boulez. Cláudio Santoro, por sua vez, também iria percorrer outros caminhos composicionais. Sobre essa passagem, Vasco Mariz comenta que algumas das obras de Santoro permaneceram no estilo nacionalista, entre elas, Meu amor me disse adeus, Tu vais ao mar e duas peças com o título de Canção. "Já Eu não sei (1966) é obra de transição, quando deixava

13 Executada em 1959 pela Orquestra de Câmara de São Paulo, sob regência de Olivier Toni.

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o nacionalismo para o tipo de música universal e de vanguarda que faz hoje"14 (1983, p.266).

Terceira fase: O serialismo de Pierre Boulez (1960)

Na década de 1960, o professor Olivier Toni recebeu Pierre Boulez, para um evento musical em São Paulo e organizou com alguns jovens estudantes de composição um almoço para aquele compositor. Dentre eles estava Rogério Duprat. Recordando esse episódio, o próprio Duprat comenta:

Esse contato para mim foi um impacto, porém não consegui trocar uma palavra com Boulez. Mas, a partir daí, conseguimos as partituras de Structures (1952), para dois pianos; do Boulez estudá­vamos e analisávamos profundamente o serialismo estrutural peculiar de suas obras. Desde então, passei a pensar no serialismo, especifica­mente a partir das coisas do Boulez. A partir do momento que anali­samos também Klavierstücke I-TV (1953) de Stockhausen, tivemos de fato o conhecimento da existência dos movimentos vanguardistas europeus: Nouvelle Musique, na França, liderada por P. Boulez e Neu Musik, na Alemanha, por K. Stockhausen; sofri de forma devas­tadora a forte influência desses dois pólos musicais, tudo se modifi­cou. (Entrevista, maio 1997)

As obras a seguir referem-se à fase na qual Duprat esteve in­fluenciado pelo serialismo bouleziano:

1961 Organismo (cinco vozes solistas e instrumentos)15

1961 Mbaepu (xilofone, bandolim, violino, trombone e fagote) 1962 Antinomies I (orquestra de câmara)16

No final dessa fase, Duprat considerava-se insatisfeito com seu próprio ato de compor, sentindo a necessidade do inusitado para criar, ansiando, inclusive, por mudanças em suas posturas ideo-

14 Claudio Santoro nasceu em Manaus, 23.11.1919, e morreu em Brasília, 27.3.1989.

15 Executada em 1961 pela Orquestra de Câmara de São Paulo, regência de Olivier Toni.

16 Na página 118 da tese Fundamentos histórico-políticos da "música nova e da música engajada" no Brasil a partir de 1960: O salto do tigre de papel, de Carlos A. M. R. Zeron, consta uma obra de Duprat intitulada Antinomius II. O mesmo acontece na página 164 do livro Música contemporânea brasileira,

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lógicas e políticas. No entanto, ele que era comunista radical desde o final da década de 1940, passou a partir desse momento a se desligar gradativamente do "Partidão", como ele próprio se refere ao Partido Comunista Brasileiro. Damiano Cozzella, seu grande amigo e companheiro intelectual, exerceu nessa época grande influência sobre ele, trazendo consigo uma nova idéia, a de que a música tinha de andar sozinha, desvinculada das posturas políticas de quem as compu­nha. Essa idéia precisava ser explorada e lá partem eles para o exterior, em busca de algo novo e inusitado para empregar em sua música.

Quarta fase: Alemanha, França, computador e John Cage (1960)

Em julho de 1962, Duprat seguiu para a Alemanha ao lado de outros compositores brasileiros, a fim de participar do curso de férias de Darmstadt que, nesse ano, era ministrado pelos composi­tores Henri Pousseur, Pierre Boulez e Karlheins Stockhausen.

O trompista Itamar Aragão, amigo de Duprat, graças ao auxí­lio de sua mãe Maria Aragão, que trabalhava num segmento do Ministério da Educação, conseguiu o financiamento da passagem de Duprat para a Alemanha, por intermédio de um órgão do Go­verno Federal. Esse auxílio permitiu tornar possível a ida de Duprat para o curso de música em Darmstadt. Outras despesas da viagem ficaram por conta do próprio Duprat, que acabou gastando muito pouco, pois a alimentação era oferecida pela própria organização do Festival. A hospedagem era gratuita e, graças a uma "boa pro­sa" brasileira, acabou não pagando também o curso de férias, ale­gando que "viera da América Latina".

Essa foi a primeira vez que Duprat saiu do Brasil e encontrou-se com outros compositores: Willy Correia de Oliveira e Gilberto Mendes, que moravam em Santos e haviam viajado juntos para o

na qual José Maria Neves menciona a existência de uma peça intitulada Antinomias II, do mesmo autor. Embora os autores tenham utilizado títulos diferentes, é evidente que se referiam à mesma obra. É importante ressaltar, no entanto, que Rogério Duprat não confirmou a existência dessa obra. Ao ser questionado sobre essa composição, disse: "quando a gente compõe uma obra intitulada Antinomies I, pressupõe-se uma próxima composição, porém ela nunca foi realizada" (Entrevista, jul. 2000).

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Festival. Havia ainda outros músicos vindos do Brasil: Eládio Perez Gonzalez, cantor paraguaio, há muito radicado no Brasil e o maes­tro e arranjador Júlio Medaglia (Figura 13) que, na época, estuda­va em Friburgo, mas fora até Darmstadt, como visitante, para o Festival. Nesse ano, o amigo Cozzella não fora ao Festival, pois já havia participado no ano anterior. Há, porém, uma curiosidade interessante: Duprat teve como colega de classe o músico america­no Frank Zappa que, àquela época, participava ativamente da música de vanguarda norte-americana.

Como aluno do Festival, Duprat tece comentários a respeito de seus professores e de seu aproveitamento no curso:

Já me esqueci de muita coisa, mas lembro-me de que as aulas de Stockhausen foram as que mais me acrescentaram, ele não obedecia ao esquema de aula tradicional, o seu curso era sempre como um laboratório sonoro, passando noções de densidade, volume, "técni­cas dos parâmetros", como o próprio Stockhausen as chamava. Quan­to a Boulez, no dia em que almoçamos juntos no Brasil, ele nos falou sobre o Festival e todos ficaram com vontade de ir.

Antes de partir para a Alemanha, além de analisar algumas pe­ças desses compositores, também havia ouvido em fitas cassetes al­guma coisa de Stockhausen, e escutado Structures para dois pianos, de Boulez, num concerto em que os pianistas Paulo Herculano e David Machado as tocaram brilhantemente.

Quando saí do Brasil, levei a minha peça Antinomies para mos­trá-la nas aulas, porém a perdi no metrô europeu ... sinceramente que alívio tê-la perdido, não era mais necessário mostrá-la pra nin­guém. (Entrevista, maio 1997)

A estada de Rogério Duprat no Festival de Darmstadt condu­ziu-o definitivamente para uma mudança radical como composi­tor. Sobre esse aspecto ele próprio relata:

Ter ido para a Europa foi muito importante, mas o mais curioso foi que, chegando lá, conheci os alunos americanos. Eles se importa­vam muito pouco com o estruturalismo da vanguarda européia; para eles a prioridade em estética musical estava em seu próprio país, encabeçada musicalmente por John Cage. Não conhecia Cage, ape­nas Koellrcutter havia comentado comigo sobre ele, numa carta que havia me enviado quando estava em Genebra. (Entrevista, maio 1997)

Nessa época, o compositor Koellreutter conseguira pela Fun­dação Ford uma bolsa para que Duprat estudasse composição na

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Alemanha. Devido ao baixo valor dessa bolsa de estudos, não foi possível sua ida com a família. A respeito dessa passagem, Duprat comenta: "se pudesse ter ido, talvez o meu destino teria sido com­pletamente diferente do que foi. Penso que poderia estar até hoje escrevendo música, como compositor erudito, sem nunca ter tran­sitado pela música popular; quem sabe?" (Entrevista, out. 1996).

A fim de notificar a Duprat a concessão dessa bolsa de estudos da Fundação Ford, Koellreutter enviou-lhe de Genebra uma cor­respondência (Figura 3), na qual, além de constarem as condições de tal concessão, Koellreutter comentou sobre o concerto a que assistira, de John Cage. Essa foi a primeira vez que Duprat ouvira falar nesse compositor. Em 1985, Duprat traduziria a partir da versão norte-americana de 1967, o primeiro livro de Cage em lín­gua portuguesa: De segunda a um ano, editado pela Hucitec, em São Paulo, com revisão e prefácio de Augusto de Campos.

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FIGURA 2 - Carta de John Cage enviada de Nova York a Rogério Duprat em 3.12.1979.17 Acervo Rogério Duprat.

17 "Obrigado pela tradução de todas aquelas declarações! Deve ter sido uma animada palestra. Estive na Europa e sinto te responder tão tardiamente. Agora eu estou no ensaio de um novo texto chamado Empty Words (Desmilitarização da linguagem). Tudo de bom." (Tradução da autora)

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FIGURA 3 - Carta de Koellreutter enviada de Genebra, Suíça, a Duprat em 27.5.1963. Acervo Rogério Duprat.

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Em um primeiro momento, pode parecer que a ida de Duprat para o curso de férias em Darmstadt foi imprescindível para que encontrasse o que de fato buscava. Porém, ironicamente, a ten­dência americana naquele momento vinha ao encontro do que na realidade considerava como o inusitado em música. Não foi, por­tanto, no estruturalismo representado pelos grandes nomes da van­guarda européia que encontrou o que buscava, mas sim no pólo que tendia para a não ação, para o acaso, para o aleatório: sua grande inspiração estava no happening praticado por John Cage nos Estados Unidos. A partir daí, tornou-se radicalmente um "cagista" e adotou, como sua própria filosofia artística, algumas posturas daquele compositor.

Após o término do curso em Darmstadt, permaneceu durante um mês estagiando, em caráter informal, no laboratório da Radio Television Française (ORTF), em Paris, dirigido, na época, por Pierre Schaeffer. Foi levado para lá por François Bayle (o sucessor de Schaef-fer na direção do GRM18 de Paris), que também se encontrava no Festival, em Darmstadt. Estavam todos de férias, inclusive Schaeffer, dessa forma foi possível a Duprat instalar-se na casa de um dos estudantes, que se encontrava vazia.

Não só o encontro com os "cagistas" revolucionou o pensa­mento de Duprat, mas também o contato com o aparato da música concreta. No laboratório da ORTF, Duprat trabalhou com pianos preparados, pois, além de Cage, os franceses também os utiliza­ram demasiadamente em suas criações e, além disso, aprendeu al­gumas técnicas de manipulação sonora por intermédio de edições em fitas magnéticas, processos de montagem, filtragens e altera­ções de freqüência; utilizavam-se, também, folhas de zinco, além de outros materiais concretos, para as gravações experimentais, no estúdio.

Um fato curioso de que Duprat se recorda, foi que, no mesmo período em que estava no laboratório de Paris, o professor Michel Philipot (1925-1996)19 também lá se encontrava, trabalhando nos

18 Groupe de Recherche Musicale. 19 Michel Philipot foi professor do IAP/UNESP, no período compreendido entre

1976 e 1980.

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estúdios. Um outro fato que marcou sua passagem pela França, e que Duprat menciona com carinho, foi ter assistido a uma audição de órgão, do compositor Olivier Messiaen (1908-1992), na Igreja de Santo Eustáquio, em Paris.

No ano de 1962, Rogério Duprat retornou ao Brasil e, junta­mente com seus dois grandes amigos, Damiano Cozzella e Décio Pignatari, fez um curso de programação de computador com Ernesto De Vita, professor do Centro de Cálculo Numérico da Faculdade Politécnica da USP. Com esse curso, adquiriu os conhe­cimentos básicos de informática, tal como era conhecida na época.

A experiência adquirida na França e na Alemanha, associada ao seu contato com a área de programação de dados, resultou em uma obra denominada Klavibm II (1963), composta em conjunto com Damiano Cozzella. Apesar da pequena produção envolvendo suportes tecnológicos, sua incursão pela música eletrônica não passou despercebida. Numa matéria intitulada "Rogério Duprat e a música eletrônica", o compositor Edman Ayres de Abreu comen­ta que suas obras Concertino para oboé, trompas e cordas e Orga­nismo demonstram "a tendência especulativa de Rogério Duprat". Para ele, essa tendência é a responsável pela "privilegiada posição que Duprat ocupa no Brasil, como arranjador e maestro da grava­dora V.S. e internacionalmente como autoridade em música ele­trônica". Essa reportagem traz, ainda, alguns comentários a res­peito da utilização dos recursos da música concreta; de fato, "na trilha sonora que compôs para o filme A ilha, Rogério utilizou algumas manipulações de fita magnética" ( A Gazeta, 1963).

Em 1964, Duprat partiu para dar aulas na Universidade de Brasí­lia, tendo como objetivo a montagem de um Centro de Pesquisas Fonológicas. Ele ainda guarda com carinho os manuscritos desse projeto, porém, em razão da situação política em que se encontrava a Universidade, àquela época, ele nunca se realizou. No ano se­guinte, retornou a São Paulo e prosseguiu com suas atividades artís­ticas. Além de continuar suas pesquisas sobre música em computa­dor, realizou, ao lado de Damiano Cozzella, alguns happenings. Sobre um desses episódios, Sidney Borges, que na época era aluno do curso de arquitetura da FAU-USP, comenta:

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Estávamos na Faculdade de Arquitetura, foi em 1969 e eu tinha dezenove anos nessa época. As pessoas não entendiam muito bem o que eles propunham. Parecia-nos um grupo de anarquistas. Alguns vaiavam, outros riam, e nós atirávamos ovos e água. Veja bem, o pessoal da FAU tinha um "pé-atrás" com os tropicalistas. Eles os viam, apenas, como um movimento estético, a maioria acreditava que eles não entravam no mérito político da época. Havia vários pontos de discórdia com os tropicalistas, muitos achavam o Caetano superficial. Mas, a lembrança que tenho de Duprat é a de que ele era um sujeito muito vivo, irônico, uma figura engraçada e muito irreverente. (Entrevista, nov. 1999)

Rogério Duprat conta, em entrevista, sua versão desse happe-

ning lembrado por Sidney Borges e como encarou receber as vaias

do público, àquela época:

Entramos vestidos de contador, ou seja, com um boné preto e camisa branca. Sem olhar para o público, conferíamos papéis o tempo inteiro. Essa era a conferência. Brincando com esse trocadilho, que­ríamos dizer muito sem precisar dizer nada. E claro que estávamos preparados para a reação do público. Já era de se esperar os ovos e as vaias. (Entrevista, nov. 1999)

No que diz respeito à questão política, a visão de Duprat,

exposta a seguir, contradiz a suposta idéia de que seus happenings,

ou mesmo o movimento tropicalista, estivessem imbuídos apenas

com a preocupação estética:

O pessoal da FAU queria o "blá, blá, blá". Gostavam de teorizar sobre tudo, o brasileiro é muito verborrágico: "fala-se sobre tudo e faz-se muito pouco". Todos eles eram muito vandrelistas e antitro-picalistas. Vandré cantou para os brigadeiros, não sabia música e não falava de seus parceiros. No meio da ditadura tinha que se fazer códigos, símbolos, passar a mensagem por debaixo da porta, sem dar as informações de forma explícita. Os tropicalistas eram muito mais políticos do que os falastrões c dizíamos as coisas da forma mais criativa possível. E eles? Quando apareciam os "milicos" corriam como doidos. Não aguentávamos mais esse palavrório! (Entrevista, jan. 2000)

Apesar do interesse de Duprat pelas técnicas adotadas pelos

compositores da música concreta e da música eletrônica, seu contato

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com as idéias e obras de Cage parece ter sido mais decisivo em sua formação. A adoção do happening como meio de expressão parece estar em acordo com essa proposição. O caráter efêmero dessa prática vem ao encontro dos ideais de Duprat:

não trabalho mais com o objetivo de ficar para a posteridade, a mú­sica não precisa do concerto, não precisa da partitura, a música em sua íntegra é o que acontece no momento da sua criação e quando executada. Desculpe-me, mas essa sua coisa de fazer tese, também é uma perda de tempo. (Entrevista, maio 1996)

Era de se esperar que ele se posicionasse dessa forma ante um trabalho de cunho cientifico, mesmo que esse trabalho se refira a ele próprio. Mais uma vez, ele mostra que, mesmo nos dias de hoje, não perdeu sua irreverência, atributo que tanto o caracteriza.

Nutrindo a crença de que não havia mais nada de novo em música para se fazer e que a cultura havia esclerosado, cessou sua busca pelo inusitado. Em uma entrevista, concedida a Jotabê Me­deiros, ele justifica seu rompimento com a prática composicional erudita: "achei que já tinha dito o que tinha a dizer, que não tinha nada mais de novo a dizer. Para ficar repetindo o que já havia feito, achei mais honesto parar" (Medeiros, 1996, p.4).

Essa entrevista mostra, mais uma vez, que o conceito do "novo" era fundamental para Duprat. Conceito, este, que vinha ampara­do pelo pensamento de vanguarda da década de 1960 e estava presente no manifesto da Música Nova no Brasil.

A postura de não deixar nada para a posteridade justifica a aparente escassez de obras, registradas em partituras, compostas na década de 1960. Duprat comporia apenas seis obras nesse perío­do, contra quinze compostas na década de 1950. Além das três obras mencionadas anteriormente e pertencentes à fase estrutura­lista, Organismo (1961) Mbaepu (1962) e Antinomies I, nos anos 1960, ele compôs ainda:

1963 Klavibm II (Programação realizada em parceria com Damiano Cozzella em um computador IBM-1620)

1964 Projeto unbica 1964 (piano e percussão) 1966 Tempo passou (piano e violoncelo)

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Dizer que "a música não precisa de partitura" e que "em sua íntegra ela é o que acontece no momento da sua criação" equivale a dizer que não há espaço para a sua comercialização. Ao optar pela prática do happening, Duprat estava ao mesmo tempo reagin­do contra um mercado interessado na comercialização da arte. De fato, para que fosse comercializado, o happening precisaria ser regis­trado e, se isso acontecesse, perderia a sua essência.

O ano de 1966 marcou o início de um período de dezessete anos, durante o qual Duprat não compôs nenhuma obra do gênero erudito, ao contrário, se dedicaria ao gênero popular e, conseqüen­temente, a uma música comprometida com o mercado fonográfico. Embora paradoxal, como se verá a seguir, sua atitude vai ao encon­tro de suas novas convicções ideológicas. Duprat passou a acreditar que não havia mais nenhuma diferença entre música erudita e po­pular, afirmando que "tudo virou arte" (Caderno de Música, 1981). A partir da segunda metade da década de 1960, passou a encarar a música como atividade profissional e assumiu com determinação uma postura comercial em relação à arte. Fazia arranjos com muita freqüência e de forma incondicional, ou como ele próprio comenta: "Naquela ocasião, eu fazia arranjos como quem faz pizzas". A mai­oria desses arranjos era destinada a jingles publicitários, trilhas so­noras para cinema, desfiles de moda, e que, ao serem encomenda­dos, eram prontamente realizados, sem nenhum processo restritivo.

Mas, não era só Duprat que sentia as mudanças sociais a seu redor e pressentia um novo papel para a música, até então não bem compreendida. O compositor Damiano Cozzella assumiria uma postura semelhante à de Duprat. Nessa época, Duprat tinha juntamente com ele e Décio Pignatari uma produtora de audiovi­suais chamada Audimus, que se responsabilizava por toda essa pro­dução artística. Essa súbita reviravolta no percurso desses compo­sitores foi comentada por Neves:

Na segunda metade da década de 60 começa a produzir-se mu­dança violenta no pensamento musical destes dois compositores: eles tomarão a música como atividade profissional principal, pensando-a com os mesmos critérios que qualquer outro artesão ou empresário. Aí está ainda um reflexo do neo-dadaismo, dirigindo toda a visão do

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fenômeno musical. Cozzella dirá que o que parece fundamental é que o artístico acabou; Rogério Duprat dirá que "a música morreu" ou que "não há diferença entre Stockhausen e Teixeirinha". Ambos estarão ligados, entre 1966 e 1970, a uma firma comercial de "pro­dução de qualquer coisa que dependa do som", realizando enco­mendas de tudo que seus clientes possam pedir, do "gingle" mais simples e direto às orquestrações mais sofisticadas para aqueles que seriam ídolos do "tropicalismo" brasileiro (Os Mutantes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, etc). De fato, estes dois compositores, especial­mente Rogério Duprat, são os responsáveis diretos por toda a revo­lução que se operou na música popular brasileira a partir de então. E eles continuam firmes na idéia de que nada há a fazer no campo da chamada "música erudita" e que a integração inteligente na sociedade de consumo é o único caminho a seguir. (1981, p.164)

Apesar de Duprat ter sustentado a idéia de que não havia mais nada a fazer no campo da música erudita, ele retornou a compor, mas com uma postura bem diferente da assumida anteriormente. Seu processo composicional apresentou um percurso, até a década de 1960, que abrangeu quatro fases diferenciadas, caracterizadas pela predominância de um estilo composicional: nacionalista, dodecafonista/nacionalista, estruturalista e happenings. A peça Áudiogames manuais para quatro violoncelos, composta em 1983, marcou a sua volta como compositor erudito. A partir dessa data, definir o seu estilo composicional tornou-se uma difícil tarefa, em razão da fusão de estilos utilizada em suas composições. Entretanto, fica a sugestão de Duprat ao referir-se aos seus próprios procedi­mentos criativos: "Hoje o meu estilo é uma 'zorra total', brinco musicalmente com tudo o que conheço, não levo nada a sério" (Entrevista, jan. 2000).

Apesar de ter ficado ausente da música erudita, no período compreendido entre os anos de 1966 até 1983, desde a década de 1950 Duprat atuava nos veículos de massa, escrevendo artigos de música para jornais e revistas. Durante a década de 1960 essas ati­vidades continuaram e, quando deixou de se envolver com a música erudita, intensificou algo que já acontecia paralelamente: o seu envolvimento com a música publicitária e popular.

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1950 A 1990 - ROGÉRIO DUPRAT E A MÍDIA

Desde 1950, Duprat escrevia artigos para jornais e revistas como: Notícias de Hoje, Imprensa de S.Paulo, A Gazeta, Pasquim, Folha de S.Paulo, Fundamentos, Veja, Homem e Bondinho. Fez a produ­ção e redação do programa semanal Música e Imagem na TV Excelsior, canal 9, São Paulo, em 1961. Ainda nesse mesmo ano, promoveu o programa Música e Imagem (televisão ao vivo), do Festival Música Nova, em colaboração com a Bienal de São Paulo, com a apresentação de obras de compositores como Mayuzumi, Boulez, Cozzella, W C. Oliveira, Gilberto Mendes e Rogério Duprat, executadas pela Orquestra de Câmara de São Paulo e solistas convi­dados, sob a regência de O. Toni.

Nesse período, a produção artística de Duprat ganhou maior penetração nos meios de comunicação social, como rádio, televisão, livros, teatro, jornais, cinema, revistas, além de gravações fono-gráficas. Os diferentes níveis de acesso aos meios de comunicação deveram-se ao fato de seu campo de atuação ter sido extremamente vasto, abrangendo também produções de shows, direções, tradu­ções, entre outras atividades.

Em razão da relevância do conjunto dessas atividades, para uma melhor compreensão de seu todo criativo, serão destacadas as principais atuações, ou seja, aquelas responsáveis pela sua pro­jeção no meio artístico e nos veículos de massa.

Do ano de 1962 a 1964, Duprat foi diretor musical, arranjador e regente das gravadoras V.S. e Penthon, em São Paulo. Ainda nes­se período, trabalhou como arranjador e regente da TV Excelsior, canal 9, como assistente do regente Sílvio Mazzuca. Em 1964, pro­duziu o programa Música Contemporânea para a Rádio Educado­ra de Brasília. Em 1966, participou como membro do Júri do Fes­tival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior. E no ano de 1968, Duprat foi diretor musical, arranjador e regente do progra­ma Roberto Carlos à Noite, na TV Record, canal 7, e também do programa Divino Maravilhoso, na TV Tupi.

As incursões de Duprat no campo da arte abrangeram tam­bém a produção, criação e direção de alguns happenings. Entre eles, em 1966, está o MARDA (Movimento de Arregimentação

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Radical de Defesa da Arte) que consistiu, por um dia, numa espé­cie de "movimento de gozação". Um grupo formado por Rogério Duprat, Décio Pignatari, Damiano Cozzella, Alexandre Paschoal e outros visitou vários pontos representativos da cidade de São Paulo, chamados por eles "monumentos mardosos", entre os quais: a es­tátua de Borba Gato, situada na avenida Santo Amaro (zona sul), o avião de Santos Dumont, na antiga Praça 14 Bis, a extinta bandeira paulista do prédio Gazeta, na avenida Paulista, e os cemitérios da Consolação e do Araçá. Para o grupo, esses pontos representavam a exibição cafona do status da elite paulistana. Ao pendurarem, nos monumentos, pequenas placas com mensagens satíricas, bus­cavam ridicularizar os costumes burgueses. O evento terminou, no final da tarde, num convescote em cima dos túmulos do cemitério do Araçá, de onde o grupo foi retirado à força pelos policiais (Fi­gura 14). Outro espetáculo inspirado no happening foi o Plug, que contou também com a participação de Damiano Cozzella, Júlio Medaglia e Solano Ribeiro. Esse evento estreou no Teatro Galpão em São Paulo, em 1970, e foi mais um dos investimentos de Duprat no inusitado. Tratava-se de um espetáculo multimídia que contava com a participação de grupos de teatro, bandas de rock, exposições de fotos e exposições de filmes de curta e longa-metragem. Seu período em cartaz foi muito curto devido ao fracasso de bilheteria.

No ano de 1971, ao comprar a parte do estúdio de gravação Pauta, até então pertencente ao grupo musical Titulares do Ritmo, passou a integrar uma sociedade constituída por Luís Botelho, Wanderlei Rodrigues e a dupla de música popular Sá e Guarabira. Ampliado, o estúdio Pauta mudaria de nome e se tornaria um dos maiores estúdios de gravação de São Paulo, o Vice-Versa.

Porém, no ano de 1978, tomado por uma profunda depressão, Duprat vendeu a sua parte na sociedade e abandonou seu trabalho como músico comercial. O seu convívio diário com produções es­tritamente comerciais começou a ficar insuportável. Para poder sobreviver como músico, teve de se ater aos vínculos publicitários, o que o obrigou a produzir músicas sem profundidade; no entan­to, buscava não perder sua qualidade como compositor. Seu esta­do depressivo agravou-se, ainda mais, com a morte de seu irmão mais velho, Rubens, em maio de 1978, seguida da morte de seu pai, Délio, em novembro do mesmo ano. Mas, o fator determinante

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do abandono de sua carreira como músico comercial foi a surdez, que se manifestava desde a década de 1960. Nessa época, encon­trava-se num estágio mais avançado, o que contribuiu para o rom­pimento gradativo com as produções publicitárias e trilhas sono­ras para cinema.

Esporadicamente Duprat recebe encomendas como composi­tor, arranjador ou orquestrador. Sua última composição erudita, Estudo para piano, data de 1999 e, no que se refere a arranjos para música popular, ainda os realiza, a exemplo dos que fez para a canção "Tempo/Espaço contínuo" (1997), de Lulu Santos, e para a canção "O gosto de azedo" (1998), de Rita Lee. Essas encomendas, aliadas a uma pequena aposentadoria recebida pelo Inamps, cons­tituem suas atuais fontes de renda, além de raras remunerações recebidas por direitos autorais.

A relação de obras a seguir refere-se às composições de Duprat, das décadas de 1980 e 1990:

1981 Versão orquestral dos Prelúdios para piano, de Debussy 1983 Audio games manuais para quatro violoncelos (uma home­

nagem a Debussy) 1985 Versão sinfônica para a música Sampa, de Caetano Veloso20

1992 Versão orquestral para FRAKT=DX-MAC (RD)2, de Ruriá

Duprat21

1992 Versão orquestral para Sport et divertissements, de Erik Satie22

1992 Versão orquestral para um compacto de alguns temas de filmes 1993 Poor Elieze... (variações para piano a quatro mãos sobre o

tema de Beethoven)23

1995 Para André (vibrafone solo) 1999 Estudo para piano (dedicado a Eduardo Martins)

20 Essa obra foi executada em São Paulo (em cima do antigo edifício Andraus) pela Orquestra de Campinas, sob a regência de Benito Juarez, na década de 1990.

21 Peça gravada ao vivo, em 1996, pela orquestra Jazz Sinfônica no CD Mundo São Paulo.

22 Essa peça foi executada pela Orquestra Experimental de Repertório, sob a regência de Jamil Maluf, na década de 1990.

23 Executada em 1994 por Eliza Zein e Luciane Cardassi, na 16a Semana Guiomar Novaes.

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Desde a década de 1970, Duprat alterna sua residência entre um bairro da zona sul em São Paulo e um sítio em Itapecerica da Serra. Acorda aproximadamente às cinco e trinta da manhã para praticar yoga. Dedica-se à marcenaria e à atividade de videomaker, ambas como amador. Suas leituras atuais estão direcionadas para a astrofísica e astronomia, e sua atenção é voltada principalmente à sua família e amigos próximos. Procura levar uma vida simples e tranqüila, como ele mesmo comenta: "busco apenas o Zen, sem o budismo, não acredito em nada". Essa afirmação pode sugerir um certo pessimismo ou até mesmo um niilismo. Porém, Duprat, como músico, buscou assimilar as necessidades de seu tempo, por inter­médio da música viveu seus diferentes papéis artísticos e sociais. Procurou cumpri-los de acordo com seus valores ideológicos e, paralelamente, conviveu com o seu eterno conflito: criar e sobre­viver de sua criação. A busca pelo novo o fez percorrer todo o seu caminho musical e, posteriormente, essa mesma busca foi cessada pela descrença da existência do inusitado em música.

Em uma de suas recentes entrevistas, ao mencionar a arquite­tura contemporânea, Duprat evidenciou, ainda, o seu forte valor pelo "inventar": "Mencionei a arquitetura porque o pessoal está conseguindo inventar, no mundo inteiro, não só no resultado plás­tico, mas conseguindo imaginar as coisas para o futuro, as cidades, as casas que serão essenciais no futuro". Mas, quando se refere às demais artes, de um modo geral sua opinião é bem diferente: "O resto das artes está muito preso às soluções do entretenimento. A arte não tem muito do que se gabar nesse último período, os últi­mos trinta anos. Já que não há nada a fazer, vamos dançar uma valsa" (Medeiros, p.5).

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FIGURA 4 - Rogério Duprat, com sete anos, em 1939. Acervo Rogério Duprat.

FIGURA 5 - Rogério Duprat e seus primeiros contatos musicais, com o violão de seu pai, em 1948. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 6 - Foto de família, na praia do Gonzaga, em 1940: da esquerda para a direita, Walter Hugo Khouri, Renato Duprat, tia Leonor (mãe de Walter), Rogério Duprat e Régis Duprat. Acervo Rogério Duprat.

FIGURA 7 — Orquestra infantil do Masp, na qual Rogério era violoncelista, em 1950: Duprat está virado de costas, no quinto degrau. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 8 - Casamento de Rogério e Lali, em 1953, na Igreja Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Acervo Rogério Duprat.

FIGURA 9 - Duprat e seu neto Riã, em 1977, no sítio que reside até hoje. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 10 - Rogério Duprat como violoncelista da Orquestra Sinfônica de São Paulo, em 1957. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 12 - a) Sala de aula da Universidade de Brasília, destaque para a inscri­ção na lousa - "Viva o realismo socialista. FIM" - e eletrodomésticos servin­do como instrumentos musicais. Acervo Rogério Duprat. b) Alunos de Duprat na Universidade de Brasília, grupo experimental, em 1965. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 13 - Foto do Grupo brasileiro por ocasião do curso de férias em Darmstadt, em 1962: da esquerda para a direita, em pé, Gilberto Mendes, (?), Sandino Hohagen, Willy Correia de Oliveira, Felipe Silvestre e Norma Graça; agachados, Eládio Perez Gonzales, Rogério Duprat e Júlio Medaglia. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 14 - Rogério Duprat, no antigo monumento Avião de Caça, na avenida 9 de Julho, ao lado da placa com uma das máximas do movimento MARDA, em 1966: da esquerda para a direita, Damiano Cozzella, Alexandre Paschoal e Mário Roquete. Acervo Rogério Duprat.

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2 DUPRAT E OS MOVIMENTOS MUSICAIS

A BUSCA DE UMA RENOVAÇÃO

Há muito, já que vanguardices/eiros são velharias sem sentido, é que vencemos

os vícios de explicar coisas e assinar obras; é que vencemos a tentação de vencer.

(Rogério Duprat, 1973)

A trajetória artística de Rogério Duprat foi marcada, funda­mentalmente, por sua participação em dois movimentos culturais: Música Nova e Tropicália. O primeiro está ligado diretamente à música erudita e imbuído pelas propostas dos jovens compositores que integraram o grupo Música Nova. Ao redigir o manifesto desse grupo, Duprat registrou os novos valores e ideais que abarcaram o pensamento de vanguarda desses compositores. Na década de 1960, por intermédio do manisfesto Música Nova, foi declarado o com­promisso assumido por eles com o mundo contemporâneo.

A presença de Duprat no cenário da cultura brasileira caracte­rizou-se pelo seu perfil renovador, e isso não se deve apenas ao fato de ter integrado o grupo Música Nova, mas também por ter transitado por diferentes faces musicais. Ele fez parte da primeira geração de compositores que utilizou o computador em experiên­cias musicais, conseqüentemente, deixou raízes para as futuras ge­rações de compositores da música eletroacústica no Brasil. Esse ímpeto renovador o fez precursor em seu país ao trazer do estran­geiro a idéia do happening e de elementos da música concreta e

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eletrônica como possibilidades de criação, tanto na música erudita, quanto na popular.

Duprat aliou-se aos músicos populares e se tornou um dos principais arranjadores do movimento tropicalista. Mais uma vez, como arranjador desse movimento, projetou sua crítica aos valo­res culturais vigentes com um espírito irônico e bem humorado que evidenciou a sua irreverência em consonância com a contra-cultura, àquela época.

A década de 1960 vem sendo considerada, por muitos auto­res, como um período, por um lado, marcado por profundas mu­danças científicas e sociopolíticas e, por outro, culturalmente mui­to fértil. Nesses anos, a incrementação de manifestações culturais se deve, em parte, à crescente reformulação de valores, principal­mente, nos âmbitos comportamental e artístico em geral. Maciel observa que, apesar dessas reformulações terem ocorrido em diver­sos campos, havia um traço em comum, um acontecimento central que irradiava suas conseqüências a todos os setores: "Era a radi­calização da consciência crítica da realidade" (Maciel, 1987, p.14).

No campo científico, grandes descobertas marcaram esse pe­ríodo, entre elas, os avanços nas pesquisas espaciais que culminaram com a comunicação via satélite e, em seguida, o primeiro vôo es­pacial tripulado, o que representou a possibilidade de chegar à Lua, fato que ocorreria em 1969. Assim como as recentes desco­bertas científicas, as grandes transformações políticas que ocorriam simultaneamente em diversos lugares do mundo acabaram por re­fletir-se nas mais diversas manifestações culturais. Ao mesmo tempo, uma arte de caráter contestatório predominava em diversos paí­ses, inclusive no Brasil. Entre as mudanças no cenário político mundial, algumas podem ser destacadas: Cuba tornou-se, em 1961, a primeira República Socialista da América Latina e, na Europa, o muro de Berlim foi construído. Os EUA, em 1964, haviam iniciado a guerra com o Vietnã e no Brasil se instaurava a ditadura militar. Enquanto nos EUA o lema "façam amor, não façam a guerra" era proclamado pelos hippies, em 1968, no Brasil, o AI-5 fechava o Congresso dando início a uma rígida censura dos meios de comu­nicação. Como resultado o país assistia de perto a um cenário de torturas, seqüestras, comandos de caça aos comunistas, esquadrões

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da morte e, em oposição à repressão militar, o desencadeamento das chamadas lutas armadas, guerrilhas urbanas e rurais, com as­saltos a banco para sustentar as ações, seqüestros de embaixadores em troca de presos políticos, entre outras ações.

No âmbito cultural, como uma das primeiras reações ao gol­pe militar, estreava, no teatro brasileiro, o musical Opinião, "dois compositores de origem popular, o carioca da zona norte Zé Keti e o maranhense João do Vale subiam ao palco, em companhia de Nara Leão, para dar início a uma bem-sucedida temporada que se tornaria um marco para a cultura pós-64" (Hollanda & Gonçalves, 1987, p.22). Assim como o musical Opinião, que trazia a denúncia e a busca da mobilização do público, outras manifestações cultu­rais, entre elas, os happenings, a pop art e o psicodelismo surgiam como formas de contestação no Brasil e em outros países. Carlos Alberto M. Pereira, no que diz respeito à postura crítica existente nessas manifestações, ressalta não se tratar da prática política tra­dicional de esquerda, mas de um novo estilo de mobilização e con­testação social que se firmava, cada vez com maior força, "pegan­do a crítica e o próprio sistema de surpresa e transformando a juventude, enquanto grupo, num novo foco de contestação radi­cal" (1986, p.7).

A segunda metade da década de 1960 é assinalada por gran­des concertos e festivais de rock. Entre os mais importantes nos EUA estão o de Monterey, em 1967, o de Woodstock e o de Altamont, em 1969, e, na Inglaterra, o da Ilha de Wight, que contou com a presença de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Já no Brasil, a TV Record, líder de audiência no ano de 1966, divulgava a mú­sica popular brasileira, em seus festivais de música e programas, como O Fino da Bossa e Jovem Guarda.

De maneira geral, surgiram, nessa época, novas possibilidades criativas de produção no âmbito cultural brasileiro. Enquanto o cinema tinha o filme Terra em transe, de Glauber Rocha (1939-1981) como a expressão cinemanovista, nas artes plásticas Hélio Oiticica sentenciava a antiarte visual. Alguns escritores, a exemplo de Clarice Lispector (1925-1977), Cecília Meireles (1901-1964), Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo (1905-1975), e outros, com­punham o cenário literário nacional. No campo musical, Gilberto

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Gil e Caetano Veloso traziam novos elementos para a música po­pular brasileira com as canções "Domingo no parque" e "Alegria alegria", enquanto no teatro, José Celso Martinez Corrêa, com o Grupo Oficina, encenava em São Paulo a peça o Rei da vela, de Oswald de Andrade. Ao propor romper com a linguagem do tea­tro tradicional, o Grupo Oficina procurava uma linha de provoca­ção cruel e total, buscando a mobilização do público por meio da instigação agressiva (Hollanda & Gonçalves, 1987, p.61).

Na década de 1960, sem dúvida alguma, determinou-se a modernização do século que, então, rompia com os elos que ainda o prendiam às décadas anteriores. Para Maciel,

Tudo o que de moderno (ou mesmo pós), atual, avançado ou simplesmente à altura dos tempos, que se vive agora, nos 80, começou, nasceu nos anos 60. Não se verificou, posteriormente, nenhuma cria­ção original que instaurasse parâmetros além dos estabelecidos durante aquela famosa década. A vanguarda, em todos os níveis, ainda continua a ser a dos 60. Isso não significa, de modo nenhum, negar a evolução individual que é inapreensível e nada tem a ver com décadas, cada um cresce por sua própria conta. Entretanto, no plano coletivo, não aconteceu nada de novo, de lá para cá. (1987, p.14)

Nesse período, os movimentos culturais foram inegáveis ma­nifestações do espírito renovador e conduziram com especial sig­nificação uma linha transformadora no processo cultural brasileiro, o Cinema Novo, o Tropicalismo e a Música Nova são de extrema representatividade, os dois últimos especialmente pela participa­ção de Rogério Duprat. Apesar da significância desses movimen­tos, este estudo não abrange todas as suas implicações na cultura nacional. O interesse centra-se principalmente no que se refere à participação de Duprat, ou seja, seu grau de envolvimento com tais movimentos. Trata-se de uma investigação que parte não só de artigos e da opinião de alguns autores que se ocuparam com esse assunto, mas, fundamentalmente, do posicionamento do próprio Duprat, colhido por ocasião das suas entrevistas à autora e de seus escritos, cedidos aos principais meios de comunicação ao longo de sua carreira.

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MÚSICA NOVA

Rogério Duprat, na década de 1950, estudava composição com o professor Olivier Toni, em sua classe também estavam Willy Correia de Oliveira e Gilberto Mendes. Mais tarde, o regente e amigo Júlio Medaglia apresentou a Duprat, Damiano Cozzella, que fora aluno do professor Koellreutter e que passara a ter aulas com Toni. Esses jovens alunos de composição se tornaram amigos e, logo depois, viriam a compor o cenário da música erudita de van­guarda, em São Paulo, àquela época.

Nesse período, a Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida por Olivier Toni e o Madrigal Ars Viva, dirigido por Klaus Dieter Wolf, desempenhavam importante papel na divulgação da nova música brasileira. Entusiasmados com a possibilidade de ver suas peças executadas e reconhecidas pelo público, Duprat compôs, em 1958, no estilo serialista, o seu Concertino para oboé, trompa e cordas, e Gilberto Mendes, o seu Ricercare, para duas trompas. "Por ocasião da VI Bienal de São Paulo, a Orquestra de Câmara de São Paulo apresentou obras dos quatro compositores: Música para Marta, de Willy Correia de Oliveira; Homenagem a Webern, de Damiano Cozzella; Música para doze instrumentos, de Gilberto Mendes e Organismo de Rogério Duprat" (Neves, 1981, p.162). Esse evento marcou a presença desses compositores na música de vanguarda na década de 1960. De um modo geral, suas composi­ções haviam sido construídas segundo preceitos serialistas. Para Zeron, a identificação do grupo pela orientação serial se deu "en­quanto atualização da linguagem e do código musical, e contra o longo período de hegemonia folclórico-nacionalista" (1991, p.105).

Os integrantes do grupo Música Nova participaram de alguns cursos e festivais na Europa, onde tiveram contato com as tendências musicais dominantes do início da década de 1960 e, sob essas in­fluências, buscavam por uma nova música erudita brasileira. Na fase inicial do grupo, imperava, pois, o serialismo, mas, a partir da publicação do manifesto, em 1963, na revista de arte de vanguarda, Invenção, n° 3, novas propostas musicais, que incorporavam ele­mentos advindos das teoria da informação, da semiótica e das leis matemáticas das probabilidades às técnicas de composição, foram

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assimiladas progressivamente, assumindo o lugar da técnica serial-

dodecafônica. Zeron diz que com a superação dessa técnica, a mú­

sica desses compositores caminhava do rigor construtivo à informa­

lidade, "expandindo o universo sonoro pela incorporação de outros

sons (eletrônicos, ruídos, microtons), linguagens (poética, teatral,

visual etc.) e grafias" (1991, p.110).

Duprat foi incumbido de redigir o manifesto, ou seja, de trans­

formar em texto as idéias propostas pelos integrantes do grupo.

Sobre isso ele comenta:

Escrevi no manifesto a síntese dos nossos pensamentos. Era moda escrever manifestos! Eu apenas fiquei encarregado de escrever o que havíamos discutido sobre os pontos musicais atuais, além de nós, outros músicos engajados o assinaram também. Naquele momento, estávamos muito interessados nas novas idéias que a física quântica apontava. É claro que não dominávamos essa linguagem, mas está­vamos atentos aos seus passos. (Entrevista, abr., 2000)

Embora o manifesto se encontre na íntegra neste trabalho (Fi­

gura 28), para que se tenha acesso a algumas idéias que o funda­

mentam, o resumo realizado por Neves, no qual destaca o que consi­

dera as principais propostas, pode ser útil:

busca de compromisso total com o mundo contemporâneo; opção pelo concretismo, enquanto posição frente ao idealismo, processo criativo partindo de elementos concretos, caminho de superação da oposição matéria-forma, resultado de trabalhos ligados ao suprema-tismo e ao construtivismo; revalorização dos meios de informação, tomada a comunicação como um ramo da psicofisiologia da percep­ção; consciência de viver uma nova realidade, manifestada pelo avan­ço das ciências; revisão do passado musical, aproveitando aquilo que possa ser utilizado para dar solução aos problemas atuais; visão da música como a arte coletiva por excelência; definição da educação musical como processo de aprendizagem da linguagem musical, sendo a educação não transmissão de conhecimentos, mas integração na pesquisa; consciência de que a freqüência (altura) não é elemento único do som, mas fenômeno complexo que compromete a natureza e o homem; definição da Música Nova como uma linguagem direta usando os va­riados aspectos da realidade; aceitação dos elementos indeterminados, o acaso controlado da construção do objetivo; recolocação do pro­blema da construção e da estruturação como processo dinâmico, não como reflexo de posicionamento lógico-didático; enunciado de uma

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Semântica Musical, face ao binômio criação-consumo, tendendo para o equilíbrio entre informação semântica e informação estética; dese­jo de libertar a cultura brasileira das travas infra-estruturais e das super-estruturas ideológico-culturais. (1981, p.162)

Mesmo depois de quase quarenta anos de sua publicação, muitas das propostas contidas no manifesto ajustam-se perfeita­mente a questões ligadas à música produzida nas décadas subse­qüentes. Essa atualidade foi observada por dois dos participantes do movimento Música Nova. Para o maestro Júlio Medaglia a lei­tura do manifesto Música Nova surpreende: "Chega a ser imperti­nente sua universalidade e atualidade como visão crítica da reali­dade hoje. Chego à conclusão de que suas palavras continuam atuais e corajosas. Digo mais: acredito que todos o assinaríamos outra vez" (Medaglia, 1996, p.D5). Em concordância com a opinião de Medaglia, o musicólogo Régis Duprat diz em seu Memorial de con­curso que "muito do que ficou afirmado naquele manifesto ainda vale, ou ainda não foi realizado até nossos dias" (1995, p. l) .

Gilberto Mendes também aponta a contemporaneidade do manifesto. Além de comparar a radicalização musical realizada pelo grupo Música Nova na década de 1960 à inovação dos poetas concretos da década anterior, ainda a equipara à revolução solitária de Villa-Lobos no começo do século. No entanto, ele estabelece uma diferença: em Villa-Lobos a revolução se deu de modo instinti­vo enquanto a revolução proposta pelo grupo era conseqüência,

de uma tomada de posição muito intelectualizada, com base nas teo­rias da informação, semiótica, teoria dos afetos (semântica musical), das probabilidades, dos quanta, nas relações com as telecomunica­ções, com o cinema, desenho industrial, na idéia de metalinguagem, enfim, em tudo aquilo de que tratava nosso "Manifesto Música Nova", que se inspirava no suprematismo, no construtivismo de um Klee, Mondrian, Joyce, cummings, Varèse, Webern, Boulez...

Mudamos tudo, não tenho a menor dúvida. Alguém tinha que fazer isso aí. Aconteceu que fomos nós, simplesmente. Os escolhi­dos, porque estávamos ali, na hora certa. Nenhum mérito especial. Cumprimos um desígnio da providência, para salvar a música brasi­leira do atraso, do marasmo em que se encontrava, depois da recaída violenta do mal nacionalista, em princípios dos anos 50. Nossa mú­sica clamava por essa mudança, por essa atualização. (1994, p.81)

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Além da participação de Rogério Duprat no movimento de vanguarda Música Nova, o que denota a preocupação comum dos participantes no que tange às questões ligadas à arte contemporâ­nea em geral e, mais especificamente, à musical, o que se faz rele­vante é o fato de Duprat possuir uma fundamentação intelectual que o conduziu a articulações conceituais que abrangiam não ape­nas as questões de ordem estética, mas as implicações sociais resul­tantes de uma produção artística afinada com critérios que, para ele, seriam condizentes com uma arte comprometida com seu tem­po. O posicionamento de Rogério Duprat com os ideais do grupo Música Nova é comentado por seu irmão Régis Duprat, que atri­bui ao envolvimento com o comunismo as raízes de sua preocupa­ção social:

A postura de Rogério com a Música Nova, acredito que tenha sido herdada do nosso tempo de comunistas. Porém, o que nos levou ao comunismo, por incrível que pareça, foi a Igreja. Meus pais não eram católicos praticantes. Mas, encontramos padres e freiras muito modernos para aquela época. A base dessa prática religiosa nos con­solidou em alguns princípios morais de condutas. Nós éramos pe­quenos burgueses arruinados e esta formação católica acabou nos dando uma convicção social, uma consciência social maior. Ao aban­donarmos a Igreja fomos direto para o partido, desde muito cedo, adolescentes ainda. O convívio com amigos, como Santoro, Guerra Peixe e Edoardo Guarnieri nos levou a uma consolidação maior com o partido. Rogério escreveu vários artigos à imprensa comunista e eu especialmente me preocupava mais com os problemas estéticos. Eu fiz história na USP e Rogério filosofia, se ele tivesse continuado teria sido um dos maiores filósofos do Brasil.

Fomos conseqüentes também com a música, pois o modernis­mo que reinava precisava de alguns acertos. A influência de vários amigos foi determinante, como a do Cozzella que era das mais radi­cais. As convicções que estão no manifesto são resultado das nossas lutas cotidianas. Rogério redigiu o manifesto e nós todos assinamos. (Entrevista, fev. 2000)

Rogério Duprat não só redigiu o manifesto, como também o discutiu em seu artigo intitulado "Em torno do 'pronunciamen­to'", ambos publicados pela revista Invenção, em 1963 (cf. Vários, 1963). Nele, Duprat expõe sua visão pessoal de cada uma das pro­postas elaboradas pelo grupo. Para que se possa ter uma idéia do

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envolvimento de Duprat com o movimento Música Nova, serão abordadas suas articulações em torno de algumas das proposições que fundamentaram o manifesto. Ao expor suas reflexões, Rogé­rio Duprat declarou que para assumir um compromisso com o mundo contemporâneo era necessário um comprometimento to­tal que, para ele, equivalia a "empenhar-se na resolução da funda­mental contradição cujos termos são homem-história (da espécie e do indivíduo), aspecto mais geral do homem frente a si mesmo, como acúmulo das conquistas anteriores" (ibidem, p.7).

Uma das principais idéias presentes no manifesto refere-se à questão do redimensionamento do passado musical. Duprat não descarta as conquistas anteriores, ao contrário, propõe uma assi­milação dos procedimentos passados que, para ele, significa "dominá-los, transformando-os à medida de nossa escala históri-co-existencial" (ibidem). Nesse contexto, realça a importância da pesquisa e da experimentação como atitude imprescindível ao mundo contemporâneo, derivando daí sua opinião de que a edu­cação musical não deve constituir-se apenas na transmissão do co­nhecimento, mas, sobretudo, que precisa expandir-se com a integração da pesquisa e a atualização da linguagem musical.

Juntamente com o redimensionamento do passado musical, Duprat propõe uma renovação dos processos de escuta. Ao criti­car o tradicional concerto público realizado pela figura do compo­sitor ou executante que, segundo Duprat, figuram como "gênios", chama a atenção para a posição do ouvinte e ironiza: "a atuação desses gênios sempre se deu em transe: não se sabe que força bai­xava (infelizmente o uso do passado no verbo é só uma abstração) no momento adequado, inspirando a criação ou a execução, que os ouvintes deveriam absorver, burrefactos, com a mais extraordi­nária transubstanciação do puro espírito nesse maravilhoso e irreal mundo dos sons" (ibidem, p.10). Duprat condiciona a reformulação da escuta à necessidade de transformações na prática musical:

O tradicional concerto público deixou de constituir o único veí­culo de comunicação. A antiga cadeia de informação condicionou essência individualista à prática musical, cristalizada em seus três tradi­cionais estágios: compositor-executante-público (representando este último verdadeiro fan-club da personalidade, centralizado na indivi-

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dualidade do compositor ou executante). Colateralmente, desenvol­veu-se com o romantismo o conceito de "gênio" (compositor ou executante) em torno do qual se formaram verdadeiros séquitos de epígonos e admiradores.(p.10)

Para Duprat, esse culto à genialidade do artista e, conseqüente­mente, à individualidade, era uma herança do passado e se extin-guiria num futuro próximo, como pode ser visto no artigo citado, ao discutir a idéia apresentada no manifesto de que, "a arte é cole­tiva por excelência", afirma ainda: "Nosso século será, pela história futura, caracterizado como a 'era da coletivização"' (p.10).

No texto que se segue, Rogério Duprat observa uma tendência para a coletivização em vários setores da sociedade, apontando, porém, para o fato de a individualidade continuar a ser preservada, a serviço de interesses particulares:

O homem contemporâneo, partindo para práticas coletivas (na fábrica, na pesquisa científica, no esporte, na reivindicação, nas equi­pes técnicas, etc), só aceita esse "ritual" individualista como herança cultural, impingida pelos detentores dos meios de divulgação, que não só se beneficiam do fato como conseguem, assim, reafirmar seus gastos conceitos. São bem conhecidos os nomes dos inventores de todos os primeiros engenhos importantes (telefone, vapor, telégra­fo, avião, etc); hoje, as coisas se desenvolvem em pleno anonimato, como múltipla paternidade.(p.10)

Duprat salienta que essa mesma individualidade nas grandes invenções é também observada na música, principalmente a partir do Romantismo com a exaltação da figura do regente: "Não po­deria ser diferente na música, que teve sempre um importante as­pecto coletivo na execução, cuja responsabilidade, da época de Beethoven em diante, foi sempre mais centralizada na 'genialidade' do regente" (p.10). De fato, antes dessa época, o regente simples­mente marcava o tempo, ou dava algumas informações enquanto tocava órgão ou cravo e a "regência moderna, com uma batuta leve, teve início no começo do século XIX" (Sadie, 1994, p.771).

Além de propor compromisso total com o mundo contempo­râneo, rever o passado musical, buscar um ensino atualizado, afi­nado com a nova linguagem musical e com integração na pesquisa,

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e trazer outras novas propostas para a cultura musical brasileira, o manifesto também aponta para a urgência em superar definitiva­mente a visão da freqüência (altura das notas) como único pa­râmetro sonoro importante. Desde o início do século já se faz pre­sente a tendência para uma valorização, na composição musical, de outros parâmetros sonoros que não a altura e a duração. Muitos compositores, entre eles Anton Webern (1883-1945), Edgard Varèse (1883-1965) e John Cage (1912-1992), dedicaram-se a um tipo de estruturação que valorizava principalmente os aspectos rítmico e timbrístico em detrimento da altura. É natural que um manifesto cujo comprometimento com o mundo contemporâneo figure como um dos aspectos principais propusesse a "superação definitiva da freqüência como único elemento importante do som", já que o pensamento estrutural anterior fora fundamentado a partir desse parâmetro sonoro. Nesse sentido, para que se desse uma reformu­lação da questão estrutural, outra proposta contida no manifesto, seria necessário um redimensionamento dos parâmetros sonoros-musicais admitindo-os, todos, como componentes estruturais da composição e de importância equivalente. Para Duprat

uma programação (obra escrita) é o projeto de um sistema. E o com­promisso com o projeto pode envolver a máquina. Computadores eletrônicos podem fornecer o esquema fenomênico do projeto, após "aprender" a manipulação de diversos parâmetros do som. A veiculação (existencialização) pode ser feita através de uma cadeia eletro-acústica, executada por processos fono-mecânicos, autêntica nova "luthierie" que nosso século criou. (Vários, 1963, p.ll)

Nesse contexto, cabe ressaltar também a proposta, trazida pelo manifesto, de reavaliar os meios de informação incluindo a má­quina como instrumento e como objeto. No entanto, quando re­flete sobre "o que é o som para nós", a partir da nova possibilidade do uso do computador como instrumento e objeto, expõe sua posi­ção a respeito do novo papel do músico ante a máquina e às novas assimilações necessárias, com que se depara:

Músico não é acusticista, nem matemático, psicofisiologista, ciberneticista, engenheiro de som, informacionista, técnico de tele­comunicações, "luthier" ou engenheiro eletrônico; mas deve saber

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sob que condições e como o som é gerado, refletido, quais as suas qualidades físicas e matemáticas, em que sentido a máquina é útil à sua produção e comunicação, de que maneira informa através da cadeia eletroacústica, sensitiva e psicofisiológica, quais os níveis de entropia que atinge, e, principalmente, quais os graus de disparidade entre as medidas físicas e as perceptivas, enfim, o que é o som para nós. (p.7)

Assim como o manifesto traz um pronunciamento sobre o auxílio do computador nas artes, de uma maneira geral, apresenta também amplas reflexões, permeadas por fortes críticas sobre a realidade musical àquela época. A partir disso, a ruptura com o movimento nacionalista é proposta em favor de maior abertura para novas questões musicais geradas pelas tendências recentes predominantes no exterior. Evidentemente essas proposições le­varam a uma grande reformulação dos valores culturais brasileiros vigentes. Segundo Neves, "o impacto deste manifesto foi tão grande que ele foi transcrito em revistas especializadas do Brasil e do ex­terior e provocou importante debate público entre compositores. Naquele momento ele encontrou muitos opositores, mas logo foi aceito e transformou-se em bandeira de luta dos jovens composi­tores brasileiros" (1981, p.163). A polêmica provocada pelo ma­nifesto foi observada por Gilberto Mendes. Segundo ele, o mani­festo provocou um debate pelo antigo jornal A Gazeta e um debate público no Teatro de Arena, em São Paulo, além de ter sido repro­duzido pela Revista Musical Chilena, em 1963. A essa polêmica ele atribui o motivo para o destaque que o musicólogo Juan Carlos Paz dá aos integrantes do grupo, em seu livro Íntrodução à música de nosso tempo (1994, p.72).

A polêmica em torno do manifesto pode ser vista nos artigos publicados com críticas severas ao grupo Música Nova, pelo jor­nal A Tribuna, em 1963, por um dos seus opositores, J. de Sá Por­to. Em contrapartida, o grupo Música Nova lançou uma réplica a Sá Porto, no jornal A Gazeta, no mesmo ano.

Entre muitas críticas feitas ao manifesto, Sá Porto iniciou seu artigo identificando o grupo com o movimento da música concre­ta de Pierre Schaeffer (1910-1995), em Paris:

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assinaram um compromisso total de suas atividades musicais com o Concretismo, dado como etapa atual das artes. A criação artística brasileira atualizada deve pautar-se nos moldes do Concretismo; o compositor brasileiro que não aceitar a "postulação revolucionária" do Grupo M. N. não tem compreensão alguma do que seja música brasileira; ou é concretista ou é "alienado". (1963, p.21)

De acordo com os assinantes do manifesto, o crítico musical

S. Porto.não teria compreendido o significado do concretismo, ao

qual o grupo se referia, o grupo Música Nova iniciou sua réplica

criticando em primeira instância esse equívoco traçado por Porto:

Como, porém, caracterizamos a atual atitude das artes de "con­cretista", de modo geral, houve por bem nosso opositor identificar-nos com o movimento e o fenômeno local da "musique concrète" de Schaeffer e do grupo da Rádio Televisão Francesa. Desta falsidade inicial, decorreram várias e graves confusões, ao longo de seus quatro e prolixos artigos. (Grupo Música Nova, 1963b)

A partir desse equívoco, o grupo aproveita para esclarecer

ainda mais o seu posicionamento ao tipo de música que faziam:

Todo pronunciamento coletivo envolve uma tomada de posição: o que significa uma atitude mental e não imposição de "fórmulas" (que, aliás, nem se encontram cm nosso pronunciamento, cuja leitura não elucida, sequer, o tipo de música que fazemos...). Não temos "moldes" sobre os quais se deva "pautar" a música brasileira; não nos apelidamos "concretismo", "time de vanguarda" nem nada: não temos "fórmulas" no bolso do colete e não instituímos nenhuma "postulação revolucionária": constitui o pronunciamento apenas um levantamento do homem contemporâneo, que deve nortear a criação musical, sob pena de anacronismo: só. Não apontamos nenhuma "solução exclusiva" (na verdade, não apontamos soluções) apenas convidamos à pesquisa. (Ibidem)

Em seu segundo artigo, J. de Sá Porto continuou a criticar o

grupo Música Nova. Ao mencionar o trabalho do professor

Koellreutter, o acusa de falta de originalidade nas propostas apre­

sentadas: "Uma coisa é certa: nada disso é original, nem poderia

ser. Faz pelo menos dez anos, só em São Paulo, que as suas semen­

tes se encontram em cursos da 'Escola Livre de Música' e da 'Socie-

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dade Pro-Arte': basta consultar as apostilas de H. J.Koellreutter e outros" (1963, p.21). A essa resposta o grupo responde ressaltan­do a urgência de se atender às novas questões apresentadas, as quais para eles já faziam atrasadas perante a necessária atualização da linguagem musical:

Não utilizamos quaisquer "fontes" específicas; desconhecemos as citadas apostilas do prof. Koellreutter ou outros alfarrábios da Escola Livre de Música. Por outro lado, não houve procura de origi­nalidade: ao contrário, o que lamentamos é, precisamente, a banali­dade de vários itens abordados, e ainda termos de lutar por eles (e nesse sentido, só podemos enaltecer o trabalho do prof. Koellreutter no Brasil). (Grupo Música Nova, 1963b)

Sá Porto não limitou suas críticas apenas ao grupo, mas diri­giu-as também aos comentários de Duprat, em seu artigo "Em tor­no do 'pronunciamento'", chamando-o de abstruso e agressivo quando faz alusões às mais diversas teorias científicas:

Haja vista a desenvoltura com que movimenta o sentido das palavras em tiradas de pseudo-estílo metafísico, onde se lê (nas entre­linhas) a ontologia de Sartre e Heidegger, ou através do léxico neomarxista, ou das aplicações de "lógica polivalente", "metendo num saco só as posições ideológicas mais antagônicas", segundo suas próprias palavras. (1963, p.21)

Sá Porto considera sem importância as analogias que Duprat faz referentes às mais recentes teorias científicas e filosóficas com arte e música:

ele as julga necessárias para justificar um compromisso de caráter simplesmente musical. Para isso, aduz o "plano gnoseológico", o "es­quema epistemológico", a "sub-rotina do processo informacional", a "homeostásis", uma "nova cosmovisão", a "integração num pro­cesso dialético"; ele denuncia a arte musical "alienada" e o "naciona­lismo burguês". Eis uma pálida amostra. (Ibidem)

Evidentemente, o texto do manifesto não se refere direta ou exclusivamente ao que tange aos assuntos especificamente musi­cais. O manifesto, em sua síntese, trata, de maneira geral, da plu­ralidade das renovações socioculturais e, em conseqüência, das

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musicais. O grupo Música Nova, ao responder a mais esse ataque de Sá Porto, deixa claro que a razão essencial que os levou a decla­rar o manifesto, era muito mais importante do que qualquer teoria implícita:

Não discutiremos aqui as diversas tentativas de rotulação de nosso opositor ("escuda-se o grupo Música Nova atrás da análise metafísica (!?) conhecida como realismo marxista", e outras), nem suas imensas citações (no original!) do "mestre" Marx, o que seria uma perda de tempo. Também não fugimos delas nem as tememos. Quanto ao conceito de alienação da massa, não é preciso recorrer a sábias fontes para interpretá-lo; está meridianamente claro: grandes massas são mantidas alienadas da cultura; cabe-nos, artistas em geral, manter ao lado de nossa atividade criadora e profissional, uma cons­tante preocupação pedagógica, e não simplesmente abdicar dos níveis que atingimos por força de uma atividade específica (o que seria co-locarmo-nos no nível dessa alienação). (Grupo Música Nova, 1963b)

O grupo Música Nova se manteve intolerante com a estagna­ção deliberada da conjuntura musical àquela época. No manifesto, eles não acenaram para nenhum "Éden" musical nem tampouco proclamaram-se como um "movimento salvador". No entanto, colocaram em dúvida o ato do compositor fazer música igual à que o teria antecedido e apontaram para a premência de rever, até então, sessenta anos de música ocorridos no Brasil.

Embora muitas das propostas contidas no manifesto não fos­sem realmente originais, como observou Porto, o grupo propôs, sem dúvida alguma, um redimensionamento estrutural na música brasileira para a segunda metade do século XX e se posicionou como um grupo de músicos engajados ao movimento de vanguarda diante daquela alienação. É certo que muitas das propostas encon­tram suas raízes fincadas em manifestos ou nas idéias de grupos e compositores do início da primeira metade do século XX, na Eu­ropa e nos EUA, a exemplo dos futuristas italianos que, em seus manifestos, propuseram novas posturas diante da cultura vigente. Podemos notar nos manifestos de 1911, "A música futurista" e "Musicistas futuristas", de Balila Pratella (1880-1955), assim como em Ferrucio Busoni (1866-1924) com o seu "Esboço para uma nova estética musical", ou mesmo em compositores que não aderiram a

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nenhum movimento, mas contribuíram com eles por meio de suas idéias inovadoras como é o caso de Edgard Varèse (1883-1965) e John Cage (1912-1992). Diante de tudo que foi exposto, pode-se dizer que o manifesto Música Nova não tem um caráter inovador, e sim, precursor, uma vez que essas idéias constatadas nas posturas de artistas de outros países ainda não haviam encontrado terreno fértil para germinar em solo brasileiro. Daí a urgência de tais idéias para uma transformação do cenário musical no Brasil. Se por um lado suas propostas não eram absolutamente originais, por outro, a recontextualização de idéias difundidas em outros países é mérito do grupo Música Nova, ao qual Rogério Duprat pertencia.

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FIGURA 15 - Fac-símile do manifesto Música Nova, na Revista Invenção, n" 3, p.28, 1963. Diagramação de época, com destaque para as caixas baixas, pre­domínio das minúsculas até mesmo para os nomes próprios.

TROPICÁLIA

A Tropicália foi um movimento artístico divulgado em âmbito nacional nos festivais de música popular brasileira, sobretudo entre os anos de 1967 e 1968, através das músicas "Alegria, alegria" e "Domingo no parque" de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respecti­vamente. Apesar desse movimento ter se estendido à literatura de

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vanguarda, à estética de filmes como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, peças de teatro como O rei da vela, de Oswald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e às artes plásti­cas com os Parangolés, de Hélio Oiticica, a música popular tem sido considerada o seu maior expoente, dada a larga adesão por parte de diversos músicos, a exemplo de Tom Zé, Capinam, os integrantes do grupo Os Mutantes, Torquato Neto, Gal Costa e outros.

O ideário estético da Semana de Arte Moderna de 22 foi uma das principais influências sofridas pelos tropicalistas. Para uma mis­tura de conteúdos singulares da cultura, tratada por eles como "geléia geral", somaram aos tradicionais instrumentos elétricos os ritmos brasileiros, elementos da bossa nova, o happening, o sam­ba, a poesia concreta, The Beatles, literatura de cordel às letras das canções, sem, contudo, deixar de lado a crítica social introduzida pelo humor, paródia, alegoria e o cafonismo. Segundo Favaretto, além da Tropicália elaborar uma nova linguagem para a canção a partir da tradição da música popular brasileira e dos elementos que a modernização fornecia, "a prática tropicalista incorporava o caráter expressivo do momento às experiências culturais e artísti­cas que vinham se processando no Brasil e internacionalmente; trabalhava essas informações segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos artísticos e com atinada sensibilidade pelas coisas do Brasil" (1987, p.20).

Assim como os maestros Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen, Rogério Duprat participou desse movimento como arranjador. No entanto, no início da década de 1960, antes de sua participação no Tropicalismo, Duprat já havia atuado em diferentes campos musicais. Como arranjador, em 1962, assinou três discos: Natal bem brasileiro (coletânea de temas natalinos ar­ranjados ao estilo de marcha rancho) e, no ano seguinte, os discos Dedicado a você (novos arranjos para o repertório popular da dé­cada de 1960) e Clássicos da bossa nova (temas de música erudita arranjados ao estilo de bossa nova). Ainda em 1963, além de sua participação no movimento Música Nova, havia sido premiado com o filme A ilha, como melhor trilha sonora, e também incursio-nado na música para computador com a peça Klavibm II.

A partir da segunda metade da década de 1960, a aproximação de Duprat com a música popular tornou-se mais acentuada. Deses-

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timulado a compor música erudita para uma pequena elite, passou a intensificar seus trabalhos no âmbito popular: "Chega desse ne­gócio de coisinha da música erudita enfiada só dentro do teatro, para meia dúzia de milionários e tal. A gente tem é de sair, fazer música na rua com os meios que houver. Foi aí que cheguei perto da música popular" (Matias & Rosa, jul. 2000).

Nessa época, vislumbrou juntamente com o produtor Solano Ribeiro a possibilidade de realização de um projeto musical popular que se diferenciasse dos demais. Segundo Calado, eles "pretendiam adaptar a música sertaneja ao ritmo do rock" (1995, p.103). No entanto, Duprat afirma que o projeto não se restringia apenas à música sertaneja, mas, "todo e qualquer ritmo brasileiro passível de integrar-se com as guitarras", ou seja, seu objetivo era transferir o instrumental do rock para a música popular brasileira: "Seria uma 'injeção' de modernidade. A 'bronca' era que só se fazia sam­bas e tocados com os instrumentos acústicos brasileiros" (Entre­vista, nov. 1999). O uso da guitarra não era apenas um novo recurso dos instrumentos eletrônicos ao ambiente acústico musical da música popular brasileira. Duprat acrescenta que "um novo tipo de comportamento se apresentava nos anos 60 e incluir a guitarra, à nossa música, era fazer valer os elementos desse novo comporta­mento" (ibidem). Para que seu projeto se realizasse, Duprat obser­vou diversas bandas de rock da época, no entanto, apenas uma chamou-lhe a atenção. Tratava-se do grupo 0'Seis que costumava apresentar-se em alguns programas de TV e ensaiavam no fundo de um quintal, num bairro da Pompéia, em São Paulo. Apesar desse projeto não ter se concretizado, para Duprat, o grupo 0'Seis era melhor do que tudo o que tinha visto: "Parecia com The Beatles, com seu humor e seu jeito de cantar" (Chrispiano, 1999, p.43). Posteriormente, esse grupo tornou-se conhecido como Os Mutantes.

As preocupações de Duprat acerca das renovações na música popular abriram espaço para uma aproximação com os composito­res baianos, inicialmente Gilberto Gil e, tempos depois, aqueles que integrariam o chamado movimento Tropicalista.

No ano de 1967, Rogério Duprat fora indicado, como arran-jador, pelo maestro Júlio Medaglia, ao cantor e compositor Gil­berto Gil,

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que colaborava com a equipe de produção do festival da TV Record -a seleção das canções para as três eliminatórias aconteceu na casa do maestro, no bairro da Lapa. Na verdade, Medaglia até já começara a escrever o arranjo orquestral de "Domingo no parque", mas ao ser convocado para integrar o júri do evento, teve que interromper o trabalho. Assim, acabou indicando Duprat, assegurando que ele ti­nha bagagem musical e criatividade de sobra para desempenhar o papel de George Martin, na linha beatle que Gil imaginara para sua composição. (Calado, 1997, p.123)

Gilberto Gil idealizava um arranjo para sua canção "Domin­

go no parque" que se assemelhasse ao estilo da banda inglesa The

Beatles. Calado diz que ele "pretendia combinar a sonoridade nor­

destina do quarteto com uma orquestra, porém dando à música

um tratamento sonoro mais pop, exatamente como o produtor

George Martin fizera nos arranjos de Sgt. Pepper's Lonely Hearts

Club. Para isso, observou, uma guitarra elétrica seria essencial no

arranjo da canção" (p.122). A fim de tornar possível a idéia de Gil,

Duprat o apresentou aos integrantes do grupo Os Mutantes que,

de fato, participaram desse arranjo.

No livro Balanço da bossa e outras bossas, Gilberto Gil tece

comentários sobre o processo criativo do arranjo de "Domingo no

parque" ao lado de Duprat:

Rogério tem, em relação à música erudita, uma posição muito semelhante à que nós temos cm relação à música popular. Essa posi­ção de insatisfação ante os valores já impostos. Ele quer desenvolver a música erudita, ele não quer sujeitá-la a um sentido acadêmico. Eu acho que é, precisamente, por essa coincidência de propósitos, que a aproximação era inevitável. Por exemplo: quem procurar saber como foi feito o arranjo de "Domingo no parque", fica sabendo que ele se processou nesse nível de aproximação, de programação conjunta, por nós dois. Eu mostrei a Rogério a música e as idéias que eu já tinha e ele as enriqueceu com os dados técnicos que ele manuseia e eu não: a orquestração, o conhecimento da instrumentação. Mas a decupagem do arranjo, a determinação de que climas funcionariam em determinadas partes, que tipos de instrumento, que tipos de emoção, todas essas coisas foram planejadas juntamente por mim e pelo Rogério. Inclusive, o arranjo foi feito gradativamente. Nós nos sentamos, durante 4 ou 5 dias, em tardes consecutivas e fomos dis­cutindo, formulamos, reformulamos e até no estúdio ainda fizemos

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modificações em função das sonoridades que resultavam. Foi um trabalho realmente feito em conjunto. (Campos, 1993, p.195)

Para Favaretto, "Domingo no parque" causou impacto pela complexidade construtiva do arranjo que Gil e Rogério Duprat realizaram, segundo uma concepção cinematográfica:

assim como a interpretação contraponteada de Gil. Aquilo que se poderia tornar apenas a narração de uma tragédia amorosa, vivida em ambiente popular, tornou-se uma féerie em que letra, música e canto compõem uma cena de movimentos variados, à imagem da festa sincrética que é o parque de diversões. O processo de constru­ção lembra as montagens eisensteinianas; letra, música, sons, ruídos, palavras e gritos são sincronizados, interpenetrando-se como vozes em rotação. (1979, p.9)

Augusto de Campos também esteve atento à riqueza de infor­mações presente no arranjo de "Domingo no parque", quando observou que a junção de fragmentos documentais (ruídos no par­que) com o uso de instrumentos orquestrais somada ao ritmo mar­cadamente regional, a exemplo da capoeira, com o berimbau asso­ciado aos instrumentos elétricos e à vocalização típica de Gil, deu origem a um arranjo bastante complexo e assinala que,

aqui deve ser lembrada a contribuição do arranjador, Rogério Duprat, no caso, essencial, e em si mesma um marco para a música popular brasileira. Marco de uma colaboração que muitos julgariam impossí­vel entre um compositor de música popular c um compositor de vanguarda (embora Rogério não goste de ser chamado assim, seus conhecimentos e sua prática de alta cultura musical contemporânea não suportam outra classificação). Esse encontro, tão bem-sucedido, mostra que já não há barreiras intransponíveis entre a música popu­lar e a erudita. (1993, p.154)

Fruto de uma colaboração inusitada entre um compositor popular preocupado com a reformulação da canção e um músico com formação suficiente para traduzir tal reformulação. O arranjo da canção "Domingo no parque" pode ser considerado não ape­nas um marco para a música popular brasileira, como Campos sugeriu, mas um marco na carreira de Duprat: a inauguração de

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um estilo sincrético que ele adotaria, a partir de então, na maioria de seus arranjos. Ruídos, gritos e instrumentos regionais somados a instrumentos elétricos e orquestrais compõem o ambiente sono­ro de "Domingo no parque". Esse recurso de fazer coexistir ele­mentos aparentemente disparatados, em uma mesma canção, tor­nou-se uma de suas marcas estilísticas como arranjador. E além disso, não se pode esquecer que Duprat, como compositor de tri­lhas sonoras, trouxe ao seu trabalho de arranjador influências des­sa experiência. É possível que Favaretto, ao relacionar o arranjo de "Domingo no parque" a concepções cinematográficas, tenha percebido tais influências.

Junto com seus trabalhos ao lado dos tropicalistas, veio o reco­nhecimento de um público cada vez maior. Sua notoriedade como arranjador deveu-se especialmente a esse trabalho ao lado de Gilberto Gil pelo qual obteve o prêmio de melhor arranjo do III Festival Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967, destacando-se, ainda, diversos prêmios recebidos, o prêmio Roquete Pinto de melhor arranjador do ano de 1967 e o Troféu André Kostelanetz, como melhor arranjo do Festival Internacional da Canção (TV Globo), nos anos de 1968 e 1970.

Rogério Duprat foi diretor musical e arranjador da grande maioria dos trabalhos tropicalistas, e isso inclui Tropicália ou Panis et circensis, del968, disco coletivo que os tropicalistas gravaram em São Paulo, comumente associado ao ápice musical do movi­mento Tropicalista. Caetano Veloso coordenou o projeto e selecio­nou o repertório, que também destacava canções inéditas de Gil­berto Gil, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com a produção de Manoel Barenbein (Calado, 1997, p.194). Nesse mesmo ano, Duprat assinou o arranjo da canção "É proibido proibir" e, no ano seguinte, o arranjo da canção "Baby", ambas de Caetano Veloso que considera esta última um sucesso pelo fato de ter sido revelada na "voz de Gal Costa e no arranjo de Duprat, uma obra-prima do tropicalismo" (Veloso, 1997, p.280). A respeito da atuação de Duprat como arranjador, o maestro Júlio Medaglia diz:

Realmente ele não foi fazer "média" com a música popular. Foi levar todo o seu talento, a sua inteligência brilhante e a sua capacidade

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técnica que trazia de outras faces culturais e, sobretudo, o espírito da época, daquela década de 1960, onde ele atuou. Tudo isso prevê um gigantesco caldeirão orquestrado, tão bem, talvez como nenhum outro tenha feito. (Entrevista à TV Cultura, série Arranjadores, agosto, 1992)

Seus arranjos refletem um estilo bastante personalista. Esse

aspecto pode ser percebido, por exemplo, na música "Coração

Materno" , uma das faixas incluídas no álbum Tropicália ou Panis

et circensis, anteriormente mencionado. Calado a considera como

uma clássica canção-dramalhão do cantor e compositor Vicente

Celestino que "resultou em um dos mais bem-acabados produtos

da tática tropicalista de reler obras cafonas. Caetano conseguiu isso

com uma interpretação suave, que atenuou a pieguice original da

canção, criando um contraste com o tom melodramático do arran­

jo de cordas de Duprat" (1997, p.194). Caetano Veloso, impressio­

nado com o arranjo dessa canção, tece comentários:

Salve o arranjo de "Coração materno", que coisa deslumbrante ele fez! Sabe, que eu na hora de gravar fiquei comovido, impressio­nado... é lindo aquilo! Porque mantém a grandiosidade de idéia, tem a dose de ironia exata e, ao mesmo tempo, você sente uma cultura de orquestração operística. Era uma coisa, que na verdade, um desejo do Vicente Celestino, que não estava bem realizado no Vicente Celestino, quer dizer, numa versão que deveria ser uma versão caricata que era a minha, estava muito menos caricata. Muitos dos elementos constitutivos daquele estilo estavam melhores representados no ar­ranjo de Rogério do que na gravação do Vicente Celestino, mais a sério, indo mais fundo naquilo. (Veloso, 1992)

A necessidade de colocar em prática tudo o que sabia fazer em

música fez com que Duprat fundisse diferentes estilos, muitas ve­

zes, em um só arranjo. Dessa forma, acrescentava às canções, para

as quais o arranjo estava sendo elaborado, uma forma muito parti­

cular de compor as cordas e os metais, ou seja, suas orquestrações

ganhavam praticamente uma autonomia paralela, permanecendo

ao mesmo tempo com a harmonia integrada às estruturas das can­

ções. Mui to embora vinculados às canções, seus arranjos, muitas

vezes, assumiam um caráter composicional. O compositor Tom

Zé, em entrevista, mostra a correspondência existente entre os

arranjos de Duprat e as canções tropicalistas:

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Durante toda a atuação do Rogério no Tropicalismo era como se houvesse uma alma única que trabalhasse todas as coisas. Aquilo estava de tal modo enriquecido, ritmado, em todos os sentidos. Como música popular de ter charme, balanço, de ter tantas coisas bem co­locadas instrumentalmente na parte de sopros, de cordas, de coisas da banda e com a linguagem das bandas daquele tempo. Tudo muito bem adequado, como também na inteligência dos arranjos. Aí, nesse sentido, da inteligência mais universitária, oficial que eram as cita­ções, o vestir, o botar dentro de uma moldura. Parecia que a música não existia sem aquela roupa. Quando fomos colocar a voz no disco Tropicália eu me lembro que comentei com os meninos, o Gil e o Caetano: "Vocês são uns caras de uma sorte que não tem tamanho. Entregar as músicas para uma pessoa e a pessoa entregar essa coisa tão brilhante". Essa colaboração tão importante é que nunca ouvi falar. A relação do Rogério em ouvir a canção e procurar uma mol­dura, enriquecendo com citações da linguagem nacional ou interna­cional. Se as citações não fossem muito bem feitas tornavam-se ba­nais. O Gil e Os Mutantes encontravam no Rogério o pensamento criativo para orquestra. Isso é muito difícil entre a sensibilidade das pessoas. (Entrevista, outubro, 1995)

Em seguida, Tom Zé comenta a importância da presença de Duprat, assim como dos maestros Damiano Cozzella e Júlio Medaglia para o enriquecimento do tipo de linguagem utilizada pelos tropicalistas:

No disco Tropicália ele fez o arranjo da minha música "Parque industrial". Nós combinamos quais músicas íamos botar no disco e depois mandamos para Rogério. Era fácil lidar com ele porque esta­va sempre bem humorado, pedia sugestões, estava sempre disposto a remodelar o que ele fazia. Os primeiros arranjos mandamos para arranjadores do Rio. Quando as músicas voltaram arranjadas a im­pressão que dava é que essas músicas eram outras. Nunca conversei com o Caetano sobre isso, mas ele fez um comentário na contracapa de um de seus discos: "Estas músicas que um dia foram minhas". Não vejo outra referência sobre isso. Quando não era o caso do Cozzella, do Julio ou do Rogério, o susto que a gente tomava era muito grande.

O Tropicalismo deve ao Cozzella e principalmente ao Duprat c ao Medaglia, mais do que se credita a eles. Acho que se não tivessem presentes naquele momento com aquela formação do pós-moderno e com o mesmo espírito crítico que foi uma das prerrogativas estéti­cas mais praticadas no Tropicalismo, não teria sido tão rico de lin­guagem e de força como foi. (Ibidem)

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De maneira geral, a maioria dos álbuns das décadas de 1960 e

1970 arranjados por Duprat é imediatamente reconhecível por suas

interferências sonoras, citações de músicas já conhecidas, ruídos,

diálogos, mudanças de andamentos, enfim, um mundo de colagens

sonoras que revela algo de novo a cada escuta, e como ele mesmo

acrescenta:

Coisas que faziam parte da música erudita, a desordem sonora, todos os valores de Cage. Eu fazia happening com partituras escritas para aparelhos domésticos, com coro lendo jornais do dia. Era tudo o que os tropicalistas esperavam c que nós já praticávamos há 10 anos. (Vibrations, 1999, p.42)

No final da década de 1960, Duprat chegou a ser bastante

conhecido por um público mais abrangente e foi nesse período que

gravou, no estúdio Scatena, com produção de Manoel Barenbein,

o LP A banda tropicalista do Duprat (1968). Contando com a par­

ticipação do grupo Os Mutantes, esse disco destaca, além de algu­

mas orquestrações para clássicos da MPB, como "Chega de saudade"

de Tom Jobim e músicas do Tropicalismo, como "Baby" de Caetano

Veloso e "Bat macumba" de Gilberto Gil, músicas de John Lennon

e Paul McCartney. Ao contrário do que se poderia pensar, Duprat

não ficou satisfeito com o resultado:

Não gosto muito daquilo. Eles forçaram muito, aquela foto... O pai de Edu Lobo era produtor [executivo] - já falecido, Deus o tenha em bom lugar -, mas não entendia as coisas. Então me fizeram subir em cima da mesa para bater fotografia... Coisa tão boba, ingê­nua, cretina, mas, enfim, acabei fazendo porque queria, tem umas coisas que eu gosto. Mas ele sofreu um pouco do efeito desse negócio do repertório, de me forçarem um pouco alguma música internacio­nal, mais comercializada. (Matias & Rosa, 2000, p.59)

Surpreendentemente, no mesmo ano em que seu disco fora

gravado, Duprat declarou, em uma entrevista ao jornal da Tarde,

que o movimento tropicalista era "coisa encerrada, um rótulo que

não lhe interessava mais, uma etapa superada" (Magalhães, 1968).

Quanto aos festivais, declarou à imprensa da época ter desis­

tido devido à sua péssima qualidade, acrescentando, ainda, o fato

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de não suportar mais os discursos solenes das entregas de prêmios. É importante lembrar que Duprat não foi receber o prêmio de melhor arranjador, em 1968, do Festival da Globo, atribuindo sua atitude à sua opinião de que "para fazer 'média' com Os Mutantes o júri agiu assim", e que, além do mais, para ele, esse título tempo­rário nada significava (ibidem).

Muitos autores referem-se ao ano de 1968 como o auge do movimento tropicalista. Onze anos depois, em 1979, Duprat dá uma Palestra no Festival de Cinema em Gramado, que não trata especificamente do tropicalismo, mas pode ser considerada uma espécie de balanço do que representou a década de 1960 para a cultura em geral e, mais especificamente, nacional. Nessa palestra, ele diz que a década de 1950 representou para os músicos "a restau­ração dos dodecafonistas, principalmente Webern, e um momento dos trabalhos superordenados, até matematicamente, das músicas concreta, serial e eletrônica, com complicadíssimas estruturas e sistemas de notação, para circular entre duas ou três pessoas". Em oposição a essa tendência estruturalista da música da década de 1950, na década seguinte iniciou-se o "'desbunde', inicialmente com a tímida incorporação de irracionais extraídos de teorias probabilísticas, e logo formando o cordão aleatório, com o sensa­cional John Cage de baliza" (Duprat, 1979). Duprat destaca, como elementos caracterizantes da cultura da década de 1960, os "Beatles, cabelos, papos de comunidades não alinhadas, hippies e contesta­ção". Esses elementos representavam um distanciamento com o que ele chamou de "Kultura com K maiúsculo", ao referir-se ao que considerava uma cultura reacionária, e uma aproximação com a antiarte e a contracultura:

Fomos ficando de mal com a "Kultura" e chegando mais à de massa. Os do K maiúsculo, que não tinham visto passar nem a pri­meira banda estruturalista dos 50, pegos de calças curtas, ficaram berrando em defesa da ordem, da estrutura e da grande arte, vejam só! Mas já era a era do grande sonho, caminho sem retorno. O sonho acabou, mas já tinha devastado tudo, demoliu o sistema, gerando terrível abalo cósmico, para a perplexidade das novas gerações dos dancing days de hoje. (Ibidem)

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Em 1983, num artigo escrito para a revista Leia, Duprat volta a tratar desse assunto, expondo uma versão mais politizada acerca da década de 1960. Para ele, o AI-5 foi instituído como uma reação do sistema ao descobrir que a verdadeira subversão estava aliada a uma revolução no nível comportamental e no campo da linguagem. A partir disso, o Brasil assistiu a "um verdadeiro rapa, uma atroz e impiedosa caça às bruxas de que não se livraram nem os aparente­mente inofensivos Gil e Caetano, engaiolados feito bichos nos sujos porões da repressão, junto com outras centenas de cabeças que, cada uma à sua moda, sabiam que tinham que ocorrer mudanças" (Duprat, 1983).

Duprat é comumente considerado o principal arranjador do tropicalismo. Isso se deve, provavelmente, por ter sido capaz de transitar por diferentes gêneros musicais de maneira singular e, além disso, ter encontrado meios de aliá-los. O contato com seus arranjos deixa a impressão de que ele soube realmente traduzir, por intermédio de seus sons, o conteúdo estético do tropicalismo. Talvez essa seja uma de suas contribuições, ter sido, de fato, um artesão que compilou sonoridades que comungam com as canções do repertório tropicalista, num tipo de união que resultou em um legado para a música popular brasileira.

Assim como os tropicalistas encontraram em Duprat os ele­mentos necessários para as transformações que desejavam operar na música popular brasileira, este, por sua vez, encontrou um am­biente propício para a viabilização de muitas de suas concepções estéticas, ou como ele mesmo comenta: "Foi a união da fome com a vontade de comer". Entretanto, ele diz humildemente: "Não fui eu que fiquei dando aula para eles; ao contrário, eu aprendi com Os Mutantes, com o Gil, com o Caetano..." (Matias & Rosa, 2000, p.59). Sua postura pode nos levar a pensar que seu papel no tropicalismo era apenas o de um técnico musical a serviço dos ideais estéticos do movimento. Porém, essa visão, difundida mui­tas vezes por ele próprio, deve ser redimensionada, pois como já visto, ele foi um dos idealizadores dos princípios estéticos que funda­mentaram o movimento Música Nova. Ao apresentá-lo a Gilberto Gil, Júlio Medaglia conhecia a potencialidade de Duprat, não

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apenas no que se referia a seus conhecimentos técnico-musicais, atributo que poderia ter sido encontrado em outro profissional, mas, sobretudo, sua concepção estética voltada para a vanguarda, e sua vivência nessa área, estes sim, atributos que, somados aos ideais de transformação dos tropicalistas, contribuíram para o redirecio­namento da música popular brasileira.

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FIGURA 16 - Convite de lançamento do disco Tropicália ou Panis et circensis, criação de Antonio Peticov, em 1968. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 17 - Capa (frente e verso) do disco vinil A banda tropicalista do Duprat, editado pela Philips, em 1968. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 18 - Rogério na época em que trabalhou como arranjador no disco Nara Leão, editado pela Philips, em 1968: da esquerda para a direita, o operador de som (?); Guilherme Araújo; Manoel Barenbein; Nara Leão e Rogério Duprat. Acervo Rogério Duprat.

FIGURA 19 - Rogério com Os Mutantes no Festival em Cannes (MIDEM), na França, em 1968. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 20 - Rogério com Cozzella na casa deste, em São Paulo, em 1994. Acervo Rogério Duprar.

FIGURA 21 - Rogério trabalhando como marceneiro, em Itapecerica da Serra, em 1978. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 22 - Rogério tocando violoncelo, em 1980. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 23 - Com amigos: (?), Rogério, Olivier Toni, (?) e Willy Correia de Oliveira, São Paulo, em 1963. Acervo Rogério Duprat.

FIGURA 24 - Rogério com a sua antiga parafernália eletroacústica. Época em que trabalhou para a empresa Rhodia, em 1968. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 25 - Rogério no centro de Itapecerica da Serra atuando como videomaker, no dia de Corpus Christi, em 1995. Acervo Rogério Duprat.

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3 O PROCESSO CRIATIVO

ANÁLISE DE OBRAS

O artista não cria: propõe paradigmas, modelos que extrai a esmo ou

supondo que é por opção.

(Rogério Duprat, 1973)

A trajetória artística de Rogério Duprat é marcada pela diversi­dade de gêneros e estilos musicais explorados no decorrer de sua carreira. Sua produção abrange composições no âmbito da música erudita e popular, arranjos, trilhas sonoras para filmes, peça teatrais e novelas, assim como alguns trabalhos que envolvem a orques­tração de obras de outros compositores. Além de sua atuação como compositor, regeu, por inúmeras vezes, muitos trabalhos e atuou como produtor musical em gravações de diversos artistas.

O processo criativo de Duprat é o objeto deste capítulo e para elucidá-lo, fez-se necessária uma incursão no terreno da análise, mais especificamente uma crítica genética do processo compo-sicional. Em razão de sua extensa produção envolver ampla di­versidade de estilos, a abrangência de todo o leque de sua obra desviaria este trabalho de pesquisa de suas propostas iniciais. Sen­do assim, serão analisadas três peças representativas, cada uma delas pertencente a um estilo diferente: composição erudita, ar­ranjo e trilha sonora. Com este fim, a autora, juntamente com o compositor, selecionou as obras que pudessem evidenciar alguns dos aspectos relevantes de sua trajetória composicional. Convém sa­lientar que não se trata, porém, de uma análise harmônica ou de

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uma investigação acerca dos procedimentos de estruturação em geral (modelos formais, escalas utilizadas e outros), ainda que es­tes sejam abordados na medida em que contribui com o objetivo proposto.

É importante sublinhar que Rogério Duprat comentou com a autora muitos aspectos do seu processo de criação em cada uma das peças selecionadas para a análise. Esse fato propiciou, por in­termédio da documentação das obras e de entrevistas com o com­positor, buscar uma leitura genética de sua produção artística. Esse procedimento tem como base o livro Gesto inacabado, de Cecília de Almeida Salles. A proposta é buscar um maior conhecimento do processo criativo, enfocando os meandros da criação por meio de documentos, rascunhos, entrevistas, diários, ou seja, qualquer tipo de informação que contribua para a elucidação acerca da ela­boração da obra.

Para Salles a crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção:

Acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, o crítico genético preocupa-se com a melhor compreensão do processo de criação. E um pesquisador que comenta a história da produção de obras de natureza artística, seguindo as pegadas deixadas pelos cria­dores. Narrando a gênese da obra, ele pretende tornar o movimento legível e revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a gênese da obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção. (1998, p.12)

No caso deste trabalho, a leitura genética considera, além da abordagem dos aspectos históricos e técnicos das obras, o movimento criador de Duprat e suas motivações. Pretende-se, com esse tipo de abordagem, que as análises das três obras escolhidas reflitam de algum modo a totalidade de sua produção, ou seja, busca-se a passa­gem da visão processual da obra como um todo. Nesse sentido, foram escolhidas três composições ao longo do tempo da produ­ção de Duprat.

A primeira obra será Organismo, inspirada em Structures para piano, de Boulez. Essa análise possibilitará o contato com a fase com-posicional, mais técnica, de Duprat, no âmbito da música erudita.

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Desse modo, o seu processo criativo pode ser observado de um ângulo mais estrutural, ou seja, a relação que estabelece entre o seu conhecimento das leis básicas do serialismo bouleziano e os seus próprios modos de aplicação.

Em seguida, o arranjo da obra "Objeto semi-identificado". A análise evidenciará uma atuação múltipla de Duprat. Nesse arran­jo, ele utilizou basicamente tudo o que sabia fazer como músico, ou seja, arranjou, compôs em diferentes estilos musicais, regeu e trabalhou como técnico de som. A respeito dessa experiência, Duprat conta que foi um dos trabalhos que mais gostou de realizar, por se sentir livre para transitar musicalmente por diferentes caminhos: "tinha apenas a letra em mãos. Na verdade, brinquei com tudo o que sabia fazer em música, em apenas uma obra. Foi muito diver­tido!" (Entrevista, set. 1998).

Enquanto em Organismo o procedimento de estruturação é o aspecto que melhor reflete o processo criativo de Duprat, na obra "Objeto semi-identificado" outros aspectos apresentam-se igual­mente relevantes para que esse objetivo seja atingido, ou seja, o uso de múltiplos recursos técnico-composicionais para a sua cons­trução. Essa obra favorece o contato com um outro momento de criação, no qual Duprat, desvinculado da rigidez técnica do estru-turalismo, caminha em direção a uma criação mais intuitiva, bus­cando aplicar procedimentos mistos de técnicas composicionais.

No intento de se abarcar o "ir e vir da mão do criador", sele­cionou-se mais uma obra da produção de Duprat: a trilha sonora do filme O pica-pau amarelo. Essa escolha se deu pela necessidade de compreender de maneira mais abrangente seu processo criati­vo, pois, diferentemente das duas anteriores, que têm existência autônoma, essa obra foi composta para outro meio expressivo - o cinema - e Duprat teve de aprender a lidar com diferentes modos de expressão.

A análise de O pica-pau amarelo deixa transparecer o movi­mento criativo do autor envolvido pela atmosfera cinematográfica que põe em evidência a relação que Duprat estabelece entre a música e a cena. Suas escolhas ante as exigências externas do diretor e do produtor do filme evidenciam o olhar que Duprat desenvolve ao eleger os seus motivos musicais para cada cena referente, ou seja,

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os critérios musicais adotados por ele, ao relacioná-los com o as­pecto visual, bem como pode-se reconhecer o quanto sua criação musical se coloca nas relações de produção. Acompanhando o pro­cedimento adotado no presente trabalho, fica fácil reconhecer sua estreita relação com a técnica estudada por Cecília Salles. A respei­to disso, Salles explica que "acompanhando processos criativos, percebe-se que as opções pelos recursos criativos podem ser alvo de modificações ao longo do percurso". Desse modo, fica claro que esses procedimentos não são, necessariamente, pré-seleciona-dos e determinados pelo artista, mas, na maioria dos casos, encon­trados durante o percurso (1998, p.109).

Explorar os procedimentos criativos de Duprat, por intermé­dio das análises das três obras selecionadas, é uma busca da rela­ção maior da percepção artística e das ações transformadoras que este compositor vive em sua atividade criadora.

ORGANISMO (1961) (COMPOSIÇÃO ERUDITA)

Ficha técnica

Obra: Organismo Autor: Rogério Duprat Data: 1961 Local: São Paulo Edição: Esta obra não possui edição fonográfica, nem musicográ-

fica. Gravação em cassete.ms.

Instrumentação

A instrumentação utilizada é composta por flauta, oboé, corne inglês, clarinete baixo (sib), fagote, celesta, vibrafone, violino, viola, violoncelo e contrabaixo. Além de cinco vozes solistas: baixo, tenor, contralto, soprano e voz infantil, há ainda, os crótalos, agogô e matraca como instrumentos de percussão.

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Contexto histórico

Desde a década de 1950 até meados de 1960, Rogério Duprat atuou assiduamente como compositor de música erudita, acrescen­tando 21 obras desse gênero em seu repertório. Em 1963, ao lado de outros compositores, publicou na revista Invenção, n° 3, o mani­festo Música Nova no Brasil. Apesar de seu intenso envolvimento com as propostas de vanguarda da época, com as peças Projeto Unbica 1964, composta em 1964 e Tempo passou, em 1966, assi­nou suas últimas obras eruditas nesse período. Como mencionado no capítulo 1, a partir de 1967 Duprat permaneceu por dezessete anos afastado do gênero erudito. Nesse período, sua produção foi redirecionada para o gênero popular, com o qual realizou arranjos, orquestrações e regências, além da composição de trilhas sonoras para cinema. Sua criação no âmbito da música erudita só seria retomada em 1983 com a peça Audio games manuais para quatro violoncelos seguida da peça Para André (1995), para solo de vibrafo-ne e do Estudo para piano (1999), dedicado ao pianista José Eduardo Martins. Intercaladas com essas obras, Duprat compôs algumas versões sinfônicas e orquestrais para obras de outros autores, entre elas, os Prelúdios para piano, de Claude Debussy, em 1981, FRAKT =DX-MAC (RD)2, de Ruriá Duprat, e Sport et divertissements, de Erik Satie, ambas orquestradas em 1992.

A obra Organismo foi composta em 1961 sobre o poema de mesmo nome do poeta e escritor Décio Pignatari. Rogério Duprat traduziu esse poema para orquestra de câmara e cinco solistas vo­cais. A obra foi apresentada pela Orquestra de Câmara de São Paulo sob a regência do maestro Olivier Toni no programa Música e Imagem (TV ao Vivo) do Festival de Música Nova, em colabora­ção com a Bienal de São Paulo, em dezembro de 1961 (Figura 26).

Entre as peças do repertório erudito de Duprat, a escolha dessa obra em particular deve-se à sua significação dentro do percurso do autor, incluindo o fato de que ela representa a união dos composi­tores da Música Nova com os poetas concretistas de São Paulo.

Duprat foi o primeiro compositor da Música Nova a traba­lhar em um projeto musical em conjunto com os poetas concretistas. Em seu livro Uma odisséia musical, o compositor Gilberto Men­des tece um comentário sobre esse episódio:

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FIGURA 26 - Programa Música e Imagem do Festival de Música Nova. Acervo Rogério Duprat.

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Rogério Duprat já musicara um poema de Décio Pignatari, Or­ganismo para a Orquestra de Camâra de São Paulo e cinco solistas vocais. Foi ele quem abriu, posteriormente, o caminho para que viés­semos também eu e Willy Correia de Oliveira a conhecer pessoal­mente Décio, Augusto e Haroldo de Campos. (1994, p.71)

Com Organismo iniciou-se uma estreita colaboração entre músicos e poetas paulistas, que visava à criação de uma música diferenciada da produzida na Europa, em especial em Darmstadt. A poesia concreta fornecia o material (concreto) necessário para que os compositores da Música Nova buscassem construir uma música originalmente brasileira. Por esse motivo, essa obra passou a ter uma conotação bastante significativa no cenário da música con­temporânea paulista. Ela nunca foi editada, seu único registro é a partitura do próprio autor (Anexo 5) e uma gravação caseira, em posse do compositor Gilberto Mendes, realizada no dia em que a executaram no programa Música e Imagem (TV ao Vivo) em 1961.

Organismo faz parte de uma etapa intermediária na trajetória composicional de Duprat e pode ser vista como uma ponte entre sua prática serial (via Schönberg e, posteriormente, Boulez), a música eletrônica e o happening. Segundo Duprat, por ter sido composta basicamente sob a influência da composição Structures I (1952), de Pierre Boulez, Organismo é sua peça mais complexa do ponto de vista estrutural. Essa obra reflete os seus estudos relati­vos à música serial da escola de Darmstadt. Assim como Boulez, Stockhausen e Goeyvaerts, Duprat se vale de técnicas que vieram expandir o dodecafonismo de Schönberg (1874-1951) e Webern (1883-1945).

Terminologias próprias e a escrita de Qorpo Santo

Quase quarenta anos após a composição de Organismo, Duprat realiza uma leitura analítica da obra, que serviu de base para este trabalho. Quando se refere aos seus procedimentos técnicos, adota a terminologia comumente usada na técnica serial, mesclando-a, todavia, com alguns termos próprios. Uma vez que este trabalho está embasado em seus manuscritos analíticos (Figura 28), optou-se por manter a terminologia adotada por Duprat, relacionando-a com a usualmente utilizada na técnica serial em benefício da clareza.

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Outro ponto a ser observado é que, em seus manuscritos ana­líticos, Duprat utiliza uma ortografia personalizada que, segundo ele próprio, foi influenciada pelo dramaturgo gaúcho Qorpo San­to.1 Após escrever muitas de suas peças, em 1868, Qorpo Santo traçou algumas regras práticas com o objetivo de simplificar a or­tografia. Sua proposta era criar um novo sistema ortográfico com base na sonoridade da língua portuguesa e, com esse propósito, publicou um artigo no jornal A Justiça, fundado por ele mesmo, na cidade de Alegrete. O texto a seguir refere-se a um trecho dessa publicação reproduzido na íntegra por Guilhermino César em seu livro Teatro completo:

Fundado no sabio poéta portuguez Castilho, no literato brazi-leiro Antonio Alvez Pereira Coruja; e em meu Distincto Mestre de tantas artes, de tantas sciencias - M a r q u e z de Marijá; desde 1862 que levado de huma fôrça irrezistivel, e do mais vehemente dezejo de ser de qualquer modo louvável util a meus simelhantes, e especialmente a meus alumnos, ensaiei a Ortographia de que pouco a pouco me vou servindo, e transmitindo a os sabios a cuja crítica sujeito. (1980)

A reforma ortográfica pretendida por Qorpo Santo compre­endia, entre outros aspectos, a supressão da vogai U das palavras nas quais ela não soa; a supressão de uma das letras, quando do­bradas; a supressão da letra Y do alfabeto, como aconteceu ao desusado W; o uso do S em todas as palavras em que se pode dispensar o C cedilhado (ibidem). Com isso, ele acreditava que, caso a sua reforma fosse adotada, uma pessoa poderia aprender a ler no máximo em oito meses. Como se pode perceber pela descri­ção acima, a reforma de Qorpo Santo baseava-se na sonoridade e buscava eliminar fonemas diferentes que expressassem o mesmo som. Por meio dessa simplificação e direcionamento da escuta, acreditava na possibilidade de alfabetização em ritmo acelerado.

O escritor e diretor de teatro Luiz Carlos Maciel, que dirigiu, em 1968, a peça As relações naturais, de Qorpo Santo, revela, em

Qorpo Santo (1833-1883), pseudônimo literário do escritor e teatrólogo brasi­leiro José Joaquim de Campos Leão. Nascido na cidade de Triunfo, no Rio Grande do Sul, seus textos são bastante originais se comparados ao estilo vigen­te em sua época. Parte da crítica o considera um precursor do moderno teatro do absurdo, desenvolvido no século XX [Enciclopédia da Folha, \996, p.808).

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seu livro Geração em transe um pouco mais sobre esse dramaturgo gaúcho:

O autor fora descoberto pelo professor Guilhermino César, cate-drático de Literatura na Universidade do Rio Grande do Sul, que fez sobre ele um alentado trabalho de pesquisa. Para o professor, confor­me uma idéia que seria repetida por quase todo os comentaristas pos­teriores, Qorpo-Santo era um precursor do chamado Teatro do Ab­surdo, de Beckett, Ionesco etc. Não concordei muito com isso. Ionesco, Beckett etc. se fazem de loucos; Qorpo-Santo era pirado de fato. Naque­les, há sempre um propósito; neste, uma catarse. (1996, p.173)

A partir da sua experiência com a direção da peça As relações naturais, Maciel destaca o fato de que além de ser uma comédia engraçada e de enorme teatralidade, o texto também abria todas possibilidades de mexer com a linguagem (ibidem, p.173). As ca­racterísticas de Qorpo Santo, salientadas por Maciel, podem ser o motivo pelo qual Duprat interessou-se por esse autor.

Desde a segunda metade da década de 1970, período em que tomou contato com as obras de Qorpo Santo, Duprat interessou-se por suas idéias; afinal, como músico, podia compreender per­feitamente a organização da ortografia por um critério sonoro. Além disso, a inusitada proposta estimulava sua índole revolucio­nária e irreverente, razão pela qual adotou-a, passando a escrever as palavras pelos mesmos critérios de sonoridade. Essa forma de escrita foi adotada inclusive nos artigos que redigia para jornais e revistas. A Figura 27, trecho de uma matéria escrita em 1983, para a revista Leia, mostra o uso da ortografia proposta por Qorpo Santo que foi adotado por Duprat:

A irreverência de Qorpo Santo e a presença do humor em suas obras estão em conformidade com o trabalho de Duprat que esteve sempre voltado para o "domínio da parábola, do pseudo, da caricatura, do deboche e da metáfora" (Chrispiano, 1999, p.37). Ao ser questionado sobre o porquê do uso do tipo de escrita pro­posto por Qorpo Santo, Duprat respondeu: "uso-a apenas porque gosto" (Entrevista, jun. 2000). No entanto, pelos pontos de iden­tificação entre ambos, parece que ao adotar a reforma ortográfica de Qorpo Santo, Duprat encontrou uma forma de estender sua escrita musical à verbal.

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FIGURA 27 - Rogério Duprat, Revista Leia, 1983. Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 28 - Manuscritos de Duprat, em Diário, 1999. Acervo Rogério Duprat.

Procedimentos composicionais

O Poema "Organismo"

Décio Pignatari construiu o poema "Organismo" utilizando recursos do desenho gráfico (1957). A fusão da linguagem gráfica com a poética despertou em Duprat um grande interesse que, a partir disso, vislumbrou a possibilidade de uma interação ainda maior, ou seja, transformar o poema em música. Para ele, "levando em conta a temporalidade, relativa às sucessivas viradas de página, somadas às palavras e suas representações visuais, o poema de Pig­natari poderia ser considerado um produto gráfico 'tri-mídia' [gráfi­ca, poesia e música]" (Entrevista, dez. 1999). O objetivo de Duprat era transformá-lo num evento multimídia com transmissão simul­tânea pela televisão.

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FIGURA 29 - Poema "Organismo" de Décio Pignatari, 1960. Acervo Rogério Duprar.

A análise do poema apresentada a seguir foi extraída de manus­critos de Duprat e, por tratar-se de sua visão pessoal, pode auxiliar na compreensão de seus procedimentos composicionais, principal­mente no que se refere à interação texto-música.

Para Duprat, Décio Pignatari concebeu o poema como uma proposição de quatro palavras e nove sílabas que ocupa cada uma das oito páginas de tamanho igual. Na primeira página, o poema co­meça com a seguinte afirmação:

O ORGANISMO QUER PERDURAR

Por uma dinâmica própria, as letras vão aumentando de tama­nho e o texto passa a não caber inteiro nas páginas seguintes. Além da perda de letras, novas palavras são acrescentadas, algumas de­las resultando da supressão de sílabas ou alteração da ordem das letras da palavra anterior. Duprat refere-se a esses recursos poéticos como sutis mudanças semânticas. No exemplo seguinte, a palavra acrescentada apresenta-se incompleta:

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O ORGANISMO QUER REPET

A frase escrita dessa forma sugere que para o organismo per­durar é preciso repetir-se, replicar-se. Já na terceira página, o que pode ser notado é a indicação de redundância. O desejo do orga­nismo deixa de ser sugerido, como na frase anterior, deixando em aberto um leque de possibilidades interpretativas:

O ORGANISMO QUER RE

Na página seguinte, a frase apresenta-se de forma categórica, imperativa:

O ORGANISMO QUER

Na quinta página, a ausência das palavras da frase inicial resulta no título do poema com a última vogai propositadamente omitida:

O ORGANISM

Com tantos recortes, o poema foi reduzido a uma única pala­vra: "orgasmo". Assim como a vogai "o" foi omitida na palavra anterior aqui o mesmo procedimento se repete:

ORGASM

Por meio de um "salto semântico", como Duprat denomina esse procedimento, ou seja, da retirada da sílaba "ni", originou-se a palavra "orgasm" e, dessa forma o poema atingiu o seu ápice poético. Nesse momento, essa palavra, que já se encontrava implí­cita na frase desde o início, demonstra o sentido essencial do poe­ma e o seu movimento criativo.

O O Os dois "os" retirados das palavras anteriores aparecem isolados

nessa parte do poema. Para Duprat, essa redução gerou uma grafia que nos remete a uma idéia de cópula, como se esse ato estivesse projetado em um espelho. Dessa maneira, por esse gráfico temos a idéia de fecundação.

O

O final do poema é assinalado por apenas um grande e único "o", que aos olhos de Duprat representa uma nova criatura ou um

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novo organismo, simbolizando a idéia de "dois" que se unem e produzem "um". A frase termina com a idéia de redundância, de algo circular que se fecha em um ciclo, concluindo a idéia essencial do poema.

Para Duprat, o poema é permeado por constantes mutações e grande mobilidade. No decorrer do texto, "muitas surpresas foram apresentadas, porém, com pouca definição e estabilidade" (Entre­vista, dez. 1999). Em razão disso, optou, ao estruturar sua obra, por uma rigorosa serialização das alturas.

De um modo geral, a peça de Duprat foi construída a partir de uma série, original, composta de nove notas e suas resultantes, ou séries secundárias. Duprat refere-se a essas séries como formatos que se apresentam no decorrer da obra segundo critérios preesta­belecidos denominados comportamentos, ou seja, possibilidades de disposição dos formatos. Duprat refere-se aos comportamentos como modos de encadeamento de aglomeração dos sons.

Formatos

Buscando uma correspondência com as nove sílabas que com­põem a primeira frase do poema ("O organismo quer perdurar"), Duprat construiu uma série básica de nove sons (formato original) composta por três fragmentos cromáticos de três notas, conforme figura abaixo:

Note-se que o fragmento "b" é o retrógrado do fragmento "a" transposto à 3a menor acima, enquanto o fragmento "c" consiste na transposição do original (6a maior acima ou 3a menor abaixo), o que, sem dúvida, confere à série mais um dado de simetria.

FIGURA 30 - Formato original.

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Essa série de nove sons é utilizada, ao longo de toda a obra, em seus quatro formatos característicos das operações seriais: for­mato original, ou seja, a série tal como foi concebida; recorrência, termo utilizado por Duprat para designar o retrógrado da série, que consiste na apresentação da série original, como se estivesse refletida num espelho vertical; inversão, que é o resultado da in­versão dos intervalos da série original, como se estivesse refletida num espelho colocado num plano horizontal; e recorrência da in­versão, termo que Duprat utiliza para nomear o retrógrado da in­versão (Figura 31).

Obviamente, os formatos original (0) e recorrência (RO) con­têm as mesmas notas. O mesmo se dá com a inversão (I) e com a recorrência da inversão (RI), em que somente a ordem é inversa como demonstra a Figura 32:

FIGURA 32 - Formatos utilizados por Duprat na composição de sua peça Or­ganismo.

FIGURA 31 - Gráfico dos espelhos.

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Comportamentos

Os comportamentos utilizados por Duprat nessa obra são:

1 Linear: apresenta a série em graus conjuntos e âmbito estreito, como se fosse uma melodia.

2 Disperso: compõe-se por graus disjuntos e em âmbitos prefe­rencialmente largos ou em "pontos soltos".

3 Em bloco: apresenta pelo menos um instante de simultaneidade entre os componentes, como nos acordes da harmonia tradicional.

4 Bang: apresenta a série de forma errática, em desordem, como estilhaços em uma explosão.

5 Misto: mostra a série numa mistura dos comportamentos ante­riores.

Como é comum na prática serial, para que a "elasticidade so­nora" seja garantida, dois aspectos são convencionados:

1 Qualquer nota de qualquer formato pode ser utilizada em qual­quer oitava do universo audível.

2 Todos os formatos podem ser executados por uma só voz ou instrumento, ou podem ser compartilhados por vários, sendo seus elementos distribuídos entre eles. Os formatos podem, também, conviver uns com os outros em regime de simultaneidade, justa­posição e verticalidade, num jogo de "variação de densidade".

O procedimento de utilização dos formatos, em Organismo, pode ser observado, na Figura 33, a partir dos compassos que ini­ciam a obra. A fim de que sejam mais facilmente identificáveis e também diferenciados, foram utilizadas cores específicas para cada formato: a cor vermelha para o formato original, a preta para a inversão e o azul para a recorrência. As seis primeiras notas do for­mato original são tocadas pelo violino dentro de um comporta­mento linear, enquanto as três notas restantes são tocadas pela flauta, no compasso 2. Excetuando-se as notas tocadas pelo violino, todas as outras tocadas pelos demais instrumentos, no primeiro compasso, apresentam as notas da série, porém, dessa vez, elas não se encontram dispostas de forma linear, mas, ao contrário, nenhuma

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ordenação lógica é encontrada. Duprat refere-se a essa segunda maneira de dispor a série, como bang. Já no quarto compasso, o comportamento em bloco pode ser observado. Ao mesmo tempo em que o oboé apresenta, em um comportamento linear, as pri­meiras notas do formato inversão, outros instrumentos, quase que simultaneamente, apresentam esse mesmo formato de forma verticalizada, ou seja, em bloco. No decorrer da obra, os formatos poderão ser apresentados em outros comportamentos, além dos exemplificados. Ao todo, somam-se cinco possibilidades de uso dos formatos da série, cada uma delas correspondente a um com­portamento.

FIGURA 33 - Primeiros compassos da peça Organismo.

Parâmetros dos formatos

Uma vez compreendida a função estruturante dos formatos e seus comportamentos, cabem aqui algumas considerações acerca

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do tratamento dado a outros parâmetros musicais que não a altu­ra. Para que o tipo de tratamento dado a esses parâmetros possa ser compreendido, buscou-se colocar em evidência aqueles que assumem um papel de grande significância na estruturação dessa obra. São eles a densidade e a duração:

a) Densidade

De uma maneira geral, a densidade pode ser entendida como o número de eventos que ocorrem num determinado trecho musical e pode ser vista tanto vertical (número de eventos sobrepostos), quanto horizontalmente (número de eventos contíguos). Nesse sentido, em Organismo, a densidade pode ser observada em relação:

• ao número de compassos agrupados em cada ocorrência de um formato,

• ao número de formatos que soam simultaneamente, • ao número de instrumentos e ou vozes envolvidos em cada com-

parecimento de um formato.

A partir disso, pode-se dizer que a densidade é maior quando:

• o formato ocupa menos compassos, • há mais formatos simultâneos, • há um número maior de instrumentos ou vozes, em menos com­

passos.

Em Organismo, a densidade não obedece aos princípios de serialização, mas estabelece estreita relação com a poética da obra de Pignatari. A correspondência entre o poema e a obra de Duprat pode ser estabelecida a partir do fato de que ambos foram cons­truídos levando em conta um decréscimo no número de eventos. No poema, esse decréscimo é facilmente perceptível por ocorrer de forma linear, ou seja, as letras vão sendo suprimidas à medida que ele se desenvolve. Já na música de Duprat, momentos de grande densidade são alternados a momentos de grande rarefação, mas apesar dessa irregularidade o decréscimo no nível de densidade se dá de forma direcional: inicia-se com um grande número de even­tos (Figura 33) e finaliza-se com grande rarefação (Figura 34).

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É importante ressaltar que essa abordagem leva em conta ape­nas o número de eventos, que em ambas as obras apresenta-se decrescente. A questão da densidade, no entanto, requer maior atenção. Se se observar o poema de Pignatari, nota-se que à medi­da que as letras diminuem em número, elas aumentam em tama­nho. Esse fenômeno assemelha-se ao efeito causado pela aproxi­mação de uma lente de aumento, ou seja, um tipo de zoom in, como é chamado tecnicamente em cinema ou em fotografia. A partir dessa ótica, pode-se dizer que apesar do decréscimo linear no número de letras, à medida que o poema se desenvolve, existe um acréscimo no nível de densidade, decorrente do aumento no tamanho das letras (o tamanho das páginas permanece imutável). Em Organismo, o decréscimo no número de eventos corresponde realmente à diminuição no nível de densidade. Ao contrário do poema que termina com apenas uma letra, que, devido à alteração em suas dimensões, não cabe inteira na página, os dois últimos compassos da obra de Duprat (Figura 34) foram concebidos tendo em vista um processo de rarefação.

FIGURA 34 - Dois últimos compassos (94 e 95) de Organismo.

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b) Duração

A organização das durações em Organismo também não obe­dece a critérios seriais. Segundo Duprat, elas são organizadas de modo a ressaltar a dicotomia racional/irracional. Por duração racio­nal entende-se aquela que pode ser medida de forma absoluta, ou seja, com resultados exatos. Por exemplo: a duração de quatro semínimas equivale à duração de uma semibreve. Já nas durações irracionais, não se pode obter resultados exatos nas relações entre as figuras. É o caso das fermatas, que não podem ser medidas de maneira precisa, ou das quiálteras, em que durações regulares são divididas de modo inusual abrigando valores maiores ou menores do que o esperado. Uma quiáltera de três colcheias, por exemplo, posta em relação à semínima, ocupa o lugar de duas colcheias.

FIGURA 35 - Exemplos de durações racionais em Organismo.

Em Organismo, as durações irracionais são encontradas nas seguintes situações:

• fermatas, • appogiaturas, • quiálteras (essas, de quase impossível execução).

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FIGURA 36 - Exemplos de durações irracionais em Organismo.

A ocorrência de durações irracionais pode ser notada na Figu­ra 37, referente aos primeiros compassos da obra. Logo no primei­ro compasso, na linha do violino, pode-se observar uma quiáltera composta por 5 semicolcheias que corresponde à duração de 4 semicolcheias e, portanto, numa relação de 5 para 4 e, em seguida, observa-se uma quiáltera de 4 colcheias com duração correspon­dente a 3 colcheias, nesse caso a relação é de 4 para 3.

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FIGURA 37 - Primeiro compasso de Organismo correspondente à linha do violino.

Além das alterações no ritmo e na métrica, a presença das durações irracionais leva também a mudanças constantes de com­passo que ocorrem 69 vezes em uma obra que possui 95 compas­sos. Os compassos 2 4 6 2 3 4 5 7 ,

8 8 8 16 16 16 16 16

compareceram de uma a cinco vezes cada. Além desses, o compasso 2/4 compareceu doze vezes, o compasso 3/4 sete vezes, o compas­so 3/8 trinta vezes e o compasso 5/8 24 vezes.

A presença de tão elevado número de mudanças de compasso contribui para desestabilizar a audição da obra, tornando-se, junto aos ritmos irregulares, mais um elemento que constitui o clima de imprevisibilidade.

Andamentos

Outro fator que contribui para dar à obra seu caráter mutante e imprevisível é o emprego constante de alterações de andamento. Nos 95 compassos da peça aparecem 38 indicações de mudanças de andamento, das quais dez são absolutas (metronômicas) e 28 relativas (transitórias).

FIGURA 38 - Exemplos de andamentos absolutos extraídos dos manuscritos de Duprat.

Andamentos relativos usados em Organismo:

Tenuto, a tempo, poco rallentando, a tempo, poco rallentando, a troppo, tenuto, a troppo, affretando, rallentando/ritmando, a troppo,

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tenuto, rallentando, tenuto, a troppo, ritmando, poco piu vivo, rallentando, tenuto, a troppo, ritmando, rallentando, ritmando, calmo.

Como se pode ver, os andamentos relativos são empregados cerca de três vezes mais do que os absolutos (28/10), o que, do mesmo modo que os ritmos irregulares, mostra a preponderância de estruturas não totalmente previsíveis sobre as previsíveis e de irregulares e assimétricas sobre as regulares ou simétricas.

Assim como o parâmetro densidade, as durações, o timbre, os andamentos e a dinâmica não foram organizados segundo os prin­cípios do serialismo, que surge apenas como organizador das altu­ras. Embora Duprat tenha composto sua obra sob forte influência das Structures para dois pianos, de Pierre Boulez, para a composi­ção de Organismo não optou pelo serialismo integral, mas se man­teve ao princípio inicial, que só serializava as alturas, não se po­dendo esquecer, porém, que pela relação mantida com o poema, a série de Duprat tem nove e não doze sons serializados, como era usual na prática dodecafônica.

Considerações gerais

Como se pôde observar, o poema "Organismo" de Décio Pig-natari não representou apenas uma referência para que Duprat compusesse a música. Tampouco a utilização do poema como texto para a composição pode ser tida como casual, o que o tornaria subs-tituível por qualquer outro. Ao contrário, o que ocorre em Organis­mo é uma grande interação entre texto e música. Até mesmo a opção pela técnica serial nasceu da análise que Duprat realizou do poema. Ele partiu da estrutura do poema para organizar sua com­posição, tornando ambos indissociáveis. Isso pode ser visto a partir da escolha de uma série de nove sons equivalendo às nove sílabas correspondentes às quatro palavras contidas na primeira página do poema e, também, a partir da opção pela densidade decrescente que se equipara ao tratamento dado ao poema por Décio Pignatari.

Um exemplo de interação texto/música pode ser observado entre os compassos 69 e 73 (Figura 39). A nota ré bemol, que não pertence à série e, portanto, tratando-se de um serialismo estrito, não deveria estar presente nessa obra, pontua um momento con-

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FIGURA 39 - Compassos 69 a 73 de Organismo.

gelado na composição. Durante cinco compassos, é só ela que se apresenta em conjunto com a palavra orgasm. No poema, essa palavra representa o ponto culminante. Duprat representa musi­calmente esse momento pelo emprego de uma nota alheia à série.

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Ele refere-se à reiteração dessa nota, corno uma mera arbitra­riedade de sua parte, um "recurso de inédita redundância". Esse procedimento ilustra mais um momento da obra, no qual a idéia do compositor se sobrepõe às técnicas composicionais.

Outro momento da obra que pode servir para ilustrar a influên­cia do poema em sua estruturação está situado entre os compassos 79 e 85. Nesse trecho, encontra-se uma "estrutura em espelho", pela qual Duprat reporta-se ao "o" espelhado, próximo ao final do poema. Para que a ocorrência dessa estrutura possa ser mais facilmente observada na partitura, basta imaginar um espelho colo­cado verticalmente no meio do compasso 82. Observando, por exemplo, a linha do oboé (Figura 40), nota-se que a figura que se inicia no compasso 81 é imediatamente espelhada (retrogradada) após a pausa de colcheia. O espelhamento se repete nas outras li­nhas, referentes aos outros instrumentos.

FIGURA 40 - Compasso 81 a 83 de Organismo.

A idéia inicial de Duprat, segundo seu próprio relato, era trans­formar sua obra em um evento multimídia. Um poema concebido a partir de um desenho gráfico servira de base à composição, que integrava música, poesia e a idéia do autor de que a obra pudesse ser assistida, além da platéia local, simultaneamente, em locais dis­tintos, via televisão. Duprat estava atento ao apelo visual do poe­ma e, a partir disso, buscou integrar esse elemento em sua música, com sugestões indicadas em partitura a respeito do comportamen­to dos executantes:

a) Os cantores devem se manter sentados, só se levantando no momento do solo.

b) No n° 65, a criança [única voz infantil] já não se senta, levan-tando-se os outros e se aproximando o máximo possível do centro (contralto). Mantêm-se em pé até o fim.

Uma característica marcante dessa obra diz respeito à sua dificul­dade técnica. Esta se apresenta tanto para o instrumentista quanto para o regente. É possível afirmar que sua execução literal é quase

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impossível, em virtude da preponderância de ritmos irregulares sobre os regulares, mudanças de compasso e dificuldades técnico-instrumentais de toda ordem. Sendo ele próprio um regente, estava ciente disso e, por esse motivo, pode-se presumir que a opção pela complexidade teve um propósito específico: trazer o elemento "imprevisibilidade" para uma música fundamentada numa técnica altamente controladora. Quando inquirido a respeito do uso que fez, em Organismo, de uma quantidade enorme de valores rítmicos inexeqüíveis, Duprat respondeu: "Tudo fez parte da intenção de adi­cionar sempre mais incerteza ao discurso" (Entrevista, dez. 1999).

OBJETO SEMI-IDENTIFICADO (1969) (ARRANJO)

Ficha técnica

Obra: "Objeto semi-identificado" Autores: Gilberto Gil/ Rogério Duarte/Rogério Duprat Disco: Gilberto Gil Arranjos: Rogério Duprat Direção de produção: Manoel Barenbein Data: 1969 Local: Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo Edição: Disco Vinil - n° R 765.087L Gravadora: Philips

Instrumentação

A instrumentação utilizada por Duprat nessa obra caracteri­za-se pela combinação de instrumentos elétricos (baixo e órgão), instrumentos acústicos (clarinete, bateria, violinos, violas, violon­celo, trombones e trompetes) e sons gravados em fita magnética manipulados eletronicamente.

Contexto histórico

Em 1947, aos quinze anos de idade e com pouco conheci­mento da escrita musical, Duprat compôs duas valsas: Amo esta

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vida e Eu te vi, que foram dedicadas à sua namorada Lali. Não se tratava de peças instrumentais, elas possuíam texto, escrito por ele mesmo. O gênero popular foi abandonado, mas ele o resgataria no ano de 1963, com a composição de dois sambas: "Hás de con­vir" e "Lágrimas". Ambos eram parte da trilha sonora do filme A ilha, de Walter Hugo Khouri. Ainda na década de 1960, arranjou e orquestrou músicas de Dorival Caymmi (1914), Ari Barroso (1903-1964), Noel Rosa (1910-1937) e Edman Ayres de Abreu,2

no disco Ritmo no ar.3 O samba que deu nome a esse disco foi composto por Duprat; entretanto, ele utilizou como pseudônimo, Rudá Duprat (nome de seu filho). Outras peças pertencentes a esse disco foram compostas em parceria com Edman Ayres de Abreu, porém Duprat não as assumiu. Em início de carreira, ao priorizar suas atividades como compositor erudito, não associou o seu nome a canções populares. Mais tarde, porém, em decorrência de sua participação no Tropicalismo, seu nome passou a estar liga­do ao âmbito da música popular, tanto como compositor, quanto como arranjador.

Assim como os sambas da trilha sonora do filme A ilha foram encomendados pelo diretor do filme, o disco Ritmos no ar é resul­tado de uma encomenda da gravadora V S. Geralmente, a solicitação inicial era para que Duprat fizesse apenas os arranjos para músicas já compostas; no entanto, quando o compositor tomava contato com o resultado do trabalho de Duprat, percebia que se tratava de uma recriação e, algumas vezes, dividia a autoria. Isso aconteceu com a música "Objeto semi-identificado"4 de Gilberto Gil e Rogério Duarte. A interação do arranjo com o texto foi total. Provavel­mente por essa razão, a autoria foi estendida a Duprat. Fato seme­lhante ocorreu com as músicas "Acrilírico" de Caetano Veloso e "Tempo/Espaço contínuo" de Lulu Santos. Ao compor um arranjo integrado à estrutura da obra de modo a impedir que ambos pudes­sem ser concebidos dissociadamente, Duprat extrapolava o âmbito

2 Compositor nordestino. Foi diretor-administrativo da gravadora V. S. na dé­cada de 1960.

3 Disco vinil, n° LP ISS 1, 33rpm. Gravado em São Paulo pela gravadora VS. 4 O nome de Rogério Duprat não consta no encarte do disco como autor dessa

música, porém, sua autoria está registrada oficialmente na editora Philips.

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da orquestração e da concepção de arranjo como mero ornamento de uma obra musical e se firmava como co-autor.

A canção "Objeto semi-identificado" composta, inicialmente, por Gilberto Gil e Rogério Duarte foi gravada em 1969, no disco intitulado Gilberto Gil, no período em que Gilberto Gil e Caetano Veloso foram obrigados a permanecer na Bahia, em virtude da ação repressora militar. Sobre esse episódio, Luiz Carlos Maciel5

comenta que "Caetano e Gil foram presos, ficaram três meses na Vila Militar e depois foram levados para a Bahia num avião da FAB" (1996, p.206). A ditadura militar havia deixado o "Ato Institucional n° 5" (AI-5) como marco de um período de grande repressão política e cultural. Maciel observa que no ano de 1969 "os órgãos de repressão começaram a prender todo mundo. Mui­tos sem motivo. Alguns por besteiras inimagináveis. Foi uma fase braba do governo Médici" (ibidem, p.205).

A partir das medidas governamentais decorrentes do AI-5, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram acusados de subversivos. Maciel aponta que, inicialmente, a repressão tinha como alvo principal as ameaças políticas e, à medida que se tornava mais rígida e paranóica, passou a policiar, também, qualquer contestação considerada por ela anárquica. Em razão disso, Gilberto Gil e Caetano Veloso que, do ponto de vista da direita, não eram considerados perigosos, estavam entre os primeiros a serem presos:

A discussão proposta pelos tropicalistas não era política no sen­tido mais estrito do termo. No sentido mais amplo, era totalmente politica, porque questionava fundamentalmente as formas de com­portamento do indivíduo na sociedade. E isso passou também a ser um alvo em potencial da paranóia dos conservadores, responsáveis pela "segurança" da nação. (Ibidem)

Nesse período, Luiz Carlos Maciel também foi preso e a im­pressão que teve dessa experiência é que os militares, "não sabiam muito bem por que prendiam as pessoas. As acusações eram gra­tuitas, arbitrárias, meros pretextos. Era uma febre danada de pren­der... só isso" (p.206).

5 Escritor e diretor de teatro. Na década de 1970, era um dos principais colabo­radores do Pasquim, assim como de vários outros jornais, ditos underground.

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Após o período de confinamento na Bahia, Caetano Veloso e

Gilberto Gil foram levados a deixar o Brasil e partiram para Lon­

dres. Ao relatar sua experiência pessoal, Caetano Veloso, em seu

livro Verdade tropical, deixa transparecer os reflexos do regime

ditatorial na sociedade brasileira:

Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 (e que foi pequeno se comparado ao núme­ro de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte); quando penso nos que sofreram tortura física, ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar na anistia em 79, concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que nem sequer mereceria refe­rência. Muitos dos que sofreram maiores maus-tratos - ou que fo­ram presos mais vezes e em tom de descaso. O próprio Gil não tem dos dias de cela e xadrez uma lembrança tão amarga ou tão recor­rente quanto a minha. (1997, p.413)

Antes de partirem para Londres, ambos gravaram um disco

em um pequeno estúdio na Bahia. O disco de Caetano Veloso, que

possui seu próprio nome, traz a música "Acrilírico", em parceria

com Rogério Duprat. Gilberto Gil, que também optou por um

disco homônimo, gravou a faixa "Objeto semi-identificado", em

parceria com Rogério Duarte e Rogério Duprat. Sobre a ida de Gil

e Caetano para Londres, Duprat se recorda:

eles foram proibidos de sair da Bahia. Gil e Caetano não sabiam que iriam ser expulsos do país, achavam que iriam voltar à vida normal. Depois do sucesso de "Domingo no parque", "Alegria, alegria" e o disco Tropicália, ficaram sem poder exercer o que sabiam fazer. Esta­vam no momento de fazerem muitos shows e em vez disso foram obrigados a se exilar. Os disco Gilberto Gil e Caetano Veloso foram realizados em um clima muito triste! Neste momento, acabei sendo uma espécie de "escriba musical" deles. Deixaram o material para que eu realizasse os discos e foram embora. (Entrevista, set. 1998)

A respeito das gravações em 1969 dos discos Caetano Veloso

e Gilberto Gil, Caetano comenta:

Gil e eu fizemos, cada um de nós, um disco nesse meio tempo. Como não podíamos ir ao Rio ou a São Paulo, fizemos as gravações

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num estúdio pequeno de Salvador (acho que se chamava Estúdio J. S.), apenas com o violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra. (1997, p.417)

Além de Duprat ter participado como compositor das faixas "Acrilírico" e "Objeto semi-identificado", assinou, também, todos os arranjos e a direção musical desses discos. Quando Gilberto Gil e Caetano Veloso partiram para Londres, Rogério Duprat respon­sabilizou-se pelo término dos discos, concluindo-os em um estú­dio de São Paulo.

Procedimentos composicionais

A música "Objeto semi-identificado" foi gravada eml969, no álbum intitulado Gilberto Gil. Embora nem todas as faixas tenham sido compostas por Gilberto Gil, de um modo geral, as músicas que compõem o disco participam de uma mesma temática. A che­gada do homem à Lua, os avanços tecnológicos e o advento da comunicação via satélite são exemplos dos acontecimentos que marcaram o final da década de 1960 e que fizeram parte de uma unidade temática, da qual se originou esse disco. Palavras como astronautas, naves, galáxias, planetas, sol, computador, humanóide, espaço e eternidade, entre outras, permeiam as letras das músicas que compõem o disco, que se mostra como uma reflexão envol­vendo aspectos ligados a questões relacionadas ao posicionamento do homem ante as novas conquistas.

Uma vez que a abordagem completa do disco fugiria ao obje­tivo deste trabalho, para poder evidenciar Rogério Duprat em seu papel de arranjador, será examinada apenas a faixa "Objeto semi-identificado".

A cantora Gal Costa havia gravado, em 1969, a música in­titulada "Não identificado", de autoria de Caetano Veloso. No mesmo ano, com o propósito de realizar um trocadilho, Gilberto Gil intitulou a sua "Objeto semi-identificado".

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FIGURA 41 - Capa do disco Gilberto Gil.

O arranjo de Duprat não foi composto a partir de uma linha

melódica seguida de um texto, mas a partir de um texto declamado

por Gilberto Gil e Rogério Duarte, abaixo transcrito:6

E línguas como que de fogo (Rogério Duarte) Tornaram-se-lhes visíveis E se distribuíram E sobre cada um deles Acentuou-se uma

E todo eles ficaram cheios de Espírito Santo E principiaram a falar em línguas diferentes

Eu gosto mesmo é de comer com coentro Uma muqueca, uma salada Cultura, feijoada, Lucidez, loucura Eu gosto mesmo é de ficar por dentro Como eu estive na barriga de Claudina

(Gilberto Gil)

6 Transcrição com atualização ortográfica.

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Uma velha baiana cem por cento

Tudo é número (Rogério Duarte) O amor é o conhecimento do número E nada é infinito Ou seja, Será que ele cabe aqui no espaço, beijo da fome Não, ele é o que existe mais o que falta

O invasor me contou todos os lances (Gilberto Gil) De todos os lugares onde andou Com um sorriso nos lábios ele disse A eternidade é a mulher do homem Portanto, a eternidade é seu amor

Compre, olhe, vire, mexa Talvez no embrulho você ache o que precisa

Pare, ouça, ande, veja Não custa nada Só lhe custa a vida

Entre a palavra e o ato desce a sombra (Rogério Duarte) O objeto identificado O encoberto, o disco voador A semente astral

A cultura, a civilização (Gilberto Gil) Só me interessam Enquanto sirvam de alimento Enquanto sarro, prato suculento Dica, pala

Informação

A loucura, os óculos, a pasta de dentes (Rogério Duarte) A diferença entre o três e o sete

Eu crio

A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro A morte é a única liberdade A única herança deixada pelo Deus desconhecido O encoberto O objeto semi-identificado O desobjeto O Deus objeto

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O número oito é o infinito (Gilberto Gil) Infinito em pé Infinito vivo como a minha consciência agora

Cada diferença abolida

pelo sangue que escorre (Rogério Duarte) Das folhas da árvore da morte

Eu sou quem descria o mundo A cada nova descoberta Ou apenas esse espetáculo é um capítulo Da novela Deus e o diabo, e t c , e t c , etc...

O número oito dividido é o infinito pela metade (Gilberto Gil) O meu objetivo agora é o meu infinito

Ou seja, a metade do infinito, da qual Metade sou eu, e outra metade é o além de mim

E fim de papo. "Tá legal.7

Duprat compôs o arranjo buscando uma aproximação com suas experiências em trilhas sonoras. O mesmo tipo de "interferên­cia sonora"8 que havia sido utilizado em suas "trilhas", para valo­rizar imagens, é resgatado, dessa vez para a valorização do texto.

Assim como na "trilha" do filme O pica-pau amarelo, que será analisada a seguir, e na obra Organismo, analisada anteriormente, aqui, também, a interação texto-música é crucial. Duprat escolheu um repertório de sonoridades condizentes com o conteúdo do texto. Trata-se de sons de procedências diversas, registrados em fita mag­nética e manipulados eletronicamente. Para que atingisse o seu objetivo de contribuir com o sentido do texto, Duprat utilizou, para a construção de seu arranjo, diversos estilos musicais. Ele con­firma, em entrevista, que além de alguns recursos da música eletrô­nica, utilizou pelo menos três estilos diferenciados: "o publicitário na forma de jingle, um estilo semelhante ao de Corelli (1653-1713),

7 No original não houve o possível fechamento das aspas. 8 Duprat refere-se aos pequenos trechos musicais utilizados em suas "trilhas",

como interferências sonoras. Elas são compostas, segundo ele, por "sono­rizações" ou "comentários sonoros". Esse assunto será retomado e abordado com mais detalhes na análise da trilha sonora do filme O pica-pau amarelo.

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que nos remete a uma orquestra barroca, e um estilo que lembra

algumas 'trilhas' dos seriados americanos" (Entrevista, set. 1998).

As particularidades encontradas nessa obra foram o motivo

pelo qual foi escolhida para análise. A potencialidade artística de

Duprat pode ser observada, ao mesmo tempo, sob o ângulo do

arranjo, da regência e da composição.

Seu arranjo/composição foi realizado a partir de uma fita cassete

gravada com as vozes de Rogério Duarte e Gilberto Gil. Primeira­

mente, Duprat separou o texto em pequenos trechos, para os quais,

comporia "blocos sonoros" específicos que atuariam como inter­

ferências entre cada um dos trechos. Após a composição desses

blocos sonoros, em função da sua duração, surgiu a necessidade de

maior espaçamento entre cada uma das partes do texto. Em razão

disso, fez-se necessária uma montagem do texto, o que permite

dizer que o arranjo de Duprat envolveu também o plano da narra­

tiva, que havia sido inicialmente concebida por Gilberto Gil e Ro­

gério Duarte. A interferência na narrativa foi além da simples in­

clusão de grandes espaçamentos entre as falas. Duprat adicionou

efeitos de reverberação que, em momentos onde se apresentam

com maior intensidade, destacam determinados trechos do texto.

O momento inicial do arranjo e sua visão do conteúdo do

texto foram comentados por ele:

Fiz primeiramente uma montagem da voz. Às vezes era necessá­rio aumentar o espaço vazio entre as falas para que fosse possível encaixar os blocos sonoros que havia feito para cada passagem do texto. As falas do Gil e do Rogério Duarte foram gravadas em tom de bate-papo e permaneci nesse clima, apenas interferindo com al­guns comentários sonoros. Penso que este texto foi inspirado no prin­cípio da incerteza, algo a ver com teoria quântica em física. Nessa teoria, você não pode afirmar nada categoricamente, são apenas ten­dências e dados aproximativos. Rogério Duarte era bastante místico, mas infelizmente não houve a oportunidade de conversar com eles sobre o teor desse texto. (Entrevista, set. 1998)

Rogério Duarte inicia a narrativa do texto sem nenhuma in­

terferência sonora:

E línguas como que de fogo Tornaram-se-lhes visíveis

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Após uma pequena pausa, a segunda frase é repetida dando início às interferências sonoras. Os sons que compõem essas inter­ferências foram registrados em fita magnética e depois manipula­dos, segundo as técnicas comumente empregadas pelos composi­tores de música concreta e música eletrônica, ou seja: cortes, inversões, alterações de rotação, efeitos de reverberação e outros. Em entrevista, Duprat comenta o equipamento que dispunha e as técnicas utilizadas para a manipulação dos sons:

Eu tinha dois ou três gravadores de rolo (alemães) e dois grava­dores de fitas cassete. Esse era o meu arsenal. O sistema utilizado era aquilo que chamávamos de "anéis". A gente gravava c depois corta­va, colando as pontas umas nas outras, como se fosse um anel. Quando colocávamos no gravador de rolo, ele ficava repetindo a mesma coi­sa. Além de termos essa repetição, também alterávamos a rotação, alterávamos tantas vezes que o som acabava ficando irreconhecível. (Ibidem)

Após sua manipulação, o material sonoro foi transferido para um gravador de quatro canais. A título de organização, Duprat elaborou um gráfico que o auxiliaria na aplicação das interferências sonoras. Não se tratava de uma tentativa de grafar as sonoridades gravadas em fita magnética, mas de saber qual era a sonoridade que estava gravada em cada um dos quatro canais, além de sua duração. Para isso, utilizou quatro linhas, cada uma delas referente a um dos canais.

O exemplo a seguir refere-se a um trecho da primeira página desse gráfico. Nele, encontram-se indicações de dinâmica das so­noridades manipuladas e alguns trechos do texto (Canal 4) com suas respectivas durações em segundos. Indicações referentes à in­tensidade dos efeitos de reverberação podem ser vistas nas linhas que correpondem aos canais 3 e 4.

Um exemplo da alteração do som por intermédio da mudança de sua rotação pode ser visto nesse momento da obra, imediatamente após a narrativa do texto abaixo. Esse trecho inicial é uma alusão a uma passagem do Novo Testamento (Coríntios I, Capítulo 14, Versículo 1), no qual a descida do Espírito Santo aos apóstolos, quando lhes concedeu o dom das línguas, é mencionada.

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FIGURA 42 - Trecho do gráfico referente às sonoridades pré-gravadas em "Ob­jeto semi-identificado".

E línguas como que de fogo Tornaram-se-lhes visíveis E se distribuíram E sobre cada um deles Acentuou-se uma

E todos eles ficaram cheios de Espírito Santo E principiaram a falar em línguas diferentes

Ao fim desse texto, inicia-se uma seqüência de vozes modula­das. Trata-se da sobreposição de sons provenientes de vozes hu­manas, alteradas pelo uso de diferentes rotações, algumas mais rápidas, outras mais lentas; em ambos os casos, o conteúdo do texto não é compreensível. Mediante a realização da operação in­versa da que fora efetuada por Duprat, ou seja, retornando os tre­chos alterados para suas rotações originais, pôde-se constatar que eles haviam sido extraídos de vários noticiários de rádio. Com essa operação, foi possível identificar frases como "Esta emissora saúda os que fazem o Brasil progredir"; "A ordem do Brasil é o progresso", e "Marche conosco" que, agora, podiam ser ouvidas claramente.

Não é possível precisar ao certo qual foi a intenção de Duprat ao utilizar trechos de noticiários, no entanto algumas interpreta­ções podem ser feitas. Se por um lado, no que se refere ao arranjo e sua conexão com o texto, Duprat estivesse apenas pretendendo efeitos de origem vocal que remetessem à frase: "E principiaram a falar em línguas diferentes", por outro lado, é sabido que, àquela

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época, a utilização, no campo artístico em geral, de elementos utili­zados na imprensa falada ou escrita era, muitas vezes, considerada subversiva. Ao utilizar, em seu arranjo, trechos originários de noti­ciários de rádio carregados de ufanismo patriótico, em rotação alterada, Duprat talvez estivesse buscando uma forma de burlar a censura, prática, comum na produção artística realizada durante o regime militar.

Outro recurso utilizado para a confecção do arranjo é a cola­gem. Duprat pode ter partido da constatação de que o texto teria sido construído por um processo de colagem de pequenos textos aparentemente desconexos e, do mesmo modo, buscou uma cor­respondência em seu arranjo. Por intermédio da análise integral do poema, vê-se que os textos declamados por Gilberto Gil funcio­nam como uma espécie de interferência e servem de contrapeso (colagem) nos textos declamados por Rogério Duarte. Note-se que, ao contrário dos textos declamados por Rogério Duarte, que pos­suem um teor místico/transcendental, os declamados por Gilberto Gil trazem a presença humana e elementos do cotidiano. O texto de Rogério Duarte é carregado de um tom profético e referências bíblicas, enquanto o de Gilberto Gil, retratando o dia-a-dia, confi­gura-se, em relação ao primeiro, num tipo de oposição universal/ regional.

No arranjo de Duprat, o procedimento de colagem também pode ser observado a partir da sobreposição, ao texto, de um tre­cho da canção "Volks-wolkswagen-blue"9 de Gilberto Gil, em que o nome de sua mãe é citado. Esse trecho musical é colado sem nenhum tipo de manipulação aparente. A letra é facilmente com­preendida e percebe-se que o intérprete é o próprio Gilberto Gil. A intenção de Duprat é clara: aproximar dois momentos do com­positor em que destaca um mesmo tema; Claudina, o nome da mãe de Gil, é empregado na letra de ambas as músicas. Esse proce­dimento, em que certas palavras ou frases do texto são metafori-zadas sonoramente, permeia todo o arranjo. Ele foi utilizado, como visto, no caso das vozes alteradas, para sublinhar a expressão "lín-

9 Essa música está no disco Gilberto Gil gravado em 1969.

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guas diferentes" e, nesse ponto, destaca a aproximação entre os textos de duas músicas pertencentes a um mesmo disco, "Volks-wolkswagen-blue" e "Objeto semi-identificado". Dessa forma, ao colar um trecho da primeira música na segunda, Duprat estava enfatizando a inter-relação entre as faixas do disco, pela unidade temática:

Eu gosto mesmo é de comer com coentro Uma muqueca, uma salada

Cultura, feijoada Lucidez, loucura Eu gosto mesmo é de ficar por dentro Como eu estive na barriga de Claudina

Uma velha bacana cem por cento

Além do gráfico guia (Figura 42), mencionado anteriormente, para a utilização dos sons pré-gravados, o arranjo de Duprat conta ainda com uma partitura grafada em caracteres tradicionais, refe­rente aos instrumentos convencionais. De um modo geral, adota a escrita tradicional para notar trechos musicais com alturas defini­das. Também utiliza uma escrita não-tradicional adaptada às suas necessidades,10 em trechos com notas indefinidas, como por exem­plo, no compasso 23, no acompanhamento do texto "Entre a pa­lavra e o ato, desce a sombra. O objeto identificado. O encoberto, o disco voador. A semente astral". Mais uma vez, Duprat busca sonoridades que criam um elo com o texto. Os efeitos sonoros foram produzidos, nesse trecho do arranjo, com o propósito de simular sons que se convencionou atribuir às naves espaciais. A partitura indica que o órgão deve realizar efeitos sonoros sem no­tas definidas. Para isso, estão indicadas apenas duas linhas com movimentos sinuosos referentes à dinâmica; há ainda indicação de se realizar "clusters ligados":

10 O uso de uma escrita personalizada não é exlusivo de Duprat. Grande parte do repertório musical do século XX exige o uso de novos grafismos e a ausên­cia de uma padronização leva os compositores a adotar seus próprios grafismos.

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FIGURA 43 - Trecho da obra "Objeto semi-identificado" referente à linha do órgão, compasso 23.

Outro exemplo do uso de uma escrita diferenciada da tradicio­nal é o trecho de quinze segundos (D2) onde ele indica apenas que os músicos realizem uma desordem total, um "esporro", como ele mesmo diz, ou ainda o trecho D4, onde indica que as cordas reali­zem glissandos livremente:

FIGURA 44 - Trecho citado da partitura da obra "Objeto semi-identificado".

Esses quinze segundos de sons produzidos aleatoriamente (D2) antecipam a palavra "loucura" do trecho do texto:

A loucura, os óculos, a pasta de dentes A diferença entre o três e o sete

Para a composição do arranjo da música "Objeto semi-identi­ficado", Duprat se serve de diferentes estilos musicais, num tipo

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de colagem sonora determinada pelo texto. A fim de ilustrá-los, três podem ser destacados:

FIGURA 45 - Trecho citado da partitura da obra "Objeto semi-identificado".

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ROGÉRIO DUPRAT: SONORIDADES MÚLTIPLAS 149

a) Seriados televisivos norte-americanos

O arranjo inicia-se com sonoridades pré-gravadas em fita magnética, mas logo na primeira aparição dos instrumentos con­vencionais (B2), o estilo comumente utilizado nas trilhas sonoras dos seriados norte-americanos é evidenciado. Duprat emprega um tipo de instrumentação semelhante à dessas trilhas, ou seja, metais para a realização do tema, que se desenvolve sobre uma seção rít­mica formada pelo contrabaixo e pela bateria. Não é possível iden­tificar, com certeza, a intenção de Duprat ao fazer essa escolha, porém, esse trecho do arranjo antecipa a seguinte frase: "O inva­sor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou", o que leva à suposição de que, nesse caso, Rogério Duprat ilustra com a música norte-americana o que entende como "invasor", por meio da associação desse vocábulo aos EUA.

FIGURA 46 - Trecho da página inicial da obra "Objeto semi-identificado".

b) Jingles publicitários

Outro recurso utilizado por Duprat é o emprego de jingles pu­blicitários e refere-se ao trecho C (Figura 47) do arranjo, que ante­cede os seguintes versos:

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Compre, olhe, vire, mexa Talvez no embrulho você ache o que precisa

FIGURA 47 - Trecho da partitura de "Objeto semi-identificado".

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Aqui a intenção de Duprat é mais claramente identificável. Quando se serve de um estilo comumente utilizado pela publicida­de, salienta a referência ao consumo, existente no texto e, certa­mente, evidencia a ironia e os duplos sentidos embutidos nessas palavras ("talvez no embrulho você ache o que precisa"). No texto seguinte, seu arranjo permanece no mesmo estilo, adotando, porém, um caráter reflexivo, também encontrado no texto sem todavia abandonar os duplos sentidos e a crítica mordaz. Para esse mo­mento, ao contrário do trecho anterior que possua um andamento "vivo", Duprat opta pelo "lento", sem abandonar, no entanto, o caráter de jingle (Figura 48), enfatizando o impacto da conclusão do texto com essa retenção temporal, simulando mesmo a aproxi­mação com o momento final - a morte, metaforicamente associa­da ao fim. Nesse trecho, outra vez, a expressão "não lhe custa nada" brinca com a idéia de consumo e com a expressão corriqueira, empregada como "não dá trabalho". A oposição da conclusão é quase cruel: "só lhe custa a vida", jogando o ouvinte rapidamente, do sonho do consumo à realidade da vida, pois "embrulhar" re­mete-se ao consumo, mas também à confusão; embrulhar quer dizer "empacotar", mas também "enganar". O trecho diz:

Pare, ouça, ande, veja Não lhe custa nada Só lhe custa a vida

c) Corelli

Outro estilo utilizado foi, segundo o próprio Duprat, o prati­cado pelo compositor italiano Archangelo Corelli (1653-1713). O trecho D1 do arranjo que corresponde a esse estilo é o que antecipa a seguinte frase: "A cultura, a civilização só lhe interessam enquan­to sarro".

O propósito de Duprat se apresenta de maneira clara e, mais uma vez, a ironia se faz presente. Composto num estilo próximo ao dos compositores europeus no século XVII, com seu caráter jocoso, esse trecho é, ao mesmo tempo, uma sátira e uma crítica à freqüente valoração da Europa, tida em nossa sociedade como si­nônimo de cultura e civilização.

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FIGURA 48 - Trecho da partitura de "Objeto semi-identificado".

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FIGURA 49 - Trecho da partitura de "Objeto semi-identificado".

Considerações gerais

O texto declamado, diferentemente de uma canção no sentido convencional, parece ter levado Duprat a optar por um modelo de arranjo construído nos moldes de suas trilhas sonoras para filmes. Em 1969, data da composição de "Objeto semi-identificado", Duprat já havia feito uma série de trilhas para filmes, como .A ilha, de Walter Hugo Khouri, e As cariocas, de Roberto Santos (1928-1987), entre outros.

Mais que informações seqüenciais vinculadas à forma canção e a progressões harmônicas comumente encontradas na música popular brasileira, o que se encontra são trechos musicais diferen-

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ciados entre si, mas que buscam uma analogia com o conteúdo do texto. E, a ligação dos trechos musicais com o texto nem sempre se dá por analogia, mas de maneira metafórica e simbólica, pois Duprat interpreta e reinventa o texto com seus comentários musicais. Pode-se dizer, ainda, que esses trechos ou "comentários sonoros" foram gerados tendo como base algumas frases ou mesmos palavras con­tidas no texto. O ponto de partida de Duprat para a construção do arranjo não foi sua interpretação do texto, mas a representação deste, como é o caso do trecho D2 (desordem total - Figura 44), que antecede a palavra "loucura". Duprat busca claramente uma correspondência sonora com a palavra loucura, quando opta por uma organização caótica em seu arranjo.

Em alguns momentos, Duprat utiliza certas sonoridades reite­rando o que o texto já havia dito, como uma espécie de literalização do conteúdo ou reforço da mesma idéia. A combinação de um texto com sonoridades pré-gravadas somadas a sucessivas inter­venções orquestrais em diferentes estilos não pode deixar de ser vista como exemplo de originalidade, se entendida no contexto da música popular, uma vez que no terreno da música erudita práti­cas semelhantes já haviam sido realizadas. Edgar Varèse intercalou sons instrumentais com sons eletrônicos em sua obra Déserts, com­posta em 1954. No entanto, é pouco provável que alguma canção popular brasileira antes desta tenha se servido de tais recursos.

Outro ponto que deve ser ressaltado é o uso da colagem. Esse procedimento não se refere apenas ao trecho da canção "Volks-wolkswagen-blue" de Gilberto Gil, mas à colagem contígua de tre­chos instrumentais em estilos diversos, que pode ser também ob­servada. As interferências sonoras produzidas eletronicamente, também podem ser vistas como colagens, porque se justapõem a outros procedimentos ou são seguidas por estes.

Duprat insere, numa música criada por compositores ligados à produção musical popular, elementos de sua formação erudita, eliminando distâncias que não têm razão de existir, o que é, também, fruto de sua maneira de ver o mundo. O recurso da colagem tor­nou-se comum nas artes visuais, a partir da primeira década do século XX, em obras de Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963) e, no campo musical, pode ser observado nas obras

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de alguns compositores a partir da segunda metade do século XX. Paul Griffiths cita como exemplo de obras que se serviram desse recurso, Poème électronique, composto por Edgard Varèse em 1958, Sinfonia de Luciano Bério, composta em 1968 e Hymnen, de Karlheinz Stockhausen, composta em 1967 (1995, p.46).

De um modo resumido, pode-se dizer que esse arranjo é o resultado da somatória de diferentes elementos musicais em es­treita conexão com o texto que, encontrando a perfeita unidade nessa interação, reafirma a idéia de diversidade, associada a Duprat e diversas vezes comentada no decorrer deste trabalho. No perío­do anterior a 1969, Rogério já havia composto Organismo (1961), além de ter realizado diversas trilhas para cinema. O arranjo de "Objeto semi-identificado" pode ser visto como uma espécie de síntese de seus procedimentos anteriores. Duprat poderia ter utili­zado apenas as sonoridades pré-gravadas ou optado pelo uso ex­clusivo de instrumentos acústicos. Em vez disso, escolheu a coe­xistência de ambos. Da mesma forma, o tonai e o atonal, a altura determinada e a indeterminada, o som e o ruído foram reunidos num mesmo contexto, repetindo, no uso alternado de elementos opostos, a organização do texto, elaborado em planos opostos e justapostos.

O antropofagismo oswaldiano, anteriormente associado a Duprat, pode ser aqui mais uma vez observado. Em alguns minu­tos de música, ele expõe diferentes tendências musicais que tive­ram origens em diferentes países e que aqui se reúnem para carac­terizar uma música brasileira. A música concreta da França, a música eletrônica da Alemanha, o barroco italiano, a música norte-ameri­cana, além do jingle consumista, ilustrando os hábitos da sociedade de consumo. Elementos distintos que compõem a formação eclética de Duprat, que não hesitou em uni-los, pois o próprio texto propi­ciou essa união. Imbuído da dicotomia regional/universal, o texto favoreceu que o arranjo fosse composto por intermédio da colagem de elementos musicais contrastantes. Esse contexto contribuiu para a construção de um arranjo original, totalmente fora dos moldes da produção na década de 1960 e, por que não dizer, nas décadas que se seguiram.

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FIGURA 50 - Fotos no estúdio da Bahia, por ocasião da gravação dos discos Gil­berto Gil e Caetano Veloso, em 1968: a) Caetano Veloso; b) (?) e Gilberto Gil; c) Rogério Duprat e Gilberto Gil. Acervo Rogério Duprat.

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O PICA-PAU AMARELO (1974) (TRILHA SONORA)

Ficha técnica

Obra: O pica-pau amarelo Música: Rogério Duprat Direção do filme: Geraldo Sarno Argumento: Monteiro Lobato Roteiro: Geraldo Sarno e Armando Costa Fotografia: João Carlos Horta (Eastmancolor) Montagem: Gilberto Santeiro Produção: Thomas Farkas Data: 1974 Local: São Paulo Edição: Esta trilha sonora não possui edição fonográfica, nem musicográfica Intérpretes: Leda Zepellin, Joel Barcelos, Carlos Imperial, Gianni Ratto, Iracema de Alencar, Zeny Pereira, Wilson Vianna, Lajar Mazuris, Marcelo, José Carlos Arutin, José Policena, Marcos Flaksman, Inês Casoy, Alcides José Ribeiro, Gina Izzo, Cosme dos Santos, Thomas Farkas, Edimir Paixão

Instrumentação

Os instrumentos a seguir compõem a instrumentação utiliza­da na trilha sonora O pica-pau amarelo: flauta, trompete, trompa, viola caipira, vibrafone, piano, trombone, violino, violoncelo, baixo elétrico, clarineta, fagote, banjo e percussão. Durante o percurso da "trilha", esses instrumentos são reagrupados de diferentes ma­neiras, provocando efeitos diversos, jogos de timbres, que Duprat explorou muito bem.

Contexto histórico

Na década de 1960, Duprat já era um músico premiado no mundo cinematográfico brasileiro. Em 1963, ganhou o prêmio

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Saci de Cinema e, em 1964, os prêmios Cidade de São Paulo e Governador do Estado de São Paulo, pela composição da trilha sonora do filme A ilha, do diretor Walter Hugo Khouri. Recebeu o prêmio Cidade de São Paulo, no ano de 1965, como melhor músi­ca do filme Noite vazia, do mesmo diretor. Como melhores músicas dos filmes As cariocas, do diretor Roberto Santos, e Corpo arden­te, do diretor Walter Hugo Khouri, no ano de 1967, recebeu o prêmio Cidade de São Paulo e, em 1968, ganhou o prêmio Gover­nador do Estado de São Paulo, como melhor música do filme As amorosas, de Walter Hugo Khouri.

Duprat é primo em primeiro grau de Walter Hugo Khouri, um dos maiores cineastas brasileiros. Essa proximidade levou-o a conhecer os diferentes estágios de uma produção cinematográfica. Não raro, acompanhava as gravações das filmagens e, como esta­giário, seguia de perto todo o processo de sonorização de um fil­me. Esse contato íntimo com o cinema proporcionou-lhe a visão total de uma produção cinematográfica, que vai desde as primei­ras filmagens até a edição final.

Duprat nunca freqüentou um curso que o ensinasse a fazer trilhas sonoras; o seu aprendizado deu-se na prática e na vivência das filmagens de Khouri. Também não podemos esquecer que, com o passar dos anos, Duprat acumulou um repertório musical bem amplo, a partir dos musicais americanos que assistira desde a sua adolescência. A respeito de sua "formação" em trilhas sonoras, Duprat, em entrevista, comenta: "Lia algumas revistas americanas para cinema, das quais não me recordo os nomes. Lá eu tinha uma idéia de como os grandes 'caras' trabalhavam. Os mais famosos eram o Alfred Newman (1901-1970) e Henry Mancini (1924-1994)" (Entrevista, jun. 1998). Sua paixão pelo mundo cinemato­gráfico é evidenciada por ele quando, em entrevista, revela que, se tivesse hoje que começar tudo de novo e escolher uma profissão, sem dúvida alguma, escolheria a de videomaker.

Paralelamente, nessa mesma época, Duprat compôs algumas trilhas sonoras para teatro e televisão. No teatro, pode-se citar a da peça A semente, de Gianfrancesco Guarnieri, montada em São Paulo, no ano de 1961. Nessa peça, Duprat dividiu a trilha sonora com Caetano Zama; logo no ano seguinte, Duprat assinou outro

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trabalho: a trilha sonora da peça Sem entrada e sem mais nada, de Roberto Freire, também em São Paulo.

Quanto à televisão, o trabalho mais significativo de Duprat para telenovela foi em 1976, quando compôs o tema de abertura da novela Os imigrantes, de Atílio Riccó, pela TV Bandeirantes. No total de sua obra, no entanto, sua produção para teatro e TV é pequena, mas o mesmo não se pode dizer de sua atuação no cine­ma, como compositor de trilhas sonoras.

Na época áurea de sua produção musical para cinema, Duprat chegou a fazer até três trilhas de filmes por ano e, desde 1962, somam-se 43 trilhas sonoras para filmes de longa metragem; no entanto, apesar de sua intensa atividade nessa área, não participou do movimento Cinema Novo. O motivo por não ter se envolvido com esse movimento não está atrelado a razões ideológicas; ao contrário, em entrevista, ele afirma que "gostaria de ter trabalha­do ao lado de diretores ligados ao Cinema Novo"; entretanto, faz uma restrição: "Nunca fiz questão de trabalhar com Glauber Ro­cha. Não tinha paciência para aquela postura arcaica, mítica, de 'geninho', que ele ostentava" (Entrevista, mar. 2000). A crítica de Duprat ao artista que se porta como um ser diferenciado do meio social aponta a incompatibilidade dessa atitude com a arte contem­porânea, e ele acrescenta:

Isso de obra e carreira é uma velharia tola e romântica. A sintaxe é apenas um instrumental, que qualquer profissional, de qualquer linguagem deve dominar. Assim, meu ramo passou a ser sinonímia. Conhecer o código é mera obrigação; não se acumulam méritos por demonstrá-lo. Para mexer com a minha linguagem, devo saber quais os sinais que vingaram na seleção histórica, permanecendo na expe­riência do meu interlocutor. (Duprat, 1979)

Para Duprat, possuir o domínio da linguagem musical sempre representou ter em mãos, tão-somente, as ferramentas necessárias para desenvolver o seu ofício e isso se estende a todas as artes.

No ano de 1985, no Festival de Cinema de Gramado, Rogério Duprat recebeu o prêmio Kikito pela melhor trilha sonora de A marvada carne, de André Klotzel. Nesse filme, ele assinou em par­ceria com o compositor Passoca e Hélio Ziskind a sua última trilha sonora para cinema.

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Procedimentos composicionais

No intento de explorar o que vem a ser trilha sonora para

Duprat, diversos fatores foram levados em conta. Não só os aspectos

técnicos devem ser abordados, pois, embora importantes, não são

capazes de abarcar a multiplicidade de significados que envolvem

esse procedimento artístico. Out ro aspecto, não menos importan­

te, é o contexto que envolve a feitura dessa trilha, ou seja, em que

país ela foi feita, em que época, com qual diretor e, sobretudo,

com que estimativa de orçamento. Em 1979, Duprat em uma pa­

lestra concedida ao Festival de Cinema de Gramado expõe uma

visão crítica sobre a situação das produções cinematográficas no

Brasil, àquela época:

continuamos apegados a esquemas insustentáveis, como universida­de, sistemas editoriais, redes artesanais de circulação das coisas da criação como - o que nos toca de perto - os circuitos de exibição cinematográfica. Ainda não se encontrou uma forma adequada de enfrentar o avanço das multinacionais na detenção c controle dos meios de massa. A propaganda, a TV e os grandes grupos editoriais, com todas as suas besteiras, absorvem anualmente quase toda a mão-de-obra de todos os setores de criação. E isso porque a circulação da informação nos veículos de massa gera renda, e renda grossa, que permite pagar e pagar bem. Todos sabemos que esse dinheiro vem da massa que consome, aparentemente desgraça, mas paga isso aos pica­dos e por tabela, comprando e gerando verbas polpudíssimas, de que nenhuma Embrafilme poderá jamais dispor para financiar filmes que talvez venham a ser consumidos por meia dúzia de pessoas. Esse consumidor é contado aos milhões pelas tabelas do Ibope, para cál­culos de inserções de comerciais e merchandising. (Duprat, 1979, p.2)

Para Duprat , compor uma trilha sonora é trabalhar com duas

linguagens em constante interação; o empréstimo de suas próprias

reflexões permite uma aproximação muito maior dessa idéia: " N o

momento em que você reúne a linguagem visual com a sonora,

resulta, naturalmente, uma terceira linguagem, como aqueles de­

senhos gráficos feitos em terceira dimensão". Segundo ele, a confec­

ção da trilha está mais associada aos processos operísticos, a des­

peito das diferenças de linguagem, do que à composição de arranjos,

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pois estes "carregam a missão de 'vestir' uma idéia musical preexistente". De um modo geral, seja para cinema, teatro ou no­vela, "a trilha sonora é a adequação exata de som e imagem Conco­mitantemente, uma simbiose, como a que ocorria na radionovela" (Entrevista, jun. 1998).

Muitas vezes o conteúdo de uma cena cinematográfica não era suficiente para sugerir o tipo de música necessário para expri­mi-la. O risco de uma falsa interpretação era iminente. No caso do cinema, Duprat tinha de recorrer diretamente ao diretor, a fim de compreender qual a sua intenção, em cada momento do filme. Suas experiências no teatro revelam outro tipo de dinâmica, uma maior interação entre o compositor e a equipe de produção, como o próprio Duprat comenta: "Eu conversava muito com a equipe de produção e principalmente com o iluminador. Se ele me disses­se: 'nesta parte, entrarei com uma luz em verde opaco', eu mudava tudo. Uma 'dica' era o suficiente para saber quais as sonoridades pertencentes a cada composição do espetáculo teatral" (Entrevis­ta, jun. 1998). No cinema, os procedimentos eram diferentes, o que pode ser observado na citação do próprio Duprat quando apre­senta pontos similares entre cinema e teatro, no que se refere às produções de trilhas sonoras:

Tanto para cinema como para teatro, você tem cm mãos a enco­menda de um trabalho a ser entregue num determinado prazo. Por­tanto, devem ser entendidas c atendidas as necessidades e as exigên­cias dos diretores. O diretor é a figura central. Na minha época, ele tinha inclusive o controle financeiro das verbas dos patrocinadores conseguidos. Não podíamos nos distanciar muito da realidade finan­ceira do projeto. O primeiro passo a saber era o esquema de trabalho e quanto se poderia aproximadamente gastar. Tudo girava em torno disso. Na maioria das vezes tínhamos pouquíssimos recursos. Esse era o maior desafio: fazer um trabalho de qualidade e ser criativo dentro desse contexto material. (Entrevista, out. 1999)

Não se pode deixar de destacar o fato de a trilha sonora do filme O pica-pau amarelo estar ligada a um escritor de grande im­portância para a literatura brasileira: Monteiro Lobato. Tanto quan­to para grande parte dos brasileiros, a infância de Rogério Duprat fora marcada pela riqueza de suas histórias e de seus personagens.

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Para sua surpresa e agrado, no ano de 1973 fora convidado pelo produtor cinematográfico Thomas Farkas para que compusesse a trilha sonora do filme O pica-pau amarelo, de Geraldo Sarno. De acordo com Duprat, dentre todas as suas composições para cinema, essa trilha sonora é a mais representativa, tanto no aspecto da cons­trução composicional, quanto no que se refere à interação som/ imagem.

Thomas Farkas desejava para o filme uma trilha sonora ao esti­lo dos musicais da Broadway, ou seja, que se apresentasse com a mesma grandiloqüência e suntuosidade. Seu propósito primeiro era que o filme passasse a idéia de um Brasil de primeiro mundo, sem que se perdesse, porém, a autenticidade de nossa cultura, tão bem representada nas histórias de Monteiro Lobato.

A fase em que Duprat produziu mais "trilhas" para cinema situou-se entre as décadas de 1960 e 1970. Nos dias de hoje, dife­rentemente do que ocorria nesse período, o cinema conta com recursos videográficos e sistemas computadorizados especializados, que agilizam consideravelmente os processos que envolvem a feitura dos filmes. Aquela época, porém, não se podia contar com essas facilidades e os suportes tecnológicos disponíveis nessa área ainda eram muito limitados, o que tornava o processo operacional de montagem de um filme praticamente manual.

Em entrevista, Duprat conta como eram montados os filmes, basicamente, dá uma aula sobre o assunto:

O operador era também o montador dos fotogramas." Geral­mente ele trabalhava numa mesa operacional com três carretéis: o primeiro para a imagem, o segundo para a fala c o terceiro para a trilha sonora, sons e ruídos. O carretei da imagem tinha um leitor que permitia que as imagens fossem projetadas numa pequena tela (como a de TV). Os carretéis das falas e da trilha sonora possuíam seus leitores de sons. Cada carretei podia ser manipulado indepen­dentemente, permitindo dessa maneira a sincronização das imagens com os sons, e também com as dublagens. Como ser ator não signi­fica necessariamente ter boa voz, muitas vezes o diretor requisitava o trabalho de profissionais, para que as vozes fossem substituídas. Após

11 Impressão em papel fotográfico de objetos transparentes ou não, feita sem o auxílio de uma câmara.

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todo esse processo, os rolos de filme eram levados para o laborató­rio, para que a arte-final fosse realizada. (Entrevista, ago. 1999)

Para que seu trabalho pudesse ser iniciado, o primeiro passo

era a leitura do roteiro. Em seguida, com o roteiro em mãos, Duprat,

juntamente com o diretor e o montador, assistia, pela telinha da

moviola,12 às cenas que já haviam sido gravadas. Às vezes essas

imagens já continham as falas dos atores, outras não. Duprat ex­

plica o seu processo de composição dessas trilhas sonoras:

Definindo o tipo de música que o filme pedia, eu começava o trabalho de criação. A trilha era composta por trechos, separada­mente. Uma parte desvinculada da outra. Para cada cena existia uma necessidade sonora, dessa forma não havia necessidade de uma uni­dade tonai ou de preocupações formais ou, até mesmo, de se utilizar o mesmo tipo de instrumentação, do início ao fim do trabalho. Ao compor essas trilhas, sentia-me um verdadeiro artesão. Para alguns trechos de imagens, compunha apenas alguns comentários sonoros, a fim de que as imagens ganhassem mais vida. Em outros momentos, poderia expor um terna principal, até mesmo com grandes orques­trações. Transitava livremente por todos os estilos musicais deixados há séculos. Podia compor uma música para conjunto de câmara renascentista, outra num estilo espanhol De Falia ou até mesmo "mú­sica eletrônica". (Entrevista, ago. 1999)

Naquela época, para a criação da trilha sonora, o cronômetro

era indispensável, pois esta era composta de acordo com a minuta-

gem de cada cena. Para cada trecho musical era necessária uma marca­

ção numérica que correspondesse à cena para a qual foi composto.

De acordo com esse tipo de conduta, Duprat reunia-se com o

montador que, por sua vez, marcava os números de cada trecho

musical nos fotogramas correspondentes. No momento da grava­

ção, para que o montador pudesse efetuar o processo de sincroni­

zação da trilha com as imagens, Duprat anunciava os números,

como se fossem um título do trecho musical que iria ser gravado,

em sua versão final, em sincronia com a imagem. O objetivo desse

procedimento era fazer que o montador localizasse a cena corres-

12 Mesa de montagem profissional.

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pondente e, posteriormente, esse número anunciado seria corta­do, permanecendo apenas o trecho musical necessário.

Por motivos econômicos, era necessário que se gravasse no menor tempo possível. Isso, às vezes, limitava até mesmo a instru­mentação concebida para determinado trecho da trilha, pois uma instrumentação simplificada requereria menos músicos e, conse­qüentemente, menos horas de estúdio.

Na fase de gravação, Duprat selecionava todos os trechos se­melhantes da trilha, isto é, os trechos que possuíam o mesmo tipo de instrumentação. Esse era um procedimento comum em cinema, pois permitia que os músicos comparecessem menos vezes ao estú­dio de gravação. Numa nova sessão, outros músicos eram requisi­tados, para que outros trechos, com outro tipo de orquestração, fossem gravados. Essa dinâmica de gravação, muitas vezes, resul­tava em efeitos interessantes, como que um choque sonoro, de um trecho com outro. Assim, uma cena podia estar sendo ambientada para cordas e, repentinamente, numa mudança de cena, entravam os metais. Duprat, em entrevista, comenta: "somente na edição do som e da imagem é que podíamos ter uma idéia seqüencial. Até então, estávamos com os pedaços dos sons todos recortados pelas diferentes formações instrumentais" (Entrevista, ago. 1998).

Após algum tempo de prática, Duprat veio a utilizar alguns recursos muito interessantes, que podem ser encontrados, com uma certa freqüência, em suas trilhas sonoras. Um deles era o que ele chamava de "briga entre o som e a imagem". Nesse caso, o objeti­vo era contrariar o que a imagem sugeria, por exemplo, se a cena era estática, a música era rica em movimentos e vice-versa. O obje­tivo era obter um efeito sonoro que resultasse numa espécie de deslocamento natural do som com a respectiva cena.

Em alguns filmes, a trilha sonora é constituída por músicas já existentes, acrescentadas às cenas a partir de critérios estabelecidos pelo diretor, ou pelo responsável pela sonorização do filme. Um exemplo desse procedimento é o filme 2001 - Uma odisséia no espaço, no qual o diretor Stanley Kubrick (1928-1999) apresentou algumas obras do compositor húngaro György Ligeti e do compo­sitor vienense Johann Strauss (1804-1849), entre outras. Pode-se apreender melhor esse tipo de trilha sonora, com o texto de Vieira de Carvalho:

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Stanley Kubrick trabalha com trechos musicais extraídos de obras da grande tradição européia. Não encomenda música original a com­positores contemporâneos." Contra o que à primeira vista poderia parecer, a antítese entre a música e a imagem torna-se mais aguda e gera um conteúdo novo, tanto mais forte quanto mais individualizado for o significado da obra musical, autonomamente considerada, por oposição ao significado da imagem. O Danúbio azul, associado a uma estação espacial percorrendo a sua órbita, tem logo um sentido dife­rente - completamente diferente - do que teria a mesma imagem com sons eletrônicos ou com uma valsa encomendada especialmente a um compositor contemporâneo. Mesmo o espectador mais distraído não pode deixar de meditar sobre o conteúdo dessa antítese.

Em Laranja mecânica, Kubrick leva esta técnica às últimas con­seqüências. (1976, p . l l l )

Ainda sobre a questão envolvendo a interação som/imagem, Ryuichi Sakamoto,14 que compõe trilhas sonoras originais para ci­nema, acredita que não existe uma conexão direta entre música e cena: "experimentei diversas músicas para diferentes cenas. Todas fizeram sentido. Tudo depende de você e dos seus padrões, intui-ções e idéias. Você pode colocar qualquer música numa cena, mas você deve encontrar uma razão para isso. É preciso estar convencido de que aquela é a música certa para o filme" (2000, p.115). Tanto o procedimento adotado por Kubrick, segundo o qual músicas já compostas são escolhidas para determinadas cenas, quanto o pro­cedimento de Sakamoto, que compõe músicas especialmente para determinadas cenas, foram experienciados por Duprat: "na maio­ria das vezes eu mesmo compunha a música para a cena, porém, em alguns filmes de Khouri, as trilhas foram elaboradas a partir de músicas de outros compositores. Eu ajudava com sugestões de re­pertório, porque no final quem decidia era o diretor" (Entrevista, jun. 2000).

13 Cabe notar que este típico traço da filmografia de Kubrick foi atenuado em seus trabalhos mais recentes. Em seu último filme, "Eyes Wide Shut", por exemplo, parte significativa da trilha original foi encomendada e composta por Jocelyn Poor. (N. E.)

14 Compositor contemporâneo japonês autor de diversas trilhas sonoras para cinema, a exemplo do filme Merry Christmas, Mr. Lawrence de Nagisa Oshima e The Last Emperor de Bernardo Bertolucci, entre outros.

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No caso do filme O pica-pau amarelo, Duprat buscou um vín­culo direto entre som e imagem servindo-se das sugestões contidas nas próprias cenas para a construção de sua trilha sonora. No caso específico desta, o conhecimento das cenas para as quais determi­nados trechos musicais foram criados tornou-se imprescindível. Do mesmo modo com que a cena ganhou um novo significado ao ser acrescentada à música, esta, por sua vez, foi destituída de parte de sua significação, quando isolada da cena. "Para a música, o fil­me é um canal extremamente ruidoso. Ninguém assiste a um filme para ouvir música (nem num musical da Metro). Mesmo o filme sendo sonoro, tá na cara que é antes de tudo visual. E a imagem requisita a dupla exploração do olho no tempo e no espaço, sendo a música especificamente temporal" (Duprat, 1979). Ao analisar uma trilha sonora, está-se lidando justamente com essa interação som/imagem. No entanto, uma vez que não se pôde dispor das imagens do filme O pica-pau amarelo, optou-se por utilizar sua sinopse, extraída do Catálogo de Filmes Brasileiros, permitindo, com o delineamento geral da estória, uma melhor compreensão do contexto da obra para a qual foi escrita a trilha sonora:

No sítio de Dona Benta está tudo muito parado. Emília, Nari­zinho, Pedrinho, Tia Nastácia, o Visconde de Sabugosa não sabem mais o que inventar, após tantas e inesquecíveis aventuras. Dona Benta recebe uma carta do Pequeno Polegar, comunicando que o Mundo da Fábula deseja visitar o sítio para trocar idéias com seus persona­gens. Todos vibram com a idéia e os personagens começam a chegar: o Príncipe Codadad, Hércules, Branca de Neve e os Sete Anões, Dom Quixote, Sancho Pança, Tom Mix, e muitos outros. De repente aporta o Hiena dos Mares, o navio do Capitão Gancho e seus Piratas, que, de imediato, termina com a paz do sítio. E armado um plano de combate e expulsão do indesejável personagem, sob o comando de Emília e do Visconde de Sabugosa, com a ajuda de Hércules e outros heróis, antigos e modernos. O final, como não poderia deixar de ser num conto de fadas, é feliz. (Brasil. Cinema, 1973, p.96)

Com o propósito de criar um clima de tensão e mistério, o com­positor inicia a trilha sonora com um acorde dissonante. Imediata­mente após a sua exposição, prossegue com um ostinato realizado pela viola caipira e pelo vibrafone, que culmina em glissandos ascen-

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dentes e descendentes, realizados pela viola caipira e pelas cordas pingadas do piano. Segundo Duprat, o efeito resultante desses glissandos tinha como objetivo a criação de uma ambientação de caráter onírico.

FIGURA 51 - Introdução de abertura da "trilha" extraída da trilha sonora O pica-pan amarelo.

Após a conclusão da introdução da abertura, no compasso oito, inicia-se uma ambientação sonora mais leve (compasso dez), com a qual o compositor apresenta uma melodia que pode ser

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considerada o tema principal, em razão de sua reiteração variada no decorrer da trilha. Esse tema é composto por ritmos articulados em legato em alternância com staccato, de modo a proporcionar uma idéia de brincadeira, semelhante aos desenhos animados. Rea­lizado pelos instrumentos de sopro, sua melodia proporciona um clima alegre e gracioso, próprio de um cenário infantil.

FIGURA 52 - Tema principal extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

De acordo com a sinopse do filme, Dona Benta recebera uma carta do Pequeno Polegar avisando que os personagens do "mun­do da fábula" desejariam visitar o sítio, a fim de trocar idéias com os seus moradores. Um dos personagens que chegou ao sítio foi Dom Quixote. Por tratar-se de um personagem do livro Don Quixote de Ia Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes, Duprat compôs um tema que remete, de imediato, ao seu país de origem. Esse tema é repetido com outras orquestrações, todas as

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vezes em que o nome Dom Quixote é mencionado ou o persona­gem aparece, lembrando a técnica do leitmotiv.15

A orquestração, bem como o tipo de harmonia e a escala uti­lizada para a construção do tema (harmônica de ré) são típicos da música espanhola. Duprat utilizou o trompete para a realização do tema, o que é muito comum nesse tipo de música, porém, é curio­so que os acordes tenham sido arpejados por uma viola caipira e não pelo violão, instrumento comumente utilizado na música des­se país. Muito provavelmente, pela interação entre o fidalgo espa­nhol renascentista e a vidinha caipira do sítio.

FIGURA 53 - Tema do Dom Quixote extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Por motivos os mais diversos, era comum, àquela época, que a trilha sonora de um filme estivesse mais próxima da sonoplastia do que de uma obra musical propriamente dita. Sua função principal era criar climas ou, apenas, pontuar cenas. Rogério Duprat com­pôs muitas trilhas sonoras com essas características e, ao referir-se

15 Tema ou idéia musical claramente definido, representando ou simbolizando uma pessoa, objeto, idéia etc , que retorna na forma original, ou em forma alterada, nos momentos adequados, numa obra dramática (Dicionário Grove de Música, 1994, p.529).

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a elas, preferia utilizar as expressões: "comentários sonoros" e "sonorizações".

Os "comentários sonoros" eram, na maior parte das vezes, construídos com melodias utilizadas em outros momentos da peça. Assim, pode-se considerá-los como um tipo de recorte e colagem dos conteúdos musicais já existentes. Entretanto, esses "comentá­rios" possuem um caráter temático, embora não se desenvolvam como tema.

Ao longo de toda a trilha sonora, encontram-se vários exem­plos de pequenos trechos musicais que não chegam a se caracteri­zar como temas e nem como "comentários sonoros". Duprat refe­re-se a eles como "sonorizações". Com o exemplo demonstrado abaixo, pode-se ter uma idéia de como Duprat as escrevia. Em apenas três compassos, e com a duração de, aproximadamente, seis segundos, essa sonorização é constituída por uma breve melo­dia cromática, realizada pelo clarinete em Sib, em diálogo com os trombones, que também realizam um movimento cromático des­cendente.

FIGURA 54 - Pequena sonorização extraída da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Como se pode notar no exemplo a seguir, trata-se de um tre­cho maior do que a "sonorização" anteriormente demonstrada. Seu tamanho e seu caráter temático permitem classificá-lo como "comentário sonoro" e não como "sonorização".

Para compor a trilha do filme O pica-pau amarelo, Duprat deparou-se com um desafio: segundo o que fora requerido por Farkas, deveria compor uma obra com desenvolvimento temático

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e com uma certa riqueza na orquestração, o que, sem dúvida, au­mentaria os custos da produção. Como realizar uma obra que es­pelhasse o glamour dos musicais norte-americanos e, ao mesmo tempo, contivesse a simplicidade do nosso caipira? A resposta para essa questão é o que torna esse trabalho de Duprat tão especial e justifica a escolha dessa obra para ser analisada dentre tantas ou­tras, de igual ou, mesmo, de maior importância.

FIGURA 55 - Comentário sonoro extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Esse trecho musical é um momento especial da trilha sonora. A utilização da viola caipira, instrumento comumente utilizado em músicas regionais brasileiras, cria um contraponto com o restante da instrumentação. E importante notar que a partitura não possui nenhuma melodia, apenas o ritmo e a harmonia são sugeridos, sendo o trecho improvisado no tom de Mi maior. Isso, provavel­mente, deve-se ao fato de a viola estar afinada em Mi maior, o que faz que as improvisações nesse tom sejam mais naturais.

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FIGURA 56 - Solo da viola caipira extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Dentre vários personagens míticos de Monteiro Lobato, Tom Mix é uma homenagem ao caubói dos antigos faroestes dos filmes americanos. Duprat, que havia em sua adolescência assistido a muitos filmes desse personagem, o caracterizou musicalmente com um tema no estilo do jazz tradicional. Tanto o tema quanto a orquestração são típicos do diexeland norte-americano.

FIGURA 57 - Tema de Tom Mix extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Outro personagem do "mundo das fábulas", que também che­gou ao sítio, é o Capitão Gancho. Como esse personagem é o vilão da história, Duprat criou uma música de caráter marcial que, ao mesmo tempo, lembrasse as trilhas comumente utilizadas nos seria­dos produzidos nos Estados Unidos. O objetivo, segundo o pró­prio compositor, era criar um clima de busca e suspense, por inter-

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médio de uma formação instrumental semelhante à de uma big band norte-americana.

FIGURA 58 - Tema do Capitão Gancho extraído da trilha sonora O pica-pau amarelo.

Considerações gerais

É importante lembrar que essa obra resultou de uma enco­menda, e sempre ficou claro que a vontade do diretor deveria pre­valecer. O diretor solicitou uma música que se assemelhasse aos musicais da Broadway e, à sua maneira, Rogério Duprat foi ao en­contro desse pedido.

Em geral, Duprat realizava trilhas sonoras menos sofisticadas, explorando mais intensamente o uso freqüente de sonorizações e

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comentários sonoros, nos quais utilizava uma instrumentação de menor porte. A suntuosidade requisitada pelo produtor do filme se faz presente, principalmente pelo uso que Duprat faz do naipe das cordas e dos metais, porém há um elemento de grande importância que serve de elo com o Brasil: trata-se da inserção da viola caipira, em meio à sofisticação dos instrumentos tradicionalmente utiliza­dos pelas orquestras sinfônicas. Instrumento tipicamente brasilei­ro, apesar de sua origem européia, a viola caipira não deixa esque­cer que o filme trata de uma obra de um escritor brasileiro, que comenta o universo imaginário de seu país e o mundo das fábulas.

Elementos da música espanhola e trechos musicais que reme­tem às trilhas dos seriados americanos são apresentados em seus estilos mais convencionais, assim como o solo da viola caipira se apresenta de um modo bem regional. Duprat não utilizou apenas motivos rítmicos ou melódicos que nos remetessem aos diferentes estilos. O que fez foi utilizar cada um desses gêneros em sua forma mais literal, e de maneira explícita, apenas porque eles retratavam perfeitamente as cenas ou os personagens aos quais correspondiam. Esse ponto é de grande importância, pois além de exprimir a de­senvoltura com que Rogério Duprat transitava por diferentes esti­los, ainda demonstra sua irreverência e ausência de preconceitos, ao optar pela coexistência de estilos totalmente distintos entre si, com a finalidade de retratar determinada história.

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FIGURA 59 - Fotos no estúdio Pauta por ocasião da gravação da trilha sonora O pica-pau amarelo. Rogério Duprat e os músicos: Heraido do Monte (guitarra, viola e violão), Felpudo (trompete), Bolão (clarinete), Arlindo (trombone), Gabriel Balis (contrabaixo) e Edmundo Villani Cortes (teclados). Acervo Rogério Duprat.

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FIGURA 60 - Fotos do filme O pica-pau amarelo extraídas do Catálogo de Fil­mes Brasileiros de 1973.

REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO CRIATIVO

Ao longo deste trabalho, a trajetória composicional de Duprat foi muitas vezes associada à diversidade de estilos. As análises reali­zadas confirmam essa associação. Três obras compostas em períodos

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distintos e em gêneros diferenciados foram abordadas com o pro­pósito de clarificar seu gesto e seu impulso criador. As técnicas composicionais empregadas também são importantes e foram men­cionadas, na medida em que podiam contribuir para o objetivo central de esclarecer o processo criativo de Rogério Duprat. Outro aspecto relevante é que cada uma dessas obras assinala a participa­ção de Duprat em diferentes campos de atuação: Organismo deu início à colaboração entre poetas concretos e músicos de vanguarda da década de 1960; "Objeto semi-identificado" (1969) marca sua presença no movimento tropicalista; a trilha sonora do filme O pica-pau amarelo (1974) representa sua atuação no campo cine­matográfico.

Cada uma das peças analisadas aponta para uma face diversa de Duprat. O contato analítico com suas obras permitiu uma apro­ximação maior com suas motivações, ou seja, os fatores que o im­pulsionaram a compor. Em Organismo, ele viu a possibilidade de utilizar uma técnica composicional que acabara de aprender: o serialismo (via Pierre Boulez). A poesia concreta oferecia um am­biente propício para que uma obra estruturada, segundo os princí­pios seriais, se desenvolvesse. Para o arranjo de "Objeto semi-iden­tificado", Duprat motivou-se, especialmente, pelo fato de não haver indicações prévias por parte dos compositores. Ele poderia criar com liberdade e, diferentemente de Organismo, que fora construído segundo preceitos de uma técnica rígida, serviu-se de uma multipli­cidade de técnicas e estilos, dentro do espírito tropicalista. Já para a composição da trilha sonora do filme O pica-pau amarelo, Duprat teve de partir das indicações prévias do diretor e do produtor, o que para ele não foi um fator desestimulante. Trabalhar a partir do refe­rencial visual constituía uma experiência que se destacava dentre seus procedimentos habituais.

Para a composição das obras Organismo e "Objeto semi-identi­ficado", Duprat partiu de um texto. Em Organismo, esse texto tem também forte apelo visual como na trilha de O pica-pau ama­relo, o diálogo com as imagens constituía o fator mais relevante. Partindo disso, pode-se dizer que, apesar da diferença de estilos que há entre as três obras, alguns pontos de aproximação podem ser observados. Para a construção de Organismo, ele parte da inter-

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pretação que faz de um texto - imagem, em que idéia e apelo visual têm forte vínculo; para a composição de "Objeto", serve-se diretamente de alguns trechos ou palavras-chave, para gerar suas interferências sonoras. Esse mesmo procedimento pode ser consi­derado um elo entre "Objeto" e Pica-pau. O segundo foi composto tendo como base o mesmo tipo de interferências sonoras utilizadas em "Objeto", embora, desta vez, para pontuar certos acontecimen­tos visuais e não textuais.

De um modo geral, o que pode ser notado é que, com o pas­sar do tempo, Duprat desenvolveu algumas maneiras particulares de compor seus trabalhos. Ele mesmo confirma que recorre a al­guns esquemas práticos:

Seja lá para o que for, inicialmente costumo fazer rascunhos. Em duas ou três pautas, sem instrumentos específicos, começo pela harmonização. Depois escolho a técnica a ser utilizada [melodia acom­panhada, polifonia, acordes e outros] e a instrumentação. Depende do contexto de cada obra. Se é uma composição minha, fico mais à vontade, mas se é uma encomenda fico preso a várias exigências. (Entrevista, out. 1999)

É importante o fato de Duprat ter tocado por muitos anos em diferentes orquestras e conjuntos instrumentais, pois foi desse con­tato que extraiu grande parte de seu conhecimento de instrumen­tação, como se pode observar em suas próprias palavras:

O que me ajuda muito na hora de eleger os instrumentos que deverão tomar parte de uma orquestração é, sem dúvida alguma, eu ter tocado e convivido com os colegas de diferentes naipes. Isso me ensinou "pacas" sobre as diferentes famílias instrumentais, sejam elas de forma agrupadas ou isoladas. Para cada música é preciso um tipo específico de instrumentação. Mas, é necessário começar a escrever para ir sentindo. (Ibidem)

Uma experiência envolvendo um trabalho de orquestração, a partir de pré-requisitos, pode ser vista tomando como exemplo a música "Tempo/Espaço contínuo", do cantor e compositor Lulu Santos, gravada no CD Liga lá, em agosto de 1997. Lulu Santos estabeleceu que o arranjo de Duprat deveria ser baseado (ou inspi­rado) na obra Atmosphères (1961) do compositor húngaro G. Ligeti.

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Essa obra havia sido utilizada por Stanley Kubrick em seu filme 2001 - Uma odisséia no espaço, e foi esse o motivo que o levou a estabelecer essa condição. Nesse caso, Duprat utilizou basicamen­te o naipe das cordas, mas com um número de instrumentos muito menor do que Ligeti usara em sua obra.

Compor a partir de condições prévias nunca constituiu um pro­blema para Duprat, e nesse caso específico foi ainda mais aprazível, pois, além de sua admiração por Ligeti, em sua estada em Darmstadt, no ano de 1962, tivera a oportunidade de assistir a uma conferência daquele compositor, na qual ele explicava os procedimentos com-posicionais dessa obra. Oportunidade única e singular na história de Duprat, que teve a chance de estar diante de Ligeti contando o seu próprio movimento criativo em Atmosphères.

Lulu Santos parece ter ficado satisfeito com o resultado do arranjo, pois ao comentar em entrevista disse: "Pedi que ele escre­vesse uma galáxia, e ele fez esse trabalho maravilhoso. Duprat não é o George Martin16 brasileiro, é o George Martin da minha vida. Aliás, o George Martin é muito mais careta que ele" (Sevcenko, 1997, p.2).

Para Duprat, "todo orquestrador deve possuir um conheci­mento específico da linguagem musical, ou seja, dominar cada uma de suas ferramentas de trabalho [técnicas composicionais] e co­nhecer profundamente o material sonoro que irá responder pelos timbres escolhidos [instrumentação]" (Entrevista, out. 1999). As­sim, uma vez dominadas as "ferramentas", o arranjador/orques-trador estaria apto a realizar o seu trabalho, transitando por qual­quer estilo, pois cada trabalho se apresenta de forma singular, vinculado ou não às exigências do compositor. No caso de seu arranjo da canção "Domingo no parque", de Gilberto Gil, muitos encontros foram necessários para que se chegasse a uma conclusão do que deveria ser feito. Como já mencionado no capítulo 2, Gil e Duprat reuniram-se por quatro ou cinco dias consecutivos para for­mular e reformular esse arranjo. Já na orquestração de "Tempo/ Espaço contínuo", a dinâmica de trabalho foi um pouco diferente,

16 Produtor musical do grupo inglês The Beatles.

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Duprat teve de se basear na construção de uma obra já existente -

Atmosphères.

Outro exemplo que pode ilustrar o processo criativo de Duprat

é o arranjo da música "Construção" de Chico Buarque. Para esse

trabalho não houve precondições por parte do compositor. Duprat

estava livre para criar, tanto no que se refere ao caráter, quanto à

instrumentação a ser utilizada. Sobre o processo de criação desse

arranjo, o próprio Duprat comenta:

Muitas vezes, fui obrigado a compor em situações precárias, que resultaram em peças bem "legais"; é o caso de "Construção". O Barenbein me disse: o Chico quer que você vá até o Canecão para ouvir uma música do show que ele irá gravar no próximo álbum. Assisti o show e peguei uma fita cassete que o Chico havia gravado em voz e violão. Estava no Rio, hospedado na casa do meu irmão Régis e não havia piano. Em uma tarde, na sala de seu apartamento fiz o arranjo de "Construção". Nesse momento, fui obrigado a bus­car os meus próprios recursos musicais internos. Não tinha jeito era preciso entregá-lo antes de voltar a São Paulo. Mas, é certo que a letra de "Construção" me disse tudo o que eu tinha de fazer. Fiz um arranjo repetitivo devido às proparoxítonas do texto, quis maximizar essa coisa meio hipnótica. Essa música é um "drama cantado" e em momentos fortes da letra o arranjo se apresentava com interferências musicais remetendo a uma cena que a mensagem propunha. Nossa! Essas sutilezas do Chico... são raros os que percebiam. Que merda! (Entrevista, jul. 1998)

A exploração dos procedimentos criativos de Duprat, por in­

termédio de três obras inseridas em diferentes campos de atuação,

já pressupunha resultados que não apontariam para uma aprecia­

ção objetiva. A abordagem, entretanto, de apenas um dos seus cam­

pos de atuação levaria, sem dúvida, a uma apreciação parcial de

seus procedimentos composicionais, o que fugiria aos objetivos

deste trabalho. Se fosse levado em conta apenas suas composições

eruditas, toda uma produção voltada para os campos cinemato­

gráfico e da música popular ficaria obscurecida, ambos de grande

significado para a cultura brasileira. O mesmo se daria se a opção

fosse inversa.

Quando deixou de fazer música para uma pequena elite, des­

de a segunda metade da década de 1960, a produção de Duprat no

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campo erudito tornou-se escassa, intensificando-se no campo ci­nematográfico e no da música popular, especialmente a partir de seu envolvimento com o tropicalismo. O fato é que tanto o gênero erudito como o popular coexistiram em Duprat. Muito embora essa coexistência de gêneros não seja sua exclusividade, ela pode ter sido um dos motivos pelos quais os compositores, principal­mente aqueles envolvidos com o tropicalismo, voltaram-se para seu trabalho. Estes, interessados por novos meios de expressão, encontraram em Duprat os elementos necessários para suas tão desejadas fusões. Duprat, por sua vez, encontrou, na obra desses compositores, um ambiente propício para fazer uso de seus conhe­cimentos, adquiridos em suas incursões pela música erudita e cine­matográfica.

A abordagem do processo criativo de Duprat, por intermédio da leitura genética e da análise de suas obras, aponta para uma composição estruturada a partir dos significados e dos símbolos, que tanto texto como imagem sugerem. Suas principais motiva­ções não estão relacionadas ao compromisso com o uso de apenas uma técnica. Nesse sentido, seu contato com a canção brasileira e trilhas sonoras para filmes possibilitou o uso da multiplicidade téc­nica, em vez da opção pela rigidez de um só sistema composicional.

Se observada como um todo, a produção musical de Duprat não se desenvolveu de maneira linear ou previsível; a partir desse exame, depara-se com diferentes fases e procedimentos múltiplos. Com seu processo criativo não poderia ser diferente, pois é fruto de uma formação musical eclética. Se seu processo criativo fosse associado à figura de um gênio, estar-se-ia indo contra tudo o que ele sempre buscou ser em essência. Sua postura assemelha-se mais à de um artífice que, minuciosamente, dedica-se ao seu artesanato sonoro. Rogério Duprat seria então o artesão cuja matéria-prima é o som e suas diferentes combinações.

PRODUÇÃO MUSICAL

A reunião da obra de Rogério Duprat aponta primeiramente para uma classificação que expressa composições, orquestrações,

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regências, arranjos e trilhas sonoras. As composições se dividem em obras eruditas: ao todo 26; obras populares: três em parcerias e quatro próprias; trilhas sonoras para cinema, teatro e novela de TV: respectivamente, 43, duas e uma obras; e quatro orquestrações de obras eruditas e uma de obra popular. Além disso, também atuou como produtor de cinco discos, um de Walter Franco e quatro dentro da coleção Três Séculos de Música Brasileira.

Rogério Duprat trabalhou como arranjador, orquestrador e regente em todos os trabalhos de música popular citados na relação de obras, com exceção de alguns discos em que atuou apenas como arranjador: nas canções "Construção" e "Deus lhe pague" do dis­co Chico Buarque de Hollanda n° 4, de Chico Buarque; nas can­ções "Caminhante noturno" e "Don Quixote" do disco Mutantes, de Os Mutantes; na canção "Épico", do disco Araçá azul, de Cae­tano Veloso; na canção "O gosto do azedo" do disco Acústico, de Rita Lee; na canção "Tempo/Espaço contínuo" do disco Liga lá, de Lulu Santos, e como orquestrador, na música FRAKT=DX-MAC9RD02 do disco Mundo São Paulo, de Ruriá Duprat.

Além dos trabalhos citados, existem alguns discos de músicos populares brasileiros, nos quais Duprat também atuou como re­gente, orquestrador e arranjador, porém, esses discos encontram-se fora dos catálogos discográficos disponíveis, impossibilitando dessa maneira encontrar as respectivas referências. Entre esses dis­cos estão os dos seguintes artistas: Jorge Benjor, João Bosco, Anto­nio Carlos e Jocafe, Maria Bethânia, Arnaldo Batista, Ronnie Von e outros.

Tal produção sempre mereceu o aplauso da crítica expresso nas premiações recebidas desde 1959 até 1997, em várias catego­rias, somando-se catorze prêmios. As obras elencadas a seguir fo­ram ordenadas cronologicamente.

Composições eruditas

1954 Canções sobre textos populares (voz e piano) 1955 Dança e cantilena (flauta e piano)

Noturno para flauta, clarinete e cordas Toada para piano

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1956 Seresta para cordas Suíte infantil para cordas Variações sobre um copo d'água Sonatina para violino e piano Sonatina para violoncelo e piano Lírica n° 1 (violoncelo e piano)

1958 Quarteto para cordas Seis pequenas peças para violoncelo solo Concertino para oboé, trompa e cordas

1959 Variações para doze instrumentos solistas e percussão Lírica n° 2 (viola, clarinete e cordas)

1961 Organismo (cinco vozes solistas e instrumentos) MBaepu (xilofone, bandolim, violino, trombone e fagote)

1962 Antinomies I (orquestra de câmara)'7

1963 Klavibm II (programação em um computador IBM-1620) 1964 Projeto Unbica 1964 (piano e percussão) 1966 Tempo passou (piano e violoncelo) 1983 Audio games manuais para quatro violoncelos 1993 Poor Elieze... (variações para piano à quatro mãos sobre o tema de

Beethoven) 1995 Para André (vibrafone solo) 1999 Estudo para piano (dedicado ao José Eduardo Martins)

Orquestrações

1981 Versão orquestral para os "Prelúdios para piano", de Debussy 1985 Versão sinfônica para a música "Sampa", de Caetano Veloso 1992 Versão orquestral para "FRAKT=DX-MAC (RD)2", de Ruriá Duprat

Versão orquestral para Sport et divertissements, de Erik Satie Versão orquestral para um compacto de alguns temas de filmes

Composições populares

1947 Eu te vi (valsa) Amo esta vida (valsa)

17 Editada pela Pan American Union Washington, D.C., New York, 1966 (única obra erudita de Duprat que foi editada).

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1963 Hás de convir (samba) Lágrimas (samba)

1969 "Acrilírico" (Rogério Duprat c Caetano Veloso. In: disco Caetano Veloso, de Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Philips) "Objeto semi-identificado" (Rogério Duprat, Gilberto Gil e Rogé­rio Duarte. In: disco Gilberto Gil, de Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Philips)

1997 "Tempo/Espaço contínuo" (canção de Rogério Duprat, Lulu San­tos. In: disco Liga lá, de Lulu Santos. Rio de Janeiro: BMG Ariola)

Arranjos

1962 SANTOS, A. (Prod.). Natal bem brasileiro. São Paulo: V S., 1962. Disco vinil, n° LP-VS-SP 0010, 33rpm.

1963 GUIDO, B. (Prod.). Dedicado a você. São Paulo: Penthon, 1963. Disco vinil, n° PPLPD-104, 33rpm.

1963 . (Prod.) Clássicos em bossa nova. São Paulo: VS, 1963. Disco vinil, s.n°, 33rpm.

1964 . Ritmos no ar. São Paulo: VS, 1964. Disco vinil, n° LP ISS 1, 33rpm.

1967 . Sempre carnaval. São Paulo: Abril Cultural, 1967. Disco vinil, n° ACPB-03-01/ACPB-03-02, 2 discos, 33rpm.

1968 GIL, G. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Philips, 1968. Disco vinil, n° LP 765024 L, 33rpm. BARENBEIN, M. (Prod.). A banda tropicalista do Duprat. São Paulo: Philips, 1968. Disco vinil, n° LP 842857, 33rpm.

. Tropicália ou Panis et circencis. São Paulo: Philips, 1968. Disco vinil, nº R 765.040L, 33rpm, mono. Reedição em vinil, 1979. Reedição em CD, 1993. MUTANTES, Os. Os Mutantes. São Paulo: Polydor, 1968. Disco vinil, n° LPNG 44.018, 33rpm. Reedição em CD, 1992.

1968 LEÃO, N. Nara Leão. Rio de Janeiro: Philips, 1968. Disco vinil, nº LP R765.051,33rpm. RODRIGUES, J. Jair. Rio de Janeiro: Philips, 1968. Disco vinil, n°LP R765.028 L, 33rpm. SOARES, C. Gil-Chico-Veloso. Rio de Janeiro: Philips, 1968. Disco vinil, n° LP R765.021L, 33rpm. GIL, G. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Philips, 1968. Disco vinil. Reedição em CD, 1993.

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1969 GIL, G. Gilberto Gil. Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo: Philips, 1969. Disco vinil, n° LP R765.087 L, 33rpm. MUTANTES, Os. Os Mutantes (canções: "Caminhante noturno" e "Dom Quixote"). São Paulo: Polydor, 1969. Disco vinil, s.n°,33rpm. Reedição cm CD, 1992. COSTA, G. Gal. Rio de Janeiro: Philips, 1969. Disco vinil, n° LP R765.098, 33rpm. Reedição em CD, 1993. COSTA, G. Gal Costa. Rio de Janeiro: Philips, 1969. Disco vinil. Reedição em CD, 1993. VELOSO, C. Caetano Veloso. Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo: Philips, 1969. Disco vinil, n° LP R765.086L, 33rpm. BENJOR, J. Anjo. Rio de Janeiro: Philips, 1969. Disco vinil, s.n°, 33rpm.

1970 MUTANTES, Os. A divina comédia ou Ando meio desligado. São Paulo: Polydor, 1970. Disco vinil. Reedição em CD, 1992.

1970 LEE, R. Build up. São Paulo: Polydor, 1970. Disco vinil, n° LP 44.055, 33rpm.

BARENBEIN, M. (Prod.) Nhô look. São Paulo: Fontana, 1970. Dis­co vinil, n° FT LP 69043, 33rpm. BUARQUE, C. Chico Buarque de Hollanda n" 4 (canções: "Cons­trução" e "Deus lhe pague"). Rio de Janeiro: Philips, 1970. Disco vinil, n° 6349017, 33rpm.

1972 NOGUEIRA, P. Dez bilhões. São Paulo: Continental, 1972. Disco vinil, n°SLP 10074, 33rpm. VALENÇA, A., AZEVEDO, G. Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Rio de Janeiro: Copacabana, 1972. Disco vinil, n° COELP- 41270.

1973 VELOSO, C. Araçá azul. Rogério Duprat: "Épico". Rio de Janeiro: Philips, 1973. Disco vinil, n° 6349.054, 33rpm. Reedição em CD, 1990.

1974 GUARABYRA, G. (Prod.) Brasil com s. São Paulo: EMI, 1974. Dis­co vinil, n° EMCB 7005, 33rpm.

1975 PEREIRA, M. (Prod.) Música pop do Rio Grande do Sul. São Paulo: Marcus Pereira, 1975. Disco vinil, quatro discos, 33rpm. TERÇO, O. Criaturas da noite. São Paulo: Underground, 1975. Disco vinil, n° COLP 12009, 33rpm.

1977 SÁ E GUARABIRA. Pirão de peixe. São Paulo: Som Livre, 1977. Disco vinil, n° 403.6131, 33rpm. PEREIRA, M. R. S. (Prod.) MPB s. 19. São Paulo: Som Livre, 1977. Disco vinil, n° LP 4034141, 33rpm.

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1978 PEREIRA, M. (Org.). Valsas e paicas. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, nº COLP 12237, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

. Maxixes. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12341, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

. A bela época. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12342, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

. Dobrados. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12389,33 rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira). TERÇO, O. Mudança de tempo. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12201, 33 rpm.

1979 SÁ E GUARABIRA. Quatro. São Paulo: Som Livre, 1979. Disco vinil, n° LP 403.6188, 33rpm. 14 BIS. 14 Bis. São Paulo: EMI-Odeon, 1979. Disco vinil, n° LP 064422850,33rpm.

1980 . São Paulo: EMI-Odeon, 1980. Disco vinil, n° LP 0644228700, 33rpm.

VINCENZO, A. (Prod.). Anacleto Medeiros. São Paulo: Eldorado, 1980. Disco vinil, n° 45.81.0372, 33rpm.

1982 FARO, F. (Prod.). Vinícius de Morais. Rio de Janeiro, 1982. Disco vinil, n° 4036252, 33rpm.

1982 DUPRAT, Rudá (Prod.). Geração séc. XXI. São Paulo: RCA, 1982. Disco vinil, n° 1030570, 33rpm.

TOQUINHO. Arca de Noé. Rio de Janeiro: Ariola, 1982. Disco vinil, n° 201.612, 33rpm.

1983 . Aquarela. Rio de Janeiro: Ariola, 1983. Disco vinil, n° 81345814,33rpm.

1984 CODÓ. Codó. São Paulo: Glasurit, 1984. Disco vinil, n° 803.066, 33rpm. TERÇO, O. Ao vivo com sinfônica. São Paulo: Gold, 1984. Compact disc, n° BS 251, digital áudio.

1996 STROETER, R. (Prod.) Mundo São Paulo (música: FRAKT=DX-MAC(RD)2). São Paulo: 1996. Compact disc, s.n°, digital áudio.

1997 SANTOS, L. Liga lá (canção: "Tempo/Espaço contínuo"). Rio de Janeiro: BMG Ariola, 1997. Compact disc, n° 7432152339 2, digi­tal áudio.

1998 LEE, R. Acústico (canção: "O gosto do azedo"). São Paulo: Polygram, 1998. Compact disc, n° 532.286-2, digital áudio.

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Produções

1973 FRANCO, W. Mosca. São Paulo: Continental, 1973. Disco Vinil, n° SLP 10.095, 33rpm.

1978 PEREIRA, M. (Org.) Valsas e polcas. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12237, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).18

. Maxixes. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12341, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

. A bela época. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12342, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

. Dobrados. Rio de Janeiro: Copacabana, 1978. Disco vinil, n° COLP 12389, 33rpm. (Coleção Três Séculos de Música Brasileira).

Trilhas sonoras

Trilhas sonoras para filmes de longa metragem

1963 A ilha. Direção, argumentação e roteiro de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, Kamera Filmes, 1963. l.m., br./pr.

1964 Noite vazia. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1964. l.m., br./pr.

1966 O mundo alegre de Helô. Direção de C. A. Souza Barros. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. Rio de Janeiro,1966. l.m., color. As cariocas. Direção de Roberto Santos. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1966. l.m., color. Amor e desamor. Direção de Gerson Tavares. Música de Rogério Duprat. São Paulo,1966. l.m., color. O corpo ardente. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Ro­gério Duprat. São Paulo, 1966. l.m., color.

1967 O gigante. Direção de Mario Civelli. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1967. l.m., color.

18 A produção da coleção Três Séculos de Música Brasileira foi realizada por Rogério e Régis Duprat.

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Bebei, garota propaganda. Direção de Maurice Capovilla. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1967. l.m., color. Trilogia do terror. Direção de Zé do Caixão. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1967. l.m., color. O homem nu. Direção de Roberto Santos. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1967. l.m., color.

1968 As amorosas. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1968. l.m., color. Brasil ano 2000. Direção de Walter Lima Jr. Música de Rogério Duprat e Gilberto Gil. Rio de Janeiro, 1968. l.m., color. Anuska. Direção de Francisco Ramalho. Música de Rogério Duprat e Damiano Cozzella. São Paulo, 1968. l.m., color. Panca de valente. Direção de L. S. Person. Música de Rogério Duprat c Damiano Cozzella. São Paulo, 1968. l.m., color.

1969 Tout les coups sont bons pour 0117. s/diretor. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1969. l.m., color., p. francesa.

1970 A arte de amar bem. Direção de Fernando de Barros. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1970. l.m., color. Palácio dos anjos. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Ro­gério Duprat. São Paulo, 1970. l.m., color. Cléo e Daniel. Direção de Roberto Freire. Música de Rogério Duprat e Chico Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro, 1970. l.m., color. Uma mulher para sábado. Direção de Maurício Rittner. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1970. l.m., color. As bonecas. Direção de Cyro del Nero. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1970. l.m., color. Vozes do medo. Direção de Roberto Santos. Música de Rogério Duprat com várias parcerias. São Paulo, 1970. l.m., color.

1971 Um anjo mau. Direção de Roberto Santos. Música de Rogério Duprat e Murilo Alvarenga. São Paulo, 1971. l.m., color. Um certo capitão Rodrigo. Direção de Anselmo Duarte. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1971. l.m., color. Cordélia, Cordélia. Direção de Rodolfo Nanni. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1971. l.m., color.

1972 As deusas. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1972. l.m., color. A selva. Direção de Márcio de Souza. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1972. l.m., color.

1973 O último êxtase. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogé­rio Duprat. São Paulo, 1973. l.m., color.

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1974 O pica-pau amarelo. Direção de Geraldo Sarno. Roteiro de Geral­do Sarno e Armando Costa. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1974. 1. m., color. Thomas Farkas-Produção. O anjo da noite. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogé­rio Duprat. São Paulo, 1974. l.m., color.

1975 O desejo. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1975. l.m., color.

1976 A última ilusão. Direção de John Doo. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1976. l.m., color. Chão bruto. Direção e Roteiro Dionísio Azevedo. Argumento Hernâni Donato. Fotografia Reynaldo Paes de Barros. Música de Rogério Duprat. São Paulo: Misfilmes, 1976.l.m., color. Eastman-color.

1977 As ninfas diabólicas. Direção de John Doo. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1977. l.m., color. Paixão e sombras. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Ro­gério Duprat. São Paulo, 1977. l.m., color.

1978 As filhas do fogo. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Ro­gério Duprat. São Paulo, 1978. l.m., color.

1979 O prisioneiro do sexo. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1979. l.m., color. Uma estranha história de amor. Direção de John Doo. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1979. l.m., color.

1980 Convite do prazer. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1980. l.m., color.

1981 Eros. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1981. l.m., color. Filhos e amantes. Direção de Francisco Ramalho. Música de Rogé­rio Duprat. São Paulo, 1981. l.m., color.

1982 Amor, estranho amor. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1982. l.m., color.

1984 Amor voraz. Direção de Walter Hugo Khouri. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1984. l.m., color.

1985 A marvada carne. Direção de André Klotzel. Música de Rogério Duprat e Passoca. São Paulo, 1985. l.m., color.

Trilha sonora para teatro

1961 A semente. Direção de Gianfrancesco Guarnieri. Música de Rogé­rio Duprat e Caetano Zama. São Paulo, 1961.

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1962 Sem entrada e sem mais nada. Direção de Roberto Freire. Música de Rogério Duprat. São Paulo, 1962.

Trilha sonora para novela

1976 Imigrantes. Direção de Atílio Riccó. Tema de abertura de Rogério Duprat. São Paulo: TV Bandeirantes, 1976.

PENSAMENTOS E AFORISMOS

Rogério Duprat vem escrevendo um diário desde a infância. Os aforismos e reflexões, a seguir, apenas os escritos a partir de 1960, foram extraídos desse diário." De uma maneira geral, esse material reflete o pensamento de Duprat, em diversos segmentos, tantas vezes abordado neste trabalho. Além de enriquecer a pesquisa, evidencia, também, as cren­ças, ideologias, postura política e a filosofia de Duprat.

1969

- Quanto mais se vive, mais se vive. - Quem canta seus vizinhos incomoda. - Os anjos digam: "E meu!". - Na atual conjuntura, vamos tratar da vida que a morte é incerta. - Quem está na chuva que entre, pô! - Que adianta emprestar a Deus sem juros? - Quem parte leva, quem fica põe. - Plantar verde para colher de chá. - Quem Deus ajuda, perde o trem. - O que arde cura, mas dá uma puta raiva. - Quem dá aos pobres, atrasa o epílogo e fica duro.

4.5.1970

- Amar é dar (pra quem gosta) e receber (pra quem tá a perigo). - Só o amor pode salvar a publicidade.

19 Foi mantida a escrita original.

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- O amor é a mensagem (MacLuhan). E o veículo? - Ama com fé e orgulho

ou sem fé e humildade (o resto vem depois) à primeira vista e a prazo fixo (maladie d'amour e do fundo de investimento).

- Amor ao próximo, e o materno, e o filial, e o fraterno.

14.4.1971

- E eu que fui artista e que fui antiartista, e que fui mass-man, e que fui, e que fui, e não cheguei.

- Tranquilizemo-nos, porém: nada mais a fazer, além de ficar nadafa-zendo.

- Uma bosta aqui, uma merda ali, uma cagada acolá e, está garantida a sobre-infra-vivência.

- A vanguarda histórica e a não histórica já nem me divertem mais. Nem as burrices da TV, nem as nem os, nem a, nem.

- Diz Décio Pignatari: "a idéia velha-nova é que fatura. Agora: loucura, bicho; cafonismo; guitarradas. Nós não somos mais artistas, nem nada. Outra geração que se per(fo)deu."

- Só o seriíssimo pode ser engraçado. Puseram instinto de conservação na nossa programação, só por isso vivemos.

1973

- Vivendo de signos (é o ganha pão). Já falei de repudiar toda atividade ao nível da representação, mas existe alguma que não seja? Só as pri­márias, que eu não sei (mas que quero aprender): plantar, caçar, pes­car, edificar o próprio abrigo (e rejeitar todo o conforto civilizado -seremos capazes de?).

- Resta ainda algum prazer de criar signos ainda não veiculados, que para os outros se confundem simplesmente com a "desordem de fun­do"... Pra alguns, o prazer de reviver signos (repertórios inteiros) do passado, divertir-se com tangos e boleros e sambas canções ou sei lá. Já fiz isso.

- Falei da Logoesia, mas não criei nenhum Logoema. Virei o cara que fala das coisas, mas não as vive nem as cria. Sou o desmancha-prazer, o corta-onda. Quantos anos ou dias me restam?

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- O artista não cria: propõe paradigmas, modelos que extrai (a esmo ou supondo que é por opção).

- Estou aprendendo a jogar o grande jogo. - Victor, o físico, me disse que também na física nada há mais a fazer;

por isso está interessado numa física não ortodoxa. Nós abordamos, desde o início, a realidade pelo avesso. Einstein, no fim da vida, disse: "Estou começando a perceber que a natureza não joga sempre o mesmo jogo" (!).

- Tratados elementares de pintura dizem que o verde não combina com azul. Mas, é o que a gente vê na natureza a cada passo!

- Pra fim de papo: uma "obra", um objeto estético, não passa de uma caricatura, de um arremedo, diante do incrível mundo de combina­ções possíveis que posso ter na cabeça. E uma humilde e reles opção, que um indivíduo realiza com seu limite, num só dado código, dentro de um único aparato, que só pode receber um número restrito de sinais, dependente dos limiares diferenciais do repertório escolhido. Ora!!!...

- Há muito já que vanguardices/eiros são velheiras sem sentido; é que vencemos os vícios de explicar coisas e assinar obras; é que vencemos a tentação de vencer.

Junho de 1975

- Cambiares. Nada c por acidente: o acidente é a norma. - Não é por acaso que prolixo é o mesmo que prô lixo. - Um milímetro ou uma légua, sempre uma questão de régua. - Percorro com o olfato o espaço físico e com o tato o mental. - Se eu corresse à velocidade da terra, seria sempre dia ou sempre noite.

Por isso vou mais rápido. - Ávaro: medidas corretas, nem mais nem menos. - Ultra-traje: gagueira do figurinista descortês, mas ambicioso. - Somos deuses, mas desenvolvemos pouco daquilo de que somos capa­

zes. Uma "obra" não passa de uma caricatura, um arremedo do incrível mundo de combinações possíveis que posso ter na cabeça. Afinal, música não é tão importante assim, junto da violência que vai pelo planeta (diz John Lennon: "você tem de aprender a sorrir enquanto mata").

- Cada ato meu é uma proposição. Integro um bloco. Participo e sofro. Sou parte das alterações que vão ocorrendo com o fluxo. Minha ação é duma folha que balança. Altero e me altero. Não posso reduzir o todo do meu comportamento a uma só área (verbal por exemplo). No

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simples ato de sair à rua, estou mudando alguma coisa. Você já pensou no ato de compor um grupo de pessoas que lota um ônibus? E de como é diverso um ônibus vazio? Nenhum mérito. Eu estou aí, e isso é tudo.

30.12.I984.20

- Desqartar a qompulsão de pasar a vida retrospeqtando. Por que não aqí e agora também nésa malfa(fu)da(di)da área da qultura? O qe se fês, tá feito. Esqreveu e teve de ler, páu qumeu.

- Sou mais o esqudeiro qe o qavaleiro. - E qomo suportar ésas velarias de néos-tonalismo, melodismo, roman­

tismo e o baralo? - Tudo porqe os malditos artistas se negam a serem pesôas iguais às

outras. Na total impotênsia semiótiqa de renovarem seus qódigos, reqorrem aos embolorados baús de seus avós.

- E o evento? E as diretas? - Organum, diséram, vamos pôr tudo em ordem. Mas é na nósa ordem

(aí, eu sou índio, vosê é o dono da Xel, êle é namibiano, o outro é o Mitisubixi, outro é bóia-fria, e e e qumé qi fiqa?

- Assim qomo são as pesôas, são as qriaturas (qalutsa, qomo tu putsa!). Oliveiras livres de qorreias, vilis?

- Todo birreivior afinal é random. Plugai-vos. E quidado: esqavando sempre, êles estão desqobrindo informática, bits e o esqambaites. E Ola lá, ó Bulês: vão aqabar qerendo te ensinar o serialismo.

- Vosê trabalou e nada mudou. - Nem tudo qe relús é som. - Sem áreas privativas: todos tranzando tudo (se quizerem).

Adeus Piqáso, txáu Felini, bái bái Maiqojaqson, aufiderzen Stoqauzen, pásem bem marxans e imprezários. São os bons prezájios da nova éra teqnotrôniqa. Basta um burriqo e uma qabesa.

- Minimalistas: os qe fazem menos mal (gastam menos reqursos). - Sou múziqo (esqriba) igual aos ferramenteiros, lavradores, qarpinteiros,

fotógrafos, jornalistas, etc, e vou vivendo qomo qualquer trabalador. Assim é qe vejo as 37 trilas sonoras para filmes de longa, os mil jingoes, disqos, muziqinas para teatro, telenovela, feiras, dansa. Qontinúo a

20 A partir da segunda metade da década de 1970, Duprat adota a escrita do dramaturgo Qorpo Santo.

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axar èsa de qompôr e asinar obras uma qoisa nula. Ésa de jerar, ali­mentar c faturar (e sepultar) jênios é um mero modo de operasão do sistema.

- Enfiem suas violas no sáqo, sáqo! - Aaaaaaaaa...finalmente uma múziqa feita de sons e ambisons... - Eu gosto é do "A gente somos inútel". - Povo não presiza de neñum qompozitor qe vem, lá de sima, qompor

as múziqas qe qonvêm pra povo. Povo inventa e tranza suas próprias qoizas. E povo nem é, assim, ésa mása uniforme. Vosês aí, ó eruditos duma figa, têm de aprender umildemente a supor­tar a diversidade. E ralem-se.

- A pergunta serta é: "ARTE, MÚZIQA, LITERATURA, PARA QÊ?

30.10.1985

- É qlaro qe a gente vê vanguardeiros estemporâneos, véios ou jovens, qom alguma tristeza: êles qontinuam anaqrôniqamcnte apegados ao eu, à obra, à qarreira e outras irrelevâncias.

- Dos antigos artistas, de 45 anos ou mais, dos qe partisiparam ou não das "vanguardas" do anos 50 e 60, alguns proségem fazendo obras, asinando-as, preoqupados qom suas qarreiras. Outros vêm ésas qoizas qomo fraqezas do pasádo, preferindo o novo enqantado mundo anô­nimo e qoletivo. Entre os mais jovens, uns ségem as pegadas de seus pais e avós, busqando glória, suséso, obra individual. Outros desbra­vam as pegadas perigozas e emosionantes da inserteza, asosiando no­vas teqnolojias a novos qomportamentos, menos personalistas. Assim são as qoizas. Temos de aprender a qonviver qom a diversidade.

- No que me toca, exijo veemente e inadiavelmente a retirada do meu nome de qualquer rol antologia, listagem ou o que for, de vanguardá-rios, deste ou de outros planetas. Entre o Zé das Couves e eu não tem nenhuma diferença, tá?

- Não se trata mais de polemizar dentro dêse enfadoño mundo da qultura qe xaman de "alto repertório". Mesmo êste jeito de esqrever, qe é o proposto pelo Qorpo Santo, não é neñuma revolusão ortográfiqa, mas só uma simplifiqasão, uma forma de demoqratizar a esqrita, subtrain-do-a ao domínio dos privilejiados qe "sabem esqrever". A úniqa polê­mica intelijível é a qe viza eliminar as brutalidades esensiais qe o bípede insiste em manter no planeta: as várias formas de represão, a mizéria e a fome.

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2 1 . 1 1 . 1 9 8 5

- Eu semiotizo, tu semiotizas, ele, qe não é tatu, pula fora. - Filozofia da vaka gando and ando. - Eles qerem respostas organizadas prá eventos esmózos. Qerem e pro­

duzem (se não, qumé qi fiqa a vaidade e a qonta bancária?). - Atrás de um artista, sempre pinta outro. E o cordão qada vês aumenta

mais. Agora aprenderam a sena: alto repertório (vê o qe vosê apron­tou, Désio?).

- Axo qe agora vamos fazer uma múziqa mais intelijente, prá neñum Bob qUSPe botá defeito.

- PT: a qampaña mais legal da istória polítiqa do planeta! - Dispensemos os líderes. Eles só qerem liderar. - Atensão! Nada a temer! Mais vale um voando qe dois mortos.

Bem, xega de besteira. Polítiqa e voto são qoizas sérias (prô qandidato). - Ola, agora vosê foi lonje demais. Tem os qe merésem e os qe não

merésem. Eu, por exemplo. - Eu sou até amigo dos padres, gurús, bispos, rabinos, pais de santo,

qardeais, pastores, papas... - Mais intelijentes qe os múziqos, só os prinsípios da termo-dinâmica. - Quando não se tem o qe fazer, marka-se um debate, uma meza redon­

da, um simpózio. Se o povo paga, tanto melor.

- Nada mais lindo qe uma antolojia, uma raqolta, um rol, uma qoletânca, um aaaaá Deixa qe eu tiro o karrapto.

- Eu, ateu ?!?? - Eu, qomunista? - Atensão! O planeta tá ronqando!

As nuvens de estétas serão iguaiziñas às de bóias frias c brégas.

- Minimalistas do mundo, uni-vos. Qem sabe somando tudo dê maqsi-malismo, qisás menos xáto.

- Nem tanto ao Vagner, nem tanto ao Webern. Qe tal semear silênsio onde ouver ruído e salpiqar de sons os espasos vazios?

- Não sei o qe eles entendem por eqilíbrio. - Eles vivem qomo as maneqins, a se mirar em espêlos e albuns de fotos

e reqórtes.

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- E mais um livro, mais uma tela, mais uma sinfonia, mais um poema, mais um filme, mais um monumento artístico e inútil, mais uma pésa, mais um disqo de múziqa popular, mais uma esqultura, mais

- Não pensem qe a gente sabe prá onde sopra o vento. Oje, eu diria: "Qomo melorar o mundo: qem sabe podemos tornar as qoizas menos piores?" Emosionante.

PREMIAÇÕES

1959 Concurso de composição da Comissão Estadual de Música (SP), segundo colocado, com a peça Variações para doze instrumentos e percussão.

1963 Prêmio Saci de Cinema, melhor música, com o filme A ilha. 1964 Prêmio Cidade de São Paulo, melhor música, com o filme A ilha.

Prêmio Governador do Estado de São Paulo, melhor música, com o filme A ilha.

1965 Prêmio Cidade de São Paulo, melhor música, com o filme Noite vazia.

1967 Prêmio Cidade de São Paulo, melhor música, com o filme As cario­cas e Corpo ardente. Prêmio TV Record, melhor arranjo do III Festival de Música Popular Brasileira, com a canção "Domingo no parque", de Gilberto Gil. Prêmio Roquete Pinto, melhor arranjador do ano.

1968 Prêmio Governador do Estado de São Paulo, melhor música, com o filme As amorosas.

1968 Troféu André Kostelanetz, melhor arranjo do Festival Internacio­nal da Canção (FIC), com a canção "Dom Quixote", de Os Mutantes, da TV Globo, Rio de Janeiro.

1969 Troféu Galo de Ouro, melhor arranjo do III Festival Internacional da Canção (FIC), com a canção "Eu quero mocotó", com Erlon Chaves, da TV Globo, Rio de Janeiro.

1970 Troféu André Kostelanetz, melhor arranjo do Festival Internacio­nal da Canção (FIC), Globo, Rio de Janeiro.

1987 Prêmio Kikito, melhor música original do XVIII Festival de Cinema de Gramado, com o filme Marvada carne.

1997 Prêmio Sharp de Música, melhor arranjo, com a canção "Espaço/ Tempo contínuo", de Lulu Santos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada ato meu é uma proposição. Integro um bloco. Participo e sofro. Sou parte das alterações que vão

ocorrendo com o fluxo. Minha ação é duma folha que balança. Altero e me altero. Não posso reduzir o todo do meu comportamento a uma só área (verbal por exemplo).

No simples ato de sair à rua, estou mudando alguma coisa. Você já pensou no ato de compor um grupo de pessoas que lota um ônibus? E de como é diverso um

ônibus vazio? Nenhum mérito. Eu estou aí, e isso é tudo.

(Rogério Duprat, 1975)

Rogério Duprat iniciou o seu percurso como compositor no início da década de 1950, adotando o nacionalismo como seu esti­lo composicional, herdado dos anos 1940, do principal represen­tante dessa corrente no Brasil, Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). Desse período, composições como Canções sobre textos populares (1954) para voz e piano, Toada para piano (1955) e Seresta para cordas (1956) são algumas das peças nesse estilo. No final dessa década, iniciou seus estudos de composição com Cláu­dio Santoro (1919-1989). Nessa fase, sua produção reflete a ma­neira de compor de seu professor, que consistia no compromisso entre a técnica dodecafônica e o espírito nacionalista, originando dessa maneira um novo nacionalismo no Brasil (Neves, 1981, p.101). Sua proposta era bastante inovadora para a época, pois se baseava na aplicação da técnica dodecafônica nas formas tipica-

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mente nacionais. A adoção dessa proposta composicional estava totalmente vinculada às posturas políticas. Nesse período, Santoro publicou um artigo na revista Fundamentos, n° 3, intitulado "Pro­blemas da música brasileira contemporânea em face das resoluções e apelo do congresso de compositores em Praga" (1948, p.233), no qual relata algumas declarações feitas por músicos presentes na­quele Congresso. Essas declarações estavam baseadas nos princí­pios do "realismo-socialista", movimento europeu resultante do socialismo, que se considerava de vanguarda àquela época. Uma das propostas proferidas pelos músicos presentes no Congresso baseava-se na idéia de que os compositores deveriam fugir do subjetivismo e expressar os sentimentos e as altas idéias progres­sistas das camadas populares. Em seu artigo, Santoro expressa a opinião de que o compositor deveria participar das lutas do povo, pois só assim seria possível refletir os conteúdos democráticos e progressistas dessa luta. Para ele, o que havia, àquela época, era um "falso modernismo", daí a importância de se buscar uma arte que correspondesse a um novo período histórico brasileiro (Ne­ves, 1981, p.120). As proposições de Santoro estavam de acordo com o que Duprat buscava, não só como uma nova maneira de compor, mas, como uma identificação ideológica que o possibili­tava se posicionar politicamente diante da música, pois desde o final da década de 1940 fora militante do Partido Comunista. Por esse motivo, passa a assumir um compromisso com o novo nacio­nalismo, tornando sua obra fruto de seu posicionamento político, que abandonaria em suas produções futuras. Entre inúmeras obras compostas sob esse prisma estão aqui inseridas: Quarteto para cor­das (1958), Concertino para oboé, trompa e cordas (1958) e Lírica n° 2 (1959).

No início da década de 1960, Duprat tomou contato com a música praticada pelos compositores dos movimentos vanguardistas europeus: Nouvelle Musique, na França, liderada por Pierre Boulez e Neu Musik, na Alemanha, por Karlheins Stockhausen. Esses pólos musicais influenciaram-no fortemente, levando-o a compor três obras a partir do serialismo bouleziano: Organismo (1961), Mbaepu (1961) e Antinomies I (1962). A razão do pequeno número de obras nesse estilo se justifica, segundo ele próprio, pelo fato de a

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repetição da adoção de uma mesma técnica composicional ser desestimulante. Logo que dominava uma nova técnica, partia em busca de outra (Entrevista, jan. 2000).

Ao mesmo tempo que tomava conhecimento das produções musicais mais recentes na Europa, Duprat questionava sua postura político-ideológica. Influenciado por um certo vanguardismo eu­ropeu, passou a acreditar que a música tinha de acontecer desvin­culada de posturas políticas. Esse fato, somado à discordância das colocações imperativas e radicais do Partido Comunista Brasileiro, desencadeou o seu desligamento gradativo deste. Suas aspirações na área composicional e seus novos posicionamentos políticos o levaram a ansiar por um contato direto com as novas tendências musicais européias, das quais tomara conhecimento. Com esse fim, partiu para Darmstadt, Alemanha, em 1962, onde participou do curso de férias; assistiu a aulas com os compositores Henri Pousseur, Pierre Boulez e Karlheins Stockhausen. Após o término do curso, permaneceu na Europa, por mais um mês, estagiando no laborató­rio da Radio Television Française (ORTF), em Paris, onde tomou contato com a música concreta de Pierre Schaeffer. Foi em sua passagem pela Europa que Duprat se aproximou da música aleató­ria praticada pelo norte-americano John Cage. Apesar de seu con­tato com a música concreta, eletrônica e com a prática serial, é no terreno do acaso, do efêmero e do aleatório que pretende fincar suas raízes. Junto com ele, muitos alunos americanos freqüentaram o curso de Darmstadt. Esse contato possibilitou que Duprat ficasse a par do que estava sendo feito nos Estados Unidos. Naquele mo­mento, Cage era uma das tendências, talvez a mais marcante e vinha ao encontro do que Duprat realmente considerava como o inusitado em música. Não foi, portanto, nos compositores da van­guarda européia que encontrou o que buscava, mas sim na vertente estética que tendia para o acaso. Sua grande inspiração estava no happening praticado por John Cage nos Estados Unidos. A partir desse momento, tornou-se radicalmente "cagista" e, dessa vez, não adotou, aparentemente, nenhuma ideologia política, mas algumas das posturas de Cage, como sua própria filosofia artística. Duprat parece ter encontrado no happening um paralelo para os seus no­vos posicionamentos políticos. A efemeridade dessa prática vem

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ao encontro de sua crença contrária à idéia do artista como um gênio atemporal, cuja arte está além do humano e, ainda, Duprat contestava a idéia de se ter um repertório composto exclusiva­mente para uma pequena elite burguesa e para um mercado inte­ressado na comercialização da arte. Já o happening não era para ser comercializado. Sua essência efêmera perderia o sentido caso existissem registros que visassem a esse fim.

Duprat retorna da Europa ansiando por ampliar seus conhe­cimentos sobre o trabalho desse intrigante compositor norte-ame­ricano. Sua intenção era promover happenings no Brasil, e foi o que fez. Além disso, para que obtivesse conhecimentos na área da informática, faz um curso de programação de dados e, a partir disso, escreve uma obra para computador denominada Klavibm II. Em 1963, mesmo ano em que compôs Klavibtn II, foi premiado pela composição de sua primeira trilha sonora para cinema, A ilha e, juntamente com o grupo Música Nova, lança o manifesto de mesmo nome, publicado na revista de arte Invenção, n° 3. Entre as propostas contidas no manifesto, algumas incorporavam elemen­tos advindos da teoria da informação, da semiótica e das leis mate­máticas das probabilidades associada às técnicas de composição. Além dessas, a proposta de um redimensionamento estrutural da música brasileira para a segunda metade do século XX, também está presente. Em conjunto com a redação do manifesto, Duprat publica, na mesma revista, um texto denominado "Em torno do 'pronunciamento'", no qual analisa e aprofunda o conteúdo das propostas contidas no manifesto e, de forma crítica e reveladora, propõe um redirecionamento da música erudita contemporânea no Brasil, ante as idéias difundidas em outros países.

No ano seguinte da publicação do manifesto, Duprat passa a lecionar na Universidade de Brasília (UnB), onde organiza grupos experimentais de criação envolvendo, inclusive, produções de música aleatória. Nessa época, além de ironizar sua primeira fase nacionalista, chamando-a de "caipirismo", contesta fortemente, em salas de aula, a proposta do "realismo-socialista", passando a utili­zar o happening como sua maior forma de expressão. Sua crença era a de que a música não necessitava do concerto e da partitura, ao contrário, em sua íntegra ela seria o que acontece no momento

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de sua criação, e quando executada. Inspirado no happening, criou, dirigiu e produziu vários espetáculos, entre eles, o MARDA (Movi­mento de Arregimentação Radical de Defesa da Arte) (1966) e o Plug (1970), ambos realizados em São Paulo.

Nas décadas de 1950 e 1960, Duprat manteve-se extrema­mente atuante como compositor erudito, produzindo cerca de vinte peças nesse gênero. Jovem músico na década de 1960, conectado com a cultura de sua época, sempre esteve no fluxo das tendências estético-musicais contemporâneas. Como reflexo de sua geração, buscou romper com os velhos padrões, valores e conceitos. Essa busca pode ser notada no seu interesse pelas novas tendências, pela contestação dos valores vigentes, via ironia e irreverência, e por suas propostas de transformação no campo musical contidas no manifesto Música Nova. Além de ter integrado o grupo Música Nova, fez parte da primeira geração de compositores brasileiros que utilizou o computador como suporte para suas composições. Foi também um dos precursores, no Brasil, na realização do hap­pening e uso de elementos da música concreta e eletrônica na cria­ção, tanto da música erudita quanto da popular.

No entanto, o ano de 1965 foi marcante na história de Duprat por sofrer sérias transformações. Com a interferência da ditadura militar na Universidade de Brasília, ele se viu, juntamente com mais de duzentos professores, obrigado a abandonar as aulas em sinal de protesto, contra a repressão. Até então, sustentava, junto com Damiano Cozzella e Décio Pignatari, diversos planos para a sua vida acadêmica. Entre eles estavam o projeto de um centro de pesquisas fonológicas, de um laboratório sonoro e um programa para a TV de Brasília que visava à apresentação de um repertório formado apenas por música contemporânea.

Quando deixou Brasília e retornou a São Paulo, Duprat encon­trava-se desempregado e se viu obrigado a morar, de favor, na casa de sua mãe. Essa situação levou-o a priorizar o sustento de sua família, com aquilo que sabia fazer de melhor: música. A perda do espaço acadêmico e a falta de perspectiva de conseguir outras uni­versidades para lecionar levaram-no a um profundo desânimo, conduzindo-o a uma nova realidade com a música: a sobrevivência.

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Paralelamente à sua luta pela sobrevivência, deixa de buscar o novo, passando a acreditar que com a chegada da música aleatória e o happening, o inusitado na música erudita se esgotara. Para ele, essas tendências assinalaram o limite da busca do novo, não restando mais caminhos a se seguir. A partir desse momento, todas as ten­dências musicais que surgiam eram, por ele, consideradas repeti­ções, por vezes variadas, do que já havia sido feito. Isso contribuiu para que parasse de compor, pois não aceitava a idéia de se repetir.

Outro fator contribuinte para o seu desinteresse na composi­ção de obras eruditas foi o fato de que elas dificilmente eram exe­cutadas. Para que isso acontecesse era quase sempre necessário um tipo de "jogo político" para o qual não se mostrava predisposto: "Não tinha o mínimo de paciência para fazer parte dos 'esque-minhas', conchavos e 'politiquinhas' para que os regentes viessem a tocar a minha música" (Entrevista, 1998). Nesse sentido, assume o seu ofício de músico apenas como um meio de sobrevivência e não o alia mais a nenhuma ideologia política, pelos menos na sua produção cotidiana. Além disso, passa a contestar, em entrevistas concedidas a jornais e revistas, a figura do gênio que muitas vezes a mídia lhe atribuiu, recusando-se também a ser chamado de músico de vanguarda.

Essa postura levou-o, a partir do ano de 1966, a um período de dezessete anos durante o qual dedicou-se apenas ao genêro popular e, paradoxalmente, a uma música comprometida com o mercado fonográfico. A partir disso, seu envolvimento com a mú­sica assume um caráter comercial, passando a aceitar qualquer tipo de encomenda, sem restrições, que dependesse do som. Como parte de suas novas opções, passou a acreditar que não havia nenhuma diferença entre música popular e erudita. Quando abandonou a prática composicional erudita almejava fazer música para a grande massa, defendendo a integração do músico na sociedade de consu­mo como uma possibilidade a ser seguida. Duprat passa a encarar a sua música como um produto cultural e a constrói com todas as técnicas composicionais que conhecia, tornando-se dono de um estilo inconfundível. O seu intento de não se manter comprometido com um gênero musical específico resultou no inverso. Adotando

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diferentes gêneros, muitas vezes reunidos em um só trabalho, acabou por construir um estilo personalista caracterizado pelo sincretismo.

Como resultado de sua postura comercial em relação à arte, assumiu com determinação, a partir da segunda metade da década de 1960, a criação de muitos arranjos, cuja maioria era destinada a jingles publicitários, trilhas sonoras para cinema e desfiles de moda. Em 1966, juntamente com Damiano Cozzella e Décio Pignatari fundou a Audimus, produtora de audiovisuais, que se responsabili­zava por toda essa produção. No ano seguinte, iniciou seus trabalhos como arranjador com os compositores tropicalistas, tornando-se um de seus principais arranjadores. Os tropicalistas reconheceram em Duprat qualidades musicais que se adequavam às reformulações que buscavam realizar na música popular brasileira. Ele, por sua vez, encontrou no tropicalismo um espaço artístico condizente para a viabilização de suas vivências estético-musicais. Suas concepções estéticas estavam totalmente voltadas para a vanguarda e sendo ele um dos idealizadores dos princípios estéticos que fundamenta­ram o movimento Música Nova, tornou-se possível a coexistência desta com os ideais transformadores dos tropicalistas. Duprat já havia trilhado um longo caminho na vanguarda musical brasileira antes de participar do movimento tropicalista. E foi por intermédio do Tropicalismo que passou a ter, como músico, um maior reco­nhecimento, ainda que de um público específico. Mais uma vez, Duprat contribui para o redirecionamento da música brasileira, porém, dessa vez, no âmbito da música popular. O Tropicalismo representou para Duprat, por assim dizer, um tipo de harmonização entre dois momentos radicalmente opostos de sua experiência como músico: seu contato com a vanguarda da música erudita e seu envolvimento com uma música estritamente comercial. É possível que, ao ter aplicado elementos da vanguarda ao Tropicalismo, es­tivesse buscando uma forma de resolver a contradição existente entre esses dois momentos.

No início da década de 1970, Duprat, como um dos donos de um grande estúdio de gravação em São Paulo, o Vice-Versa, con­centrou seus trabalhos como arranjador, compositor, orquestrador, regente e produtor em estúdios, permanecendo por oito anos nes­se sistema de trabalho. No final dessa década, passou a sentir-se

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desmotivado a continuar com a música publicitária. Essa desmo-tivação gerada pela "falta de profundidade" composicional, agra­vada pela surdez progressiva, levou-o a romper definitivamente com as produções comerciais e, mais tarde, com as trilhas sonoras para cinema. A mesma surdez que contribuiu para que se afastasse dos estúdios foi o motivo principal para que não aceitasse um con­vite para lecionar na Universidade Estadual Paulista, no Instituto de Artes do Planalto, na década de 1980.

Após o seu desligamento da música comercial, Duprat volta a compor nos padrões eruditos. Esse retorno é marcado pela com­posição da peça Audio games manuais para quatro violoncelos, composta em 1983. Desde então, recebe encomendas esporádicas como compositor, arranjador ou orquestrador, porém não adota nenhum estilo composicional específico. Desde a década de 1980, nenhuma técnica ou ideologia artístico-política o estimula para criar. Para ele, tudo o que vem sendo produzido não inova. E as artes, de uma maneira geral, estão muito presas a soluções de entreteni­mento no final do século XX. Duprat acrescenta que "talvez essa seja a saída, por não ter mais o que se fazer de forma original" (OESP, 1996, Caderno 2, p.5). Seu estímulo para criar é e sempre foi a ironia, o deboche, a brincadeira e é nesse espírito que busca a livre coexistência de várias técnicas que possam se adequar às necessi­dades de seu momento criativo. Compor para Duprat parece ser uma grande diversão na qual ele zomba e ironiza dele mesmo e de tudo o que está à volta. O compor a sério, "o levar tudo tão a sério", não tem mais espaço em sua vida. Não acreditando na arte e na música realizadas dessa forma, defende a idéia de que a profundi­dade e a essência de uma criação está no saber compor e viver de forma lúdica. Quando retornou, na década de 1980, a compor no âmbito erudito, já não ansiava mais por nada original, compunha simplesmente pelo prazer da criação.

Duprat traz em seu percurso como compositor uma multipli­cidade extensa, acompanhada de um movimento criativo não-seqüencial e bastante rizomático, ou seja, iniciou com a música popular, de forma ainda intuitiva, sem saber ler uma nota musical, tocava gaita e violão apenas "de ouvido". Aos poucos foi adquirindo informação e formação teórico-musical, enveredando radicalmente

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para a música erudita, na década de 1950. Já no final da década de 1960, volta novamente para a música popular como arranjador e, com a adoção do happening, rejeita mais ainda a partitura musical, retomando uma atitude improvisativa e intuitiva.

Duprat foi múltiplo ao transitar, Concomitantemente, por di­ferentes gêneros musicais. Poderia estar, ao mesmo tempo, traba­lhando em uma trilha sonora para cinema, compondo um jingle no estilo de Corelli, criando um arranjo num estilo musical da Broadway, ou ainda voltar a compor, se necessário, no serialismo bouleziano. Tudo dependia de seu número de encomendas para aquele mês e os requisitos dos eventos de seus clientes. Porém, a sua busca pelo novo, pelo inusitado, determina um elemento unificador no conjunto de sua obra, assim como de suas idéias técnicas ou estético-musicais. Esse ponto é de extrema importân­cia para este livro e nos remete à seguinte indagação: até que pon­to sua busca pelo novo encontra-se refletida em suas obras?

Se tomarmos por base as obras analisadas neste livro observa­mos que em Organismo (1961) sua busca pelo novo pode ser vista refletida na opção pelo uso de uma técnica recentemente desen­volvida na Europa, o serialismo bouleziano, contribuindo dessa forma para o enriquecimento do repertório contemporâneo brasi­leiro da década de 1960. Além disso, dá início a uma colaboração inédita entre os poetas concretistas e o grupo Música Nova, a fim de criarem, à época, uma música contemporânea originalmente brasileira.

Já no arranjo de "Objeto semi-identificado" (1969), a procura do inusitado pode ser vista a partir do uso que Duprat faz de dife­rentes técnicas e estilos composicionais que resultam em um tipo de colagem que, embora comumente utilizado na música erudita e nas artes visuais, a partir da segunda metade do século XX, quando usado em um arranjo de uma canção popular, assume um caráter inovador, totalmente fora dos padrões dos arranjos produzidos no Brasil na década de 1960.

No que diz respeito à identificação da busca de Duprat pelo novo, a trilha sonora do filme O pica-pau amarelo apenas reitera a desenvoltura com que ele transitava por diferentes estilos, ressal­tando o domínio que possuía de diversas técnicas composicionais

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e da instrumentação. A coexistência de vários gêneros musicais para um mesmo propósito, ou mesmo a diminuição das distâncias entre a música popular e erudita, na década de 1960 e 1970, fez de Duprat um dos precursores dessa possibilidade musical, pois tanto o âmbito erudito quanto o popular coexistiram em Duprat, muito embora isso não seja exclusividade sua.

Cada uma das obras, que serviram como exemplo, representa um dos campos de atuação de Duprat e podem, em certa medida, representar o conjunto de sua produção. Os elementos caracteri-zantes demonstrados foram reiteradamente comentados no decor­rer deste livro e podem ser encontrados em cada um dos trabalhos do compositor. Se o enfoque cai sobre sua produção voltada para o âmbito erudito, que pode ser vista a partir de quatro fases dife­renciadas - nacionalista (1950), dodecafônica (final dos anos 1950), serial (1960) e "cagista" (segunda metade da década de 1960) -, observa-se que Duprat esteve sempre atento para as novas tendên­cias composicionais e a produção musical, e cada uma das fases corresponde a um estilo específico, que em sua época representava a tendência composicional mais recente. Assim, torna-se possível afirmar que cada obra composta, em cada uma de suas diferentes fases, refletia o seu desejo de estar em paridade com as novas ten­dências, e o fato de cada estilo adotado ser logo substituído denota sua intenção de não se repetir e prosseguir em sua busca pelo inu­sitado, que culminou com a prática do happening, na segunda metade da década de 1960. A partir dessa década, quando aban­donou o âmbito erudito, passou a atuar como arranjador, compo­sitor popular, orquestrador e produtor.

Curiosamente, ao cessar sua busca pelo inusitado e com ela suas composições eruditas, acaba por aliar-se a um outro movi­mento de vanguarda, dessa vez no âmbito da música popular: o Tropicalismo. Seus arranjos para as canções tropicalistas são resul­tado da experiência de toda uma vida e, mesmo tendo interrompido sua busca pelo novo, muitos de seus arranjos se destacam justa­mente pelo caráter inovador. Fruto da experiência de um compo­sitor com um estilo sincrético, seus arranjos, em sua maioria, con­tribuíram com uma grande dose de originalidade no campo da música popular. Pode-se dizer que ao abandonar sua busca pelo

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novo no terreno da música erudita, acabou por contribuir com a renovação da música popular brasileira.

Outra questão presente, e que serviu como fundamentação para as reflexões que permeiam este livro, diz respeito à importân­cia efetiva de Duprat na música brasileira, ou seja, quais as suas principais contribuições para a cultura nacional. O presente livro, em sua íntegra, pode ser visto como uma resposta a essa indaga­ção. Suas contribuições foram diversas vezes salientadas em seu decorrer e apesar da complexidade podem aqui ser expressas de maneira sintética: não bastasse seu envolvimento com o movimen­to Música Nova, que contribuiu para o redimensionamento da música erudita nacional, participou também das reformulações que o movimento tropicalista propôs para a música popular. Além dis­so, ressaltem-se suas contribuições no plano estético que, embora não existam editadas de forma sistematizada, estão presentes em seus artigos e entrevistas. Suas reflexões estéticas em conjunto com sua produção musical constituem um grande legado para a nossa cultura. Entretanto, esse legado não se restringe ao aspecto quan­titativo, mas é marcado pelo aspecto qualitativo e, sobretudo, pela postura de Duprat criador. É importante ressaltar que sua extensa produção não conta com uma obra-marco, ou seja, Duprat não é lembrado por uma composição em especial, mas, sim, pelo con­junto de sua produção. Diferente de outros compositores, a des­peito de alguns arranjos, seu renome não advém da composição de obras que alcançaram reconhecimento público, tampouco de li­vros editados que serviram como guia para gerações futuras, mas sobretudo de sua postura como criador, sua presença marcante e suas contribuições em diversos segmentos culturais. Certamente, este livro não esgota as possibilidades de interpretação a respeito de Rogério Duprat na história da música brasileira, mesmo por­que, além da rede intricada que constitui sua produção, poderá ter desdobramentos. Trata-se tão-somente de uma leitura desse arte­são e filósofo das sonoridades múltiplas.

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FICHA TÉCNICA DO CD

Faixa 1: Organismo - 1961 (Rogério Duprat)

Orquestra de Câmara de São Paulo sob a regência do maestro Olivier Toni. Vozes: Damiano Cozzella, Dorothy Peroni da Silva, Klaus Dietter Wolf, Shirley Dronsfield Donadio e Ula Wolf.

Faixas 2 a 54: Trilha sonora do filme O pica-pau amarelo - 1974 (Rogério Duprat) Regência: Rogério Duprat Guitarra, viola e violão: Heraldo do Monte Trompete: Felpudo Clarinete: Bolão Trombone: Arlindo Contrabaixo: Gabriel Balis Teclados: Edmundo Villani Cortes Gravada em 1974 no estúdio Pauta, São Paulo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Rogério Duprat a liberação dos direitos autorais de suas obras, e a Gilberto Mendes ter cedido a fita cassete de Organis­mo, gravada por ele mesmo no programa "Música e Imagem" (TV ao Vivo), em 1961. Agradeço, também, a Gilberto Assis a masteri-zação da gravação de Organismo e a edição da trilha sonora.

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SOBRE O LIVRO

Formato: 14 x 21 cm Mancha: 23 x 43 paicas

Tipologia: Classical Garamond 10/13 Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)

Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) 1º edição: 2002

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Coordenação Geral

Sidnei Simonelli

Produção Gráfica

Anderson Nobara

Edição de Texto

Nelson Luís Barbosa (Assistente Editorial)

Renato Potenza (Preparação de Original) Fábio Gonçalves e

Ada Santos Seles (Revisão)

Editoração Eletrônica

Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão) Plano Editoração (Diagramação)

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Impressão e acabamento:

Gráfica e Editora Alaúde Itda.

R. Santo Irineu, 170 • SP • Fone: (1115575-4378

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tários sonoros - ao mundo cinematográfico,

produzindo numerosas trilhas sonoras, entre as

quais se destaca a obra criada para o fi lme de

Geraldo Sarno, O pica-pau amarelo, e con­

quista nova singularidade na interação entre

som e imagem.

Essas características e essa propensão para

o "único" só podem ser depreendidas de per­

to , de muito perto. Pois foi acompanhando,

com muita paciência, o dia a dia de seu per­

sonagem que Regiane Gaúna chegou a este

importante documento que começa - e, de

fato, apenas começa - a desvendar a figura ao

mesmo tempo talentosa, carinhosa e arisca do

músico Rogério Duprat.

Luiz Tatit

Regiane Gaúna é mestre em Artes/Música pelo

Instituto de Artes da UNESP Formada em Mú­

sica popular e erud i ta , leciona História da

Música desde 1994. Como pesquisadora, tem

direcionado seus estudos à produção musical

contemporânea brasileira.

Fofo da autora: Gi lberto Assis.

Ilustração da capa: Sem titulo, ó leo sobre tela de Rogério

Duprat , 1949. Foto de Wilson Mahana.

Fofo de abertura de Rogério Duprat: Clóvis Ferreira/AE.

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Diversos motivos podem ser evocados para se atestar a im­

portância de um livro. No caso deste, a importância maior

é o resgate da história de vida e da produção musical de um

dos mais importantes e polêmicos nomes da música brasi­

leira: Rogério Duprat. E isso é bri lhantemente conseguido

pela pesquisadora Regiane Gaúna, que tem a qualidade de

aliar duas virtudes: a tenacidade e a suavidade. Graças à pri­

meira, conseguiu dar conta de sua tarefa exemplarmente,

perseguindo seus objetivos de maneira cada vez mais pro­

funda e abrangente. Mas foi a suavidade que a levou a su­

perar o maior obstáculo que se apresentava à proposta de

pesquisa: a resistência que o próprio Rogério mostrava à

aproximação de curiosos à sua vida particular, fossem eles

jornalistas, artistas ou pesquisadores. Regiane conseguiu

furar esse cerco e teve acesso a seu acervo particular. Gra­

ças a isso, realizou uma proeza, até então considerada pra­

ticamente impossível: transformar Rogério Duprat em obje­

to de pesquisa acadêmica, pois ele sempre resistiu fortemen­

te à academia. Quem ganha com isso é o leitor brasileiro,

que passa a ter mais uma poderosa fonte de referência da

música brasileira do século XX.

Marisa Fonterrada (IA-UNESP)